II.III Aterosclerose - Boletim Científico...

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II.III Aterosclerose Módulo 2 – Fascículo 3 – Ano 2 – 2003 •Tomografia computadorizada e ressonância magnética na detecção da aterosclerose Revascularização cirúrgica do miocárdio revisitada Epidemiologia das ateroscleroses coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC) Atualização diagnóstica e terapêutica da miocardite Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia ISBN 85–87266–07–1

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II.III AteroscleroseMódulo 2 – Fascículo 3 – Ano 2 – 2003

•Tomografia computadorizada e ressonância magnética na detecção

da aterosclerose

•Revascularização cirúrgica do miocárdio revisitada

•Epidemiologia das ateroscleroses coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC)

•Atualização diagnóstica e terapêutica da miocardite

Programa de Educação Continuada da

Sociedade Brasileira de Cardiologia

ISBN 85–87266–07–1

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Sumário

Escolha do editor 4

Escolha do Editor – Edson A. Saad

1. Artigo dos drs. Evandro Tinoco Mesquita e Ari Timerman –

Atendimento de dor torácica na emergência

2. Artigo dos drs. Hans Fernando Dohmann e Radovan Borichevitch –

Perscrutando o futuro. Terapia celular em cardiologia: fundamentos,possibilidades e limitações

3. Artigo do dr. Jorge Pinto Ribeiro – Avaliação crítica dos ensaiosrecentes sobre antitrombóticos: suas evidências, fraquezas e aplicabilidadeprática

4. Artigo do dr. Luiz Antonio Campos – Tratamento da insuficiênciacoronariana aguda e crônica baseada em evidências

No próximo fascículo...No próximo fascículo...

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Tomografia computadorizada e ressonância

magnética na detecção da aterosclerose

Carlos Buchpiguel; Ibraim Masciarelli F. Pinto

17Aloyzio Cechella Achutti; Ana Marice Ladeia; Armênio Costa

Guimarães; Maria Inês Reinert Azambuja

Epidemiologia das ateroscleroses

coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC)

Presidente

Juarez Ortiz

Diretor científico

Rubens Nassar Darwich

Editor responsável

Edson A. Saad

Editores associados

Protásio Lemos da LuzTânia L. MartinezÂngelo de Paola

Editor

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Direção de arte

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Coordenação editorial

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Assistência editorial

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Revisão

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Projeto gráfico

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Editoração eletrônica

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Uma publicação de

Comercialização e contato médico

DiagraphicProjetos Gráficos e Editoriais Ltda.

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As matérias assinadas, bem como suas respectivasfotos de conteúdo científico, são de

responsabilidade dos autores, não refletindonecessariamente a posição da editora.

Distribuição exclusiva à classe médica.

DIAGRAPHIC

E D I T O R A®

Atualização diagnóstica e terapêutica da

miocardite 28Marcelo Westerlund Montera; Fábio Fernandes

Nota importante: As referências bibliográficas de todos os artigos publicados estarão disponíveis para consulta,via internet, no Portal da Sociedade Brasileira de Cardiologia, no endereço www.cardiol.br/pec.

13Revascularização cirúrgica do miocárdio

revisitada

Adib Jatene

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4 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

Escolha do editor

Aterosclerose : Programa de Educação Continuada daSociedade Brasileira de Cardiologia : módulo 2 . – Ano 1,n. 1 (2002) – fasc. 2 (2002) . – Rio de Janeiro : Diagraphic,2002.v. : il. ; 28cm.

Bimestral

ISBN 85-87266-07-1.

1. Aterosclerose – Periódicos. I. Sociedade Brasileira de

Cardiologia.

CDD 612.1205

A864

Napoleão

Sobre uma ilha isolada,Por negros mares banhadaVive uma sombra exilada,De prantos lavando o chão;E esta sombra dolorida,No frio manto envolvida,Repete com voz sumida:– Eu inda sou Napoleão.

Tremem convulsas as plagas,Bravias lutam as vagas,Solta o vento horríveis pragasNos sendais da escuridão;Mas nas torvas penediasEntre fundas agonias,Ela diz às ventanias:– Eu inda sou Napoleão.

– E serei! do céu, da glória,Nem dos bronzes da memória,

Nem das páginas da históriaMeus feitos se apagarão;Passe a noite e as tempestades,Venham remotas idades,Caiam povos e cidades,– Sempre serei Napoleão.

Da coluna de Vendôme,O bronze, o tempo consome,Porém não apaga o nomeQue tem por bronze a amplidão.Apesar de infausto dia,Da infâmia que tripudia,Dos bretões a cobardia,– Sempre serei Napoleão.

Nos vastos plainos do Egito,Sobre Titães de granito,Eu tenho um poema escritoQue deslumbra a solidão.Das Ísis rasguei os véus,Entre os altares fui deus,

When power leads man toward arrogance, poetry reminds him of his limitations. When power narrows theareas of man’s concern, poetry reminds him of the richness and diversity of his experience. When powercorrupts, poetry cleanses. For art establishes the basic human truths which must serve as the touchstones of ourjudgement. The artist… faithful to his personal vision of reality, becomes the last champion of the individualmind and sensibility against an intrusive society and an offensive state.

John F. Kennedy

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Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 5

Fiz povos escravos meus,– Ah! inda sou Napoleão.

Desde onde o crescente brilhaAté onde o Sena trilha,Tive o mundo por partilha,Tive imensa adoração;E de um trono de fulgoresFiz dos grandes – servidores,Fiz dos pequenos – senhores,– E sempre fui Napoleão.

Quando eu cortava os desertos,Vinham-me os ventos incertosDe incenso e mirra cobertosLamber-me as plantas no chão;As caravanas paravam,E os romeiros que passavamÀs solidões perguntavam:– É este o deus Napoleão?

E lá nas plagas fagueiras,Onde as brigas forasteiras,Entre selvas de palmeirasCorre o sagrado Jordão;O lago dizia ao prado,O prado ao monte elevado,O monte ao céu estrelado:– Vistes passar Napoleão?

Dizei, auras do Ocidente,Dizei, tufão inda quenteDo bafejo incandescenteDo não vencido esquadrão,Como é ele, é belo, ousado?Tem o rosto iluminado?Tem o braço denodado?Sempre é grande Napoleão?

E as águias no céu corriam,E os areais se volviam,E horrendas feras bramiamNo imenso da solidão;Mas as vozes do desertoSe erguiam como um concertoE vinham saudar-me perto:– Tu és, senhor, Napoleão!

– Se sou! que Marengo o conte,De Austerlitz o horizonte,E aquela soberba ponteQue transpus como o tufão!E a minha vila de Ajaccio,E o meu sublime palácio,E os pescadores do LácioQue só dizem – Napoleão!

Se o sou! que digam as plagasOnde do sangue nas vagas,Coberta de enormes chagasDorme vil população;Digam da Ásia as bandeiras,Digam longas cordilheiras,Que se abatiam, rasteiras,Ao corcel de Napoleão!

Se o sou! diga Santa HelenaOnde a mais sublime cenaFechou tranqüila e serenaMinha história de Titão;Digam as ondas bravias,Digam torvas penedias,Onde rijas ventaniasVêm murmurar: – Napoleão.

– E serei! do céu, da glória,Nem dos bronzes da memória,Nem das páginas da históriaMeus feitos se apagarão!Assim na rocha isoladaPelas espumas banhada,Disse a sombra desterrada,De prantos lavando o chão.

As névoas rolam nos céus,Da noite escura nos véusSoltam grandes escarcéusRugidos de imprecação;Mas das sombras a espessura,A face da onda escura,O salgueiro que murmuraTudo fala – Napoleão!

Fagundes Varela

Nossos Clássicos (Vozes da América)

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6 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

I – Juca-Pirama*

IVMeu canto de morte,Guerreiros, ouvi:Sou filho das selvas,Nas selvas cresci;Guerreiros, descendoDa tribo tupi.

Da tribo pujante,Que agora anda errantePor fado inconstante,Guerreiros, nasci;Sou bravo, sou forte,Sou filho do Norte;Meu canto de morte,Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,De tribos imigas,E as duras fadigasDa guerra provei;Nas ondas mendacesSenti pelas facesOs silvos fugacesDos ventos que amei.

Andei longes terrasLidei cruas guerras,Vaguei pelas serrasDos vis Aimorés;Vi lutas de bravos,Vi fortes – escravos!De estranhos ignavosCalcados aos pés.

E os campos talados,E os arcos quebrados,E os piagas coitadosJá sem maracás;E os meigos cantores,Servindo a senhores,Que vinham traidores,Com mostras de paz.

Aos golpes do imigoMeu último amigo,Sem lar, sem abrigoCaiu junto a mi!Com plácido rosto,Sereno e composto,O acerbo desgostoComigo sofri.

Meu pai a meu ladoJá cego e quebrado,De penas ralado,Firmava-se em mi:Nós ambos, mesquinhos,Por ínvios caminhos,Cobertos d’espinhosChegamos aqui!

O velho no entantoSofrendo já tantoDe fome e quebranto,Só qu’ria morrer!Não mais me contenho,Nas matas me embrenho,Das frechas que tenhoMe quero valer.

Então, forasteiro,Caí prisioneiroDe um troço guerreiroCom que me encontrei:O cru dessossegoDo pai fraco e cego,Enquanto não chego.Qual seja, – dizei!

Eu era o seu guiaNa noite sombria,A só alegriaQue Deus lhe deixou:Em mim se apoiava,Em mim se firmava,Em mim descansava,Que filho lhe sou.

Ao velho coitadoDe penas ralado,Já cego e quebrado,Que resta? – Morrer.Enquanto descreveO giro tão breveDa vida que teve,Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo,Mas forte, mas bravo,Serei vosso escravo:Aqui virei ter.Guerreiros, não coroDo pranto que choro:Se a vida deploro,Também sei morrer.

* Pertence este poema aos Últimos Cantos, editados em 1851. É o mais importante poema indianista de Gonçalves Dias,tanto pelo seu conteúdo épico-dramático como pelo sustentado vigor de linguagem, que atinge a sua maior força deexpressão na admirável maldição do velho tupi.

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Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 7

VII“Por amor de um triste velho,Que ao termo fatal já chega,Vós, guerreiros, concedestesA vida a um prisioneiro.Ação tão nobre vos honra,Nem tão alta cortesiaVi eu jamais praticadaEntre os Tupis, – e mas foramSenhores em gentileza.

“Eu porém nunca vencido,Nem nos combates por armas,Nem por nobreza nos atos;Aqui venho, e o filho trago.Vós o dizeis prisioneiro,Seja assim como dizeis;Mandai vir a lenha, o fogo,A maça do sacrifícioE a muçurana ligeira:Em tudo o rito se cumpra!E quando eu for só na terra,Certo acharei entre os vossosQue tão gentis se revelam,Alguém que meus passos guie;Alguém, que vendo o meu peitoCoberto de cicatrizes,Tomando a vez de meu filho,De haver-me por pai se ufane!”Mas o chefe dos Timbiras,Os sobrolhos encrespando,Ao velho Tupi guerreiroResponde com torvo acento:

– Nada farei do que dizes:É teu filho imbele e fraco!Aviltaria o triunfoDa mais guerreira das tribosDerramar seu ignóbil sangue:Ele chorou de cobarde;Nós outros, fortes Timbiras,Só de heróis fazemos pasto. –

Do velho Tupi guerreiroA surda voz na gargantaFaz ouvir uns sons confusos,Como os rugidos de um tigre,Que pouco a pouco se assanha!

VIII“Tu choraste em presença da morte?Na presença de estranhos choraste?Não descende o cobarde do forte;Pois choraste, meu filho não és!

Possas tu, descendente malditoDe uma tribo de nobres guerreiros,Implorando cruéis forasteiros,Seres presa de vis Aimorés.

“Possas tu, isolado na terra,Sem arrimo e sem pátria vagando,Rejeitado da morte na guerra,Rejeitado dos homens na paz,Ser das gentes o espectro execrado;Não encontres amor nas mulheres,Teus amigos, se amigos tiveres,Tenham alma inconstante e falaz!

“Não encontres doçura no dia,Nem as cores da aurora te ameiguem,E entre as larvas da noite sombriaNunca possas descanso gozar:Não encontres um tronco, uma pedra,Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,Padecendo os maiores tormentos,Onde possas a fronte pousar.

“Que a teus passos a relva se torre;Murchem prados, a flor desfaleça,E o regato que límpido corre,Mais te acenda o vesano furor;Suas águas depressa se tornem,Ao contacto dos lábios sedentos,Lago impuro de vermes nojentos,Donde fujas com asco e terror!

“Sempre o céu, como um teto incendido,Creste e punja teus membros malditosE oceano de pó denegridoSeja a terra ao ignavo tupi!Miserável, faminto, sedento,Manitôs lhe não falem nos sonhos,E do horror os espectros medonhosTraga sempre o cobarde após si.

“Um amigo não tenhas piedosoQue o teu corpo na terra embalsame,Pondo em vaso d’argila cuidosoArco e frecha e tacape a teus pés!Sê maldito, e sozinho na terra;Pois que a tanta vileza chegaste,Que em presença da morte choraste,Tu, cobarde, meu filho não és.”

Gonçalves DiasNossos Clássicos (Últimos Cantos)

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8 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

Tomografia computadorizada e

ressonância magnética na detecção da

aterosclerose

Autores

Carlos Buchpiguel

Ibraim Masciarelli F. Pinto

Médicos do Serviço de Diagnóstico por Imagem (DI) do Hospital do Coração (HCor).

A aterotrombose é uma doença de caráter sistêmico que compromete a parede dos vasos e que exibecaracterísticas distintas nas diversas artérias do corpo humano. Há particular interesse para o cardiologista naanálise das placas no território coronário, em especial daquelas que apresentam tendência à ruptura, poisexistem evidências de que elas estariam associadas a eventos isquêmicos. Tais ateromas habitualmente mostramcapa fibrosa fina (65 a 150 micra), núcleo rico em lípides e não promovem diminuição relevante da luzarterial, contrastando com os ateromas considerados de risco no território carotídeo, que apresentam conteúdofibrótico e acentuada redução do lúmen vascular.

O uso de técnicas de imagem para o estudo daaterotrombose é revestido de grande interesse, pois elaspodem auxiliar no esclarecimento dos mecanismos fisio-patológicos envolvidos na progressão desta doença, alémde fornecer subsídios para o tratamento e o acompanha-mento de pacientes comprometidos. Entre os diferentesmétodos atualmente disponíveis, a tomografia computa-dorizada e a ressonância magnética destacam-se, por per-mitir a identificação de obstruções graves, a obtenção di-reta de imagens das placas e a caracterização da suacomposição. Além disso, elas podem fornecer informa-ções que se complementam, auxiliando a conduta clínicanestes pacientes.

Ressonância magnética

A ressonância nuclear magnética é uma técnica de di-agnóstico por imagem que se encontra disponível paraaplicações cardiológicas desde o final da década de 1980.Ela não emprega radiação ionizante para a composiçãodas imagens, mas tem como princípio de funcionamentoa interação da energia magnética com o núcleo de certosátomos presentes no corpo humano.

As várias partículas (nucleotídeos) que compõemo núcleo do átomo, ao serem expostas a campos mag-néticos potentes, adotam movimento circular (spin),com velocidade e direção proporcionais à intensidade

da energia à qual se encontram expostas. Uma varie-dade de núcleos apresenta esta propriedade, mas é odo hidrogênio, devido à sua disponibilidade em teci-dos biológicos, bem como ao seu sinal relativamenteintenso, que é habitualmente empregado para a com-posição das imagens de ressonância.

Os spins podem ser estimulados com novos camposeletromagnéticos com freqüência igual àquela dos spinsnucleares, que transferirão para estes últimos a sua ener-gia. Ao suspendermos a exposição dos nucleotídeos a estesnovos campos eletromagnéticos, eles liberarão a energiaacumulada, retornando ao estado de repouso, num pro-cesso conhecido como relaxamento. O tempo necessáriopara que isto ocorra é medido por dois parâmetros, T1 eT2, que são a base da formação das imagens, uma vez quetodos os prótons absorvem a energia administradahomogeneamente, mas, dependendo da molécula à qualo hidrogênio está ligado, o tempo de retorno ao repousomostra diferenças substanciais, conforme pode ser obser-vado na Tabela. Isto confere à ressonância elevada resolu-ção de contraste, ou seja, capacidade de diferençar tecidosde natureza distinta, fato particularmente útil na avaliaçãode pacientes comprometidos por aterotrombose.

Dois tipos básicos de imagem são usados em ressonân-cia cardíaca. As imagens do tipo sangue ausente, nas quaisnão se observa a presença do sangue, mas que são considera-

II.III

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Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 9

Tabela – Valores de T1 e T2 de diferentes tecidos do sistema cardiovascular

Tecido T1 T2

Miocárdio 870 57

Gordura 260 84

Sangue 830 160

Valvas 200 22

Figura 1. Imagem de sangue ausente, ou sangue escuro,que mostra o ventrículo direito, o ventrículo esquerdo, araiz da aorta e parte da coronária direita

Figura 2. Imagem sangue brilhante, que permite a fácildistinção entre miocárdio e o sangue circulante. Nestafigura observa-se o átrio direito, o ventrículo esquerdo, araiz da aorta, a porção proximal da artéria coronáriadireita e parte da artéria circunflexa

das ideais para o estudo da anatomia cardíaca e tambémpara a avaliação da parede dos vasos, têm sido empregadaspara a avaliação do comprometimento aterosclerótico (Fi-gura 1). Já as aquisições gradiente-eco ou de sangue bri-lhante são sensíveis para revelar tecidos em movimento e,recentemente, beneficiaram-se do desenvolvimento de téc-nicas rápidas que permitem a construção de imagens emtempo quase real. Estas utilizam meio de contrasteparamagnético, substâncias metálicas em estado líquido, quenão sofrem o efeito do magnetismo e, portanto, manifes-tam sua presença com intensidade de sinal elevada e com acaracterística cor branca (Figura 2).

Ressonância magnética e detecção deateroscleroseA ressonância magnética tem sido apontada como a

modalidade diagnóstica de maior potencial para avisibilização e a caracterização incruenta das placas deateroma, lançando mão dos dois tipos de imagens mencio-nados anteriormente. As aquisições de sangue ausente sãoúteis para revelar de modo preciso a parede dos vasos, e astécnicas de sangue brilhante servem como auxiliares para aapreciação da capa fibrosa dos ateromas e a integridade dasplacas, especialmente no território carotídeo.

Este exame tem sido aplicado com freqüência para aidentificação de placas de ateroma em diferentes regiões docorpo, de modo especial na aorta e nas artérias carótidas. Naverdade, o território carotídeo foi o primeiro a ser aborda-do, uma vez que a localização mais superficial destes vasostornava sua abordagem relativamente mais simples. Diver-sos estudos foram realizados e validaram este tipo de avalia-ção, demonstrando que a ressonância apontava de forma

adequada a localização de placas e sua composição e gravi-dade. No nosso serviço realizamos estudo avaliando cempacientes pela angiorressonância e pela angiografia invasivae comparamos os resultados destes exames com a análisedos ateromas retirados durante a endarterectomia carotídea.Tanto o exame invasivo como o não-invasivo mostraram omesmo diâmetro de referência das artérias e documentarama mesma gravidade das obstruções. Por outro lado, houveexcelente correlação entre núcleos lipídicos e de ulcerações(Figura 3).

A avaliação dos ateromas aórticos também tem sidorealizada com sucesso pela ressonância magnética. Este exa-me é empregado rotineiramente para o estudo das doençasaórticas, com excelentes resultados, e mostra-se capaz deidentificar hematomas, inflamações e ulcerações na parededo vaso. Sua aplicação em indivíduos assintomáticos, masque apresentam antecedentes importantes para a incidênciade doença aterosclerótica, tem revelado a presença de placas

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10 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

Figura 3. Exemplo deangiorressonância decarótidas, mostrandoobstruções graves na

origem da artériasubclávia e no

segmento distal daartéria carótida

comum esquerda. Ocorte transversal da

lesão da artériacarótida demonstrou

que a placa tinhaconteúdo fibrolipídico,

era ulcerada emostrava trombo

intraluminal

de ateroma promovendo aumento da es-pessura parietal. A presença deste achadotem sido apontada por alguns autores comoum fator de risco independente para a ocor-

rência de fenômenos isquêmicos (Figura 4).No que se refere ao uso da ressonância como forma de

investigação da doença aterotrombótica das artériascoronárias, o exame tem duas aplicações distintas. Aangiografia não-invasiva das artérias coronárias tem sidoutilizada de forma experimental desde 1993, com o uso devários protocolos de obtenção de imagens cardíacas. A des-peito deste grande interesse e da intensa pesquisa realizadanesta área, ainda não foi apresentada nenhuma variante deressonância magnética que tenha resultados equivalentesàqueles da angiografia invasiva. Uma da principais limita-ções dos resultados conseguidos por este exame reside nofato de que as aquisições para revelar a anatomia coronáriasão feitas ao longo de vários ciclos cardíacos, o que induz aocorrência de inúmeros artefatos de movimento. Por outrolado, recente estudo multicêntrico mostrou resultadossatisfatórios para a análise dos segmentos proximais (3-5 cm)das artérias coronárias em mais de 109 pacientes. Os auto-res lograram definir obstruções graves no tronco da coronáriaesquerda e na porção proximal das três principais artériasem 84% dos casos em que elas encontravam-se presentes.Por outro lado, não foram identificados 18% dos casos deobstrução grave uniarterial, proximal e todos os casos deobstruções no segmento médio e distal, traduzindo as limi-tações que ainda existem com o uso deste exame na práticacardiológica (Figura 5).

A segunda aplicação da ressonância no territóriocoronário é caracterizada pela tentativa de se procederà obtenção de imagens das placas que comprometamaquelas artérias. No momento, os resultados ainda sãolimitados pela existência de dificuldades decorrentesdos movimentos cardíacos, da respiração, do tipo detrajeto não-linear das coronárias, além da localizaçãocentral e do reduzido diâmetro destes vasos. De qual-

quer modo, já foram obtidas imagens em animais deexperimentação e em seres humanos que foram capa-zes de reproduzir a parede das artérias do coração.Fayad et al. conseguiram encontrar diferenças signifi-cativas na espessura da parede de indivíduos semdoença coronária comparados com pacientes por-tadores de obstrução coronária. Bertini et al., nonosso meio, demonstraram que a ressonância magné-tica podia evidenciar a presença de remodelamentopositivo em pacientes com angina instável, achado estenão-relatado nos pacientes com angina estável. Pintoet al. conseguiram documentar a presença de sinal he-terogêneo em pacientes na fase evolutiva do infarto.

Do ponto de vista clínico, a ressonância tem sido utili-zada para o acompanhamento não-invasivo de pacientes tra-tados com redutores de lípides por apresentarem obstruçõesem vasos extracardíacos. Corti et al. adotaram este examecomo forma de controlar pacientes assintomáticos com obs-truções de carótidas, e em uso de estatinas. Eles relataramque ao final de 12 meses havia significativa redução do vo-lume da placa, bem como mudanças na estrutura da paredearterial, revelando o potencial deste método diagnóstico paraa avaliação seqüencial de portadores de aterotrombosecarotídea.

Assim, é possível que progressos tecnológicos adicio-nais que aumentem ainda mais a resolução espacial, asso-ciados a mudanças que possam elevar a resolução tempo-ral da ressonância magnética, permitam a sua utilizaçãonas artérias coronárias com resultados equivalentes aos re-latados para os demais segmentos arteriais.

Tomografia computadorizada

Até 1999, a tomografia mecânica não podia ser con-siderada uma opção para a realização de exames cardía-cos, a despeito de apresentar adequada resolução espaciale relação sinal/ruído, pois não possibilitava a obtençãode imagens com resolução temporal inferior a 800milissegundos, estando, portanto, sujeita a importantesartefatos provocados pelo movimento cardíaco. Há doisanos, porém, houve nova perspectiva, caracterizada pelaintrodução da tomografia computadorizada de múltiplosdetectores. Este é um sistema helicoidal mecânico, noqual o tubo gerador de raios X está posicionado sobreum braço que gira ao redor do paciente, na velocidadede duas vezes por segundo (500 milissegundos por ci-clo). A par disso, a radiação emitida pelo tubo geradorincide sobre quatro fileiras de detectores, situados emposição diametralmente oposta à do gerador. Assim, po-dem-se compor até oito imagens por segundo, o que dáao sistema a resolução temporal máxima de 125

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Figura 4. A ressonânciamagnética podeidentificar placasgordurosas mesmo emestágios iniciais de suaevolução. Neste exemploobservamos um caso deaorta sem anormalidadesapreciáveis àangiorressonância (A),mas que já exibe depósitode gordura (sinalbranco) e espessamentoparietal (seta) naimagem em secçãotransversal (B)

Figura 5. Angiorressonância magnética exibindo o troncoda coronária esquerda e as porções proximais da artériadescendente anterior e da artéria circunflexa

milissegundos. Adicionalmente, estes tomógrafos possi-bilitam a obtenção de cortes muito finos, com espessuramenor do que 1mm. A combinação de cortes finos comgrande velocidade de aquisição permitiu cogitar o em-prego desta ferramenta para estudos cardíacos.

A aplicação clínica deste exame inclui atualmente a in-vestigação de doenças da aorta e da artéria coronária e tem semostrado relevante. A despeito de apresentar menor resolu-ção de contraste do que a ressonância, mostra resolução espa-cial muito superior, possibilitando a avaliação pormenorizadada parede das estruturas vasculares. Além disso, este exame émuito sensível à presença de cálcio na parede arterial, e este foiexatamente o fator que despertou o interesse de se tentar aplicá-lo para estudar pacientes com doenças cardiovasculares.

A angiotomografia da aorta em equipamentos queutilizam a metodologia de múltiplos detectores é realizadaem apenas 45 segundos e possibilita a análise de todo ovaso. Clinicamente, este tipo de exame tem sido utilizadopara o diagnóstico de estenoses, aneurismas e dissecçõesda aorta com grande sucesso. No nosso serviço temos ob-servado que seus resultados nesta área equivalem àquelesda angiorressonância, devendo ser lembrado, porém, quea tomografia mostra limitada capacidade de análise da fun-ção ventricular esquerda, ao contrário da ressonância, queé extremamente eficaz neste sentido (Figura 6).

Contudo, é na avaliação não-invasiva das artériascoronárias que este exame tem mostrado enorme potencial.Sua demonstração da anatomia das artérias coronárias émuito superior à da angiorressonância e podem-se visualizartodos os trechos da árvore arterial coronária. Becker et al.obtiveram sucesso na identificação de obstruçõescoronárias, inclusive na determinação de placas não-calcificadas. Eles ressaltaram o fato de que pelo menos 10%dos pacientes com doença coronária têm obstruções im-portantes, a despeito de mostrarem ausência de cálcio na-quele território. Mais tarde, Achenbach et al. aplicaram omesmo protocolo e analisaram 25 indivíduos sem estenosesrelevantes nas artérias coronárias, pela angiografia invasivae por meio da tomografia computadorizada de múltiplosdetectores, logrando expor 78% dos segmentos coronáriossem nenhum artefato. Ao compararem as dimensões arte-riais medidas pela tomografia e pela angiografia quantita-tiva, obtiveram coeficiente de correlação igual a 0,86. Outrainvestigação do mesmo grupo, estudando 64 pacientes cominsuficiência coronária, ainda com o mesmo protocolo,demonstrou sensibilidade de 91% e especificidade de 84%para a detecção de estenoses obstruindo em mais do que75% a luz arterial. A experiência do grupo alemão foireproduzida por Nieman et al., que, em 35 casos, identifi-caram com sucesso 81% das estenoses maiores do que 50%,

ao mesmo tempo em que determinaram como normais97% dos territórios isentos de lesões à cinecoronariografia.

No nosso grupo utilizamos este exame rotineiramenteem 2 mil pacientes até setembro de 2002. A tomografiamostrou-se adequada para identificar o grau de calcificaçãocoronária, demonstrar a presença de obstruções graves eoclusões em pontes de safena e em artérias coronárias e,também, para descartar a presença de doença coronáriaobstrutiva (Figura 7). Todavia, ainda há dificuldades em seavaliar placas de ateroma que promovam estenose modera-da da luz arterial, faixa na qual a exatidão do método aindaé limitada.

A maior contribuição que este exame tem dadopara a investigação cardiológica é a análise das pla-cas. Embora ainda não seja possível determinar a

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12 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

Figura 6. A tomografia computadorizada por múltiplos detectores da aorta revelaa anatomia de todo o vaso em cerca de 45 segundos, possibilitando tanto acaracterização de casos normais (A) como o diagnóstico de aneurismas (B)

Figura 8. Tomografia de coronária exibindo placa instável localizada na artériadescendente anterior (setas). Esta caracteriza-se pela presença de material exclusivamentelipídico, com remodelamento positivo e irregularidade no segmento comprometido

Figura 7. Angiotomografia das artérias coronárias mostrandoausência de calcificação e, também, a presença de obstruçãono segmento proximal da artéria descendente anterior (seta),que mostra fluxo reduzido ao longo de todo seu trajeto

condição da capa fibrosa por este exame, pode-sediferençar com segurança a presença de cálcio oude gordura no interior do ateroma, assim como éfactível a determinação de remodelamento positi-vo no local comprometido pela aterotrombose, ele-mento que sugere fortemente a instabilidade daplaca.

Recentemente comparamos, através da angio-tomografia, 30 pacientes com angina instável e 20pacientes com angina estável. No primeiro grupohavia reduzido grau de depósitos de cálcio no lo-cal comprometido, as placas eram fundamental-mente lipídicas e havia remodelamento positivo.Nos pacientes com angina estável, o grau de calci-ficação era significativamente superior e não haviacasos de remodelamento positivo. Este tipo deachado demonstra o potencial que a tomografiaapresenta para o estudo não-invasivo das artériascoronárias, em particular para a caracterização dasplacas (Figura 8).

Perspectivas

Apesar dos resultados satisfatórios relatados pelaressonância e pela tomografia, ambos os exames ain-da mostram limitações e vantagens complementares.Em decorrência disto, alguns centros começam a as-sociar a investigação pelos dois métodos diagnósti-cos, com o objetivo de obter maior número de infor-mações a respeito da doença aterotrombótica, emparticular no território das artérias coronárias.

A estratégia mais comumente escolhida é a de ini-ciar a investigação com o uso da angiotomografia dasartérias coronárias, devido à melhor reproduçãoanatômica conseguida com este tipo de estudo. Emseguida, complementa-se a investigação com a reali-zação da ressonância magnética sobre o territóriocomprometido, para melhor avaliar os ateromas en-contrados.

Este tipo de avaliação pode fornecer informaçõessuplementares e úteis tanto do ponto de vistainvestigacional como clínico. Porém o custo e o tem-po de exame ainda são elevados.

Portanto, à medida que progressos tecnológicosforem incorporados à ressonância e à tomografia, as-sim como os aspectos de custo e disponibilidade fo-rem resolvidos, os métodos de diagnóstico por ima-gem podem transformar-se em instrumentosfundamentais na avaliação de pacientes portadoresde doença aterotrombótica.

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Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 13

Revascularização cirúrgica do

miocárdio revisitada

A cirurgia de revascularização do miocárdio experimentou duas fases distintas, delimitadaspela introdução da cinecoronariografia por Mason Sones, em 1962(1).

Na primeira fase, iniciada em 1916, e como as le-sões das artérias coronárias não podiam ser identifica-das, os métodos cirúrgicos não abordavam a artériacomprometida. Eram métodos indiretos, seja para cor-tar a via nervosa da dor ou provocar vasodilatação, sejapara induzir o desenvolvimento de circulação colateralatravés da formação de aderências entre o epicárdio eo pericárdio, usando irritantes físicos ou químicos.Tentativas de melhoria da circulação coronariana fo-ram feitas pela colocação de tecidos vascularizadossobre o epicárdio escarificado. Merece destaque o im-plante de uma ou das duas artérias mamárias em tú-neis construídos na espessura do miocárdio porVineberg(2).

A ineficácia destas operações, excluindo o implan-te de artéria mamária e a falta de método diagnósticocapaz de demonstrar alterações de circulaçãocoronariana, levou a cirurgia ao descrédito como mé-todo terapêutico capaz de reverter a isquemia do mio-cárdio.

Foi o desenvolvimento da cinecoronariografia,demonstrando não só a presença das obstruções dasartérias, mas, também, o estado das porções distais,que tornou possível a abordagem das mesmas, dire-tamente, para restabelecer o fluxo sangüíneo normal,e, em conseqüência, a isquemia geradora dos sinto-mas, responsável pelo risco a que estavam expostosos pacientes.

Este segundo período já conta com experiência de40 anos, quando centenas de milhares de pacientes fo-ram operados em todo o mundo, utilizando técnicasque, agora, podiam ser avaliadas, e sua eficácia, relacio-nada diretamente ao resultado da revascularização domiocárdio.

Revisitar o que aconteceu nesses 40 anos podeser feito didaticamente, considerando-se quatroperíodos.

O primeiro período, que pode ser chamado dedécada das propostas eficazes, iniciou-se com acinecoronariografia e inaugurou a abordagem da arté-ria obstruída. Inicialmente atuou-se sobre a própriaárea lesada por três abordagens distintas. A primeirafoi realizando-se uma endarterectomia ou retirada daíntima espessada(3). Na segunda técnica, o ateroma nãoera retirado. Fazia-se incisão sobre a área lesada, pro-longando-se a mesma, proximal e distalmente, até atin-gir-se áreas preservadas da artéria. A sutura de remen-do de pericárdio ou veia garantia o restabelecimentodo fluxo sangüíneo normal(4).

Na terceira abordagem, proposta em 1967 porFavarolo(5), o cirurgião ressecava a porção lesada daartéria e restabelecia o fluxo através de um fragmen-to de veia safena suturada nos dois cotos da artériacoronária resultantes da ressecção da porçãoobstruída.

Esta última técnica por vezes não podia ser reali-zada devido ao comprometimento da porção proximalda artéria, o que levou Favarolo a abandonar a aborda-gem da área obstruída, fazendo o restabelecimento dofluxo sangüíneo através de ponte de veia safenasuturada proximalmente na própria aorta e distalmentena artéria coronária após a obstrução(6).

Poucos centros se dedicaram, inicialmente,a realizá-la, acumulando progressivamente experiên-cias cujos resultados estimularam sua difusão. Em nossomeio a revascularização, utilizando veia safena, iniciou-se em setembro de 1968(7). Até junho de 1971 já havía-mos operado 271 pacientes(9).

Autor

Adib D. Jatene

II.IIINota do Editor

O Professor Dr. Adib D. Jatene dispensa apresentação. Professor naUniversidade de São Paulo, o modelo ultrapassa a moldura. Ele é narealidade um Mestre do Mundo e reproduz o que Georges Sand dizia deChopin: “Um homem como este, nasce um de cem em cem anos!”.

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O segundo período pode ser chamado de décadada análise e da expansão. Cardiologistas de renomeno início posicionaram-se contra o procedimento, ea maioria dos serviços na Europa e nos Estados Uni-dos não realizava a operação. À medida que os resul-tados foram sendo apresentados, demonstrando con-trole dos sintomas pela eliminação da isquemia, areação foi diminuindo e novos serviços passaram arealizar a técnica, com ampliação considerável do nú-mero de pacientes operados, com redução significa-tiva do risco operatório e manutenção de resultadosna evolução tardia. Introduziu-se, além da veia safena,a utilização da artéria mamária como conduto alter-nativo(9).

Ao entusiasmo inicial com a anastomose mamáriacoronariana seguiu-se período de retração, quandopesquisa conduzida por Flema(10) demonstrou que, paraa mesma artéria, o fluxo fornecido pela veia safena eraduas a três vezes maior que aquele fornecido pela arté-ria mamária. Admitiu-se que a mamária deveria serreservada para pequenos leitos vasculares.

Em nosso serviço, que entre 1972 e 1974 tinharealizado esta operação em mais de 400 doentes, o pro-cedimento foi praticamente eliminado.

Naquela década foram realizados vários estudosmulticêntricos. Três deles(11-13) tiveram ampla divulga-ção, e sua interpretação deu margem, de um lado, àconfirmação do valor do método e, por outro lado, ainterpretações equivocadas, utilizando-se indevida-mente os dados encontrados.

Isto ocorreu porque, pelo protocolo, só eram in-cluídos no estudo pacientes com angina leve ou mo-derada, com boa função ventricular, sendo excluídospacientes com lesão de tronco, angina de graus III eIV, angina instável ou progressiva, bem como pacien-tes que tivessem apresentado episódios agudos nos úl-timos seis meses.

O que se buscava demonstrar, nesse grupo selecio-nado de pacientes de baixo risco, era a comparaçãodos resultados entre os tratados clinicamente e os sub-metidos à operação. Quando se buscava como indica-dor a mortalidade, a diferença, embora favorável à ci-rurgia, não era muito expressiva, mas quando sebuscava a eliminação das manifestações de isquemia,como angina e teste de esforço negativo, o resultadoera amplamente favorável ao grupo operado. Este acha-do levou à conclusão de que o paciente portador deangina estável, controlada por medicação, poderia sermantido em tratamento clínico enquanto a medica-ção permitisse qualidade de vida aceitável, e só quan-

do a angina se tornasse resistente, ou sofresse agrava-mento súbito, seria indicado o tratamento cirúrgico.

A extrapolação deste conceito a todo o universode portadores de aterosclerose coronariana foi o equí-voco que gerou muita discussão. Com o acúmulo daexperiência ficou claro que não existia correspondên-cia direta entre a gravidade dos sintomas e a gravidadeda doença, principalmente do risco de morte. Passa-va-se a aceitar que, diante do diagnóstico de ateroscle-rose coronariana sintomática ou detectada por testede esforço, o único exame capaz de demonstrar a ex-tensão e a gravidade da doença era a cinecoronario-grafia, a partir da qual a opção terapêutica poderia serdecidida com todas as variações conhecidas.

Um grupo especial era o dos pacientes que se apre-sentavam na fase aguda da doença. A cinecoronario-grafia de urgência seguida de revascularização cirúrgi-ca foi praticada em nosso meio, incluindo adesobstrução por cateterismo(14, 15).

Também foi objeto de discussão se a cinecoro-nariografia deveria ser feita antes da alta naqueles pacien-tes que apresentavam infarto do miocárdio com evolu-ção favorável. No nosso meio, Piegas(16) advogava aimportância dessa abordagem, argumentando com a não-relação direta entre sintoma e comprometimentoanatômico e a conveniência de se conhecer a extensão e adistribuição das lesões nas artérias coronárias de maiorutilidade para interpretação de eventos futuros.

De todas as contribuições do período resultou aaceitação universal da cinecoronariografia como o pa-drão-ouro para o diagnóstico e o estabelecimento dorisco, seja de infarto ou de morte súbita, ao qual opaciente estava submetido por lesões de tronco decoronária esquerda, de porção proximal de artérias comextensas áreas de irrigação e lesões multiarteriais. Des-ta forma, as indicações para implante de pontes desafena aortocoronária ou anastomoses entre a artériamamária e a artéria coronária poderiam ser feitas forada fase aguda.

Os cirurgiões buscavam aprimorar a técnica usan-do fios de sutura cada vez mais delgados, e desenvol-viam métodos para proteção do miocárdio durante acirculação extracorpórea, usada em todos os pacien-tes. Clampeamento intermitente da aorta foi confron-tado com diferentes técnicas de cardioplegia, usandosoluções salinas ou sangue com níveis elevados de po-tássio, para induzir a parada cardíaca. Estas soluçõeseram usadas, seja a 4ºC ou em temperatura normal,de forma anterógrada ou retrógrada, conforme a pre-ferência dos cirurgiões.

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Chegou-se ao claro entendimento de que aocardiologista cabia o diagnóstico clínico e hemodi-nâmico, e ao cirurgião a revascularização do miocár-dio. A discussão centrava-se na oportunidade do tra-tamento cirúrgico, postergando-se sua indicação empacientes com angina estável controlada por medica-ção e antecipando-se a operação quando lesões críti-cas em porções proximais poderiam causar eventoscatastróficos.

O terceiro período, chamado de década do aper-feiçoamento e da evolução, caracterizou-se pela pre-ferência do conduto arterial, representado princi-palmente pela artéria mamária esquerda. Ospacientes que tinham sido revascularizados comanastomose da artéria mamária para artériascoronárias com grande leito vascular na década an-terior e que foram reestudados demonstraram que aquase interrupção do uso deste conduto não se jus-tificava. O estudo de Loop(17), em 1982, demons-trou que a artéria mamária utilizada mantinha-seeficaz e, mais importante, que o índice de pontespérvias, tardiamente, era significativamente maiorque o das pontes de safena.

A artéria mamária interna esquerda passou a serlargamente utilizada. O uso de conduto arterial se ex-pandiu para a mamária direita e para os outros condu-tos arteriais.

Carpentier(18) introduziu a artéria radial, que, ini-cialmente, foi questionada pela ocorrência de índicemaior de obstrução, mas, posteriormente, com o refi-namento da técnica de sua retirada e detalhes de sutu-ra e o uso de vasodilatadores para prevenir espasmo,passou a ser regularmente utilizada.

Puig(19), em nosso meio, introduziu o uso de arté-ria epigástrica, que, embora eficaz, não obteve a mes-ma aceitação dos condutos anteriores.

A artéria gastroepiplóica(20) igualmente vem sendousada, seja como enxerto livre ou in situ, mas não ga-nhou ampla utilização, ficando reservada a casos espe-ciais.

O enxerto venoso manteve sua posição, tomando-se cuidados especiais na sua retirada e no seu preparo,substituindo-se a solução salina empregada por san-gue e controlando-se a pressão intravenosa durante opreparo.

É desta década a introdução da angioplastia, pro-posta por Grundzig(21), utilizando cateter com balãoinsuflável ao nível da lesão, que esmagava a placa, res-tabelecendo o diâmetro normal da artéria e dispen-sando a necessidade de cirurgia.

A equipe cirúrgica ficava na espera para a even-tualidade de complicação que exigisse intervençãoimediata.

O relativo ceticismo inicial quanto a esta técnica,reforçado pela incidência de reoclusão em 40% doscasos nos primeiros seis meses, não causou maiorespreocupações aos cirurgiões que consideravam a ope-ração o procedimento de eleição, especialmente quan-do os condutos arteriais eram utilizados.

Entretanto o fato de o cardiologista que realizavao estudo hemodinâmico ser capaz de se tornar o ope-rador usando a angioplastia causou turbulência no fimda década, em comparação com a calmaria da décadaanterior, onde havia separação nítida entre quem faziao diagnóstico e quem fazia a intervenção, no caso, ocirurgião. Criou-se até o termo hemodinâmicaintervencionista, ou seja, a que trata não só obstruçõesde artérias coronárias, mas de valvas cardíacas,coarctação da aorta e busca ocluir defeitos do septoatrial ou fechar o canal arterial persistente.

O quarto período, que se prolonga até os nossosdias, chamado por alguns de o da confusão, eu prefirochamar de o das opções.

O aprimoramento da angioplastia, com o empre-go dos stents(22), inicialmente não-revestidos e, recen-temente, cobertos com substâncias capazes de inibircrescimento tecidual(23) na área onde fica colocado, bemcomo o tratamento de mais de uma artéria, represen-tou um avanço inegável, acrescido do apelo da não-abertura do tórax. O procedimento está consagrado evem sendo largamente utilizado em todo o mundo,suportado por uma estrutura industrial que produz eaprimora cateteres e stents.

Os cirurgiões, por sua vez, aprimoraram seusprocedimentos, buscando simplificá-los e reduzir asincisões.

A operação sem o uso de circulação extracorpórea,no nosso meio divulgada por Buffolo(24), com resulta-dos posteriormente confirmados por vários cirurgiõesbrasileiros, e na Argentina por Benetti(25), conseguiuampla aceitação e vem sendo realizada de forma cres-cente no país e em todo o mundo, inclusive para casoscom lesões multiarteriais(26).

Com base na anastomose mamário-coronariana,com o coração batendo sem circulação extracorpórea,introduziu-se a minitoracotomia(27), utilizando-se,ou não, a videotoracoscopia para dissecção da artériamamária.

Das miniincisões laterais evoluiu-se para a médio-esternal, com redução da extensão da incisão da pele

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16 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

do tórax e realização de pontes múltiplas anas-tomosadas na artéria mamária, portanto sem tocarna aorta.

Também técnicas para implante de veia safenana aorta, sem utilizar qualquer clampeamento e comdispositivos que dispensam sutura, vêm sendo em-pregadas.

Mais recentemente, a introdução da robótica, emque braços mecânicos articulados são comandados pelocirurgião, que olha a imagem do campo operatório natela de televisão, é uma tentativa de se oferecer maisprecisão sem necessidade de incisões maiores.

Inclusive pode-se colocar o paciente em circula-ção extracorpórea sem abrir o tórax e, com instrumen-tos introduzidos no tórax por pequenos orifícios, rea-lizar anastomose da artéria mamária com ramos deartéria coronária.

Os procedimentos cirúrgicos, hoje, têm suaeficiência largamente comprovada, particularmenteporque o uso de pelo menos uma artéria mamária é aregra. Os resultados tardios, em conseqüência, sãocada vez melhores. Técnicas de redução da dor, cominfiltração peridural alta, têm permitido um pós-ope-ratório com ausência de dor nos primeiros três dias.Já existem serviços que, com esta técnica, conseguemoperar com o doente acordado e sem intubaçãotraqueal.

Por isso chamo esta década de das opções, em queo tipo e a localização das obstruções, a existência de

eventuais complicações e, principalmente, a experiên-cia de hemodinamicistas e cirurgiões irão determinar,em cada caso, se a melhor indicação é a intervençãopor hemodinâmica ou por cirurgia.

Há casos de pacientes com repetição de várias in-tervenções hemodinâmicas que terminam por ser ope-rados, como há casos operados que se beneficiam, pos-teriormente, da intervenção hemodinâmica.

O que necessitamos é de postura ética e de critériospara não submeter o paciente a um tipo de procedi-mento quando tudo fazia indicar que aquele não seriao mais adequado.

Acresça-se o fato de que o tratamento clínicomedicamentoso também evoluiu e que, portanto, sig-nifica mais uma alternativa, não só para acompanha-mento posterior de qualquer dos dois tipos de inter-venção, mas como tratamento alternativo a ambos.

Diante de doença grave, e potencialmente fatal ouincapacitante, chegamos a um tempo onde existem trêsformas de tratamento eficazes e onde a opção por umdeles estará baseada nas características de cada caso,lançando mão dos métodos de diagnóstico anatômicoe funcional, que permitem aferir a viabilidade do mús-culo cardíaco a exigir revascularização capaz de elimi-nar as manifestações da doença e devolver o paciente àatividade normal.

É a cooperação entre clínico, hemodinamicista ecirurgião que oferecerá ao paciente o melhor trata-mento no melhor momento.

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Epidemiologia das ateroscleroses

coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC)

A epidemiologia é o estudo das doenças e de seus determinantes na população. Pode-se dizer que através dela seavalia o estado de saúde de uma população e são investigadas as causas de seu adoecimento e seus níveis de

mortalidade. O tratamento populacional correspondente (reabilitador-recuperador, preventivo e de promoçãoda saúde) está afeito ao campo da saúde pública, com o qual a medicina tem importante interface.

Epidemiologia da aterosclerose

Enquanto a medicina foca principalmente aque-les que buscam assistência, em geral, de forma espon-tânea, a saúde pública olha para o conjunto dos indi-víduos: os doentes (que buscam, não buscam ou nãotêm acesso aos serviços médicos) e também aqueles(ainda) não-doentes, ou não identificados como tal.

Este artigo pretende dimensionar a contribuiçãodas doenças cardiovasculares (DCV) para oadoecimento e a mortalidade da população, buscandoanalisar seus determinantes e variações ao longo dotempo e do espaço, e dentre os seus distintos grupossociodemográficos.

Estão incluídos não somente os fatores de riscopara os casos individuais (ex.: fumo, dieta inadequa-da), mas também suas diferentes histórias de vida(abrangendo gerações anteriores, até suas mães e avós)e o acesso à informação, aos serviços de saúde e aotratamento efetivo correspondente à inserção social,em conjunto, determinando diferentes perfis devulnerabilidade para as doenças e mortes em estudo.

Como expressão da aterosclerose, dois grandes gru-pos nosológicos comparecem com maior importância,tanto nos registros populacionais como na prática clí-nica: a doença arterial coronária (DAC) e a doençacerebrovascular (AVC). Esta última sigla, correspon-dente a acidente vascular cerebral, será adotada nesteartigo para evitar confusão com a das doenças cardio-vasculares. Ambas estão freqüentemente associadas,quase sempre conseqüentes a fatores de risco comunse seguindo modelos fisiopatogênicos semelhantes.

Sua abordagem em separado tem finalidade didá-tica e reflete categorias consagradas pela prática e pelaexpressão clínica mais chamativa na fase avançada dadoença ou na vigência de novos eventos da histórianatural. No momento do registro, entretanto, a causabásica da doença ou do óbito pode ficar restrita a umaúnica entidade e até mesmo ficar encoberta por outrodiagnóstico de maior relevância momentânea.

Mortalidade por doenças

cardiovasculares

O impacto das doenças cardiovasculares (DCV) émuito variado comparando-se populações e países di-ferentes. Estatísticas recentes disponíveis (Tabela 1)permitem cotejar a importância das DCV e, mais es-pecificamente, da doença arterial coronariana (DAC)e da doença cerebrovascular (AVC) com a mortalida-de por todas as causas no mundo, nas Américas, nosEstados Unidos da América do Norte (EUA) e noBrasil.

A comparação dos números absolutos de óbitos semlevar em conta o tamanho e a estrutura etária das popu-lações, bem como o impacto comparativo das demaiscausas de morte, pode induzir a erro de avaliação, espe-cialmente quando se quer comparar o risco doadoecimento e da morte por aquela causa entre diferen-tes populações. Mas é indubitável que a DAC não tem,no Brasil, a mesma importância sobre, por exemplo, ademanda por atendimento médico que tem nos EUA.Mesmo se somando às mortes atribuídas à DAC todas

1Membro da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina; Professor Aposentado da UFRGS e da PUC/RS.2Doutora em Medicina pelo Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Professora Adjunta do Departamento de Medicina Interna da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.3Professor Titular de Cardiologia da UFBA; Presidente da Liga Baiana de Hipertensão e Aterosclerose; Membro da Academia de Medicina da Bahia.4Doutora em Medicina pelo PPG de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professora Adjunta do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS.

Autores

Aloyzio Cechella

Achutti1

Ana Marice Ladeia2

Armênio Costa

Guimarães3

Maria Inês Reinert

Azambuja4

II.III

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18 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

as mortes codificadas como devidas à insuficiência car-díaca (IC) (29.531 óbitos em 1999), a proporção DAC+ IC/todas as causas (10,8%) corresponde a menos dametade da mortalidade proporcional por DAC nos EUA(22%). Se todas as mortes classificadas como por causasmal definidas em maiores de 35 anos (16,3%) fossemlançadas na categoria doença arterial coronária, aindaassim não chegaríamos à proporção norte-americana dototal de óbitos por esta causa. Já a proporção de óbitosatribuída à DCBV no Brasil (8,5%) está entre a regis-trada nos EUA (7%) e a estimativa mundial da OMS(9,6%).

Como se pode ver na Tabela 2, há grande varia-ção regional na mortalidade por estas causas nas dis-tintas regiões do Brasil. Em parte, esta diferença deveestar associada à diferença na qualidade dos registros(e possivelmente no acesso e qualidade da assistênciamédica), como pode ser inferido pela variação na pro-porção de óbitos atribuídos a causas mal definidas en-tre as regiões. A Região Sul tem a menor proporção deóbitos por causas mal definidas (6,5%) e a maior ocor-rência relativa de DAC (10,7% do total de óbitos em1999). Já as Regiões Norte e Nordeste têm as maioresproporções de óbitos por causas mal definidas (22,6%

1Doença cardiovascular (DCV): CID 10, i00-i99 e Q20-Q28; 2doença cerebrovascular (AVC) (Stroke): CID 10: i60-i69; 3doença arterialcoronária (DAC) (CHD): CID 10, i20-i25.Mesmas categorias usadas pela publicação da American Heart Association.+Relatório Mundial da Saúde, ano 2002, Organização Mundial da Saúde; ++estimativa para 1999. Relatório Mundial da Saúde, ano 2000,OMS; #dados de 1999. Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA; *dados de 1999. Sistema de Informações de Mortalidade, Funasa,Min. da Saúde, CD-ROM 2002.

Tabela 1 – População e óbitos por todas as causas e por DCV no Mundo, nas Américas, nos EUA e no Brasil

Mundo+ Américas++ EUA# Brasil*

População 6.122.210.000 813.085.000 273.000.000 169.202.000

Óbitos por todas as causas 56.554.000 5.687.000 2.390.960 979.480

Óbitos por DCV1 16.585.000 1.942.000 958.775 261.172

Óbitos por DAC2 7.181.000 886.000 529.659 76.639

Óbitos por AVC3 5.454.000 418.000 167.366 83.475

Tabela 2 – Número (e proporção) de óbitos no Brasil e grandes regiões em 1999, por algumas causas

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%)

Nº de mortes por todasas causas

979.480 (100) 49.070 (100) 232.155 (100) 486.098 (100) 155.225 (100) 56.931 (100)

Nº de mortes por doençascardiovasculares*

261.172 (26,6) 8.251 (16,8) 46.959 (20,2) 141.316 (29,1) 49.682 (32) 14.963 (26,3)

Nº de mortes por DAC** 76.639 (7,8) 1.993 (4,1) 11.166 (4,8) 43.394 (8,9) 16.592 (10,7) 3.494 (6,2)

Nº de mortes por AVC*** 83.475 (8,5) 3.075 (6,3) 16.561 (7,1) 42.808 (8,8) 16.246 (10,5) 4.785 (8,4)

Nº de mortes por causasmal definidas+

141.751 (14,5) 11.103 (22,6) 67.254 (29) 47.316 (9,7) 10.583 (6,8) 5.495 (9,6)

Nº de mortes porcausas externas++

116.895 (11,9) 6.226 (12,7) 24.385 (10,5) 60.974 (12,5) 16.316 (10,5) 8.994 (15,8)

Fonte: Sistema de Informações de Mortalidade, Funasa, Min. da Saúde, CD-ROM 2002.

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e 29%, respectivamente) e as menores ocorrências re-lativas de DAC (4,1% e 4,8% dos óbitos em 1999,respectivamente).

Além de diferenças nos registros, esta variação tam-bém reflete diferenças na média da expectativa de vida aonascer entre estas regiões, como resultado de diferençasna exposição a situações de desgaste crônico da saúde aolongo da vida – desnutrição, infecções de repetição, tra-balho infantil, gravidez precoce, multiparidade, más con-dições de trabalho, acesso inadequado ou insuficiente aosserviços de saúde, etc. A Figura 1 ilustra a diferença nosníveis de saúde das Regiões Norte e Sul, com base nadistribuição proporcional da mortalidade por gruposetários (Curva de Nélson de Moraes). A curva da RegiãoNorte, mais em forma de U, reflete um nível de saúderegular, com 50% dos óbitos ocorrendo até os 50 anos. Ada Região Sul, mais em forma de J, expressa um melhornível de saúde de sua população, com 70% dos óbitosocorrendo após os 50 anos.

Como a ocorrência de DCV tende a aumentar coma idade (Figura 2), para que o número total de mortespor DCV numa população seja alto é preciso que umnúmero suficiente de pessoas sobrevivam à infância eà fase de adulto-jovem relativamente saudável, para quepossam então morrer por esta causa. Como mostra aFigura 3, nos EUA, 67,6% das mortes atribuídas àDCV ocorreram após os 75 anos de idade. No Brasil,apenas 38,1% (entre 40,1% na Região Sul e 31,4% naRegião Centro-Oeste). A maior proporção de maisjovens (< 65 anos) entre os mortos por DCV no Brasil(35,9%) do que nos EUA (15,2%) reflete este déficitcomparativo de idosos no Brasil (Figura 4).

A distribuição das mortes por sexo também variade uma população para outra, conforme se pode verna Tabela 3, refletindo diferenças na estrutura etária,bem como exposições diferentes aos diversos fatoresdeterminantes da morbidade.

Morbidade por doenças

cardiovasculares

Como a mortalidade expressa apenas parcialmen-te o impacto das doenças, nos últimos anos tem-seutilizado cada vez mais uma outra unidade comoindicadora: os anos ajustados de incapacidade e morteprecoce perdidos cada ano, DALYs em inglês (disabilityadjusted lost years).

Para as mesmas doenças e estratos populacio-nais anteriormente considerados, podem se exami-nar as estimativas de seu impacto, na Tabela 4,onde se vê que as proporções correspondentes às

Norte

Sul

80

70

60

50

40

30

20

10

0

< 1 1-4 45-14 15-49 > 50

Figura 1. Distribuição proporcional da mortalidade geral porgrupos etários nas Regiões Norte e Sul do Brasil, em 1999

Brasil

EUA

10.000

1.000

100

10

1

<35 35-44 45-54 55-64 65-74 ≥75

DCV – Coeficientes de mortalidade (/100.000)

por grupo etário, 1999

Figura 2. Coeficientes de mortalidade por idade, no Brasil e nosEUA, em 1999

DCV – Mortalidade proporcional

por idade, 1999

Brasil EUA

100%

80%

60%

40%

20%

0%

≥75

65-74

55-64

45-54

35-44

< 35

Figura 3. Mortalidade proporcional por idade, no Brasil e nosEUA, em 1999

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doenças cardiovasculares ficam menores ao sereminseridas no grande contexto, e quando se ponde-ram também precocidade dos danos, morbidade eincapacidade.

Quanto mais baixa a mortalidade infantil e deadultos, tanto maior a expectativa de vida e a propor-ção de velhos e menor, proporcionalmente, o peso glo-bal de todas as DCV, da DAC e da AVC.

No ano 2000 ocorreram 12.426.137 internações hos-pitalares pelo SUS (no mínimo 75% do total dashospitalizações no Brasil) (PNAD, 1998). Descontadas as2.913.953 autorizações de internação hospitalar (AIH) cor-respondentes a gravidez, parto e puerpério (primeira causade internação), as demais 9.512.184 internações dividi-ram-se igualmente entre os sexos. Entre estas, as doençascardiovasculares responderam por 12,2% das admissõesao hospital (segundo lugar), abaixo das doenças respirató-

rias (20,3%) e seguidas pelas doenças do aparelho digesti-vo (10,6%) e pelas correspondentes ao capítulo I da CID– algumas doenças infecciosas e parasitárias (9,3%).

Já nos EUA, em 1999, as doenças cardiovascula-res foram o grupo diagnóstico mais comum entre to-das as doenças registradas no momento da alta hospi-talar (Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA).

Enquanto as internações por todas as DCV e aque-las por AVC foram, respectivamente, 5,5 e 5,8 vezes maisfreqüentes nos EUA do que no Brasil, as por doença ar-terial coronária foram 15,2 vezes mais freqüentes. NosEUA, esta causa respondeu a 35,7% das internações porDCV, contra apenas 12,8% no Brasil. A razão por sexo(H/M) na cardiopatia coronária foi semelhante lá eaqui (1,4 e 1,3). Já no caso dos AVC, o número dediagnósticos foi maior nos homens no Brasil, e nasmulheres nos EUA.

Insuficiência cardíaca e hipertensão arterial, aocontrário do que ocorre nos EUA, foram diagnósti-cos mais freqüentes que a doença arterial coronáriacomo justificativa de internação no Brasil (Banco deDados AIH, 2000). No caso da insuficiência cardía-ca, é provável que parte dos casos tivesse como causabásica a cardiopatia coronária, sem que este registrotivesse sido feito. Já a maior prevalência de hospitali-zação por HAS parece estar de acordo com a morta-lidade mais elevada por AVC no Brasil (Banco de Da-dos do Sistema de Informação de Mortalidade).

Tendências temporais

A mortalidade por DCV nos EUA (onde sua ten-dência temporal tem sido bem documentada)(MMWR 2001) aumentou ao longo do século XX,

EUA/Brasil

5

4,5

4

3,5

3

2,5

2

1,5

1

0,5

0

0-4

5-14

15

-2

4

25

-3

4

35

-4

4

45

-5

4

55

-6

4

65

-74

≥7

5

Figura 4. Tamanhorelativo da população

dos EUA com relação àdo Brasil, em sucessivas

faixas etárias

Tabela 3 – Óbitos por DCV selecionados por sexo, no Brasil e nos EUA, em 1999

Brasil EUAHomens (%) Mulheres (%) Total (%) Homens (%) Mulheres (%) Total (%)

Doença arterial coronária 44.317 32.299 76.616 267.258 262.391 529.659

(57,8) (42,2) (100) (51,5) (49,5) (100)

Doença cerebrovascular 42.876 40.561 83.437 102.881 64.485 167.366

(51,4) (48,6) (100) (61,5) (38,5) (100)

Doenças cardiovasculares 137.505 123.358 260.863 445.871 512.904 958.775

(52,7) (47,2) (100) (46,5) (53,5) (100)

Fonte: EUA: Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA. Brasil: Sistema de Informações de Mortalidade, Funasa, Min. da Saúde,CD-ROM 2002.

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até 1968, quando um declínio ainda não adequada-mente explicado teve início. A ascensão foi atribuídaà emergência da doença arterial coronária como cau-sa relevante de morte, retrospectivamente localizadaao redor de 1925 (Stallones). Como podemos ver naFigura 5, a mortalidade por doença cerebrovascularteria paradoxalmente declinado durante todo o perío-do de observação. No entanto, estudos recentes com-parando a evolução temporal na relação trombose xhemorragia em necropsias sugerem tendências tem-porais divergentes para estas duas formas de apresen-tação. A mortalidade secundária à trombose teriaacompanhado a curva epidêmica da DAC, sendo atendência predominante de declínio decorrente daqueda na mortalidade por DCBV hemorrágica(Lawlor DA et al., 2002).

Tendências similares de ascensão e queda na mor-talidade por doença coronária foram documentadasem vários países ocidentais, embora com alguma defa-sagem (Le Fanu). As taxas mais elevadas hoje ocorremem países do leste europeu, aparentemente com taxasde mortalidade por DCV ainda ascendentes (Le Fanu).

No Brasil, a mortalidade por DCV manteve-se re-lativamente estável em valores elevados nos anos 1970 efoi declinante no período mais recente (Lotuffo et al.1996; Mansur AP, 2002). Este declínio foi documenta-do tanto para a DAC como para o AVC.

A ascensão da mortalidade por DAC foi atribuí-da, no pós-guerra, à degeneração decorrente do en-velhecimento populacional e de estilos de vida(sedentarismo, estresse/HAS) e padrões de consumo(fumo, dieta rica em gorduras), que se expandiam

em uma população mais urbana e afluente. Nas dé-cadas de 1960 e 1970, três fatores de risco (hoje de-nominados clássicos) eram considerados determinan-tes para a ocorrência da DAC: a hipercolesterolemia(secundária ao consumo de gorduras saturadas), ofumo e a HAS.

Após o início do inesperado declínio, abriu-se espa-ço para novas formulações teóricas e experimentais. Nadécada de 1980, com a descoberta das citocinas e de fa-tores de crescimento celular e os avanços na biologia ce-lular, uma nova concepção de fisiopatogenia para aaterogênese começa a ganhar corpo: a degeneração nãomais parecia adequada para explicar os achados anato-mopatológicos. Em seu lugar vai-se introduzindo a in-

Tabela 4 – Número de DALYs: causas selecionadas, sexo, mundo e regiões das Américas, 2001

Mundo América

Homens (‘000) Mulheres (‘000) Ambos (‘000) Ambos (‘000) Ambos (‘000) Ambos (‘000)

Muito baixa Baixa* AltaMI e adultos MI e adultos MI e adultos

População 3.083.854 3.038.327 6.122.210 328.176 437.142 72.649

Tot. DALYs 768.131 699.126 1.467.257 46.520 81.270 17.427

Todas DCV 77.155 67.316 144.471 6.950 7.194 1.001

DAC 33.826 24.899 58.725 3.523 2.688 295

AVC 23.603 22.267 45.870 1.486 2.332 277

Fonte: OMS: World Health Report, 2002.

*Partes da América com mortalidade infantil (MI) e do adulto relativamente baixas (dentro das quais se insere o Brasil), mas não as mais

baixas (da América do Norte).

DCV (total)

DAC

AVC

Doenças do

coração

500

400

300

200

100

0

1900 1920 1940 1960 1980 1996

Figura 5. Taxas demortalidade(ajustadas por idade)para todas as doençascardiovasculares,doenças do coração,doença coronária eacidente vascularcerebral, por ano(EUA, 1900-1996)

Taxas por 100.000 padronizadas pela população de 1940.Fonte: Achievements in public health, 1900-1999: decline in death rates from heart diseases andstroke – United States, 1900-1999. MMWR 1999; v. 48, n. 30, p. 649-56

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flamação (Ross R, 1993) como “a melhor síntese das al-terações identificadas na placa aterosclerótica” (Capron,1993). A consolidação do paradigma inflamatório dá-senão só concomitantemente ao declínio na mortalidadepor DAC, mas também em paralelo à aparente emer-gência de um novo perfil de risco associado ao desenvol-vimento da doença aterosclerótica. A hipercolesterole-mia perde espaço, substituída por baixos níveis de HDL,LDL e TG elevados, hiperglicemia, obesidade central eresistência à insulina (Ziegler O, 1998). Aliados a estesnovos fatores de risco, níveis de proteína C reativa asso-ciados a um estado de inflamação crônica têm-se mos-trado capazes de predizer não apenas a ocorrência de even-tos ligados à DCV (Libby et al., 2002) mas também aincidência de diabetes em mulheres (Han et al., 2002).

Assim, num período de 50 anos (do pós-guerra até avirada do século) foi possível observar não somente umaepidemia de DCV mas também uma revolução na con-cepção fisiopatogênica da aterosclerose coronária, em-bora as concepções predominantes não tenham conse-guido explicar adequadamente as variações temporais egeográficas na mortalidade ao longo do século (Azambujae Duncan, 2002).

Fatores de risco

O conhecimento dos fatores de risco é de impor-tância fundamental para melhorar o controle clínico eepidemiológico destes grupos de doenças. De formasemelhante à doença arterial coronária, os fatores derisco para o acidente vascular cerebral (AVC) podemser divididos em modificáveis e não-modificáveis.

Fatores de risco não-modificáveisEstes fatores de risco são importantes para identi-

ficar indivíduos com potencial de alto risco e que sebeneficiarão de intervenções preventivas ou terapêuti-cas rigorosas sobre os fatores de risco modificáveis.

IdadeA idade é um importante fator de risco de DCV. O

risco de AVC duplica após os 55 anos (AHA). Em Salvador,o AVC é 340 vezes mais incidente entre pessoas acima dos65 anos em comparação ao grupo etário entre 15 e 24 anos(21).

SexoO AVC é mais prevalente e incidente em homens

que em mulheres(9), exceto entre 35 e 44 anos e acimados 85 anos(9). Contudo, a mortalidade relacionada aoAVC é maior em mulheres. Nos Estados Unidos, umaem cada seis mulheres morrerá por AVC, comparada

com uma em cada 25 que morrerá de câncer de mama(9).O uso de contraceptivos orais e apenas uma gestaçãocontribuem para o aumento do risco de AVC(9).

Raça e etniaA incidência e a mortalidade por AVC é maior em

negros. No estudo ARIC (Atherosclerosis Risk inCommunities), a incidência de AVC foi 38% maior emnegros do que em brancos(23). A alta prevalência de hi-pertensão, de obesidade e de diabetes entre negros podecontribuir para estas elevadas taxas de incidência e mor-talidade por AVC. Estudos epidemiológicos demons-traram que hispânicos, japoneses e chineses tambémapresentam alta incidência de AVC(9).

História familiarHistória materna ou paterna de AVC está rela-

cionada com aumento do risco. Esse aumento poderefletir aspectos genéticos propriamente ditos, mastambém aspectos ambientais ligados aos hábitos devida familiar (AHA). Contudo, a incidência e pre-valência de AVC é maior em gêmeos monozigóticosque nos dizigóticos, destacando a influência do fa-tor genético(24).

Fatores de risco modificáveisHipertensão arterial (HA)A relação entre vários fatores de risco e AVC está

bem estabelecida. A HA é o fator de risco mais impor-tante para AVC isquêmico ou hemorrágico. Existe umarelação direta e contínua entre o aumento da pressãoarterial sistólica e/ou diastólica e o risco de AVC(9).Nos idosos, pressão arterial sistólica > 160mmHg,mesmo isolada, é importante fator de risco de AVC(9).No Brasil, a exemplo de outros países ocidentais, a HAé o maior fator de risco para AVC, presente em 85%dos pacientes(25).

O controle da pressão arterial contribui para a pre-venção do AVC(9). Vários estudos demonstram que otratamento com betabloqueador ou diurético é efeti-vo na prevenção do AVC(26). No estudo Shep (TheSystolic Hypertension in Elderly Program) houve umaredução de 36% na incidência de AVC com o uso deatenolol ou clortalidona(27).

DiabetesPacientes diabéticos, insulinodependentes ou não,

apresentam maior susceptibilidade para aterosclerose.Estudos de caso-controle e estudos epidemiológicosprospectivos confirmam a importância do diabetes

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como fator de risco de AVC, com risco relativo varian-do entre 1,8 e 6(9). Para homens, no Honolulu HeartProgram, o risco de AVCI foi duas vezes maior em dia-béticos, independente de outros fatores associados(28).A intolerância à glicose, per se, já confere aumento dorisco de AVCI(29).

A HA é muito freqüente em diabéticos, com pre-valência de 30% nos insulinodependentes e de 40%-60% nos não-insulinodependentes, o que torna difícila dissociação da magnitude desses dois fatores de riscona morbimortalidade por AVC. No subgrupo de 3.577diabéticos, no estudo Hope (Heart OutcomePrevention Evaluation), o risco de AVC diminuiu 33%no grupo em uso de ramipril, mesmo quando o de-créscimo absoluto dos níveis pressóricos foi pequeno(30).Controle glicêmico inadequado e proteinúria tambémconferem maior risco de AVCI em diabéticos(31).

DislipidemiaEstudos recentes sugerem que hipercolesterolemia

e HDL-colesterol diminuído podem aumentar o riscode AVCI, embora a relação de risco não seja tão signifi-cativa como aquela com a doença coronariana(9). Poroutro lado, os benefícios na prevenção do AVCI empacientes coronarianos, em uso de estatinas, têm sidoapoiados por várias metanálises(32, 33). Resta, porém, es-clarecer se o mecanismo dessa proteção está mais relacio-nado ao efeito hipolipemiante das estatinas ou aos seusefeitos benéficos sobre o endotélio, com maior estabili-dade das placas ateroscleróticas, e às suas propriedadesantitrombóticas e antiinflamatórias (Goldstein). Vale

salientar que a redução do risco esteve associada comredução dos níveis lipídicos mesmo nos indivíduoscom perfil lipídico considerado normal(34). Evidênciaspatológicas desses benefícios têm sido demonstradasem estudos recentes, indicando relação inversa entreníveis lipídicos e grau de aterosclerose carotídeaextracraniana(35).

TabagismoO tabagismo ativo têm sido considerado um fator

de risco importante para AVCI. Os efeitos fisiopatoló-gicos do tabaco afetam diretamente a função endotelial,são pró-trombóticos e diminuem os níveis de HDL-c.Metanálise de 22 estudos demonstrou o dobro de riscode AVCI nos fumantes quando comparados aos não-fumantes(36). Dados do Estudo de Framingham tam-bém confirmam um aumento de risco de AVCI de 1,8nos fumantes, após ajustes para outros fatores de ris-co(37). Também já foi demonstrado que tabagistas passi-vos, independente do sexo, apresentam aumento de 1,8no risco de desenvolver AVCI(38).

Além desses quatro fatores de risco modificáveis,cuja relação com AVCI associado à doença ateroscleró-tica se encontra bem comprovada, alguns outros fato-res devem ser considerados na análise de risco do paci-ente em geral, tais como obesidade, sedentarismo, abusode álcool e cocaína, presença de fibrilação atrial e ane-mia falciforme, terapia de reposição hormonal da me-nopausa, uso de contraceptivos orais, estenose carotídeaassintomática e cardiopatias embolizantes. Vale ressal-tar que estenose carotídea é um fator de risco impor-

Tabela 5 – Hospitalizações nos EUA e no Brasil (SUS) por DCV selecionadas e sexo, 2000

Brasil EUAInternações no SUS Diagnósticos na alta hospitalar

Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total

DAC 83.935 (56,4) 64.918 (43,6) 148.859 (100) 1.317.000 (58,2) 945.000 (41,8) 2.262.000 (100)

15,5 10,5 12,8 41,7 29,7 35,7

DCBV 86.365 (51,9) 79.869 (48,1) 166.235 (100) 434.000 (45,2) 527.000 (54,8) 961.000 (100)

15,9 12,9 14,3 13,7 16,5 15,1

HA 162.010 (100) 439.000

Insuf. cardíaca 398.514 (100) 962.000

Todas DCV 543.224 (46,8) 616.884 (53,2) 1.160.118 (100) 3.161.000 (49,8) 3.183.000 (50,2) 6.344.000 (100)

100 100 100 100 100 100

Fonte: Brasil: Banco de Dados AIH, Funasa, Min. da Saúde. CD-ROM 2002. EUA: Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA.

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tante apenas para AVC ou ICT, como pode ser tam-bém um indicador de risco de doença coronarianaconcomitante (AHA). É evidente que a ação preventi-va tem como objetivo a identificação e o controle detodos os fatores de risco.

Medindo o impacto dos fatores de riscoO impacto de alguns fatores de risco, estimado

em DALYs (unidade que pretende medir os anos ajus-tados de vida perdidos por morte precoce e incapaci-dade), pode ser examinado na Tabela 6, que apresentagrandes grupos de risco. O primeiro corresponde àdesnutrição materna e infantil. O segundo grande gru-po também se relaciona com desvios nutricionais esedentarismo, entre os quais podem ser reconhecidosdiversos fatores comprometidos com o tema deste tex-to: pressão arterial, hipercolesterolemia, sobrepeso, faltade frutas e verduras na alimentação e sedentarismo. Oterceiro – exposição a substâncias aditivas – contémao menos dois fatores relacionados com o tema desteartigo: tabagismo e alcoolismo.

Programação fetal de doenças do adultoNa busca da causalidade das doenças e das causas

para poder intervir mais precocemente e com maiorchance de sucesso, a medicina cada vez mais se anteci-pa ao limiar clínico, e busca as primeiras manifesta-ções anatomopatológicas e biológicas capazes de pre-dizer o risco futuro.

Diversos investigadores têm reunido evidências nosentido da programação fetal e do primeiro ano de vidapara várias doenças do adulto, entre as quais a hiperten-são arterial, a doença cerebrovascular e a doença arterialcoronária. Inicialmente chamada hipótese de Barker,cada vez mais se reforça a consistência com mecanis-mos fisiopatogênicos capazes de explicar uma predispo-sição para a ocorrência mais precoce ou acelerada daaterosclerose e outras doenças em estratos populacio-nais submetidos a condições inadequadas de gestação ede desenvolvimento nas primeiras fases da vida.

Programação precoce (intra-uterina e infantil),metabólica, neuro-humoral, imunológica, e alteraçõesmetabólicas e estruturais têm sido demonstradas emrecém-nascidos de baixo peso, alterações estasexplicativas para distúrbios encontrados no decorrerda vida. Basicamente são modificações no fígado, acar-retando distúrbios no metabolismo das lipoproteínas;alterações hormonais, do hormônio do crescimento ecorticosteróides; alterações de nível neurológico cen-tral (celularidade do hipocampo e desempenho poste-

rior frente a estresse); e alterações imunológicas – to-das elas podendo levar ao desenvolvimento mais pre-coce e acelerado de aterosclerose.

Em população brasileira, numa coorte da cidade dePelotas (RS) acompanhada desde o nascimento, Fernan-do Barros e César Victora demonstraram comportamen-to semelhante com relação à pressão arterial e desenvol-vimento intra-uterino no primeiro ano de vida.

Aspectos fisiopatológicos da

aterosclerose nas doenças

cerebrovascular e coronária

A aterosclerose, causa mais comum de doença ce-rebrovascular (AVC) (70% ou mais dos acidentesvasculares cerebrais), tem sua patogênese inicial, se-melhante à doença arterial coronária, numa lesão doendotélio vascular, caminho para um processo infla-matório crônico pela ação de citocinas, peróxidos ououtros estímulos associados à injúria hipóxica, comliberação de moléculas de adesão do tipo 1, intercelular(ICAM-1) e da célula vascular (VCAM-1), as quaisestimulam receptores celulares que favorecem aaterogênese. A turbulência do fluxo sanguíneo tam-bém contribui para a resposta dos receptores celularesde moléculas de adesão, justificando, assim, a locali-zação preferencial de placas ateroscleróticas nas bifur-cações dos vasos(2, 3). Os locais mais comumente aco-metidos são a bifurcação da carótida interna, a origemda artéria cerebral média e qualquer uma das extremi-dades da artéria basilar.

O processo inflamatório agudo parece participar dafisiopatologia da doença cerebrovascular aterosclerótica(AVC). Citocinas, células T ativadas e macrófagos fo-ram encontrados em amostras de carótidas, pós-endar-terectomia(4). Estudos observacionais sugerem que a in-flamação aguda participe do AVC isquêmico, haja vistaa associação fortemente positiva entre níveis de proteí-na C reativa de alta sensibilidade (PCRas) e AVC(5, 6).Além disso, o uso de pravastatina por um período decinco anos reduziu significativamente o risco de AVC,o que se associou à redução dos níveis de PCRas(7).

O AVC se manifesta por déficit neurológicofocal, de origem isquêmica e caráter transitório(isquemia cerebral transitória, ICT) ou definitivo(acidente vascular cerebral isquêmico, AVCI). A suapatogênese resulta de trombose intravascular se-cundária à ruptura de placas ateroscleróticas ins-táveis. O infarto cerebral constitui a patologia bási-ca do AVCI. Este pode ocorrer no local da trombose ouà distância, por embolismo de material trombótico de

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artérias cerebrais de maior calibre ou do sistemacarótido-vertebral e aorta ascendente. A DCBV,quando associada à hipertensão, pode combinar àsua f is iopatologia acidentes trombóticos ehemorrágicos. A viabilidade funcional da área ce-rebral isquêmica depende, basicamente, da gran-deza da circulação colateral e da duração, magni-tude e rapidez de instalação da isquemia, o que sereflete em quadros clínicos de apresentação, inten-sidade e evolução variáveis.

Epidemiologia da doença

cerebrovascular

No Brasil, nos últimos 40 anos, a mortalidade poracidente vascular cerebral (AVC) foi maior de que pordoença coronária, situação inversa à de outros paísesocidentais, com exceção de Portugal, com coeficientespróximos aos nossos(18). No Brasil, a mortalidade por

AVC também apresenta variação regional. De 1979 a1996, a mortalidade declinou no Sul e Sudeste, e au-mentou no Centro-Oeste, exceto dos 30 aos 39 anos(19).O Nordeste apresentou o menor de risco de morte,exceto dos 40 aos 59 anos, quando aumentou(19). ONorte mostrou tendência à estabilidade. Vale ressaltarque a análise dessas tendências foi prejudicada pelagrande proporção de causas mal definidas de morte.

Em estudo recente em 11 capitais observou-se a mes-ma tendência geral de redução da mortalidade por AVC,com algumas diferenças a depender de idade e sexo. EmPorto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo, Recifee Goiânia, houve declínio da mortalidade em todas asfaixas etárias, para ambos os sexos, com Goiânia apresen-tando a maior redução de risco de morte, 72% e 73%,em homens e mulheres, entre 30 e 39 anos, respectiva-mente. Em Salvador, com a maior incidência de AVC(168/100.000 adultos)(21), também foi observada tendên-

Tabela 6 – Número de DALYs atribuíveis por fatores de risco, sexo e estrato de região da OMS

que poderia corresponder à situação do Brasil em 2000

Mundo América*Homens (‘000) Mulheres (‘000) Homens (‘000) Mulheres (‘000)

Subnutrição materno-infantil 111.286 116.243 1.210 1.165

Subnutrição 69.733 68.067 570 498Déficit de ferro 15.756 19.301 446 465

Déficit vit. A 11.596 15.042 79 103Déficit Zn 14.201 13.833 115 99

Dieta e sedentarismo 97.875 86.000 5.860 5.325

Riscos sexuais e reprodutivos 42.600 58.083 843 1.287Sexo inseguro 42.600 49.269 843 912

Falta de contracepção 8.814 375

Substâncias aditivas 106.243 22.379 10.802 2.579

Riscos ambientais 60.697 58.307 1.992 1.815Água, sanitário e higiene inseguros 27.432 26.726 686 603

Poluição urbana 4.413 3.452 171 136Combustíveis sólidos domésticos 19.040 19.499 193 251

Exposição ao chumbo 7.112 5.814 907 789Alterações climáticas 2.700 2.816 35 36

Riscos ocupacionais 19.253 3.299 1.082 156

Risco de lesão 12.071 1.054 745 74Carcinógenos 1.138 283 49 11

Partículas aéreas 2.771 267 134 13Estresse ergonômico 485 333 32 15

Ruído 2.788 1.362 122 43

Outros riscos selecionados 9.290 9.407 160 123

Fonte: OMS: World Health Report, 2002.

*Partes da América com mortalidade infantil e do adulto relativamente baixas (dentro das quais se insere o Brasil), mas não as mais baixas

(da América do Norte).

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cia de redução na mortalidade, apesar do aumento emmulheres com 50 ou mais anos(20). O oposto ocorreu emBrasília, onde o risco aumentou de 78% e 97% em ho-mens e mulheres, respectivamente, dos 50 aos 59 anos(20).

O AVC é a terceira causa de morte nos EstadosUnidos, com 700 mil casos novos por ano e 4,4 mi-lhões de sobreviventes(8), representando importanteproblema econômico, com gasto de 51 bilhões de dó-lares no ano 1999(9). No Brasil, entre 1980 e 1995,um terço dos óbitos por doenças circulatórias decor-reu de AVC, com 49.676 a 73.899 hospitalizações porano entre 1984 e 1997(10). Os anos de vida produtivaperdidos por mortalidade entre 20 e 59 anos e o paga-mento de pensões, em média 13 anos antes do espera-do(12), constituem outro importante aspectosocioeconômico do AVC no cenário nacional(11).

A tendência epidemiológica da mortalidade porAVC foi decrescente na maioria dos países desenvolvi-dos, mas a expectativa projetada entre os anos de 1990e 2020 é ainda de crescimento, embora num percentu-al bem menor que o observado e esperado nos paísesem desenvolvimento, nos quais a tendência tem sidocrescente. Na América Latina, o crescimento esperadoé de 138% para as mulheres e de 145% para os ho-mens, em comparação a 28% e 56%, respectivamente,para os países desenvolvidos (Yussuf ). Aspecto epide-miológico importante é a semelhança das tendências demortalidade por infarto cerebral e cardiopatia isquêmicaao longo do século XX, sugerindo uma baseetiopatogênica comum (Lawlor e Yussuf ).

Nos Estados Unidos, além das diferenças obser-vadas para o sexo, com mortalidade masculina 25%

maior que a feminina, e para raça, com mortalidadeem negros 40% maior que em brancos, há tambémuma importante variação geográfica. Assim, obser-va-se que na região conhecida como stroke belt(cinturão do AVC), que inclui os estados de Caroli-na do Norte e do Sul, Alabama, Mississippi, Arkansas,Tenessee e Louisiana, onde a concentração de negrosé grande, a mortalidade é 40% maior que no restan-te do país (Howard-Stroke, 2001).

É necessário discutir a importância clinicoepi-demiológica dessas evidências, a fim de equacionara influência das reduções na incidência e naletalidade sobre as reduções das taxas de mortalida-de. Assim, no estudo Monica, dois terços da redu-ção na mortalidade foram secundários à diminui-ção da incidência, por melhor controle dos fatoresde risco, e um terço, por diminuição da letalidade(22).No Brasil, a avaliação e a confiabilidade desses dados so-frem grande influência da qualidade dos registros de ocor-rência de casos e de óbitos, em algumas regiões, além dasdiferenças étnicas, socioeconômicas e culturais, sendodifícil uma avaliação real das nossas perspectivas.

Considerações finais

A epidemiologia das doenças arterial coronária ecerebrovascular torna evidente a importância da ate-rosclerose como causa de morbimortalidade cardio-vascular em todo o mundo e também em nosso país.

Diferenças em estratos populacionais distintos,inclusive em nosso meio, encontram explicação emvariáveis sociodemográficas, exposição diferenciadaa fatores de risco comuns, muitos deles controláveis.

Tabela 7 – Desdobramento do segundo e quarto conjuntos de fatores de risco

Mundo América*

Homens (‘000) Mulheres (‘000) Homens (‘000) Mulheres (‘000)

Dieta e sedentarismo

Pressão arterial 34.920 29.350 1.807 1.438

Colesterol 22.136 18.301 1.070 803

Sobrepeso 15.543 17.872 1.505 1.918

Poucas frutas e vegetais 15.117 11.544 896 581

Sedentarismo 10.159 8.933 582 585

Substâncias aditivas

Tabaco 48.177 10.904 2.190 813

Álcool 49.397 8.926 7.854 1.443

Drogas ilícitas 8.669 2.549 758 323

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Populações com níveis de impacto menores ou seencontram em fase precoce de transição, na qual sepode ainda interferir para reverter a tendência, ou jáestão na fase descendente desejável, e servem comodemonstração da efetividade da promoção da saúde,dentro de sua ampla concepção.

Além dos fatores de risco modificáveis clássicos, clas-sificados junto ao segundo mais importante grupo deimpacto sobre a saúde em todo o mundo, é preciso con-siderar também a programação fetal e infantil dos pro-blemas de saúde do adulto, incluído no primeiro gru-po, de maior impacto, o da desnutrição materno-infantil.Pelo seu distanciamento da fase clínica no tempo, pelaaparente falta de associação com as características dascategorias tradicionais fisiopatogênicas e de interven-ção, e por sua magnitude em países como o nosso (comdesigualdade social e miséria), merece uma atenção es-

pecial que não nos será enfatizada pela literatura origi-nária de países com menor interesse pelo assunto.

Como contraponto, em quase todo o mundo é pos-sível observar uma epidemia de sobrepeso. Em nossopaís, em torno da metade de nossas crianças tem desvioponderal para um extremo ou para outro em propor-ções aproximadas. Embora já se reconheça há mais tem-po a importância dos excessos quantitativos e dainadequação qualitativa da alimentação, também estefator de risco não tem sido suficientemente abordado.

Um importante papel do cardiologista clínico é o doregistro adequado do diagnóstico correto no atestado deóbito e em qualquer outro formulário na prática do aten-dimento individual, pois a informação é essencial paraqualificar os estudos epidemiológicos e permitir uma ava-liação adequada do estado de saúde de uma população,de suas tendências e da efetividade das intervenções.

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28 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

Atualização diagnóstica e terapêutica da

miocardite

Autores

Marcelo Westerlund

Montera1

Fábio Fernandes2

A miocardite se caracteriza pela presença de resposta inflamatória, freqüentemente em decorrência de umaagressão infecciosa. Em conjunto com a miocardite, o processo inflamatório pode vir a acometer outrasestruturas do coração, ocasionando pericardite ou vasculite coronariana.

O agente agressor mais freqüente é o infeccioso,mas a miocardite pode também ser secundária a agres-sões pelo sistema imunológico, como na miocarditeperiparto, por radioterapia ou quimioterapia. Entre osagentes infecciosos, o mais comum é o viral, princi-palmente os enterovírus. Entre estes, o coxsackie dotipo B é o mais comum, sendo responsável por cercade 50% dos casos.

A miocardite secundária a agressão viral tem bem-definidas três fases distintas de agressão e resposta in-flamatória (Figura 1). A primeira fase se caracterizapela presença de viremia com infecção viral miocárdi-ca. Nesta fase temos a invasão dos miócitos pelo vírus,com agressão direta do vírus sobre o miócito, e a ati-vação de um sistema de defesa local, mediado princi-palmente pelos linfócitos teciduais locais, os chama-dos T killers, que liberam uma série de mediadores,entre eles a perforina, que tem como objetivo destruiro vírus e que acaba também lesando o miócito. Asso-ciada a estes mediadores, temos a liberação de citocinas,como interferon gama e interleucinas 1 e 6, que am-plificam a resposta inflamatória de defesa. Esta fase 1se caracteriza por viremia com ativação imune celular-humoral local. Ela tem um pico de atividade entre oquarto e o sétimo dia. Na fase 2, temos o desenvolvi-mento da resposta imune celular, em função do de-senvolvimento de receptores de histocompatibilidadede superfície nos miócitos, pela exposição na superfí-cie da membrana do miócito dos aminoácidos viraisproduzidos no interior do miócito. Estes receptores

estimulam a resposta inflamatória mediada pelolinfócito T, que terá uma atuação direta e através demediadores inflamatórios que promovem a agressãodo miócito. Esta agressão terá repercussão funcional,com redução dos beta-receptores adrenérgicos,disfunção dos canais de cálcio voltagem-dependente,desacoplamento da ativação da proteína G estimula-dora e alterações na cadeia respiratória que induzemdisfunção contrátil. Outra fase da agressão é estrutu-ral, com miocitólise e ativação da cadeia enzimáticada apoptose. A fase 2 tem o seu pico entre a segunda ea quarta semana após a infecção viral do miocárdio. Afase 3 pode apresentar três modelos diferenciados deevolução. Podemos ter a progressão da agressão, emdecorrência de uma resposta imune-humoral mediadapela permanência do RNA viral no miocárdio, cadeiaganglionar, baço, ou por reinfecção, que induz a ativa-ção de complexos de histocompatibilidade com agres-são miocitária permanente, induzindo cardiomiopatiadilatada com disfunção progressiva. Podemos ter o de-senvolvimento de uma resposta reparativa, com proli-feração de colágeno e fibrose, se manifestando comremodelagem ventricular e cardiomiopatia dilatadaestável. Ou podemos ter a regressão do processo infla-matório, com recuperação da função ventricular oumanutenção de leve disfunção ventricular. A fase 3 é aque geralmente nos chega ao ambulatório, onde o pa-ciente refere uma história de infecção há cerca de doisou três meses. O seu pico de atividade é em torno dosegundo ao terceiro mês.

1Professor de pós-gaduação em Cardiologia da Santa Casa do Rio de Janeiro; Professor de Cardiologia da Universidade Gama Filho (UGF); Doutorando em Cardiologia pela USP; Médico do Hospital Pró-Cardíaco.2Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP.

II.III

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É de fundamental importância clínica tentar es-tabelecer em que fase evolutiva da doença se encon-tra o seu paciente, pois isto terá implicação no que sedeve esperar dos métodos diagnósticos (Figura 2),assim como no estabelecimento da estratégia terapêu-tica (Figura 3).

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se na presença de sinais e sin-tomas, além do alto grau de suspeita clínica e confir-mação pelos métodos complementares.

Quadro clínico

A apresentação clínica é variável (Figura 4), po-dendo ser assintomática ou exteriorizar-se por arrit-mias freqüentes, morte súbita, quadro clínico infec-cioso, disfunção ventricular assintomática, disfunçãoventricular sintomática e forma fulminante demiocardite.

Setenta por cento das disfunções ventricularesassintomáticas ou com poucos sintomas regridem semdeixar seqüelas. Das formas com maior disfunçãoventricular, cerca de 25% regridem, 50% estabilizame 25% evoluem progressivamente com piora da fun-ção ventricular.

Os sintomas prodrômicos variam desde febre compresença de infecções não-específicas do trato respira-tório ou gastroenterite até quadros mais específicoscomo síndrome coxsackievirus (rash, pleurodinia,linfadenite, orquite, hepatite ou meningite).

É evidente que a valorização desta fase prodrômicageralmente se dá de forma retrospectiva, pois a inci-dência de quadros virais é muita elevada, principal-mente em épocas de surtos. Após estes surtos, a ocor-rência de miocardite é mais elevada que em épocas nasquais eles não ocorrem.

O clínico deve levantar a hipótese de miocarditeviral quando estiver presente história de doença viralprévia. Outros possíveis dados diagnósticos seriam: 1)presença de taquicardia desproporcional a quadro fe-bril; 2) ausência de doença cardíaca preexistente; 3)aparecimento súbito de arritmias ou distúrbio de con-dução; 4) presença de aumento da área cardíaca ousintomas de insuficiência cardíaca congestiva sem causaaparente; 5) quadro de dor torácica e insuficiência car-díaca em pacientes jovens.

Arritmias podem ser manifestações únicas demiocardite, com ou sem dilatação de câmaras. Pacien-tes com taquicardia ventricular sem causa aparente,quando submetidos a biópsia endomiocárdica, de-

monstram processo inflamatório. Portanto, arritmiascardíacas que surgem sem causa aparente devem terentre as hipóteses diagnósticas a miocardite.

Pacientes com quadro clínico de pericardite fibrinosaou aguda, como nós clínicos gostamos de chamá-la, comdor precordial, atrito pericárdico e segmento STsupradesnivelado ao eletrocardiograma recebem, emgeral, o diagnóstico de pericardite viral e são tratadoscom antiinflamatórios. Muitos destes, entretanto, sãoportadores de perimiocardite, que pode evoluir paramiocardite linfocitária e posterior dilatação cardíaca.Portanto, mesmo após o desaparecimento do quadroagudo, devem ser observados atentamente.

Do exposto, depreende-se que a apresentação clí-nica da miocardite é heterogênea, devendo haver sem-pre alto grau de suspeição por parte do clínico.

Figura 1. Fasesevolutivas damiocardite

Figura 2. Relação dosmétodos diagnósticos deacordo com a faseevolutiva da miocardite

Fase 1

0-4º diaInfecção viral

NecroseInflamação

(citocinas)

NATURAL KILLERS + macrófagos

Fase 2

4º-14º dia

CLEARANCE viral Auto-imune

Progressão

Agressão

morfológica

e funcional

Fase 3

14º-90º dia

Fibrose Resolução

espontânea

Depressão

funcional

Pesquisa diagnóstica na miocardite

Fase 1 Fase 2 Fase 3

Pesquisa viral

Imunoistoquímica

Biópsia

Imunoistoquímica

Biópsia

ANTC-antimiosina

Cintigrafia gálio

Pesquisa RNA viral

Imunoistoquímica

Biópsia

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30 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003

Alterações laboratoriais

Os exames laboratoriais não são diagnósticos.Eles indicam a presença de atividade inflamatóriaou de agressão miocárdica. Cerca de 60% dos paci-entes irão apresentar um aumento dos marcadoresde inflamação como VHS ou da PTN C reativa; e25%, leucocitose inespecífica. A ausência de mar-cadores inflamatórios positivos, ou de elevaçãoenzimática, não nos permite excluir o diagnósticode miocardite. As enzimas miocárdicas poderão es-tar elevadas na presença de necrose miocárdica

detectável. Destas, as troponinas T e I são as queapresentam a maior sensibilidade na detecção daagressão do miócito, estando elevadas em 32% dospacientes, enquanto que a CKMB encontra-se ele-vada em 12%. Os níveis séricos enzimáticoscorrespondem ao grau de agressão miocárdica e apre-sentam um comportamento diferente do infartoagudo do miocárdio, pois não seguem o padrão usualda curva enzimática, permanecendo com pico maisprolongado e queda mais lenta.

Outros exames estariam relacionados à tentativade se identificar a presença do agente viral nas análi-ses de sangue, fezes, pericárdio e miocárdio, comopesquisa de IGM e PCR para diversos vírus,como coxsackie, citomegalovírus e hepatite C, ou naavaliação de atividade de doença do colágeno(esclerodermia, lúpus eritematoso sistêmico,polimiosite) e doença reumática.

Eletrocardiograma

O eletrocardiograma do paciente portador demiocardite apresenta-se de forma heterogênea, sen-do descritos: taquicardia sinusal, fibrilação atrial, so-brecarga ventricular esquerda, bloqueios atrioventri-culares, alterações do segmento ST, alterações derepolarização e complexos de baixa voltagem. As al-terações eletrocardiográficas são observadas com mai-or freqüência do que as alterações clínicas. As altera-ções mais comuns são as do segmento ST, podendoapresentar-se como supra ou infra de ST, e da ondaT, com ondas apiculadas ou invertidas. Usualmente,as alterações se distribuem difusamente e são transi-tórias. Raramente temos a presença de onda Q. Ar-ritmias atriais, taquicardia sinusal persistente, extra-sístoles ventriculares ou taquicardias ventricularesnão-sustentadas também podem ser observadas. Osdistúrbios de condução atrioventricular não são co-muns e, quando ocorrem, são transitórios. Os blo-queios de ramo, principalmente o esquerdo, geral-mente estão associados com importante envolvimentomiocárdico, e indicam pior prognóstico.

Ecocardiograma

Pode-se detectar disfunção sistólica com diminui-ção da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, dilata-ção de câmaras ventriculares e atriais, insuficiênciasmitral e tricúspide secundárias e, eventualmente,disfunção diastólica. Outros achados são: hipertrofiamiocárdica, acinesia, discinesia, derrame pericárdico etrombose intracardíaca.

Figura 3. Estratégiaterapêutica de

acordo com a faseevolutiva da

miocardite

Figura 4. Formasclínicas de apresentação

e evolução damiocardite

Fase 1

Fase 2

Vacinas

Antiviral

Anticitocinas

Modulação imune

Imunossupressão

Fase 3

Vacinas

Antiviral

Imunoabsorção

Ieca

Betabloqueador

Morte súbita

Arritmias

70% regressão

25% regressão

50% IC crônica

25% IC progressiva

Fulminante

Leve disfunção

Leve dilatação

CF II

Apresentação e

evolução clínica

das miocardites

Importante disfunção

Importante dilatação

CF III-IV

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Cintilografia miocárdica

A medicina nuclear é um método não-invasivo queapresenta importante papel tanto no diagnóstico comona evolução da miocardite. Vários radiofármacos têmsido utilizados no diagnóstico de inflamação, entre eleso gálio-67, a cintilografia com leucócitos marcados comIn-111 (indium-111) e o estudo cintilográfico comanticorpo monoclonal antimiosina marcado com In-111 ou Tc-99m3.

Na cintilografia cardíaca com gálio-67, as imagenssão adquiridas 48 ou 72 horas após administraçãoendovenosa do radiofármaco, na incidência anteriordo tórax. A captação é considerada discreta, modera-da ou severa, sendo a comparação feita entre a intensi-dade de captação cardíaca e a captação com arcos costaise externo. Em nosso meio, Camargo, em 1990, estu-dando crianças portadoras de miocardiopatia dilata-da, tomando como padrão-ouro a biópsia endomio-cárdica de ventrículo direito, observou sensibilidadeda cintilografia de 87% e especificidade de 81% nadetecção de miocardite. As conclusões desse estudoforam: 1) todos os pacientes com miocardite tiveramgálio positivo; 2) gálio discretamente positivo tem altaincidência de falsa positiva, sendo que 40% destes pa-cientes têm fragmentos obtidos pela biópsia endomio-cárdica normais à microscopia de luz; 3) não se justi-fica biópsia em pacientes cujo resultado do gálio énegativo.

A capacidade da cintigrafia de detectar a presença deresposta inflamatória miocárdica está diretamente relacio-nada com a fase evolutiva em que se encontra a doença.Temos uma capacidade de detecção de cerca de 80% nafase 1, 40% a 60% na fase 2, e 8% a 12% na fase 3.

O outro método de avaliação de miocardite ematividade é através da detecção de miocitólise porcintigrafia com anticorpo antimiosina indium-111. Aaplicação desta técnica tem demonstrado sensibilida-de de 83% e especificidade de 53%, com um valorpreditivo positivo de 92%.

Ressonância nuclear

magnética

A análise pela RNM de ambos os ventrículos trazinformações precisas sobre a presença e a extensão doprocesso inflamatório. O método pode ser utilizadono início do processo inflamatório, assim como noseguimento dos pacientes com miocardite. É um exa-me sensível, que traz importantes informações clíni-cas e apresenta baixo risco e desconforto mínimo quan-do comparado a exames invasivos.

Friedrich et al. acompanharam 19 pacientes comsuspeita clínica de miocardite, utilizando a variaçãona seqüência em T1 com gadolínio. Em sete pacientestambém foi realizada a biópsia endomiocárdica, e opadrão morfológico, comparado com RNM. Os exa-mes foram realizados nos seguintes dias após o iníciodos sintomas: 2, 7, 14, 28 e 84. A miocardite agudano início apresentou-se como um processo localizado,evoluindo para doença miocárdica difusa. A RNMpermitiu visualizar a localização, a atividade e a exten-são da inflamação, sendo um bom método comple-mentar diagnóstico não-invasivo.

Da mesma forma que a cintigrafia, a RNM tem umamenor capacidade de detecção nas fases mais tardias dadoença, sendo a sua maior acurácia nas fases 1 e 2.

Biópsia endomiocárdica do

ventrículo direito

A miocardite tem definição histopatológica, de talforma que seu diagnóstico final deverá ser feito com abiópsia endomiocárdica do ventrículo direito.

A capacidade diagnóstica da biópsia endomiocár-dica está intimamente relacionada com a fase evolutivada doença. Uma vez que a biópsia busca detectar afase imune-celular, esta terá maior capacidade diag-nóstica nas fases 1 e 2. Na fase tardia da doença, estasó consegue detectar a ativação inflamatória em cercade 8% dos casos.

A fim de padronizar o diagnóstico de miocardite,um grupo de especialistas reuniu-se em Dallas, nosEstados Unidos, em 1987, para estabelecer critérioshistológicos para o diagnóstico por meio da biópsiaendomiocárdica. Com estes critérios atingiu-se umconsenso para o desenvolvimento de trabalhos. Namiocardite severa não há controvérsia entre os patolo-gistas. O problema, porém, estaria nos casos discretos,pois os critérios de Dallas não estabelecem o númeromínimo de células no infiltrado inflamatório para umexame anormal. Atualmente, além do diagnóstico his-topatológico, também podem-se obter importantesinformações pela técnica de biologia molecular(Desmond).

Detecção de genoma viral:

técnicas de biologia molecular

Evidências sugerem que os vírus não somente con-tribuem para a fase aguda da miocardite, mas tambémpara a evolução da doença cardíaca. Com as novas téc-nicas de biologia molecular, a persistência dos vírus esua interação com o sistema imune permitem novas

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pistas na compreensão das miocardites e damiocardiopatia dilatada (Kawai).

Em crianças, a principal causa de insuficiência car-díaca é a miocardite. Utilizando técnicas de biologiamolecular, polymerase chain reaction (PCR) outranscriptase reversa (TR), Calabrese et al. analisaram59 biópsias endomiocárdicas, de 48 pacientes conse-cutivos (< 18 anos), com diagnósticos clínico e histo-lógico de miocardite, empregando primers para am-plificar várias seqüências de vírus DNA e RNA.Genoma viral foi encontrado em 20 pacientes (49%):12 de 26 pacientes (46%) com miocardite, seis de 13pacientes (46%) com miocardiopatia dilatada.Enterovírus foram os agentes mais comumente encon-trados na miocardiopatia dilatada (72%), e osadenovírus e os enterovírus foram os mais prevalentesna miocardite (36%). Os autores também observaramque, nos casos em que havia a presença do genomaviral, existia também infiltrado inflamatório e lesãomiocárdica, assim como pior função ventricular.

Detecção de agressão imune-

humoral na fase 3

A avaliação da agressão imune nesta fase se faz atra-vés de métodos de imunoistoquímica, com a marca-ção de HLA de tipos 1 e 2 tecidual e vascular. Pode-mos encontrar a presença de HLA positivo em até 90%a 100% dos casos em que a detecção por análise decelularidade tem somente 8% de positividade.

Terapêuticas

Tratamento imunossupressorO tratamento imunossupressor baseia-se na segun-

da fase da evolução da miocardite, na qual a ação viraldesencadeia uma resposta imune do hospedeiro.

Em nosso meio, Arteaga et al., em 1990, publica-ram um estudo com 102 pacientes com diagnósticode miocardiopatia dilatada com até 12 meses de evo-lução. Em 51 pacientes foi observada miocarditelinfocitária. Dez pacientes, além do tratamento con-vencional com digital, diurético e inibidores da enzimaconversora da angiotensina, receberam prednisona eazatioprina por seis meses. Neste grupo não foi obser-vada melhora significativa em relação ao quadro clíni-co ou à função do ventrículo esquerdo, quandocomparado ao grupo de 41 pacientes que apenas rece-beram a medicação convencional. Entretanto, a mor-talidade foi três vezes maior no grupo que recebeu dro-gas imunossupressoras.

Com o objetivo de analisar os efeitos favoráveis daterapia imunossupressora em crianças com cardiomi-opatia e miocardite ativa, Camargo, em 1995, estu-dou 68 crianças com idades variando de 10 meses a 15anos. Elas foram divididas em quatro grupos: I) con-trole – nove pacientes (digital, diurético,vasodilatadores); II) prednisona – 12 pacientes com aterapêutica convencional mais prednisona; III)azatioprina – 16 pacientes submetidos à terapêuticaconvencional mais prednisona e azatioprina; IV) ci-closporina – 13 pacientes tratados com a terapêuticaconvencional mais prednisona e ciclosporina, anali-sando-se os resultados por meio de exames não-invasivos e invasivos (hemodinâmica). Dos pacien-tes submetidos à terapêutica convencional, apenas 2/9 apresentaram melhora clínica e hemodinâmica.Entre os pacientes submetidos à terapêutica conven-cional mais prednisona, 3/12 casos tiveram melhoraclínica e hemodinâmica. Em contraste, pacientes sub-metidos à terapêutica com azatioprina e ciclosporinaapresentaram melhores resultados: 13/16 e 10/13pacientes, respectivamente, tiveram melhora clínicae hemodinâmica. Este trabalho demonstra os efeitosbenéficos da terapêutica imunossupressora em crian-ças, porém o número de pacientes alocados em cadagrupo é pequeno.

Em 1995 foram publicados os resultados doMyocarditis Treatment Trial, realizado em 31 centrosde EUA, Canadá, Reino Unido e Japão, que entre 1986e 1990 estudou 2.233 pacientes com diagnóstico demiocardiopatia dilatada, fração de ejeção menor do que0,45 e idade média de 42 anos, que realizaram biópsiaendomiocárdica do ventrículo direito. Apenas 214 pa-cientes (10%) apresentavam diagnóstico histopatológi-co sugestivo de miocardite. Cerca de 111 pacientes fo-ram randomizados: os 47 pacientes do grupo controlereceberam medicação convencional; prednisona eazatioprina foram dadas a 19 pacientes; e outros 45 re-ceberam prednisona e ciclosporina durante quatro me-ses. Ao final do estudo não se observou melhora signifi-cativa da função do ventrículo esquerdo, nem dasobrevida, nos pacientes que receberam medicaçãoimunossupressora, quando comparados aos do grupocontrole. As críticas realizadas a este estudo incluem: 1)muitos pacientes alocados não tinham miocardite vi-gente; 2) os pacientes eram estáveis e não apresentavamrisco elevado ou imediato; 3) a dose de prednisona eciclosporina dada à grande maioria dos pacientes nãoera muito potente. O próprio Mason, em um editorialpublicado em 2002, questiona se muitos dos pacientes

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alocados para o tratamento imunossupressor e que ha-viam apresentado doença viral recente estariam na ter-ceira fase (remodelamento adverso com miocardiopatiadilatada), ou seja, persistência de níveis virais não-detectáveis porém suficientes para manter um baixo nívelde destruição imune mediada.

Por outro lado, a melhora espontânea ocorre emmuitos pacientes com miocardite. Em uma metanáli-se de 12 estudos, com 388 indivíduos, com e sem bi-ópsia endomiocárdica, observou-se melhora em 58%dos pacientes, que estavam recebendo apenas medica-ção para insuficiência cardíaca congestiva, enquanto37% não apresentaram melhora ou pioraram.

Em outra metanálise, de 19 estudos e 250 indiví-duos, que além do tratamento convencional da insufi-ciência cardíaca receberam prednisona e azatioprinaou ciclosporina, observou-se que 61% dos pacientesmelhoraram e 39% não apresentaram melhora ou pio-raram, de forma muito semelhante aos pacientes quenão receberam medicação imunossupressora.

Deve haver subgrupos de pacientes que poderiamse beneficiar do tratamento imunossupressor. Seriampacientes com processo inflamatório evidente e combaixo grau de deposição de colágeno, havendo assimmaior possibilidade de involução dos volumesventriculares. Esta idéia poderia explicar a diferençaentre os resultados de crianças e adultos obtidos noInstituto do Coração. Outros marcadores devem exis-tir, ainda desconhecidos por nós. Infelizmente, essespontos não foram aventados no trabalho de Mason etal., e os maus resultados obtidos geraram descréditoem relação ao tratamento. Portanto, achamos que aidéia de tratamento imunossupressor não deve ser to-talmente abandonada, e sim individualizada.

Imunomodulação: gamaglobulinaNovos tratamentos imunomodulatórios foram

propostos para o tratamento da miocardite aguda.O uso da gamablobulina baseia-se no fato de que a

lesão miocárdica é mediada por mecanismos auto-imu-nes, em adição aos efeitos diretos miocárdicos da infec-ção viral. O mecanismo de ação da gamaglobulina pa-rece ser a modulação da resposta imune, além domecanismo antiviral, que resulta em diminuição da in-flamação miocárdica pela down-regulation de citocinaspró-inflamatórias, as quais possuem efeito inotrópiconegativo direto. Em 1994, Drucker et al. publicaramum estudo de 46 crianças com insuficiência cardíaca deinício menor que três meses e biópsia endomiocárdicademonstrando miocardite. Em 21, além do tratamento

convencional foi dada gamaglobulina endovenosa nadose de 2g/kg. Após um ano, o grupo que recebeugamaglobulina mostrou melhora significativa da fraçãode ejeção, diminuição da cavidade ventricular esquerdae uma tendência a melhor sobrevida.

Em 1996 foi desenvolvido um estudo duplo-cegorandomizado, The Intervention in Myocarditis and AcuteCardiomyopathy (Imac), com o objetivo de determinara ação das imunoglobulinas na função ventricular empacientes com miocardiopatia dilatada de recente come-ço ou miocardite. Sessenta e dois pacientes commiocardiopatia dilatada de recente começo (seis mesesde sintomas) e fração de ejeção de 40% foram randomi-zados com 2g/kg de imunoglobulina endovenosa ouplacebo. Todos foram submetidos a biópsia endomiocár-dica de ventrículo direito, sendo que apenas 16% tinhammiocardite. O objetivo primário foi alteração da fraçãode ejeção ventrículo esquerdo (FEVE) em seis e 12 me-ses. A FEVE melhorou de 0,25 ± 0,08 para 0,41 ± 0,17em seis meses (p < 0,001) e 0,42 ± 0,14 (p < 0,001 versusbasal) em 12 meses. O aumento foi virtualmente idênti-co nos pacientes que receberam imunoglobulina (IVIG)e placebo (seis meses: IVIG 0,14 ± 0,12, placebo 0,14 ±0,14; 12 meses: IVIG 0,16 ± 0,12, placebo 0,15 ± 0,16).As conclusões deste estudo foram de que, em pacientescom miocardiopatia dilatada de início recente, o uso deimunoglobulina endovenosa não trouxe melhora para afunção ventricular. No entanto, a fração de ejeção me-lhorou significativamente, e o prognóstico a curto prazofoi favorável em ambos os grupos.

Perspectivas

Está em andamento o estudo The European Studyof Epidemiology and Treatment of Cardiac InflammatoryDisease (Esetcid), baseado na etiologia da miocardite commedicação direcionada de acordo com a etiologia.

Tratamento da miocardite em

modelos experimentais

• Interferon α – inibe a replicação viral e reduz aresposta inflamatória quando administrado anterior-mente ou simultaneamente à inoculação viral(Matsumori). Anticorpos antiinterferon a diminuemo grau de lesão miocárdica e melhoram a sobrevidade ratos tratados um dia antes da inoculação do vírusda encefalomiocardite;• imunização passiva com vacinas vírus-específicas pre-vine o aparecimento de miocardite. Vacina contraenterovírus coxsackie B3 em ratos evitou o apareci-mento de miocardite;

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• vesnarinone, do grupo das quinolonas com efeitoinotrópico positivo, possivelmente modula a produçãode citocinas no início da infecção. Em modelo de ratoinfectado pelo vírus da encefalomiocardite, melhorou asobrevida por suprimir a produção de TNF-α e de ce-lular natural killers.• bloqueador de angiotensina II (AT1) diminui odano miocárdico e melhora a sobrevida de ratos in-fectados pelo vírus da encefalomiocardite;• captopril diminui a necrose celular e o infiltrado infla-matório na miocardite induzida pelo vírus coxsackie B3;• ribavirina, agente antiviral de largo espectro, redu-ziu a replicação viral miocárdica e a resposta inflama-tória e aumentou a sobrevida em camundongos commiocardite induzida pelo vírus da encefalomiocardite;• vitamina E melhora a evolução da miocardiopatia emhamsters sírios, possivelmente por seu efeito antioxidante;

• L-arginina – o óxido nítrico é um radical livre quemedeia funções fisiológicas vitais, além da imunidadenão-específica. Vários tipos celulares são capazes de pro-duzir óxido nítrico pela conversão da L-arginina paraL-citrulina pela enzima óxido nítrico sintetase. A inibi-ção desta enzima aumenta os níveis de títulos virais eagrava a fase aguda da miocardite, além de diminuir aprodução da matriz extracelular. O óxido nítrico pareceexercer um importante papel protetor na inflamaçãocardíaca. Inibe aderência de leucócitos a linfócitos esuprime a expressão local de citocinas inflamatórias, re-gulando o tônus vasomotor. Hiraoka et al., em trabalhoexperimental, demonstraram que o tratamento com L-arginina melhora o curso e reduz o dano cardíaco namiocardite murina, com elevações de L-arginina e osníveis de óxido nítrico elevam-se com o tratamento comL-arginina.

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