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EXPLÍCITOS ENGODOS Desejo e erotismo na ausência do corpo Murilo Scoz Comunicação e Semiótica PUC/SP São Paulo 2006

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EXPLÍCITOS ENGODOS

Desejo e erotismo na ausência do corpo

Murilo Scoz

Comunicação e Semiótica

PUC/SP

São Paulo

2006

ii

EXPLÍCITOS ENGODOS Desejo e erotismo na ausência do corpo Murilo Scoz

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. Comunicação e Semiótica PUC/SP

São Paulo, Agosto de 2006

iii

BANCA EXAMINADORA

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________________________________________

________________________________________

iv

Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou

parcial desta Dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura: _________________________________ Local e Data: ______________

v

Aos meus pais.

vi

AGRADECIMENTOS

Aos meus colegas de mestrado, em especial Cláudia Garcia, Maria Adélia,

Cláudia Trevisan, Luciana Chen, Artur, Ecila, Ana Amélia, Martinho, Larissa, Edson,

Rafael, Paula, Val, que tornaram este trabalho uma tarefa conjunta.

À Yvana Fechine e Sandra Fischer, por terem me apontado o caminho.

À minha orientadora Ana Cláudia, pela paixão contagiante pela semiótica.

À professora Roti Nielba, que despertou em mim a curiosidade.

Ao professor Eric, pela disponibilidade e paciência.

À professora Norma, pela simpatia e pela simplicidade com que me atendeu.

Ao Diegão, Eric, Andrea, Yuri, Cida, Irene Machado, Edna, Gustavo e

Luciana, pela amizade e acolhimento na conturbada passagem por São Paulo.

À Gabriela Mager e Silvana Bernardes, pela confiança no meu trabalho.

À amiga Sandra Ramalho, pelo carinho, pelo apoio, pela generosidade e por

muito mais.

À minha família (os Scoz, os Xavier, os Stüpp e os Vieira), aos meus avós,

meus irmãos e cunhados, cujo apoio incondicional foi meu maior incentivo.

À Nanda, que sem saber nada sobre semiótica foi minha maior orientadora.

Aos meus pais, por acreditarem em mim, por não medirem esforços, por

sempre terem estado ao meu lado.

vii

O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma

donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano,

entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava

os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram

aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O

imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para sua câmara recusando

separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou

que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta,

encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou

às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e

transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela

embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se

então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens.1

1 Barbey d’Aurevilly in Calvino, I., Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo,

Companhia das Letras, 1990.

viii

RESUMO

A presente pesquisa examina a construção do erotismo nas imagens

publicitárias que não figurativizam corpos e em que os enunciados não trazem uma

subjetividade autêntica. Configurada esta ausência, o enunciado, que ainda assim

constrói efeitos de sentido sexuais, parece fazê-lo através de elementos indiciais de um

simulacro ausente, de referências a elementos sexuais, ou por um simulacro desse

simulacro. Quando uma imagem publicitária presentifica um corpo autêntico (de uma

top model, por exemplo), a enunciação dá-se intersubjetivamente por um processo que

envolve a objetivação do sujeito da enunciação – o consumidor – mediante a ação

objetivante do sujeito do enunciado. Este processo acontece num circuito de

reconhecimento recíproco baseado na presença, e que passa por um regime de

erotização dos corpos apresentados. Nesta pesquisa, estuda-se a maneira através da qual

se dá a construção do simulacro do erótico na ausênc ia do corpo, e como a sintaxe do

discurso semantiza sexualmente as mercadorias. As hipóteses aqui levantadas tomam a

publicidade como uma linguagem dinâmica, que guarda referências concretas com

textos de outros sistemas, como os das artes cênicas, da pintura e da fotografia, mas

com especificidades retumbantes que caracterizam um campo de estudo singular. A

base epistemológica deste trabalho está na semiótica discursiva, e a bibliografia

fundamental que dá orientação à pesquisa tem origem na sociossemiótica, desenvolvida

por Eric Landowski, na psicologia da percepção, nas teorias sobre a comunicação de

massa, nos estudos em publicidade, e em outras perspectivas teóricas.

Para mostrar a construção do simulacro do erótico na ausência da figuração

do corpo, o presente estudo analisa fotografias publicitárias veiculadas em revistas de

circulação nacional e internacional. Os 110 anúncios selecionados permitiram

compreender a construção do erotismo na publicidade na ausência do corpo, ora através

de referências astuciosas à corporeidade, ora por construções arbitrárias de uma

sexualidade ausente. Esta variação na plausibilidade dos simulacros implica regimes de

interação diferenciados, tanto da ordem da junção quanto da união.

Palavras-chave: semiótica greimasiana, publicidade, erotismo, sintaxe da

união, enunciação.

ix

ABSTRACT

The present research examines the construction of the erotic message in

advertising images which do not show bodies and do not bring an authentic subjectivity.

If an absence is configured, the image, that still has sexual effects, seems to do it

through clues of an absent simulacrum, through references to sexual elements, or

through a simulated simulacrum. When there’s an authentic body on the image (a top

model, for instance), enunciation works between subjects through a process that implies

the enunciation subject – the consumer – as the enunciate subject’s object. This

recognition process is reciprocal and based on presence, depending on the erotic values

of the presented bodies. This research investigates the construction of erotic simulacrum

when there’s no body, and how speech syntax applies sexual connotation to products.

The hypotheses pointed in this study take advertising as a dynamic language, with

substantial references from other systems, like scenic arts, painting and photography,

although with major specificities that configure a unique theme. The epistemological

base of this work is the discursive semiotics, and its fundamental bibliography comes

from social semiotics, developed by E. Landowski, psychology of perception, mass

communication theories, advertisement researches, and others theoretical perspectives.

In order to show how the erotic simulacrum is built without the figuration of

the body, this study analyses ad pictures from national and international magazines. The

110 selected ads allowed a comprehension of the eroticism construction in

advertisement when the body is omitted, through clever references to corporeity, or

through arbitrary constructions of an absent sexuality. This variation in the believability

of simulacra implies differentiated interaction regimes, junction as much as union.

Key-words: discursive semiotics, advertising, eroticism, union syntax,

enunciation.

SUMÁRIO

1 PRELIMINARES: O corpo suprimido .................................................................................... 2

2 A AUSÊNCIA SIGNIFICANTE.............................................................................................. 11

2.1 A semiótica como episteme para a visualidade ................................................ 11

2.2 Percepção e Sintaxe da Linguagem Visual ....................................................... 14

2.3 Anúncios, enunciados e enunciação .................................................................. 16

2.4 Semiotizando o desejo......................................................................................... 21

2.4.1 Olhar e ser olhado ........................................................................................ 25

2.5 Intersubjetividades ............................................................................................. 29

O corpo objeto ....................................................................................................... 29

O corpo sujeito ...................................................................................................... 30

3 DE SIMULACROS DE PRESENÇA À ASÊNCIA ERÓTICA......................................................... 33

3.1 Insinuações e iniciativas ..................................................................................... 33

3.2 Simulacros de presença ...................................................................................... 38

3.3 O sex appeal do inorgânico................................................................................. 55

3.4 O erotismo e a corporeidade .............................................................................. 63

4 CONSUMAÇÃO DO (HI)ATO............................................................................................... 90

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 95

Sites Consultados.............................................................................................................. 98

2

1 PRELIMINARES: O corpo suprimido

Sexo causa gente.

(Millor Fernandes)

A publicidade, indústria de simulacros2 extremamente dinâmica, em

consonância com as transformações do meio social em que se insere, há muito se

libertou da necessidade de uma argumentação racional em consonância com a lógica

utilitária daquilo a que se refere, produtos que busca vender, ou, colocando de uma

maneira mais tácita e cautelosa, apresentar. De fato, a publicidade pode – ou mesmo

assume que deve – levar ao incremento da demanda de um dado produto, mas a medida

de seu sucesso não pode encontrar-se associada meramente aos demonstrativos

estatísticos das vendas capitalizadas. A publicidade não somente aguça os sentidos dos

consumidores para os produtos, como ajuda a formular o simulacro do produto que é

percebido, e, em última análise, a redefinir aquilo mesmo que se toma como o papel do

indivíduo na sociedade. Os efeitos de sentido que é capaz de criar são concebidos num

discurso que se formaliza de maneira oscilatória, ora mais informativo, ora mais lúdico.

Através deste comportamento pendular, a publicidade reforça estereótipos, ratifica

valores, recupera arquétipos, ressalta, exagera, sublinha, atenua e, sobretudo e em

última instância, diz. Entre controvérsias e contratos, a publicidade está, como sempre

esteve, buscando novas e mais incisivas formas de fazer-se ouvir. Sendo assim, a venda

propriamente dita de um determinado produto, resultado dos efeitos persuasivos do

enunciado publicitário, não é ela que encerra em si a razão de ser da publicidade. Em

outras palavras, pode-se dizer que levar o consumidor a comprar é uma das muitas

conseqüências do anúncio publicitário; sob o delicado véu deste “compre”, “beba”,

“consuma”, observa-se, aquém e além dos enunciados, uma profusão de efeitos de

sentido que transcendem este determinismo da lógica mercadológica. Lógica esta que,

2 Na abertura de Da imperfeição, Greimas lembra seu leitor das refrações da linguagem. Se o parecer é, de fato, imperfeito, muito se deve aos filtros na leitura 2. Partir deste pressuposto é admitir que o ser é a categoria intangível por natureza, sempre além, sempre alhures, sempre à sombra de um parecer e de seus desvios. O que se alcança, o que é minimamente tangível, configura o simulacro , cujas implicações semânticas perfazem o objeto de estudo da semiótica. Este parecer, esta face postiça e diáfana a pairar diante dos olhos, é a soma dos aspectos sempre aquém da totalidade, que mantém o semioticista alerta das coerções dos sistemas de representação.

3

arbitrariamente, a partir de um olhar menos ponderado – e portanto e em certo sentido,

mais crítico – é recorrentemente retratada como impositiva e totalitária. Para Lipovetsky

(2004), esse discurso apocalíptico da crítica contemporânea à publicidade e às

ferramentas persuasivas do marketing (de guerrilha ou não, pouco importa) é

sintomático de um ufanismo que, ressentido no fracasso dos movimentos anti-

capitalistas, ignora inocentemente os limites da persuasão. Segundo o autor, é a própria

predisposição do indivíduo para ser seduzido que determina de maneira peremptória a

dimensão dos efeitos persuasivos dos argumentos publicitários. Efeitos proporcionais à

suscetibilidade, sedução proporcional à “libido”.

Deve-se observar, contudo, logo após esta argumentação preliminar, algo

que parece bastante claro – e que curiosamente, com grande recorrência, é deixado de

lado nas análises da linguagem publicitária – que diz respeito ao fenômeno em si da

interação entre os anúncios publicitários e os consumidores (fenômeno este sobre o qual

se debruça a presente pesquisa): o pressuposto comunicacional da troca, do qual a

publicidade não pode, de maneira alguma, prescindir. É necessária a existência de um

enunciador, de um enunciado e de um sujeito em condição de ser interpelado –

constatação um tanto evidente e inócua, porém apresentada a título de ilustração da

situação que se pretende estudar. Em outras palavras, é pré-requisito fundamental que as

partes estejam presentes, ou melhor, façam-se presentes. Por ser comunicação, a

publicidade engendra, no ato da interação com o consumidor, uma relação que responde

aos regimes da articulação dos estados de presença descritos por Landowski3. Nesta

perspectiva, no “confronto” com um anúncio publicitário, identidade e alteridade regem

a interação. Na enunciação que se faz realizada, cada indivíduo assume seu papel. Isto é

o que permite que sujeito da enunciação e sujeito do enunciado reconheçam-se

reciprocamente. Entretanto, este regime de presenças reciprocamente percebidas leva a

uma questão estrutural, que é a definição do lugar do produto anunciado neste diálogo

estabelecido entre sujeitos. Pode-se concluir que, a rigor, os anúncios publicitários, do

tipo que aqui são estudados, não podem tornar presente o produto em si. Pelo contrário,

ao perceber a inviabilidade de tal presentificação, valem-se de sua ausência no

enunciado para reconfigurá- lo semanticamente no processo da enunciação. A

publicidade, então, figura um sujeito dentro do enunciado que supostamente

experimenta o produto. Esta encenação é a própria mediatização da apreensão pelo

3 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.

4

consumidor do poder dos objetos encenados. Retomando Lipovetsky, longe do culto da

objetividade das coisas.

Ao se apropriar desse efeito imediato do produto sobre o sujeito do

enunciado, a publicidade pode interpelar seu destinatário da maneira que lhe é mais

conveniente. É freqüente a encenação de situações em que modelos aparecem possuídas

pelas sensações despertadas pelo produto – seja um perfume, um vestido ou uma jóia –

pois é esperado que a reação do destinatário seja de um arrebatamento proporcional. A

publicidade pressupõe interação, e neste sentido, o sujeito da enunciação (um “eu”),

quando apresentado a um anúncio publicitário onde figura um segundo sujeito (o do

enunciado, um “tu”), reconhece sua própria presença. Em tal situação, ao observar um

anúncio, o consumidor objetiva a si mesmo, tornando-se então sujeito-objeto da

enunciação. Nestes termos, o anúncio encerra um diálogo manifestado num circuito

sobre o qual o consumidor percebe a si mesmo ao reconhecer-se no simulacro

apresentado. Tendo-se notado a si mesmo, o sujeito do enunciado agora interage com o

sujeito da enunciação, ambos objetivados pelo olhar do outro, ambos presentificados

pela imagem apresentada, pelo anúncio em questão. O contato visual, ou seja, o

momento inicial do reconhecimento da presença do outro é o pressuposto inicial4. Se a

encenação presenciada traz a figurativização de “sujeitos possuídos”, este é o simulacro.

Assim se vê o sujeito da enunciação: possuído pelo produto, seduzido pela imagem.

A impregnação – declarada ou dissimulada – de peças publicitárias visuais

com elementos gráficos que despertam efeitos de sentido de natureza sexual é

recorrentemente verificável. Seja na TV, nos outdoors, nas revistas ou nos jornais,

referenciar o erótico é praxe, e tal constatação sugere que a indústria publicitária parece

crer na efetividade desta prática. A psicanálise problematizaria de forma bem mais

sistemática esta questão, mas parece razoavelmente seguro inferir que a temática sexual

é assunto que interessa à maior parte da população. Sendo assim, e somando-se à

questão os preceitos católicos, os cânones morais e os estigmas culturais aqui

implicados, não seria de se esperar que a expressão da sexualidade na publicidade e a

erotização das imagens passassem à revelia de olhares indiferentes e desinteressados.

Na realidade, o mais crível é o contrário. É culturalmente problemático abordar a

temática sexual: sexo é profano, subversor, vulgar. A censura tácita da cultura sobre o

profano tem efeito proibitivo. Falar de sexo – ou melhor, através do sexo – é sussurrar

4 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.

5

lascivamente ao interlocutor: “não escute o que direi se não estiver preparado para um

pouco de rubor!”.

A recorrência do sexo no discurso publicitário é ponto pacífico. Roupas,

cosméticos, jóias, automóveis, eletrodomésticos, computadores, chocolates, sorvetes e

até pães são passíveis de erotização. Nestes termos (e esta já é uma hipótese bastante

atraente), a publicidade realiza esta operação discursiva de produção enunciativa de

sentidos por entender que o uso de erotismo nos anúncios traz vantagens efetivas, seja

pela possibilidade de conferir ao produto de que se fala um valor lúdico, uma

sensualidade, um sex appeal que transcende seu fim pragmático, seja pelo interesse

pulsional que desperta em seu interlocutor.

O mecanismo persuasivo que se estabelece no uso de tal recurso para

veicular um dado produto pode ter o intuito de instigar seu destinatário – o consumidor

– a manifestar um tipo de comportamento fetichista de consumo, instintivo e impulsivo,

pois tal produto se apresenta como um desiderato. Refém servil de sua castração

simbólica, de sua falta constitutiva, o consumidor consome. E o consumo, a aquisição

de um produto “sexualmente enriquecido”, ofereceria ao indivíduo a possibilidade de

explorar uma nova sensação de satisfação e saciedade, de natureza similar a sexual. É

uma nova necessidade fisiológica, tão nova quanto primária, na medida em que já não

pode ser atendida objetivamente, senão pela subjetivação do produto em si, simulacro

daquilo que falta, daquilo que completa, e que é da ordem do gozo. Seria, por

conseguinte, inalcançável?

Como foi colocado, o erótico está presente em anúncios de produtos de

naturezas diversas; por adequação a cada tipo de produto anunciado, este erótico,

tomado aqui como a colocação da relação interactancial no plano do “desejo”, é

construído de maneiras diferentes. Nos termos apontados por Landowski, na

publicidade, a figurativização de um “outro” entregue aos prazeres da experiência

sexual coloca o espectador-consumidor em “flagrante delito de indiscrição”5, processo

anteriormente descrito, e que será retomado de maneira mais aprofundada nos capítulos

seguintes. O “flerte” assim simulado é a evidência do erótico.

Entretanto, a este mesmo espectador pulsional, dirigem-se também

enunciados construídos no apagar da intersubjetividade. Certos anúncios, mesmo na

5 E. Landowski. op-cit, p. 151.

6

ausência total de qualquer fragmento de um corpo, ou de vestígios que sugeririam sua

presença, fazem referência, seja figurativa ou temática, a efeitos de sentido eróticos.

Esta construção “não humana” de certos simulacros pode estar diretamente ligada à

capacidade humana de transferência e de abstração, entretanto não se resolve somente à

luz da teoria psicanalítica. Tanto presença quanto ausência expõem efeitos de sentido,

comunicam, significam. Contudo, em certos casos, como os estudados a seguir,

ausência e presença dobram-se uma em direção à outra, rompendo a contrariedade

fundamental e dando origem a antíteses discursivas extremamente sofisticadas.

Falamos, agora, de simulacros de presença, ent re os quais observamos aqueles em que

através da figuratividade busca-se remeter justamente a uma presença de fato.

Esta expressão da sexualidade é tema bastante problemático, gerador de

controvérsias e desencontro de opiniões, o que por si traz bastante relevância à

investigação de tais questões. No Brasil, tendo em vista a multiplicidade cultural, a

diversidade de religiões e credos, as características sócio-geográficas do país, bem como

a singular formação multi-étnica de sua população (combinação de ma trizes européias,

africanas, americanas...), a sexualidade e suas manifestações são, curiosamente, reféns

de coerções moralistas bastante pronunciadas, mas sistematicamente questionadas.

Pode-se observar uma grande preocupação com a aparência física, um culto exacerbado

ao corpo e ao “parecer”, em detrimento do “ser”, que se manifesta na maneira de se

vestir, no modo de dançar, no comportamento em grupo, nos rituais festivos (como as

grandes festas populares)... Numa pesquisa do Royal College of Physicians da

Inglaterra, publicada em 2000 pelo Atlas Penguin do Comportamento Sexual Humano,

revela-se que os brasileiros têm relações sexuais com maior freqüência, mais duração e

com maior diversidade de parceiros que os amantes de outros países. Esta efervescência

libidinal aparece nas manifestações culturais, como o carnaval, nas telenovelas, no

cinema brasileiro, na literatura, na legislação e, como não poderia deixar de ser, na

publicidade. De carros a dentifrícios, são inúmeros os produtos que se vêem vinculados

ao sexo em anúncios publicitários.

A exploração do sexo na propaganda, entretanto, não é restrita à terra do

carnaval. No livro Sexo & Marketing, o professor Marcos Cobra, da Fundação Getúlio

Vargas, ironiza que o primeiro gesto de marketing partiu da serpente de Adão e Eva 6, e

que desde então a publicidade tem explorado de maneira crescente e sistemática o

6 M. Cobra. Sexo & Marketing. São Paulo: Cobra, 2002.

7

erotismo e a sexualidade. Para o autor, é difícil dissociar desejo, publicidade e consumo,

pois se a publicidade mediatiza, de alguma forma, a realidade do cotidiano da sociedade

– e isso parece pressuposto do próprio mecanismo publicitário, no sentido de garantir

sua efetividade – não há como deixar de lado a temática da sexualidade.

Entretanto, como instrumento discursivo de persuasão e conquista, o sexo é

causa recorrente de controvérsia, para começar, por sua eficácia. Nos Estados Unidos,

um estudo realizado pela Universidade de Iowa, questiona a eficácia da propaganda

com recursos eróticos ou violentos. A pesquisa, divulgada em 2004, no Journal of

Applied Psychology, comparou a fixação de marcas através de anúncios televisivos. Os

entrevistados (324 homens e mulheres, de 18 a 54 anos) foram distribuídos em três

grupos e expostos, respectivamente, a comerciais com teor sexual, violento ou neutro.

Cada grupo assistiu a nove anúncios de produtos como refrigerantes, salgadinhos e

sabão em pó. O que a pesquisa constatou foi que, apesar dos participantes lembrarem

vivazmente dos anúncios que exploravam a questão sexual logo imediatamente após a

exibição dos filmes, no dia seguinte, contudo estas marcas são menos lembradas que as

exibidas em anúncios considerados neutros. A conclusão dos responsáveis pelo estudo,

Brad Bushman e Angelica Bonacci, foi que sexo e violência podem atrair mais

audiência, mas desviam a atenção da marca anunciada7.

O estudo é recente, mas bastante relevante. Isto porque os efeitos de sentido

que sugerem sexo na publicidade e a erotização de produtos de diferentes naturezas

parecem lugar comum na agenda do mercado. Em quase todos os suportes, seja nos

veículos impresso, na televisão ou nas ondas do rádio, o discurso publicitário recorre de

forma insistente à temática sexual para dar seu recado. Na impossibilidade de fazer o

sujeito sentir o produto, a publicidade simula sua experimentação, e neste simulacro do

uso se percebe, com enorme freqüência, o erótico manifestando-se. Ao apresentar, por

exemplo, um modelo (sujeito do enunciado), utilizando um produto, sendo apreendido

pelo seu uso, possuído por qualidades inomináveis, absorto num mar de sensações

arrebatadoras, a publicidade lança mão de um expediente que é da ordem do sensível,

em que a apreensão dos sentidos não se dá apenas cognitivamente. Em outras palavras,

uma dimensão estésica está implicada, um sentir o estado do outro, de forma imediata e

recíproca, segundo o regime do ajustamento8. Nestas encenações, percebe-se de maneira

7 Revista Amanhã: Especial: Sexo vende? em http://amanha.terra.com.br/edicoes/193/2especial.asp 8 E. Landowski. Passion son nom. Paris, PUF, 2004.

8

recursiva o sentido de intimidade que marca o anúncio de certos produtos, o que faz

necessária uma atenção à dimensão sensível dos enunciados, buscando dar conta destes

efeitos de erotismo.

A fotografia publicitária não se encerra em si mesmo. Subentende um

momento amplo – um antes e um depois, além do “durante” congelado – e uma

encadeação semântica com outras imagens publicitárias que, como coloca Landowski,

parecem se pensar entre si, remetendo umas às outras. Este paralelismo sugere que cada

imagem publicitária assume o papel de promessa de uma outra, “ainda ausente, mas já

configurável”9. O universo dinâmico de signos, que leva à resignificação dos produtos,

configura o modus operandi da publicidade, e a concatenação entre diferentes anúncios

resulta numa espécie de cadeia de mitos que perfazem o fazer publicitário. Esta

iconografia acompanha a própria estrutura do imaginário, através da discursivização

repetitiva de estereótipos como o do amante vigoroso, do idoso experiente ou do

esportista jovial. Esta concordância temática, que em última análise euforiza valores

como a juventude, a sabedoria, a família, toma a questão da desejabilidade e da

conquista de forma não menos recorrente. É evidente que a temática sexual fala de um

consumidor suscetível ao erotismo, ou seja, “interessado” em tais valores. Entretanto, o

que há de inusitado nesta erotização disseminada dos enunciados publicitários é o papel

narrativo dos próprios produtos, que são agora objetos a se desejar. A conjunção

oferecida, prometida pela publicidade, não é mais somente da ordem do objeto modal

que qualifica o enunciatário à realização de uma performance. É o fim em si, o próprio

objeto de valor. Sua falta implica uma ausência somaticamente manifestada, um desejo

frustrado, pulsional, e esta é a prerrogativa que caracteriza o apelo sexual da

publicidade.

Conforme coloca Landowski, as encenações publicitárias muitas vezes

trazem o simulacro do “corpo desejante”, ou seja, do corpo dado a ver expondo sua

subjetividade. Esta subjetividade convoca o sujeito da enunciação, ou seja, o

consumidor, a também presentificar-se, pois agora se coloca diante de um actante

sujeito numa interação recíproca. Entretanto, a ausência de tal simulacro, justamente o

interesse desta pesquisa, não parece criar obstáculo à tematização erótica na

publicidade. Pelo contrário, encontramos diferentes formas de enunciado elaboradas no

sentido de dar visibilidade aos atributos “desejáveis” que o produto pode apresentar por

9 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.

9

si só, e que, portanto, seriam da ordem do sexual. Desta forma, esta investigação

pergunta como é viabilizada esta temática do erotismo na ausência do corpo? Sendo o

próprio produto colocado, em certos casos, como articulador da reciprocidade erótica de

que falávamos, ou seja, na condição de simulacro de um “sujeito desejante”, de que tipo

de intersubjetividade estamos tratando? Em outra perspectiva, aquela temática erótica

de que se apropria a publicidade seria um apanhado de impropérios metalingüísticos,

cabendo um sentido de legitimidade somente àquele sentido erótico de que falávamos,

dependente de fato da intersubjetividade? Ou o próprio objeto anunciado estaria por fim

viabilizando um desejo erótico? Apostando que a construção do erotismo neste tipo de

anúncios publicitários de corpos ausentes estaria vinculada a um processo de

resignificação do produto, quais os mecanismos que garantiriam estes atributos sexuais?

Neste sentido, investigamos os mecanismos semióticos deste sentido erótico na ausência

do simulacro do corpo que, em termos contratuais, pretende produzir efeitos de sentido

de parecer tão autêntico quanto na presença do mesmo. Para tanto, faz-se inicialmente

necessário adotar uma única acepção para os termos desejo e erotismo, repetidamente

empregados neste estudo, e a partir dos quais a problemática é investigada. Somente

desta forma poderemos contornar os inconvenientes da abrangência destes termos,

cuidado que concomitantemente permite às imagens do corpus guardarem entre si uma

coerência temática mais rigorosa.

As hipóteses apresentadas demandam uma abordagem analítica da

construção do simulacro do erótico na ausência do corpo, bem como da sintaxe do

discurso que semantiza sexualmente as mercadorias. Neste âmbito, cabe também

problematizar: quais os regimes de erotismo vigentes na publicidade? Quais os tipos de

ausência de que falamos? Ainda falamos de erotismo e de sentido sentido na ausência

do corpo, tal como define Landowski? Que efeitos de sentido são gerados a partir destas

estratégias? Quais os vestígios de presença do corpo que dão origem ao erótico no

enunciado? Como somos levados a interagir com tais simulacros e como o sujeito da

enunciação se presentifica na ausência do sujeito do enunciado?

A fotografia publicitária como corpus

O presente trabalho põe à prova um modelo semiótico de análise em

anúncios veiculados em revistas de circulação nacional e internacional, para investigar

os mecanismos de construção do simulacro erótico na ausência da figuração do corpo.

10

Entender o fenômeno da enunciação publicitária passa por um processo complexo de

análise de produção de sentido, resultante da relação dialética entre enunciador e

enunciatário, e seus múltiplos desdobramentos. Nestes termos, avaliar as

especificidades da retórica publicitária num recorte reduzido, mas ainda assim

representativo enquanto corpus, requer um aprofundamento efetivo das noções de

simulacro envolvidas, bem como um rigor metodológico que, para muito além do

determinismo superficial da análise do discurso, dê conta das diversas camadas

interpostas entre (e além das) partes envolvidas. A semiótica greimasiana e, sobretudo

os notáveis avanços no campo do discurso publicitário desenvolvidos por Jean-Marie

Floch e Eric Landowski, reforçam a tese de que o anúncio, assim como toda forma de

enunciação, é um processo de produção de sentido que ganha vulto e relevância no

contato interativo entre as partes envolvidas, e buscar dar conta de tal relação pressupõe

tratar tanto de sua dimensão cognitiva quanto dos aspectos sensíveis implicados.

Para o presente estudo, foram selecionadas cerca de 110 imagens obtidas em

revistas de circulação nacional e internacional, que apesar de atenderem tanto ao

público feminino quanto ao masculino, poderiam ser classificadas como “revistas de

variedades”. Foram elas: Vogue, Cosmopolitan, Elle, Esquire, GQ, TPM, Trip, Arena,

Vizoo, Máxima, Marie Claire, Playboy e Vip, entre os anos de 2003 e 2006. A seleção

dos anúncios baseou-se em dois critérios: em primeiro lugar, os anúncios deveriam ser

veiculados em mídia impressa e, em segundo, fazer algum tipo de referência à

sexualidade na ausência de corpos, seja através da figuratividade, da tematização, ou

mesmo somente através do enunciado verbal. Como era necessário reunir um número

significativo de anúncios, e como estas duas condições inviabilizavam fechar o corpus

numa única publicação (ou Vogue ou Marie Claire, por exemplo) pela maior

prevalência verificada de imagens eróticas que lançam mão de corpos autênticos, fez-se

necessária esta busca transversal entre diferentes publicações, o que poderia caracterizar

um arrefecimento do rigor metodológico. Entretanto, são as recorrências identificadas

entre os anúncios analisados que ratificam a metodologia empregada e apontam para

uma sintaxe do erotismo comum ao heterogêneo grupo de publicações adotado.

11

2 A AUSÊNCIA SIGNIFICANTE

Todo parecer é imperfeito: oculta o ser; é a partir dele que se constroem um querer-ser e um dever-ser, o que já é um desvio do sentido. Somente o parecer, enquanto o que pode ser – a possibilidade –, é, vivível. Dito isso, o parecer constitui, apesar de tudo, nossa condição humana. É ele então manejável, perfectível? E, no final das contas, esta veladura de fumaça pode dissipar-se um pouco e entreabrir-se sobre a vida ou a morte – que importa?

(A. J. Greimas)

2.1 A semiótica como episteme para a visualidade

Estudar a visualidade, sob a perspectiva de um olhar semiotizante, é, para

todos os efeitos, buscar dar conta da experiência sensorial despertada pelos textos

visuais, em todas as suas dimensões. Contudo, quando se aplica o termo visualidade,

fazendo referência a um campo de estudo propriamente dito – que comporte todo tipo

de texto visual – pressupõe-se uma homogeneidade transversal intrínseca que é

referente a todo tipo de objeto imagético. Uma perspectiva como essa pode soar

demasiadamente constritora, ao propor sistematização a objetos tão díspares, na

contramão de suas especificidades singularizantes. Contudo, ainda assim, nos

colocamos a examinar a visualidade a partir de tal olhar semiotizante, por assumirmos o

partido de uma sintaxe fundamental. Uma perspectiva que rompesse com este

pressuposto sintático tangenciaria levianamente as imposições da cognição humana.

Todo o “produzir sentido” tem um compromisso fundamental com a linguagem. Em

outras palavras, as especificidades da linguagem utilizada são sobredeterminantes do

alcance da manifestação criativa, seja ela visual, verbal ou sincrética. A linguagem é

imperativa e irrefutável. Os sistemas lingüísticos, as categorias semânticas, os arranjos

estruturais, os princípios estilísticos, bem como as combinações sintagmáticas possíveis,

dão medida à dimensão sintática que nenhuma linguagem pode preterir. Do pressuposto

saussereano da sintaxe lingüística, tomado no contexto dos enunciados publicitários,

parte o arrazoado geral desta pesquisa.

Contudo, a dimensão sintática da linguagem visual do objeto aqui estudado é

o alicerce metodológico desta análise, não sua finalidade propriamente dita. Fosse esse

12

o escopo adotado, certamente não se daria conta das emanações do objeto, no caso, a

fotografia publicitária, enquanto um todo de sentido. Estaríamos, ao contrário, propondo

um ponto de vista torto e mambembe, cujos apontamentos tergiversariam

reticentemente aquém de tantos outros efeitos de sentido deixados de lado.

Para concatenar, ao longo dos meandros peculiares da fotografia publicitária,

as reiterações que dão significado a cada imagem, o modelo de análise que o presente

estudo utiliza é o da semiótica discursiva.

Existem diversas correntes semióticas com aplicabilidade no estudo do

universo imagético da publicidade. A rigor, ao tratar de semiótica, devem-se ter em

vista as diferentes abordagens metodológicas implicadas, desdobramentos diversos que

não necessariamente apontam para a mesma origem. Contudo, em traços gerais, a teoria

semiótica não se coloca epistemologicamente como ciência em si, mas como uma

disciplina com rigor científico. E esta diretriz geral é característica da semiótica

discursiva, de origem francesa, desenvolvida a partir dos estudos de Algirdas Julien

Greimas e de seu grupo de colaboradores.

A semiótica discursiva utiliza um modelo metodológico de análise que se

fundamenta na fenomenologia, na antropologia cultural e na lingüística estrutural. Desta

última, e este aspecto é assaz determinante, a semiótica empresta noções fundamentais

que balizam as análises dos diferentes tipos de “texto”. Segundo argumenta Barros,

texto é um todo de sentido obtido através da articulação dos elementos constituintes

mínimos, segundo regras combinatórias que os põem em relação. Portanto, o sentido de

um texto é dado pelo resultado das “relações” que estes elementos mínimos estabelecem

entre si, e não somente pelo seu “somatório”. São estes arranjos combinatórios, estes

procedimentos relacionais que articulam e organizam a sua manifestação. Em outras

palavras, o todo é mais que a soma das partes10. Nos textos visuais, como é o caso

específico da fotografia publicitária, esta dimensão da expressão é um fértil terreno para

a investigação da semiótica. De fato, as pesquisas no campo da visualidade tensionaram

a disciplina no caminho de um fazer semiótico sobre os enunciados visuais e, sobretudo

através dos esforços valiosos de Jean-Marie Floch e Felix Thulermann, propiciaram a

edificação de uma semiótica plástica. Sobre o assunto, esclarece Oliveira

10 D. L. P. de Barros, Teoria semiótica do texto. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 7.

13

Considerando que um texto visual, qualquer que esse seja: arquitetura,

escultura, paisagem natural ou pintada, desenhada, gravada, fotografia, é

construído por um arranjo específico de sua plástica, organizada por

mecanismos estruturais particulares de seu sistema com as suas regras,

resultando em uma dada sintagmatização das unidades mínimas; optamos

por denominar plástica a semiótica que se ocupa da descrição do arranjo da

expressão de todo e qualquer texto visual. Trata-se, portanto, de uma

semiótica de caráter geral do ponto de vista de seus fundamentos teóricos e

de seus procedimentos metodológicos.11

A dimensão plástica dos textos visuais erige-se a partir da articulação dos

formantes, as menores unidades da expressão12, por meio de procedimentos relacionais.

O formante pode ser de várias ordens, e sua participação na constituição do plano da

expressão deve ser examinada na articulação com o plano do conteúdo. Tal dicotomia

estabelecida por Ferdinand Saussurre é fundamental na análise de todo e qualquer texto.

Cada um destes dois planos designa “separadamente os dois termos da dicotomia

significante/significado ou expressão/conteúdo que a função semiótica reúne”13, e

guardam entre si relação de pressuposição recíproca. Não existe expressão sem

conteúdo, nem conteúdo sem expressão.

No trajeto da análise, em busca dos efeitos de sentido a apreender, são

verificados traços, elementos, manifestações visuais que são recorrentes e se articulam

no plano da expressão. Estas recorrências ao longo do texto são indicativas das seleções

adotadas pelo enunciador, revelando os procedimentos de concretização do conteúdo

pela matéria significante. As recorrências da expressão, que são também recorrências do

conteúdo, sugerem as isotopias que organizam os eixos semânticos do discurso. Em um

dado texto, isotopias são as reiterações de “quaisquer unidades semânticas (repetição de

temas ou recorrência de figuras) no discurso, o que assegura sua linha sintagmática e

sua coerência semântica” 14. As isotopias garantem a homogeneidade semântica dos

11 A. C. de Oliveira, Semiótica Plástica. São Paulo, Hacker Editores, 2004, p. 12. 14 A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. in Significação: revista brasileira de semiótica, n.4, junho de 1984, p.18-46. 13 A. J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica. Trad. A. D. Lima. São Paulo, Cultrix, s.d., p. 336. 14 D. L. P. de Barros, Teoria semiótica do texto. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 87.

14

textos enunciados, pelas operações que deixam no seu traçado o percurso da

significação15 até o desvelar de seu conteúdo.

2.2 Percepção e Sintaxe da Linguagem Visual

Empreender um estudo acerca da produção de sentidos na fotografia

publicitária é, em primeiro lugar, buscar dar conta de sua sintaxe própria. Os estudos

sobre a linguagem visual fornecem fundamentos teóricos indispensáveis para tal tarefa.

No vórtice deste empreendimento teórico da visualidade, Arnheim, atribuindo ao fazer

perceptivo uma determinante fenomenológica bastante pungente, opõe-se à idéia de

percepção enquanto uma operação intelectiva. Em seus estudos sobre a linguagem

visual, sustenta um ponto de vista menos determinista do “ver”. Segundo o autor:

(...) somos forçados a admitir que a percepção consiste na formação de

“conceitos perceptivos”. Conforme os padrões tradicionais esta terminologia

é incômoda, porque se supõe que os sentidos se limitam ao concreto

enquanto os conceitos tratam do abstrato. (...) A visão atua no material bruto

da experiência criando um esquema correlato de formas gerais, que são

aplicáveis não somente a um caso individual concreto, mas a um número

indeterminado de outros casos semelhantes também. 16

Essa noção do fenômeno da visão leva a abordar a visualidade a partir de

uma gramática do ver, a qual todo texto imagético está atrelado. Segundo Arnheim, o

ver está ligado inextricavelmente a uma busca por sentidos naquilo que é visto:

O pensamento psicológico recente nos encoraja então a considerar a visão

uma atividade criadora da mente humana. A percepção realiza ao nível

sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como entendimento. O

ato de ver de todo homem antecipa de um modo modesto a capacidade, tão

15 C. Regina Garcia, Estudos semióticos das lingeries na construção dos regimes de visibilidade da mulher brasileira. Dissertação de mestrado. Orientação Prof. Drª. Ana Claudia de Oliveira. Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 2005. 16 R. Arnheim. Arte e Percepção Visual: Uma Psicologia da Visão Criadora . Trad. de Ivonne Terezinha de Faria. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli, 1994, p. 39.

15

admirada no artista, de produzir padrões que validamente interpretam a

experiência por meio da forma organizada. O ver é compreender. 17

A partir desta descrição cognitiva do ver como processo subjetivo e

espontâneo, podemos elencar os desdobramentos teóricos de Dondis sobre o

alfabetismo visual18, além das contribuições de Aumont19 acerca dos mecanismos do

ver, no intuito de cristalizar aquilo que definimos como sintaxe da linguagem visual.

Para Dondis, os elementos básicos da comunicação visual são as unidades

morfológicas de um texto imagético, pois

Sempre que alguma coisa é projetada e feita, esboçada e pintada, desenhada,

rabiscada, construída, esculpida ou gesticulada, a substância visual da obra é

composta a partir de uma lista básica de elementos. Não se devem confundir

os elementos visuais com os materiais ou o meio de expressão, a madeira ou

a argila, a tinta ou o filme. Os elementos visuais constituem a substância

básica daquilo que vemos, e seu número é reduzido: o ponto, a linha, a

forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala e o

movimento. Por poucos que sejam, são a matéria-prima de toda informação

visual em termos de opção e combinações seletivas.20

Em última análise, o emprego de técnicas combinatórias é o que possibilita a

expressão visual do conteúdo. A técnica fundamental é o contraste, por ser a “força que

torna as estratégias compositivas mais visíveis” 21. Elas podem ser organizadas em pares

opostos, de acordo com suas complementaridades num eixo semântico, por exemplo,

equilíbrio e instabilidade. Segundo Dondis, o contraste é a técnica visual mais dinâmica,

que se manifestaria numa relação de polaridade com a técnica oposta, a harmonia. O

equilíbrio seria, depois do contraste, o princípio mais importante das técnicas visuais.

Essa importância está relacionada ao mecanismo de funcionamento da percepção

humana, e na grande necessidade de sua presença. Pode ser definido como uma

estratégia em que existe um centro de suspensão num ponto eqüidistante de dois pesos.

17 Ibidem, p. 39. 18 D. Dondis A. Sintaxe da linguagem visual. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 19 J. Aumont. A Imagem. Trad. de Estela dos Santos Abreu e Cláudio César Santoro. Campinas: Papirus, 1993 20 D. Dondis. Op cit.p. 51. 21 Ibidem, p. 137.

16

A instabilidade manifesta o oposto da idéia de equilíbrio. Podem ser apontadas também

como técnicas compositivas de grande importância: simetria e assimetria, regularidade e

irregularidade, simplicidade e complexidade, unidade e fragmentação, economia e

profusão, previsibilidade e espontaneidade, atividade e estase, sutileza e ousadia,

anulação e destaque, transparência e opacidade, repetição e episodicidade, entre outras.

a b

Figura 1 – Técnicas compositivas: (a) contraste e (b) simetria

Yves Saint Laurent,Vogue, 2003; Afreudite, Vizoo, 2002.

Na fotografia publicitária, assim como em outros textos visuais em que se

apliquem tais procedimentos sintáticos, a análise da dimensão plástica parte da

identificação destes princípios e de sua homologação a um conteúdo pressuposto, pois

como há pouco foi ratificado, não existe expressão sem conteúdo. Um exemplo preciso

de tal aplicação metodológica pode ser encontrado nas análises meticulosas dos

anúncios impressos do cigarro News, desenvolvidas por Jean-Marie Floch. Com

pronunciado rigor científico, seu estudo percorre detidamente os aspectos figurativos da

página do anúncio, recuperando-os sistematicamente na homologação dos efeitos de

sentido implicados no plano do conteúdo.

2.3 Anúncios, enunciados e enunciação

Toda análise semiótica do visual, como a que se pretende aqui desenvolver,

deve manter-se atenta a esta dimensão plástica através da qual vemos articulações entre

expressão e conteúdo, no sentido de dar conta da produção de significado nos textos.

17

Entretanto, outro aspecto irrefreável dos estudos semióticos (não especificamente do

campo da visualidade) diz respeito ao conjunto das marcas deixadas no discurso que se

constrói: as estratégias enunciativas. Segundo Fiorin, enunciação é o “ato de produção

do discurso”22, e seu produto, aquilo que chamamos enunciado. Para descrever o que

diz um enunciado, a semiótica preconiza observar “como ele faz pra dizer o que diz”23,

o que implica considerar todo texto estudado como o produto de um fazer competente,

de um conjunto de escolhas conscientes que se revelam nas reiterações. Em outras

palavras, isto implica considerar que cada discurso é um todo de sentido resultante de

um processo enunciativo em que nenhuma opção é inocente.

O enunciado publicitário – enquanto texto – é o produto de um fazer

discursivo contingentemente comprometido com a obtenção de um objetivo

mercadológico, institucional, político, etc. Toda esta intencionalidade por trás de um

anúncio encontra-se registrada em documentos que as agências convencionaram chamar

“briefing”. Nele, constam informações sobre o público alvo, sobre o produto e sobre o

próprio anunciante. São feitos apontamentos estratégicos e metodológicos no sentido de

garantir que os anúncios sejam bem sucedidos, que a mensagem passada seja inteligível

e que, em última análise, o consumidor seja sensibilizado. Estas medidas antecedem

aquilo exatamente de que se ocupa a semiótica: os enunciados. Podem acabar se

manifestando na figuratividade e na temática adotadas, porém investigar a publicidade a

partir da instância da enunciação equivale a buscar nos enunciados publicitários as

reiterações que revelam como estas medidas, estas escolhas e operações sintáticas se

manifestam nos discursos, bem como o que elas dizem daquele que as adotou. Não se

trata de descobrir a verdadeira intenção do destinador do texto, ou seja, aquilo que ele

quis dizer, mas aquilo que ele diz de fato. Nestes termos, segundo a teoria semiótica, o

anúncio publicitário traz projetado em sua estrutura discursiva um eu – que diz – e um

tu – a quem é dito – pressupostos na enunciação: um enunciador e um enunciatário. A

estratégia de manipulação se manifesta entre estes sujeitos, e o enunciado só se torna

operativo através deste par pressuposto. Anúncios que apresentam as vantagens da

aquisição de um determinado produto (figura 2) ilustram de maneira bastante eficiente

este vínculo: verificamos a construção de um enunciador que detém o conhecimento dos

atributos do produto, e de um enunciatário que os desconhece. Este desequilíbrio de

competências possibilita ao enunciador levar o enunciatário a desempenhar o papel 22 J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso . São Paulo: Contexto, 2004, p. 39. 23 D. L. P. de Barros, Teoria semiótica do texto. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 7.

18

narrativo que aquele espera deste. A figura a seguir traz um anúncio originalmente

apresentado em dois momentos que se completam no virar de uma página. No primeiro,

uma sensual jovem parece caminhar manifestando certa surpresa. Na página seguinte,

revelam-se seus curiosos observadores, enfeitiçados pela generosa conformação criada

pelo produto anunciado (sutiãs “maravilha”).

Figura 2 – Vantagens prometidas Wonderbra, Vogue, 2005

As análises dos anúncios selecionados para o corpus partem deste arrazoado

temático da enunciação. Os anúncios foram tomados enquanto discursos, em cuja

dimensão cognitiva identificamos um conjunto de valores investidos. Para identificar as

estratégias enunciativas empregadas, o fazer persuasivo do enunciador e o fazer

interpretativo do enunciatário, faz-se imperativa a investigação do percurso gerativo do

sentido, modelo metodológico que traz um simulacro operacional do modo de produção

e de interpretação do sentido24.

O modelo de percurso gerativo, tal como postulado por Greimas, é

constituído por três patamares sucessivos: o fundamental, o narrativo e o discursivo,

cada qual com um componente sintático e outro semântico. Sobre estes componentes,

complementa Fiorin:

24 J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso . São Paulo: Contexto, 2004.

19

A distinção entre sintaxe e semântica não decorre do fato de que uma seja

significativa e a outra não, mas de que a sintaxe é mais autônoma do que a

semântica, na medida em que uma mesma relação sintática pode receber

uma variedade imensa de investimentos semânticos25.

No elemento mínimo e em seu arranjo relacional, no caminho entre a parte e

o todo, entre expressão e conteúdo, sintaxe e semântica revelam-se e dão sentido aos

textos. Através do percurso gerativo do sentido, sobretudo no patamar das estruturas

discursivas, onde a figuratividade reveste os textos visuais, podemos semiotizar os

anúncios analisados em busca das estratégias enunc iativas empregadas.

Entretanto, não somente ao nível das estruturas semio-narrativas e

discursivas se limitam os estudos semióticos. A abordagem dos textos visuais, assim

como dos demais campos estudados à luz da semiótica estruturalista, acompanha a

evolução na trajetória histórica da disciplina. Segundo Landowski, de uma semiótica

dos discursos enunciados, observou-se uma transição a um modelo analítico vinculado

a uma semiótica das situações. Hoje, os estudos parecem indicar uma nova

reconfiguração da abordagem estrutural, orientada já a uma semiótica da experiência

sensível, e tal tendência, agudamente relevante no estudo da publicidade, objetiva dar

conta da sintaxe e da semântica dos novos fenômenos de que nos ocupamos.

A teoria semiótica discursiva (greimasiana ou estrutural) parte de uma

prerrogativa cognitivista para delimitar os papéis semióticos dos sujeitos em relação.

Como coloca Landowski, é fato conhecido há tempos que a construção dos significados

não emana de relações imediatas entre a linguagem e o mundo natural, mas que ela se

realiza somente na cooperação entre co-enunciadores26. Ao atentar para esta premissa –

a presença de sujeitos – a análise já é, por assim dizer, levada a orientar-se por uma

semiótica da experiência sensível. Sobre estes sujeitos do perceber, imprescindíveis à

comunicação enquanto fenômeno, Aumont comenta:

Ao passar do visível ao visual, já começamos a considerar o sujeito que

olha. (...) falar de informação visual ou de algoritmos é interessante, mas

25 Ibidem, p. 18. 26 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.

20

deixa em suspenso a questão de saber quem constrói esses algoritmos, quem

aproveita essa informação, e porque.27

Esta tomada de consciência a respeito dos sujeitos do perceber é mais que da

ordem de uma orientação sistemática; assume a condição de um dado semiótico

irredutível em nossas pesquisas no campo da visualidade, e seria absolutamente pífio e

rasteiro qualquer estudo desatento a tais especificidades que caracterizam a

comunicação, inclusive a publicitária. De certo modo, isto já equivale a assumir uma

postura diferenciada frente aos objetos estudados. Os anos 90 trouxeram um novo

paradigma metodológico, tanto em razão da publicação do último livro de Greimas, Da

imperfeição, quanto das significativas expressões recuperadas da fenomenologia

francesa do pós-guerra. É a partir deste momento, através de uma visão menos

cognitivista dos processos comunicacionais, que a semiótica estrutural desvia-se, pelo

menos em certo sentido, da tendência ao modelo mediatizado de interação. Em certo

sentido, pois este novo paradigma não representa a ruptura total com a gramática

canônica; busca, na verdade, dar conta de outro regime de sentido, justamente aquele

que se estabelece na co-presença sensível dos actantes. Nos termos propostos por

Landowski, a análise de um sentido que se constrói “em ato”. Em outras palavras,

afastamo-nos metodologicamente neste instante do modelo da junção, pois a maneira de

fazer sentido que caracteriza as interações tidas como não mediatizadas são da ordem do

contato direto entre instâncias definíveis essencialmente em termos estésicos.

Tendo em vista tal dimensão estésica dos objetos estudados, a semiótica

desloca agora seu foco sobre aqueles efeitos de sentido produzidos pelo contato

dinâmico, pela presença interativa apta a fazer sentido em si. Esta nova abordagem –

estaríamos, então, sob a égide de uma nova disciplina? – se distingue das anteriores por

considerar que uma transformação de estado sofrida por um sujeito (resultado de uma

troca comunicacional) pode ser simplesmente, o resultado de sua “exposição” a um

outro presentificado. Este regime de interação dispensaria um vetor, um significante ou

mesmo um objeto de valor a determinar os papéis narrativos, e que seria colocado em

jogo entre actantes: dar-se-ia por contágio.

Na ausência de um agente transmissor que justifique tal contágio, Landowski

propõe que é a própria presença contagiante do outro que precipitaria tal transformação. 27 J. Aumont. A Imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 58.

21

É isso que reconhecemos ao dizer que o tipo de contágio que nos interessa

pressupõe, na falta de causas ou razões, a presença de um sujeito para o

outro. No simples estar-lá de dois atores enquanto corpos-sujeitos, cada um

já oferece a seu parceiro, e percebe dele, uma espécie de texto minimal. 28

O exemplo inicial apresentado pelo autor é o do riso. Em sua opinião, a

hilaridade que arrebata um sujeito pode se dar em razão da decodificação e da

interpretação de um evento, ou mesmo de uma piada, o que seria da ordem de uma

comicidade planejada, adulta e racional. Em outras palavras, segundo um modelo

cognitivo de processamento e mediação. Por outro lado, o mesmo estado de hilaridade

pode nos atingir simplesmente pela presença, diante de nós, de um segundo sujeito já

vitimado pelo cômico: alguém que ri. É o mecanismo estésico, que também podemos

observar operando na euforia do lactante, possuído pelo riso contagiante do outro, da

mãe, ou de outra criança; este estado imanente do outro que possui e contagia aqueles

ao seu redor.

Estendendo-se este regime de interação por contágio a outras formas

intersubjetivas de articulação da experiência estésica, pode-se problematizar a questão

do desejo segundo a mesma perspectiva.

2.4 Semiotizando o desejo

E se o sentir não conviesse ao sujeito? Não se coadunasse com uma subjetividade que diz “eu”? Caso esta não conseguisse captar o sentir enquanto tal exceto com a condição de transformá-lo num pensar? Se o sentir fosse inacessível ao eu? Se todo esforço realizado pelo eu para apropriar-se do sentir conduzisse inevitavelmente a um pensar? Se no sentir estivesse implícita e fosse essencial uma dimensão neutra que nos obriga a dizer: “se sente”, mas nos impede de dizer: “eu sinto”? Se toda tentativa de dizer: “eu sinto” se resolvesse fatalmente num “eu penso”?

(M. Perniola)

28 E. Landowski. Op. cit, p. 7.

22

Quando buscamos, através de um estudo deveras limitado como este,

identificar as formas através das quais se tornam operantes os recursos discursivos de

erotização na publicidade onde não estão figurados corpos autênticos, corremos o risco

de precipitar-nos a projetar juízos demasiadamente abstratos acerca daquilo que aqui

chamamos de erótico, ou mesmo, em termos mais específicos, desejante29. Tentando

contornar tal inconveniente, percebemos a necessidade de sedimentar algumas noções

relacionadas ao que pode ser considerado como da ordem do erótico, o que autorizaria,

por fim, uma sintaxe adequadamente formalizada. É ponto pacífico e consensual que

não é adequado restringir o conceito de erotismo às cercanias de um código estético

cultural ocidental, buscando dar conta, da forma mais abrangente, das diferentes noções

de erotismo existentes. No mínimo, pelo risco da inconsistência 30.

No dicionário de língua portuguesa, a definição do substantivo abstrato

erotismo aponta para recortes lexicais obtidos por uma valorização fórica da

sexualidade31 (distinta da valorização disfórica pressuposta em pornográfico). O termo

é derivado do radical grego Eros, que na mitologia era o nome do deus do amor.

Primitivamente, o substantivo também descrevia o desejo amoroso, e que em seguida é

aplicado a qualquer tipo de desejo vivo, qualquer paixão, qualquer ardente impulso de

qualquer coisa32. Para Freud, assim como para certos psicólogos que nele se inspiram, o

termo erotismo abrange, num sentido muito amplo e variável, a acepção propriamente

sexual além do sentido do desejo em geral.

Deus grego do amor e do desejo, Eros apresentava-se, na tradição mais

antiga dos estudos da mitologia, como a força ordenadora e unificadora do cosmos.

Assim ele aparece na versão de Hesíodo e em Empédocles, pensador pré-socrático. Seu

poder unia os elementos para fazê- los passar do caos ao cosmos, ou seja, ao mundo

organizado. Em tradições posteriores, era tido como filho de Afrodite com Zeus,

Hermes ou Ares, de acordo com diferentes versões. Contudo, Platão o descreveu como

filho de Poro (Expediente) e Pínia (Pobreza); era o deus do instinto básico da vida,

29 O termo “sedução” (bem como os desdobramentos “sedutor” e “seduzido”), que no senso comum ocupa o lugar das expressões aqui empregadas, é evitado pelas especificidades da terminologia própria da gramática narrativa. 30 A priori, a sintaxe erótica dos objetos estudados é autorizada pela dimensão sexual que está presente. Contudo, em função do panorama ambíguo que poderia ser desenhado em torno do referente sexual, faz-se necessária a adoção de alguns conceitos sistematizantes, no sentido de garantir o rigor científico da pesquisa. 31 A. Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa . São Paulo: Objetiva, 2001. 32 A. Lallende, Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

23

responsável pela atração entre os corpos, e pela força vital que impulsionava a vida

(Freud referiu-se a esse mesmo deus Eros de Platão como a Libido, força vital de amor).

Para Platão, a essência do amor e do desejo era "sentir falta de", estar em busca

constante, em perpétua insatisfação33. Semioticamente, o trajeto que leva a conjunção

com o objeto desejado (ou com o sujeito amado), capaz de romper a disforia

peremptória da disjunção que abate o insatisfeito, reque r que este adquira competência

para, em seguida, realizar uma performance. Na publicidade, a promessa de tal

conjunção (a obtenção deste objeto modal ou de valor) viabiliza a adoção de um

procedimento de manipulação de um sujeito sobre outro. Para Landowski:

(...) essa falta estruturalmente programada, não podemos esperar supri-la, a

não ser imaginariamente, por meio do consumo de outros simulacros da

mesma natureza, seguindo sempre os mesmos percursos de leitura propostos

como promessas de um gozo que eventualmente será real e que, por essa

mesma razão, é sempre adiado.34

Mas o que é, em termos semióticos, o desejo? Para Rauh e Revault

D’Allones, o desejo é a “tendência para se obter uma emoção já experimentada ou

imaginada” 35. Entretanto, tal simplificação exclui a primazia de certas tendências em

relação às emoções correspondentes posteriores. Neste sentido, parece-nos mais

adequado interpretar o desejo (de um objeto, de um ser humano, de um ato ou de um

estado) sem que nele haja necessariamente a representação dos estados afetivos de seu

fim. Em outros termos, poderíamos então dizer que o desejo é uma tendência

espontânea e consciente em direção a um fim conhecido ou imaginado. Para Lalande, o

desejo difere da vontade, por tornar inviável a coordenação (pelo menos momentânea)

das tendências, e por suspender a oposição entre o sujeito e o objeto – o desejo se dá

entre sujeitos. Além disso, também não considera os meios pelos quais se realizará o

fim pretendido, enquanto que a vontade envolve a consciência de sua própria eficácia. O

contrário do desejo é a aversão, termo que também implica uma tendência imperativa

debelada pela representação de um estado afetivo. Entretanto, a idéia de representação –

aplicada aqui tanto ao deflagrar do desejo quanto ao da aversão – sugere uma lógica 33 P. Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. 34 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 141. 35 Rauh e Revault D’Allones, in A. Lallende, Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 241.

24

cognitivista nos mecanismos descritos, sustentando a improfícua idéia de um erotismo

em conformidade com o regime da junção (o que excluiria a dimensão sensível

anteriormente colocada). Em termos de uma semiótica da dimensão estésica, o desejo

independe de “objetivo estratégico” e de “cálculo” 36, o que implicaria um desejo

unidirecional, intelectivo e distanciado. O que o regime da união sugere é justamente

um “desejo com”, em que a relação sujeito/objeto dá lugar a uma relação intersubjetiva,

entre corpos-desejantes. Como teoriza Landowski:

Independentemente de todos os atrativos específicos que se queira (ou junto

com eles), esse quê do qual depende o nascimento do desejo é, como no

caso do riso, o próprio estado do corpo do outro, apreendido como um todo,

face à nossa própria capacidade de senti-lo em seu estado (hipotético) de

corpo desejante.37

Tal regime de interação parece depender inexoravelmente de uma postura

distinta dos actantes envolvidos. Eis a razão: experimentar o estado somático do corpo

do outro presentificado, ele mesmo agora na condição de sujeito de um sentir próprio,

demanda que o sujeito primeiro desta interação aproxime-se daquele o suficiente para

que a relação estabelecida seja da ordem da troca bi- lateral. Ou seja, que sua condição,

seu estado, suas próprias manifestações somáticas sejam colocadas em jogo, articulando

uma transformação dinâmica e recíproca. É a imediaticidade propriamente dita que

funda tal relação estésica. Não consideramos mais, como única leitura possível, a

apreensão estética de um sujeito cognitivo em contato (distanciado) com um objeto e

seus efeitos de sentido. Para Landowski “não há mais, nesse caso, um observador que

julga e finalmente decide, mas um corpo que experimenta a qualidade sensível da

presença do outro corpo” 38. O corpo-objeto, distante, imagético, estético, dá lugar ao

corpo-sujeito, somatizado, experimentado como a si mesmo, num movimento

proprioceptivo que tem o outro como extensão, que tem no outro referência. Um corpo-

sujeito é, na nossa medida, um corpo que nos aciona como corpos-sujeitos, que nos

interpela ao ser interpelado, e que ao desejar convoca as ordens sensitivas de seu

parceiro a fazê- lo também. Nesse desejar junto, não há lugar, ao menos a priori, para 36 E. Landowski, “En deça ou au-delà des stratégies, la présende contagieuse”. In E.Landowski, Passion son nom. Essais de sócio-sémiotique III, Paris, Presses Universitaires de France, 2004. 37 Ibidem, p. 9 38 Ibidem, p. 9.

25

julgamentos estéticos ou avaliações comparativas. É algo imperativo, irremediável e

absolutamente imediato. Como na Teogonia de Hesíodo, que descreve Eros como o

mais belo dos imortais, capaz de subjugar corações triunfando sobre o “bom senso”

(grifo nosso)39.

Desta feita, no presente estudo, o termo desejo aponta uma modalidade de

tendência (ou de querer) manifestada entre dois corpos-sujeitos que assim se fazem

presentes um ao outro, associada à fruição de um estado afetivo da ordem do gozo, do

prazer sexual40, que, por essas características tem sido bastante explorada nas várias

mídias com seus distintos formatos. Esse gozo, esse prazer é a intencionalidade

almejada pelos construtores de linguagens, como mostra Yvana Fechine em suas

análises da produção de sent ido na televisão41 e Ana Claudia de Oliveira nas análises da

mídia impressa.42 Tal noção implica intersubjetividade, e este é o ponto central das

análises dos anúncios selecionados.

2.4.1 Olhar e ser olhado

It's not the pale moon that excites me, That thrills and delights me, oh, no… It's just the nearness of you. It isn't your sweet conversation That brings this sensation, oh, no… It's just the nearness of you (Hoagy Carmichael)

Através do discurso publicitário, o consumidor é convidado a entrar em

contato com os produtos anunciados e a assumir uma postura comprometida com os

simulacros encenados. Um anúncio que traz a imagem de uma jovem olhando um

produto qualquer, por exemplo uma jóia, ou um perfume, figurativiza tanto o simulacro

do usuário do produto quanto o sujeito do enunciado que, ao desejar o produto,

presentifica-se. Sendo o que for que o produto apresente de sedutor, o consumidor

39 P. Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. 40 A noção aqui adotada para o termo desejo deve-se, em grande parte, à contribuição da Profa. Dra. Yvana Fechine na banca de qualificação. 41 Y. Fechine. O sensível expandido: pressuposto para uma abordagem nas mídias. Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, São Paulo, 2005. 42 A. C. de Oliveira, O sabor de “O Sabor Pão de Açucar”, in Mídia Br. Livro da XII COMPOS. Porto Alegre, 2003, pp. 145-179.in André Lemos, Ângela Pryston, Juremir Machado da Silva e Simone Pereira de Sá (orgs.).

26

vislumbra na encenação a possibilidade de participar deste jogo, de fazer-se presente, de

ser olhado e, de fato, isso acontece43. O insinuante flerte visual da modelo que encara

seu espectador, possuída pelas sensações despertadas pelo produto, também presentifica

o sujeito da enunciação, colocando-o na condição de objeto. Tal qual o produto no

exemplo anterior, agora o sujeito objetivado é desejado. O foco não incide na

determinação do simulacro construído, os reforços e as insinuações sexistas das

representações caricatas que a publicidade promove. Na verdade, os esforços analíticos

aqui subentendidos traduzem-se no processo que leva o sujeito a se reconhecer e a

interagir com o simulacro.

Deve ficar claro que, na enunciação publicitária, o sujeito da enunciação é

externo ao enunciado, ou seja, àquilo que se encerra na esfera do anúncio. Ele pode ser

tanto o anunciante quanto o consumidor. No plano do anúncio propriamente dito,

aparece a figura do sujeito do enunciado: uma modelo, um garoto propaganda, ou

mesmo uma personalidade reconhecida, uma figura pública com certa notoriedade. O

sujeito da enunciação, uma vez confrontado com o sujeito do enunciado, é

compulsoriamente levado a presentificar-se, a reconhecer sua própria presença. Assume

o papel de objeto do sujeito do enunciado. Logo, aquilo que o sujeito do enunciado olha

é simulacro do sujeito da enunciação (objetivação do sujeito da enunciação).

Segundo Landowski, é recorrente nos anúncios publicitários a

figurativização de corpos em estado de “possessão”. Esta mediatização dos sujeitos

enquanto corpos possuídos, “comovidos”, é o simulacro mesmo da apreensão do objeto

pelo destinatário. No núcleo de tal estratégia sexualizante, onde o estado do corpo que

nos colocamos a observar é o do corpo desejante, insinuante, possuído uma vez que

sensibilizado, opera a reciprocidade da condição estésica. Esta concupiscência

mediatizada (figura 3), este prazer manifesto, é o gozo que os corpos-sujeitos nos

enunciados publicitários conosco dividem, e no qual temos participação no momento

em que somos interpelados. Conforme explica Landowski: “é a nós que todos esses

corpos comovidos se ‘dão’, pois é diante de nós que eles se abandonam dessa maneira” 44.

43 E. Landowski. Op.cit.. 44 Ibidem, p. 149.

27

Figura 3 – Corpo possuído

Chanel, Vogue 2004

Eis aqui, portanto, o fechamento de um circuito. A configuração mínima

para deflagrar um impulso de natureza sexual entre sujeitos postos em relação está

relacionada aos próprios estados de tais sujeitos, reconhecíveis enquanto corpos

desejantes. Sua presença, e muito pouco mais. Contudo, como observa o próprio

Landowski, algumas operações sintáticas do discurso publicitário envolvendo a

presença de corpos levam às estruturas plásticas exauridas em sua dimensão erótica,

meros corpos objetos, estetizados e que nos colocam em presença de não-sujeitos

(figura 4). Estes corpos dissociados de seu estatuto erótico podem oferecer indícios da

maneira através da qual a publicidade engendra um erotismo efetivo, justamente pela

desarticulação entre presença e subjetividade que operam.

Esta visão objetivante, que parte de uma premissa mais sistemática, no

sentido de acolher uma condição além do estatuto sexual daqueles corpos a que somos

apresentados, pressupõe um regime de interação distinto do apontado acima. O anterior,

observado instaurando-se entre corpos desejantes, confia, à volição libidinosa dos

actantes, a operacionalidade da enunciação. Es te outro, suscitado por textos como o da

figura 4, cuja encenação parece abrandar a temática sexual – que, de maneira diversa,

28

seria instaurada peremptoriamente – se realiza na superficialidade da imagem em si, nos

termos de sua auto-referencialidade. Já não rompe com o aqui e agora da encenação

publicitária da mesma maneira que o faziam os enunciados dos corpos desejantes,

sempre apontando para um aquém ou para um além daquele momento específico

figurativizado. Se o faz, é através de valores outros postos em jogo e que não se referem

aos estados afetivos prometidos na imagem de natureza sexual.

Figura 4 – Corpo estetizado

Gucci, Cosmopolitan, 2004

Muito embora o comprazer-se mediatizado continue sendo observado nos

textos visuais a seguir, garantindo, de certa forma, a trama axiológica do corpus, parece

pertinente também observar como esta dimensão erótica do discurso publicitário é

afetada quando o corpo – combustível mais evidente do desejo e do interesse sexual – é

preterido. Certamente, os anúncios que sustentam um sentido erótico estésico devem

resolver a ausência de um sujeito desejante, observada na figura 4, de modo a garantir

um simulacro de intersubjetividade convincente, pois só na presença sensível de um

outro actante sujeito pode ser deflagrada tal relação. Investindo nesta busca, poderemos

identificar os convites enunciativos da ordem do desejo que a publicidade nos lança e,

29

uma vez convocados, que tipo de estado, tendência ou inclinação manifestamos nos

papéis actanciais que passamos a ocupar; nas palavras de Landowski, o que esta

iconografia “faz de nós ao nos solicitar” 45. Como explica Oliveira, é assim a própria

enunciação, fazendo ser o discurso interativo e o sentido apreendido nessas

convocações46.

2.5 Intersubjetividades

O melhor momento do amor é quando o amante está indo embora de táxi. (Michel Foucault)

O corpo objeto

Nas relações intersubjetivas que vivenciamos no seio da sociedade de

consumo (alvo derradeiro e canhestro da crítica contemporânea ao capitalismo de

mercado), o estatuto que opera – no que diz respeito à construção da noção do que é ou

não desejável – é, de certa forma e parcialmente, o da adequação a preceitos culturais de

ordem estética. Regras, tendências, modelos e princípios são cunhados no desenrolar da

estética sobre a cultura. O ambiente é fértil e ávido por tais referências, porém

movediço. Em tempos de turbo-capitalismo, de acirramento da concorrência, de

necessidade de fluxo de caixa e de novidade, a única constante estética é a certeza da

efemeridade. E quanto mais inalcançável o padrão vigente, menor o número de

indivíduos em adequação a ele. Neste panorama, destacam-se os que efetuam a melhor

(re)construção do simulacro de si mesmos, com base nas referências em voga. Todos os

louros aos que, de uma forma ou de outra, acompanham tais mudanças.

Estes preceitos ou valores, de toda sorte e nem sempre tangíveis, podem ser

verificados tanto nas expressões artísticas contemporâneas47 quanto em manifestações

mais pragmáticas da verve humana, como a publicidade e a moda. O que parece certo é

que tais referências são indicadores indeléveis de um código estético imperativo e

45 E. Landowski. Op. cit. p. 161. 46 A. C. de Oliveira, “As interações na Arte Contemporânea” in Galáxia, São Paulo, v. 4, p. 33-65, 2002. 47 O que, a rigor, não perfaz uma especificidade da sociedade capitalista, e sim um fenômeno extemporâneo, verificável na antiguidade, no renascimento, e mesmo nas experimentações menos prosaicas da modernidade, épocas em que algumas partes do corpo, certas medidas, ou mesmo certa atitude consideradas “atraentes” eram representadas.

30

articulador da intersubjetividade. Curioso que, isto posto, possamos reconhecer uma

dimensão cultural na sintaxe do belo, do sedutor e do que é considerado atraente, aquilo

que, em última análise e de forma inextricável condiciona, narrativamente falando, as

estratégias de manipulação de que se valem os sujeitos. Reconhecida tal “gramática do

belo”, as estratégias de adequação e de “transformação programada do corpo próprio em

imagem para o outro, em ‘corpo-objeto’” 48 podem ser subsumidas em estratégias de

“sedução” do outro, o que parece bastante razoável. Mas, como colocado acima, é um

estatuto que opera parcialmente.

Este universo imagético rege, ao menos de maneira parcial, os

comportamentos dos corpos em seus percursos narrativos em busca da conjunção com

seus objetos de desejo. Além disso, nos termos de suas implicações intersubjetivas, é o

que dá origem ao modelo cultural do “desejável”. Ou seja, um padrão sintático visual de

natureza cognitiva que condiciona o desejo e a atração sexual, que pode ser

objetivamente examinado nos termos das estratégias de sedução da sintaxe narrativa,

cujo objeto de valor posto em jogo parece ser a atratividade ela mesma. Entretanto,

parcial como é, este viés cognitivo das relações interactanciais da ordem do desejo

guarda um distanciamento perigosamente determinista daquilo que de fato a pouco

apontávamos como o aspecto mais decisivo do erotismo: a intersubjetividade. Apontar

um anúncio, uma imagem, um discurso como da ordem do erótico corresponde a

identificar na figuratividade dada um arranjo mínimo de dois actantes sujeitos, que é a

hipótese sustentada por esta dissertação.

O corpo sujeito

Para caracterizar aquilo que definíramos como da ordem do erótico, fez-se

necessário anteriormente recorrer ao regime da união, buscando dar conta da dimensão

estésica da interação entre dois sujeitos, ou seja, dos efeitos de sentido captados por

sujeitos desejantes, emanações somente percebidas no sentir junto, não no fazer

manipulador do sujeito sobre o corpo objeto49.

Admitir que todo anúncio, oferecido como texto ao nosso descomprometido

fazer interpretativo, nos faz sentir antes mesmo que venha a nos fazer processá- lo, tal

48 E. Landowski, Op. cit., p. 15. 49 Ibidem.

31

qual mostra Oliveira, no ato do leitor, que tem diante de si, de seu corpo, e não somente

diante dos olhos, o jornal50, é assentar o princípio fundamental para uma semiotização

do erotismo na publicidade. Isto porque, a partir do próximo capítulo, investir emos

justamente na procura das formas com as quais estes corpos instrumentalizam um

simulacro erótico. Entretanto, mais do que examinar a maneira como os simulacros do

enunciador e do enunciatário, por exemplo, são construídos, ou mesmo que estratégias

enunciativas estão colocadas em jogo no texto, o presente estudo, diante dos anúncios

publicitários aqui selecionados, volta-se à semiotização de como somos levados a

interagir com estes simulacros e como nos posicionamos ao significá-los. Em outras

palavras, que efeitos de sentido são despertados numa encenação erótica em que o corpo

propriamente dito não é dado a ver.

Ao lidar com os simulacros publicitários, lidamos, sobretudo e inicialmente,

com as presenças significantes que estes nos trazem. O corpo no anúncio é,

irredutivelmente, uma manifestação significante em si, e a manutenção deste corpo,

deste efeito de subjetividade (da qual depende o sentido erótico) garante um simulacro

de presença. É nesta astuciosa premissa que os anúncios parecem se apoiar. Segundo

Merleau-Ponty

Um espetáculo tem para mim uma significação sexual não quando me

represento, mesmo confusamente, sua relação possível aos órgãos sexuais ou

aos estados de prazer, mas quando ele existe para meu corpo, para essa

potência sempre prestes a armar os estímulos dados em uma situação

erótica, e a ajustar a ela uma conduta sexual.51

Objetivamos, na fotografia publicitária, tratar dessa situação erótica criada

no ato relacional com o destinatário, resultante da mesma série de eventos estésicos. Os

corpos figurativizados são para ser vistos porque vêem, ou deixam a entender que o

fazem: convocam o enunciatário, presentificando ele mesmo enquanto corpo desejante.

O programa narrativo de um anúncio publicitário em que o corpo sujeito,

presente e significante, se coloca como corpo-desejante, pode ser erigido através de

50 A. C. de Oliveira, “A dupla expressão da identidade do jornal”. In Caderno de textos do GT Produção de sentido nas mídias, Curitiba, v. 1, n. 1, 2006. 51 M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. São Paulo, 1999, p. 217.

32

inúmeras estratégias enunciativas. Uma delas, bastante recorrente, diz respeito às

combinações sintáticas no plano da expressão que convocam as ordens sensoriais

figurativizando o simulacro daquilo a que o enunciador é suscetível. Nos anúncios

analisados no capítulo três, observamos corpos invariavelmente adequados a padrões

estéticos rígidos e exemplares. Entretanto, na ausência desta figuratividade autêntica,

simulacros de toda sorte são construídos, e o que parece garantir a manutenção do

erotismo é justamente o sentido de intersubjetividade que é despertado no e pelo texto.

Tal investigação requer tanto uma abordagem narrativa do regime da junção como do

regime da união, e é esta complexidade da publicidade que nos faz pôr a prova a

eficácia da ampliação da gramática narrativa de Landowski.

33

3 DE SIMULACROS DE PRESENÇA À ASÊNCIA ERÓTICA

Pessoalmente, nada tenho a confessar sobre sexo, além do fato de que o pratico quando tenho vontade, quase sempre com outra pessoa. (Fernando Gabeira)

3.1 Insinuações e iniciativas

É imprescindível, para a deflagração de um sentido erótico minimamente

sensível nos discursos, que se vincule, em alguma instância do enunciado, uma

subjetividade a outra. Em outros termos, a circunstância basilar do surgimento do desejo

é aquela instituída na co-presença. Contudo, não porque esta paridade torne operacional

um jogo de sedução tipo ação-reação, em que um actante tome a iniciativa voluntária de

investir insinuantemente sobre seu parceiro, que em seguida, despertado de sua inércia

refratária, reagiria exibindo um comportamento libidinoso. Na verdade, anterior a

qualquer estratégia desta natureza, o mecanismo aqui referido é o da reciprocidade

imediata.

A apresentação de corpos desejantes nos textos visuais publicitários atende

este pressuposto ao midiatizar, de uma forma mais explícita ou de outra mais sorrateira,

o “espetáculo da intimidade” de actantes “exemplarmente desejáveis” 52. Nestes termos,

invariavelmente, ao elegermos um objeto de estudo pautando-nos na construção

sintática de isotopias sexuais, buscamos, em última análise, traçar um mapa destas

estratégias articuladoras da intersubjetividade. Como observado por Landowski, a

astúcia por trás de tais estratégias parece residir no inviabilizar da identificação dos

papéis e das responsabilidades dos actantes construídos pelo discurso publicitário, o que

implica que esta dialética fundadora do desejo é resultado tanto da manifestação de

certos traços legíveis por parte do objeto apreendido quanto do reconhecimento

“empreendido” destes traços por um sujeito- leitor. A responsabilidade por este jogo de

sedução não pode ser atribuída arbitrariamente a um dos actantes; pressuposta no

galanteio do sedutor, está a libido do seduzido.

52 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 145.

34

A reciprocidade do desejo

Alguns anúncios publicitários figurativizam ambos os actantes desta

dialética do desejo. A representação do erotismo (figura 1), encerrado num enunciado

sincrético (visual e verbal) pode traduzir sinteticamente a promessa ao enunciatário de

um gozo possível. A lubricidade dos actantes, os espasmos musculares, a tensão das

fisionomias e o contorcer dos corpos dão a dimensão do arrebatamento dos sujeitos do

enunciado pelo produto anunciado. É prática prosaica da publicidade apresentar ao seu

destinatário a encenação da experiência que acompanha a aquisição dos produtos. Neste

sentido, os anúncios mostram-se atentos à suscetibilidade de seus interlocutores às

demonstrações do êxtase alheio. Por identificação com os simulacros construídos,

somos levados a antecipar tais estados de êxtase encenados como se fossem já

experimentados, o que de fato depende, em última análise, da posse do produto.

Figura 1 – Erotismo e reciprocidade Dolce & Gabbana, Vo gue, 2004

No anúncio da figura 1, podemos observar uma transitoriedade dos estados

sensíveis dos corpos figurativizados. Sensibilizando-se reciprocamente em ato, ambos

35

os actantes encontram no contato de seus corpos o “não-vetor” de que depende o desejo.

Eles se entregam sensualmente um ao outro, indiferentes (ou mesmo cientes) aos

olhares indiscretos de um terceiro actante, o sujeito da enunciação, a quem oferecem o

espetáculo de suas intimidades. A hipótese plausível de se saberem olhados revela suas

pulsões exibicionistas na exata medida em que surpreende o enunciatário no exercício

de um voyeurismo enunciativo. Contudo, este triângulo virtual, implícito no arranjo dos

actantes, não é deflagrado no próprio enunciado por um simulacro de embreagem entre

o sujeito da enunciação e os sujeitos do enunciado, e tampouco convoca de maneira

categórica a presença do enunciatário.

O enunciatário surpreendido

No exemplo a seguir, da figura 2, observamos uma mudança significativa no

arranjo plástico dos actantes. A jovem em primeiro plano, que se entrega passiva aos

carinhos de seu parceiro, já não se contenta com a demonstração de interesse deste. Ela

encara o enunciatário, presentificando-o ao romper a surdina da enunciação, que no

exemplo anterior estava somente pressuposta. Ela está certamente ciente de ser

observada, e aceita este interessado olhar. Apática aos encantos de seu parceiro sem

face no enunciado, mas autorizando suas investidas, a alva coquete acena para este

pretendente revelado pelo seu olhar com um torturante convite que não pode ser

atendido. Nesta configuração, os três actantes se posicionam sobre uma mesma linha

perpendicular ao plano da fotografia, como se objetivassem – por julgarem possível –

cruzar as imposições actanciais do enunciado formalizado na página impressa. Tanto o

enunciatário quanto o parceiro sem rosto concorrem pela jovem. Mas sobre o

enunciatário, circunscrito em seu papel actancial, incide a provocação mais frustrante.

Sussurra- lhe a jovem: “este poderia ser você...”

36

Figura 2 – O triângulo amoroso

Jean Paul Gaultier, Vogue, 2004

A reciprocidade entre os actantes, enunciada de maneira bastante sofisticada

num intrincado jogo cênico e de olhares nas figuras 1 e 2, e que é condição para o

arranjo da relação no plano do desejo, pode ser figurativizada através de estratégias

enunciativas menos sutis e, na mesma medida, mais explícitas do que concordamos

chamar de manifestações da sexualidade. Na figura 3, a sutileza de um erotismo

insinuado e o jogo delicado dos olhares dão lugar a uma expressão mais incisiva da

isotopia sexual.

O ato consumado

No nível discursivo da figura 3, observamos um homem e três mulheres

entretidos numa simulação bastante detalhada de uma prática sexual grupal. Porém, a

tematização do comportamento sexual grupal não é necessariamente o elemento mais

37

perturbador53 desta curiosa imagem. O aspecto que parece torná-la tão incomum situa-se

em seu nível narrativo, e se refere ao objeto de valor “virilidade”.

Figura 3 – O “super-amante” Diesel, Elle, 2006

Ao contrário de outras imagens eminentemente eróticas, esta traz

figurativizada de forma quase explícita a sanção ao sujeito do enunciado (o intercurso

sexual obtido) que está em conjunção com o objeto de valor (o grupo de mulheres)

através do objeto modal (o “poder ser” pelo uso da calça da marca Diesel). A conjunção

carnal dos actantes efetiva seu estatuto de sujeitos desejantes através do ato sexual em

53 Segundo Landowski, “(...) não é por acaso que as estratégias de persuasão, ou melhor, de sedução publicitária privilegiam com tanta freqüência o espetáculo da intimidade: trata-se de presentificar estados de “possessão”, ou, ao menos, se a expressão parecer exagerada, de atrair nosso olhar e de tocar nossa sensibilidade recorrendo ao que talvez seja, intersubjetivamente, o mais “perturbador”, isto é, precisamente mediante a evidenciação da perturbação reconhecível no outro quando ele se sente como puro e simples corpo, inteiramente absorvido pela natureza imediata, efetiva ou fantasmática, do objeto, qualquer que seja a natureza deste”.

38

si, não na eminência dele. Esta forma de erotismo, inexoravelmente consumada, situa-se

além (ou aquém) daquelas estratégias discursivas que operam através de um desejo

recíproco e em ato. A imagem do conquistador viril consumando o ato sexual com suas

parceiras não é necessariamente da ordem da sugestão de um comportamento lascivo, o

que compromete aquele caráter dúbio da reciprocidade anteriormente observada,

justamente a astuciosa indistinção entre provocador e provocado. Em certo sentido, é

como se a imagem prescindisse, para a instauração de uma gramática do sexual, da

libido até agora fundamental manifestada pelo enunciatário: ela se resolve em si. É

curioso observar que tal “isolamento” se manifeste justamente na imagem onde a

temática sexual é mais evidente, aquela que há pouco apontamos como da ordem do

perturbador.

Essa ruptura sintática daquele erotismo que havíamos identificado nos casos

anteriores indica uma mudança no programa narrativo das imagens que, a priori, diz

respeito ao grau de erotização das imagens, seu caráter mais ou menos explícito e sua

“responsabilidade” no sexualizar da interação. Contudo, é um indicativo ainda mais

patente da existência de um estatuto actancial do desejo, regido pela noção das

presenças convocadas no ato da significação dos enunciados, ou seja, pela forma como

enunciatário e demais actantes são presentificados semioticamente. Invariavelmente,

estes simulacros se constroem na encenação remissiva ao êxtase, guardando diferenças

entre si que variam pela forma como os actantes são presentificados.

3.2 Simulacros de presença

Tomemos como exemplo a figura 4, uma jovem aos pés de uma estátua,

imersa na iconolagnia54 que exibe despreocupada de qualquer reprovação externa.

Possuída pelo momento, a jovem se volta para si mesma, comprazendo-se na

indiferença marmórea de seu parceiro inorgânico. Sujeitando-se à apatia dele, a jovem

reverencia em submissão o objeto estético a que se agarra, sorvendo do gélido toque que

executa acalanto para suas pulsões. A frustração iminente de seu interesse que não será

correspondido não parece abalar sua concupiscência. Refém de seu próprio fetiche,

torna-se incapaz de distinguir realidade e imaginação. Fecha os olhos e volta-se para as

imagens que lhe passam pela cabeça, para outra presença. Verdadeiro ou falso, pouco

54 Forma de satisfazer a libido vendo e/ou acariciando estátuas .

39

importa: consegue seu prazer na ambigüidade que a consome. Tal encenação onanista,

recorrente na publicidade, experimenta neste exemplo particular um desvio narrativo

que é da ordem justamente de uma semiótica das presenças.

Figura 4 – A presença fantasmática

Emanuel Ungaro, Vogue, 2006

A estátua, um objeto inanimado, não dotado de sensibilidade, um não-

sujeito, é o simulacro acabado de um corpo estetizado, de uma “ausência explícita” em

sua autonomia de objeto plástico55. É totalmente incapaz de retribuir o investimento de

valor que recebe. Mas é próprio desta sorte de ausência, que se materializa num

simulacro fantasmático de um co-actante fictício, convocar uma presença que a resolva.

Pouco importa se a jovem consegue diretamente de seu contato com a estátua uma

injeção de prazer ou se fantasia a respeito de um parceiro ideal a que a estátua remete. O

certo é que a lacuna convoca o enunciatário a sentir-se presente e em íntimo contato

com o sentir da jovem. De novo, um desejo recíproco, recuperando a presença do

55 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 161.

40

sujeito da enunciação, lançado novamente para dentro do enunciado. Situação análoga à

da figura 5, em que o mesmo tipo de arrebatamento toma uma outra jovem, inebriada

pelo actante a que se agarra. A demonstração libidinal nestes dois casos revela o valor

subjetal que é investido em objetos inanimados. Na figura 5, especificamente, a

impudica garota investe tal valor no próprio produto anunciado. O enquadramento e a

ardilosa desproporção do produto possibilitam ao enunciador simular um contato entre

os actantes do anúncio absolutamente visceral. Não só a jovem se agarra ao gigantesco

frasco de perfume, extasiada pelo contato de sua pele com a superfície indefectível de

cristal, como ela também parece experimentar o contato direto com o seu próprio

conteúdo licoroso. A imersão, aludida na dança frenética de seu delicado vestido,

aponta uma intimidade absoluta, que somente pode se dar no contato com o líquido,

capaz como nenhum outro estado da matéria de ocupar os espaços e sensibilizar por

completo a pele. Desta forma, vemos acionadas através da dimensão figurativa do

anúncio duas ordens sensoriais, a olfativa e a tátil, intrinsecamente ligadas ao sexual,

engendrando um erotismo que só se torna operante pela simulacro de subjetividade que

o frasco de perfume constrói.

Figura 5 – O corpo possuído

Chanel, Cosmopolitan, 2005

41

Por conseguinte, tanto na figura 4 quanto na figura 5, o enunciatário é

convocado por um simulacro de sua presença contido no enunciado, no dar-se diante

destas ausências programáticas cãs duas jovens, a encenar a convicção de uma presença

autêntica e sub jetal.

Vimos, por meio de diferentes estratégias enunciativas expressas nestas

imagens, desdobramentos de um mesmo estatuto do desejo, articulado no simulacro de

reciprocidade implícita entre os actantes. Em termos semióticos, a qualificação de uma

imagem como da ordem do erótico, isto é, da relação interactancial no plano do desejo,

pressupõe discursivamente aquele arranjo minimal anteriormente descrito que deflagra

uma intersubjetividade indelével. Contudo, entre as diversas estratégias discursivas

erotizantes empregadas pela publicidade, observamos ocorrências de textos visuais onde

um sentido erótico é sugerido através de presenças ainda mais evasivas que estas acima

mostradas. Talvez tenhamos prescindido tal presença nos enunciados publicitários que

identificamos como eróticos em conseqüência cultural do nosso próprio investimento

fetichista sobre as mercadorias, tratadas como “objetos de desejo”, e das quais pode-se

obter uma espécie prosaica de prazer. A hipótese é passível de discussão, mas não

desperta interesse neste momento. Parece mais instigante, do ponto de vista de uma

semiótica das presenças, investigar justamente o que acontece deste ponto em diante: o

que dizem estes simulacros de erotismo e como seus interlocutores os significam.

A linguagem fotográfica, prolífica em tornar presente o que parece da ordem

do “inapreensível e do instantâneo” 56, põe-se à disposição da publicidade nesta

operacionalização dos simulacros de presença. Um exemplo conspícuo do emprego de

princípios constitutivos fotográficos na construção de um simulacro de presença é o da

figura 6. Uma mão em garra aparentemente masculina se estende a partir do ângulo

inferior esquerdo da imagem, buscando alcançar uma caneca contendo a cerveja

anunciada. Todavia, o enquadramento fotográfico, o leve desfocar da imagem e a

perspicaz disposição da alça do copo criam a ilusão ardilosa de um seio feminino. O

enunciado verbal (“Não importa o que você vê. O que importa é o que é. O que importa

é a cerveja.”) confirma a ambigüidade da imagem, apontando duas dimensões distintas

implicadas no discurso: a primeira, das “aparências”, a segunda, da “essência”. Na

discursivização desta oposição semântica de base, verificada no nível fundamental, cria-

se uma imagem ilusória de conteúdo erótico – em referência ao prazer tátil

56 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 129.

42

proporcionado (e sentido) de tocar as zonas erógenas do corpo do outro – que o próprio

enunciado esclarece, revelando a anedota visual.

Figura 6 – A ilusão esclarecida

Schneider, Playboy, 2004

Temos, desta feita, uma leitura do enunciado que passa por dois momentos

contíguos: o primeiro momento, decorrente da ilusão – arquitetada pelo enunciador –

da presença de um seio feminino, e portanto, de um actante sujeito (a mulher), prestes a

ser apalpado pelo segundo actante sujeito (o homem de quem se vê somente a mão); e o

segundo momento, que se inicia em seguida, no desvelar do pequeno segredo que

mantinha o erótico operante, marcado pela verificação da presença de somente um

actante sujeito (o homem) e de um actante objeto (a cerveja anunciada). Contudo, a

revelação da ausência de uma intersubjetividade verdadeira, e que se dá no próprio

enunciado, não tem efeito retrógrado sobre aquele momento primeiro da sugestão de um

erotismo verídico no anúncio. Tal qual nos anúncios 4 e 5, o “embuste” do falso actante

sujeito (aqui esclarecido, lá mantido) é uma ausência virtualizante de um simulacro de

presença; o falso seio feminino é, nestes termos e para todos os efeitos, um seio, e a

metáfora visual construída no enunciado ressemantiza a dimensão ritual da interação

com o objeto cerveja. A usura57 relativa do uso pragmático do produto – do beber por

57 Sobre a noção de “usura”, cf. A. J. Greimas, Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002.

43

beber, exaurido de significados – dá lugar a uma forma mítica de apreciação do mesmo

na cadeia de eventos sintagmática da ingestão de cerveja. A figuratividade do anúncio

reforça os valores utópicos do produto, sua “sexualidade”. O enunciatário – que viu seu

investimento erótico fracassar, apanhado na anedota do enunciado – é convocado a

experimentar uma nova configuração dos modos de sociabilidade no beber, e o

constrangimento pela revelação de um erotismo ilusório agora é apenas reminiscente.

Através do simulacro de um seio, o enunciatário entra em conjunção com um simulacro

de mulher, sentido que a publicidade atribui recorrentemente à cerveja. Em última

análise, o bebedor desta cerveja experimenta, através deste gesto absolutamente

ordinário, um sopro libidinal, uma reação simpática e uma excitação sumária, como se o

discernimento o abandonasse, e só lhe acenasse a possibilidade de um seio verdadeiro.

Este tipo de simulacro de presença na publicidade, construído através de

“corpos de papel”, ilegítimos e objetiváveis, opera certamente através de um regime

diferente daquele observado no erotismo acintoso das imagens anteriores, em que a

dimensão estésica é notória. Naquelas imagens, corpos legítimos dando-se a ver

enquanto sujeitos; nesta, um corpo que logo revela-se objeto. Estas observações

preliminares sugerem que, na ausência de um interlocutor dado, figurativizado no

enunciado, as apologias à dimensão sexual dão-se através de um processo de

significação meramente cognitivo, o que, a priori, implicaria um comprometimento do

erotismo.

Esta seria uma hipótese bastante inofensiva, uma vez que, ao analisar

imagens publicitárias, estamos invariave lmente tratando de simulacros de presença de

toda sorte e natureza, em que operam de maneira inextricável tanto uma dimensão

cognitiva quanto outra sensível. Mesmo na ausência inconteste de um actante sujeito no

enunciado, de um corpo desejante, o sensível se faz presente e efetivo no plano da

expressão formalizado. Nestes termos, parece mais pertinente interpelarmos estas

sugestivas imagens buscando esclarecer como a intersubjetividade se põe em tais

circunstâncias. A ausência do corpo verdadeiro, vivo, desejante, inviabiliza o deflagrar

do erotismo? Em que medida esta ausência interfere no despertar da libido? Como o

enunciatário seria convocado a significar, diante de tais simulacros, uma iconicidade58

erótica, porém oblíqua e muitas vezes irônica?

58 O termo iconicidade é aqui usado no sentido de “resultado da produção de um efeito de sentido de realidade” sugerido por J. M. Floch.

44

Na publicidade impressa, alguns recursos são bastante recorrentes quando o

assunto é fornecer ao destinatário uma composição facilmente identificável como de

natureza erótica. Em “Presenças do Outro”, Landowski descreve em seu “quadro de

damas” a instauração do desejo através de uma permuta em ato da sensibilidade

subjetiva. Na tipologia proposta pelo autor, o estado de comoção dos corpos

figurativizados é a chave articuladora das categorias: sujeito socializado, corpo

estetizado, sujeito provocante e corpo possuído, que se revelam e convocam o

enunciatário no estabelecimento de uma trama de olhares bem definida59.

Construindo subjetividades

Como pudemos observar na última imagem analisada, a construção

metonímica de uma presença simulada na ausência de uma intersubjetividade

constituída parece sugerir um regime de interação da ordem do erótico. Recuperando as

impressões colhidas nas imagens anteriores, poderíamos apontar uma característica

recorrente nesta gramática do desejo enunciado, que diz respeito à atenuação daquele

sentido que já identificamos com da ordem do “perturbador”. Os estados de possessão e

o próprio erotismo, que se cristalizam acintosamente em imagens (publicitárias ou não)

figurando a reciprocidade entre corpos desejantes, parecem arrefecer nas imagens em

que as presenças são construídas, ou melhor, simuladas. Na figura 7, um exemplo de

anúncios isotópicos, com programas narrativos similares, que podem ilustrar esta

observação. Ambas as imagens anunciam um produto como objeto modal cuja

manifestação é tornar seu usuário – o enunciador – irresistível nos preâmbulos da

sedução. Os dois enunciados figurativizam a promessa de conquista através da

competência doada pelo produto. Os dois prometem a mesma coisa. Entretanto, entre

um e outro, uma indiscutível variação da expressão, que se reflete na homologação do

conteúdo.

O anúncio 7a traz dois jovens – um rapaz e uma garota – entrelaçados no

exercício de suas lascividade pueris. Ambos mostram interesse sexual. A jovem, mais

determinada, agarra seu parceiro pela virilha, que retribui a ousada investida com um

olhar cúmplice de aceitação. O permissivo rapaz carrega a jovem nos braços, porém

pelas costas, como o faria se portasse uma carga a atravancar seus movimentos. O texto

59 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 156.

45

verbal reitera este sentido aparentemente disfórico de uma parceira que se torna um

fardo enfadonho e limitante, pois é esta ironia que sustenta como a conquista

ambicionada tornar-se-á banal.

a b

Figura 7 – O erótico suavizado

Plugg, Esquire, 2004; Axe, Playboy, 2005

Em 7b, a mesma promessa de sucesso no jogo da conquista toma forma

numa construção lúdica que usa fios e extensões elétricas. Entretanto, dificilmente

afirmaríamos que o erotismo em 7a é da mesma ordem que em 7b. Não podemos

apontar, na segunda, nenhuma construção visual que seja operante pela iconicidade dos

formantes (como na figura 6), e que remeta imediatamente a presença sensível de um

corpo desejante. Podemos, certamente, observar a distinção de gênero entre os tais fios:

o que se coloca no centro da imagem, com suas proeminências fálicas, seria o

masculino, e os demais, ao seu redor, os femininos. De novo, a estratégia é prometer ao

enunciatário um sucesso avassalador, um super-poder de conquista e atração que, neste

caso específico, se vê figurativizado na atitude “libertina” das serpenteantes extensões,

abduzidas coletivamente pelos encantos penetrantes do usuário do produto. Contudo, a

astúcia deste enunciado reside na referência a um erotismo não imediato, cristalizado de

fato no processo cognitivo de apreensão do sentido. Vale lembrar que se trata de um

anúncio de desodorante da marca Axe, direcionado ao público masculino, dividido em

46

três páginas subseqüentes, e todos os objetos utilizados animam-se pela iminência da

idéia da penetração . Em todas elas o mesmo conceito (“o efeito Axe”) é figurativizado

de maneiras diferentes, sempre na ausência de um corpo, mesmo que construído. O

comportamento sexual destes objetos inanimados corresponde, em última análise, a

simulacros de intersubjetividades deflagrados pelo implacável fazer do hipnótico elixir

anunciado. Não poderá haver indiferença frente a encantos tão irresistíveis. Toda

resistência será subjugada

a b

Figura 8 – “O efeito Axe”

Axe, Playboy, 2005

O que observamos entre 7a e 7b-8a-8b não foi a suavização eminentemente

visual de um erotismo explícito, através de um enunciado mais espirituoso e inventivo,

estratégia que poderíamos relacionar com uma ética implicada no fazer publicitário. O

mais relevante, nesta configuração actancial dos anúncios de “Axe”, é a apresentação de

um simulacro de intersubjetividade totalmente construído na ausência do corpo. A vida

e o comportamento sexual adquirido pelos objetos cênicos utilizados não se apóiam em

analogias antropomórficas, capazes de sustentar uma referência direta a um sujeito

sensível. Este rearranjo lúdico da dimensão plástica sexualizante, evidente na figura 6,

por exemplo, implica tanto um sentido sexual velado quanto um enunciatário que

cognitivamente abrevie habilmente as substituições que tornam o enunciado operante.

Em outros termos, convoca um enunciatário desejoso de tais benesses prometidas,

47

ciente dos mecanismos que regem o jogo da conquista, e que identifique a construção de

sentidos conotativos nos enunciados.

Em todos os exemplos até aqui analisados, evidenciamos ao menos dois

simulacros de corpos (regidos por suas pulsões sexuais, a construir o sentido erótico)

encerrados no enunciado. À exceção da figura 2, em que o sujeito da enunciação está

presentificado efetivamente pelo olhar da jovem, participando ativamente do jogo

sensual da coquete, contabilizando três actantes interagindo, as demais imagens

parecem figurativizar um erotismo realizado nas cercanias do próprio discurso, que a

rigor independe da presença sensível do enunciatário. Contudo, como foi sugerido nas

observações iniciais deste capítulo, estes pequenos espetáculos de intimidade que nos

são dados a ver nos interpelam e nos convidam a participar deste erotismo percebido,

como se nele sempre estivéssemos envolvidos. A gramática destes enunciados de

sentido erótico pressupõe uma intersubjetividade da qual somos cúmplices, não

testemunhas. Mesmo na figura 1, em que identificamos a reciprocidade do desejo já

figurativizada entre dois amantes que nos ignoram (enunciatários), o mínimo que

podemos dizer é que, através da imagem, eles se dão a ver.

Sendo assim, nas imagens seguintes poderemos observar operações

discursivas que buscam justamente figurar alguns corpos que, ignorando ou convocando

o enunciatário, constroem um simulacro de intersubjetividade a deflagrar o sentido

erótico. É o caso específico da figura 9, em que podemos identificar um corpo de uma

jovem mulher “exemplarmente desejável”, dando-se a ver diante do enunciatário,

presentificado por seu olhar insinuante.

48

Figura 9 – O enunciatário “fisgado”

St. Paul Girl, GQ, 2005

Fica claro neste enunciado que a jovem dirige-se a seu interlocutor fora do

plano da fotografia, assumindo o papel semântico de sujeito provocante num simulacro

de “embreagem” com o enunciatário60. A jovem presentifica o sujeito da enunciação,

rompendo seu estatuto distanciado de observador despercebido, e envolvendo-o no jogo

que perfaz sua tática de sedução. Ao mesmo tempo, o sujeito da enunciação, que

também atrai sua parceira, assume o papel actancial de objeto de desejo desta. Já não

existe um agente deflagrador do desejo, pois o estatuto que passa a operar é o estésico.

O enunciado em questão constrói um sentido de reciprocidade através de um simulacro

de subjetividade (a jovem no anúnc io) que confronta o seu destinatário. Não existe

provocação, culpa ou responsabilidades. Não se trata de uma encenação sexual entre

dois actantes sujeitos. O sentido de desejo é construído tanto nas insinuações de um

quanto no deflagrar da libido do outro61, pois está implícita no enunciado a presença de

60 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 160. 61 Em 1976, Nagisa Oshima filmou “O Império dos Sentidos”, polêmico filme baseado numa tórrida e extenuante relação amorosa entre uma prostituta (Sada) e seu senhorio (Ishida). Numa passagem, Sada

49

um enunciatário a responder o interesse da jovem. Este arranjo rompe com o modelo

actancial observado na figura 1. A intersubjetividade, antes no enunciado, agora se dá

no plano da enunciação. Deixa de ser enunciada para tornar-se enunciativa, sendo que

somente um corpo desejante encontra-se figurado.

Situação análoga, porém mais pungente, encontramos em 10a e 10b: um

único corpo desejante, que se contorce possuído por sensações extasiantes, dá-se a ver

ao enunciatário. O que permite alinharmos 10a e 10b ao anúncio da figura 9 já não é o

jogo de olhares. Sem fitá- lo diretamente, a jovem em 10a e 10b convoca a presença do

enunciatário de maneira distinta. A proximidade à câmera, a provável posição do

fotógrafo, a maneira como a fotografia é manuseada numa revista, todos estes aspectos

pragmáticos supõem um enunciatário no papel actancial “virtual” de parceiro da jovem,

de seu amante em pleno intercurso sexual. Já não se trata de um espetáculo de

intimidades flagrado, mas de um espetáculo de intimidades vivido, projetado e tornado

plausível na intersubjetividade enunciativa. Desta feita, podemos inferir, a partir deste

reduzido grupo de imagens, que o sentido de co-presença de dois sujeitos (prerrogativa

da reciprocidade) pode realizar-se no enunciado ou na enunciação. No segundo caso, em

que o enunciatário torna-se o par pressuposto de um outro actante que o invita (seja pela

trama de olhares ou por outro recurso), a dimensão estésica é capital na distribuição

imediata dos papéis actanciais, uma vez que é o sentir do destinatário, interpelado por

imagens tão provocantes, que está em questão. Nos anúncios “Axe”, é na dimensão

cognitiva que o enunciado parece ganhar sentido. Tanto em 10a quanto em 10b, os

mesmos papéis actanciais sugeridos na figuratividade do anúncio são reiterados no

enunciado verbal “grind it in deeper”, em que o enunciador faz uso de um imperativo

verbal (“enfie”) modulado por um advérbio (“mais fundo”) para dirigir uma orientação

ambígua ao enunc iatário: é assim que se deve tomar uma Corona e é assim que se deve

“possuir” uma mulher.

questiona Ishida sobre sua potência sexual inabalável, pois esta seria sua maior fonte de excitação e a razão para o comportamento lascivo dela. Surpreso, o amante retruca: “a culpa é sua!”.

50

a b

Figura 10 – A intimidade vivida Corona, Playboy, 2003

No exemplo da figura 11, uma ligeira mudança na configuração dos papéis

actanciais. Uma jovem nua, usando apenas um relógio róseo-metálico e um par

(subentendido) de sandálias de salto, esparrama-se sobre uma cadeira entregue aos

prazeres da masturbação. O onanismo encenado na imagem, subsumido no comprazer-

se solitário de uma única subjetividade, é redefinido pela co-presença do produto

anunciado, o relógio róseo-metálico, que perfaz o companheiro utópico para um

momento de tamanha individualidade: o “tempo para mim”. A necessidade de prazer da

jovem e o fulgor de sua libido, que poderiam ser indicadores de uma “devassidão”

constrangedora, ficam somente entre ela e seu relógio. Cúmplice de sua concupiscência,

ele a envolve e a acompanha. Já o enunciatário, que observa esta cumplicidade,

experimenta certa retração, ignorado pela jovem ensimesmada. Resta- lhe testemunhar,

retirando do espetáculo presenciado alguma excitação, algum prazer visual, ou mesmo

experimentar o êxtase da jovem, em resposta a sua presença sensível. O que importa,

nesta análise, é atentar para a ausência de um actante sujeito, que acaba substituído pelo

fazer sentir do relógio. Em outras palavras, através do relógio, que envolve e faz a

jovem sentir, um simulacro de sujeito faz-se presente. A jovem em questão simula o

próprio estado comovido do enunciatário, prometendo a este a conjunção com seu

imaginário erótico, através da homologação deste frenesi sexual.

51

Figura 11 – O parceiro ideal

Accurist, Vogue, 2005

Temos, assim, algumas possibilidades de arranjo actancial:

Figura 12 – Arranjos actanciais

52

A maneira como o sujeito da enunciação é convocado por um corpo

desejante no enunciado define o sistema actancial que sobredetermina a interação.

Inevitavelmente, nas imagens analisadas, em que o sentido erótico é despertado,

observamos relações interssomáticas estabelecendo-se semioticamente. Na figura 12,

estão contemplados alguns arranjos actanciais observados, ilustrando os papéis

narrativos dos sujeitos da enunciação e do enunciado. Contudo, como fica claro a partir

da figura 11, o modo de presença dos actantes num enunciado erótico nem sempre se

constrói através de arranjos tão elementares. No positivismo de um esquema, corremos

o risco de ignorar possibilidades sintáticas que só podem ser verificadas no contato

direto com os sujeitos presentes nas imagens. Entretanto, partimos de 12a e de 12b, para

ocuparmo-nos em seguida de outra sorte de anúncios: exatamente aqueles em que a

relação se define entre actantes cuja subjetividade é simulada, ou seja, construída por

simulacros de embreagens na ausência de um corpo desejante verdadeiro.

Exemplos desta “ausência” que se preenche de subjetividade aparecem no

primeiro grupo de anúncios do esquema a seguir (13a), em que uma presença virtual é

sugerida por um elemento cênico, que só assume um papel actancial pelo investimento

de valor feito por sujeitos de fato presentes no enunciado. Já no segundo grupo (13b), a

presença do enunciatário – convocado pelos sujeitos do enunciado – resolve a ausência

na esfera da enunciação.

53

a

b

Figura 13 – Simulacros de intersubjetividade

Estas imagens, que em certa medida constroem uma ilusão de co-presença, o

fazem recuperando esta subjetividade oculta através de outro actante sujeito. Entretanto,

em algumas imagens evidentemente eróticas, sequer um sujeito dado se faz presente no

enunciado. Nestas imagens, observamos diversos recursos enunciativos que logram a

falta do corpo desejante e, com astúcia, dão um sentido de sexualidade ao discurso. O

simulacro encenado, invariavelmente, resgata a presença de um corpo desejante

recuperando figurativamente algum aspecto de sua existência. Esta referência recorrente

a um corpo fantasmático, fictício e, portanto, ausente, ratifica a promessa iconográfica

da publicidade já identificada por Landowski. Para o autor, os enunciados publicitários

estão sempre apontando para um alhures, mais real e mais perfeito, pois são “imagens-

54

testemunhas” que “remetem a um vasto espetáculo no qual somos convidados a

participar diretamente”62.

Na figura 14, uma construção gestáltica de figura-fundo dá forma a um vulto

fantasmático e deixa poucas dúvidas acerca dos atributos estéticos do corpo feminino a

que se refere. Contudo, este negativo bidimensional de uma presença autêntica e

inegável já é, concomitantemente, uma forma de ausência. Através dela, abre-se uma

lacuna em que a consumidora pode projetar sua própria subjetividade e antever, como se

estivesse diante de um espelho mágico, as benesses a que terá acesso. Nos limites

invejáveis da exígua silhueta apresentada, está confinado o simulacro de corpo

almejado.

Por sinal, o contorno é o valor prometido pelo produto anunciado, um

depilador íntimo da marca Remington. Além da depilação precisa e delicada de pêlos,

um cuidado estético deveras relevante para se vestir um biquíni, o produto também dá

forma e contorno ao simulacro de sua usuária, figurativizada numa mulher bem depilada

e esbelta numa construção concreta da promessa: é o enunciado verbal “novo depilador

para biquíni da Remington” que dá forma a seus pêlos pubianos.

Figura 14 – O vulto

Remington, Marie Claire, 2004

62 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 138.

55

Não parece haver dúvida que diante de uma imagem tão eloqüente, uma

dimensão erótica seja instaurada. A presença significante da jovem que nos fala de sua

desejabilidade é indissociável do cândido e ao mesmo tempo enigmático contorno.

Expondo-se diante de seu interlocutor, liberta de seus pudores pela certeza do

anonimato, a bela jovem revela sua intimidade com plácida altivez. É ao enunciatário

que cabe fechar o circuito da co-presença, pois é a ele que ela se refere. Em outras

palavras, é por ele que ela é.

Temos, neste último anúncio, uma recuperação relativa do modelo actancial

que está ilustrado no anúncio “grind it deeper” (10b), pois em ambos inexiste no

enunciado um segundo actante sujeito. Tanto lá como cá, é na esfera da enunciação que

uma subjetividade se vincula a outra. Contudo, este último anúncio parece caracterizar

uma variação semiótica do modelo identificado, pois a intersubjetividade enunciativa

que caracteriza este tipo de arranjo encontra-se parcialmente obliterada pelo modo

inexato de presença da jovem fantasmática. A partir da identificação deste jogo

semântico entre presença e ausência, deste tipo de subjetividade inacabada ou “parcial”,

devemos investir na análise destes corpos quiméricos, o que não necessariamente

implica verificar a legitimidade do erotismo, mas o seu mecanismo semiótico.

3.3 O sex appeal do inorgânico63

A partir deste momento, concentraremos nossos esforços no estudo de

imagens eloqüentes com grande referência ao sexual, que nos seduzem, ou melhor,

buscam nos seduzir, através de encenações em que esta subjetividade está ausente.

Trataremos agora de simulacros de sujeitos que nos convocam sem se revelar a si

mesmos. Sujeitos fugidios, invisíveis, incompletos ou inexistentes, cuja imanência

sensível pode ainda nos surpreender.

No apagar da co-presença sensível entre actantes sujeitos, ou da encenação

desta co-presença (como é o que ocorre através da fotografia publicitária), o simulacro

erótico é agora um simulacro “simulado”. Aos olhos de seus destinatários, estas

encenações insopitavelmente sexuais ganham forma na ausência de corpos legítimos,

através da capciosa construção de “corpos de papel” (falsos, parciais, ilegítimos...), que

63 O título desta seção é tomado emprestado do livro homônimo de Mario Perniola, em que é descrita uma forma de sexualidade transversal, entre os sujeitos e os objetos.

56

deflagram nossa libido aquiescente em busca de pequenos prazeres visuais, como se

desmascarassem embaraçosamente nossas perversões adormecidas. Estes corpos

somente tornam-se operantes (desejantes) mediante a referência a uma subjetividade

plausível (por conseguinte, verdadeira). Entretanto, o sentido de erotismo vinculado a

tais simulacros experimenta um esmorecimento proporcional ao “comedimento” de sua

iconicidade. Em outros termos, é como se o sexual perdesse a propriedade de nos falar

diretamente, de “apresentar” aqueles sujeitos a nos comover, para nos interpelar através

de “representações” de corpos privados de sua subjetividade, o que configuraria um

regime de interação da ordem da junção. Tomemos o exemplo abaixo a partir deste

ponto de vista.

Figura 15 – Subjetividades construídas La Olla Caliente, Arena, 2003

Não podemos apontar na imagem acima nenhuma estratégia enunciativa que

busque remeter a um simulacro de corpo pela iconicidade plástica no plano da

expressão. Pelo contrário, a construção do sentido sexual, que no exemplo da figura 6 se

dá através de uma metáfora visual de um seio e de um recurso metonímico de

linguagem, na figura 15 passa por uma simulação de subjetividades de outra ordem. O

anúncio é de um restaurante erótico espanhol chamado “La Olla Caliente”. Traz a

imagem de um prato retangular, decorado com ramos verdes e sementes vermelhas,

sobre o qual o encaixe engenhoso de dois camarões faz alusão a uma posição sexual. O

57

que está figurativizado, portanto, não é mais da ordem de um corpo estético que se dá a

ver ao enunciatário, na certeza de sua desejabilidade. O simulacro apresentado é o da

intersubjetividade real, narrativizada pelo comportamento libidinoso dos actantes. Em

outros termos, o enunciado personifica duas subjetividades pela simulação da volição

dos camarões, animando-os a manifestar um desejo que autoriza uma espécie de

“metamorfose” semiótica. Eis ali, deitados sobre o prato, dois indivíduos aprazendo-se

reciprocamente. Entretanto, tal é o desvio figurativo, a restringir qualquer vínculo com

corpos reais, que o sentido erótico resultante somente torna-se operante numa dimensão

cognitiva. É o ardil insólito do preparador que está sendo revelado pelo prato, uma

apimentada e excitante iguaria. Tais encantos gustativos convocam diferentes ordens

sensoriais, remetendo a uma desejabilidade sinestésica que já não é somente da ordem

do paladar, mas do prazer sexual. A deleitosa refeição resultante é o objeto de valor

oferecido pelo anúncio, um simples quitute que acaba por se tornar afrodisíaco no fazer

competente do restaurante.

Diferentemente da imagem 14, a imagem 15 apresenta um arranjo actancial

sexual dentro do enunciado. O destinatário é o espectador interessado do espetáculo, e

seu papel actancial é similar ao apresentado no esquema 12a. Contudo, a erotização

deste enunciado passa necessariamente por um fazer cognitivo do enunciatário, ciente

tanto da provocação que lhe esta sendo feita quanto do distanciamento figurativo que

atenua o impacto da conotação sexual.

Esta intersubjetividade enunciada é um simulacro rasteiro da presente, por

exemplo, na imagem 1, que ilustrava a reciprocidade do desejo, operando de maneira

contundente na presença figurada de dois corpos autênticos, cálidos, sensíveis. Como já

foi colocado, na ausência de tais qualidades contagiantes, o sentido de erotismo e a

construção de um simulacro de sexualidade passam a ocorrer mais proeminentemente

numa dimensão cognitiva. O mesmo tipo de intersubjetividade pode ser observado na

imagem 16, anúncio que personifica actantes sujeitos através de objetos subjetivados

discursivamente. É na atribuição de uma qualidade intelectiva a estes actantes objetos

(inanimados por natureza) que o simulacro de erotismo deste enunciado ganha sentido.

58

Figura 16 – “É você?”

Mont Blanc, Vogue, 2005

Como alguém que pressente a chegada de seu amante, antecipando o contato

entre seus corpos, captando suas vibrações sensíveis, seu perfume e seu calor, o actante

sujeito pressuposto no enunciado verbal “é você?” é projetado na corporeidade objetal

do primeiro relógio. O amante anunciado, ainda a revelar sua presença total, é o

simulacro que o segundo relógio materializa. A estratégia se assemelha à utilizada no

anúncio da figura 15, em que já tínhamos ensejados dois sujeitos dotados de uma

intelecção volitiva; aqui e lá, podemos tomar estas subjetividades construídas como

simulacros de um actante sujeito que presentifica o enunciatário, envolvendo-o no

universo iconográfico de cada texto, como se ocupassem contingentemente o lugar e o

papel que lhe cabem. Nestas condições, os argumentos colocados parecem indicar que a

subjetividade do enunciatário é que se encontra figurada em cada um destes simulacros

de intersubjetividade.

A partir dos exemplos 14, 15 e 16, amostras bastante representativas dos

simulacros de subjetividade engendrados no discurso publicitário, podemos acrescentar

ao modelo da figura 12, as categorias ilustradas abaixo. Nestas, ao contrário do que

59

verificamos naquele modelo, os actantes sujeitos no enunciado são subjetividades

construídas, simulacros de subjetividade que capitalizam esta não autenticidade. Estes

simulacros de presença convocam o enunciatário a significar os enunciados na

“ausência” dos corpos (processo semiótico que implica uma referência a um actante

externo) e despertam aqueles efeitos de intersubjetividade identificados nas demais

figuras.

Na presença de um actante sujeito simulando um estado “debreado”, vimos

que o enunciatário pode ser convocado de várias formas: como parceiro pressuposto

deste actante (figura 10a e 10b), como seu objeto de fantasia e parceiro imaginário

(figura 11), etc. Contudo, na ausência deste actante sujeito em enunciados eróticos (17b

e 17c), o que verificamos são simulacros de presença no lugar daqueles sujeitos

autênticos anteriormente identificados. Estes efeitos de intersubjetividade podem

acontecer, assim como indicado no modelo da figura 12, entre dois actantes enunciados

ou entre um actante enunciado e o enunciatário (17c). Neste caso, temos um simulacro

de sujeito provocante dando-se a perceber como corpo desejável a um outro actante, o

enunciatário.

Figura 17 – Simulacros de subjetividade

60

Desta feita, a partir da proposta de Landowski acerca dos regimes de visão

engendrados pelos actantes, observamos no corpus analisado que os estados embreados

e debreados dos actantes figurativizados dão forma a intersubjetividades que podem se

resolver tanto no enunciado quanto na enunciação.

No percurso das análises até aqui desenvolvidas, observamos modos de

presença plenamente resolvidos, precipitando subjetividades postas em relação tanto no

enunciado quanto na enunciação. Progressivamente, estes sujeitos deram lugar a

simulacros de presenças que, ainda construindo uma temática erótica, remetiam a

subjetividades efetivas. Estes simulacros de presença operam segundo o mesmo estatuto

apontado na oposição acima, sem, contudo, fazerem uso de actantes sujeitos autênticos.

Pelo contrário. Os corpos de que se valem parecem eximir-se de uma responsabilidade

intelectiva, como se buscassem justamente apresentarem-se como meros corpos

desejantes, actantes “sujeitos” reprimidos, exauridos de suas falibilidades, de suas

indulgências, subsumidos a seu “sex appeal” residual, este derradeiro atributo

quintessencial que os torna desejáveis e que melindra uma intersubjetividade parca, mas

irrefutável.

Na figura 18, observamos uma situação singular. Os objetos utilizados não

têm vida, volição ou outra qualidade intelectiva destacada pelo enunciado. São dois

artefatos inanimados colocados lado a lado, quase como resultado dos caprichos do

acaso. O enunciado destaca os atributos pragmáticos do produto, referentes à

lubrificação dos órgãos sexuais (temática de difícil abordagem, que poderia dar origem

a um anúncio agressivo e vulgar), lançando mão de uma figuratividade absolutamente

inócua. Entretanto, o sentido sexual deste enunciado se baseia na eminência da conexão

entre o tubo e a embalagem, elementos que metaforizam, respectivamente, os órgãos

sexuais masculino (o que penetra) e feminino (que é penetrado).

61

Figura 18 – Sexualidade metafórica

Johnson & Johnson, Playboy, 2003

Um princípio guestáltico argutamente utilizado dá sentido ao anúncio.

Alinhados à mesma altura, um tubo de KY gel e uma embalagem do produto buscam

mostrar a capacidade lubrificante da fórmula anunciada pela alusão a uma penetração

que se consumará apesar da incompatibilidade patente. É evidente que temos muito

conteúdo para pouco continente, e que tal movimento magoaria a frágil embalagem

cartonada. Contudo, ao sugerir a possibilidade da operação pela contigüidade dos

objetos, o enunciado revela um atributo da ordem do extraordinário que o produto

apresenta: a competência de viabilizar esta improvável penetração. Não se fala aqui de

subjetividades que se constroem ou de corpos mimetizados realisticamente na dimensão

figurativa do anúncio. A ênfase está numa penetração subentendida, que é arquitetada

de maneira simples, quase ingênua. Ainda assim, indubitavelmente, o que está em jogo

é uma valorização eufórica do prazer, do conforto no ato sexual e do gozo, aspectos

mais abstratos de um erotismo que se revela na semântica fundamental do enunciado.

Esta estratégia discursiva se assemelha à apresentada no anúncio dos relógios que se

aproximam, pois constrói, de maneira análoga, um simulacro de intersubjetividade

enunciada: dois sujeitos que se encontram e se relacionam no enunciado. Entretanto,

nesta imagem do lubrificante, a analogia fica inteiramente por conta da dimensão visual.

Sem um enunciado verbal que a corrobore, a imagem ganha sentido de forma similar a

que observamos em 7b, 8a e 8b, ou seja, pela identificação de uma relação

62

semissimbólica de construção do masculino e do feminino implícita na forma dos

objetos utilizados. A conotação sexual do anúncio se dá pela soma de um novo sentido

(de um novo conteúdo) ao plano da expressão existente na imagem, através de uma

relação de intersecção entre dois significantes que compartilham um traço comum: a

penetração. Um significante, o tubo, está figurado. O outro, o falo, é referenciado. Esta

construção metafórica do significado do texto é bastante recorrente na literatura, que

explora amplamente a função poética do discurso. Para tanto, é necessário que haja uma

relação entre o significado que se acrescenta e o significado já presente na dimensão

denotativa do signo utilizado64.

Neste caso citados no parágrafo anterior, os objetos inanimados são alçados

a condição de actantes sujeitos do enunciado. Articulam, desta forma, um simulacro de

intersubjetividade enunciada. Neste tipo de arranjo, como já foi colocado, o enunciatário

é convidado a experimentar tais posições actanciais por se reconhecer no simulacro.

Seja o relógio, o parafuso ou o tubo de lubrificante, todos estes objetos presentificam o

enunciatário e figuram-no como beneficiário de suas promessas mirabolantes. Nestes

exemplos, as estratégias discursivas parecem passíveis de uma semiotização centrada na

dimensão cognitiva dos textos. Contudo, nem todo anúncio recorre a estas mesmas

estratégias para a edificação de um sentido erótico. Ao preencher uma ausência, estas

imagens de objetos “animados” constroem um tipo de subjetividade, e em certos casos,

a semiotização do resultado destas operações exige uma atenção aos aspectos sensíveis

implicados. Isto porque, eventualmente, alguns anúncios formalizam estes sentidos de

subjetividade por meio de metáforas da ordem do ilusório, que conduzem mais

incisivamente à corporeidade, revestindo os objetos utilizados (ausências) no véu

figurativo de uma presença real. No exemplo do anúncio anterior, o acréscimo

metafórico de um sentido fálico ao tubo (ExCxC), não constrói uma imagem cuja

iconicidade revela um significado sexual explícito. Pelo contrário, é justamente o

distanciamento figurativo entre falo e tubo que atenua a “abrasividade” da imagem.

Entretanto, lá está o sentido sexual, garantido pelo traço comum aos dois significantes.

Neste ponto, deparamos com uma questão sistemática em nosso estudo: qual seria, em

termos semióticos, a diferença entre o “sexual” o “erótico”? O anúncio do lubrificante

pertence a um grupo de imagens que nos fala de uma sexualidade inicialmente “muda”,

64 J. L. Fiorin. Metaphore et métonymie: deux processus de construction du discours. In: J. M. Gressin (org.). Dictionnaire international de termes littéraires. Limoges, Association Internationale de Littérature Comparée/ Université de Limoges, http://www.ditl.info/arttest/art8000.php.

63

que se manifesta, torna-se operante, nos sensibiliza por meio de um processo cognitivo

de identificação dos significantes. As imagens de um outro grupo, ainda na ausência da

intersubjetividade, falam-nos desta mesma sexualidade ao recuperar sentidos de

presença – indispensáveis ao mecanismo dialógico do erotismo – e instauram uma

relação interactancial da ordem do desejo. A conotação sexual parece patente nos dois

grupos. De uma forma ou de outra, fala-se de sexo, de êxtase, de conquistadores e

conquistados, de aprazer e comprazer-se. Entretanto, o sentido erótico parece depender

da instauração de um vínculo entre o sujeito do enunciado e o da enunciação, baseado

num desejo recíproco. Neste sentido, a construção metafórica da figura 18,

evidentemente sexual, não chega, contudo, a caracterizar aquilo que tomamos como um

sentido erótico entre actantes.

3.4 O erotismo e a corporeidade

Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza Brunet. (Luiz Fernando Veríssimo)

Nos anúncios analisados até o momento, vimos diferentes formas de

exploração do sexual. Partimos de simulacros de presença evidentes, em que o registro

do erótico correspondia àquele sentido de reciprocidade entre corpos desejantes adotado

no capítulo 2, e identificamos formas mais brandas de manifestação do sexual,

arrefecendo no percurso cognitivo das construções conotativas.

Buscaremos, a partir de agora, dar conta justamente deste último tipo de

encenação, em que os corpos estão ausentes, ou desprovidos de subjetividade, parciais e

improváveis, a engendrar efeitos de sexualidade. Para tanto, e isto parece determinante,

estes singulares anúncios constroem formas de presença, substitutos semióticos dos

corpos verdadeiros, no intuito de deflagrar um sentido sexual. Entretanto, o erotismo

depende do efeito de veracidade, “da ilusão referencial” na construção destes simulacros

de corpos, o que, com efeito, tem ligação com o tipo de relação entre os significantes

presentes nos textos e os respectivos significados.

Segundo Greimas, os dispositivos de representação, como a escrita e as artes

plásticas, fazem reconhecer uma relação entre dois sistemas, duas “realidades”, através

64

de um mecanismo de homologação. Tal mecanismo pode resultar de um processo

arbitrário de relação entre representante e representado, como é o caso da escrita

ocidental, com suas unidades discretas arranjando-se em grupos significantes, ou de um

processo motivado, a exemplo dos sistemas icônicos de representação, como a

fotografia.65 A partir da relação entre plano da expressão e plano do conteúdo, Floch

propõe uma distinção entre os sistemas simbólicos e os sistemas semióticos

propriamente ditos. Os sistemas simbólicos, ou arbitrários, apresentam conformidade

total entre os dois planos: a cada elemento da expressão corresponde um – e somente

um – elemento do conteúdo, a tal ponto que não é mais interessante para a análise a

distinção dos planos, visto que têm a mesma forma 66. Nos sistemas semióticos, a

relação de conformidade entre os planos é nula, tal como acontece com as línguas

naturais. Entre estes dois sistemas, aquém das relações arbitrárias, além da não

correspondência, Floch identifica os sistemas semi-simbólicos, que se definem pela

conformidade não entre os elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da

expressão e categorias do conteúdo. Por exemplo, nas pinturas do período renascentista,

fica tácita a relação da categoria superior/inferior, no plano da expressão, com a

categoria semântica céu/inferno no conteúdo. Quando falamos de simulacros de

presença num enunciado visual, tratamos de significantes e de aspectos da expressão

implicados na construção de um sentido de subjetividade e de sua manifestação

sensível. Estes significantes são homologáveis aos sentidos de presença apreendidos nos

termos dos processos de representação acima descritos. Desta feita, e não poderia ser

diferente, os anúncios publicitários que não figurativizam corpos desejantes, efetivam

sua temática sexual através da construção de representações, sejam elas motivadas ou

arbitrárias, de corpos perfeitamente desejáveis.

O corpo simbólico

Alguns anúncios constroem simulacros de corpos atribuindo arbitrariamente

aos elementos figurativizados, um sentido sexual que estes não possuem. Esta

construção “artificial” de sujeitos valorados sexualmente dá-se através da relação

absolutamente simbólica entre elementos da expressão e do conteúdo. Geralmente, este 65 A. J. Greimas, Semiótica figurativa e semiótica plástica , in Semiótica Plástica / org. Ana Cláudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004. 66 J. M. Floch. Alguns conceitos fundamentais em Semiótica geral. 1ed. São Paulo: Ed. CPS, 2001.

65

tipo de encenação vincula um sentido sexual ao discurso através de investimentos

semânticos reiterados tanto no enunciado verbal quanto no visual. No anúncio da figura

19, identificamos um enunciado que exemplifica muito claramente este tipo de

encenação.

Figura 19 – O não-sujeito

Siemens, Marie Claire, 2005

O que ocorre é uma projeção arbitrária de um sentido sexual sobre actantes

objetais, uma modalização realizante que provoca mais que uma atualização subjetal

dos produtos anunciados. Implica, na verdade, a dissolução das propriedades

idiossincráticas da subjetividade, sublimadas agora na objetidade das coisas: o “sex

appeal” do inorgânico. Esta categoria de imagens revela uma hibridização entre aquilo

mesmo que nos acostumamos a identificar como da ordem do sexual, ou seja, do

interesse motivado pelo encontro de subjetividades, o desejo erótico propriamente dito,

66

com aquilo que é da ordem do querer objetal, inorgânico, cadenciado pela dimensão

pragmática da aquisição, da posse e do usufruto do inanimado. No exemplo do não-

sujeito da figura 19, bem como no anúncio 20, observamos este investimento de valores

sexuais no produto.

Entretanto, neste grupo de anúncios, os efeitos de erotismo não parecem

obtidos, mas pressupostos. Já é esperado que o enunciatário apresente uma inclinação de

ordem sexual em seu comportamento consumidor, pois o produto ali anunciado

manifesta uma qualidade erótica, ou seja, eminentemente sexual, que lhe é atribuída de

maneira arbitrária. No caso específico do anúncio da figura 31, o elemento que

corrobora esta qualidade, a saliência em forma de “x” que cruza o aparelho celular, na

verdade desempenha um papel articulador, pois apenas trata de ratificar a sua

“desejabilidade”. Situação análoga, talvez mais contundente, ocorre através da imagem

da maçã mordida no pequeno visor, reiteração simbólica de um valor sexual do produto.

Já não falamos de um sentido erótico sensível, mas despertado de forma mediada por

uma construção frasal e por um símbolo inteligível.

Contudo, a viabilidade de tal texto, a lógica por trás do “sex appeal” de um

objeto inanimado, tem a ver com a excitação insólita experimentada pressupostamente

pelo enunciatário do anúncio, uma predisposição parafílica (cultural, social, psicológica,

ou de outra ordem qualquer) aos desvios fetichistas da sociedade de consumo. De fato,

uma excitação desta ordem, pouco ou nada tem que ver com o sexual de que tratávamos

até aqui. Esta outra sexualidade, que verificamos implicada nas figuras 19 e 20, segue

estatuto absolutamente singular. Sobre o tema, Perniola afirma:

O que sucita inquietude e constitui um enigma é exatamente a confluência

num único fenômeno de duas dimensões opostas, o modo de ser da coisa e a

sensibilidae humana: parece que as coisas e os sentidos já não lutam entre si,

mas tenham tecido uma aliança graças à qual a abstração mais distanciada e

a excitação mais desenfreada sejam quase inseparáveis e muitas vezes

indistinguíveis. 67

Somos levados a crer numa excitação somática que só pode se realizar

através desta sexualidade “branca”, desta conjuntura metafísica que não opõe o sujeito à 67 M. Perniola, O sex appeal do inorgânico. São Paulo: Studio Nobel, 2005, p. 21.

67

coisa, mas que os tem lado a lado, desprendidos do positivismo de suas limitações

paradigmáticas.

A aliança entre os sentidos e as coisas permite o acesso a uma sexualidade

neutra, que implica uma suspensão do sentir: esta não é uma anulação da

sensibilidade, que provocaria queda de toda tensão, mas o ingresso em uma

experiência deslocada, descentrada, livre da intenção de atingir um objetivo.

Sentir-se como uma coisa que sente quer dizer, antes de mais nada,

emancipar-se de uma concepção instrumental da excitação sexual que a

considera naturalmente direcionada para a obtenção do orgasmo.68

Aqui, o erotismo desprende-se do corpo e da subjetividade, suprimidos,

consagrando os valores inscritos no objeto. À medida que concebemos esta sexualidade

neutra e passamos a aceitar sua efetividade, anuímos, em última análise, à cristalização

de um não-sujeito absolutamente operante. Em outras palavras, existiria ainda aqui um

sentido erótico, mesmo que de outra ordem, sustentado nas qualidades plásticas e

(principalmente) míticas de um objeto definido contingentemente como corpo. Este

não-sujeito dá-se a ver totalmente, pois seu “sex-appeal” decorre justamente de seu

magnetismo plástico, de sua desejabilidade inorgânica, de sua infalibilidade.

Diferentemente dos anúncios com corpos autênticos, que valoravam sobretudo as

formas do corpo, os atributos formais aqui relevantes para a caracterização de um

sentido erótico (seja ele qual for) são justamente aqueles que um corpo jamais

apresentaria.

Na figura 20, outro exemplo bastante similar. O diferencial destacado pelo

verbal, uma propriedade “sedutora”, marca uma indefinição que opera um jogo

capcioso: tanto o produto quanto seu enunciatário (seu potencial usuário) podem estar

sendo descritos na expressão “nascido para seduzir”, o que cria um sentido de

identificação. O produto, irresistível ao consumidor, o consumidor irresistível aos seus

pares.

68 Ibidem, p. 22.

68

Figura 20 – Sedução sem corpo Siemens, Cosmopolitan, 2005

Outros exemplos bastante expressivos podem ser observados no esquema

abaixo. Em grupo, estas imagens reforçam a idéia de uma sexualidade em que pesam

fatores distintos daqueles intersubjetivos. São os produtos, objetos inanimados, que

apresentam as qualidades sexuais anteriormente atribuídas aos corpos ou aos seus

simulacros.

69

a b

c d

Figura 21 – Objetos do desejo

Mont Blanc, Vogue, 2005; Lord Taylor, Elle, 2005; Citroën, Vogue, 2004; Pirassununga, Playboy, 2003.

Ainda nesta categoria de imagens, observamos enunciados publicitários que

se valem de um expediente centrado no simulacro de subjetividade. A rigor, estes

anúncios são marcados por um processo distinto, fundamentado numa temática

subjetivante, em que os objetos cênicos – ou mesmo os produtos anunciados –

70

apresentam um comportamento subjetal, animados por uma sexualidade volitiva que

não possuem, mas que manifestam discursivamente. Como pode ser observado na figura

22, este simulacro de erotismo não busca nível algum de iconicidade nas imagens

produzidas. Pelo contrário, o que estes simulacros de subjetividade configuram é da

ordem de um animismo dos produtos apresentados, da personificação através do

comportamento libidinoso: objetos-sujeitos, cuja sexualidade o enunciado constrói. De

fato, cabe ao enunciatário aceitar a arbitrariedade um tanto absurda destas imagens.

Figura 22 – Crime passional Heineken, Esquire, 2005

71

Neste interessante anúncio, composto por cinco imagens subseqüentes,

temos uma pequena narrativa de notável riqueza temática. Um sujeito, por razões

passionais, atenta contra a vida de sua amada. Ele, mais um na multidão, enamorado

justamente dela, desejada por todos, ao alcance de poucos. Possuído pela paixão, ele

espreita sua amada na calada da noite. Tomado pela febre de seu sentimento, perde a

cabeça... Acaba atentando contra a vida dela. A vítima, donzela vulnerável, cai a verter

seus humores, atraindo a curiosidade mórbida de uma multidão estarrecida. De volta à

cena do crime, ele acaba apanhado. Será reconhecido? Ela sobreviveu...

Este argumento temático extenuantemente aplicado na literatura policial e no

cinema noir pouco interesse nos despertaria, não fossem os protagonistas uma garrafa

de cerveja e um abridor, simulacros de actantes sujeitos exercitando suas pulsões, suas

libidos, suas paixões... Não são pessoas nem parecem com pessoas, no entanto

comportam-se como se o fossem. A arbitrariedade destes anúncios, em que os papéis

narrativos cabem a objetos inanimados, se dissolve no sentido conotativo do discurso

empregado. Aos signos denotados “garrafa” e “abridor”, são atribuídos novos sentidos,

e a não pertinência destes, a estranheza que causam, permite o reconhecimento da

conotação. Já não temos simplesmente os objetos “abridor” e “garrafa”. A encenação

nos traz, na verdade, dois sujeitos. Um verdadeiro universo paralelo, fantasioso, mas no

qual o objeto de desejo do aturdido abridor, motivador da desmedida paixão, é o mesmo

produto que nos é anunciado, um elo entre dois mundos, uma cerveja avassaladora, que

cobra de seu apreciador (como cobrou do desiludido instrumento) uma insana

reverência. As minúcias deste anúncio, o jogo de luzes e a inusitada cenografia dão

forma a um espetáculo amoroso irredutivelmente plausível que leva o destinatário a

confabular hipóteses que justifiquem o ocorrido. Na figura seguinte, duas configurações

semelhantes.

72

a b

Figura 23 – Inocência perdida

Portal Chueca.com, Arena, 2003.

Estas duas fotografias bastante despretensiosas fazem parte de um conjunto

de anúncios do site espanhol Chueca.com, um portal de relacionamentos voltado ao

público homossexual. Em ambas observamos bastante comedimento cênico, pouca

iluminação e uma notável simplicidade. No entanto, o que se encontra de fato reiterado

nestas imagens é a mesma motivação de ordem sexual que animava o abridor do

anúncio anterior. Em 23b, um pequeno urso-confeito avermelhado rompe o invólucro

plástico da embalagem que o aprisionava e vai acomodar-se ao lado de outro pequeno

urso-confeito avermelhado, cobrando deste o conforto da conformidade com os demais.

Na verdade, fugindo do espaço que lhe havia sido reservado, o pequeno ator rompe com

um estatuto, com um propósito que já não lhe interessa servir. Está aqui implicado um

querer que impulsiona a performance, um querer homossexual: um desejo do mesmo,

do semelhante, do proibido, ainda nascente e inocente, próprio dos primeiros anos, da

idade das descobertas, da concupiscência inocente permitida às crianças. Embora seja

indiscutível a iconicidade patente em 23a, o arranjo dos elementos cênicos – dois

bonecos de uma mesa de pebolim – também implica uma volição sexual manifestada

por objetos inanimados. Esta prosopopéia publicitária, que não é da ordem do

antropomorfismo, mas da subjetivação, é o traço marcante destas imagens, e pode ser

verificada também nos anúncios seguintes.

73

a

b

c

Figura 24 – Objetos-sujeitos

Johnson & Johnson, Playboy, 2003; Nokia, Playboy, 2004; Devassa, Playboy, 2004

74

O corpo motivado

Os corpos nos anúncios a seguir são o resultado de estratégias enunciativas

com grande apelo conotativo. Na ausência de sujeitos históricos, autênticos, os

enunciados remetem ao sentido de presença através do acréscimo de novos significados

àqueles signos denotados que já traziam uma relação de expressão e conteúdo (ERC). O

que passamos a observar agora, são signos cujo plano da expressão já é um signo, ou

seja, signos conotados. Desta feita, para deflagrar do sentido de corporeidadede, é

necessário haja uma relação entre o significado que se acrescenta (corpo desejante) e o

significado já presente nos significantes utilizados (ERCRC). Quando esta operação for

o resultado de uma relação de semelhança, temos uma conotação sexual da ordem da

metáfora. Quando for o desdobramento discursivo de uma relação de contigüidade ou

coexistência, o que se coloca é uma sexualização da ordem da metonímia69.

Corpo metonímico

Na figura 25, o simulacro de presença insinua-se de maneira singular e,

como resultado, percebemos um erotismo menos velado que nas imagens simbólicas.

Isto parece decorrer da identificação dos traços figurativos de uma corporeidade, que

nos permite reconhecer mais rapidamente uma tematização erótica.

69 J. L. Fiorin. Metaphore et métonymie: deux processus de construction du discours. In: J. M. Gressin (org.). Dictionnaire international de termes littéraires. Limoges, Association Internationale de Littérature Comparée/ Université de Limoges, http://www.ditl.info/arttest/art8000.php.

75

Figura 25 – Erotismo e corporeidade Axe, Playboy, 2003

Nesta imagem, temos a fachada de um prédio, à qual se prendem dois varais.

No varal da esquerda, um par de meias e outro de calças aparentemente masculinas. No

outro, à direita, uma blusa feminina e uma calcinha. O slogan do anúncio é o mesmo das

campanhas anteriores: “o efeito Axe”. Como aquelas, segue o mesmo princípio

anteriormente identificado: o usuário do produto é dotado de um irresistível sex appeal,

como se passasse a portar aquele anel descoberto por Turpino. Neste flagrante

fotográfico, a blusa da moradora do apartamento à direita parece responder ao

irresistível perfume do morador do apartamento à esquerda, remanescente em sua roupa.

Sensibilizada pelo encanto, a atrevida blusa manifesta um movimento bastante

inusitado, confirmando a competência mítica do produto já apontada nos anúncios com

apontadores, parafusos e extensões. Entretanto, nesta imagem em particular, a

insinuação sexual fica por conta de elementos cênicos que recuperam uma corporeidade

figurativa inexistente nos anúncios precedentes. Isto porque tanto a calça masculina

quanto a blusa feminina remetem aos corpos que os ocuparam por guardar semelhança

com suas formas. Estes atributos formais são, no mínimo, indícios incontestáveis de

duas subjetividades não mostradas. Em algum lugar além daquelas janelas, no universo

iconográfico paralelo criado pelo anúncio, dois indivíduos de sexos diferentes esperam

suas roupas secar. Um deles – o homem – usa um desodorante que o torna irresistível.

Este alhures para o qual aponta a imagem, esta história prévia de que a imagem é uma

76

singela precipitação, sugere uma intersubjetividade autêntica por trás da prosopopéia

que nos é apresentada. Ainda assim, falamos aqui de um erotismo que se constrói no

flagrante fotográfico, no comportamento lascivo da blusa e na permissividade da calça.

Curioso que a posição das duas peças poderia mesmo ter resultado simplesmente do ato

corriqueiro e desinteressado de estender a roupa no varal; a mulher o teria feito depois,

o que causou o inusitado encaixe das peças.

Esta libido enunciada, entendida aqui como a energia sexual contagiante que

anima o actante sujeito, pede inequivocamente um sujeito desejante como par

pressuposto. Esta dialética do desejo – libido mais sujeito desejante – que abordamos

sob a fórmula da intersubjetividade recuperada no enunciado, alça-se além da dimensão

cognitiva acintosamente relevante nas representações simbólicas. Através desta

corporeidade mais crível da figura 25, o enunciado apresenta, na ausência de corpos,

uma encenação intersomática que se torna significante por sua dimensão sensível. O

enunciatário é convocado a assumir uma das posições actanciais “lacunares”; como se

pudesse antecipar, na imediatidade da apreensão em ato, as carícias que receberia se

usasse o produto, ele vislumbra sua própria imagem, sua própria subjetividade

mediatizada no simulacro publicitário.

Retomemos o anúncio 18, aquele em que um tubo de lubrificante investia

contra uma embalagem de papel, e o tipo de presença a que dava forma. Assim como o

anúncio 25, ele encena uma intersomaticidade artificial através da presença de dois

simulacros de actantes sujeitos. No anúncio 18, a subjetividade é uma instância

construída obliquamente, pela analogia entre os objetos utilizados e órgãos sexuais. Já

no anúncio 25, como foi colocado no parágrafo anterior, o simulacro apóia-se numa

alusão sensível a corpos que se movem, se tocam e manifestam suas libidos, e que, de

qualquer forma, estão pressupostos no interior daquelas paredes. Entretanto, salvo tais

aspectos dissonantes, ambas as imagens constroem simulacros de intersubjetividade que

são encenados para um terceiro actante: o enunciatário. Contrária a esta categoria de

intersubjetividade enunciada, temos aquela que aciona o enunciatário enquanto sujeito

desejante segundo um arranjo actancial que agora se dá no plano da enunciação (16c).

Nesta categoria, observamos uma disposição de actantes que se assemelha à da figura 9

(em que a jovem garçonete fita o destinatário e oferece- lhe uma cerveja), e cujo

desdobramento já havíamos identificado no anúncio do vulto negativo do aparelho de

depilação (figura 14). Este actante sujeito apresentado é uma espécie de menção

77

figurativa de um indivíduo alhures, uma referência a sua presença, uma impressão

icônica que guarda o formato de seu corpo e que atesta sua existência. Tal arranjo

minimal, que figurativiza um único actante em traços parcos de sua materialidade,

implica efeitos de subjetividade que tocam a própria subjetividade do destinatário. À

medida que o simulacro de presença vai sendo despido de sua corporeidade orgânica,

assume gradativamente a condição de uma presença que já não é completa. Este

simulacro de presença simulado pode ser observado nas figuras 26 e 27, ambas a

recuperar semioticamente corpos através de vestígios de sua existência. O mesmo

mecanismo também operava no anúncio das roupas no varal.

A figura 26 traz um anúncio comemorativo dos trinta anos da revista

Playboy. Nele, alguns guardanapos, um jogo de talheres, um bolo branco com duas

depressões e velas recém apagadas no topo. A sugestão de uma desembaraçada mulher

transitando nas imediações daquela mesa com os seios lambuzados em glacê substitui a

encenação de uma corporeidade efetiva, figurativizada na plasticidade erótica de um

corpo desejável. O texto visual resgata esta subjetividade fugidia através das “pegadas”

impressas no bolo. O erotismo por trás da imagem se cristaliza no vácuo deste corpo

elíptico, cuja identidade o enunciado verbal ajuda a definir: “Grazi na Playboy 30 anos.

O nosso presente para você”. De maneira similar ao que acontece no anúncio 25, esta

imagem faz referência à existência real de um corpo que a explica. Entretanto, este

modo de operação do erotismo prescinde mais profundamente da alusão figurativa a um

corpo e, diferentemente do que também ocorre no anúncio do gel lubrificante, não

constrói subjetividades através da personificação de objetos inanimados. Eis nesta

imagem um simulacro de presença puramente vestigial dando forma a uma encenação

erótica assaz saliente.

78

Figura 26 – “Pegadas” da presença

Playboy, Playboy, 2005

A fotografia revela que algo precedeu aquele momento, determinando tal

sentido sexual. Um evento furtivo, consumado, que escapou do flagrante, mas deixou

deliberadamente provas de sua ocorrência. A frustração pelo atraso ganha dimensão

ainda maior no subliminar traçado da fumaça das velas, que há muito pouco ainda

queimavam. Foi realmente por pouco... Na verdade, a imagem parece mesmo sugerir

que no avançar sobre as próximas páginas da revista, o destinatário poderá deparar-se

com a donzela caramelada, que ariscamente se esquiva de seus pretendentes.

Este quadro é análogo ao da imagem 27, anúncio quase monótono de um

desodorante feminino, que apresenta um sinal residual de um ato sexual já consumado,

um erotismo procrastinado, reminiscente, também possível na ausência do corpo.

79

Figura 27 – O erótico vestigial

Klimax, Esquire, 2003

A figura 28 opera a mesma sorte de estratégia, sugerindo através de uma

imagem admiravelmente sintética um corpo e suas implicações fisiológicas. Da mesma

forma que os dois anúncios anteriores, este enunciado sincrético é um desdobramento,

um resultado de uma situação anterior catalisada pela presença já desfeita do corpo.

Como a fotografia do bolo que fora impressionado pelos seios, esta imagem da roupa

íntima maculada remete a um modo de presença com aspecto incoativo, que rompe a

duratividade do enunciado e pressupõe uma causalidade, uma seqüência de ações e

fatores que antecederam a encenação capturada. Este aspecto incoativo da presença é

que vincula o corpo ao enunciado. Entretanto, é interessante observar que a ausência do

corpo neste anúncio parece operar justamente uma suavização da temática tratada, da

ordem do escatológico. Este mesmo processo de amenização da presença, ou melhor, da

manifestação do corpo, tem repercussão nas análises seguintes, e é particularmente

relevante nas investigações acerca do quão explícito um anúncio é.

80

Figura 28 – “Rastro” da presença

Andrex, Vogue, 2004

O inusitado anúncio apresenta um produto para a higiene íntima feminina. O

corpo invisível que preenche a calcinha (ausência que cria um simulacro de presença)

propicia ao enunciado ilustrar o problema que o produto pretende resolver, sem de fato

figurativizar os aspectos fisiológicos subentendidos. O diminuto texto, estrategicamente

colocado na vertical, traz os seguintes dizeres: “Você está tão limpa quanto pensa que

está?”

Corpo metafórico

De fato, as imagens acima analisadas, em que observamos vestígios de

presenças construindo simulacros de corpos, despertam o sentido erótico fazendo alusão

a uma corporeidade oculta, alhures ou ausente. Desta feita, construir simulacros de

corporeidade mostrou-se um procedimento “sexualizante” extremamente eficaz. Nesta

categoria de imagens que passamos agora a analisar, verificamos o mesmo investimento

discursivo numa sintaxe do corpo no sentido de deflagrar uma interação actancial da

ordem do desejo. Entretanto, a valoração semântica da corporeidade nestes próximos

81

anúncios não aponta para um corpo autêntico que o enunciado mantém oculto. Pelo

contrário, os simulacros de corpo nestas imagens estão dados na imediaticidade do

enunciado. Estes simulacros de corpos são concebidos pela competência semiótica do

enunciador, que é da ordem do “sexualizar”. Através de insólitas capturas fotográficas,

um sentido erótico imprevisto passa a existir. Este erotismo mordaz, que se revela

inusitadamente, surpreende as ordens sensoriais do destinatário, melindradas por

simulacros simulados de corpos desejantes que na verdade não estão lá, nem alhures:

corpos que não existem.

Figura 29 – Sintaxe de um corpo desejante

Kibon, Trip, 2004

O que fica patente, a partir de tal exemplo, é que num momento anterior à

verificação cognitiva da autenticidade destes simulacros, sustenta-se um erotismo

ilusório. Efetivamente não há um actante sujeito autêntico. Para todos os efeitos, na

imagem 29, existe um corpo que se mostra, voluptuoso e perfeitamente desejável,

materializado nas circunvoluções delicadas dos apetitosos sorvetes. A concretude

orgânica daquele corpo que deixamos para trás, no pleno exercício de sua subjetividade

82

ou “em sua pura presença de objeto plástico” 70, se esvai na fantasia entorpecente destes

enunciados capciosos. Estas convincentes quimeras parecem contar com a indulgente

anuência de seu interlocutor, o que implica um enunciatário suscetível a tais simulacros.

Uma libido assim tão ávida, que ignora o chiste fraudulento da imagem, distorce os

aspectos figurativos dos produtos anunciados e alimenta o fascínio do enunciatário,

deve ser considerada em dois momentos distintos: no imediatismo da apreensão

ilusória, e no processamento resolutivo da metáfora visual.

Figura 30 – O corpo convincente

Heineken, GQ, 2003

Ocultando ou distorcendo a totalidade plástica dos elementos cênicos

usados, esta categoria de imagens opera metáforas visuais absolutamente convincentes,

sem, no entanto obliterar completamente o reconhecimento dos produtos anunciados.

Isto porque parece evidente que a construção destes desejáveis corpos não pode ofuscar

os requintes de sua execução. Em outras palavras, estas imagens ilusórias devem ser, ao

mesmo tempo, corpo e objeto, pois somente no equilíbrio desta equação semiótica tais

simulacros fazem sentido. A estratégia discursiva de construir um simulacro de corpo 70 E Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 161.

83

desejante poderia levar uma campanha publicitária ao fracasso, caso resultasse no

abandono das propriedades idiossincráticas do produto, uma vez que, em última análise,

é dele (produto) que os anúncios falam.

De fato, simulacros de corpos desejantes são recorrentemente usados na

fotografia publicitária sem que o produto acabe esmaecido, convertido numa espécie de

apêndice mudo dos actantes sujeito. Invariavelmente, o anúncio investe numa

valorização do produto, ressaltando seus atributos práticos, simbólicos, míticos71... No

esquema a seguir, podemos observar exemplos valiosos desta publicidade “erótica”,

encenando simulacros de corpos desejantes “sexualmente enriquecidos” pelo uso do

produto. Em todas estas imagens, verificamos a presença de pelo menos um actante

sujeito plenamente reconhecível em sua dimensão estética e em sua dimensão sensível.

Nestes anúncios, o jogo de olhares desempenha um papel central. Nos olhos que nos

olham, nós mesmos, corpos revelados, surpreendidos, contagiados. Os exemplos a

seguir mostram como a publicidade usufrui de maneira prodigiosa dos efeitos de

inserção do destinatário que o contato visual estabelece, o que ganha especial grandeza

nos anúncios 31a e 31b. São anúncios similares do mesmo produto, compostos cada um

por três páginas seqüenciais. Neles, uma voluptuosa jovem, simulacro da provável

destinatária do produto, gozando os benefícios do uso de um sutiã modelador

“maravilha”, torna-se subitamente o centro das atenções. Pela posse e uso do produto, a

jovem experimenta a impertinência curiosa dos homens e a hostilidade recalcada das

mulheres. O transe reverente dos olhares, que no virar da página é justificado nos

atributos da jovem, dirige-se primeiramente à própria consumidora, antecipando através

do anúncio, a exata sensação do uso do produto. O valor prometido é ser desejável.

Entretanto, no segundo momento, o anúncio que há pouco colocava sua interlocutora no

ponto convergente dos olhares, a apanha em seu contrapé. De surpresa, na dança das

folhas, ela agora está entre a multidão, olhando, invejando, querendo o produto. Na

seqüência das páginas, o enunciado fala de privação, não de posse, para depois prometer

o restabelecimento de uma ordem que na verdade nunca existiu.

71 Para mais sobre a temática dos investimentos de valor nos produtos, cf. J.M. Floch, Semiotica, marketing e comunicazione. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.

84

a

b

c d e

Figura 31 – Olhos que me olham.

Wonderbra, Cosmopolitan, 2005; Gillette, Trip, 2004; Candies, Esquire, 2005

85

Independentemente da motivação específica de cada um destes actantes

sujeitos, os anúncios do esquema 31 parecem ratificar que estes repetidos olhares nos

presentificam, nos vigiam e nos convocam, operando, além dos simulacros de corpos,

simulacros de embreagens. Em outras palavras, subjetividades conscientes do

sofisticado arranjo intersomático em que estão envolvidos. Existem outros anúncios em

que apenas fragmentos de corpos são apresentados, e em que não existe um jogo de

olhares assim posto. Diferentemente do que ocorre no grupo de imagens apresentado na

figura 31, o erotismo e o jogo do desejo nestas imagens de fragmentos parecem não

depender mais daquela distribuição de olhares. Os sujeitos dados a ver não se

apresentam inteiramente: são parciais, desdobramentos semióticos da construção de

simulacros de corpos “perfeitamente desejáveis” através de pistas de sua totalidade

(figura 32).

a b

c d

Figura 32 – Corpos fragmentados

Canesten, Vogue, 2006; Kibon, Playboy, 2004; Skol, Playboy, 2004

86

Esta parcialidade e esta segmentação sugerem um sentido de objetivação dos

corpos, uma impessoalidade que poderia precipitar uma simplificação de seus papéis

actanciais. Entretanto, mesmo estes fractais discursivos (pequenos prazeres visuais para

o deleite do enunciatário) apontam para actantes sujeitos pressupostos no enunciado, o

que, de qualquer forma, implica uma interação do tipo intersubjetiva com o destinatário.

Estas interessantes imagens parecem adequar-se a uma espécie de arranjo

temático/figurativo, através do qual um sentido erótico passa a existir. Tal arranjo

implica a interação entre subjetividades. Os corpos metafóricos parecem revestir-se de

uma “desejabilidade” que independe da autenticidade deste sentido subjetal. Ele é

simulado, e tem que revelar o embuste por trás de sua construção para tornar-se

operante, pois esta condição faz parte de sua proposta. Ainda assim, a corporeidade

artificial resultante parece tirar proveito daquela mesma fragmentação fotográfica dos

corpos, apontada na figura 32, para garantir, agora metonimicamente, a origem de um

efeito de sentido erótico. É o que já havíamos identificado nas figuras 29 e 30, e que

podemos conferir ainda nas imagens a seguir.

a b

Figura 33 – Evidentes embustes

Volvo, GQ, 2003; BICE, Arena, 2003

A figura 6, no começo deste capítulo, já revelava os meandros astuciosos de

um enunciado publicitário a arquitetar uma falsa presença. O caneco de cerveja na base

do anúncio, que explicava a ilusão e garantia a descoberta da farsa, tal qual uma legenda

elucidativa que a imagem parecia solicitar, traduz a estratégia discursiva sobre a qual há

pouco versávamos quando da análise da necessidade de um simulacro que fosse corpo e

87

objeto ao mesmo tempo. Os exemplos da figura 33 guardam esta propriedade de

maneira bastante perspicaz, sem dar margem a uma expressão falha comprometa o

reconhecimento do produto. Em 33a, a sorrateira iluminação permite a visualização do

painel do veículo, e em 33b, as propriedades cromáticas e matéricas do “falo” mantêm o

pão identificável. Neste anúncio em particular, a astúcia discursiva ganha relevo por

aspectos simbólicos bastante evidentes. A alusão ao órgão masculino, signo de

virilidade e vida, é reforçada semanticamente pelo valor “mitológico” atribuído ao pão,

substância que alimenta o corpo e o espírito. Além disso, em riste, o fálico mantimento

fala da geração da vida, da prontidão, do ato sexual a se precipitar, o que estabelece

duplamente o vínculo entre os dois significantes que o verbal traz: “pão” e “vida”.

Abaixo, alguns exemplos de “falsos” corpos femininos.

a b

c

Figura 34 – Exemplos abundantes

Francesco Biasia, Vogue, 2005; Playboy, Playboy, 2003; Bic, Caras, 2005

88

É evidente que nenhuma destas imagens intenta subjugar o discernimento do

enunciatário. Entretanto, a plausibilidade dos simulacros aqui observados sugere que,

independente deste processamento cognitivo e do desvendar do chiste, um contágio

efetivo tem vez na materialidade sensível do corpo construído. A pressuposição de

dimensão estésica deve-se às propriedades icônicas da linguagem visual, sem as quais

metáfora alguma recuperaria um simulacro convincente de presença. Eis que, diante de

tais imagens, deste corpo que “soa” tão real, que sensibiliza, mas que não sente, posto

que privado de uma subjetividade autêntica, o destinatário é apanhado de surpresa a

revelar sua lascividade, sua animosidade erótica, ilusoriamente compartilhada, num

deflagrar constrangedor de sua libido. Partindo do quadrado semiótico acerca da

veridicção nos enunciados de estado, observamos que diante destes anúncios, o “jogo da

verdade” produzido passa pelas seguintes etapas:

Figura 35 - Desvendamento da mentira

Deste modo, o estado inicial despertado por estas imagens metafóricas é o de

uma notória excitação. Entregando-se à fantasia da presença, o enunciatário é

convocado, como o fora por aqueles olhares curiosos das imagens anteriores, a assumir

diante da evidência de um corpo, sua condição de sujeito desejante. Entretanto, no

arrefecer dos sustentáculos visuais da presença, a excitação fracassa gradativamente até

ceder lugar a um estado contemplativo dos pormenores estruturais da imagem, de sua

gramática e de sua constrangedora argúcia. Frustrado pelos investimentos

despropositados, pela intangibilidade de um desdobramento para o fatídico encontro,

89

resta ao enunciatário experimentar o torpor da não presença, da capciosa e ao mesmo

tempo manifesta ilusão.

90

4 CONSUMAÇÃO DO (HI)ATO

O nosso amor é tão bonito ela finge que me ama e eu finjo que acredito. (Nelson Sargento)

À medida que estes objetos recobrem-se discursivamente no véu ilusório da

metáfora visual, passam a apresentar-se em consonância com o estatuto semiótico

próprio do corpo. Expostos a tais imagens, apanhamo-nos surpreendidos por fenômenos

da ordem da presença: como classifica Landowski, diante do destinatário, um corpo

“perfeitamente desejável”. Contudo, revelada a melindrosa arquitetura das imagens, os

sugestivos simulacros construídos reduzem-se à reminiscência de um corpo sensível que

nunca chegou a existir, uma presença falsa, facilmente percebida. Tal sentido de

ilegitimidade precipita, ou melhor, recupera uma questão que parecia esgotada, mas que

se mostra essencial à semiotização da dimensão sexual nos textos imagéticos: que

erotismo é esse, afinal, operante por meio de uma ausência? Para responder esta

questão, são necessárias algumas considerações. É certo que as imagens agrupadas neste

estudo, a encenar de alguma forma a temática do desejo sexual, bem como os corpos

que trazem, não são percebidos pelos sujeitos da mesma forma que os corpos históricos,

legítimos e co-presentes. O sentido de reciprocidade, que na intervenção fotográfica é

obliterado, passa a ser simulado. Diante do destinatário, um “simulacro” de presença:

um corpo ali, mas alhures. É o que explica Oliveira, ao somar às categorias actorial e

espacial, uma terceira, temporal. Em grupo, situam todo texto histórica e

axiologicamente em dada sociedade, em dada cultura.

Tal crivo conceitual nos induz a acreditar que à semiotização da fotografia, é

mais relevante a dimensão cognitiva, e que a atenção mais detida aos aspectos sensíveis

daria origem a uma análise pouco apropriada. Entretanto, um olhar assim estruturado

não foge ao positivismo de uma “autópsia” fotográfica, de um diagnóstico distanciado e

objetivante que reduz a imagem a uma manifestação estática, desprovida de vida e

deslocada do mundo a que se refere. No presente estudo, o discurso fotográfico é

tomado justamente na sua convergência com o mundo natural, do qual empresta suas

categorias, suas figuras, seus temas, mas do qual também é fragmento. Os princípios

91

operatórios dos dois sistemas considerados (o fotográfico e o das relações humanas em

ato) guardam entre si correspondências que se justificam no homem em si. Em outras

palavras, é o próprio homem, enquanto instância última destes processos de

significação, que estabelece o estatuto de suas interações. Neste sentido, é de se esperar

que as formas de representação do mundo, como a música, a literatura, as artes

plásticas, falem do homem, através do homem e como o homem. Este vínculo – a

cobrar do semioticista uma aproximação que reconfigura a abordagem analítica e põe

em evidência aspectos eminentemente sensíveis – é também operante na fotografia, que

coloca seu interlocutor diante de uma realidade outra que a do presente imediato,

através de uma figuratividade que é o referente textualizado do próprio mundo.

Se estas imagens insinuantes, pulsantes e vivazes, amiúde nos convocam a

tomá-las como formas de manifestação daquilo mesmo que nos cerca em nosso mundo,

no qual estamos sempre a sentir, não seria mais apropriado, em termos semióticos,

adotar diante delas, uma postura menos sequaz? Não seria a proximidade, condição

menos proselitista, o ônus egóico que pode viabilizar uma apreensão mais integral?

Cientes de tais aspectos e imbuídos deste “espírito semiótico”, tomamos

nossas imagens de corpos como simulacros de subjetividades com os quais interagimos.

As formas diferentes de discursivização das subjetividades implicam formas diferentes

de relações actanciais. Como foi mostrado no princípio do capítulo 3, existem maneiras

diversas de se arranjar discursivamente os actantes de um enunciado. Quando o

enunciatário vê-se convocado a tomar parte do arranjo, como actante sujeito,

observamos medidas enunciativas que garantem insinuações e iniciativas sensuais

absolutamente ambíguas. Não mais cabe buscar nos anúncios aquilo que no

enunciatário desperta ou prostra a libido; tal tarefa torna-se absolutamente irrelevante,

pois toda a sagacidade destas imagens reside no insopitável coquetismo de seus atores.

A rigor, todas as imagens analisadas que tematizam relações da ordem do desejo, ou

seja, relações eminentemente eróticas, constroem inapelavelmente um sentido de

reciprocidade. Através do sentir junto mediatizado nestes simulacros de relação

intersubjetiva, observamos o eloqüente apelo erótico das imagens que figurativizam

sujeitos perfeitamente desejáveis. Já nas imagens em que vigora o sentido de ausência, o

sexual aparece explorado de maneira indireta. A estesia como condição do sentido

erótico dá lugar a um sentido sexual cognitivo, fecundo somente na recuperação dos

corpos ausentes. É este mecanismo que verificamos operando no anúncio do aniversário

92

da revista Playboy, através da imagem das marcas deixadas no bolo pelos seios de uma

mulher, bem como na série sobre o efeito Axe, com conexões elétricas, lápis e

parafusos.

Também na ausência de corpos que tocam nossa subjetividade,

identificamos aqueles anúncios em que um estatuto subjetal é atribuído arbitrariamente

a objetos inanimados, possibilitando que apresentem atrativos semânticos a nos

sensibilizar pelas mesmas vias do sentido erótico. Em todos estes casos, a conotação

sexual é decorrente de aspectos temáticos mais que de aspectos propriamente estésicos,

uma vez que a presença sensível do corpo, enquanto manifestação plástica de uma

subjetividade autêntica, está suprimida nestes enunciados. Nos anúncios em que um

sentido vestigial de presença é construído, uma questão “logística” condiciona o

deflagrar do erótico: existe um sujeito desejante, mas ele não aparece. Nos anúncios em

que a subjetividade é simbólica, como a dos aparelhos celulares Siemens, não há sequer

a possibilidade de vinculação a um corpo, pois todo investimento semântico é dirigido

ao objeto, ao produto. De fato, é natural que estes anúncios obliterem desta maneira

qualquer sentido de corporeidade, qualquer vestígio de presença, pois buscam

justamente atribuir ao produto aquilo que é próprio do sujeito, ou seja, sua

desejabilidade. Como resultado desta operação, a sensualidade de um celular ou de um

automóvel torna-se plausível, pois aquilo que reconhecemos como da ordem do

desejável – o corpo em si – não tem lugar nesta realidade encenada. É tarefa infecunda

buscar um sentido sexual naquilo que somos levados a sentir diante de imagens como

estas. Na verdade, este tipo de discurso dificilmente poderia ser apontado como erótico.

Sua temática sexual parece muito mais impulsionada por valores estéticos que o produto

apresenta – e que são ofertados ao destinatário – que por seus aspectos sensíveis de

corpo desejante. Tal estratégia valorativa aponta para uma disposição de alma que é

esperada do enunciatário, ou seja, uma suscetibilidade aos atrativos simbólicos do

objeto, que leva à aquisição de bens materiais pelo deleite extático de sua posse. O

anúncio que mostrava um aparelho celular sobreposto ao adjetivo “sexy” ilustra de

forma tácita o novo apanágio simbólico dos produtos. Natural que esta aquiescência à

desejabilidade do inorgânico precipitasse enunciados em que produtos-objeto cedem

lugar a produtos-sujeito no exercício de suas paixões e vicissitudes. É a situação

observada no anúncio do caso de amor entre o abridor e a garrafa, em que o desejo, o

ciúme e a cólera, afligiram e, portanto deram vida, a um objeto inanimado. É esta

93

mesma construção de um objeto-sujeito que dá ânimo aos actantes do anúncio do

perfume Chance Chanel. Nele, uma jovem se rende aos encantos de um gigantesco

vidro de perfume, revelando uma parafilia de que padece voluntariamente. Entretanto, o

traço que diferencia de maneira abissal estas duas imagens é justamente a presença de

um corpo. O sentido erótico da imagem do perfume Chanel deve-se, em primeiro lugar,

ao estado de possessão encenado pela jovem no pleno exercício de sua lascividade. É

esta demonstração de êxtase que toca o destinatário e lhe cobra um olhar comprometido,

um olhar sensível. Apesar da brilhante narratividade e da riqueza figurativa do anúncio

da cerveja e do abridor, parca seria a descrição de sua dimensão erótica. A rigor, fala-se

de uma relação interactancial da ordem do desejo, mas o corpo, que contagia e faz sentir

por sentir, está ausente.

Todos estes dissonantes anúncios mantêm uma articulação pela não

figurativização de um sujeito desejante. Como pôde ser verificado ao longo das análises,

e em especial nos apontamentos dos parágrafos anteriores, os anúncios com vestígios de

corpos, bem como aqueles em que operava uma subjetivação de objetos inanimados,

não propiciam o surgimento de um sentido efetivamente erótico, nos termos colocados

no capítulo dois. Na verdade, o tipo de referência sexual de que se valem estes anúncios,

que define um traço comum e permite agrupá-los, não é o mesmo observado naqueles

anúncios em que os corpos estão presentes. Nestes, o próprio corpo enquanto fenômeno

sensível está sujeito a uma leitura erotizante. É ele mesmo que fornece o substrato

visual em que se agarra o olhar libidinoso. Naqueles, vigora uma sexualidade

discursivizada cognitivamente.

O terceiro grupo de imagens analisado, sob a provisão do epíteto “ilusório”,

parece ocupar uma posição semiótica entre os dois anteriores. Nestas imagens,

metáforas visuais criam fragmentos de corporeidade plausíveis o bastante para deflagrar

um sentido de presença. A percepção da ausência, da ilusão referencial, mostrou-se

programática e absolutamente inevitável. Contudo, no hiato entre a alusão e a resolução

da anedota visual, transita um sentido erótico autêntico, sensível. Como os anúncios de

erotismo simbólico, estes também criam uma sexualidade quimérica cujo subproduto é

o próprio fetichismo da mercadoria. Entretanto, ao contrário dos enunciados do grupo

anterior, estes ressemantizam os artigos anunciados (canetas, pães, sorvetes...)

imprimindo-lhes atributos sexuais mediante um astucioso jogo onde a iconicidade

exerce papel decisivo. Por parecerem corpo, estas imagens já não comportam mais um

94

olhar resignado e objetivante. Elas exigem de seu destinatário uma mesura, uma

resposta à presença de um outro sujeito, que no átimo do ingênuo mistério engendrado,

pode passar pelo atrevimento, pela indiscrição ou pela reverência. Diante deste corpo

que parece sentir e parece saber-se sentido, resta ao próprio enunciatário assumir seu

papel de corpo desejante, o que pulveriza o distanciamento de um olhar objetivante, tal

qual naquelas primeiras imagens com corpos presentes. Lá como cá, é na ambigüidade

dos sentidos captados que o enunciado repercute seu erotismo. Como verdadeiras

coquetes, ao mesmo tempo profanas e reservadas, estas figuras metafóricas criam

simulacros de corpos que parecem sempre reclamar seu estatuto verdadeiro, sua

objetidade. Não seria medida ainda mais eficiente para garantir a indefinição do flerte,

simular o coquetismo ao invés de encená- lo, possibilitando ao seu interlocutor decifrar a

ardilosa operação?

A rigor, a ilegitimidade deste insólito barroco – que cria a ilusão de presença

– é também a medida admoestatória que abranda o impacto do anúncio. Isto é de

particular relevância na atenuação do conteúdo sexual nas imagens. Desta feita,

denunciando o próprio engodo e mantendo o embuste “decifrável”, a imagem flerta com

o vulgar e com o obsceno sem constranger qualquer código moral. Este mecanismo

explica porque certos anúncios com um sentido de corporeidade ilusório são tão

explícitos, enquanto outros, repletos de corpos perfeitamente desejáveis, valem-se de

sugestões muito mais sutis ao sexual.

95

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