TESE DE DOUTORADO- BOLEADEIRAS
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
VIVIANE MARGARETH POUEY VIDAL
OS ARTEFATOS DE ARREMESSO DOS CAMPOS DA AMRICA MERIDIONAL:
UM ESTUDO DE CASO DAS BOLEADEIRAS
Porto Alegre
2009
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VIVIANE MARGARETH POUEY VIDAL
OS ARTEFATOS DE ARREMESSO DOS CAMPOS DA AMRICA MERIDIONAL:
UM ESTUDO DE CASO DAS BOLEADEIRAS
Dissertao apresentada como requisito para obteno do grau de Mestre em Histria na rea de concentrao em Arqueologia, Programa de Ps-Graduao em Histria Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Dr. Klaus Peter Hilbert
Porto Alegre
2009
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Bibliotecria Responsvel: Salete Maria Sartori, CRB 10/1363
V649a Vidal, Viviane Margareth Pouey Os Artefatos de arremesso dos campos da Amrica
Meridional : um estudo de caso das boleadeiras / Viviane Margareth Pouey Vidal. Porto Alegre, 2009.
151 f. Diss. (Mestrado em Histria rea de Concentrao:
Arqueologia) Fac. de Histria, PUCRS Orientador: Prof. Dr. Klaus Peter Hilbert
1. Boleadeira Histria. 2. Simbolismo. 3. Identidade
Cultural. 4. Patrimnio Cultural. 5. Etnoarqueologia. I. Hilbert, Klaus Peter. II. Ttulo.
CDD 980
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VIVIANE MARGARETH POUEY VIDAL
OS ARTEFATOS DE ARREMESSO DOS CAMPOS DA AMRICA MERIDIONAL:
UM ESTUDO DE CASO DAS BOLEADEIRAS
Dissertao apresentada como requisito para obteno do grau de Mestre em Histria na rea de concentrao em Arqueologia, Programa de Ps-Graduao em Histria Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.
Aprovada em _____ de _____________________ de _______.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Klaus Peter Hilbert (orientador) PPGH-PUCRS
_________________________________________
Prof. Dr. Arno Kern PPGH-PUCRS
_________________________________________
Profa. Dra. Gislene Monticelli ULBRA
_________________________________________
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A meu pai (in memorian), por me fazer acreditar que
os sonhos so possveis queles que persistem!
A minha me, pela vida, amor, educao,
incentivo e dedicao.
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[...] Pedras e tentos, trs estrelas, boleadeiras, Almas chibeiras contrabandeando aos apartes.
A sina das artes dos Charrua boleadores, Levando no tempo a fora-vida dos combates.
Traste campeiro de luz prpria, andarilha,
Que os potros xucros se entregaram manoteando. A desafiar os ventos nos seus rumos mais distantes,
A rosa estrelada cruzou no tempo cantando.
Estrelas cadentes reluzindo a luz dos campos, Saltam e se aninham junto s patas andadeiras, Da mo campeira que as forjou osso de tava,
Parando de golpe esta sina estradeira.
Adriano Medeiros
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Klaus Hilbert, orientador, pela amizade, dedicao e incentivo na
construo desta pesquisa. Ao Prof. Dr. Arno Kern, pelo apoio e oportunidade em assistir suas
aulas como ouvinte ao chegar a Porto Alegre. Ao amigo Doutorando Prof. Flamarion Gomes,
que me iniciou na arqueologia, pelo apoio e dedicao em me mostrar o caminho a seguir. A
Profa. Dra. Gislene Monticelli, pelo carinho, indicaes bibliogrficas e pela dedicao nas
revises feitas nesta pesquisa. Aos secretrios da ps-graduao (PUCRS) Davi e Carla, pela
competncia e amizade.
A CAPES, pela bolsa integral que possibilitou minha dedicao exclusiva ao
mestrado.
A Profa Dra. Adriana Dias, pela ateno, indicaes bibliogrficas e pela oportunidade
de participar de suas aulas na UFRGS. Ao Dr. Antroplogo Sergio Baptista, pela colaborao
com as indicaes bibliogrficas, por ter me apresentado aos ndios Charrua e pela
oportunidade de cursar seu seminrio (UFRGS), possibilitando uma maior aproximao entre
a arqueologia, a antropologia e a etnologia.
Ao Dr. Etnoarquelogo Gustavo Poltis (Universidade de La Plata), pelas dicas e
indicaes bibliogrficas. A Rodrigo Vechi, Doutorando da Universidade de La Plata, pelas
bibliografias fornecidas.
Aos amigos que contriburam para a realizao deste trabalho. No poderia esquecer
de agradecer aos arquelogos Marlon Borges, pelo incentivo e amizade; a Gustavo Wagner,
pela amizade, discusses, indicaes bibliogrficas e freqentes dicas. A Marclia Marques,
em especial, por estar ao meu lado sempre com uma palavra de apoio e incentivo, alm de me
auxiliar com indicaes bibliogrficas, discusses tericas e na estruturao dos captulos.
A amiga Mrcia Lara, que durante estes dois anos de laboratrio (CEPA) no mediu
esforos para me auxiliar nesta caminhada, agradeo por sua dedicada amizade, pelos
conselhos, pelo emprstimo dos livros, auxlio na traduo de ingls, revises dos trabalhos e,
no poderia esquecer, pelos diversos e saborosos churrascos do seu esposo Rubens que, de
certa forma, diminuam a saudade de casa.
Aos amigos do CEPA, meu segundo lar em Porto Alegre: a Lautaro Hilbert, pelo
carinho e desenhos das boleadeiras; a Daiane Brum, pelo carinho, apoio e pelos vrios
momentos de alegria que dividimos juntas. A Renata Rauber, pelo carinho e discusses; a
Lucas, pelos freqentes auxlios informticos; aos amigos Gabi, Eti, Deysi,
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Frizzo e ngela, pelas alegres conversas na hora do chimarro.
Aos amigos de Uruguaiana/RS, que me incentivaram e estiveram ao meu lado nesta
caminhada. Ao Prof. Ricardo Simas e sua esposa Rita Simas, pela amizade, apoio e carinho.
A historiadora Josiane Gomes, que incentivou este momento. A Raquel, pela amizade e
dedicao na correo e formatao desta dissertao. A mestranda Sabrina Steink, pelo
carinho e apoio nos diversos momentos do curso. A Cleres, Ranzan, Adriano, pelo carinho e
amizade. Agradeo, em especial, ao meu amigo historiador Antonio Gentil (in memorian),
pela amizade, incentivo e por no me deixar desistir da nossa utopia. Aos demais professores
da graduao na PUCRS/Uruguaiana, pela minha formao; em especial, aos Professores
Protsio Pletch, Edison Brito, Maria de Lourdes DAvila, e Ronaldo Colvero.
Aos amigos da farmcia que trabalhei em Porto Alegre, Z e Dbora, pelo carinho e
incentivo a continuar em busca do mestrado. Aos amigos da penso que morei em Porto
Alegre, Miguel e Mirian, pelo carinho e amizade.
Agradeo imensamente aos meus informantes da etnografia em Uruguaiana/RS, pela
colaborao e disponibilidade em me receberem em seus lares: Joo da Silva, Jos Adir
Pouey, Sirineu Scolars, Jos Silva, Jorge Bairros. Aos informantes Charrua, na figura da
Cacique Acuab, que possibilitou a realizao da pesquisa etnoarqueolgica com o seu povo.
Por fim, e de uma forma especial, quero agradecer a minha famlia: a minha me,
grande incentivadora desta conquista, pelo amor e a educao; ao meu pai (in memorian), pela
criao e pelo amor com suas filhas. Fabio, pelo carinho, dedicao e incentivo; a Juve, pela
amizade; a minha av, pelo amor; a Karina Pouey, pelo incentivo e amizade. As minhas irms
Cristiane, Daiane, Taciane, pelo amor e amizade e a maninha Juliele, por ser a estrela que
iluminou esta caminhada.
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RESUMO
OS ARTEFATOS DE ARREMESSO DOS CAMPOS DA AMRICA MERIDIONAL:
UM ESTUDO DE CASO DAS BOLEADEIRAS
O objetivo desta dissertao entender as boleadeiras num processo histrico
contnuo; porm, com diferentes significados. A abordagem utilizada analisa o uso das
boleadeiras pelas diferentes parcialidades indgenas do Sul Meridional, nas atividades da caa
e da guerra, comentando sua transculturao para o cotidiano do peo campeiro que as
utilizou no trabalho nas estncias de gado. Aps a domesticao dos animais, as boleadeiras
perdem sua funo tcnica, mas continuam presentes no contexto cultural do gacho como
um elemento simblico que representa e fortalece a sua identidade riograndense. Visando
compreender o simbolismo das boleadeiras nos diferentes perodos histricos, realizou-se uma
etnografia na cidade de Uruguaiana /RS, na qual se abordou a memria oral dos gachos que
tiveram a oportunidade de confeccionar e utilizar as suas boleadeiras no trabalho rural. A
nfase das entrevistas dedicada a conhecer e compreender os atuais significados simblicos
das boleadeiras no contexto cultural do gacho, assim como na indumentria, na dana, no
CTG, na poesia, nas lendas, na msica, no cinema, etc. Na aldeia Polidoro Povo Charrua,
em Porto Alegre, efetuou-se uma etnoarquelogia que destaca a maneira como os indgenas se
apropriam das bolas de boleadeiras na construo dos seus discursos tnicos como um
elemento simblico que afirma a existncia de seus ancestrais Charrua. Nesta pesquisa, as
boleadeiras foram pensadas como patrimnios simblicos que ultrapassam o tempo num
processo histrico ressignificativo. Procurou-se, desta forma, construir um trabalho
interdisciplinar, contemplando os significados das boleadeiras na memria oral de gachos e
indgenas com o simples objetivo de colaborar com as futuras pesquisas nesta temtica.
Palavras-chave: boleadeiras, simbolismo, identidade gacha, identidade Charrua, patrimnio
cultural, ressignificao.
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ABSTRACT
THE THROWING ARTEFACTS OF THE MERIDIONAL AMERICA FIELDS: A
BOLEADEIRAS STUDY CASE
The objective of this dissertation is understanding the boleadeiras in a continuous
historical process, although with different meanings. The approach used analyses the usage of
boleadeiras by different indigenous partialities of the Meridional South, in the activities of
war and hunting, commenting its transculturation to the day-by-day of farmer workers, who
used them in cattle farms. After domestication, the boleadeiras lose their technical function,
but keep present in the cultural context of the gaucho as a symbolic element which
represents and strengthens their identity in Rio Grande do Sul. Aiming the comprehension of
the symbolism to the boleadeiras in different historical periods, we realized ethnography in
the town of Uruguaiana, Rio Grande do Sul state, in which we approached the oral memory of
the gauchos that have made and used their boleadeiras in the rural labor. The focus on the
interviews is dedicated to know and understand the current symbolic meanings of the
boleadeiras in the cultural gaucho context, as well as in their dressing, dancing, poetry,
legends, music, cinema, etc. At the Polidoro Povo Charrua settlement, in Porto Alegre, we did
ethno archeology, that emphasizes the way indigenous people adopt the rock balls of the
boleadeiras to build their ethnic discourses, as a symbolic element which affirms the
existence of their Charrua ancestors. In this research, the boleadeiras were thought as
symbolic inheritance that overcomes time in a historical process which renews its meaning.
We tried, this way, to set an interdisciplinary project, overlooking the meanings of the
boleadeiras in the oral memory of gauchos and Indians, with the mere objective of
cooperating with future researches on this topic.
Key-words: boleadeiras, gaucha identity, Charrua identity, cultural inheritance, symbolism,
resignification.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Jorge no trabalho de campo ............................................................................. 29
Figura 2: Jorge utilizando as boleadeiras no Desfile Farroupilha ..................................... 29
Figura 3: Acuarela-Boleando Baguales............................................................................ 31
Figura 4: Boleadeiras do Sc. XIX .................................................................................. 35
Figura 5: Desfile Farroupilha, POA-RS, 2007.................................................................. 37
Figura 6: Fagner Campos danando com a boleadeira (Out./2007) .................................. 46
Figura 7: Chaveiro boleadeira.......................................................................................... 49
Figura 8: Boleadeiras com smbolo do internacional ....................................................... 50
Figura 9: Piquete Boleadeira de Prata no Parque da Harmonia 2008, em Porto Alegre..... 51
Figura 10: As boleadeiras arqueolgicas na Lareira da Estncia Itapitoca ...................... 54
Figura 11: Bolas de boleadeiras polidas (Coleo CEPA) ............................................... 57
Figura 12: Bola: Rompe-cabea. Pro Prata...................................................................... 58
Figura 13: Charruas civilizados (pees) .......................................................................... 66
Figura 14: Cacique Vaimaca Peru................................................................................... 76
Figura 15: ndios Charrua, levados a Paris ...................................................................... 79
Figura 16: Grupos de Charrua levado a Pars em 1833.................................................... 84
Figura 17: ndios Pampas ............................................................................................... 86
Figura 18: Querandis com a honda .............................................................................. 89
Figura 19: Uso da boleadeira como massa ...................................................................... 92
Figura 20: Discurso da Cacique ACUAB por ocasio do reconhecimento da etnia
Charrua.......................................................................................................... 101
Figura 21: Pictografias do Arroyo La Virgen .............................................................. 103
Figura 22: Palcio Piratini. (23/5/2007) .......................................................................... 105
Figura 23: Famlia Charrua com um amigo da comunidade (Ago./2008)......................... 106
Figura 24: Ritual de dana dos Charrua (Set/2008) ......................................................... 107
Figura 25: Apresentao do projeto da aldeia para a FUNAI........................................... 108
Figura 26: Exposio dos objetos Charrua para a FUNAI (Set/2008) .............................. 110
Figura 27: ndio Charrua ................................................................................................ 119
Figura 28: Pictografias: Arroio Del Chamanga - Augustin Larrauri (1905 ) .................... 119
Figura 29: Pictografias: Arroio Del Chamanga, Uruguai, Augustin Larrauri (1905) ........ 120
Figura 30: Painis: Adriana Xaplin - Aldeia Charrua (Jul./2008) .................................... 120
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Figura 31: Reconhecimento dos Charrua pela FUNAI (Nov. 2007)................................. 121
Figura 32: Imagem: Guyunusa e Tacuab vestindo o quillap - Paul Rivet Les Derniers
Charrua (1930) .............................................................................................. 121
Figura 33: Baralho Charrua, confeccionado por Tacuab - Paul Rivet (1930) ................. 122
Figura 34: Centro de Pesquisa de Arte Rupestre do Uruguai ........................................... 123
Figura 35: Artesanato: Arte Rupestre em garrafas no Uruguai ........................................ 123
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SUMRIO
1 INTRODUO .................................................................................................... 13
2 A BOLEADEIRA COMO SMBOLO DE IDENTIDADE ................................ 19
2.1 A INVENO DA TRADIO GACHA.......................................................... 19
2.2 AS BOLEADEIRAS COMO HERANA CULTURAL NA MEMRIA
GACHA .............................................................................................................. 26
2.3 AS BOLEADEIRAS E A CONSTRUO DO VESTURIO
TRADICIONALISTA............................................................................................ 38
2.4 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS E SUA HARMONIA COM O CORPO DO
GACHO ............................................................................................................. 42
2.5 AS BOLEADEIRAS E O FOLCLORE GACHO................................................. 45
2.6 A DIMENSO PESSOAL DAS BOLEADEIRAS................................................. 47
3 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS NAS FONTES ARQUEOLGICAS,
ETNOHISTRICAS E ETNOGRFICAS ........................................................ 55
3.1 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS NO OLHAR DOS ARQUELOGOS ............... 55
3.2 AS BOLEADEIRAS NAS FONTES HISTRICAS .............................................. 63
3.2.1 A guerra dos Charruas na Banda Oriental (Perodo Hispnico) ....................... 67
3.2.2 Os Charrua na Guerra Guarantica .................................................................... 71
3.2.3 Charrua e Minuano no avano Portugus de 1801 ............................................. 73
3.2.4 A guerra dos Charruas na Banda Oriental (Perodo Ptrio) ............................. 74
3.2.5 Campanha do General Fructuoso Rivera............................................................ 76
3.3 ETNOGRAFIAS DOS INDGENAS DA ANTIGA PROVNCIA DO URUGUAI
E ARGENTINA..................................................................................................... 80
3.3.1 Charrua ................................................................................................................ 81
3.3.2 Minuano................................................................................................................ 84
3.3.3 Gunaken.............................................................................................................. 84
3.3.4 Querandi............................................................................................................... 85
3.3.5 Pampas.................................................................................................................. 86
3.3.6 Patagones ou Chnecas ........................................................................................ 86
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3.4 AS BOLEADEIRAS DOS NDIOS PAMPEANOS NO OLHAR DOS
CRONISTAS ......................................................................................................... 87
3.4.1 A Utilizao da boleadeira como massa .............................................................. 91
3.4.2 As boleadeiras com duas e trs pedras ................................................................ 93
4 ETNOARQUEOLOGIA DOS CHARRUA DO PRESENTE: A BOLEADEIRA
COMO NDICE DA IDENTIDADE ................................................................... 97
4.1 A ETNOARQUEOLOGIA..................................................................................... 97
4.1.1 Para que serve a Etnoarqueologia? ..................................................................... 99
4.1.2 Como os Charrua se apresentam aos pesquisadores .......................................... 101
4.1.3 Como os Charrua se apresentam a FUNAI......................................................... 107
4.2 A BOLEADEIRA COMO NDICE DA IDENTIDADE CHARRUA..................... 109
4.3 MEMRIA E IDENTIDADE INDGENA ............................................................ 111
4.4 MEMRIA OU RECONSTRUO CHARRUA? ................................................ 114
5 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................... 125
REFERNCIAS ................................................................................................... 133
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1 INTRODUO
[...] El moderno historiador de la boleadora que, para documentarse, recurra a las fuentes literrias e iconogrficas, sufrir una primera decepcin. Respecto de las primeras decubrir, con asombro, que en un pais donde virtualmente la totalidad de la poblacin aborigen y criolla usaba este implemento para la caza y la pelea, casi no existen estudios promenorizados a su respecto. [...] Tampouco abundan publicaciones y estudios etnogrficos o folklricos que nos detallen su manejo y funciones, ni su importancia en la vida del ndio y del paisano (FERNANDEZ, 2001, p. 70).
Meu interesse pelo estudo das boleadeiras surgiu no incio do curso de Licenciatura
em Histria na PUCRS Uruguaiana, em maro de 2003, quando decidi conhecer o Ncleo de
Pesquisas Arqueolgicas (NUPA). Ao visualizar pela primeira vez os artefatos arqueolgicos,
fiquei supresa ao descobrir que a grande maioria destes foi encontrada na minha cidade natal
onde nunca havia escutado falar da ocupao indgena. Desse modo, decidi realizar um
estgio no laboratrio e conhecer um pouco mais sobre a origem dos objetos e sua relao
com as pessoas que os confeccionaram e os utilizaram. Durante a apresentao do laboratrio
arqueolgico, o coordenador procurou iniciar sua explicao a partir de um artefato que
estivesse diretamente relacionado minha realidade local, foi quando o professor segurou a
bola de boleadeira na mo e exclamou: Este artefato tu conheces! a boleadeira que o
gacho usa. Pois os ndios tambm a utilizavam, s que a boleadeira indgena era de pedra
(Flamarion Gomes, Comunicao pessoal, Maro de 2003).
Neste momento, percebi como a minha experincia pessoal poderia estar relacionada
arqueologia, pois sendo filha de alambrador e neta de capataz de estncia, conheci e
presenciei a vida no campo, o trabalho com o gado, a encilha do cavalo e o significado de
cada elemento da indumentria gacha. Ainda durante esta conversa no laboratrio, o
arquelogo me explicou o processo de continuidade das boleadeiras indgenas na cultura do
gacho, ressaltando que este instrumento passou por vrias transformaes morfolgicas, mas
que seu carter funcional poderia ser o mesmo nas atividades com o gado. Com base nas
minhas lembranas do cotidiano rural, afirmei ao professor que atualmente o gacho no
usava mais este instrumento com o gado domesticado por que poderia ferir o animal.
No entanto, lembrei que meu av e meus tios jamais iriam a uma festa campeira, ou ao
Desfile Farroupilha em comemorao ao vinte de setembro, sem uma boleadeira presa na
cintura. Assim, percebe-se que a boleadeira perdeu apenas sua funo tcnica com o gado,
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15
mas continua fazendo parte da vida do gacho como um smbolo que fala para eles, sobre
seus ancestrais, lembrando da sua cultura da vida no campo, das corridas de eguadas, das
atividades com gado bravo. Jos Hernandez (1879), em sua obra intitulada La Vuelta de
Martin Fierro, j ressaltava que: El gaucho, semisalvaje y seminmada! Seor antes y
dueo de llanura y de la inagotable riqueza de sus rebaos, desdeaba el trabajo manual,
como indigno de su hidalga estirpe. Sendo necessrio atrair o imigrante, que viu nos pampas
uma nova oportunidade de riqueza. Mais dcil e disciplinado, mais adaptvel, foi desalojando
o gacho dos trabalhos rurais. Assim, at o fim do Sc. XIX, formou-se uma nova civilizao.
Obscurecise su alma, al paso que iba trocando algunas de sus prendas tradicionales; bota de
potro por la alpargata, el chirip por la bombacha, las boleadoras por el arado
(HERNANDEZ, 1879, p. 18). O autor, nesta pequena estrofe, mostra as longas mudanas
histricas nas quais as boleadeiras esto inseridas, ou seja, a introduo de uma nova
indumentria domesticao do gado bovino e eqino para servir e alimentar o homem que
vai cuidar do cultivo da terra.
Ao longo do estgio no laboratrio, efetuei um levantamento bibliogrfico que me
proporcionou maior embasamento sobre a histria das boleadeiras nos diferentes contextos
sociais. Entre as obras encontradas, pode-se mencionar como a mais detalhada a monografia
do arquelogo argentino Alberto Rex Gonzlez (1953), intitulada La Boleadora. Sus reas de
dispersin y tipos. Esta pesquisa permitiu conhecer a classificao taxionmica das
boleadeiras e suas diferentes reas de disperso, contribuindo amplamente com as anlises
tecno-tipolgicas; no entanto, durante o desenvolvimento da monografia de concluso do
curso de histria, acabei deixando algumas lacunas. Ou seja, mesmo conhecendo o extenso
campo simblico das boleadeiras e sendo a idia inicial do projeto de pesquisa compreender
os significados da sua continuidade na vida do gacho, acabei seguindo a idia central de
Gonzlez (1953) de classific-las, conhecer sua funo no contexto indgena e sua rea de
disperso.
Posteriormente, na elaborao do projeto de mestrado, aps dialogar com o meu atual
orientador professor Klaus Hilbert, compreendemos que era necessrio mudar o enfoque que
abordei na monografia de concluso, pois havia dedicado grande parte da pesquisa s anlises
tecno-tipolgicas das boleadeiras e seus aspectos funcionais. Sendo vivel ressaltar que nesta
dissertao de mestrado no est se negando a importncia das anlises em laboratrio e, sim,
propondo um novo olhar interpretativo para o estudo das boleadeiras. Nesse sentido, procura-
se pensar outros aspectos essenciais para o entendimento dos artefatos, buscando conhecer e
interpretar os significados simblicos da continuidade deste elemento indgena na
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16
indumentria do gacho, j que a boleadeira perdeu sua funo tcnica no trabalho com o
gado. Dessa maneira, foi analisada uma rede de contextos onde as boleadeiras continuam
presentes, procurando identificar seus significados na indumentria, no arreio do cavalo, no
CTG, na poesia, nas lendas, nas musicas, na dana, no cinema, no artesanato, na
ornamentao das lareiras das estncias, etc.
Visando compreender os significados das boleadeiras e suas relaes com as pessoas,
foi necessrio conhecer alguns trabalhos que abordam o simbolismo dos objetos, assim
encontrou-se em Glassie (1999) a seguinte afirmao: Os artefatos lembram a tecnologia
atravs da qual a natureza foi transformada em cultura, e eles encarnam a mente do criador
(GLASSIE, 1999, p.42 apud JACQUES, 2007, p.1). Nesse caso, entende-se que a cultura
material repleta de significados que se relacionam diretamente com as pessoas. Como
afirmou Clarisse Jacques (2007), Por mais que o arquelogo busque aes humanas
passadas, uma vez que ele constri este passado no momento presente, a cultura material
segue relacionando-se com pessoas (JACQUES, 2007, p.2).
A hiptese central nesta dissertao de mestrado que as boleadeiras - artefatos de
origem indgena pr-colonial - ultrapassaram o tempo em um processo histrico contnuo sem
interrupo e permanecem no atual contexto do gacho. Compreende-se que, neste perodo de
longa durao, as boleadeiras so modificadas e aprimoradas, porm nunca descartadas. Se
por um lado, as boleadeiras perdem algumas de suas funes prticas como caar e lutar, por
outro, elas transformaram-se em um smbolo gacho que representa e compem a cultura
Riograndense. Para testar esta hiptese, alm de se consultar os relatos dos cronistas e
viajantes, as fontes literrias, histricas, arqueolgicas, antropolgicas, etnoarqueolgicas,
etnohistricas, etnogrficas patrimoniais, e semiticas, desenvolveu-se uma etnografia com os
gachos na cidade de Uruguaiana e uma etnoarqueologia na aldeia dos atuais Charrua de
Porto Alegre. A idia de entrevistar os gachos e indgenas surgiu devido necessidade de
conhecer a histria das boleadeiras e sua agncia simblica no cotidiano e na memria dos
homens dos pampas. A metodologia de entrevista oral atualmente tem sido muito utilizada
nos trabalhos arqueolgicos como um meio de conhecer os aspectos simblicos por detrs do
carter morfolgico e funcional dos objetos. Fabola Silva (2000, p.11) afirma que essa nova
forma de pensar o registro arqueolgico conhecida como Etnoarqueologia, pois seu sentido
mais amplo pode ser entendido como uma abordagem que visa proporcionar os meios para
que se possa interpretar o registro arqueolgico, tendo como referencial a dinmica do
contexto etnogrfico. Ou seja: [...] a partir do estudo de sociedades contemporneas,
-
17
proporciona os meios para formular e testar hipteses, modelos e teorizaes que possibilitam
responder questes de interesse arqueolgico (SILVA, 2000, p.30).
A autora comenta, ainda, que a utilizao de dados etnogrficos sempre foi uma
constante nas pesquisas arqueolgicas. No entanto, novos estudos tm influenciado os
arquelogos a repensar suas anlises tipolgicas e as classes de objetos na formulao de
novas interpretaes. Nesta perpectiva, procurou-se, atravs das fontes orais e bibliogrficas,
compreender os diferentes contextos arqueolgicos e histricos em que as boleadeiras
estiveram presentes, assim como proporcionar uma contribuio para os futuros trabalhos que
trataro desta temtica.
A dissertao foi estruturada fazendo aproximaes em trs captulos:
No captulo 1, procura-se compreender o papel simblico das boleadeiras na
construo da identidade do gacho do Rio Grande do Sul, da Argentina e do Uruguai.
Apresenta-se a etnografia realizada na cidade de Uruguaiana/RS, na qual aborda-se as
memrias dos gachos que tiveram a oportunidade de utilizar a boleadeira com o gado
selvagem, nas corridas de cavalos e que, atualmente, preservam este elemento na sua
indumentria. Observa-se a importncia das boleadeiras na construo do vesturio
tradicionalista, assim como sua harmonia com o contexto e o corpo do homem. Comenta-se a
expressiva representao da dana com as boleadeiras no folclore gacho, procurando
conhecer tambm a dimenso pessoal das boleadeiras no contexto Sul Meridional.
No capitulo 2, revisa-se as fontes arqueolgicas, etnohistricas e etnogrficas que
mencionam a histria das boleadeiras, organizando o captulo em diferentes momentos.
Inicialmente, consulta-se os trabalhos arqueolgicos, visando conhecer a maneira que os
pesquisadores discutem e explicam a presena das bolas de boleadeiras encontradas em suas
pesquisas. No segundo momento, analisam-se as fontes etnohistricas com o interesse de
encontrar outras referncias para se explicar as boleadeiras no contexto dos ndios pampeanos.
Utilizam-se como principais referncias os dois volumes da obra de Eduardo Acosta y Lara
com os ndios Charrua (1961 e 1969/70), nos quais o autor apresenta os relatrios dos
cronistas e viajantes dos diferentes perodos da conquista. A pesquisa de tala Becker (1982),
na qual a autora tratou da ocupao dos ndios Charrua e Minuano na Antiga Banda Oriental
do Uruguai, tambm contribuiu amplamente na construo deste captulo.
Sendo importante ressaltar que nesta reviso etnohistrica o objetivo compreender o
contexto em que viveram os Charrua que utilizaram as boleadeiras numa seqncia analtica e
cronolgica. No terceiro momento, procura-se conhecer as etnografias dos indgenas da
Antiga Provncia do Uruguai e Argentina, utilizando como referncias principais as obras de
-
18
Antonio Serrano. A primeira intitulada Etnografia de La Provncia del Uruguay (1936), na
qual o autor elaborou um quadro completo da etnologia e etnografia do pas. A segunda
denominada Aborigenes Argentinos. Sntesis Etnogrfica (1947), onde o autor estudou os
indgenas e, baseado nas fontes etnohistricas e etnogrficas, dedicou-se a pesquisar as
diferentes parcialidades tnicas e sua provvel forma de organizao no momento da
conquista espanhola.
No quarto momento, busca-se compreender o impacto que os cronistas sofreram ao
visualizar a temvel eficcia das boleadeiras nas mos indgenas. Abordam-se as diferenas
entre as respectivas armas de arremesso: boleadeiras, bola de funda (honda) e a bola perdida.
Desse modo, esclarecendo as diversas contradies dos viajantes e cronistas que, ao se
referirem as boleadeiras, denominavam-nas como bola de funda ou bola perdida. Descreve-se
o uso das boleadeiras indgenas como massa na caa e principalmente nas lutas corpo a corpo.
Apresentam-se as boleadeiras com duas e trs pedras, discutindo a hiptese do instrumento
com a terceira pedra ser uma criao do gacho.
No captulo 3, apresentam-se as bases conceituais da Etnoarqueologia, aplicando suas
metodologias na aldeia Polidoro Povo Charrua, em Porto Alegre. O objetivo foi conhecer a
narrativa simblica que os indgenas esto construindo atravs dos objetos arqueolgicos e
etnogrficos para afirmar a sua identidade tnica. Procura-se analisar a maneira como os
Charrua se apresentam aos pesquisadores e como eles transformam seus corpos e suas
narrativas para se apresentarem a Fundao Nacional do ndio (FUNAI). Atravs das
entrevistas orais, percebe-se as boleadeiras como ndices simblicos da identidade Charrua.
Aborda-se a construo da identidade indgena, mostrando como o grupo Charrua se apropria
de alguns elementos que consideram tpicos da cultura indgena para afirmarem sua memria
e identidade tnica. Eduardo Acosta y Lara (1969/70) afirmou que os Charrua sobreviventes
do massacre de Salsipuedes (1831) foram definitivamente eliminados no combate de
Mataojos (1832). Na continuidade de suas pesquisas, em 1981, o autor considera que a ltima
famlia Charrua descendente do cacique Polidoro Sep residia em Tacuaremb no Uruguai at
a dcada de 70. Nesta perspectiva, o interesse deste captulo conhecer e compreender como
as pessoas que se reconhecem como Charrua no Rio Grande do Sul esto reconstruindo esta
memria devido ao longo perodo de rompimento cultural entre eles e seus ancestrais.
Neste sentido, a presente dissertao trata-se de um novo olhar para as bolas de
boleadeiras, pois vai alm de seus aspectos funcionais e tipolgicos, buscando na memria
dos gachos e indgenas seus significados scio-simblicos. A partir do estudo das
boleadeiras nos diferentes contextos culturais, pretende-se analisar a presena destes artefatos
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em uma histria contnua; porm, com novos olhares e significados. Acredita-se que novas
abordagens para anlise dos objetos possam contribuir com as futuras pesquisas dedicadas
temtica, especificamente no que diz respeito ao simbolismo das boleadeiras nos encontros
tnicos gachos e indgenas.
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2 BOLEADEIRAS COMO SMBOLO DE IDENTIDADE
2.1 A INVENO DA TRADIO GACHA
A Revoluo Farroupilha evidenciada como referncia da memria do Rio Grande
do Sul, sendo anualmente comemorada no ms de setembro com festividades em todo o
Estado. Diversos autores como Sandra Pesavento (2005, p.54), Moacyr Flores (1985, p.177-
178) e Rubem Oliven (1991, p.43) descrevem a Revoluo Farroupilha como um episdio
constantemente abordado pela histria local e como um dos elementos responsveis pela
construo da identidade gacha. Estes historiadores compreendem a revoluo riograndense
inserida no contexto das revolues brasileiras que buscaram impor um iderio liberal,
diminuindo a autonomia do poder executivo e aumentando a abrangncia do poder legislativo.
Desse modo, eles buscam apresentar o papel que a Revoluo Farroupilha possui nas
representaes locais como referncia de prticas que so vitalizadas pela memria a partir do
iderio do gauchismo. Uma das manifestaes desta identidade gacha, ligada Revoluo
Farroupilha, apresenta-se no culto ao tradicionalismo. De acordo com Maciel (1994), a
primeira iniciativa em torno deste culto ao tradicionalismo deve-se aos gachos Paixo Crtes
e Barbosa Lessa, lderes do grupo de estudantes do Colgio Jlio de Castilhos, em Porto
Alegre, fundadores do Centro de Tradies Gachas (35 CTG), em Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, em 1948. Surpreendentemente, a maioria dos estudantes envolvida com este
movimento tradicionalista era descendente de pequenos proprietrios rurais da regio, onde
predominava o latifndio. Assim, "embora cultuassem valores ligados ao latifndio, no
pertenciam oligarquia rural", e nem eram moradores do campo, mas sim da cidade. Eram
jovens do interior em quem a cidade despertava "a vontade de buscar no campo e no passado
um refgio seguro e claro" (OLIVEN, 1991, p.43). Uma das primeiras atividades do grupo foi
receber as cinzas do heri farroupilha David Canabarro, trazidas para Porto Alegre pela Liga
da Defesa Nacional. Desse modo, a fundao do CTG tinha como objetivo resgatar hbitos e
costumes da regio da campanha e das estncias, que os fundadores do movimento julgavam
ser autnticas tradies gachas, procurando reviv-las. Deste modo, Paixo Corts e
Barbosa Lessa com seu grupo dedicaram-se s pesquisas sobre os costumes espalhados por
todas as regies sulistas para reviver e resgatar de forma autntica esta vida da campanha.
A estrutura interna do 35 CTG no utilizou a nomenclatura que normalmente existe
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em associaes e em clubes sociais, mas adotou os nomes usados na administrao de um
estabelecimento pastoril, j que os jovens visavam evocar o ambiente e a hierarquia de uma
estncia. No lugar de presidente, vice-presidente, secretrio, tesoureiro, diretor, etc.,
empregaram os ttulos de patro, capataz, sota-capataz, agregados e posteiros1. No lugar de
Conselhos Deliberativos ou Consultivos, criaram o Conselho de Vaqueanos e, em vez de
departamentos, foram criadas as invernadas. A organizao foi semelhante a todas as
atividades culturais, cvicas ou campeiras, receberam nomes que tivessem origem nos usos e
costumes das estncias gachas, tais como rondas, rodeios, tropeadas, etc. (OLIVEN, 1991,
p.15-16). Aps a criao do 35 CTG, em 1948, ocorreu uma proliferao de outros Centros de
Tradies Gachas por todo o Estado do Rio Grande do Sul, depois em outros estados e at
no exterior. So os gachos que criam estes centros nos locais de sua permanncia.
indispensvel evidenciar que a re-criao dessa tradio gacha no representou, em
si, uma anomalia ou excentricidade mpar na histria de vrias comunidades humanas. Para os
historiadores Hobsbawn e Ranger (1997, p.12), no h lugar nem tempo investigados pelos
historiadores onde no haja ocorrido a inveno de tradies. Nessa construo, a figura
mitolgica do gacho representada pelo homem livre, corajoso, invencvel, veloz cavaleiro,
morador da campanha, ou seja, essa idealizao do gacho deu-se aps a Revoluo
Farroupilha, como afirmam diversos historiadores, a qual serviu de cenrio para exibio das
suas faanhas e herosmo. Nessa perspectiva, a derrota na revoluo ganha novos significados
e serve de modelo para exaltao da imagem do gacho, possibilitando a identificao que
os mesmos possuem com seus heris farrapos, mesmo derrotados. Oliven, referindo-se
relao do gacho com os outros Estados brasileiros, destaca:
[...] em torno desse acontecimento histrico que se estabelece simbolicamente a relao do gacho com o restante do pas, seja para afirmar o seu carter autnomo, seja para evidenciar que o mesmo brasileiro por opo (OLIVEN, 2006, p.311).
A histria da revoluo farroupilha no pode ser vista como algo que apenas
aconteceu no passado, mas como uma histria sobre o passado do gacho herico. uma
histria til que serve para afirmar sua identidade e para superar as derrotas, as tragdias e
transform-las em conquista. importante considerar que toda a histria riograndense
contribui para esta mitificao do gacho, tanto a histria oficial, relatada pelos historiadores
e acadmicos, quanto a histria potica e literria contada nas rodas de chimarro, nos contos
e nos encontros dos contadores de causos. Em comparao com a histria oficial e acadmica,
1 Posteiro: o vigia do gado. No CTG, o responsvel pela organizao das pilchas.
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a histria literria muito mais rica, detalhada, em que se encontram os mais diversos
personagens que atuam dentro deste mundo cotidiano do campo. Esta literatura regionalista
comeou a desenvolver-se a partir da primeira metade do Sc. XIX e atribuiu a si todas as
caractersticas dos modelos vigentes. Nesse caso, destacando-se o modelo romntico de Jos
de Alencar, sendo o romantismo no Brasil a busca por fazer uma literatura nacional, com uma
temtica prpria do pas. O regionalismo veio ancorar essa busca das cores locais do pas.
No Rio Grande do Sul, essa cor local, at inicio do Sc. XX, era o pampa, o campo. E o
principal construtor desse cenrio era o gacho riograndense a ser difundido ao restante do
pas.
Mas, quem era este personagem? Era o gacho vaqueano ou estancieiro, que
marcado na literatura regionalista como sendo o heri, auto-suficiente, que defende seus
ideais, a sua bandeira, at a morte. o homem do campo que chegou a transformar-se em
mito devido influncia romntica na literatura. O discurso da figura mtica do gacho
narrado como uma promessa gloriosa, heri que atravessou altivamente guerras e
adversidades, tipo humano rude, que assim se constituiu somente por uma necessidade
imposta pelo meio:
Embora rude, o gacho era extremamente gentil para com as mulheres e destemido na defesa da honra dos indefesos. As constantes carneaes, o churrasco meio cru, sua familiarizao lida campeira constante, o contato com o sangue, tornava-o sempre preparado para a guerra. [...] Na descendncia telrica encontramos as razes para um ser to rude, forte e corajoso, ligado profundamente terra, que chamou, carinhosamente, de Torro (LAMBERTY, 2000, p.16).
Nessa citao, percebem-se algumas das caractersticas presentes no mito do
gacho: o tipo rude para o trabalho e na guerra, mas gentil com as mulheres, a coragem e a
bravura, a prontido para a peleia, o amor terra, ao pago, to presente hoje em dia no
discurso tradicionalista, sendo todas estas supostamente adquiridas pela influncia do meio e
transmitidas aos gachos de todas as pocas. Essas mesmas caractersticas presentes nos
discursos sobre os gachos encontram-se no gaucho argentino e uruguaio, tendo a figura do
gaucho como uma das mais ilustres personagens de obras literrias como as de Jos
Hernndez (1948), El Gaucho Martn Fierro apresentado da mesma maneira como heri:
[...] El gaucho se form en la planicie y bajo clima templado. Fue hijo dessa de la Pampa.
[...] era fuerte y hermoso, su estirpe guerrera, su alimentacin substanciosa, la fuerza e
destreza que necesitaba para explotar su ganadera. (HERNANDEZ, 1948, p.10-11). Para
Oliven (1993), existem diversos momentos nesse culto figura do gacho, e ele deve ser
entendido como fazendo parte de vrias condies histricas que tornaram possvel tanto esta
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construo imagtico-discursiva do gacho, quanto o seu aspecto encomistico (OLIVEN,
1993, p.25).
Diferentemente do gaucho argentino ou uruguaio, o gacho no representa uma
figura nacional, mas eminentemente regional. O gacho riograndense. Nesse sentido, Oliven
(2006, p.310) tambm se refere a Erico Verssimo (1969, p.3-4), que evoca elementos
recorrentes no discurso regional do Rio Grande do Sul. Entre esses elementos abordados, o
primeiro o carter de fronteira do Estado. O segundo a escolha feita pelo Estado do Rio
Grande do Sul em pertencer ao Brasil, quando podia ter optado por pertencer ao Imprio
Espanhol. Um terceiro o alto preo que foi pago por essa escolha, representado por guerras
envolvendo o Estado e o governo central, quando se percebia injustia e necessidade de
intervir na poltica nacional em momentos de crise. O quarto elemento a questo da
autenticidade dos costumes e do comportamento. O quinto e ltimo elemento, resultante
direto das suas escolhas, a necessidade de guardar as fronteiras que fazem parte de um clima
constante de oposio ao governo central.
Dessa maneira, Oliven (2006, p.310) compreende que a imagem evocada pelas
tradies do gacho tem sua raiz na regio denominada campanha. O gacho est localizado
no sudoeste do Rio Grande do Sul, fronteira com a provncia argentina e uruguaia. A regio
caracterizada pelas suas estncias2 ou fazendas, muitas vezes de grande amplitude. A figura
de culto ao gacho a de homem livre e aventureiro, um prncipe solitrio; enquanto estiver
na sela do seu cavalo, seu nico interlocutor a natureza, desdobrando-se sem limites em toda
a plancie.
A literatura romantizada estilizou o gacho como Monarca das Coxilhas, (PORTO
ALEGRE, 1987), pois o termo monarca significa cavalgar, ou seja, a figura do gacho est
relacionada ao sentido de liberdade, ou como "o centauro dos pampas" (BARROSO, 1939).
Nota-se a forte presena simblica do cavalo na vida do gacho, sendo ele seu companheiro;
em muitos casos, esse animal o fiel amigo do homem. As freqentes lutas pelo gado e pela
terra deram ao gacho uma identidade guerreira numa funo poltica: guardio do pampa.
Angelise Fagundes da Silva (2006, p.1) acredita que nesse processo de estilizao
mitolgica do gacho, alm do cavalo e do gado, diversos outros atributos foram incorporados
construo da sua identidade e esto relacionados histria indgena. Pois o gacho herdou
dos ndios no s a arte da montaria, mas tambm elementos como o chirip, a capa de couro,
as botas garro de potro, o chimarro e o churrasco, que incorporado ao cotidiano tornou-se
2 Estncia: grande extenso de terras com plantaes e criaes de animais.
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sua marca emblemtica de identificao. Alm destes elementos j citados, destacam-se as
bolas de boleadeiras, objeto em estudo na presente pesquisa, como um importante smbolo da
cultura gacha. Dayse Albeche (1996) diferencia duas figuras do gacho: o gacho literrio e
o real3 gacho histrico. Para Albeche, o gacho na literatura passou por diversas
ressignificaes, pois nem sempre foi reconhecido como heri riograndense. O real gacho
histrico foi marginalizado pela sociedade e esquecido pelos literatos por ser considerado
desordeiro, desregrado e pilhador. Quando mencionado na literatura, os enfoques no eram
centrados no gacho e, sim, nos aspectos geogrficos dos pampas, na relao com o cavalo,
na liberdade e nos costumes. Um exemplo o conto do Apolinrio Porto Alegre (1869), O
Monarca das Coxilhas, em que exaltada a figura do bom cavaleiro e a superioridade do
homem e da vida rural, que monta sem necessitar dos pelegos e bastos4: [...] os rio-
grandenses tem em nenhuma monta tronos e centro. Para eles uma boa equitao vale uma
monarquia [...] valentes campeiro. (PORTO ALEGRE, p.111). Nota-se que, em suas obras,
em nenhum momento h exaltao ao gacho como imagem da sociedade riograndense, e,
sim, figura do riograndense por sua natureza livre, nobreza de sentimentos, coragem e
bravura, valores esses associados ao processo do desenvolvimento da propaganda republicana
no Rio Grande do Sul (ALBECHE, 1996, p.20).
Os primeiros relatos do perfil social do gacho foram deixados pelos viajantes
estrangeiros; entre eles, destacam-se os relatos do naturalista francs Auguste de Saint-
Hilaire, na sua obra Viagem ao Rio Grande do Sul. O autor considera o habitante de
maneira geral muito hospitaleiro. No entanto, descreve o gacho como um homem que se
encontra margem da sociedade. Homens sem princpios, sem honra, de vida livre, que
vagam pelos campos da fronteira, aproveitando-se das desordens causadas pelas lutas entre
espanhis e portugueses para pilhar e roubar estncias (SAINT-HILAIRE, 1974, p.72).
Deyse Albeche (1996, p.34) destaca outra importante contribuio para se conhecer a
figura do real gacho histrico anterior Revoluo Farroupilha5, que foi o palco das
mudanas significativas do termo. A autora apresenta a obra de Nicolau Dreys (1839),
intitulada Notcia descritiva da Provncia do Rio Grande de S. Pedro do Sul. Dreys viveu no
Brasil no perodo de 1817 a 1843. Para ele, o homem em geral era hospitaleiro, generoso e
possuidor de uma vida regada pela abastana. O autor compreende o perfil social do gacho
3 A autora utiliza o termo real gacho para se referir ao gacho histrico. Acredita-se, entretanto, que ambos gachos so reais, o literrio e o histrico.
4 Bastos: sela de cavalo. 5 importante destacar que o gacho na Revoluo Farroupilha (1835 a 1845) carregava a faca e a boleadeira na cintura, alm do lao preso no arreio do cavalo.
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como o de homem nmade, que no possui residncia fixa, geralmente sendo encontrado nas
estncias ou charqueadas:
[...] os gachos, nmades, habituados nas margens do rio da Prata, principalmente das Campinas, ao Norte de Montevidu, estendem-se igualmente em todo territrio banhado pelo Paraguai, Paran e Uruguai, at o oceano, em todas as partes onde h estncias ou charqueadas em que servem de pees. (DREYS, 1980, p.22, apud ALBECHE, 1996, p.34).
Nota-se, no discurso de Saint-Hilaire (1974, p.62), que o autor no insere o gacho
como membro social e sim o apresenta como bandido e pilhador vivendo margem da
sociedade. Em contrapartida, possvel notar uma mudana na vida do gacho enfatizada por
Dreys (1980, p.22), ao destacar o mesmo como trabalhador de estncias ou de charqueadas,
mas no deixando de ser visto como marginal, devido a seus hbitos de gaudrio e a sua
origem mestia. Como enfatiza [...] sem ordem e sem destino, com o gosto to geral de uma
vida fcil e de perfeita liberdade. Sem chefes, sem leis e sem polcia, os gachos no tm
moral social, se no as idias vulgares. Desse modo, o gacho era percebido como elemento
de atraso na sociedade riograndense, denominado inicialmente como gaudrio, expresso
pejorativa dada aos aventureiros e desertores paulistas, que adotaram a vida de vagabundos e
pilhadores de gado. Como afirma Flores (1992, p.349), eles pertenciam a um grupo social
marginalizado pela sociedade, assim como o negro e o ndio, pois no possuam propriedade,
nem cidadania e o emprego dependia do perodo de maior atividade nas estncias.
Verli Silveira (2004) discorda da afirmao de diversos historiadores acima citados de que
a revoluo farroupilha foi decisiva na construo do mito fundador do heri gacho. Ela
argumenta que, tanto antes quanto depois da Revoluo Farroupilha, j havia um confronto
discursivo envolvendo a designao de gacho; afinal, no de uma hora para a outra que o
gacho bandido passa a gacho heri. Ela entende que esse fato se tornou possvel graas ao
fortalecimento mitolgico. O contexto revolucionrio, re-inventado constantemente pelo imaginrio social, contribui com o processo ressignificativo da denominao gacho, inserindo-
lhe novos significados, colaborando, assim, com a excluso de sentidos pejorativos atravs da
mudana dos discursos. A atual exaltao imagem do gacho heri compreendida nesse
trabalho como um processo mitolgico construdo ao longo das mudanas histricas.
Essa ressemantizao dos significados atribudos a um determinado grupo social no
ocorreu somente com os gachos. Klaus Hilbert (2001), em seu artigo intitulado Caadores
da regio do Prata, de vilo a heri, apresenta as mudanas dos significados atribudos aos
ndios Charrua ao longo da histria. Os mais antigos relatos escritos referentes aos indgenas
so a carta de Luiz Ramirez, de 1528, e o dirio de bordo de Pero Lopez de Souza, de 1530,
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que, no primeiro momento, mencionam um contato inter-tnico pacfico e apresentam os
Charrua como pescadores e caadores do litoral. Eles descreveram seus costumes, seus
objetos, suas armas como boleadeiras, arcos, flechas e lanas e seus agasalhos. Schmidel
(1536) destaca que a farinha de peixe e a carne so a base da sua alimentao. Algumas
transformaes na vida cultural indgena resultado da introduo do cavalo e,
posteriormente, do gado bovino na regio do Prata, ocorrendo, durante o Sc. XVII, visveis
mudanas na vida dos Charrua. Nos relatos dos cronistas do Sc. XVIII, os mesmos passam a
ser descritos montados a cavalos, atacando as fazendas, roubando os animais e vendendo a
carne e o couro.
Nessa direo, Hilbert (2001, p.113) denota que, no incio do Sc. XIX, os pampeanos
vo fazer parte das disputas de fixao de fronteiras. Os ndios Charrua e Minuano
participaram ativamente das disputas ao lado do general Jos Artigas. Aps os conflitos, os
Charrua so chamados de elementos selvagens e indomveis nos relatrios oficiais da poca,
que perturbam a paz e retardam o progresso do pas. Considerando os indgenas como
elementos de atraso, o general Rivera preparou a emboscada, em 1831, que executou a
maioria dos Charrua. Justificando sua ao da seguinte maneira:
El desefreno criminal de las hordas salvajes y degradadas, sus recientes y horribles crimenes, no haban dejado al Gobierno, mas alternativas que la de atacarlas y destruirlas (ACOSTA y LARA, 1961, p.3, apud HILBERT, 2001, p.113).
Esse acontecimento muda os significados dos indgenas na memria da populao
uruguaia, sendo considerados atualmente smbolo nacional, representando o esprito de luta, a
garra Charrua, como um dos elementos de sua identidade cultural. Hilbert (2001, p.113)
compreende que a imagem que existe hoje dos Charrua um produto da imaginao,
construdo a partir de raras fontes escritas e de inmeros fragmentos de objetos arqueolgicos,
coletados fora do contexto Charrua. Um dos aspectos que influenciaram essa construo
foram os trabalhos de alguns historiadores que se empenharam em transmitir a imagem de um
heri ancestral.
Atualmente, no Uruguai, existem monumentos em homenagem a essa figura Charrua
herica e guerreira, fortalecendo e afirmando a identidade do pas. Ou seja, o mesmo acontece
no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, com a figura do laador, smbolo regional da
identidade riograndense, representando o gacho livre, corajoso, heri, guerreiro, leal, justo,
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honesto6.
2.2 AS BOLEADEIRAS COMO HERANA CULTURAL NA MEMRIA GACHA
Na tentativa de conhecer o modo como os atuais gachos se percebem e de que
maneira eles atribuem valores a seus objetos, foram analisados, nessa pesquisa, os
significados simblicos das bolas de boleadeiras7, um dos vrios e importantes elementos que
contribuem para a construo e afirmao da sua cultura. Nesse sentido, realizou-se, na cidade
de Uruguaiana/RS, uma etnografia que viesse expor as diversas vozes que narram a
importncia dos artefatos de boleadeiras no contexto gacho num processo histrico contnuo
que ultrapassa geraes. Desse modo, necessrio destacar o artefato como um patrimnio
material que passado de pais para filhos. Referindo-se ao valor simblico do objeto antigo,
Baudrillard (1993, p.82) menciona que o objeto antigo puramente mitolgico na sua
referncia ao passado. Ou seja, no possui mais resultado prtico, acha-se presente
unicamente para significar, assim as boleadeiras contemporneas no devem ser consideradas
como totalmente afuncionais, nem simplesmente decorativas. A boleadeira tem uma funo
bem especfica na memria dos gachos. Ela significa a histria dos seus ancestrais hericos,
a tradio e, ao mesmo tempo, o presente da sua cultura que necessita ser conservado e
vivido.
Dessa maneira, a memria dos gachos sobre as boleadeiras proporciona importantes
informaes em relao ao uso e significados dos objetos. As entrevistas possibilitaram
conhecer diversas vises sobre os artefatos e seu meio cultural. Esse modelo de pesquisa
investigativa tambm foi desenvolvido por Eduardo Ges Neves (1998/2002), em outro
contexto histrico, na regio do alto Rio Negro (Amazonas). Nessa regio, o pesquisador se
utilizou da inter-relao entre a tradio oral e os dados histricos, lingsticos e
arqueolgicos para tentar compreender o processo histrico de ocupao daquela rea, pelos 6 Eleito smbolo da cidade de Porto Alegre, a escultura nasceu de uma mobilizao iniciada em 1954 por ocasio do IV Centenrio da Fundao de So Paulo: em concurso pblico promovido para eleger o projeto que melhor representasse o povo e as tradies gachas para uma exposio no Parque Ibirapuera, Caringi concorrendo com nomes como Vasco Prado e Fernando Corona - vence com a proposta da escultura de um boleador. Mais tarde, ela seria alterada por sugesto da comisso julgadora, que trocaria as boleadeiras por um lao. (GOMES, 2008).
7 Boleadeiras: armas utilizadas para caar e guerrear. O primeiro instrumento de boleadeira era composto de duas pedras esfricas com um sulco onde se amarrava o tento de couro para poder realizarem o arremesso. Com a colonizao, o artefato recebe do gacho a terceira pedra chamada manicl - pedra menor que proporciona o equilbrio a arma (LEGUIZAMN, 1919).
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ancestrais das populaes indgenas atuais [...]. (SILVA, 2002, p.185). Nessa perspectiva, a
presente etnografia procurou compreender e descrever os discursos do gacho morador do
campo e do gacho urbano, sendo uma maneira de conhecer no apenas uma noo geral das
boleadeiras, mas sim as diferentes percepes e atribuies de significados aos objetos.
Durante as entrevistas, evitou-se realizar muitas anotaes ou utilizar o gravador para
impedir a inibio e a ocultao da fala dos informantes; a narrativa foi construda com base
em um dilogo entre o informante e o pesquisador. Dessa maneira, a soluo foi transcrever
posteriormente os depoimentos.
Alguns dos entrevistados no somente utilizam e reconhecem as boleadeiras como
smbolos de identidade gacha, como tambm as confeccionam. O informante Jorge Bairros
(57 anos) h muitos anos exerceu o ofcio de domador de cavalos, atualmente trabalhador
rural e arteso, elaborando cordas para as correarias da cidade e tambm por encomenda aos
conhecidos8. Realiza um belo trabalho artesanal com as boleadeiras feitas em pedras, de tal
modo que foi difcil distingui-las das boleadeiras arqueolgicas, pois ficam idnticas aos
artefatos confeccionados pelos indgenas pr-coloniais. Ao ser questionado sobre o que o
levou a confeccionar esses objetos, destacou que o motivo deve-se ao trabalho na campanha,
onde por diversas vezes encontrou as bolas dos bugres9, resolvendo assim reproduzir estas
armas antigas. De acordo com o arteso, quanto mais antiga a boleadeira, mais demonstra a
tradio do homem da lida10 campeira. Mencionou que, tendo como modelo as bolas
encontradas nos campos, sempre procura nas margens dos arroios ou no rio Uruguai seixos
que proporcionem bons artefatos. Ao lev-los para casa, inicia o lento e delicado trabalho,
descrevendo que o primeiro passo lixar o seixo com a lima11, afunilando as pontas e dando-
lhe formato de limo. Quando a pedra, antes bruta e sem molde, ganha a forma de boleadeira,
com uma serrinha ele faz o sulco onde o couro amarrado. As boleadeiras em madeira e as
revestidas no couro so vendidas aos conhecidos ou comercializadas com as correarias, que
sempre o procuram por seus artigos. Os instrumentos elaborados com a pedra so
confeccionados para uso prprio ou para pessoas muito prximas. Essa uma maneira de
apresentar-se como diferente: Se eu vender todos tero as armas iguais as minhas, assim no
ter graa, denotando a importncia que atribui unicidade e integridade simblica do
artefato. Jorge Bairros se sente como nico guardio das tradies e das habilidades de
confeccionar bolas de boleadeiras. Nesse sentido, considera-se vivel ressaltar o trabalho de
8 Correaria: casa comercial de artigos gachos. 9 Bugre: modo como se refere aos indgenas. 10 Lida: trabalho. 11 Lima: espcie de lixa utilizada pelos arteses.
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Baudrillard (1993, p.101) referente ao valor simblico da unicidade dos objetos, utilizando
como exemplo a anedota narrada por Maurice Rheims:
Um biblifilo possuidor de exemplares nicos tem um dia conhecimento de que uma livraria ps venda em Nova York um exemplar idntico quele que possui. Corre e adquire o livro, convoca um porteiro para queimar, na sua presena, o segundo exemplar e fazer constar por escrito a destruio. Isso feito, insere o pronunciamento no volume tornado nico e adormece tranqilo.
O autor destaca que h, portanto, s aparentemente, a negao da srie, pois o
exemplar nico achava-se impregnado com o valor de todos os exemplares virtuais e o
biblifilo, ao destruir o outro, nada mais fez que restabelecer a integridade do smbolo
comprometido.
Desta maneira, o arteso revela a importncia em manter a unicidade das boleadeiras
elaboradas em pedra, enfatizando que suas boleadeiras so diferentes das comuns, pois
despertam a ateno de todos quando se pilcha12 para uma festa campeira ou no desfile
comemorativo Revoluo Farroupilha: Minhas boleadeiras so as peas que do mais
destaque a roupa, tambm coloco um par delas no arreio do meu cavalo, assim chamamos
ainda mais ateno do povo. Percebe-se, em seu discurso, que o arteso transforma essa arma
em um objeto personificado, ele nico; mesmo que um pequeno grupo os obtenha, no de
acesso a grande maioria. Dessa forma, o artefato, alm de ser um elemento fundamental na
construo do seu corpo, de sua identidade gacha e da dos seus amigos mais prximos,
tambm lhe confere prestgio na sociedade. Nesse caso, visvel a extenso do corpo do
homem, a partir da sua cultura material, pois mesmo no comercializando a rplica da
boleadeira ltica, o arteso negocia com pessoas prximas, criando assim um elo de confiana
entre membros de um mesmo grupo atravs do objeto.
O informante destaca as diferentes denominaes das boleadeiras na sociedade
gacha. Ao se referir s boleadeiras, em alguns momentos durante a entrevista, as chamava de
potreiras, bolas de bugre13, boleadeiras, avestruzeiras e trs marias. Ao ser questionado do
motivo para tantos nomes para um mesmo objeto, ele explicou que: as potreiras so bolas
pequenas para as corridas dos cavalos, evitando, assim, quebrar os animais, as dos bugres so
as mesmas avestruzeiras que eles utilizavam para caar. Mencionando que a maioria dos
gachos conhece os artefatos por boleadeiras ou trs marias devido relao com as trs
estrelas centrais na constelao do rion, pois so trs bolas, duas do mesmo tamanho e a
12 Pilcha: veste-se. 13 Bugre: modo como eram chamados os indgenas pampeanos.
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chica, pedra menor que o peo segura para girar as outras duas. 14 A comparao do artefato
com as estrelas evidencia o simbolismo atribudo ao objeto, sendo necessrio destacar a
possibilidade da existncia de significados religiosos ao chamarem as boleadeiras de Trs
Marias (Jorge Bairros, comunicao pessoal, janeiro de 2008).
importante ressaltar que o trabalho que o arteso realiza com as boleadeiras uma
espcie de arqueologia experimental, pois os objetos so verdadeiras rplicas dos artefatos
arqueolgicos. Essa manuteno do conhecimento das tcnicas culturais tambm ocorre em
contextos indgenas. o caso dos Asurini contemporneos que encontram as lminas de
machados deixadas pelos seus ancestrais e sabem exatamente como encab-las (SILVA, 2002,
p.181). Sendo indispensvel mencionar que enquanto os Asurini apenas interferem nos
artefatos, dando a eles um encabamento, o gacho confecciona o artefato por inteiro, tendo o
total domnio das tcnicas do artesanato na pedra.
Figura 1: Jorge no trabalho de campo Figura 2: Jorge utilizando a boleadeira no Desfile
Farroupilha
O informante Jos Adir Pouey (50 anos) capataz de uma estncia no interior da
cidade15. No incio do dilogo, mencionou que: As boleadeiras vieram dos ndios que viviam
nos campos abertos, pois no podiam utilizar as boleadeiras no mato, como arremessar o
instrumento sem prend-los nas rvores. importante enfatizar essa noo do informante em
relao ao ambiente propcio para a utilizao das boleadeiras, reforando sua relao com os 14 Chica: a bola chica outra forma de chamar a manicl, a bola menor. 15 Capataz: responsvel pela organizao da estncia e coordenao dos pees.
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campos abertos dos pampas e com o peo gacho. Ele entende que os indgenas utilizaram as
boleadeiras inicialmente para caar emas, depois gado e cavalos; dessa maneira, quebravam
as patas dos animais, pois o golpe da arma os atingia na corrida adquirindo assim maior fora.
Afirmando que, por esse motivo: atualmente, o gacho no usa mais a boleadeira na lida
com os animais, pois no existe a necessidade de machucar o gado; tambm tem o IBAMA16
que probe. A entrevista com este informante possibilitou perceber outro aspecto importante
que o nvel de conscincia dos trabalhadores rurais em relao s leis de proteo aos
animais. Estas probem o uso de uma arma terrvel como a boleadeira no trabalho com o gado
domesticado.
Jos Pouey considera a boleadeira como um patrimnio simblico do gacho, mas
compreende que o gacho no descendente do ndio. Eles mantiveram contato com os ndios
nos pampas, ocorrendo assim a troca dos conhecimentos17, como esclarece: o ndio passou a
boleadeira para o gacho, mas tambm aprendeu muito com ele nas estncias. O informante
fez questo de mencionar diversas vezes, durante a entrevista, que a boleadeira pertence a
prpria tradio gacha, descrevendo o processo de modificaes no cotidiano campeiro e
o aperfeioamento do artefato. Atravs das suas lembranas, comenta: Nos campos, ainda se
encontra bolas de pedra dos ndios, elas tm um sulco em volta, esse era para passar o couro,
nessa poca s caavam emas e avestruzes. Ele entende que a introduo do gado no Rio
Grande do Sul pelo homem branco facilitou a confeco das armas: foi bem mais fcil, eles
do um retovo18 para as pedras e no precisam mais fazer o sulco. Sendo solicitado a
descrever o significado das boleadeiras na sua vida, enfatiza: Para mim, a boleadeira um
smbolo da tradio gacha, algo do passado que devemos preservar como um tesouro
importante, que ficar para sempre como relquia.
No discurso do informante, nota-se que as boleadeiras remetem as pessoas s suas
memrias, possibilitando um elo entre o passado e o presente dos gachos atravs dos seus
significados. Como compreende Baudrillard (1993, p.83), o objeto antigo no aquele que
atualmente isto, e sim aquele que foi, ou seja, este objeto para mim o signo do presente
que mergulha no tempo. Na medida em que se integra no sistema cultural atual, o objeto
antigo vem do passado significar no presente dimenso vazia do tempo. Sobre a
temporalidade do instrumento na cultura gacha, o informante ressalta: mesmo a boleadeira
no sendo mais uma arma para o trabalho, no me desfao dela, pois a considero uma relquia
16 IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis. 17 Esse processo de transculturao abordado por Arno Kern (1991). O autor narra a contribuio indgena na formao do gacho, levando para as estncias o churrasco, o chimarro e as boleadeiras.
18 Retovo: forro em couro cru que a boleadeira recebe.
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de trs pedras trs marias como as estrelas. Atualmente, afirma que as boleadeiras usadas
no trabalho so feitas em madeira para evitar ferir os animais. Jos Pouey confecciona suas
boleadeiras da seguinte forma: coloco a madeira no torno at dar uma forma esfrica, depois
furo com a pua para passar o couro. O informante argumenta que as boleadeiras em madeira
por serem mais leves foram utilizadas para caar aves e tambm na corrida de cavalos,
evitando assim quebrar os ossos dos animais que so bem mais frgeis que o do gado (Jos
Pouey, comunicao pessoal, maio de 2008).
Figura 3: Acuarela-Boleando Baguales Obra de Florian Pauck 1719/1780. Madrid Museu da Amrica
Com relao a corrida de cavalos e com a necessidade de usar bolas menores, as trs
marias e a esttica dos artefatos, os relatos dos informantes coincidem com o conto Correr
Eguada, de Simes Lopes Neto, descrito por Moyss Velhinho (1957, p.52).
[..] Mas, como quera, era sempre um divertimento macanudo, uma volteada de
baguais! Ah! No h nada como tomar mate e correr eguada! [...] E a gauchada
quase toda em plo. Uns de bombacha, outros de chiripa; muitos sem chapu,
muitos de leno na cabea, tudo em mangas de camisa e faca atravessada. O mais
maula19 levava pelo menos dois pares de bolas, trs pares, isso era a rdo, e havia
torena que chegava a levar cinco: um na mo e outros na cintura. E tudo
boleadeiras mui bem feitas, de pedra pequena; porque Vanc sabe que o cavalar
tem o osso mais quebradio que a rs-e vai, se toma um bolao pesado, a no mais
19 Maula: covarde, frouxo.
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j temos um avariado. Pois as trs marias retovadas a preceito, e as sogas macias
para no cortar [..].[Grifo nosso].
Esse conto descreve a importncia simblica das boleadeiras no cotidiano dos
gachos. Nessa perspectiva, o informante Joo Rodrigues da Silva (80 anos), natural de So
Francisco de Assis/RS, residente em Uruguaiana h 40 anos, comenta que, em sua cidade
natal, morou na Estncia do Marafico. Lembra que, na estncia, todos os pees utilizavam a
boleadeira nas atividades com o gado e nas corridas de cavalos, sendo os prprios gachos
que confeccionavam suas armas. Ele descreve o modo como eram elaboradas as boleadeiras:
recolhamos seixos e os aperfeiovamos com a lima, at ficarem bem redondos, tambm
afunilvamos a ponta onde se prendia o couro, o retovo era feito com couro curtido, ou com o
escroto do touro que ressecava at fechar bem a boleadeira. Joo, devido a sua longa
experincia na vida campeira, forneceu diversas informaes sobre a boleadeira na cultura do
gacho, afirmando que quase sempre o instrumento era passado de pai para filho, ou dos avs
para os netos, como um patrimnio familiar. Desse modo, conta que a boleadeira que utilizou
por muito tempo no trabalho em So Francisco, herdou do seu av, enfatizando: Eram
boleadeiras que tinham uma longa histria, pois meu av j havia derrubado muita eguada
com elas.
Sua narrativa demonstra tambm que certos objetos possuem biografias que remetem a
lembranas de outros agentes num passado interiorizado. Objetos com biografias tm sido
abordados por diversos pesquisadores, entre eles Janet Hoskins (1998), antroploga vinculada
Universidade da Califrnia, que apresenta o lugar do objeto biogrfico enquanto expresso e
instrumento de memria em seu livro: Biographical objects: how things tell stories of people's
lives. Em especial, o captulo intitulado The betel bag: a sack for souls and stories, a autora
analisa o relacionamento de Maru Daku (homem do povoado de Kodi, localizado na costa
sudoeste da ilha de Sumba na Indonsia) com a sua inseparvel bolsa de betel, evidenciando
singularidades histricas que conectam presente e passado em um valioso processo de
identificao. A bolsa de betel, representada por Janet Hoskins como um saco para almas e
histrias, foi utilizada como suporte para incentivar a narrativa das experincias de vida do
senhor Maru Daku. Este objeto domstico uma pequena bolsa de tecido usualmente levada
no ombro, presente no cotidiano dos homens e mulheres da Vila do Kodi, que guarda um
contedo cuidadosamente preparado: o betel (uma pimenta cuja folha tem propriedades
adstringentes) envolvendo a noz de areca (semente da Areca Catechu, conhecida como
palmeira de betel) para formar uma pastilha elstica, uma goma estimulante que
mastigada e armazenada:
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[...] Maru Daku herdou do seu av as "sementes de sabedoria" que so produzidas por meio de uma mistura, feita na boca com saliva e embrulhadas com a unha do polegar para mascar. Ele juntou sementes e histrias em um pequeno saco de tecidos que ele levava ao longo de sua vida (HOSKINS, 1998, p.26).
Segundo Janet Hoskins (1998, p.26), Maru Daku usou a bolsa de betel como uma
metfora das suas experincias. Afinal, este objeto biogrfico incentivou suas recordaes
ancestrais mediando novas percepes. O significado dado por Maru Daku bolsa de betel
foi evidenciado por Hoskins em trs momentos da sua narrativa. Ele apontou a transmisso de
conhecimento por geraes: recordaes do seu av, do seu irmo e do seu filho favorito.
Ultrapassando geraes, o objeto biogrfico permite um elo com o passado. A bolsa de
betel para Maru Daku instrumento de registro dos momentos considerados significativos na
sua histria de vida.
Nesse sentido, percebe-se que a boleadeira, assim como a bolsa de betel descrita
pela autora, um objeto com biografia que permite um posicionamento reflexivo do
informante, facilitando a elaborao de narrativas por meio da atribuio de sentidos aos
vrios detalhes do objeto apresentado. Joo descreve as bolas de boleadeiras como um
patrimnio simblico da sua identidade gacha e afirma que elas esto na sua famlia h
geraes, antes foram do seu av, que o presenteou, mas seu pai tambm as usou no trabalho
com o gado. Esse objeto uma herana familiar, um smbolo afetivo e cultural de longa
durao, que reafirma sua identidade gacha, alm de faz-lo relembrar do passado, de sua
histria de vida e dos bons momentos com o pai e o av. Recorda tambm da convivncia
como os amigos no campo, do trabalho com o gado, das disputas que faziam com as
boleadeiras na corrida de cavalos. Mencionando que seu av o ensinou arremessar as armas,
quando era apenas um menino, pois precisava de um longo treinamento para tornar-se gil no
manejo das boleadeiras. Sendo os pais, ou avs, que preparavam seus filhos e netos para o
trabalho do campo. Joo conta ter visto na estncia onde trabalhou h quarenta anos os filhos
dos pees arremessarem boleadeiras que seus pais confeccionavam: eles brincavam no ptio
das casas na mesma fazenda, treinando em cavaletes e tambm nos cachorros20. Os homens
faziam as boleadeiras, amassando os papis da embalagem do cigarro Ascot. Esta caixa
tinha na frente a imagem de um homem em uma charrete com dois cavalos, ou seja, tudo
estava relacionado com o contexto pampeano. A bolinha de papel era revestida com sola, ou
couro curtido, deixando o instrumento leve, facilitando assim o arremesso das crianas.
Nesse caso, pode-se pensar num processo de iniciao, devido ao manejo com as armas exigir
20 Cavaletes: espcie de cabide reproduzido na madeira com quatro patas para dependurar os arreios.
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do gacho muita preparao e destreza. O entrevistado tambm afirma desconhecer o uso de
boleadeiras por meninas, como relata: Jamais as meninas brincaram com as armas dos
homens, elas aprendiam com as mes as tarefas da casa.
Nesse sentido, a entrevista com Joo possibilitou identificar, entre outros aspectos da
vida no campo, a questo do gnero inserido nas boleadeiras. Assim como o uso das armas
era feito somente pelos homens, o revestimento do objeto era feito com o escroto do touro, ou
seja, o objeto utilizado como um smbolo que comunica e afirma a fora e a masculinidade
do gacho (Joo Rodrigues da Silva, comunicao pessoal, maio de 2008).
Nessa perspectiva, as obras histricas e literrias que falam sobre as boleadeiras, tanto
na sociedade indgena como na colonial e contempornea, sempre as destacam como armas
utilizadas apenas pelo sexo masculino. Como exceo a essa regra, evidencia-se o exemplo da
minissrie A casa das sete mulheres, em que Anita Garibaldi, na Revoluo Farroupilha
(1835-1845), utilizava boleadeiras na cintura. No entanto, necessrio lembrar que, nesse
contexto, Anita assume o papel da fora masculina, transformando seu corpo com a
indumentria dos guerreiros farrapos, composta de botas, esporas, chirip, leno, chapu,
tirador e as boleadeiras presas na cintura e no arreio do cavalo, evitando assim a falta das
armas nas disputas.
Na continuidade do dilogo, procurou-se saber de Joo quais eram os significados das
boleadeiras na sua vida. Ele ressalta: tenho afeto pelas minhas boleadeiras, no doaria em
vida para ningum, pois o homem campeiro ao montar a cavalo sempre tem que ter as
boleadeiras na cintura ou nos arreios, o lao tambm no pode faltar. Lembra ainda que:
atualmente, no se usam mais as boleadeiras para o trabalho, mas elas continuam porque
um smbolo do gacho e as primeiras foram criadas pelos bugres. Afirma tambm que as
trs marias so criao prpria do gacho, pois as boleadeiras indgenas no possuam
couro nem a bola menor, a manicl, que d equilbrio ao arremesso. vivel comentar que os
informantes sempre enfatizam as inovaes e as diferenas das suas armas, desse modo
sustentando a autenticidade do artefato como um elemento prprio de identidade gacha. Em
contrapartida, nota-se que o arteso Jorge Bairros reconhece que as boleadeiras so criaes
suas, mas gosta de confeccion-las na pedra por considerar as mais antigas as mais belas e
mais desejadas entre os gachos que no dominam a tcnica indgena.
Joo, denotando as modificaes e o simbolismo dos artefatos, narrou a histria do
tradicionalista uruguaianense, Pedro Jos Coutinho, j falecido. Segundo o informante,
Coutinho fez sucesso, na cidade, na dcada de sessenta, pela sua rica indumentria: era um
tradicionalista que andava sempre a carter, bem pilchado, carregando as boleadeiras de
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prata e marfim na cintura, o que despertava a ateno de todos na cidade, sugerindo que as
mesmas deveriam estar no museu. Durante a visita ao museu, Dr. Pedro Marini verificou-se
que as mesmas se encontravam no espao do gacho e eram exatamente como o informante as
descreveu, em marfim e prata; realmente um admirvel instrumento que, infelizmente, a
responsvel pelo museu no permitiu que fosse fotografado.
Joo compreende que o gacho Coutinho se destacou na cidade de Uruguaiana,
afirmando sua autenticidade gacha atravs da indumentria tradicional. E um dos
importantes elementos que colaboraram com a construo do seu corpo e sua identidade
foram as boleadeiras, as quais expressavam a sua paixo pelo tradicionalismo, valorizao da
cultura gacha, alm de revelarem seu status na sociedade (Joo Rodrigues da Silva,
comunicao pessoal, maio de 2008). 21
Figura 4: Boleadeiras do Sc. XIX
(Similares as de Coutinho em prata e marfim)
Outras importantes informaes referentes comunicao do status social do gacho
atravs da sua indumentria e arreios encontram-se em Arsene Isabelle (1833-1834). Na sua
obra, intitulada Viagem ao Rio Grande do Sul, o viajante destaca em seu dirio que os
homens ostentam luxo: seus cavalos tm rabicho, sobre-chinchas e cabrestos, bem como
todo o resto dos arreios, cobertos de placas de prata, levam ainda na mo, como os
21 Em Uruguaiana/RS, foi fundado o CTG Pedro Coutinho em homenagem ao tradicionalista.
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argentinos, um pequeno rebenque, com um cabo muito curto de prata macia. O cabo e a
bainha de sua faca-punhal so tambm de prata. O viajante estabelece uma comparao
entre os homens do campo do Rio Grande do Sul e os Gauchos argentinos e orientais. Ele
enfatiza que ambos andam sempre armados e valorizam bastante suas montarias, sendo que os
brasileiros ostentam ainda mais luxo sobre seus cavalos do que os outros (ISABELLE, 1983,
p.65-66).
At o presente momento, buscou-se evidenciar as diferentes vises de gachos,
verdadeiros homens do campo, que ainda usaram e confeccionaram bolas de boleadeira. A
histria de Sirineu Scolars (53 anos) diferente. Sirineu um gacho da cidade. Ele participa
das festividades campeiras, preserva e respeita os costumes da tradio gacha, sem nunca ter
vivido no campo. A sua entrevista permitiu conhecer outras percepes sobre as boleadeiras,
percepes que relacionam o homem do campo com o homem urbano atravs do mesmo
objeto: a bola de boleadeira. Sirineu reproduz um discurso que repete as frmulas e narrativas
aprendidas com os homens do campo. As histrias que ele conta no foram vividas por ele,
mas ele se sente atingido e identificado como gacho. A sua vestimenta gacha, apesar de ser
roupa de trabalho rural, expressa um carter festivo e de identidade. Alm das boleadeiras,
outro artefato de uso campeiro importante que compe a roupa do gacho a faca22, que
usada tradicionalmente junto com a boleadeira, na cintura do gacho, at mesmo quando vai
ao centro da cidade. Evidentemente, sem a inteno de utiliz-la, mas sim porque faz parte do
costume de se pilchar usando todos os adornos tradicionalistas.
O informante entende que os pampas no passado: eram terras no demarcadas,
permitindo assim o contato dos gachos com os ndios. Tambm acredita que, antigamente,
as boleadeiras eram usadas para capturar o gado selvagem, pois o golpe quebrava o animal.
Admitindo no ser tarefa fcil manej-las, adverte: preciso muita preparao, ou a prpria
pessoa pode se ferir. Na continuidade do seu discurso, deteve-se na importncia da
ornamentao corporal, que possibilita a identificao das boleadeiras na cultura gacha como
um forte elemento de expresso cultural e esttica, que compe e transforma o corpo do
homem.
Esta relao de expresso cultural e esttica do gacho pode ser perfeitamente
observada no desfile da Semana Farroupilha que acontece todos os anos no ms de setembro.
22 Cezimbra Jacques (1883) destaca que a faca e a boleadeira so, muitas vezes, as nicas armas que os gachos tm e nunca o gacho visto sem elas: O gacho exmio em manej-las; com elas, assenhoreia-se do jaguar, da ona, do boi, do cavalo, da avestruz e vimos, no Camaqu, um rapaz matar com as bolas um abutre voando.
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No desfile, eu acho bonito andar de lao e boleadeira que no para laar, mas para
representar a tradio. O uso nos dias comuns acho feio, pois vejo que fazem isso s para
chamarem a ateno, mostrarem-se mais gachos, auto-afirmarem-se. Ele ainda critica que
muitos utilizam a bola de boleadeira na cintura sem nunca ter testado o arremesso, pois essa
arma foi utilizada somente no tempo dos meus pais e dos avs.
Figura 5: Desfile Farroupilha - POA-RS (2007) Foto: Viviane Pouey
Por ser um gacho urbano, Sirineu nunca utilizou suas boleadeiras nas atividades com
o gado, mas sempre como adorno e como smbolo de identidade na cintura, durante o desfile
na Semana Farroupilha. Jamais emprestaria ou doaria suas boleadeiras para outra pessoa
desfilar. Nos anos em que no desfilou na Semana Farroupilha, por motivos de trabalho,
chegou a emprestar seus arreios aos conhecidos mas ningum usa minhas boleadeiras para se
mostrar na avenida, em 20 de setembro. Denotando assim seus sentimentos de afeto e de
posse pelos artefatos, alm de seu orgulho de possuir este smbolo e mostr-lo ao pblico. O
informante compreende que as boleadeiras so smbolos gachos, uma herana cultural e
reconhece que a arma precisa ficar exposta no CTG, junto chama crioula, expressando a
garra gacha, ou seja, ele percebe a fora simblica destes dois elementos gachos: a chama
e a boleadeira (Sirineu Scolars, comunicao pessoal, maio de 2008).
Nessa etnografia, consideram-se os relatos dos informantes como forma de
representao da realidade social do gacho rural e do gacho urbano, mantendo suas
especificidades, o que leva a pensar nas narrativas discursivas e imaginrias de cada
entrevistado que refora sua posio para falar sobre o gacho. Percebe-se tambm que os
mesmos identificam-se com o gacho mitolgico, ou seja, o heri, bravo guerreiro, corajoso,
veloz. Entende-se que a histria no deve ser desvencilhada do imaginrio e do simblico que
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constituram e constituem a sociedade dita gacha, num constante processo de reinveno
(SILVEIRA, 2004, p.186). Mas o importante que todos esses relatos e diferentes
personagens contribuiram para a compreenso dos significados simblicos das boleadeiras na
cultura gacha. Discutir-se-, a seguir, o simbolismo das boleadeiras na indumentria sul-
riograndense e sua relao com o corpo e com o contexto em que vive o gacho.
2.3 AS BOLAS DE BOLEADEIRAS NA CONSTRUO DO VESTURIO
TRADICIONALISTA
No processo de construo de identidades sociais, alguns elementos culturais so
escolhidos pelas pessoas para representar o grupo, ou seja, aqueles elementos que so
considerados os mais representativos. Em geral, esses elementos so buscados no passado do
grupo, como um resgate da sua ancestralidade, mantendo assim aquilo que conhecido
geralmente por tradio construda (MACIEL, 2005, p.6). necessrio destacar que um dos
elementos escolhidos pelos gachos na construo e afirmao da sua identidade foram as
bolas de boleadeiras indgenas. Essas so consideradas objetos simblicos e representam um
elo entre o passado e o presente do gacho. Assim, preciso ressaltar que a presente pesquisa
no possui interesse de elaborar apenas um inventrio das vestimentas tradicionalistas.
Procurou-se conhecer sua origem e demonstrar sua relao harmnica com o corpo e com o
ambiente natural do gacho. Ele , antes de tudo, um trabalhador rural. Como af