A Vida Nova - Orhan Pamuk

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • ORHAN PAMUK

    A VIDA NOVA

    ROMANCE

    Traduo de Filipe Guerra

    EDITORIAL PRESENA

  • FICHA TCNICA Ttulo original: Yeni HayatAutor: Orhan PamukCopyright Iletisim Yay incilik AS Ekim 1994Todos os direitos reservadosTraduo Editorial Presena, Lisboa, 2006Traduo: Filipe GuerraFotografia: Getty Images / ImageOneCapa: Ana EspadinhaComposio, impresso e acabamento: MultitiPo - Artes Grficas, Lda.1. edio, Lisboa, Novembro, 20062. edio, Lisboa, Novembro, 20063. edio, Lisboa, Dezembro, 2006Depsito legal n. O 251 716/06 Reservados todos os direitos para Portugal EDITORIAL PRESENAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 BARCARENAEmail: [email protected]: http://www.presenca.pt

  • Sumrio Captulo 1Captulo 2Captulo 3Captulo 4Captulo 5Captulo 6Captulo 7Captulo 8Captulo 9Captulo 10Captulo 11Captulo 12Captulo 13Captulo 14Captulo 15Captulo 16Captulo 17

  • Para Sekre

  • Os outros nada viveram de semelhante, embora tenham ouvido os mesmos contos.

    NOVALIS

  • Captulo 1 Um dia li um livro e toda a minha vida mudou. Desde a primeira pgina, sofri com tanta fora opoder do livro que senti o meu corpo apartado da cadeira e da mesa a que me sentava. Noentanto, ao mesmo tempo que experimentava a sensao de que o meu corpo se afastava demim, todo o meu ser continuava, mais do que nunca, sentado na cadeira, mesa, e o livromanifestava todo o seu poder no s na minha alma, mas em tudo o que compunha a minhaidentidade. Era uma influncia to forte que me parecia que a luz emanada das pginas meatingia como um jorro: o seu brilho cegava toda a minha inteligncia, mas, ao mesmo tempo,tornava-a mais cintilante. Fiquei com a certeza de que esta luz iria reconstruir-me, que graas aela deixaria de percorrer os caminhos j trilhados. Vislumbrei as sombras de uma vida ainda porconhecer e por adotar. Estava sentado mesa e, num recanto do meu crebro, sabia que estavasentado ali, que virava as pginas e que toda a minha vida mudava medida que lia palavrasnovas, virando novas pginas; sentia-me to pouco preparado para tudo o que iria acontecer-me,to desarmado que, ao cabo de algum tempo, desviei os olhos, como para me proteger da foraque jorrava das pginas. Foi com terror que notei que o mundo minha volta se transformaracompletamente, e invadiu-me um sentimento de solido que at ento nunca experimentara -como se me achasse sozinho num pas de que ignorava a lngua, os costumes e a geografia.Depressa a impotncia nascida deste sentimento de solido me levou a agarrar-me cada vezmais ao livro; era ele que iria ensinar-me o que fazer neste pas desconhecido onde me achavaperdido, dizer-me aquilo em que podia acreditar, o que nele podia observar, a direo que aminha vida ia tomar. Continuava a ler; pgina atrs de pgina, como se estudasse um guia queme orientaria atravs desta terra desconhecida e selvagem. Tinha vontade de lhe dizer: vem emmeu socorro, ajuda-me a descobrir a vida nova sem muitos sofrimentos nem desgraas. Massabia tambm que esta vida nova se ia construindo a partir das palavras do guia. Li-o palavra porpalavra e, ao mesmo tempo que procurava descobrir nele o meu caminho, imaginava,maravilhado, os prodgios que verdadeiramente me tresmalhariam.Durante todo este tempo, o livro estava ali, em cima da mesa, com a luz que dele emanava abater-me na cara, e no entanto parecia-me to familiar como os outros objetos que enchiam omeu quarto. Enquanto recebia com pasmo e alegria a possibilidade de uma vida nova nestemundo novo que se abria diante de mim, sentia que o livro, apesar de ter mudado a minha vidato profundamente, era no fundo um objeto dos mais banais. Enquanto o meu esprito abria, umaaps outra, as suas portas e janelas s maravilhas e aos medos do mundo novo que as palavrasme prometiam, repensava no acaso que me tinha levado at este livro, mas tratava-se apenas deuma imagem superficial que no podia ir mais alm, que se ficava pela superfcie do meuesprito. Era como se o facto de eu voltar sempre a esta imagem, medida que lia o livro, nofosse mais do que medo. O universo novo que o livro me abria era to estranho, to bizarro e tosurpreendente que, para no me perder nele completamente, eu procurava com desesperosensaes ligadas ao presente. que o medo ia-se instalando em mim, o medo de, ao levantar acabea para passar um olhar pelo meu quarto, pelo armrio, pela cama, ou ao olhar pela janela,no encontrar o mundo tal como o havia deixado.

  • Sucediam-se os minutos e as pginas. Ao longe passavam comboios. Ouvi a minha me sair,depois voltar, o rumor habitual da cidade, a si neta do vendedor ambulante de iogurte que passavadiante da nossa porta, o estrpito dos carros, e era como se estes barulhos, to familiares paramim, me fossem todos desconhecidos. Primeiro pensei que estava a chover a btegas, depoisdistingui os gritos das rapariguinhas que saltavam corda. Julguei que o cu se clareava, maslogo ouvi as gotas de chuva a crepitarem nos vidros da janela. Li a pgina seguinte, depois outras,e outras ainda, vi a luz que se filtrava da soleira da outra vida; vi tudo o que conhecia e tudo o queignorava; vi a minha prpria vida e o caminho por onde me parecia que a minha vida nova deviaseguir. medida que virava as pginas, penetrava na minha alma e apoderava-se dela um universocuja existncia ignorara at ento, que nem sequer tinha alguma vez imaginado. Todas as coisasque eu tinha aprendido e em que acreditara at agora j no passavam de pormenoresdesprovidos de qualquer interesse, surgindo, dos recantos onde se tinham assolapado, coisas queeu desconhecia e que me faziam sinais. Se me perguntassem do que se tratava, parece-me queseria incapaz de responder, embora continuasse a ler; porque, quanto mais avanava na leitura,mais percebia que estava a avanar por um caminho sem regresso. Sentia que se esgotava emmim o interesse e a curiosidade pelas coisas que ia deixando para trs, mas estava animado porum tal entusiasmo, por uma tal curiosidade pela vida nova que se abria minha frente, que tudo oque existia me parecia digno de interesse. Tremia de entusiasmo, baloiava as pernasnervosamente, at que a profuso, a riqueza, a complexidade de todas as possibilidades setransformaram, dentro de mim, numa espcie de terror.E, paralelamente a este terror, iluminados pela luz que o livro me lanava para a cara, vi quartosmiserveis, carros enlouquecidos, pessoas estafadas, letras fanadas, lugarejos e vidas perdidas,fantasmas. E uma viagem, uma viagem sem princpio nem fim; tratava-se apenas de umaviagem. E nesta viagem vi um olhar que me seguia por todo o lado, que parecia surgir minhafrente nos lugares mais inesperados para logo desaparecer, e que tinha de se procurarincessantemente porque era muito fugaz, um doce olhar h muito lavado de todo o pecado. Eugostaria de ser este olhar. Gostaria de viver no universo que este olhar contemplava. Desejava-ocom tanta intensidade que quase acreditei que vivia nesse universo; nem sequer era necessrioconvencer-me disso, j l vivia. E uma vez que j l vivia, o livro, naturalmente, devia falar demim. Era assim porque j algum tinha imaginado os meus pensamentos e os tinha passado aescrito.Assim, pude compreender que as palavras eram muito diferentes do que me exprimiam.Adivinhei desde o princpio que o livro tinha sido escrito para mim, e era por isso que cadapalavra e cada expresso me tinham tocado to profundamente. E isso acontecia porque eu tinhao sentimento de que o livro fora escrito precisamente para mim, e no porque as ideias nelecontidas fossem extraordinrias e as palavras brilhantes. No conseguia perceber como talsentimento se apoderara de mim, ou talvez o tenha compreendido e logo esquecido quandoprocurava o meu caminho por entre assassnios, acidentes, mortos e sinais perdidos.Assim, fora de ler e reler o livro, o meu ponto de vista foi transformado por ele, e o livro e aspalavras que ele continha tornaram-se o meu ponto de vista. Os meus olhos deslumbrados pelaluz j no podiam separar o universo que existia no livro do livro que existia no universo. Eracomo se o nico universo e tudo o que pudesse existir, todas as cores, todos os objetos possveis se

  • encontrassem no livro e nas palavras. De tal modo que, ao longo da minha leitura, o meu esprito,feliz e maravilhado, podia descobrir ali todas as possibilidades. Tudo o que o livro me tinhasegredado ao princpio, e a seguir martelado e imposto com violncia e audcia - compreendiisso no decurso da leitura -, sempre estivera enterrado no mais fundo da minha alma. O livrodescobrira e trouxera superfcie um tesouro perdido, que dormia desde h sculos no fundo dasguas, e eu tinha vontade de dizer acerca de tudo o que descobria nas palavras e nas frases: agoratudo isto meu, tudo isto me pertence. Algures nas ltimas pginas estive mesmo tentado a dizerque tambm eu j tinha pensado naquilo. Muito mais tarde, quando j estava completamentepossudo pelo universo que o livro descrevia, vi a morte a surgir na penumbra da alvorada,radiosa como um anjo: a minha prpria morte.Compreendi de chofre que nem sequer poderia ter imaginado como a minha vida seenriquecera. Nesse tempo, o meu nico medo era poder vir a encontrar-me longe do livro; e,quando olhava para os objetos minha volta, para o meu quarto ou para a rua, j no tinha medode encontrar neles o que me contava o livro. Agarrando nele com as duas mos, sorvia o cheiroda tinta e do papel que emanava das suas pginas, como fazia na infncia quando acabava de lerum lbum de banda desenhada. Era exatamente o mesmo cheiro.Levantei-me, como fazia quando era garoto, fui janela olhar para a rua, com a testa encostada vidraa fria. O camio que cinco horas antes, quando eu tinha posto o livro em cima da mesa ecomeado a ler, estava estacionado do outro lado da rua desaparecera. A sua carga de armrios,de mesas pesadas, de aparadores, de caixas de carto e de candeeiros tinha sido descarregada.Uma famlia instalara-se no apartamento vago do prdio em frente ao nosso. Como ainda nohavia cortinas nas janelas, pude ver, alumiados por uma lmpada sem quebra-luz, um casal decerta idade - pai e me - e os filhos - um rapaz da minha idade e uma rapariga; estavam a jantarem frente da televiso. A rapariga tinha cabelos castanho-claros; a tela da televiso era verde.Observei demoradamente os nossos novos vizinhos e senti um certo prazer, talvez por issomesmo, por serem novos vizinhos; tinha a sensao de que isso me protegia de alguma coisa,nem eu sei de qu. No queria enfrentar a transformao radical do meu universo familiar, e noentanto j percebera muito bem que as ruas j no eram as mesmas, que o meu quarto j noera o mesmo, que a minha me e os meus amigos j no eram os mesmos. Parecia haver emtodos uma hostilidade latente, qualquer coisa de ameaador, de terrificante que eu no podiaidentificar. Afastei-me da janela, mas no fui capaz de voltar ao livro que chamava por mim. Acoisa que tinha produzido uma reviravolta na minha vida estava espera em cima da mesa atrsde mim. Mas bem podia virar-lhe as costas - o princpio de tudo estava ali, entre mim e as linhasdo livro; tinha de enveredar por este novo caminho.Sem dvida que, em certo momento, a ideia de ser arrancado da minha vida anterior se meafigurou aterradora, porque, semelhana daqueles a quem uma catstrofe mudarairremediavelmente a vida, eu tentava encontrar a paz, imaginando que a minha existnciaretomaria o seu curso, que o acidente ou a desgraa, a coisa terrvel que estava a acontecer-menada tinha a ver com a realidade. Porm sentia com tanta fora a presena do livro, ainda abertona mesa minha frente, que nem sequer podia imaginar como seria possvel a minha vidaretomar o seu curso anterior.Foi no mesmo estado de esprito que sa do quarto quando a minha me me chamou, que mesentei mesa, com o embarao do novato tentando habituar-se a um ambiente novo, e que me

  • esforcei por fazer conversa. A televiso estava ligada. Na mesa havia carne picada com batatas,alho francs estufado, alface e mas. A minha me falou-me dos novos vizinhos, os queacabavam de se mudar para o outro lado da rua, felicitou-me por ter trabalhado to bem toda atarde, sim senhor! Falou-me tambm das compras que fizera debaixo de chuva, das notcias dateleviso e do apresentador do noticirio. Eu gostava muito da minha me; era uma bela mulher,distinta, competente e compreensiva, e eu sentia-me culpado porque lia esse livro e penetraranum mundo que no era o dela.Se o livro tivesse sido escrito para toda a gente, dizia para comigo, a vida no poderia continuar acorrer assim, lenta e despreocupada. Por outro lado, a ideia de que o livro tinha sido escritounicamente para mim no podia parecer lgica ao estudante racional do Instituto de Engenhariaque eu era. Nestas condies, como poderia a vida continuar igual? Tinha medo de dizer a mimmesmo que o livro poderia ser um mistrio imaginado to-somente para a minha pessoa. Depois,quis ajudar a minha me a lavar a loua, para que o seu contacto pudesse trazer para o presenteo mundo que eu transportava em mim.- No, deixa que eu lavo, meu querido! - disse-me ela.Fiquei bastante tempo a ver televiso. Talvez conseguisse introduzir-me no universo da tela, mastambm poderia pr-me aos pontaps ao televisor. No entanto o que eu estava a ver era a nossateleviso, da nossa casa, uma espcie de lmpada sagrada, uma espcie de divindade. Vesti ocasaco, calcei os sapatos.- Vou sair por um bocado.- Quando voltas? - perguntou a minha me. Espero por ti?- No esperes. Ainda acabas por adormecer em frente da televiso.- Apagaste a luz do teu quarto?Sa e o meu bairro, onde vivia h vinte e dois anos, nas ruas da minha infncia, via-o como se meaventurasse pelas artrias perigosas de uma cidade estranha. Senti na cara o frio hmido deDezembro como se se tratasse de uma brisa ligeira, e disse para mim que talvez algumas coisasdo mundo antigo tivessem passado para o novo e que talvez o pudesse verificar andando pelasruas, pelos passeios que fizeram a minha vida. Tive vontade de correr.Caminhava pelas ruas escuras, rente aos muros e em passo apressado, evitando os contentores dolixo e as poas de gua, e pude ver que a cada passo que dava se materializava um mundo novo.Os pltanos e os choupos eram, primeira vista, os pltanos e os choupos da minha infncia, masa fora das recordaes e das associaes de ideias que me ligavam a eles tinha desaparecido.Estas rvores exaustas, estas casas de dois pisos to familiares, estes prdios de fachadaenegrecida cuja construo tinha acompanhado na minha infncia, desde os alicerces e os poosde cal at s telhas dos telhados, e onde tinha brincado mais tarde com novos amigos, olhavaagora para elas, j no como pedaos inalienveis da minha vida, mas como se se tratasse defotografias de que esquecera o lugar e a data em que foram tiradas: reconhecia as suas silhuetas,as janelas iluminadas, as rvores dos jardins, as letras e os sinais nas portas de entrada, mas jno me inspiravam a fora que as coisas conhecidas nos inspiram. O meu universo de outrorarodeava-me por todos os lados, em todas as ruas: as montras das familiares mercearias, as luzesainda acesas na padaria da Praa da Estao de Erenkoy, as caixas diante do lugar da fruta e doslegumes, as carroas, a pastelaria A Vida , os camies desengonados, os toldos e as carassombrias e cansadas. Mas uma parte do meu corao - a parte em que trazia o livro, como quem

  • dissimula um pecado - j sentia apenas indiferena por todas estas sombras que tremelicavamnas luzes noturnas. Queria fugir de todas estas ruas familiares, da melancolia das rvoresmolhadas pela chuva, das letras de non que se refletiam nos charcos de gua do asfalto e dospasseios, das luzes do talho e da mercearia. Soprou um vento ligeiro, caram gotas de gua dasrvores, ouvi um estrondo e decidi que o livro era um mistrio que me estava destinado. O medoapoderou-se de mim, tinha necessidade de falar com algum.Na Praa da Estao aproximei-me do Caf dos Jovens onde alguns dos meus amigos do bairrose reuniam para jogarem s cartas ou verem um desafio de futebol pela televiso; marcavam aliencontro e durante horas no arredavam de l. Numa mesa ao fundo da sala estavam conversa, banhados pelas luzes brancas e pretas que saam da televiso, um estudante, quetrabalhava na sapataria do pai, e um amigo c do bairro, que jogava futebol num clube amador.Diante deles podiam ver-se uns jornais que, de tanto serem manuseados, tinham as pginas meiorasgadas, dois copos de ch, cigarros e uma garrafa de cerveja que deviam ter comprado namercearia e escondido debaixo de uma cadeira. Tinha necessidade de falar com algum,demoradamente, talvez durante horas, mas percebi de imediato que no poderia faz-lo comeles. Por um breve instante invadiu-me uma tristeza de me fazer vir as lgrimas aos olhos, masrecompus-me com orgulho: deveria abrir o meu corao, sim, mas queles que doravanteescolhesse entre os que viviam j no universo do livro. .Embora quase me convencesse de que era dono do meu futuro, sabia tambm que era o livroque me possua. No s entrara em todo o meu ser como um segredo e um pecado, mas tambmme reduzira quela paralisia da fala que s vezes nos tolhe nos sonhos. Onde estavam os meussemelhantes, aqueles com quem poderia comunicar? Em que lugar poderia encontrar o sonhoque me apelava ao corao, onde estavam aqueles que tinham lido o livro?Atravessei a via frrea, entrei nas ruelas, esmaguei com os ps as folhas mortas coladas aoasfalto. Erguia-se de sbito em mim um profundo otimismo: se ao menos pudesse continuar aandar assim, rapidamente, sem parar, se ao menos pudesse viajar, ento, parecia-me, poderiaatingir o universo do livro. A vida nova, com os seus dbeis clares tremeluzindo no meucorao, encontrava-se numa terra longnqua, talvez num lugar inacessvel. Mas pressentia que,embora continuasse a mexer-me, me aproximaria, ou, pelo menos, deixaria para trs a minhavida antiga.Quando cheguei beira-mar espantou-me a negrura das guas. Por que no tinha reparado antesque, noite, o mar se tornava to escuro, to rude, to implacvel? Era como se os objetostivessem uma linguagem prpria e eu comeasse a ouvi-la um pouquinho no silncio provisriopara onde me tinha arrastado o livro. Senti bruscamente em mim o peso do mar que se agitavasuavemente, do mesmo modo que me invadira o sentimento da minha morte irrevogvel quandolia o livro; mas no se tratava daquele sentimento do acabou-se tudo que a morte deveinspirar, mas antes da curiosidade, da comoo de quem envereda por um caminho novo.Passeei demoradamente pela praia. Quando era mido, vinha para aqui com os meuscompanheiros do bairro, depois das tempestades de vento sul, esgravatar entre as latas deconservas vazias, as bolas, as garrafas, as sandlias desemparelhadas, as molas da roupa, aslmpadas, as bonecas de plstico, tudo o que o mar lanava para a praia, procura nem nssabamos bem de qu, de um indcio que nos levasse at um tesouro, de um objeto desconhecidoou, simplesmente, novo e brilhante. Por um breve instante pareceu-me que se os meus olhos,

  • iluminados pela luz do livro, pudessem encontrar um elemento qualquer pertencente ao meuantigo universo, o meu olhar poderia transform-lo no objeto mgico que procurvamos nosmeus tempos de infncia. Mas, ao mesmo tempo, o sentimento de que o livro me tinha deixadosozinho no mundo apoderou-se de mim com tanta violncia que eu pensei que o mar escuro iainchar de repente e engolir-me.Transtornado, recomecei a andar muito depressa, no para concretizar um mundo novo a cadapasso que desse, mas para ficar sozinho no meu quarto com o livro. Quase corria, e comeava aver-me como um ser nascido da luz que emanava do livro. Isso tranquilizava-me.O meu pai tinha um bom amigo da sua idade, tal como ele funcionrio, durante muitos anos, naCompanhia dos Caminhos-de-Ferro do Estado e que chegara mesmo ao posto de inspetor.Escrevia artigos, versando todos sobre a paixo do caminho-de-ferro, para a revista publicadapela Companhia. Escrevia tambm livros para crianas que ele prprio ilustrava e que saam nacoleo Novas Aventuras para Crianas . No tempo em que eu lia os livros que o Tio Rifki meoferecera, acontecia muitas vezes ir para casa a correr para voltar a mergulhar na leitura dePertev e Peter ou Kamer na Amrica. Mas estes livros para crianas tinham sempre uma ltimapgina onde se encontrava a palavra FIM, como no cinema, e quando lia estas trs letras, no schegara aos limites da terra onde tanto gostaria de ter ficado, como percebia com dor e tristezaque aquele universo mgico era fruto da imaginao do Tio Rifki, funcionrio dos caminhos-de-ferro. Ora, no livro que tinha pressa de ir reler, eu sabia que, pelo contrrio, tudo era verdadeiro.Era por isso que transportava este livro dentro de mim, era por isso que as ruas molhadas pelachuva por onde seguia em passo de corrida no eram reais, eram to-s uma parte de umtrabalho de casa, um trabalho aborrecido que me tinham imposto por castigo. O livro - assim meparecia - fornecia a resposta pergunta sobre a minha vida que eu fazia a mim prprio.J atravessara a via frrea e passava perto da mesquita quando quase ca numa poa de gua;saltitei, tropecei, escorreguei e acabei por me espalhar ao comprido no asfalto lamacento.J me tinha levantado e prosseguia o meu caminho quando um velhote barbudo se dirigiu a mim:- Ias caindo, rapaz! Est tudo bem?- No est nada bem - disse-lhe eu. - O meu pai morreu ontem. Foi hoje a enterrar. Era mautipo, s bebia e batia na minha me. No nos quis aqui ao p dele. Durante vrios anos vivi emVelha Vinha Viran Bag! {1} Velha Vinha! Aonde tinha ido eu buscar a ideia desta cidade?Talvez o velho percebesse que eu lhe estava a contar balelas, mas senti-me de repentemuitssimo esperto. Talvez por causa das mentiras que acabava de dizer, talvez por causa do livroou, simplesmente, por causa da cara aturdida do homem, no sei. Mas disse para mim: Nadareceies, no tenhas medo, continua! Esse mundo, o do livro, que o mundo real. E, noentanto, tinha medo Porqu?Porque tinha ouvido falar das desgraas que se abatiam sobre pessoas a quem bastou lerem ums livro para verem a sua vida de pernas para o ar. Conhecia histrias de fulanos que, depois deterem lido numa noite um livro intitulado Princpios Fundamentais da Filosofia e de concordaremcom cada palavra deste livro, aderiam no dia seguinte Vanguarda Proletria Revolucionria,eram caados trs dias depois durante um assalto em que participavam e passavam dez anos dasua vida na priso. Ou, ento, aqueles que, depois de terem lido um livro do gnero O Islo e a

  • Nova Moral ou A Traio da Ocidentalizao, esqueciam numa noite o caminho da taberna paraenveredarem pelo da mesquita e, em cima de um tapete glido e no meio dos eflvios de guade rosas, se preparavam pacientemente para uma morte que lhes aconteceria cinquenta anosmais tarde. Conheci tambm pessoas que se deixavam seduzir por livros com ttulos como ALiberdade de Amar ou Como Me Descobri a Mim Prprio. Estes saam sobretudo das fileiras dosque acreditam nos signos do zodaco, mas tambm eles afirmavam com toda a boa f: Estelivro, numa noite, mudou toda a minha vida!Para falar verdade, no era no espetculo aflitivo destas transformaes que eu pensava; tinhamedo da solido. Medo de ter compreendido mal o livro, o que no era de estranhar num idiotacomo eu; medo de no aprofundar as coisas ou, pelo contrrio, de as aprofundar demasiado;quero eu dizer: de no poder ser como toda a gente, de me tornar louco de amor, ou de descobriros mistrios do universo e me tornar ridculo passando o tempo a contar a minha vida a pessoassem qualquer desejo de a conhecerem, de ir parar priso, de dar a ideia de ter um parafuso amenos, de acabar por perceber que o mundo definitivamente muito mais cruel do que euimaginava e de no conseguir agradar s raparigas bonitas. que, se o que vinha escrito noslivros era verdade, se a vida era como a descreviam num livro, se um mundo assim era possvel,ento por que seria que as pessoas ainda iam mesquita, ou por que passavam o tempo naconversa ou a dormitar nos cafs, ou por que razo a esta hora, todas as noites, se instalavamdiante da televiso para no morrerem de tdio? Era isto, precisamente, que se tornavaincompreensvel. E no fechavam completamente as cortinas, para o caso de se passar qualquercoisa na rua to interessante como na televiso, sei l, um carro que passasse a toda a velocidade,por exemplo, ou um cavalo que relinchasse, ou um bbado que praguejasse.No sei quanto tempo se passou at eu reparar que este apartamento do segundo andar, paraonde espreito h um bom bocado pelos cortinados entreabertos, era o do Tio Rifki, dos caminhos-de-ferro. Talvez eu at tenha reparado nisso sem me dar conta; no fim do dia em que a minhavida ia ser completamente mudada por causa de um livro, era talvez uma saudao que eu lheenviava instintivamente. Viera-me cabea um estranho desejo, o de rever uma vez mais osobjetos e os mveis que tinha visto nesta casa nas ltimas vezes em que eu e o meu paivisitramos o Tio Rifki: os canrios na gaiola, o barmetro na parede, as gravuras de locomotivaspreciosamente emolduradas, o aparador com os seus vidros, tendo de um lado um servio decopos para licores, miniaturas de carruagens, um aucareiro de prata, um alicate de revisor,medalhas concedidas pelos bons e leais servios nos caminhos-de-ferro; e, do outro lado, unscinquenta livros bem arrumados e, em cima do aparador, um samovar{2} nunca utilizado; namesa, um baralho de cartas Por entre as cortinas entreabertas no via a televiso, apenas osclares que projetava.Bruscamente, numa deciso de que eu prprio ignorava a origem, trepei para o muro queseparava o prdio do passeio e pude ver a cabea da Tia Ratibe, viva do Tio Rifki, e o televisorpara onde ela olhava. Sentada na poltrona do seu defunto marido, num ngulo de quarenta ecinco graus, com a cabea metida entre os ombros encolhidos, a Tia Ratibe olhava fixamentepara a tela mas, em vez de tricotar como fazia a minha me, sorvia com avidez um cigarro.O Tio Rifki, dos caminhos-de-ferro, morrera um ano antes do meu pai, por sua vez falecido noano passado de ataque cardaco; mas a morte do Tio Rifki no tinha sido uma morte natural.

  • Tinham-no alvejado a tiro uma noite, quando ele ia a caminho do caf. O homicida no foiencontrado, falou-se de um drama de cimes, mas o meu pai nunca acreditou nisso at ao fim dasua vida. O Tio Rifki no deixara descendncia.Com a noite j avanada, muito depois de a minha me ter adormecido, estando eu sentado mesa, com os olhos fixos no livro pousado entre os cotovelos, afastei do meu esprito tudo o queidentificasse o bairro como sendo o meu: as luzes que se iam apagando umas atrs das outras navizinhana e em toda a cidade, a melancolia das ruas desertas e molhadas da chuva, o prego dovendedor de boza que fazia o seu ltimo giro, gritos de corvos inesperados a esta hora da noite, osestalidos pacientes dos comboios de mercadorias que comeam a circular depois do ltimocomboio de passageiros; a pouco e pouco ia esquecendo tudo isso com emoo, abandonando-me por completo luz que jorrava do livro. Foi assim que tudo se apagou no meu esprito, tudo oque constitua a minha vida e os meus sonhos: as refeies, as portas das salas de cinema, osmeus colegas de escola, os jornais, as garrafas de limonada, os desafios de futebol, as carteirasda escola, os barcos, as lindas raparigas, os sonhos de felicidade, aquela que amarei um dia e queser a minha mulher, a minha mesa de trabalho, as minhas manhs, os meus pequenos-almoos,os meus bilhetes de nibus, as minhas pequenas preocupaes, os meus trabalhos de casa deEsttica entregues sempre com muito atraso, as minhas calas velhas, os meus pijamas, a minhacara, as minhas noites, as revistas que me ajudam a masturbar-me, os meus cigarros e mesmo,atrs de mim, a fiel cama, para o mais seguro dos esquecimentos. E achei-me a pairar numaterra de luz.

  • Captulo 2 No dia seguinte apaixonei-me. O amor era to perturbante como a luz que jorrara do livro e meatingira no rosto, e, com todo o seu peso, provava que a minha vida j tinha sado dos eixos.Ao acordar, analisei os acontecimentos da vspera e compreendi que a nova regio que se abria minha frente no era um sonho de momento mas sim to real como o meu corpo, os meusbraos ou as minhas pernas. Para fugir do insuportvel sentimento de solido deste novo universoem que estava mergulhado, ser-me-ia necessrio descobrir os que se encontravam na mesmasituao que eu.Nevara durante a noite, a neve tinha-se acumulado nos parapeitos das janelas, nos passeios e nostelhados. O livro, que eu tinha deixado aberto em cima da mesa, envolvido por estaimpressionante luz branca parecia ainda mais insignificante, mais inocente; o que o tornavaaterrador.Consegui porm, como todas as manhs, tomar o pequeno-almoo com a minha me, aspirandocom prazer o cheirinho do po torrado, dando uma vista de olhos pelo Milliyet e lendo a crnicade Djll Salik. Servia-me do queijo, bebia o ch e sorria para a cara benevolente da minha me.A chvena, a chaleira, o tilintar das colheres, o barulho de um camio carregado de laranjas narua, tudo isso tentava convencer-me de que o curso da vida continuava igual, mas eu no medeixava enganar. Estava to certo da transformao do mundo que, ao sair de casa, no sentiqualquer embarao em vestir o velho e pesadssimo sobretudo do meu pai.Dirigi-me estao, entrei num comboio, sa na paragem, no perdi o meu barco; chegado aocais de Karakoy, saltei do barco, rompi por entre os outros passageiros cotovelada, subi asescadas, saltei para um nibus e cheguei Praa Taksim; no trajeto para a universidade Taksim,parei um momento a observar umas ciganas que vendiam flores no passeio. Como podia euacreditar que a vida decorresse como dantes? Ou esquecer que lera o livro? Por um breveinstante, esta eventualidade pareceu-me to terrvel que tive vontade de deitar a correr.Numa aula de Resistncia de Materiais, copiei cuidadosamente para o meu caderno todas asfiguras, nmeros e frmulas que estavam no quadro. E quando j no havia mais nada no quadropara copiar, pus-me a ouvir, de braos cruzados, a voz dulcssima do professor careca. Estaria euverdadeiramente a ouvi-lo ou, como os outros todos, apenas a fazer de conta que o ouvia, fazendoassim o papel de um estudante do Instituto de Engenharia da Universidade Tcnica? Isso no seidizer. Ao cabo de um momento, senti que o mundo antigo, o meu mundo familiar, era desprovidode toda e qualquer esperana, e essa ideia foi-me intolervel, e o meu corao ps-se a batercom muita fora, tive vertigens, como se uma droga me corresse nas veias, e senti, com ummisto de medo e deleite, a fora da luz que jorrara do livro e que, partindo da nuca, se meespalhava a pouco e pouco por todo o corpo. Um universo novo j tinha feito desaparecer tudo oque existira at ento e transformara o presente em passado. As coisas que via, as coisas quetocava pareciam-me lastimosamente antiquadas.Tinha visto esse livro pela primeira vez nas mos de uma estudante da Escola de Arquitetura. Elacomprou umas coisas na cantina do rs-do-cho e estava procura do porta-moedas, mas, comotinha qualquer coisa na outra mo, no conseguia procurar no saco. Por um momento, pousou

  • ento em cima da mesa onde eu estava o que trazia na mo, um livro, e eu pude deitar-lhe umaolhadela. Foi esse o acaso que mudou toda a minha vida. Depois a rapariga voltou a pegar nolivro e meteu-o dentro do saco. tarde, quando regressava, vi um exemplar do mesmo livronum escaparate, entre velhos alfarrbios encadernados, livros de poesia ou livros deinterpretao dos sonhos, romances de amor ou livros de poltica, e comprei-o de imediato.Mal tocou a campainha do meio-dia, a maior parte dos estudantes correu pelas escadas paratomar lugar na fila da cantina; quanto a mim, fiquei sentado no meu lugar. Depois vagueei aoacaso pelos corredores, desci cantina, atravessei trios, caminhei entre colunas, entrei em salasde aula vazias, olhei pelas janelas as rvores cobertas de neve do parque em frente; fui bebergua aos lavabos e percorri assim todos os edifcios da Taksim. Da rapariga, nem o mnimo rasto,mas isso no me inquietava.Depois da hora do almoo, o movimento nos corredores era ainda maior. Passei por todos oscorredores da Escola de Arquitetura, entrei em todos os estdios, interessei-me por um jogo dasmoedas que decorria nas mesas de desenho, instalei-me num canto e arrumei as pginas de umjornal para ali atirado de qualquer maneira, disposto a l-lo. Depois meti de novo por corredores,desci escadas, subi escadas, ouvi estudantes discutindo futebol, poltica ou os programas deteleviso da vspera. Juntei-me a um grupo onde se zombava de determinada estrela de cinemaque tinha decidido fazer um filho, dei cigarros e emprestei o isqueiro a quem mo pediu; umestudante contou uma anedota, ouvi-o at ao fim e, durante todo esse tempo, respondi com toda aboa vontade do mundo s pessoas que andavam procura de algum e que me perguntavam seeu o tinha visto. Por vezes, quando no encontrava colegas com quem falar, ou quando noencontrava janelas para passar o tempo, ou ainda quando j no tinha qualquer destino preciso,fazia de conta que me lembrava de repente de qualquer coisa importante e que ficava logo commuita pressa, e arrancava num passo decidido. Mas como no levava qualquer direo precisa,ia parar diante da porta da biblioteca ou a um patamar de escada, encontrava um colega que mepedia um cigarro e mudava logo de rumo, misturava-me com a multido de estudantes ouacendia outro cigarro. Tinha parado de novo para ler um aviso preso a um painel quando o meucorao disparou, deixando-me desamparado. L estava ela, a rapariga que tinha visto com olivro na mo, avanando no meio da multido, afastando-se, mas, no sei por qu, andava numpasso to lento, como num sonho, que parecia convidar-me a segui-la. Perdi o controlo, j noera eu prprio e sabia-o muito bem, mas no fui capaz de me conter e corri atrs dela.Trazia um vestido que no era completamente branco, mas muito claro, de uma cor indefinida.Alcancei-a antes de ela ter chegado s escadas e, quando a olhei de perto, a luz que emanava doseu rosto era quase to poderosa como a que jorrava do livro, mas to doce! Eu ainda estavaneste mundo, mas j tinha atingido o limiar da vida nova. Era ali mesmo que estava, ao fundo dasescadas imundas, mas j tinha penetrado na vida do livro. Diante daquela luz, compreendi que omeu corao nunca mais voltaria a obedecer-me.Disse-lhe que tinha lido o livro, expliquei-lhe que o tinha lido depois de a ter visto, a ela, com esselivro na mo. Antes de ler esse livro eu tinha um universo prprio, contei-lhe, mas agora, depoisde o ter lido, o meu universo era outro, por isso tnhamos de falar imediatamente, porque eu meencontrava sozinho neste mundo novo.- Tenho agora uma aula - disse-me ela.O meu corao batia duas vezes mais depressa. Ela adivinhou certamente a minha emoo

  • porque, por um momento, ficou pensativa.- Est bem - disse num tom decidido. - Vamos procurar uma sala vazia. Vamos falar.Encontrmos uma sala de aula vazia no segundo piso. Quando entrei na sala, as minhas pernastremiam. No sabia muito bem como haveria de lhe explicar que tinha entrevisto o mundoprometido pelo livro: o livro tinha-me falado em sussurro, tinha-me desvendado este mundo novocomo quem revela um segredo. Ela disse-me que se chamava Janan. Eu disse-lhe o meu nome.- O que encontraste de to cativante nesse livro? - perguntou Janan.Tinha vontade de lhe dizer: foi porque tu o leste, tu, meu anjo. Mas por que tinha eu pensado numanjo? A confuso reinava no meu esprito; acontecia-me muitas vezes ter assim a cabea emdesordem, mas algum vinha em meu socorro, talvez um anjo.- Toda a minha vida mudou depois de ter lido o livro - disse-lhe. - O quarto, a casa, o mundo emque eu vivia deixaram de ser o meu quarto, a minha casa, o meu universo; vi-me assim toa,perdido num universo que me era estranho. o livro que tu tinhas na mo da primeira vez que tevi, portanto tu tambm o deves ter lido. Fala-me do universo para onde foste e donde regressaste.Diz-me o que tenho de fazer para l entrar. Explica-me por que ainda estamos aqui. Diz-me porque que este mundo novo me pode ser to familiar como se fosse a minha prpria casa,enquanto a minha casa se me tornou to estranha como se fosse esse mundo novo. Explica-me.Sabe Deus o que mais lhe diria ainda assim quando, bruscamente, fui como que encandeado. Lfora, a luz cinzenta da tarde invernosa e nevada tornou-se to ntida, to brilhante que os vidros dapequena sala, que cheirava a giz, pareciam ser feitos de placas de gelo. Estava com medo deolhar para ela, mas no entanto olhei.- O que serias capaz de fazer para entrares no mundo desse livro? - perguntou-me ela.Estava plida. Tinha cabelo e sobrancelhas castanho-claros e um olhar muito doce. Se de factoela era deste mundo, parecia ter sido criada a partir de recordao. Se era do mundo futuro,trazia nela os medos e a tristeza do futuro. Eu contemplava-a sem ter a conscincia de que estavaa faz-lo. Era como se tivesse medo de que se tornasse real se continuasse a olhar para ela.- Para descobrir esse mundo, eu seria capaz de tudo - respondi-lhe.Janan esboou um sorriso furtivo e olhou-me com muita doura. Como havemos de noscomportar quando uma rapariga extraordinariamente bonita, uma rapariga encantadora nos olhadeste modo? Como devemos riscar o fsforo, acender o cigarro, olhar pela janela e, sobretudo,de que jeito falar com ela, como estar, at mesmo como respirar diante dela? Nunca nosensinam isso nos anfiteatros da Universidade. E tipos como eu debatem-se com a suainexperincia esforando-se por dissimular a violncia das batidas do corao.- O que queres dizer com isso? - perguntou-me ela.- Tudo - respondi-lhe e calei-me, atento s batidas do meu corao.No sei porqu, tive de repente uma viso de viagens muito longas, interminveis, debaixo dechuvas diluvianas, como nas lendas, em ruas sem sada, de rvores melanclicas, rios de lama,jardins, terras perdidas. Tinha de l ir, a essas terras, se alguma vez a queria apertar nos meusbraos.- Estarias pronto a enfrentar a morte, por exemplo?- Sim, estaria.- Mesmo que soubesses que h pessoas que nos matam porque lemos o livro?Tentei sorrir: Ao fim e ao cabo, no passa de um livro! , dizia para si mesmo o futuro

  • engenheiro que eu trazia dentro de mim. Mas Janan observava-me com extrema ateno.Transtornado, dizia a mim mesmo que ao mnimo erro, mais pequena falha, nunca maispoderia aproximar-me dela nem do mundo do livro.- No acho de modo algum que algum queira matar-me - disse-lhe eu, interpretando um papelque no chegava a identificar. - Mas, mesmo que fosse esse o caso, garanto-te que no teriamedo da morte.Os seus olhos cor de mel cintilaram luz do branco de giz que entrava pela janela.- Na tua opinio, esse mundo existe realmente, ou trata-se de uma fantasia, de um mundodescrito num livro?- Deve existir! - disse-lhe eu. - Tu s to bela que deves vir de l, tenho a certeza.Ela deu dois passos para mim, pegou-me na cabea com ambas as mos e beijou-me na boca.Deixou a lngua nos meus lbios por um instante. Depois recuou, antes que eu tivesse tempo deapertar o seu corpo leve nos meus braos.- s muito corajoso! - disse-me ela.Senti um perfume de lavanda. Aproximei-me dela a cambalear como um bbado. Passaramdiante da porta dois estudantes aos gritos.- Espera, e ouve bem - disse-me ela. - Tens de repetir ao Mehmet tudo o que acabas de me dizer.Ele foi ao mundo descrito no livro e regressou. Ele vem de l, percebes? Mas no acredita queoutros possam fazer f no livro e possam ir l. Viveu coisas pavorosas e perdeu a f. Vais falarcom ele?- Quem ele, o Mehmet?- V se ests em frente da sala 201 dentro de dez minutos, antes de comear a aula - disse-meela e logo correu na direo da porta e saiu.A sala ficou vazia, deserta, como se tambm eu j no estivesse l; fiquei ali pregado ao cho.Ningum me tinha beijado assim at ento, ningum me tinha olhado como ela me olhou. Agora,encontrava-me de novo s, e fazia-me muito medo a ideia de no a voltar a ver, de j no poderentrar com firmeza nesse outro mundo.Quis correr atrs dela, mas batia-me o corao com tanta fora que tive medo de sufocar.Aquela luz branca, to branca, cegava-me no s os olhos mas tambm o esprito. Tudo isto porcausa de um livro , disse para comigo, porm vi at que ponto amava esse livro e at que pontodesejava estar l, nesse outro universo. E, por um breve momento, julguei que ia chorar, apenasa existncia do livro me permitiu aguentar o abalo. Alm disso, tinha a certeza de que aquelarapariga voltaria a beijar-me. Mas senti que o mundo desaparecera completamente e meabandonara.Ouvi gritos, fui ver janela. Na orla do parque, vrios estudantes de engenharia atiravam bolasde neve uns aos outros. Fiquei a v-los brincar sem compreender muito bem o que via. J no erauma criana, de modo algum. Tinha ido para muito longe.Isso acontece a todos. Um belo dia, um dia normal, quando pensamos caminhar na vida com omesmo passo rotineiro, com a cabea cheia das notcias dos jornais, dos barulhos do trnsito,com bilhetes de cinema velhos e migalhas de tabaco nos bolsos, notamos de sbito que narealidade nos encontramos h muito tempo noutro lado e que de modo nenhum nos encontramosonde os nossos passos nos levaram. Sim, havia muito que eu j no estava ali, tinha desaparecidono meio de uma luz terrivelmente embaada, achava-me do outro lado da vidraa de gelo. Em

  • momentos assim, se quisermos assentar de novo os ps na terra, se quisermos voltar a umuniverso - seja ele qual for - teremos de abraar uma rapariga, teremos de conquistar o seuamor. Com que rapidez o meu corao, que no parava de bater loucamente, tinha aprendidoestas teorias pretensiosas! Era isso, estava apaixonado, abandonava-me aos movimentosdesordenados do meu corao Consultei o relgio. Faltavam oito minutos.Como um fantasma, andei pelos corredores de teto alto, estranhamente consciente do meu corpo,da minha vida, da minha cara, da minha histria. Poderia encontr-la no meio desta multido?Que lhe diria se a encontrasse? Como estava a minha cara, isso no sabia. Entrei nos lavabos dopatamar, bebi gua da torneira, examinei no espelho os meus lbios que tinham acabado dereceber um beijo. Oh, minha me, estou apaixonado, mezinha, j no me sinto, vou-meembora, mezinha, tenho medo e ainda assim estou pronto a fazer tudo por ela Quem serento esse Mehmet, vou perguntar Janan, de que que ela tem medo, quem so os homens quequerem matar todos os que leram o livro? No tenho medo de nada, eu; se leste esse livro, Janan,se acreditaste nesse livro, como eu acreditei, no vais ter medo, de certeza.Vi-me na barafunda dos corredores, andando num passo rpido, como se tivesse qualquer coisamuito importante para resolver. Subi ao segundo andar, passei pelas janelas altas que davam parao ptio interior onde havia uma fonte, ao andar ia deixando para trs um pouco de mim mesmo,pensando em Janan a cada passo que dava. Passei pela sala onde tinha aula, abrindo caminho porentre os meus colegas. Uma rapariga muito, muito sedutora acabava de me beijar, ali, h pouco,sabeis? As minhas pernas levavam-me estupidamente para o meu futuro. Um futuro onde haviaflorestas sombrias, quartos de hotis, fantasmas cor de malva ou azulados, onde havia a vida, aserenidade e a morte.Trs minutos antes do incio da aula, mal cheguei entrada da sala 201, identifiquei Mehmetmesmo antes de ver Janan. Era grande e delgado como eu, plido, tinha um ar sonhador ecansado. Lembrei-me ento vagamente de o ter visto antes com Janan. Ele sabe muitas maiscoisas do que eu, pensei, viveu muito mais do que eu, deve ter mais um ano, ou talvez dois, doque eu.Como ele me reconheceu, isso que no sei. Chamou-me parte, para junto dos armrios.- Parece que leste o livro - disse-me ele. - O que descobriste?- Uma vida nova.- Acreditas mesmo nisso?- Acredito.Tinha uma expresso to abatida que eu tive medo de tudo o que ele tinha passado.- Ouve, eu tambm acreditei - disse-me ele. - Acreditei que poderia descobrir esse mundo.Apanhei nibus de longo curso para ir de umas cidades para outras, acreditava que poderiadescobrir essa terra, essas ruas, essas pessoas Mas podes ter a certeza, no fim, no h maisnada a no ser a morte. Eles matam implacavelmente. Agora mesmo podem estar a vigiar-nos.- No o assustes! - disse-lhe Janan.Mehmet calou-se, a olhar para mim, como se me conhecesse h anos. Mais tarde diria a mimmesmo que o desiludi.- No tenho medo - disse eu, olhando para Janan. - Sou capaz de ir at ao fim - acrescentei,naquele tom firme e ousado dos heris dos filmes.O incrvel corpo de Janan estava a dois passos de mim. Ela estava entre ns dois, mas mais perto

  • dele.- No se trata de ir at ao fim - respondeu Mehmet. - Trata-se de um livro. Algum o imaginou eo escreveu. Um sonho, um fantasma. No tens que fazer mais nada seno l-lo e rel-lo.- Repete-lhe o que me disseste a mim - pediu Janan.- Esse mundo existe - disse-lhe eu.Apetecia-me pegar no gracioso brao de Janan e pux-la para mim, mas contive-me.- E hei-de encontrar esse mundo.- No h mundo nenhum a descobrir. So apenas histrias! Mete bem na cabea que se trata deum jogo para crianas inventado por um velho cretino. O velho decidiu um dia escrever um livropara divertir os adultos, tal como fazia para os midos. No tenho a certeza de que ele prpriosoubesse o que queria dizer. uma leitura divertida mas, se acreditares, a tua vida est tramada.- H todo um mundo neste livro - respondi-lhe no tom utilizado nos filmes pelos heris decididos eidiotas. - E hei-de encontrar o meio de l chegar, tenho a certeza.- Nesse caso, boa viagem!Voltou-se para Janan, como quem diz: eu bem te tinha dito; j se afastava de ns quando parou:- Como podes ter a certeza dessa vida nova? - perguntou-me.- Porque tenho a sensao de que o livro conta a histria da minha vida.Sorriu-me amistosamente e deixou-nos.- Espera, no vs ainda - pedi a Janan. - o teu namorado? - Agradaste-lhe muito - disse Janan. -Ele no tem medo por ele, mas pelos outros, pelas pessoas como tu e eu.- o teu namorado? No te vs embora sem me dizeres tudo.- Ele precisa de mim - disse ela.Tinha ouvido tantas vezes esta frase no cinema que lhe dei a rplica automaticamente, e comconvico: Se me abandonasses, morria.Ela sorriu e entrou na sala 201 com os outros estudantes. Por um momento ainda pensei ementrar com eles. Pelas grandes janelas viradas para o corredor, vi-os sentarem-se na mesmacarteira, entre estudantes iguais a eles, vestindo as mesmas jeans ou os mesmos vestidoscinzentos ou de um verde desbotado. Ficaram espera do incio da aula em silncio. Com umgesto de extrema suavidade, Janan atirou o cabelo para trs das orelhas com os dedos e, de novo,uma parte do meu corao se derreteu. Ao contrrio de tudo o que se conta sobre o amor nosfilmes, afastei-me sem pensar, sentindo-me extremamente miservel.Que pensa ela de mim? De que cor so as paredes da casa dela? De que fala ela com o pai? Acasa de banho deles brilha de asseio? Tem irmos e irms? O que come ao pequeno-almoo? Seo Mehmet amante dela, ento por que me beijou?A pequena sala de aulas onde ela me tinha beijado estava vazia. Entrei, como um exrcito emdebandada que no entanto sonha em travar nova batalha. Os meus passos ressoavam na salavazia, as minhas mos miserveis e culpadas que abriam um mao de cigarros, o cheiro da tinta,a luz branca de gelo Encostei a testa vidraa. Era isto a vida nova cuja soleira transpuseraesta mesma manh? As reflexes que me atulhavam a cabea esgotaram-me mas, num recantodo meu esprito, o embrio de engenheiro que eu era continuava a fazer os seus pequenosclculos. No me sentia com foras para ir assistir minha aula, de maneira que decidi esperarpelo fim da aula deles. Duas horas!

  • Sabia l h quanto tempo a minha testa continuava colada ao vidro sujo, cheio de pena de mim, eisso enchia-me de deleite. J pensava que as lgrimas me iam subir aos olhos quando, tocadospor um vento ligeiro, comearam a cair flocos de neve. Em baixo, na encosta da colina quedesce para Dolmabahe, estava tudo to calmo entre os pltanos e os castanheiros! As rvoresno sabem que so rvores, pensei. Uns corvos bateram as asas e levantaram voo de um ramocoberto de neve. Contemplei-os com encanto.Observava tambm os farrapos de neve caindo e baloiando docemente; chegados a certa altura,pareciam hesitar em seguir os outros e, quando soprava um vento fraco, hesitavam de novo. Dequando em quando, depois de se balancear um pouco no vazio, havia um floco que seimobilizava, e de repente, como se tivesse mudado de opinio, voltava a subir lentamente para ocu. Vi um grande nmero de flocos a subirem assim para o cu sem se deixarem cair na lama,no asfalto ou nas rvores. Mas quem sabia disso? Quem alguma vez tinha reparado nisso?Quem alguma vez reparou que a ponta do tringulo constitudo pelo parque, bordejado dos ladospelas estradas asfaltadas, aponta para a Torre de Leandro? Quem reparou que os pinheiros beira dos passeios se inclinaram ao longo dos anos, numa simetria perfeita, pelo efeito do ventoleste, formando um octgono por cima das paragens dos micro nibus? Quem diria, ao ver umhomem parado beira do passeio com um saco de plstico cor-de-rosa na mo, que metade dapopulao de Istambul circula com um saco de plstico na mo? Quem, ao ver nos parques semalma o rasto dos famintos ces vadios e dos catadores que apanham as garrafas do cho cobertode neve e de cinzas, pensou em encontrar o teu rasto, meu Anjo, quando ignoro ainda a tuaverdadeira identidade? Seria assim que eu ia descobrir esse mundo novo revelado pelo livrocomprado dois dias antes numa banca de livros velhos num passeio?Foi o meu corao inquieto, e no os meus olhos, que primeiro notou a silhueta de Janan nessemesmo passeio, na luz cada vez mais cinzenta e na neve cada vez mais abundante. Trazia umcasaco comprido violeta - o meu corao, portanto, guardara a memria do casaco sem que eume apercebesse disso. Ao lado dela, de jaqueto cinzento, caminhava Mehmet sem deixar rastona neve, como fazem os espritos malignos. Pensei em correr atrs deles. Pararam precisamenteno stio onde estava a banca de livros dois dias antes. Falavam, ou antes, discutiam, e pelos seusgestos largos, e pela atitude um pouco contrada de Janan adivinhava-se que se envolviam numadaquelas discusses tpicas de certos casais.Voltaram a andar, voltaram a parar. Estavam muito longe de mim mas, pela atitude deles e pelosolhares que lhes deitavam os transeuntes, eu podia adivinhar, sem precisar de recorrer imaginao, que a discusso se tornava cada vez mais violenta.Aquilo no durou muito. Janan voltou para trs, na direo da Escola, aproximando-se de mim;Mehmet seguiu-a com os olhos e, depois, retomou a direo da Praa de Taksim. De novo o meucorao se ps a bater descompassadamente.Foi ento que vi atravessar o homem do saco de plstico cor-de-rosa, o mesmo que estava espera na paragem dos micro nibus de Sariyer. Eu estava com a ateno to concentrada noandar da elegante silhueta de casaco violeta que os meus olhos no repararam naquele peo queatravessava a avenida. Mas havia qualquer coisa de estranho, que no batia certo, na atitude dohomem do saco cor-de-rosa que corria de um passeio para o outro. A certa altura, a dois passosdo passeio, o homem tirou um objeto do saco, uma arma, e apontou-a a Mehmet, que se deuconta disso no mesmo instante.

  • Primeiro vi Mehmet perder o equilbrio com o impacte da bala, s depois que ouvi o tiro. Ouvium segundo tiro. Estava mesmo espera de ouvir um terceiro. Mehmet vacilou, depois caiu. Ohomem deitou fora o saco de plstico e fugiu atravessando o parque.Janan continuava a aproximar-se; a sua passada era to elegante e melanclica como o saltitarde um pssaro. No ouvira os tiros. Um camio carregado de laranjas brancas da nevedesembocou no cruzamento com um barulho alegre. O mundo parecia reanimar-se.Para os lados da paragem dos micro nibus vi as pessoas agitarem-se em alvoroo. Mehmetlevantava-se. Ao longe, o homem, j sem saco, galgava a encosta da colina na direo do estdiode Inon, dando grandes saltos na neve do parque, como um palhao que tentasse fazer rir ascrianas; dois ces brincalhes perseguiam-no.Eu deveria ter-me mexido, ter corrido ao encontro de Janan para a avisar, mas fiquei pregado aocho. Continuava a olhar fixamente para Mehmet que cambaleava e olhava sua volta, comoque espantado. Quanto tempo? Muito, muito tempo, at ao momento em que Janan virou aesquina do prdio e desapareceu do meu campo visual.Deitei ento a correr, galguei a escada, passei entre os polcias paisana, os estudantes e oscontnuos. Quando cheguei entrada principal, Janan tinha desaparecido sem deixar rasto. Subi aavenida em passo de corrida, sem voltar a v-la. Cheguei ao cruzamento. No vi ningum, noencontrei o mnimo vestgio dos acontecimentos que tinham acabado de se passar ali. TambmMehmet tinha desaparecido, assim como o saco de plstico cor-de-rosa que o homem tinhadeitado fora.No stio em que Mehmet tinha cado, no passeio, a neve derretera, transformara-se em lama.Um garotinho de dois ou trs anos, com um gorro na cabea, e a me, elegante e bonita,passavam por ali nesse momento.- Para onde fugiu o coelho, para onde foi o coelho? - repetia a criana.Atravessei a rua sempre a correr, na direo da paragem dos micro nibus de Sariyer. O mundoaconchegara-se de novo no silncio da neve e na indiferena das rvores. Na paragem dos micronibus, dois motoristas, estranhamente parecidos, reagiram com espanto s minhas perguntas;no, eles no estavam ao corrente de nada. O empregado do caf com ar de bandido que lhesservia ch tambm no tinha ouvido tiros, mas no era homem para se espantar fosse com o quefosse. O funcionrio que anunciava os nibus, com o seu apito na mo, encarou-me como se eufosse o assassino que tinha puxado o gatilho. Uns corvos desabaram sobre um pinheiro, por cimada minha cabea. Um micro nibus arrancava. No ltimo momento, assomei a cabea pelaporta e repeti precipitadamente as mesmas perguntas.- Um rapaz e uma rapariga apanharam agora mesmo um txi que mandaram parar desselado - disse-me uma passageira, boa mulher.A mulher apontava com o dedo para a Praa de Taksim. Mesmo sabendo que era uma estupidez,deitei a correr na direo indicada. No meio da multido que enchia a praa, entre as lojas, oscarros, os vendedores ambulantes, senti-me sozinho no mundo. Dirigi-me para a AvenidaBeyoglu quando, de repente, me veio cabea o Hospital das Urgncias, e desci a AvenidaSiraselviler. Entrei pela porta das Urgncias e mergulhei no cheiro de ter e tintura de iodo comose eu prprio fosse um caso de urgncia.Vi senhores muito dignos com as calas rotas e arregaadas, cobertos de sangue. Vi as carasviolceas das vtimas de envenenamento que, depois de terem passado por uma lavagem ao

  • estmago, tinham sido largadas na neve, deitadas nas macas, entre os vasos de flores, para queapanhassem um pouco de ar fresco. Indiquei o caminho a um homenzinho simptico e bem-educado que segurava na corda de estender roupa com que tinha garrotado o brao para evitar amorte por hemorragia, e que andava de porta em porta procura de um mdico de servio. Vidois homens, velhos amigos, que depois de se terem ferido reciprocamente com a mesma faca,estavam sentados com muita sensatez diante do polcia que redigia o auto da ocorrncia, eprestavam os seus depoimentos desculpando-se por se terem esquecido da faca em questo.Esperei pela minha vez de ser atendido, depois as enfermeiras e, a seguir, os polciasinformaram-me de que no, nenhum estudante ferido por bala, acompanhado por uma raparigade cabelo castanho-claro, se tinha apresentado nesse dia nas Urgncias.Seguidamente passei pelo Hospital Municipal de Beyoglu e tive a impresso de ter encontrado alios mesmos velhos amigos que se tinham ferido facada, as mesmas raparigas suicidas quetinham ingerido tintura de iodo, os mesmos aprendizes que tinham deixado apanhar o brao poruma mquina ou deixado furar o dedo por uma agulha, os mesmos passageiros entalados entreum nibus e o abrigo de uma paragem, ou entre um barco e o cais de embarque. Examineicuidadosamente os registos, tive de fazer um depoimento - no registado - a um agente da polciaa quem as minhas diligncias devem ter despertado suspeitas, e, depois de ter aspirado o perfumeda gua-de-colnia com que um pai feliz nos aspergiu{3} a todos abundantemente antes de subir Maternidade, no primeiro andar, tive medo de desatar a chorar.A noite caa quando voltei ao local dos factos. Esgueirei-me por entre os micro nibus para entrarno parquinho. Primeiro, os corvos bateram as asas com clera por cima da minha cabea, depoisinstalaram-se nos ramos para me vigiarem melhor. Encontrava-me talvez no corao dabalbrdia da cidade, mas apenas ouvia um silncio ensurdecedor como se fosse um assassinodissimulado num canto, depois de ter crivado a vtima facada. Ao longe, os vidros da sala deaula onde a Janan me tinha beijado estavam iluminados por uma luz amarelo-plida e, l dentro,as aulas deviam por certo continuar a decorrer. As rvores, cujo desconcerto me tinha chocadoainda essa manh, haviam-se transformado em massas de cascas disformes e implacveis.Caminhava pisando a neve que repassava os sapatos e encontrei as pegadas do homem que,quatro horas antes, largando o saco de plstico, tinha corrido por cima desta mesma neve aossaltos de palhao feliz. Para me certificar da realidade destas pegadas, segui-as at estrada embaixo, depois voltei para trs pelo mesmo caminho, at ao parque, e apercebi-me de que asminhas pegadas se tinham confundido h muito com as do homem do saco cor-de-rosa. Os doisces escuros que, tal como eu, tinham sido testemunhas dos factos, surgiram de trs dos arbustos,mas logo fugiram, assustados. Parei um momento, olhei para o cu: estava to escuro como osces. noite, a minha me e eu jantmos enquanto vamos televiso. As pessoas e as notcias -assassnios, acidentes, atentados, incndios - que se sucediam na tela pareciam-me longnquos eincompreensveis, semelhantes s ondas levantadas pela tempestade num brao de mar que seavistam das montanhas. E no entanto subsistia em mim o desejo de me confundir com esse marao longe, de um cinzento de chumbo, de me encontrar l . Entre as imagens que se agitavamligeiramente na tela a preto e branco da televiso, cuja antena no tinha sido bem fixada,ningum aludiu a um estudante ferido.

  • Fechei-me de novo no meu quarto depois de jantar. O livro estava l, aberto em cima da mesa,exatamente como o tinha deixado; metia-me medo. Pressentia uma violncia brutal no desejoque crescia em mim de responder ao apelo do livro, de voltar para ele, de me entregarcompletamente a ele. Disse para mim mesmo que no poderia resistir-lhe e sa de casa.Caminhei at beira-mar, atravessando ruas cobertas de neve e lama. A escurido do mardevolveu-me a coragem.Assim reconfortado, sentei-me mesa e, como se consagrasse o meu corpo a um dever sagrado,ofereci o rosto luz que jorrava do livro. A luz, pouco violenta a princpio, acabou por me invadircom tanta fora ao longo das pginas, to profundamente, que senti todo o meu ser a derreter.Presa de uma necessidade insuportvel de viver e correr, de um entusiasmo e de umaimpacincia que me afligiam o ventre, fiquei a ler o livro at de manh.

  • Captulo 3 Passei os dias que se seguiram procura de Janan. No voltara a v-la na Escola no dia seguinte;passaram-se mais dois dias e continuava a no a encontrar. A princpio, isso pareceu-me normal,convencido de que Janan voltaria com certeza s aulas, mas, a pouco e pouco, o mundo antigofugia-me debaixo dos ps. Estava cansado de procurar, de esperar, de olhar incessantemente minha volta, estava terrivelmente apaixonado e, alm disso, sob a influncia do livro que passavaas noites a reler, sentia-me muito s. Sabia muito bem que este mundo era feito de uma sucessode imagens, de uma srie de hbitos contrados cegamente e de sinais mal interpretados, e que omundo e a vida reais se encontravam algures no interior ou no exterior destes parmetros, masmuito perto. Compreendera que ningum, a no ser Janan, poderia mostrar-me o caminho.Li com ateno todos os jornais dirios e respectivos suplementos, todos os semanrios, em queos assassnios, os homicdios provocados pela embriaguez, os acidentes sangrentos, os incndios,eram relatados com todos os pormenores, mas no descobri qualquer vestgio do incidente de quetinha sido testemunha. Depois de ter lido o livro durante toda a noite, fui Escola de Arquiteturapor volta do meio-dia, percorri todos os corredores tentando convencer-me de que ela estava aliou que iria aparecer em breve, e eu a encontraria. De vez em quando passava pela cantina, subiaescadas e voltava a desc-las, ia ver ao trio, biblioteca, passava mais uma vez pelas colunas,parava porta da sala onde ela me tinha beijado, entrava numa sala qualquer para mudar deideias assistindo aula, quando tinha pacincia para o fazer, saa da aula para voltar a fazer omesmo percurso. Procurar, esperar, reler o livro durante roda a noite: no fazia outra coisa.Uma semana mais tarde esforcei-me por me introduzir no crculo dos colegas de curso de Janan.Estava convencido de que ela, tal como Mehmet, no tinha muitos amigos entre os colegas. Doisou trs estudantes disseram-me que Mehmet vivia num hotel do bairro de Taksim e quetrabalhava nesse hotel como recepcionista noturno e secretrio. Mas ningum me soube explicarpor que no ia Escola. Uma estudante que terminara o liceu com Janan, mas que nunca forasua amiga, segundo me referiu, e parecia mesmo ser bastante hostil em relao a ela, disse-meque ela morava em Nigantas1. Outra contou-me que tinha passado noites com ela a trabalhar emprojetos da escola e adiantou-me que Janan tinha um irmo mais velho, um belo rapaz muitobem-educado, que trabalhava na empresa do pai; pareceu-me mais interessada no irmo do queem Janan. No foi por ela que soube a morada de] Janan; consegui-a na secretaria explicandoque tinha a inteno de enviar cartes de boas-festas a todos os estudantes da sua turma.Passava as noites a ler o livro at de manh, at hora em que comeavam a doer-me os olhos ea insnia me paralisava os braos e as pernas. Durante as minhas leituras, a luz que jorrava dolivro parecia-me por vezes to violenta, to intensa que no s sentia a alma e o corpo aderreterem, mas tinha tambm a sensao de que tudo aquilo que fazia de mim o que eu eradesaparecia sob esta luz. Imaginava ento a luz que me invadia, cada vez mais forte, a princpiocomo um claro plido surgindo de uma fissura no solo, tornando-se de seguida cada vez maisintensa, invadindo o mundo, um mundo onde eu j tinha o meu lugar; sonhava que encontravaJanan nas ruas desse mundo que eu imaginava com homens novos muito corajosos, com rvoresimortais e cidades desaparecidas, e sonhava que ela se lanava nos meus braos.

  • Uma noite, em finais de Dezembro, dirigi-me ao bairro de Nigantas, onde morava Janan.Calcorreei longamente e ao acaso a avenida, hesitante, ao longo das montras iluminadas para oAno Novo, por entre a multido de senhoras elegantes que, acompanhadas pelos filhos, faziam asltimas compras. Vagueei diante das pastelarias e lojas de trapos ou sanduches abertasrecentemente. hora do encerramento das lojas, quando as ruas comeavam a esvaziar-se,toquei porta de um apartamento, num prdio que se encontrava numa rua paralela avenida.Abriu-me a porta uma criada: disse-lhe que era colega de turma de Janan; a criada desapareceuno interior. Tive tempo de ouvir um discurso poltico na televiso, depois as pessoas acochicharem l dentro. Apareceu o pai. Grande, com camisa branca, uma toalha de mesaimaculada na mo, convidou-me a entrar. A me, maquilhada e intrigada, o irmo, belo rapaz,estavam instalados numa mesa onde no tinha sido posto o quarto talher. Estavam a passar asnotcias na televiso.Expliquei-lhes que era estudante da Escola de Arquitetura, da mesma turma de Janan, que haviaj vrios dias que ela no aparecia nas aulas, que todos os colegas estavam inquietos, que algunsde ns tnhamos mesmo telefonado, sem obtermos uma resposta satisfatria. Alm disso, ela nome tinha devolvido um trabalho de esttica que eu tinha de terminar, por isso me vira obrigado air busc-lo e pedia desculpa. Com o sobretudo velho do meu falecido pai no brao esquerdo, eutinha decerto o ar de lobo mau escondido sob uma pele de ovelha que perdera todas as suascores.- Pareces bom rapaz - disse o pai de Janan; depois declarou que ia falar comigo com toda afranqueza e pediu-me que eu lhe respondesse tambm francamente: eu era simpatizante dequalquer corrente poltica, de esquerda ou de direita, fundamentalista ou socialista? No. Tinhacontactos com associaes polticas, dentro ou fora da Universidade? No, no tinha qualquercontacto desse gnero Ficmos calados. As sobrancelhas da me levantaram-se com simpatia e aprovao. O olhar dopai - que tinha os olhos cor de mel, como os de Janan - aflorou as imagens furtivas da televiso,vagueou um longo momento por paragens que no existiam, voltou a pousar-se em mim comsegurana.Janan tinha sado de casa, desaparecido. A palavra desaparecer talvez no fosse a maisadequada, porque de dois em dois ou de trs em trs dias ela telefonava de uma cidadelongnqua, como se percebia pelo rudo de fundo na linha telefnica, e pedia-lhes para no seinquietarem, que estava tudo bem com ela, e depois, no atendendo s perguntas do pai nem ssplicas da me, desligava sem dizer mais nada. Sendo assim, continuava o pai, no teriam elesrazes para se inquietarem, para pensarem que a filha estava a ser manipulada, utilizada notrabalho sujo de uma qualquer organizao poltica? J tinham pensado avisar a polcia, masacabaram por desistir porque sempre se fiaram no bom senso de Janan e tinham a certeza e aconfiana de que ela acabaria por reagir e desenvencilhar-se sozinha de todos aquelesproblemas. Quanto splica que a me me fez com voz chorosa - depois de ter escrutinado comolhos penetrantes o que me dizia respeito, desde a roupa ao cabelo, desde a herana paterna queeu tinha posto nas costas de uma poltrona at aos sapatos - consistia em que eu lhe dissesse tudoimediatamente, qualquer informao ou mesmo impresso que tivesse, suscetveis de clarificarum pouco a situao.Pus uma cara espantada e disse-lhes: no minha senhora, no fao a mnima ideia, a mnima

  • ideia. Ficmos todos um bom momento a olhar para o prato de empadinhas e para a salada decenouras que estavam na mesa. O belo rapaz, que tinha sado da sala e entrado vrias vezes,voltou, pedindo desculpa por no ter encontrado o meu trabalho inacabado. Insinuei que talvezpudesse procur-lo eu prprio; mas, em vez de me permitirem a entrada no quarto da filhadesaparecida, contentaram-se em convidar-me, sem insistirem muito, a sentar-me no lugar vagoda mesa familiar. Embora estivesse apaixonado, tinha o meu orgulho, por isso recusei, mas logolamentei a minha deciso quando vi, ao sair do quarto, uma fotografia emoldurada sobre o piano:Janan, com uns dez anos, com trancinhas, e umas asas de anjo - segundo um costume adaptadodo Ocidente -, por ocasio de uma festa escolar, suponho, com um sorriso vago, com um olhartriste de criana, entre o pai e a me.Como estava fria e hostil a noite, e que implacveis eram as ruas escuras! Percebi ento por queera que os ces vadios que assombram as ruas se apertam sempre uns contra os outros. Acordeicom ternura a minha me que dormitava diante da televiso, pousei-lhe os dedos no pescooplido, aspirei o seu perfume; como gostaria que ela me apertasse nos braos! Mas quandofechei a porta do meu quarto, senti uma vez mais que a minha vida real estava prestes acomear.Pus-me a reler o livro. Lia-o com submisso, com respeito, desejando que ele me levasse paralonge deste universo. Paragens novas, homens novos, imagens novas surgiram diante dos meusolhos. Vi nuvens de fogo, mares escuros, rvores violceas, ondas escarlates. Depois, comoacontece em certas manhs de Primavera em que o sol reaparece depois de uma chuvada evejo os prdios sujos e tristes e as janelas cegas recuarem e iluminarem-se bruscamenteenquanto avano com um passo de novo seguro e otimista, as imagens confusas que meassombravam o esprito desvaneceram-se lentamente, e o amor apareceu, diante de mim,aureolado de uma claridade de um branco cintilante. Trazia uma criana nos braos: arapariguinha da fotografia emoldurada em cima do piano.A mida olhava para mim a sorrir, preparava-se talvez para me dizer qualquer coisa, e talvez mativesse dito, mas eu no fui capaz de a ouvir. Passei por um momento de desespero. Uma vozdentro de mim dizia-me que nunca mais poderia entrar nesta foto to bela, e eu, com tristeza,dei-lhe razo. No mesmo instante, apoderou-se de mim uma saudade e, com o corao a arderde dor, vi as duas imagens desaparecerem numa estranha ascenso.Estas vises despertaram de imediato em mim tanto pavor que, como fizera da primeira vez quetinha lido o livro, afastei-o do rosto, como para me proteger da luz que jorrava das suas pginas.Pude ver com desespero que o meu corpo estava abandonado ali, no silncio do meu quarto e naserenidade que a minha mesa de trabalho garantia; vi a imobilidade dos meus braos e dasminhas mos, e os mveis do quarto, e o mao de cigarros, a tesoura, os livros escolares, ascortinas e a cama.Desejava que o meu corpo, de que sentia vivamente o calor e a pulsao, pudesse afastar-sedeste mundo, mas, ao mesmo tempo, continuava consciente dos rudos no interior do prdio, doprego longnquo do vendedor de boza, e compreendia que a possibilidade de ler um livro pelanoite dentro, de me achar presente neste mundo e neste instante no eram coisasverdadeiramente intolerveis. Durante um longo momento, escutei unicamente estes barulhos: obuzinar dos carros ao longe, o ladrar dos ces, um vento quase imperceptvel, uma troca depalavras entre dois transeuntes (ento at amanh! - disse um) e, dominando todos os outros, o

  • rugido de um comboio de mercadorias. Muito mais tarde, quando j tinha a impresso de quetodos estes barulhos no tardariam a desaparecer num silncio absoluto, surgiu-me de repenteuma imagem diante dos olhos e percebi ento como o livro me tinha penetrado na alma: quandoexpus de novo o rosto luz que jorrava do livro, o meu esprito j no era seno uma pgina embranco num caderno aberto minha frente. E era assim que todo o contedo do livro se imprimiana minha alma.Inclinei-me para retirar de uma gaveta um caderno quadriculado para Mapas e Mtodos quecomprara para a cadeira de Esttica, algumas semanas antes de descobrir o livro e que nuncatinha utilizado. Abri-o na primeira pgina, respirei o cheirinho bom do papel em branco e,pegando na esferogrfica, comecei a transcrever, frase por frase, tudo o que me dizia o livro.Depois de ter anotado no caderno uma frase que o livro me segredava, passava seguinte, eassim sucessivamente. Quando encontrava um pargrafo no livro, fazia um novo pargrafo nocaderno e, ao cabo de algum tempo, pude verificar que tinha copiado exatamente as palavrasdesse pargrafo. De tal maneira que, pargrafo atrs de pargrafo, dei uma nova vida a tudo oque me dizia o livro. Mais tarde, endireitei a cabea para consultar o livro, depois o caderno.Tinha sido mesmo eu a escrever tudo o que estava no caderno, mas tudo o que eu escrevera eraa exata reproduo do que estava escrito no livro. Fiquei muito satisfeito, e foi assim que, todas asnoites, me dediquei a este trabalho, at de manh.Deixara de ir s aulas. Passava o tempo a calcorrear os corredores, como um homem que fogeda sua prpria alma, sem o menor interesse em saber que aula era dada em que sala;incansavelmente, sem me conceder trguas, descia cantina, subia ao ltimo andar, voltava adescer at biblioteca; dali passava para as salas de aulas, voltava cantina, e, de cada vez queconfirmava a ausncia de Janan, um espasmo doloroso atravessava-me o ventre.Os dias foram passando; habituei-me a este sofrimento e j conseguia viver com ele e control-lo um pouco. Talvez aquele meu corrupio, de um lado para o outro, me ajudasse, assim como oscigarros, mas o mais importante era descobrir coisas para passar o tempo: uma histria que ouviacontar, um lpis de desenho novo, um casaco comprido violeta, rvores entrevistas atravs deuma janela, uma cara nova detectada na rua, enfim, todas essas coisas me impediam, nem quefosse por pouco tempo, de tomar conscincia desta dor feita de impacincia e de solido que meirradiava do ventre e se me espalhava por todo o corpo. Quando entrava num stio com aesperana de l encontrar Janan, na cantina por exemplo, no esgotava de imediato todas aspossibilidades que me oferecia esse lugar inspecionando-o rapidamente, olhava primeiro para ocanto onde as estudantes de jeans e cigarro na mo estavam conversa, e imaginava que Jananestava sentada algures atrs de mim. Chegava a convencer-me disso de tal maneira que no mevirava logo, querendo fazer durar essa sensao. Olhava demoradamente para os estudantes quefaziam fila na caixa ou os que se sentavam na mesa em que Janan tinha pousado o livro duassemanas atrs, ganhando assim alguns segundos de felicidade ao imaginar o calor da presena deJanan atrs de mim e ao acreditar ainda com mais fora nos meus fantasmas. Mas quando mevirava e confirmava a sua ausncia, e tambm a ausncia de qualquer indcio que pudesse levar-me at ela, a iluso que por um momento me percorrera lentamente as veias como um suaveelixir era substituda pelo veneno que me queimava o estmago.Tinha lido e tinha ouvido dizer muitas vezes que o amor era uma dor benfica. Foi durante esteperodo que encontrei com muita frequncia este clich nos livros de astrologia ou nos

  • horscopos dos jornais, ou ainda nas seces de Casa - Famlia - Felicidade das revistas, entrefotografias de saladas mistas e frmulas de cremes de beleza. A dor atroz que me apertava todolorosamente as entranhas, a solido e tambm o cime mesquinho que no me largavaafastavam-me de tal forma das pessoas e tornavam-me to infeliz que eu procurava a ajuda doshorscopos dos jornais e revistas; tambm acreditava cegamente em toda a espcie depressgios: o nmero de degraus que levavam ao andar de cima era mpar, logo, Janan estaria lem cima. Se a primeira pessoa a passar pela porta fosse uma mulher, tal significava que nessedia veria Janan. Contava at sete: se o comboio arrancasse antes de eu ter acabado de contar atsete, Janan apareceria e poderamos finalmente falar! Se eu fosse o primeiro a saltar para o cais sada do barco, ela apareceria nesse dia Eu era sempre o primeiro a saltar para o cais; nunca punha o p entre duas lajes da calada;gostava de adivinhar que o nmero de cpsulas de garrafas espalhadas pelo cho dos cafs erasempre um nmero mpar e no me enganava. Bebi ch com um aprendiz de soldador que vestiauma camisola da mesma cor violeta do casaco de Janan. Tive at a sorte de poder escrever o seunome com as letras das matrculas dos cinco primeiros txis com que me cruzei. Conseguiatravessar a passagem subterrnea de Karakoy, de uma ponta outra, sem respirar. Fui postar-me diante das janelas do seu apartamento em Nigantas e contei at nove mil sem me enganar.De entre os meus amigos, deixei de falar com aqueles que no sabiam que o seu nomesignificava ao mesmo tempo Deus, alma gmea, alma e bem-amada. Ao reparar que os nossosnomes rimavam - Janan, Osman -, compus uma pequena lengalenga melodiosa - do gnero dasque podem ler-se nos papelinhos que embrulham os caramelos Vida Nova - destinada aembelezar o nosso convite de casamento j impresso na minha imaginao; durante umasemana inteira consegui, todas as noites, acertar no nmero de janelas iluminadas que poderiaver da minha janela s trs horas da manh exatamente, sem nunca ter ultrapassado a margemde erro de cinco por cento. Declamei a trinta e nove pessoas o clebre verso de Fuzuli: Janan y okise jan gerekmez? {4}, invertendo a ordem das palavras. Telefonei para casa de Janan vinte eoito vezes, disfarando sempre a voz, adaptando-a a vinte e oito identidades diferentes, e nuncavoltava a casa sem ter invocado o seu nome trinta e nove vezes utilizando letras que ia buscar acartazes e a reclamos luminosos que se acendiam e apagavam nas montras das churrascarias oudas farmcias, ou nos guichs de bilhetes de lotaria. E, no entanto, Janan no voltou.Uma noite em que cheguei em casa muito tarde, depois de ter duplicado o nmero destes jogos,convencido de que, graas minha pacincia, tinha levado a melhor sobre os nmeros e o acaso,notei que as luzes estavam acesas no meu quarto. Talvez a minha me estivesse preocupada poreu ainda no ter regressado, ou ento procurava qualquer coisa no meu quarto, mas foi umaviso completamente outra que surgiu no meu esprito.Imaginei que eu prprio estava sentado minha secretria no quarto cuja janela iluminadaestava a ver. Imaginei esta cena com tanto desejo e tanta paixo que, por um breve instante, meconvenci mesmo de que estava a ver a minha cabea iluminada pela luz alaranjada do candeeirode mesa, diante do pedao de parede branco sujo que se vislumbrava por entre os cortinadosmeio corridos. No mesmo instante despertou em mim uma sensao de liberdade to violentacomo um choque eltrico que me paralisou. Era tudo to simples, pensei. O homem que estavano quarto, e que eu observava com o olhar de outro, devia necessariamente estar l. Quanto a

  • mim, deveria fugir desse quarto e dessa casa, fugir de tudo o que me rodeava, desde o perfumeda minha me at minha cama e ao meu passado de vinte e dois anos; a vida nova no poderiacomear sem que eu abandonasse o meu quarto, porque nunca poderia juntar-me a Janan nemdescobrir essas outras paragens se me limitasse a sair do quarto para l voltar todas as noites.Quando cheguei ao meu quarto examinei - como se pertencessem a outro - a cama, os livrosamontoados numa ponta da mesa, as revistas pornogrficas que eu j no utilizava para memasturbar desde que conhecia Janan, o pacote de maos de cigarros que pusera a secar em cimado aquecedor, os trocos num pires, o meu porta-chaves, o armrio cuja porta fechava mal, tudoo que me ligava ao meu antigo universo; compreendi que tinha de me ir embora, fugir.Mais tarde, quando j estava a ler o livro e a copi-lo, pressenti vagamente o sinal que me eraenviado pelo que lia e escrevia: eu no devia estar num qualquer stio determinado, mas em todaa parte ao mesmo tempo. O meu quarto era um stio determinado e no toda a parte . Porque haveria de ir Escola no dia seguinte de manh, pensei, se Janan no ia aparecer l? Haviaoutros lugares onde Janan no apareceria, onde eu tinha ido em vo, mas no voltaria l mais.Iria para onde me levasse o livro, para onde devia estar Janan e tambm a vida nova. Assim, aoescrever o que me contava o livro, tomei conscincia dos lugares para onde deveria dirigir-me esenti a felicidade de me ir tornando lentamente outro homem. Bastante tempo depois, quandofolheava as pginas que tinha preenchido, como um viajante satisfeito com o trajeto quepercorrera, pude ver claramente que homem era esse em que estava a tornar-me.O homem que transcrevia linha a linha o livro que estava a ler e que, medida que escrevia,descobria a pouco e pouco o caminho a seguir para alcanar a vida nova que procurava - essehomem era eu. O homem a quem a leitura de um livro mudara a vida toda, que se apaixonara,que descobrira que seguiria o rumo de uma vida nova - era eu. O homem cuja me, antes de seir deitar, batia discretamente porta do seu quarto para lhe dizer: Passas as noites a trabalhar,no fumes muito, ao menos - era eu. O homem que s se levantava da mesa de trabalho horaem que se calavam todos os barulhos da noite, em que, no bairro, j s se ouvia ao longe o ladrardas matilhas de ces; que examinava pela ltima vez o livro que andava a ler havia semanas e ocaderno preenchido sob a inspirao livro - era eu. O homem que pegava nas suas economiasguardadas no armrio dentro de uma meia, que saa do quarto sem apagar as luzes, que paravadiante da porta do quarto da me para escutar com amor o barulho da sua respirao - era eu.Era eu, meu Anjo, que me esgueirava da minha prpria casa, muito depois da meia-noite, com oar de um estranho que, receoso, fugisse de uma casa que no era a sua e se perdesse nas trevasda rua. O homem que, do passeio, lanava um ltimo olhar s janelas iluminadas do seu prprioquarto, com as lgrimas nos olhos, com a compaixo e o sentimento de solido que se temperante o espetculo de uma vida frgil e h muito acabada - era eu. Era eu quem corria comentusiasmo rumo a uma vida nova, de ouvido atento ao barulho dos meus passos resolutos.No bairro apenas era visvel ainda a claridade das luzes embaadas da casa do Tio Rifki, doscaminhos-de-ferro. Trepei para o muro do jardinzinho; pelas cortinas entreabertas pude ver a TiaRatibe, sua mulher, envolvida numa luz mortia, puxar o fumo do cigarro. Num dos livros paracrianas que o Tio Rifki escrevera, o jovem heri corajoso que se lana conquista do Eldoradocaminhava como eu, derramando lgrimas, pelas ruas tristes da sua infncia, de ouvido atento aoapelo das vielas escuras, ao rudo das paragens longnquas, ao ramalhar das rvores aindainvisveis. Com o sobretudo do meu pai, reformado dos caminhos-de-ferro sobre os ombros, com

  • as lgrimas nos olhos, eu embrenhava-me no corao da noite escura.A noite escondeu-me, a noite dissimulou-me, a noite indicou-me o caminho. Alcancei o ventreda cidade que vibrava pesadamente, as suas avenidas de beto petrificadas como paralticos, osseus bulevares de non que estremeciam a cada gemido dos camies carregados de carne, deleite, de conservas ou de bandidos. Rendi homenagem aos contentores que vomitavam o seu lixonos passeios molhados em que se refletiam os candeeiros; perguntei o meu caminho s rvoresinquietantes, incapazes de se manterem sossegadas; lancei um olhar cmplice aos bons cidadosainda mergulhados nas suas contas, atrs das caixas, em lojas mal iluminadas; evitei os polciasde planto em frente das esquadras; sorri com melancolia aos bbados, aos vagabundos, aosincrdulos, aos sem-abrigo que no faziam a mnima ideia da vida nova; troquei olhares sombrioscom os motoristas dos txis cingidos com as suas faixas enxadrezadas, que se aproximavamfurtivamente de mim, como pecadores insones{5}, no silncio do vermelho dos semforos; nome deixei seduzir pelas beldades aliciadoras que me sorriam dos cartazes de publicidade parasabonetes; tambm no me fiei nas imagens de rapazes elegantes que me sugeriam marcas decigarros, nem mesmo nas esttuas de Atatrk; tal como no me fiei nas primeiras edies dosjornais disputadas pelos bbados e pelos insones; nem no vendedor de cautelas de lotaria quebebia ch num caf aberto toda a noite, nem no seu amigo que me fez sinal com a mo e megritou: Anda sentar-te aqui, jovem! O fedor que se desprendia das entranhas da cidade emplena decomposio fez com que me desviasse para a estao rodoviria que cheirava a mar, acarne grelhada, a retrete e a gases dos escapes, a gasolina e a gordura.Para no me deixar intoxicar pelas letras multicores de plstico transparente que encimavam asagncias de viagens, propondo-me centenas de nomes de cidades ou de localidades eprometendo-me novos pases, novas vidas, novos coraes, entrei num pequeno restaurante.Sentei-me a uma mesa, de costas voltadas para as saladas, os leites-cremes, os bolos de smolaexpostos nas vitrinas de frigorficos enormes dispostos em filas sucessivas como as letras de nondas cidades ou das empresas de camionagem, perguntando a mim mesmo em que estmagos e aquantas centenas de quilmetros de distncia iriam ser digeridos. E acabei por esquecer aquilo deque estava espera. Estava talvez tua espera, Anjo, esperava que viesses tirar-me comgentileza dali, mostrar-me a direo certa, prevenir-me com ternura dos perigos. Mas no havianingum no restaurante alm de alguns passageiros que enfardavam comida e dormiam em p,e uma mulher com o beb ao colo. Quando procurava com os olhos quaisquer indcios quepudessem levar-me minha nova vida, um cartaz na parede ps-me de sobreaviso: Nobrinque com as luzes! E ainda outro: Os wc so pagos. O cliente no est autorizado atrazer bebidas alcolicas , rezava uma terceira, com letras mais severas e mais enrgicas.Julguei ver passar diante das janelas do meu esprito corvos negros batendo as asas, depois tive asensao de que este ponto de partida me levaria morte. Gostaria de poder descrever-te, Anjo,a tristeza deste restaurante que se fechava lentamente sobre si mesmo, mas era to terrvel omeu cansao que ouvia o gemido dos sculos, e o seu tumulto lembrava o das florestas que nuncaconhecem o sono. Gostava do esprito turbulento que rugia nos motores dos nibus de longo curso,cada um dos quais partia para uma terra diferente, sabia que Janan estava a chamar-me demuito longe, do limite onde ela procurava a entrada para um outro universo, mas era-meinaudvel a sua voz porque adormecera com a cabea em cima da mesa, como o espectador

  • dcil que se resigna a ver um filme sem som por razes de avaria tcnica.No sei quanto tempo dormi. Quando acordei continuava no mesmo restaurante, mas com outrosclientes, e senti que j poderia indicar ao Anjo o ponto de partida da longa viagem que deveriaconduzir-me a instantes irrepetveis. minha frente estavam trs rapazes que contavamruidosamente o dinheiro e calculavam o preo dos bilhetes. Um velho extremamente solitriotinha pousado o palet e o saco de plstico em cima da mesa, ao lado da tigela de sopa ondemergulhava a colher na esperana de ali encontrar o odor da sua triste vida, e um empregadobocejava lendo o jornal na penumbra onde se alinhavam as mesas vazias. Muito perto de mimestava uma vidraa embaciada que ia do cho sebento ao teto e, para l dela, havia uma dessasnoites em azul marinho e, na noite, os nibus com o roncar dos seus motores que me chamavapara a outra terra.A uma hora indeterminada, subi para um deles, ao acaso. Ainda no era manh, mas a pouco epouco, medida que avanvamos, rompeu a madrugada, nasceu o Sol, os meus olhosencheram-se de luz e sono.Depois tomei outros nibus, apeei-me deles, vagueei pelas estaes rodovirias, voltei a tomaroutros nibus, dormi no assento, as noites sucediam-se aos dias. Tomei ainda outros nibus, apeei-me deles em cidadezinhas; durante dias e dias viajei nas trevas e disse para mim mesmo que estejovem passageiro estava mesmo decidido a deixar-se levar pelas estradas que o levariam aolimiar desse outro universo.

  • Captulo 4 Por uma noite fria de Inverno, meu Anjo - havia j vrios dias que viajava -, estava eu dentro deum dos muitos nibus que tomava todos os dias, sem saber donde vinha, sem saber onde estava,sem saber para onde ia, sem mesmo reparar a que velocidade circulvamos. Estava sentadoalgures direita, na traseira do nibus barulhento e fatigado, com as luzes interiores havia muitoapagadas; hesitava entre dormir e acordar, estava mais perto do sonho do que do sono, e maisperto ainda dos fantasmas que giravam no exterior do que do sonho. Via por entre as plpebrassemicerradas uma rvore solitria e raqutica numa estepe interminvel, apenas iluminada pelosfaris do nosso carro, na iminncia de ficar zarolho, um rochedo onde tinham pintado umapublicidade a uma gua-de-colnia, os postes eltricos, as luzes ameaadoras dos raros camiescom que nos cruzvamos, e olhava ao mesmo tempo para o filme vdeo que passava na tela porcima do assento do condutor. De cada vez que a herona tomava a palavra, a tela tingia-se damesma cor violcea do casaco de Janan, mas quando o seu interlocutor, que falava com muitarapidez e muito mpeto, lhe dava a rplica, a tela coloria-se de um azul que talvez outrora metivesse impressionado. E assim que as coisas se passam sempre. Eu pensava em ti, lembrava-me de ti, quando o roxo e o azul se confundiam na tela. Mas no se beijaram, no N esse exato momento, havendo j trs semanas que eu viajava de nibus, fui acometido, empleno filme, por um sentimento fortssimo de insuficincia, de apreenso e de expectativa. Tinhaum cigarro na mo, sacudia nervosamente a cinza para o cinzeiro, a que fecharia a tampa uminstante depois batendo-lhe violentamente com a testa. A impacincia colrica que fervia dentrode mim vista da hesitao dos apaixonados que no havia meio de se beijarem transformou-senum mal-estar ainda mais ntido e mais profundo. Tive a sensao de que um acontecimentoautntico e grave se aproximava de mim, que estava prestes a surgir. Reinava o mesmo silnciomgico que se apodera de todos os espectadores - incluindo os das salas de cinema - no momentoque precede uma coroao nos filmes. No instante em que a coroa vai ser posta na cabea doprncipe, o silncio tal que se consegue ouvir o bater das asas de um casal de pombos queatravessa de um lado ao outro a praa real. Ouvi gemer o velho sentado a meu lado, virei-mepara ele. A sua cabea calva balanava pacificamente no vidro escuro da janela coberta de gelo,essa cabea cujos sofrimentos insuportveis o velho me tinha descrito cem quilmetros e duasaldeolas miserveis - invejosamente copiadas uma pela outra - atrs. Disse ento para mim que,no hospital da cidadezinha aonde deveramos chegar de manh, o mdico faria bem em lheaconselhar a apoiar assim a cabea contra os vidros frios para acalmar as dores do seu tumor, e,voltando os olhos para a estrada e