Anarquia e Pedagogia Libertária

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  • 8/3/2019 Anarquia e Pedagogia Libertria

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    ANARQUISMO E

    PEDAGOGIA LIBERTRIA

    Seleo de textos feita pelo Prof. Donizete Soares

    SE NO FOR LIBERTRIA, TODA A PEDAGOGIA AUTORITRIA

    NO H EDUCAO LIBERTRIA QUE NO SEJA AUTO-EDUCAO

    PRECISAMOS APRENDER COM OS OUTROS APENAS

    O QUE NO NOS FOI POSSVEL APRENDER SOZINHOS

    A NECESSIDADE DE APRENDER BIOLGICA,

    ELA SE FAZ SEMPRE DE DENTRO PARA FORA

    O IMPULSO PELA BUSCA DO CONHECIMENTO MAIS IMPORTANTE

    DO QUE A COISA CONHECIDA

    ENSINAR O QUE NO FOI PERGUNTADO, ALM DE INTIL,

    UMA ESPCIE DE ESTUPRO CULTURAL

    A NECESSIDADE DE CONHECIMENTO COMPULSIVA,

    COMO A DE LIBERDADE E A DE OXIGNIO

    SOMOS TODOS DIFERENTES UNS DOS OUTROS, INCLUSIVE PELO INTERESSE EM CONHECER

    AS TEORIAS EDUCATIVAS CONSISTEM EM TIRAR ALGUMA COISA ANTES DE DAR,

    CENSURAR ANTES DE OFERECER MODELOS VLIDOS,PROIBIR E IMPOR NORMAS ANTES DE SOCIALIZAR A EXPERINCIA

    A CRIANA APRENDE TUDO SOZINHA. BASTA NO IMPEDI-LA.

    S PRECISAMOS ENSINAR-LHE DETALHES TECNOLGICOS

    AS UNIVERSIDADES NORTE-AMERICANAS J PROVARAM:

    OS UNIVERSITRIOS SAEM COM MENOR QI DO QUE QUANDO ENTRARAM NELAS

    A PEDAGOGIA LIBERTRIA SE BASEIA NO GOSTO ESPONTNEO DAS CRIANAS PELO CONHECIMENTO E EM SUACAPACIDADE NATURAL DE CRITICAR O QUE LHES ENSINAM.

    A PEDAGOGIA AUTORITRIA VISA FUNDAMENTALMENTE DESTRUIR ESSE POTENCIAL CRTICO

    PERGUNTAR O ATO MAIS ESPONTNEO E O NICO REALMENTE INDISPENSVEL NA FORMAO CULTURAL. NOSE LIVRE PARA PERGUNTAR EM AMBIENTE AUTORITRIO

    Roberto Freire

    ........................

    Anarquia e Movimento Anarquista ........................................................................................................... 02

    O anarquismo hoje ................................................................................................................................ 08

    Educao, ideologia e a construo do sujeito ........................................................................................... 22

    A Contribuio do Pensamento Pedaggico Libertrio para a Histria da Educao Brasileira ........................... 30

    Maurcio Tragtenberg e a Pedagogia Libertria .......................................................................................... 38

    A delinqncia acadmica ....................................................................................................................... 47

    Pedagogia Libertria e Pedagogia Crtica ................................................................................................... 50

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    Anarquia e Movimento AnarquistaLuigi Biondi - Doutorando em Histria na Unicamp [email protected]

    Quem quer que seja que ponha as mos sobre mim, para me governar, um usurpador, um tirano. Euo declaro meu inimigoPierre-Joseph Proudhon

    Anarquismo (do grego antigo an-arke = contrrio autoridade) o nome que se d a uma teoria queprega uma sociedade sem governo, na qual se vive em harmonia, no por submisso lei, nem porobedincia autoridade, mas por acordos livres estabelecidos entre os diferentes grupos de homens emulheres, livremente constitudos por territrio ou profisso, para a produo, o consumo e para asatisfao da infinita variedade de necessidades e aspiraes de um ser civilizado. Em uma sociedadeanrquica as associaes voluntrias que estaro presentes em todos os campos da atividade humana,adquiriro uma extenso maior, que substituir o Estado em todas as suas funes. Elas constituirouma rede composta por uma infinita variedade de grupos e de federaes de todos os tipos e graus:locais, regionais, nacionais e internacionais, para todos os objetivos possveis: produo, consumo eintercmbio, comunicaes, servios sanitrios, educao, proteo mtua, defesa do territrio, etc.mas tambm para satisfazer necessidades cientficas, artsticas, literrias e de relaes sociais.

    Numa sociedade como esta, organizada de forma anarquista, o homem no ser limitado na suacapacidade de trabalho produtivo por um monoplio capitalista apoiado pelo Estado, nem se limitarpor medo do castigo (a represso policial), ou por obedincia a entidade metafsica (a religio). Ohomem agir seguindo a sua prpria razo, podendo alcanar o desenvolvimento pleno de todas a suaspotencialidades, intelectuais, artsticas e morais, sem ser obrigado a trabalhar para os monopolistas.Poderia assim alcanar a plena individualizao que no possvel sob o sistema de individualismocapitalista atual, nem sob o sistema de socialismo de Estado coletivista.

    Os autores anarquistas consideram, alm disso, que a sua concepo no uma utopia, mas que realizvel: (...) o progresso da tcnica moderna, que simplifica maravilhosamente a produo de todosos elementos necessrios para a vida, o crescente esprito de independncia e a rpida expanso dainiciativa livre e do livre pensamento em todos os campos de atividade (incluindo as que antigamentese acreditavam atributo exclusivo do Estado e da Igreja) reforaram a tendncia da sociedade humanaao no-governo.

    No que se refere s suas concepes econmicas, os anarquistas acreditam que o sistema depropriedade privada da terra e a produo capitalista que tem como objetivo o lucro, representam ummonoplio que vai ao mesmo tempo contra os princpios de justia e contra os de utilidade. Osanarquistas consideram o sistema salarial e a produo capitalista um obstculo para o progresso.Porm, assinalam tambm que o Estado sempre foi, e continua sendo, o principal instrumento paraque poucos proprietrios monopolizem a terra e para que os capitalistas se apropriem de um volumetotalmente desproporcionado do excedente acumulado da produo.

    Os anarquistas, portanto, enquanto combatem o atual monoplio da terra e o capitalismo, combatemcom a mesma energia o Estado, que o apoio principal do sistema. No combatem esta ou aquelaforma de Estado, mas o Estado em si, tanto o monarquista quanto o republicano. Tendo sido sempre a

    organizao do Estado (na histria antiga como na moderna), o instrumento para assentar osmonoplios das minorias dominantes, no pode ser utilizada para a destruio destes monoplios. Osanarquistas consideram, portanto, que entregar ao Estado todas as fontes principais da vida econmica(a terra, as minas, as ferrovias, os bancos, os seguros, etc.) assim como o controle de todos os ramosda indstria, alm de todas as funes que acumula j em suas mos (educao, religies apoiadaspelo Estado, defesa do territrio, etc.), significaria criar um novo instrumento de domnio. Ocapitalismo de Estado de tipo socialista s aumentaria os poderes da burocracia e do capitalismo. Aocontrrio, o verdadeiro progresso est na descentralizao, tanto territorial como funcional, nodesenvolvimento do esprito local e da iniciativa pessoal e na federao livre do simples ao complexo,ao invs da hierarquia atual que vai do centro periferia.

    Os anarquistas, reconhecem que, como toda evoluo natural, a lenta evoluo da sociedade seguidas vezes pela evoluo acelerada chamada revoluo, e acreditam que a era das revolues ainda nose concluiu. Nos perodos de lenta evoluo, todavia, dever-se-ia reduzir os poderes do Estadoformando organizaes em todos os vilarejos e cidades ou comunidades de grupos locais de produtorese consumidores, assim como federaes regionais ou internacionais destes grupos.

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    Os anarquistas se opem, segundo os princpios expostos, a participar da organizao estatal atual e aapoi-la e infundir-lhe sangue novo. No pretendem constituir, e convidam os trabalhadores a nofaz-lo, partidos polticos que concorram a eleies para parlamentos. Portanto, desde a fundao daAssociao Internacional dos Trabalhadores (1864-1866), os anarquistas procuraram propagar suasidias diretamente nas organizaes operrias, e induzi-las a uma luta direta contra o capital, semdepositar f alguma na legislao parlamentar.

    Com estas palavras o revolucionrio russo Piotr Kropotkin (1842 1921), explicava em 1905 naEnciclopdia Britnica a teoria anrquica, os objetivos e a atuao do movimento anarquista, do qual

    ele era um dos maiores expoentes e tericos (a sua obra mais importante foi A Conquista do Po,considerada a obra anarquista mais lida entre os militantes).

    No mesmo perodo, em 1907, outro pensador e poltico anarquista, o italiano Errico Malatesta (1853-1932) explicava de forma semelhante, no folheto Anarchia, o que os anarquistas queriam, defendendodesta forma a idia anrquica, e criticando os que a consideravam somente um sinnimo de desordem:

    Anarquia uma palavra grega que significa literalmente "em governo", isto , o estado de um povosem uma autoridade constituda. Antes que tal organizao comeasse a ser cogitada e desejada portoda uma classe de pensadores, ou se tornasse meta de um movimento, a palavra "anarquia" foi usadauniversalmente para designar desordem e confuso. (...) Tal interpretao se deve ao preconceito deque o governo uma necessidade na organizao da vida social. (...) Portanto, para nascer e viver naescravido, por ser descendente de escravos, quando comeou a pensar, o homem acreditava que aescravido era uma condio essencial vida. A liberdade parecia impossvel. Assim tambm otrabalhador foi forado, por sculos, a depender da boa vontade do patro para trabalhar, isto paraobter po. Acostumou-se a ter sua prpria vida disposio daqueles que possussem a terra e ocapital. (...) Se acrescentamos ao efeito natural do hbito a educao dada pelo seu patro, pelopadre, pelo professor, que ensinam que o patro e o governo so necessrios; se acrescentamos o juize o policial para pressionar aqueles que pensam de outra forma e tentam difundir suas opinies,entenderemos como o preconceito da utilidade e da necessidade do patro e do governo soestabelecidos. (...) Quando esta opinio mudar, e o pblico estiver convencido de que o governo desnecessrio e extremamente prejudicial, a palavra anarquia, justamente por significar semgoverno, ser o mesmo que dizer "ordem natural, harmonia de necessidades e interesses de todos,liberdade total com solidariedade total".

    Os dois trechos evidenciam quais foram (e ainda hoje so) os fundamentos da teoria e do movimento

    anarquista:a) Comunismo: isto , gesto coletiva de todos os bens e abolio de todo tipo de propriedade (daterra, como capitalista industrial). Comunismo anarquista um sistema de socialismo sem governo;

    b) Antiestatalismo: abolio de todo tipo de Estado (incluindo o de tipo socialista), considerado como acoluna da explorao capitalista e de todas as desigualdades;

    c) Anti-clericalismo e atesmo: a Igreja, como o Estado, no somente o fruto das relaes deexplorao capitalista, mas uma instituio que sustenta, apia e cria estas relaes;

    d) Revoluo: chegar-se- a sociedade comunista anrquica atravs das revolues;

    e) Ao Direta: a preparao da revoluo final que abolir o Estado e a propriedade atravs deinsurreies, motins e greves gerais contra a explorao capitalista, contra o Estado e suas

    autoridades, e contra o poder da Igreja;f) Anti-parlamentarismo: pregando a revoluo e a ao direta, e sendo contrrios a todo tipo dehierarquia e ao Estado, os anarquistas so tambm contrrios formao de partidos que participemde eleies. Nunca poder existir um partido anarquista;

    g) Federao: a nova sociedade anrquica ser auto-organizada por grupos confederados entre eles,sem nenhuma hierarquia, no nvel local, regional, do local de trabalho e at formar uma grandefederao internacional de todos os povos. O movimento anarquista em luta para chegar a umasociedade anarquista tambm se auto-organizar em grupos de afinidade confederados, por seremcontrrios luta partidria eleitoral;

    h) Liberdade Individual: o homem tem que ser livre e, portanto, prega-se a abolio de todo tipo dehierarquia na sociedade e a observao de um comportamento pelo qual os nicos limites da ao de

    cada um so a considerao em relao ao respeito da individualidade dos outros: a solidariedadeentre indivduos iguais. Alm disso o indivduo deve se libertar de suas idias antigas e repressivassobre as relaes de amor e as supersties religiosas. Conseqentemente os anarquistas so

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    favorveis ao amor livre e a unies sentimentais baseadas somente no amor e no respeito mtuo eno no casamento.

    Embora nascidos paralelamente ao movimento marxista e socialista, e muitas vezes colaborando comeste (com o qual os anarquistas tinham algo em comum, como o objetivo de chegar a uma sociedadecomunista), os anarquistas tem algumas grandes diferenas em relao aos socialistas e comunistas,que nasceram das idias de Marx (1818-1883).

    Em primeiro lugar, o anarquismo no tem um nico grande terico (como foi Marx para o movimentosocialista e comunista); em segundo lugar, os anarquistas no acreditam que sociedade futura

    comunista tenha que se chegar atravs de um perodo intermedirio chamado de ditadura doproletariado; em terceiro lugar eles destacam o papel do Estado na explorao capitalista, isto ,acreditam que o estado burgus no uma expresso da economia burguesa e portanto do sistema deexplorao capitalista, mas que o Estado tem um valor negativo em si prprio e que ao mesmotempo causa e efeito da sociedade capitalista. Enfim, diferentemente do marxismo que consideravaque a classe dos proletrios urbanos (os operrios) fosse a classe revolucionria, para os anarquistasno havia uma classe predestinada a fazer a revoluo: todos os explorados e excludos, fossem elescamponeses, artesos, ou operrios fariam a revoluo anrquica.

    O primeiro terico que utilizou a palavra anarquia, dando a ela um sentido positivo foi o francs Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), cujas obras mais importantes so: O que a propriedade?, A filosofiada misria, e O princpio federativo. Segundo ele, a propriedade era um furto, no era uma instituiolegtima da sociedade, e baseava-se em um ato de violncia. Preconizava, portanto, uma sociedadefutura, que ele chamara de anrquica, na qual a propriedade e seus maiores defensores, a Igreja e oEstado, teriam desaparecido, e os homens teriam se organizado espontaneamente para suprir as suasnecessidades sem precisar de hierarquia, mas confederados em grupos de produtores organizadossegundo regras mutualistas, isto de ajuda mtua. As idias de Proudhon encontraram um espaoconsidervel entre muitos artesos e operrios franceses. Durante a Comuna de Paris (1871), porexemplo, os proudhonianos constituram a maioria dos artesos e operrios que apoiaram ouparticiparam diretamente do governo revolucionrio parisiense.

    Outro importante anarquista da poca foi Michail Bakunin (1814-1876) que no deixou uma obraterica fundamentando o anarquismo mas escreveu, todavia, uma infinidade de artigos em vrios

    jornais anarquistas, propagandeando o ideal anrquico de uma sociedade sem classes, sem Estado,sem religio e sem propriedade privada, gerida coletivamente no respeito mtuo. Bakunin foi o poltico

    anarquista mais ativo no sculo XIX. Ele nasceu na Rssia em 1814, mas viveu grande parte de suavida participando e promovendo motins e revoltas em vrias outras partes da Europa, sobretudo naFrana e Itlia, at que morreu na Sua, em 1876. Em 1868 participou da recm fundada AIT -Associao Internacional dos Trabalhadores (tambm chamada de Primeira Internacional), da qual,todavia, expulso com o resto de seus seguidores anarquistas em 1872, no Congresso da AIT, emHaia, na Holanda. Isto porque, os anarquistas, entraram em choque com os socialistas marxistas (oprprio Marx e Engels tinham fundado a AIT, em 1864) por causa de suas idias em relao ao Estadoe suas contrariedades a formar um nico partido operrio organizado hierarquicamente, alm de serecusarem a obedecer s decises da maioria socialista.

    Pregando a resistncia e oposio ao Estado e religio e a liberao total do indivduo, os anarquistaselaboraram uma pedagogia que pretendia libertar de fato o indivduo de suas crenas ecomportamentos de submisso ao Estado, o capital e a igreja. Esta educao anarquista, que devia

    formar o homem novo, foi elaborada sobretudo baseando-se nas idias do educador espanhol FranciscoFerrer (1859-1909) que criou toda uma rede de escolas chamadas de Escolas Racionais ouRacionalistas, nas quais ensinava-se matrias cientficas e humanas seguindo os princpiosdemocrticos e anti-clericais. Por causa desta sua atividade, Ferrer foi aprisionado e morto pelo Estadoespanhol em 1909.

    Como j dissemos, o movimento anarquista se estruturou em grupos de afinidade. Isso significa que osanarquistas se juntavam entre eles em grupos organizados segundo afinidades, isto , seguindointeresses ou objetivos comuns, tendo assim grupos locais de propaganda, sindicais, educativos,recreativos de teatro, msica e at futebol (por exemplo, em 1917 havia um clube anarquista defutebol sediado em Santos, que disputava o campeonato paulista, cujo nome era Libertrio F. C.).Frequentemente, havia grupos que desenvolviam atividades as mais variadas. Os grupos eramfederados a nvel nacional, formando as chamadas Federaes Libertrias ou Federaes Anarquistas,sendo as mais famosas e numerosas as da Espanha e Itlia. Estas organizaes no tinham umaestrutura de tipo partido mas agiam nacionalmente e, s vezes, internacionalmente, sem observaruma ordem estratgica ditada pelos lderes eleitos. Depois das assemblias, nas quais eram tomadas

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    as decises democraticamente segundo o princpio da maioria e da minoria, esta no era obrigada,depois, a seguir as decises tomadas pela maioria.

    Em relao atividade sindical, os anarquistas seguiam comportamentos variados, sendo esta questoum dos problema de diviso no interior do movimento anarquista:

    a) Muitos, de fato, liderados por Malatesta, achavam que a participao nos sindicatos de ofcio ou decategoria deveria ser fundamental, mas todavia no podia substituir a ao dos anarquistas nasociedade como um todo: o sindicato era um lugar importante, mas no o nico, no qual osanarquistas deveriam intervir fazendo propaganda dos princpios anrquicos. Claramente, eles

    deveriam participar das greves, mas deveriam tender a transform-las em insurreies e revoltasgerais contra o Estado, sem se limitarem as greves parciais. Alm disso, os libertrios, ao recusaremtodo tipo de hierarquia, eram contrrios organizao sindical, uma vez que quase todos os sindicatosse estruturavam em organizaes nas quais havia quem decidia e mandava e quem obedecia, aindaque seus lderes fossem eleitos democraticamente;

    b) Uma parte dos anarquistas, todavia, aderiu a uma tendncia chamada sindicalismo de ao diretaou sindicalismo revolucionrio que via a sociedade futura sendo organizada por grupos sindicais deprodutores (operrios ou camponeses) e que pregava como meio de luta a greve geral. Neste caso,obviamente, estes anarquistas participavam das eleies internas necessrias organizao dosindicato, muitas vezes recebendo um salrio como presidentes ou conselheiros das ligas de ofcio.Embora criticados por outros anarquistas, eles achavam que os libertrios deveriam conquistar ossindicatos para lider-los segundo os princpios da anarquia e da greve geral, em contraposio aossocialistas, que lideravam na Europa e no mundo a maioria das confederaes sindicais. Osanarquistas que participaram desta viso sindicalista revolucionria foram tantos que muitas vezesesta tendncia de luta sindical foi chamada frequentemente (mas no corretamente) de anarco-sindicalismo. De fato, na Frana, o mais importante lder sindical e fundador do movimento sindicalfrancs era um anarquista: Fernand Pelloutier (1867-1901). Tambm na Argentina, a principal centralsindical do pas at os anos trinta do sculo XX, a FORA (Federacin Obrera Regional Argentina), eraem grande parte controlada por militantes e lderes sindicais anarquistas.

    Em relao aos perodos anarquistas, a histria do movimento anarquista no mundo atravessou algunsperodos principais, durante os quais um aspecto de suas estratgias prevalecia sobre os outros, quetodavia no desapareceram completamente:

    a) o perodo chamado Internacionalista (aproximadamente 1860-1880) durante o qual os anarquistas

    participaram (de 1868 a 1872) junto com os marxistas, da Associao Internacional dos Trabalhadores(AIT). Agiam sobretudo em pequenos grupos como vanguardas revolucionrias promovendo eparticipando de levantes e revoltas urbanas e tiveram um papel ativo na Frana na Comuna de Paris ena fundao das primeiras organizaes mutualistas e de classe segundo as idias proudhonianas;

    b) o perodo chamado Terrorista (aproximadamente 1880-1900) no qual prevaleceu dentro domovimento anarquista a corrente inidividualista ou stirneriana - do filsofo alemo Max Stirner (1806-1856) terico da libertao total do indivduo, que considerava eficaz o assassinato de expoentes doEstado como soberanos, presidentes da repblica, generais. Durante este perodo os anarquistas, ematos individuais, mataram vrios monarcas e presidentes, como por exemplo o rei da Itlia HumbertoI, a imperatriz da ustria-Hungria, o presidente da repblica francesa Sadi-Carnot;

    c) o perodo das Organizaes (aproximadamente a partir de 1890) durante o qual o individualismo foi

    gradualmente abandonado e, dedicou-se sobretudo organizao e formao de grupos polticosanarquistas e participao em sindicatos;

    d) o perodo da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), durante estes anos, pela primeira vez, osanarquistas chegaram a participar do governo de uma nao, o que trouxe a eles vrios problemas,sendo que os libertrios reivindicavam a destruio total do Estado. Mas como a Espanha estava numaguerra civil, a Federao Anarquista Ibrica (FAI), participou ativamente da defesa da RepblicaEspanhola contra os franquistas nacionalistas, porque ela contrastava o domnio religioso da IgrejaCatlica e tinha destrudo o velho Estado monarquista antidemocrtico. Alm disso, os anarquistasesperavam transformar a Espanha numa repblica organizada segundo os princpios voluntaristas elibertrios do anarquismo. Neste perodo, alis, a principal central sindical espanhola era justamente aanarco-sindicalista CGT.

    O anarquismo se difundiu na Europa sobretudo depois da atividade de Bakunin e de Proudhon, queencontraram na Frana, na Espanha e na Itlia vrios seguidores. O movimento anarquista, que tinhancleos, grupos, sindicatos e federaes em todos os pases da Europa, fixou-se sobretudo na Europalatina (Espanha, Itlia, Frana e Portugal), mas grupos consistentes existiam tambm na Holanda,

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    Blgica, Suia e Rssia. Os historiadores acham que a maior difuso nestes pases deveu-se ao fato deque o anarquismo era uma teoria que expressava melhor a resistncia de artesos a se proletarizarnas cidades como operrios, e a perder sua independncia como trabalhadores autnomos. Alm disso,o anarquismo era o movimento que mais atuava contra o poder da igreja e que mais consideravam oscamponeses como agentes revolucionrios. E dado que os pases da Europa do sul e a Rssia erampases ainda pouco industrializados (portanto com uma camada muito ampla de trabalhadores urbanosartesos e com a maioria dos trabalhadores sendo camponeses) e eram pases onde a igreja catlica ea ortodoxa (na Rssia) tinham terras e poder poltico, o anarquismo se apresentava como ummovimento mais prximo das exigncias de transformao da sociedade. A Frana tambm, embora

    fosse um pas industrializado, ainda contava com um nmero elevado de artesos e operriosespecializados. Entre os integrantes mais importantes do anarquismo nestes pases destacamos, naEspanha, Buenaventura Durruti (1896-1936), na Itlia, Errico Malatesta (1853-1932), reconhecido porKropoktin como a figura mais importante de todo o movimento anarquista internacional na primeiraparte do sculo XX, Pietro Gori (que atuou na segunda metade do sculo XIX e incio do XX) e LuigiFabbri (que atuou do final do sculo XIX at toda a primeira metade do sculo XX); na Frana, aprofessora Louise Michel (1830- 1905), que participou ativamente da Comuna de Paris e o sindicalistaPierre Monatte (que atuou aproximadamente entre final do sculo XIX e incio do XX).

    Todavia, o movimento anarquista teve uma certa expanso tambm entre os trabalhadores dosEstados Unidos. Neste pas, os anarquistas contaram com muitos militantes, entre os quais lembramosos Mrtires de Chicago, condenados a morte em 1887 por terem participado de uma greve na qualalguns policias foram mortos (este greve, que foi feita no dia Primerio de Maio, deu origem ao dia dotrabalhador, para lembrar sempre dos que morreram, como os anarquistas mortos em 1887, para aobteno de condies de vida e de trabalho mais dignas); a feminista de origem judia lituana EmmaGoldman (1869 1940); e os imigrantes italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, mortos em 1927na cadeira eltrica, injustamenteacusados de terem matado alguns policiais numa fbrica.

    Tambm na Amrica Latina o anarquismo teve uma difuso notvel, sendo considerado como a basefundadora do movimento operrio e de movimentos sociais (anticlericalismo, feminismo e novaspedagogias) em vrios pases sul-americanos, sobretudo no Brasil, na Argentina, Uruguai e Chile.

    Em grande parte, o anarquismo se difundiu a partir da dcada de 90 do sculo XIX na Amrica do Sulgraas a imigrao de muitos trabalhadores vindos da Europa do sul, que contava com um nmeronotvel de anarquistas. Todavia, as idias anarquistas tinham-se difundido tambm graas leitura deobras e jornais anarquistas que alguns intelectuais e profissionais liberais latino-americanoscostumavam ler. Foi o caso, por exemplo, do escritor mineiro Avelino Fscolo (1864 1944) autor doromance social Vulces e da feminista Maria Lacerda de Moura (1887 - 1945), cuja primeira obra foiescrita em 1919. Ao mesmo tempo, muitos imigrantes no chegaram em seus novos pasesamericanos j como atuantes libertrios, mas passaram a integrar o movimento somente na Amricado Sul.

    Tanto no Brasil como na Argentina e Uruguay, a maioria dos militantes anarquistas era de origemitaliana: portanto, cidades que contavam com uma maioria de trabalhadores italianos, como BuenosAires, Rosrio, Montevidu e So Paulo, tambm contavam com muitos grupos de anarquistaspovenientes da Itlia. Mas muitos imigrantes de outros pases tambm integraram o movimentoanarquista sul-americano, especialmente os espanhis e os portugueses (a maioria dos militantesanarquistas da cidade de Santos, por exemplo, que entre 1890 e 1940 era considerada a cidade com

    mais anarquistas no movimento operrio, eram espanhis ou portugueses).Portanto, foi no Estado de So Paulo, que mais se espalhou o movimento anarquista no Brasil, graas grande presena de artesos e operrios de origem italiana e espanhola, e parcialmente portuguesa.Os italianos, em particular, constituam cerca de 70% dos filiados aos vrios grupos anarquistas quesurgiram entre 1895 e 1920 nas vrias cidades paulistas, a partir obviamente da capital. Osanarquistas italianos de So Paulo, inclusive, conseguiram editar um semanrio libertrioininterruptamente de 1904 a 1914, com uma tiragem que chegou em alguns perodos a 5.000 cpiassemanais: este jornal era o La Battaglia. Calcula-se que em 1909 existiam pelo menos seis gruposanarquistas de lngua italiana somente na cidade de So Paulo, alm dos grupos nos quaisparticipavam indiferentemente imigrantes italianos, portugueses, espanhis e brasileiros natos.Tambm os sindicatos que nasceram em So Paulo nesta poca, eram compostos por muitosanarquistas seguidores das ideas de ao sindical direta: tanto na FOSP (Federao Operria de So

    Paulo), como na FOLS (Federao Operria Local de Santos) ou na Liga Operria de Campinas ou deRibeiro Preto. Junto com estes grupos, quase todos de bairros ou sindicais, havia em So Paulotambm as Escolas Modernas Libertrias que seguiam a pedagogia de Ferrer, como a escola do

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    professor Joo Penteado (1877-1965). Havia inclusive um grupo formado somente por mulheres oGrupo das Jovens Idealistas, que tiveram um papel importante durante a grande greve geral de 1917.

    Todos os grupos anarquistas organizavam festas, bailes, encenaes de teatro e piqueniquespopulares, com o fim de arrecadar dinheiro para os grupos e jornais de propaganda, alm de permitiraos afiliados e aos simpatizantes de se socializarem nos bairros populares das cidades paulistas.

    Entre os militantes libertrios mais famosos deste incio de sculo XX em So Paulo contamos com ositalianos Oreste Ristori, Gigi Damiani, Alessandro Cerchiai, Angelo Bandoni, Matilde Magrassi, os irmosGattai (um deles, Francesco era o pai da Zlia Gattai, viva de Jorge Amado); com os portugueses

    Neno Vasco e Adelino Tavares de Pinho e com os espanhis Rodolfo Felipe, Florentino de Carvalho (cujonome verdadeiro era Primitivo Raimundo Soares), e Antonia Soares. Mas, o mais famoso de todos foicom certeza Edgard Leuenroth (1881 - 1968), filho de alemes, que tomou parte de vrias greves emotins e publicou por dcadas o peridico anticlerical A Lanterna, no qual encontravam espao muitosdos anarquistas que escreviam em lngua portuguesa e que atuavam em So Paulo.

    Todavia, tambm no Rio de Janeiro houve atividade e militncia anarquistas importantes, tanto deimigrantes como de brasileiros natos (ainda que no tenha chegado aos nveis de So Paulo), graas presena de vrios grupos, dentre os quais, o mais importante, o Aliana Anarquista, alm da atuaofundamental de muitos anarquistas na Federao Operria do Rio de Janeiro. Anarquista carioca, foitambm na sua juventude Astrojildo Pereira (1890 -1965), que nos anos 20 aderiu ao marxismo-leninismo e fundou no Brasil o Partido Comunista. Grupos libertrios surgiram tambm em BeloHorizonte e vrias cidade de sul de Minas, em Porto Alegre, Curitiba, Recife e Belm.

    O Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, tem o melhor acervo na Amrica do Sul para estudar omovimento anarquista no Brasil, mas tambm na Argentina e Uruguai. Ao mesmo tempo, graas presena de muitos militantes libertrios imigrados, o acervo do AEL permite complementar a histriados movimentos anarquistas de muitos pases como Itlia, Espanha e Portugal, sendo que muitosdestes militantes voltaram sua terra depois de anos de atividade no Brasil.

    O AEL, de fato, contm um nmero imenso de peridicos libertrios brasileiros (microfilmados ou emoriginal), tanto em lngua italiana como em lngua portuguesa entres os quais se destacam, para operodo 1890-1920: O Amigo do Povo, A Plebe, A Lanterna, A Vida, La Battaglia, La PropagandaLibertaria, Alba Rossa, A Guerra Sociale outros nos quais a participao dos anarquistas foi notvel,como A Voz do Trabalhador, A Lucta Proletria, O Chapeleiro.

    Alm disso, o AEL guarda toda uma srie (tambm numerosssima) de opsculos, folhetos e livrosanarquistas editados no Brasil em vrias lnguas, como em outros pases, em grande parteprovenientes da vasta e importante biblioteca particular do militante brasileiro Edgard Leuenroth, o quepermite traar um quadro amplo da atuao dos anarquistas em terras brasileiras.

    http://www.arquivo.ael.ifch.unicamp.br/textosdidaticos/htm/luigi.htm

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    O ANARQUISMO HOJE

    UMA REFLEXO SOBRE AS ALTERNATIVAS LIBERTRIAS

    "Somos, pois, anarquistas, porque queremos uma sociedade sem governo, uma organizao livre, indo do indivduo ao grupo, dogrupo federao e confederao, com desprezo das barreiras e fronteiras, sendo a associao baseada sobre o livre acordo enaturalmente determinada e regulada pelas necessidades, aptides, idias e sentimentos dos indivduos.

    Neno Vasco

    1. UMA REALIDADE SOMBRIA E CONTRADITRIA

    "O criado arrebatou ao amo seu chicote e se fustigou com ele para assim poder ser amo."Kafka

    Vivemos uma poca de profundas mudanas, da tecnologia s relaes sociais, da economia poltica.Transformaes que no tm, no entanto, qualquer sentido de superao do Sistema - de suasinjustias e irracionalidades -, antes pelo contrrio, so condicionadas pelos seus interessesestratgicos de preservar a Ordem Reinante.

    A derrocada do socialismo de estado no Leste, uma dessas mudanas decisivas que marcaro anossa poca. Um processo de auto-reforma iniciado pela oligarquia burocrtica, saiu do controle eacabou pulverizando um sistema estatista e autoritrio que alguns teimavam em chamar de socialista.Este acontecimento, inegavelmente positivo para os povos que se libertaram daquele sistema terroristade dominao, no deixou de ser contudo, ao mesmo tempo, uma vitria de setores dessa mesmaburocracia que conseguiram preservar seu poder. Mais uma vez, como tem ocorrido nas ltimasdcadas, os diferentes grupos das classes dominantes vo-se alternando no poder em resultado daexausto poltica ou da sua luta interna. Como no caso das ditaduras ibricas e dos governos militareslatino-americanos, no foi a luta dos explorados e dominados que determinou as mudanas e o fimdesses regimes. Quando o povo se apresentou no cenrio, foi para sufragar os novos sistemas dedominao, ou para ser usado como carne para canho em lutas fratricidas, como assistimos naRomnia, Gergia e Iugoslvia.

    Tambm a ideologia liberal saiu vitoriosa, pois a derrota simblica das idias de uma alternativa social,que estiveram presentes nos primrdios da Revoluo Sovitica, ser por muito tempo o tema centralda propaganda capitalista e razo da descrena e desesperana de muitos dos que lutam contra estesistema.

    O socialismo autoritrio saiu do cenrio social derrotado, dando dessa forma a sua derradeiracontribuio ao status quo; ao mesmo tempo que impulsionou a uniformizao e homogeneizao dosistema capitalista escala universal. Uma nova conjuntura assente na mundializao da diviso dotrabalho e na segmentao do mundo - e de cada regio - em guetos de riqueza cercados de misria.

    Um panorama internacional, marcado por uma convergncia quase total entre os principais centros depoder em torno do Washington Consensus, e administrado pelos Sete Mais que usaro seusorganismos internacionais: ONU, CEE, NATO, FMI, BIRD, como instrumentos de gesto, de polcia e

    companhia de seguros da Ordem Internacional.A instrumentalizao da ONU durante a Guerra do Golfo e nos diversos conflitos regionais dos ltimosanos; a manuteno e alargamento da NATO aps a dissoluo do Pacto de Varsvia; a recusa dos EUAde desmantelar o arsenal nuclear; bem como as pretenses hegemonistas da Alemanha dentro da CEE,so entre muitas outras manifestaes, demonstrativas desta nova rearticulao do CapitalismoInternacional sob comando de Washington.

    Neste contexto de restaurao, principalmente nas sociedades de consumo, massificadas emanipuladas por uma rede de propaganda e informao dirigida, as possibilidades de uma alternativasocial, se afunilam. J que os valores libertrios da autonomia, da solidariedade, do livre pensamento edo autogoverno, so dificilmente inteligveis ou aceites pela maioria dos cidados amestrados,desamparados e perdidos num contexto social de individualizao e atomizao extrema. Tornando-seassim incapazes de qualquer reflexo crtica, afundados que esto no minimalismo tico e no cinismopragmtico. O que exprime a maior vitria do sistema: a homogeinizao ideolgica e cultural dassociedades onde predominam o individualismo, a concorrncia e a esquizofrenia dionisaca para usar aspalavras de Carlos Daz.*

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    S os excludos dessa sociedade (e que no aspiram a se integrar no reino da sujeio conformista), ouos que nela no se reconhecem - uma pequena e desarticulada minoria - podem se identificarpotencialmente com esses valores libertrios. Em termos objetivos essa a nossa margem de atuaonas sociedades do chamado Primeiro Mundo. Mesmo que saibamos que esse conformismo majoritrio cclico e pode ser abalado, quer por alteraes socio-econmicas, quer pelo aprofundamento gradualda crise civilizacional que vivemos.

    Outra a situao vivida nos pases do hemisfrio sul - com algumas semelhanas em alguns pasesdo Leste Europeu - onde a super-explorao, a no satisfao das necessidades bsicas e a flagrante

    desigualdade social, que se traduz num verdadeiro apartheid social, abrem espao para a continuidadede movimentos sociais anti-capitalistas mais amplos.

    Olhando ao nosso redor, no seria excesso de pessimismo afirmar que nunca como hoje, as foras doEstado e do Capitalismo foram to fortes e as tendncias libertrias da alternativa social, to fracas.

    No entanto, e apesar disso, persistem contradies e tenses fundamentais no sistema dominante, quese vo acumulando e adquirindo uma visibilidade at hoje nunca vista. A misria absoluta da maioriada populao mundial, que contrasta com a riqueza ostensiva e delapidatria de uma minoria; amarginalizao de jovens, desempregados e velhos nos pases ricos, que aponta os limites deassimilao do sistema; o desenvolvimento da tendncia de crescimento dos empregos informais eprecrios; a desqualificao profissional, o aviltamento do trabalho e o desemprego estrutural,resultante da introduo da automao e das novas tecnologias e, por fim, a violncia e a criminalidadepresentes em todas as grandes cidades, demostram a impossibilidade de solues no quadro dosistema capitalista.

    A natureza predatria da sociedade capitalista e sua iluso no crescimento infinito, s pode levar aoesgotamento de recursos, destruio do meio ambiente, reverso destrutivo desta forma de"progresso", que junto com a utilizao arbitrria e irracional das tecnologias, impe aos gestores dadesordem industrial o uso instrumental de polticas de restries ambientalistas. nesse sentido quedeve ser entendido a panacia do "desenvolvimento sustentvel" presente do discurso atual dos donosdo Poder e em particular do Banco Mundial. Discurso ideolgico que, contudo no aponta uma soluoharmoniosa para o problema da pobreza, do desenvolvimento humano e da utilizao das tecnologias,questes centrais da nossa poca.

    O capitalismo pode sentir a necessidade de contabilizar os prejuzos ou as ameaas futuras, mas nopode assimilar os questionamentos radicais levantados por libertrios e ecologistas. Esses problemas

    s podem ser resolvidos no contexto de uma sociedade descentralizada e autogerida, capaz de criar econtrolar formas tecnolgicas adequadas a um desenvolvimento integrado, auto-sustentado e solidrio.Nem o crescimento zero, nem o desenvolvimento sustentvel so possveis numa economiadeterminada pelo lucro e num mundo marcado pelo absurdo do consumismo e do desperdcio dassociedades ricas e pelas necessidades bsicas no satisfeitas das sociedades pobres.

    De Bopal e Chernobyl ao contrabando de plutnio, a sociedade industrial manifesta-se intrinsecamentedesordenada e ameaadora para o futuro dos povos.

    Ao nvel poltico h uma tendncia generalizada para a restrio das liberdades e garantiasconquistadas em outras pocas. O que se reflete diretamente no ordenamento jurdico, com areintroduo de conceitos e prticas autoritrias e inquisitrias no direito penal e processual e com odesmantelamento dos direitos sociais e trabalhistas que as lutas operrias impuseram a partir do

    sculo XIX.A democracia representativa se esvazia face inexistncia de escolhas reais e transformao daseleies em simples competies de marketing, onde o resultado sempre incuo para as elites eburocracias dominantes. Uma crise de legitimidade que ampliada pela crescente burocratizao doEstado e pelo fato das decises econmicas e polticas mais importantes serem tomadas, tanto no nvelprivado, como no nvel internacional, fora do chamado controle do Estado de Direito. O mesmoocorrendo com a maioria das decises eufemisticamente chamadas de tcnicas e com aquelas que sotomadas no complexo de segurana, onde predomina o princpio do segredo. A corrupo, por sua vez,afirma-se como tendncia endmica do estado moderno, do Japo ao Brasil, da Venezuela a Espanha,Frana e Portugal, comprometendo as vrias correntes polticas com prticas fraudulentas e ilegais,sem que com isso seja afetada essencialmente a credibilidade que os cidados-espetadores tm emseus partidos. At porque h muito as oligarquias polticas da representao abdicaram de mascararcom a aritmtica do voto seu mandato eleitoral, como j demonstrou h muito tempo o anarquistaibrico Ricardo Mella *. A "lei do nmero" um falso instituto democrtico, tanto mais que at asmaiorias eleitorais esto encolhendo a olhos vistos, sendo o governo efetivamente exercido por

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    minorias, credenciadas minoritariamente nas chamadas eleies democrticas e o Poder pororganizaes e instituies que esto longe do controle dos cidados.

    Mesmo face a esta realidade cada vez mais visvel no mundo contemporneo, a descrena na poltica,que se traduz no crescente abstencionismo em quase todos os pases, no contexto atual s serve parareforar o cinismo individualista do egocentrismo dominante: "cada um por si, e deus contra todos."

    Afirma-se assim a tendncia para um estatismo autoritrio de novo tipo, afastado do modelo de Estadode Direito clssico e mais ainda do Welfare State, um Estado j no mais preocupado com aparticipao e os direitos dos cidados. Mas to s em garantir as condies de produo, reproduo e

    movimento do Capital: um novo tipo de Estado-Polcia, que vem perdendo a sua dimenso nacional,para se tornar a repartio local de uma nova forma de Estado supranacional em gestao.

    Os fenmenos incontrolados da violncia e da guerra demonstram, de forma inequvoca, que nenhumEstado ou governo mundial poder administrar sociedades cindidas pela misria e injustia. A rupturados laos tradicionais da solidariedade social, agravada por uma cultura de concorrncia, s pode levara uma guerra de todos contra todos, que se manifesta na indiferena perante os miserveis, noconsumo generalizado de drogas, na violncia desesperada das grandes cidades, em guerras fratricidascomo na Iugoslvia e nos genocdios de frica. As metrpoles - mesmo dos pases ricos - com seusbolses crescentes de miserveis e marginalizados tendem a constituir-se como um cenrio deviolncia onde nenhum exrcito particular, ou condomnio das elites, desses que proliferam em Madri,Rio de Janeiro, ou Los Angeles, podero garantir uma existncia segura e despreocupada como a queas classes dominantes se habituaram a usufruir no passado.

    Neste panorama sombrio, o caminho que estamos a percorrer pode abrir, mesmo assim, novaspossibilidades: o esvaziamento do sentido social do Estado e sua crise de legitimidade, pode facilitar areaproximao dos movimentos sociais do pensamento e da prtica anti-estatista libertria.

    Tambm a derrocada do mito do socialismo de Estado, deixa em aberto o campo da alternativa real aossistemas de dominao, onde se poder afirmar o socialismo libertrio. Com a derrota da estratgialeninista de tomada do poder, de utilizao do Estado para a criao de um "socialismo" por etapas, eda derrocada do mito da excelncia da economia centralmente planejada, que s gerou instabilidade,desigualdade e burocracia, a pertinncia dos valores anarquistas, do socialismo orgnico, federalista edescentralizado, torna-se ainda maior para os que no abdicam de pensar e lutar por uma alternativaao que a est.

    O capitalismo que persiste como barbrie perdura ante uma contradio bsica do nosso tempo quepode ser resumida nas palavras de Marcuse: "A revoluo mais necessria, parece ser a maisimprovvel." Improvvel porque somente fortes movimentos sociais autnomos e libertrios poderiamromper radicalmente a teia de um sistema repugnante que envolve todas as classes e grupos sociais. Ehoje eles so minoritrios.

    A partir daqui, de uma realidade adversa mas contraditria, o anarquismo pode lutar por retomar o seupapel nos movimentos sociais - nos velhos e nos novos movimentos -, o que vai depender, pelo menosem grande parte, da vontade, lucidez, e ao, dos libertrios.

    Por mais que os idelogos do Poder e a corte de aclitos arrependidos, proclamem o fim da Histria,ela teima em afirmar que s morrer com o prprio homem. Mesmo que no possamos descartar ahiptese j um dia levantada por Mannheim de o mundo "estar entrando numa fase de aparnciaesttica, uniforme e inflexvel."

    Mesmo assim o futuro ser sempre uma possibilidade em aberto onde os seres humanos, com todas ascondicionantes culturais e materiais, podero realizar suas utopias. Para ns anarquistas, o socialismolibertrio, a comunidade orgnica da Humanidade, continua sendo um imperativo para a humanizaodas sociedades.

    2 O DECLNIO DO ANARQUISMO, ALGUMAS DE SUAS CAUSAS

    "Mas uma grande idia no pode germinar num s dia, por mais rpida que seja a elaborao e a difuso de idias durante osperodos revolucionrios."Piotr Kropotkin

    O declnio histrico do anarquismo tem sido ao longo de dcadas apresentado por seus opositores - emparticular os marxistas - como uma decorrncia do processo histrico de transio de sociedades pr-capitalistas para o capitalismo, e de substituio dos artesos pelo proletariado industrial. Essa teseque tem como expoentes historiadores do tipo de Eric Hobsbawn dificilmente resiste a uma anlise

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    mais detalhada. Apresentando-se sob o rtulo da cientificidade da histria e sua "neutralidade", maslogo denunciada pelos impulsos exegticos da dogmtica leninista de Hobsbawn sempre que se refereao anarquismo, chegando s raias da m-f e de distoro da realidade histrica em vrios de suasobras*. Outros historiadores mais conhecedores do anarquismo como Rudolf de Jong ou Carlos daFonseca j demonstraram como o movimento anarquista do sculo XX estava amplamente implantadoentre os tralhadores industriais e nos principais centros operrios da poca: "Que Paris, Toulouse,Barcelona, Milo, Rio de Janeiro, So Paulo, Buenos Aires, Montevideo ou Tquio a ocupem lugares degrande importncia constitui a negao das razes rurais do movimento." **

    Mas se para os pensadores liberais ou para os marxistas o declnio do anarquismo uma naturalinevitabilidade histrica, para muitos anarquistas um incompreensvel acidente, nos dois casos temficado sistematicamente ocultas as razes que explicam tal declnio.

    Para compreendermos a situao atual do anarquismo, os principais problemas com que se confronta eas possibilidades que se abrem, teremos de rever sua fase de declnio, que se estendeu pelas dcadasde 20 e 30 e culminou com a derrota da Revoluo Libertria de 1939 na Espanha.

    A conjugao de mltiplos fatores adversos, que os anarquistas foram incapazes de entender ou decontornar na conjuntura poltica e social da poca, o que explica esse esvaziamento progressivo domovimento.

    a) Se existe uma causa que deva ser apontada em primeiro lugar essa a resultante dastransformaes sofridas pelo capitalismo e pelo Estado, nessas primeiras dcadas do sculo.

    A intensificao das lutas operrias a partir de finais do sculo XIX, o espectro da Revoluo Social e asmudanas tecnolgicas e organizacionais levaram o Capital a iniciar uma poltica redistributiva nospases industrializados, o que permitiu uma expanso do processo produtivo e acima de tudo a adesodos trabalhadores ao sistema. O acesso ao consumo tornou-se assim o antdoto contra a revolta e foium fator primordial para a adeso dos trabalhadores lgica normativa do capitalismo.

    O surgimento do Estado intervencionista, que se insere neste processo de mudanas estruturais - sejana sua verso corporativista-fascista, seja na de Estado de Direito Social -, levou ao reconhecimentodos direitos econmicos e sociais dos trabalhadores e a uma demarcao de limites ao capitalismo delivre concorrncia e livre explorao do sculo XIX.

    A educao e a sade pblica tornaram-se objetivos de Estado e os direitos trabalhista: descanso,frias, assistncia social e reforma, passaram a fazer parte das polticas de governo. O movimento

    operrio conseguiu impor algumas das suas reivindicaes histricas, mas a troco de uma sujeio aoEstado que se traduziu na institucionalizao dos conflitos laborais, atravs de regras de arbitragemditadas por esse mesmo Estado. Os governos criaram um novo departamento da conciliao social: oMinistrio do Trabalho, que juntamente com tribunais e outros rgos especializados passaram ainterferir nas lutas operrias, na tentativa de desarticular a ttica radical do confronto de classesaplicada pelo sindicalismo revolucionrio e pelo anarco-sindicalismo.

    O ordenamento jurdico passou a reconhecer como direitos as organizaes operrias, as reunies, asmanifestaes e greves, mas deu-lhes um enquadramento legal que lhes retirava todo o potencialconflitivo. Em contrapartida a ao direta, a sabotagem, o boicote e a greve de solidariedade passarama ser criminalizadas e reprimidas de forma ainda mais violenta, estabelecendo-se claramente o limiteadmissvel para o sindicalismo: a representao corporativa dos problemas operrios.

    Tambm o capital passou a aceitar o sindicalismo dentro desses limites, usando um duplo critrionegocial: ao fazer concesses s exigncias de sindicatos confiveis e reprimir as que tivessem umadinmica radical. Os episdios do "pistoleirismo" capitalista nessa poca, da Espanha aos EUA, so pordemais conhecidos. O sindicalismo que nascera como emanao da vontade de emancipao domovimento operrio, e sua forma auto-organizativa por excelncia, tornou-se a partir de ento umreflexo das intervenes - diretas e indiretas - do Estado e seu ordenamento jurdico.

    O direito trabalhista, a institucionalizao das negociaes sindicais, sujeitas a ardilosas anlisesjurdicas e econmicas, favoreceram a burocratizao dos sindicatos e em muitos casos exigiram-na.S atravs da criao de estruturas administrativas e de assessoria de especialistas do acordo:advogados, economistas, socilogos e um sem nmero de funcionrios exteriores ao movimentooperrio, poderiam os sindicatos enquadrar-se neste contexto negocial e nele obter vantagens. Atentao corporativista que nunca chegou a desaparecer do sindicalismo, mesmo nas fases em que sepotenciavam mais as formas revolucionrias do confronto de classes , tendo inclusive originado emquase todos os pases histricas polmicas entre anarquistas e sindicalistas, tornavam-se agorapreponderantes. *

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    A combatividade dos sindicatos e dos militantes operrios, passava a no ter correspondncia diretacom a eficcia na conquista de melhorias contratuais. Os mais eficazes passaram a ser os mais hbeisnas negociaes, o que normalmente se traduzia na cedncia sistemtica perante as imposiesestratgicas do Capital.

    Estavam assim criadas as condies para a derrota do sindicalismo anarquista, que se sustentava naconscincia revolucionria, na ao direta e na auto-organizao. Tornava-se "impossvel" umsindicalismo onde no cabiam funcionrios e dirigentes profissionais e para quem - evocando aconsigna do sindicalismo revolucionrio dos EUA da IWW - "trabalhadores e capitalistas no tm nada

    em comum".Neste panorama de conciliao, em que o Estado ganhava uma autonomia relativa em relao sclasses dominantes, assumindo um rosto pacificador, independente, social, deixava de haver condiespara a inteligibilidade do discurso anti-estatista dos anarquistas. A maioria dos trabalhadorescomearam a ver o Estado como uma entidade beneficente que garantia a educao, a sade, ahabitao e a velhice dos cidados e no mais como aparelho central de gesto da dominao.

    b) Uma segunda causa pode ser apontada: o aparecimento de ditaduras terroristas em vrias regiesdo mundo. Desde logo o nazi-fascismo e suas variantes ibricas, bem como os governos de ocupaoresultantes da expanso alem. As ditaduras na Amrica Latina de Vargas e Pern e na Rssia dosburocratas comunistas.

    A represso desencadeada tornava impossvel a sobrevivncia do anarquismo como movimento amplo

    e aberto, principalmente das organizaes anarco-sindicalistas. O anarco-sindicalismo que foi aestratgia que abriu caminho influncia generalizada das idias anarquistas na maioria dos pases,no tinha condies de sobreviver em tal situao de represso. S um movimento estruturadoclandestinamente baseado em grupos de afinidade poderia resistir. * Mas, mesmo nesse caso, asobrevivncia dependeria a longo prazo de apoio externo, seja na forma de auxlio material, seja na deterritrio de exlio e articulao. E os anarquistas jamais dispuseram de forma continuada dessascondies. **

    A priso, morte e exlio de um nmero incalculvel de militantes, juntamente com a impossibilidade demanter a propaganda e interveno no movimento social, iria levar, em muitos pases, ao quaseesvaziamento do movimento e a uma ruptura entre geraes.

    Quando se tornou possvel a rearticulao, os anarquistas estavam cindidos em duas geraes

    distanciadas por dcadas, que s com dificuldade se comunicavam e relacionavam.c) Finalmente a terceira causa teve a ver com a vitria na Revoluo Russa do leninismo e asubsequente criao dos partidos comunistas. Ao se tornar a estratgia da vitria sobre a burguesia -ou ao ser interpretado como tal - reintroduziu o marxismo com carisma revolucionrio no movimentooperrio internacional. A iluso de que era esse o melhor, ou o mais eficiente, caminho para chegar aosocialismo, somado falta de informao sobre os rumos da revoluo sovitica, levou muitosanarquistas e outros trabalhadores ao leninismo. Uma adeso mais pragmtica que terica, que osfazia ver na sociedade russa uma concretizao das idias libertrias. E os empurrava criao deorganizaes que misturavam na sua forma e no seu discurso os princpios anarquistas com ummaximalismo ou leninismo incipiente. Em muitos pases os partidos comunistas nasceram de rupturasno seio da corrente social-democrata, mas em quase todos houve uma participao significativa detrabalhadores oriundos do anarco-sindicalismo. No caso de Portugal e do Brasil, os Partidos Comunistas

    foram uma criao de anarquistas. Esta atrao pelo leninismo viria a ser ainda maior entre osintelectuais anti-capitalistas que se deixaram conquistar pela idia de criar o socialismo a partir doEstado, uma manifestao de despotismo esclarecido, baseado na concepo de que o marxismo seriaa "cincia" da transformao social; e que aos intelectuais estaria reservado um papel especial navanguarda dirigente. Nascia assim o "socialismo dos intelectuais", to bem dissecado por Makhaiski.

    Mas foi no movimento operrio que as divises introduzidas pelas divergentes concepes desocialismo, teriam maiores conseqncias, j que diminuram a prpria capacidade de resistncia sditaduras que se comeavam a instalar. Esta situao se agravou aps a adoo pelos comunistas deuma estratgia internacional definida pelo COMITERN e ISV de infiltrao e ciso dos sindicatos deorientao anarco-sindicalista.

    A ao insidiosa dos comunistas foi determinante para desarticular o anarco-sindicalismo e possibilitou-

    lhes a criao dos sindicatos atrelados, correias de transmisso do partido, j que para o leninismo eraessa a funo instrumental das organizaes operrias.

    Com o agudizar da represso e, na medida em que os comunistas conseguiram sobreviver naclandestinidade, tornaram-se para muitos trabalhadores a nica fora capaz de articular as lutas

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    operrias contra as ditaduras e o capitalismo. Soma-se a isso a maleabilidade ttica que os levava ano desprezar a luta pelas pequenas reivindicaes e a integrar conceitos conservadores enacionalistas em seu discurso, o que se adequava a um movimento social em que se expandia oreformismo. Comeava assim a dar-se a hegemonia comunista nos meios operrios, processo queestava concludo nos finais da dcada de 40.

    A derrota da Revoluo em Espanha, foi o culminar desta tendncia e sua mais evidentedemonstrao. Aquele que foi o mais avanado esboo de transformao social libertria, foiempalmado entre fascistas e estalinistas, ante a indiferena conivente dos Estados democrticos, na

    mais sinistra combinao de foras contra-revolucionrias de nossa poca. Essa seria a ltima grandemobilizao popular das idias anarquistas e a mais trgica das derrotas. O socialismo libertrio, quedesde o sculo XIX tinha tido um dos seus basties na Pennsula Ibrica, era esmagado aps umaguerra civil que levaria morte e ao exlio milhes de militantes. Episdio da histria socialcontempornea que rene contraditoriamente os erros, os limites e as possibilidades criadoras doanarquismo. Nunca o anarquismo teve um papel to decisivo nas mudanas profundas de umasociedade quanto na Revoluo Espanhola, mas tambm nunca ficou to prximo de se descaraterizarcomo alternativa s instituies estatizantes e burocrticas. A participao de alguns de seus maisconhecidos militantes no governo, mesmo no colhendo a adeso de parte do movimento, nemchegando a gerar um anarquismo poltico de feio maximalista, foi um colaboracionismo que deixouseqelas profundas no movimento libertrio.* Dessa experincia tambm no conseguiram osanarquistas extrair uma teoria e uma prtica adequada para lidar com o fenmeno do Estado e doPoder, nem desenvolverem a partir das realizaes construtivas da Revoluo - para empregar aspalavras de Gaston Leval - uma alternativa de autogesto generalizada para as modernas sociedadescomplexas.

    Hoje, poderemos a partir destas mesmas causas que se combinaram para debilitar o movimentoanarquista, entender as perspectivas abertas pela derrocada de dois mitos: o do Estado Socialista e odo Estado do Bem Estar Social. Agora, mais de cinqenta anos aps a Revoluo Espanhola de 1936,talvez os anarquistas possam refletir sobre todo esse perodo de esperanas e derrotas dosmovimentos libertrios.

    Mesmo que hoje tenham desaparecido as causas fundamentais do declnio do anarquismo, isso ocorrenuma fase em que o pensamento e a prtica libertria atingiram seu ponto mnimo e quando ahomogeneizao ideolgica do sistema capitalista atingiu seu pice. Certamente por essa razo odesgaste do Estado e da representao poltica s tenha gerado um generalizado desinteresse cnicocom os destinos da sociedade e no mais uma busca de uma alternativa ao existente.

    Essa descrena generalizada, contraditoriamente, pode representar o comeo de uma nova esperana:se no mais acreditamos no Estado e na democracia representativa, ento podemos nos auto-organizar e comear a imaginar formas de autogoverno para as sociedades. E a nos reencontramoscom o velho desafio do anarquismo!

    3. UMA POCA DE DESENCONTROS

    "Os bois passam debaixo da cangaos cegos vo aonde a gente queira lev-losMas o homem que nasce livre tem o seu prprio caminho..."

    Herbert Read

    A partir dos anos 40 o anarquismo tornou-se uma plida imagem do que fora no passado, nopossuindo sequer j o vigor, a combatividade e a obstinao dos primeiros grupos que se formaram nadcada de 60, no sculo XIX. A fragilidade do movimento - que se prolonga at agora - manifesta-sena sua quase ausncia dos movimentos sociais, na sua incapacidade associativa e na reduzidainfluncia no pensamento crtico atual. Derrotado em Espanha, enfraquecido pelas mortes e prises,dividido pelas mgoas do exlio, o anarquismo perdeu a sua ltima grande referncia. Por todo o lado,na Europa e na Amrica, os movimentos sociais reapareciam enfeudados a populismos estatizantes ouatrelados estratgia comunista das "correias de transmisso", sendo meros instrumentos da polticapartidria.

    Gradualmente o anarquismo perdia a sua principal vitalidade das dcadas anteriores que lhe era dadapelos camponeses das diferentes comunidades do estado espanhol, pelos operrios de Barcelona, Riode Janeiro, Buenos Aires, pelos ncleos libertrios da sia e pelos internacionalistas que corriam aAmrica e a Europa agitando as idias de uma sociedade sem Estado.

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    Os grupos que persistiam em pases como Frana e Itlia era o que sobrava desse velho movimentoproletrio e revolucionrio que tinha agitado a Europa nos ltimos cem anos, mas a sua incapacidadede penetrao nos movimentos sociais e entre a juventude era uma constatao evidente.

    Foi ento, que de forma imprevisvel, no final dos anos 60, irromperam novamente as idias libertrias,a partir de uma gerao quase sem contato com o movimento anarquista histrico.

    A crtica da sociedade industrial, a ecologia, o pacifismo e o comunitarismo nascidos no movimentocontracultural da Amrica do Norte, desenvolveram-se em paralelo ao anti-capitalismo radical dos

    jovens estudantes e proletrios da Europa de 68. Os valores libertrios que os anarquistas tinham

    assumido no movimento social, ao longo de dcadas, emergiam novamente de forma criativa eespontnea. Esta nova gerao, ao se aproximar do velho movimento iria se confrontar com oproblema da distncia que os separava dos militantes provindos das lutas dos anos 30, na sua quasetotalidade operrios autodidatas. Seria complexa e difcil essa integrao: a viso do mundo, odiscurso, a estratgia, a origem social - e at os comportamentos - eram distintos, dificultando que aexperincia e a histria que esses velhos militantes representavam se somasse ao voluntarismo ecriatividade das novas geraes.

    Passaram a coexistir dois movimentos paralelos, com suas publicaes e grupos claramenteidentificveis, que umas vezes se completavam, mas em outras conflitavam. Com o tempo acabarampor estabelecer alguns contatos, ligaes e colaboraes entre si, sem no entanto vencerdefinitivamente essa barreira que os separava. No era o resultado do envelhecimento ou dogmatismodos velhos militantes como alguns afirmavam, mas to s a barreira inexorvel do tempo que afastavaesses experimentados ativistas da realidade da prtica social; e que aos jovens impedia de apreendero conhecimento e a experincia que o movimento histrico havia acumulado. Os grupos surgidos apartir do comeo dos anos 70, iriam ainda ser marcados por uma fraqueza congnita, j que eramconstitudos por estratos sociais que se definem por sua transitoriedade e descontinuidade: jovens eestudantes. No conseguindo superar o maior problema com que se debatia o anarquismo nas ltimasdcadas, o da sua implantao nos movimentos sociais.

    O anarquismo, ao contrrio do marxismo, no acredita na existncia de um sujeito histrico nico epredestinado, uma classe ou grupo social capaz de realizar, em funo de um destino histrico, amudana social. As foras sociais que os libertrios consideravam mobilizveis para um projeto demudana, eram mais vastas e plurais. Desde Bakunin e Kropotkin, sempre estiveram no centro dopensamento anarquista, ao lado do proletariado, os camponeses, todos os explorados e excludos, os

    marginais e jovens, mas enquanto pessoas concretas, sujeitos capazes de assumirem sua liberdade ese autodeterminarem historicamente.* No entanto, condio necessria para a concretizao de umprojeto de transformao social, que esses sujeitos sejam parte de grupos e classes sociais com umaafinidade de interesses e com uma estabilidade e continuidade estrutural, que possibilitem formas deassociao e de luta a prazos mais longos.

    O movimento anarquista s ter condies de retomar uma presena significativa nos movimentossociais, se participar das suas lutas, principalmente as que nascem das condies bsicas de produoe da resistncia s relaes de dominao. J que as fbricas, os escritrios e os outros locais detrabalho dos assalariados, sero sempre - enquanto no existir a robotizao total da produo eprestao de servios - o centro das relaes fundamentais de dominao e, consequentemente, oncleo potencial da resistncia ao capitalismo, onde pode germinar uma alternativa social. Oanarquismo no conseguiu at hoje retomar sua relao histrica com os movimento sociais e,

    particularmente, com a luta operria. O renascimento do anarco-sindicalismo em Espanha, nos anos70, foi um caso nico que resultou de uma longa histria do anarco-sindicalismo e da tradio libertrianesse pas. Mas mesmo a, no se traduziu numa recriao da estratgia anarco-sindicalistaadaptando-a s profundas transformaes da economia e da prpria condio operria, que haviamsido decisivas para debilitar o movimento.

    Os problemas com que se tem debatido a CNT aps sua reconstruo em 1977 resultam em parte - jque temos de reconhecer que existiram tentativas de infiltrao e cerco por parte do Estado -, de duascausas: a primeira foi a incapacidade da CNT romper com o fantasma da histria e se abrir ao novomovimento libertrio que renascia nos anos 70, em Espanha; por outro lado do fato da estratgiaanarco-sindicalista, como se definiu historicamente, no se mostrar operante numa sociedade em queo Capital e o Estado tinham passado por mutaes profundas. Esta constatao no significa aceitarcomo certa e inevitvel a teoria que o sindicalismo morreu ou , hoje, inevitavelmente integrador, emenos ainda, que no existe espao para uma estratgia autnoma de confronto anti-capitalista nasatuais relaes de trabalho. Embora tenhamos de reconhecer que essa margem se reduziu na maioriados pases de capitalismo maduro, onde a conscincia da sujeio desapareceu perante a perspectiva

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    de acesso ao consumo. E onde uma nova e radical diviso se cria no mundo do trabalho: a que nasceda oposio entre os garantidos e os excludos das relaes de produo.

    Mesmo assim a existncia de organizaes anarco-sindicalistas em Espanha, em Frana e na Sucia, ede diversos ncleos sindicalistas revolucionrios em outros pases, no deixam de ser um desafio quese mede pela distncia que vai desse sindicalismo autnomo ao sindicalismo atrelado, corporativista, eburocrtico.*

    Mesmo assim temos de reconhecer com lucidez os limites atuais da prtica sindical que tende a sedesvirtuar na prtica negocial esse o drama da CGT em Espanha , ou a se encurralar na

    intransigncia do confronto, impedindo os ganhos imediatos, que so uma componente necessriadessa forma de organizao. Ao contrrio da viso simplista de alguns anarquistas, o sindicalismoburocrtico e corporativo predominante atualmente, no um produto da traio de dirigentesreformistas, mas a expresso do movimento operrio que aderiu aos valores e lgica do capitalismo.A burocracia sindical, tal como a burocracia poltica, s reflete a imagem dos movimentos sociaiscontemporneos.

    Esta reavaliao das relaes anarquismo X sindicalismo, e a definio de uma estratgia atual para aao no mundo do trabalho no deixam de ser importantes, mesmo que, levando em considerao asituao atual na maioria dos pases, as perspectivas para os anarquistas so, quando muito, a decontribuir para a criao de ncleos de autonomia e auto-organizao nos locais de trabalho, aplicandoas idias e tticas do anarco-sindicalismo adequadas a cada situao.

    Hoje o sindicalismo para ser revolucionrio, teria de se tornar mais abrangente, mesmo ao nvelreivindicativo, rompendo as amarras do reacionarismo corporativo. Alm das tradicionais lutassalariais, de reduo de horrio, de melhoria das condies de trabalho e contra o desemprego, teriade passar a intervir no redimensionamento do papel do trabalho e da funo do trabalhador. E, indomais alm, atuar nas questes que envolvem o mundo do trabalho, como os transportes, habitao,urbanismo, consumo e qualidade de vida, j que so aspetos fundamentais, se partirmos de uma visointegrada das relaes de dominao e de suas conseqncias na existncia quotidiana dosassalariados.** O sindicalismo revolucionrio teria de retomar a tradio perdida de ser o espao deconstruo de relaes de afinidade e solidariedade e de criao de uma contracultura de resistncia.Rompendo a barreira contempornea estabelecida entre os trabalhadores garantidos e excludos, entreos que possuem trabalho precrio e trabalho seguro, criando formas de organizao e luta solidria

    junto com os desempregados e aposentados.

    As mudanas estruturais por que est passando a sociedade capitalista tem como uma de suasconseqncias mais importantes o declnio da coeso e conscincia dos trabalhadores, bem como aperda da identidade construda ao longo do sculo XIX e primeiras dcadas do nosso sculo. O Estadodo Bem-Estar, a sociedade de consumo e as tecnologias de massificao, em particular o rdio e ateleviso, podem ser apontadas como algumas das razes fundamentais para esta realidade que semanifesta de forma clara no primeiro mundo e j adquire os mesmos contornos nos pases do sulindustrializados e urbanizados. Onde o espao comunitrio e da socializao d lugar realidademeditica da televiso omnipresente. Se num primeiro momento o sindicalismo e o anarquismoconseguiram se apropriar da tecnologia da imprensa e a partir dela construir uma cultura operria elibertria, o mesmo processo no ocorreu em relao rdio, televiso, vdeo e agora em relao informtica, que foram usados quase exclusivamente pelo sistema para unificar ideolgica eculturalmente toda a sociedade, destruindo as diferenas e neutralizando a resistncia cultural que se

    havia gerado a partir da crtica anti-capitalista. Essa estratgia teve um outro desdobramento, que foio da fragmentao do espao coletivo quotidiano das classes dominadas, induzidas por essas mesmastecnologias a se fecharem sob o espao individual e privado do lar. A reconstruo desse espaoperdido da sociabilidade, da comunicao e da cultura dos "de baixo", possivelmente o maior desafioque um projeto libertrio ter de enfrentar.

    O anarco-sindicalismo, principal responsvel pela criao dessa cultura operria em muitos pases, foium exemplo de criatividade dos operrios libertrios e de sua adaptao s necessidades de luta dapoca em que surgiu. Foi tambm a aplicao concreta de estruturas auto-controlveis e auto-dirigidas sociedade industrial.

    Sua recriao atual, ter de afastar qualquer pretenso hegemonista ou de imitao saudosista econsiderar que uma das estratgias possveis de luta anti-capitalista. Talvez a que maiores

    potencialidades ainda tem entre os setores sociais sujeitos as condies de trabalho violentas ou emregies do mundo onde o quotidiano de misria e explorao mantm desperto o instinto combativodos assalariados.

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    Mas no se pode perder de vista que toda a anlise social, centrada exclusivamente sobre as relaesde produo, no d conta de muitos problemas j levantados no passado e, menos ainda, dos queadquiriram maior importncia nos ltimos anos, atravs dos novos movimentos sociais, nascidos comoresposta auto-organizativa a situaes e conflitos diferenciados. O anarquismo que j no passado semanifestava e agia nas mais diferentes reas, do anti-militarismo e pacifismo, ao naturismo, doesperanto s experincias educacionais, deveria estar especialmente atento s potencialidadeslibertrias destes novos movimentos. Mas, sem deixar de lhes apontar a principal limitao que a deassumirem uma viso fragmentada dos problemas estruturais da sociedade, perdendo a noo do todosocial.

    Da organizao dos consumidores, ao ambientalismo, da ecologia ao feminismo, do anti-militarismo sprises, muitos so os objetivos e as formas de associao que potenciam a auto-organizao dediferentes setores da sociedade em defesa dos seus interesses e, certamente, em todos os casos podehaver uma proposta e uma presena libertria que potencie a articulao e globalizao de cada umadessas lutas.

    A ecologia social e o anti-militarismo, pelas suas tradicionais afinidades com os valores libertrios, soreas onde a militncia anarquista mais se tem exprimido, mas tambm a as potencialidades solimitadas, se for perdido o sentido da estratgia global de ruptura.* No possvel construir umaalternativa social a partir do espao fragmentado da particularidade e da diferena, mas somente apartir da cooperao em torno de um projeto de mudana que una diferentes grupos e tendnciassociais. Caso contrrio acabaro engolidos - como temos assistido nos ltimos tempos - pelo

    movimento permanente de integrao, atravs do qual o sistema tende a recuperar em seu benefciotoda a crtica parcelar.

    Tambm as lutas relativas s liberdades se tem tornado mais comuns nos chamados pasesdemocrticos, sendo decisivas para impedir a expanso do Estado autoritrio. Os anarquistas no sepodem omitir com o incuo pretexto de que em muitas delas esto em causa apenas regras jurdicas,

    j que so estes espaos de liberdade que o movimento social imps ao Estado, como seus direitosque esto ameaados.

    As garantias penais e processuais, os direitos dos presos, o direito de asilo e de emigrao, so entremuitos outros, os que os Estados vm paulativamente eliminando ou reduzindo. A nossa crtica aoEstado se concretiza no estabelecimento de metas imediatas para a luta social nesta rea.Contrariamente a uma recusa abstrata ou a uma concepo doutrinria, devemos apoiar uma prtica

    radical anti-estatista, que em cada caso e situao se oponha expanso e hegemonia das relaes dePoder, e favorea a autonomia e a criao de espaos de liberdade a partir da prpria sociedade.

    Todas estas possibilidades, em aberto, para nossa interveno, esto condicionadas pela capacidade denos articularmos e associarmos, j que s movimentos sociais organizados tm condies paratransformar qualquer situao social. Nossa fragilidade organizativa: incapacidade de associao ecoordenao em cada regio e mais ainda internacionalmente, so por demais evidentes para noserem vistas como um dos problemas chaves do que genericamente chamamos de movimentolibertrio. No se solucionando isto, ser impossvel qualquer ativismo profcuo, qualquer resultadoduradouro para a nossa militncia ou a transmisso de uma cultura libertria entre geraes.

    O processo de globalizao da sociedade industrial, est entrando num momento decisivo, onde ointernacionalismo e a solidariedade dos povos o nico antdoto contra a xenofobia e a ghuetizao de

    um mundo repartido entre o desperdcio da abundncia, no Norte, e a mais absurda das misrias noSul. Usando as palavras de Noam Chomsky : "o principal hoje que se a resistncia popular quiser teralguma significncia, ter que ser internacional..., isto comea a ser compreendido e preciso quehaja algum tipo de reao em escala internacional, um tipo de solidariedade transnacional entre pobrese trabalhadores".

    Por essa razo podemos afirmar que, de forma imediata, teremos de encarar a questo da associao,articulao e coordenao de nossas prticas. O que passa tambm pela clarificao do papel daorganizao libertria, que , antes do mais, o de criao de um espao coletivo, livre e fraterno, ondese forjem novas relaes sociais e se viva de acordo com os valores da cultura libertria, comoaconteceu no passado quando "os trabalhadores e os pobres no estavam nem de longe to isolados enem submetidos ao monoplio ideolgico da mdia dos negcios."* Foi por isso que a esperana e autopia se reproduziam nesses espaos libertados onde viviam os excludos. esta uma das funes

    que temos de recuperar para as associaes libertrias, ao mesmo tempo que se assumam como umncleo de difuso das idias anarquistas e de articulao da luta de resistncia anti-capitalista.

    As formas concretas de associao podem ser diversas, das organizaes anarco-sindicalistas, sfederaes de grupos de afinidade, das redes de informao, s associaes de ateneus e centros de

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    essa subespcie de tericos contempladores. Mesmo os que como intelectuais brilhantes comoKropotkin, Reclus ou Santillan acabaram no dispondo do tempo e meios que lhes possibilitassemprocurar suas cadeiras em alguma biblioteca do exlio. Mas certamente difcil encontrar movimentosocial que tenha conseguido produzir tantos autodidatas crticos e pensadores quanto o anarquismo,usando a deliciosa expresso do historiador do anarquismo Edgar Rodrigues - tambm ele umautodidata - que movimento conseguiu produzir um "engraxate e intelectual" como OssepStefanovetch ucrniano anarquista que viveu no Brasil ?

    A prpria natureza heterodoxa do anarquismo impede a sua recuperao como mera ideologia, at

    porque desde Proudhon se recusava a construo de um sistema fechado e auto-suficiente:"Acolhamos, encoragemos todos os protestos, desonremos as excluses, todos os misticismos: noolhemos jamais uma questo como esgotada, e quando tivermos usado at ao nosso ltimoargumento, recomecemos, se for preciso, com eloquncia e ironia".* O que tambm o diferenciavadaquela corrente que se proclamava do socialismo cientfico e que era uma manifestao da imensaarrogncia e dogmatismo intelectual.

    No entanto, na medida em que o anarquismo se foi afastando da realidade social, perdendo suas razesnos movimentos sociais, tambm ele se encaminhou para a cristalizao terica, que se traduziu noseu fechamento como pensamento doutrinrio, numa reflexo acadmica sem qualquer contedo decrtica social ou num niilismo chique para consumo de classe mdia.

    O anti-dogmatismo essencial do anarquismo tambm no justifica que nos possamos agarrar aalgumas idias gerais e excluir o sentido da dvida sistemtica. Pelo contrrio, nos exige umanecessria recriao permanente, o que nos impe um aguado sentido autocrtico. A complexidadesocial atual, os problemas sociais e polticos que hoje temos de encarar e a ampliao permanente doconhecimento, deve-nos levar a novas elaboraes tericas e a novas estratgias de ao. No comoforma de adaptao realidade - do tipo libertarista ps-moderno - mas sim como meio de responder necessidade de crtica dessa realidade.

    Conjugar o sentido utpico do anarquismo com a reflexo terica e uma prtica social, essencial paraque o pensamento libertrio adquira uma dimenso social revolucionrio. Caso contrrio ficarreduzido a uma tica de comportamento ou a uma seita messinica sem qualquer condio deinterao com os acontecimentos reais.

    Quanto s novas teorizaes que tm ocorrido nos ltimos anos, um pouco por todo o lado, na linhalibertarista norte-americana de um Robert Nozick*, muito se afastou dos valores radicais do

    anarquismo para se aproximar do liberalismo, que no tem correspondncia com a realidade cnica dosistema dominante. Mais que um pensamento reformista - j que nem radicais so em suas exignciasde reforma -, um pensamento acomodado, incapaz de questionar profundamente a realidade eapostar na vontade e desejo utpico que sempre estiveram presentes nos movimentos sociais dosoprimidos.

    Ao contrrio do que apregoam os libertaristas, o pensamento anarquista clssico sobre o Estado e oPoder, mantm toda a sua pertinncia, e o conceito libertrio de uma comunidade autogovernada,descentralizada e federalizada mais atual que nunca. A intuio e lucidez na crtica do socialismoautoritrio e do Estado, foi confirmada pela histria dos regimes das burocracias vermelhas.

    O que no nos impede de reconhecer que as idias expostas por Proudhon, Bakunin, Kropotkin,Malatesta e Landauer, entre outros, no tiveram os desenvolvimentos posteriores que se faziam

    necessrios. Muitas questes abertas pela experincia da Revoluo Sovitica e da Revoluo libertriaem Espanha, bem como muitas outras surgidas com as mutaes ocorridas na sociedade industrial(das novas tecnologias, ecologia), esto em aberto. Uma teoria do Poder; uma concepo libertriade organizao; a anlise das formas de autogesto; os problemas de escala e da complexidadetecnolgica na sociedade contempornea; um entendimento dos mecanismos psicolgicos daagressividade e da dominao; as relaes de micropoder na famlia e nos grupos, um estudo daspotencialidades libertadoras da robtica e da telemtica, so entre outros temas que precisam de seraprofundados desde uma perspectiva libertria.

    Enquanto o anarquismo esteve no centro dos movimentos sociais e se afirmava como pensamentorebelde, manteve sua capacidade de atrao sobre uma intelectualidade desvinculada e crtica. At aocomeo do sculo conhecidos pensadores se interessavam pelas idias e as principais figuras domovimento como Kropotkin e Reclus, encontravam-se envolvidas nos grandes debates intelectuais dapoca. Nos anos 20 ainda muitos pensadores da importncia de Buber, Lukcs e Benjamin estavamprximos de posies libertrias, o mesmo ocorrendo com muitos escritores e artistas.* Aps os anos30, a atrao exercida pelo socialismo possvel abriu o caminho hegemonia do marxismo-leninismonos meios intelectuais, passando o anarquismo a persistir como referncia s em alguns meios

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    dissidentes: dos tericos do conselhismo, pacifistas, ou escritores como Pert, Breton, Orwell, Huxley eCamus.

    Um movimento inverso, embora minoritrio, haveria de ocorrer, quando a conscincia dos crimescometidos pelas burocracias vermelhas, aproximou do anarquismo importantes intelectuais oriundos domarxismo, entre os quais Herbert Read, Daniel Gurin, Murray Bookchin, Noam Chomsky e PaulGoodman. Com eles o pensamento libertrio ganhou importantes contribuies em novas reas, daarte, educao, urbanismo e ecologia social.

    Mas foi s a partir dos anos 60, que assistimos a uma ruptura ampla dos intelectuais como o

    autoritarismo comunista, quer pelo conhecimento da realidade do estalinismo, quer pela influncia daexploso libertria ocorrida no final dessa dcada, s que essa ruptura haveria de tomar duas direes:de um lado uma maioria intelectual que adotou a postura acomodada de conivncia tcita ou adesoexplcita ao capitalismo, sob o eufemismo de adeso aos valores democrticos; de outro, uma minoriaque persistiu com uma posio crtica e autnoma, vindo vrios a se aproximar dos valores libertriose da tradio anarquista, mesmo que em alguns casos tenham permanecido com posies oscilantes econtraditrias, j que por pruridos marxistas ou por preconceitos acadmicos, acabavam noreconhecendo explicitamente essa vinculao. Dos situacionistas, a Guattari, Bosquet e Castoriadis, acontribuio a um pensamento libertrio contemporneo ainda feita com preconceitos e malentendidos em relao corrente social que mais pensou e lutou por esses valores.

    No est em causa a eliminao do sentido crtico sobre o prprio anarquismo, ou a identificaoapriorstica do libertrio com aquele que se diz ser anarquista, mas certamente contraditrio seposicionar como libertrio e ostensivamente ignorar um pensamento e uma prtica social que setraduziram na histria contempornea, essencialmente, no movimento anarquista.

    Pelo contrrio, entre os anarquistas sempre houve uma procura permanente das fontes do pensamentolibertrio, dos herticos do passado aos do presente, de Illich a Marcuse e Reich, uma posio aberta heterodoxia. Mesmo que em alguns casos tambm tenham ocorrido resistncias a essas crticaslibertrias que no eram de matriz anarquista, como se por esse fato, fossem menos fundamentaispara ns.

    Essa forma de preconceito, tambm leva ao dogmatismo e traduz-se na maioria dos casos, numarecusa de toda a produo terica que seja exterior ao movimento. Uma obstinada cegueira queimpossibilita uma leitura proveitosa, por exemplo, do pensamento de raiz marxista, principalmenteaquele elaborado por intelectuais anti-autoritrios. Esta intransigncia no leva em conta o que

    Kropotkin um dia caracterizou como a luta permanente de duas tendncias na histria e na sociedade:uma corrente autoritria e uma corrente libertria. E que esta ltima no pode ser reduzida a umaexpresso pura, pelo contrrio produto de diferentes prticas e da reflexo contnua, e tantas vezescontraditria, em que cada grupo e indivduo, de forma cooperativa, vo acrescentando algo de novo,numa superao permanente de dvidas e dificuldades. Usando as palavras de Colin Ward: "a escolhaentre as solues libertria e autoritria no consiste em uma luta catastrfica definitiva, mas em umasrie de compromissos atuais, muitos deles inconclusos, que ocorrem e ocorrero, ao largo de toda ahistria". *

    No entanto, sintomtico a dificuldade do anarquismo absorver o novo pensamento libertrio. Tirandoalgumas excepes na Itlia, Frana e EUA, onde tem estado presente nos coletivos anarquistasassumindo, a uma contemporaniedade radical, em Espanha depois do perodo dinmico do fim dos

    anos 70, quando publicaes como a Bicicleta trouxeram esse novo rosto do pensamento libertrio,logo se voltou a um discurso carregado de fantasmas e saudades

    Esta cristalizao ideolgica do anarquismo, como teoria definida e acabada, leva a uma conceposectria e religiosa Vctor Garcia, velho militante anarquista, colocou o dedo na ferida numa crticacida ao ortodoxismo quando escreveu:

    "El anarquismo debe vigorizar-se y actualizar-se, condicin imprescindible si deseamos tener auditorio.El anarquismo organizado, en particular, ha sufrido una exagerada tirania por parte de vestales,exgetas y Torquemadas que no han permitido nunca el re-examen y la renovacin de unas tticas pormiedo a que se resintieran los principios y las finalidades. Esta imposicin oficialista ortodoxa no hapermitido el airear nuestros recintos que se han llenado de teleraas mientras el mundo intelectual y lacincia continuaba una marcha vertiginosa que nos costar esfuerzos supremos si queremos darlealcance. Todo el que no se renueva, muere..." **

    O anarquismo nasceu da dissidncia e da heterodoxia, em Godwin, Bakunin ou Malatesta noencontramos esse sectarismo e ortodoxia, essa tentao que no esteve de todo ausente em outraspocas, acabou sufocada pela diversidade e radicalidade heterodoxa. Anarquistas, sindicalistas,

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    individualistas, pacifistas e insurreicionalistas, foram a expresso dessa pluralidade libertria quefizeram do anarquismo uma manifestao viva do pensamento anti-dogmtico. Estas so algumas dascaractersticas que temos de preservar, sendo a tolerncia uma componente bsica do movimento anti-autoritrio, sem ela no possvel pensar qualquer forma de associativismo ou qualquer forma derenovao.

    5. POSSIBILIDADES ATUAIS DE UMA AO LIBERTRIA

    "Os homens temem este desconhecido no qual entrariam se renunciassem atual ordem de vida conhecida. Sem dvida, bomtemer o desconhecido,quando nossa situao conhecida boa e segura; mas este no o caso e sabemos sem margem de dvida, que estamos beira do abismo ."Liev Tolstoi

    Mesmo neste momento de maior arrogncia do sistema capitalista que se travestiu em sociedadedemocrtica, e s por esse nome quer ser conhecido, quando a ideologia do Poder e da Sujeio seescuta em todo o lado, no se descortinam argumentos a favor de um sistema essencialmente infame.

    Sua irracionalidade econmica e social por demais evidente. A pequena ilha de abundncia, cercadade pobreza, pode at ser o paraso, ou um pobre sucedneo, para os que a vivem. S que no passadisso, uma ilha que abastecida e financiada pelos que vivem fora dela. Uma multido de esfomeados,

    desesperados ou de conformados na misria que povoam as grandes regies do planeta. Como possvel falar de progresso, desenvolvimento e xito do gnero humano neste contexto, em que umaparte da Humanidade se dessolidariza da restante?

    Como admitir como poltica ou eticamente admissvel um sistema social que perpetua tal realidade ?

    Que Futuro aponta essa realidade ?

    Certamente no a ampliao da sociedade de consumo, escala universal, mesmo que se amplie anovas ilhas, no oceano do apartheid social. Os recursos escassos e a crise ecolgica provocada pelaeconomia do lucro e do desperdcio, s permitem visualizar uma planificao autoritria escalamundial, com o controle rigoroso dos recursos, da destruio ambiental e da prpria populao.* Emresumo, um sistema ainda mais autoritrio e injusto.

    O contraponto a esse futuro ser sempre uma possibilidade, criada a partir da vontade, desejo econscincia dos de baixo, dos excludos deste sistema, mas tambm de todos os estratos sociais paraquem a Humanidade maior que o Estado, evocando as palavras de Martin Buber. Dos que tmconscincia que as opes so mais vastas e que o futuro e o mundo so criados pelos seres humanose, como tal, sempre estaro abertos nossa ao criadora.

    Do ponto de vista do anarquismo, do movimento dos que recusam todas as formas de dominao, nopodemos deixar de considerar uma prova da perenidade do inconformismo e da rebeldia, a persistnciado movimento e das idias nesta poca de restaurao e conformismo. O aparecimento de novosgrupos no Leste europeu e em pases do Terceiro Mundo, bem como a aproximao de intelectuais dosprincpios libertrios, sinalizam a pertinncia da reflexo anarquista sobre o poder, a dominao e oestado. Abrindo possibilidades para o ressurgir de um socialismo libertrio, orgnico e federalista. Aprpria generalizao nas redes sociais de conceitos como autonomia, apoio mtuo, descentralizao,

    democracia direta, federalismo, que afloram dentro das chamadas Organizaes No Governamentaisprincipalmente nos pases do Sul, permitem ter a esperana que as sociedades se aproximem em suasbuscas do modelo libertrio, mesmo que essa forma de organizao no assuma os contornosidealizados pelos militantes do passado.

    A crtica do jogo poltico como mentira, ocultao e falsa conscincia, e do Estado como a burocracia dainutilidade, que se manifesta tambm nos movimentos sociais, reabre o caminho libertrio dos projetossociais autogestionrios.

    A idia libertria manifestou-se sob vrias formas no passado, da antigidade aos movimentosreligiosos e messinicos, no presente se manifesta nas experincias autogestionrias da AmricaLatina, no m