Fernando Yonezawa Tese Doutorado

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O Bailarino dos Afetos: corporeidade dionisíaca e ética trágica em Deleuze e na companhia de Nietzsche Fernando H. Yonezawa Tese apresentada à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências da obtenção do título de doutor em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Furlan Ribeirão Preto-SP 2013

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O bailarino dos afetos: corporeidade dionisíaca e ética trágica em Deleuze e na companhia de Nietzsche

Transcript of Fernando Yonezawa Tese Doutorado

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA CINCIAS E LETRAS DE RIBEIRO PRETO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA

    O Bailarino dos Afetos:

    corporeidade dionisaca e tica trgica em Deleuze e na

    companhia de Nietzsche

    Fernando H. Yonezawa

    Tese apresentada Faculdade de Filosofia

    Cincias e Letras de Ribeiro Preto da USP, como

    parte das exigncias da obteno do ttulo de

    doutor em Psicologia.

    Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Furlan

    Ribeiro Preto-SP

    2013

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    minha Angie-Amor

    Pela fora dionsaca

    Pelo rigor belicoso

    Pela alegria no combate e na dana

    Pelo nobre amor que nunca deixou de ser

    companhia e amizade

    Pela eternidade que nos transborda

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    Caros amigos de caminhada na ps-graduao:

    Csar Savazzoni

    Marcelo Vieira

    Muito obrigado!

    Pela companhia em tantas tardes

    Compartilhando e tagarelando

    Cafs e vitaminas de morango

    Queijos e elixires dionisacos (e demais aportes medicinais artaudianos)

    Pelo cantinho acolhedor em suas casas

    E pelo arsenal cinematogrfico e musical que montamos

    pirateando-nos, trocando e emprestando-nos.

    Agradeo ainda ao Prof. Dr. Reinaldo Furlan, pela acolhida neste programa de

    ps-graduao e pela orientao minha tese.

  • 4

    Sumrio

    Apresentao - Nosso caminho e nossa insistente pergunta Nossa trajetria .........................................................................................................................6

    Nosso problema ........................................................................................................................6

    Nossa proposta .........................................................................................................................9

    Introduo Para comeo de conversa... Em que consiste o corpo? Endemonizar o corpo ..............................................................................................................12

    Corpo forte e a vida ................................................................................................................17

    tica: sempre ticas ................................................................................................................23

    Trgico e dionisaco: alegria de destruir, alegria de criar ......................................................31

    O trgico: luta afirmativa .......................................................................................................32

    O dionisaco: alegria da dana ................................................................................................40

    tica trgica e corporeidade dionisaca ..................................................................................49

    Parte1 - Corpo Insuspeito e tica da Alegria

    1.1) Corpo e potncia .............................................................................................................51 a) Afeco e afeto ........................................................................................................52 b) A potencia e a potencia de ser afetado: a latitude ....................................................59 c) Os modos e os corpos: a longitude ..........................................................................67 d) Passar a existir .........................................................................................................74 e) Dramatizao ontolgica .........................................................................................78

    1.2) tica e conhecimento ......................................................................................................88 a) Encontro: conhecer pela potncia ............................................................................88 b) O amor pela Natureza: conhecimento tico ...........................................................101 c) Um paralelismo: encontro da igualdade na diferena ............................................108 d) Mais um paralelismo: plissagem pela diferena desencontrada ............................112

    1.3) tica materialista: a alegria como trampolim ..............................................................114

    Parte 2 Corpo Vontade e tica da Afirmao 2.1) A distino das foras no corpo ....................................................................................134

    a) As duas foras ...........................................................................................................134

    b) O problema da avaliao ..........................................................................................144

    c) O que pode a nobreza e seu corpo ............................................................................150

    2.2) A corrupo do corpo ....................................................................................................161

    a) Engolfamento da vida ...............................................................................................161

    b) A dor: forquilha entre o niilismo e a nobreza ...........................................................188

    2.3) O corpo primeiro: amor fati como cura dionisaca .......................................................203

    Parte 3 Corpo Experimental e tica da Crueldade 3.1) As duas faces do CsO ....................................................................................................223

    a) Desejo como maquinao da vontade de potncia ...................................................223

    b) Corpo e CsO: oposio e/ou composio .................................................................227

    c) CsO como poltica de experimentao .....................................................................232

    3.2) Sada radical de uma corporeidade individual ..............................................................252

    a) Tornar-se molecular ..................................................................................................252

    b) Agenciamento ...........................................................................................................260

    c) Territrio e expresso ...............................................................................................265

    d) Material nmade .......................................................................................................271

    Concluso .................................................................................................................................279

    Referncias Bibliogrficas ......................................................................................................283

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    Apresentao

    Nosso caminho e nossa insistente pergunta

  • 6

    Nossa Trajetria Acadmica

    Desde nossa graduao em Psicologia, quando fazamos parte de um grupo de

    pesquisas1 sobre o pensamento de Gilles Deleuze e Flix Guattari, coordenado pelo

    Prof. Dr. Hlio Rebello Cardoso Jr., nos interessava o tema do corpo dentro da obra

    destes autores.

    Inicialmente, exploramos, em uma pesquisa de iniciao cientfica2, o conceito de

    Corpo-sem-rgos presente principalmente dentro do plat nmero 6 de Mil Plats.

    Buscvamos traar uma noo de corpo que pudesse ser aliada ao trabalho em

    Psicologia Clnica e que fornecesse sadas diferentes das interpretaes psicossomticas

    clssicas, presentes de maneira muito enraizada dentro da atuao teraputica do

    psiclogo. Numa segunda pesquisa de I.C.3, exploramos o conceito de corpo no

    pensamento de Michel Foucault, fazendo uma incurso sobre a medicalizao da vida e

    do corpo. J durante a pesquisa de mestrado4, nos debruamos sobre a temtica do

    corpo, porm, desta vez dentro do campo da Educao. Trabalhamos em cima da

    crnica problemtica do adoecimento constante de professoras da rede municipal de

    ensino da cidade de Porto Alegre. Trabalhamos durante um ano com trs grupos de

    professoras de uma escola municipal, problematizando e cuidando de suas vivncias do

    trabalho cotidiano de sala de aula.

    Nosso problema

    Como parece ficar claro, nossa trajetria a de, uma procura por encontrar um

    arsenal conceitual que permita elogiar o corpo, afirm-lo em sua potncia.

    Neste caminho, nos deparamos com algumas questes, crticas e conceituaes

    importantes. Foucault, por exemplo, faz uma crtica ideia de que as sociedades

    ocidentais, cartesianas, burguesas, se esqueceram do corpo. Procura desconstruir este

    discurso, que costuma ser repetido quase maneira de um lugar-comum, mostrando

    como tudo o que as sociedades ocidentais fizeram foi retomar o corpo, colocando-o no

    1Grupo de pesquisa chamado Deleuze, Guattari e Foucault Elos e Ressonncias, cadastrado no CNPq.

    2 Pesquisa realizada com bolsa FAPESP, cujo processo foi n03/04665-5 e o ttulo: Estudo do Conceito de

    Inconsciente no Pensamento de Gilles Deleuze e Flix Guattari: uma conexo entre o conceito de CsO e a noo

    esquizoanaltica de sintoma, a partir de alguns casos clnicos de Guattari. 3 Pesquisa tambm realizada com bolsa FAPESP, de mesmo nmero de processo, com ttulo: Corporeidade Biopoder

    e Biopotncia: estudo, em Foucault, do conceito de corpo como lugar de investimento do saber-poder mdico e

    conexo com o conceito de resistncia como prtica de si. 4 Mestrado em Educao realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a dissertao

    intitulada Corporeizar: acompanhar o problema do adoecimento dos professores a partir de uma interveno tico-

    afectiva em grupos, a qual foi indicada para publicao integral na forma de livro pela banca examinadora.

  • 7

    centro dos investimentos de poder, justamente para conhec-lo, esquadrinh-lo e, enfim,

    dociliz-lo (cf. FOUCAULT, 1979, p.148).

    Deparamo-nos, pois, com dois problemas, dois pontos de captura dos quais

    devemos nos desviar e nos diferenciar, para esclarecer as sutilezas de nossa proposta.

    Em primeiro lugar, cabe falarmos de uma crtica com a qual estamos completamente de

    acordo. a ideia de que, nunca antes vivemos uma valorizao e um investimento to

    denso sobre o corpo. Um poder super-investido sobre o corpo, a hiper-estimulao do

    corpo, a partir de um poder que, cada vez mais, faz viver, faz mover, faz excitar, faz

    produzir. Esta a grandssima nova forma de controle sobre a vida. (cf. FOUCAULT,

    1985, p.118 e cf. SANTANNA, 2002, p.98; 2000, p.51).

    Apesar disso tudo, tal como diz Hlia Borges5, compreendemos que o corpo que

    superinvestido pelo poder , ainda, to somente o corpo orgnico, o corpo das formas,

    ou melhor, o corpo das frmas, em muito constitudo e mediatizado pela medicina. Este

    corpo emprico, investido pelo poder, no isso ainda o corpo. Mesmo estimulando

    uma liberao do corpo, inclusive das represses morais e religiosas, este poder no

    capaz de investi-lo sem coloc-lo sob novas transcendncias. Ora, o nico corpo passivo

    de ser capturado e esquadrinhado por um saber-poder o corpo orgnico. Mesmo em se

    tratando de liberao sexual, liberao do desejo, ainda se est falando de uma liberao

    para um tipo de desejo j pr-suposto, um desejo burgus, que no deixa de ter a marca

    da maneira familiar e edipiana de desejar, ou seja, a marca da falta, do ressentimento e

    da m-conscincia. O fato que ainda no se liberou o desejo, porque, justamente, para

    este desejo despudorado da atual era, o prazer que indica ainda a sua suposta

    liberao. O desejo ainda vontade de ser feliz, niilismo que se denuncia num

    hedonismo medroso.

    O que sentimos, afinal, que as crticas precisas colocadas por Foucault e demais

    autores neles inspirados no nos satisfazem, ainda que sejam factveis, pertinentes e

    condizentes com o modo de vida contemporneo, ou que tenham contribudo

    enormemente para que ns mesmos nos deparssemos com estes pontos de captura em

    nosso pensar e fazer Psicologia. No nos satisfazem, acima de tudo, porque se nos

    centramos nestas crticas acabamos caindo num tipo sutil de novo niilismo, que diz,

    5 Hlia Borges, na palestra Corpo e intensidade: a sade como capacidade de experimentar a vida em sua

    constante mutabilidade e desvio oferecida ao programa Caf Filosfico dentro do CPFL Cultura. www.cpflcultura.com.br/site/2010/07/21/corpo-e-intensidade-a-saude-como-capacidade-de-experimentar-

    a-vida-em-sua-constante-mutabilidade-e-desvio-helia-borges-com-a-presenca-do-curador-andre-martins-

    2/

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    no tem como escapar do poder... no vale a pena, o corpo ser sempre objeto do

    poder, no adianta encontr-lo, experiment-lo, est tudo capturado. Ora, diante disso

    dizemos apenas que ainda no pudemos, ns mesmos, afirmar o corpo tal como o fez

    Nietzsche, ainda no pudemos lutar para que estejamos a tal ponto derrotados.

    que, por um lado, no acreditamos na salvao atravs de uma cultura da

    reflexo e, por outro lado, tampouco somos levados a nos contentar com uma fcil

    poltica de des-represso, liberao da insanidade do desejo, desarme das couraas

    musculares, hedonismo hippie. Ainda no afirmamos o corpo tal como fazem os

    bailarinos, os performers, os msicos... ou seja, de um modo rigoroso, mas capaz de

    liberar devires. tambm Deleuze quem destaca o impasse levantado por Foucault: o de

    nos vermos sempre incapazes de ultrapassar o poder, mas num contexto em que as

    resistncias vitais parecem deter um primado diante do poder. (cf. DELEUZE, 2005,

    p.101) Diz Tucherman (cf. 1999, p.26), que a ideia de corpo algo muito peculiar de

    nossa cultura ocidental, nossa diferena, e marca a nossa entrada na herana grega, a

    nossa chegada ao mundo ocidental, j que demarcamos a experincia do pensamento

    como sendo diversa da vivncia material. Por isso mesmo, entendemos que talvez seja

    ainda mais necessrio problematizar o corpo e, ao mesmo tempo, desnaturaliz-lo.

    Alm disso, outro problema que enfrentamos : desenvolvemos um amor pela

    Filosofia, mas no tanto pela maneira como a academiciza. E da a questo inevitvel

    a seguinte. O que fazemos ns, psiclogos, estudando Filosofia, pesquisando e

    escrevendo em Filosofia? Fazemos Filosofia? Talvez, no. Nossa inteno aqui no

    fazer Filosofia. Pelo menos, no maneira acadmica, ou segundo um modelo vigente,

    no qual estudar Filosofia fazer o que chamamos metafilosofia. Falar sobre um autor,

    analis-lo no movimento interior de sua obra, suas fases, comparar seus conceitos; ou

    estabelecer as suas bases nietzscheanas, fenomenolgicas, kantianas... o que teria

    Deleuze extrado de Kant? Em que Merleau-Ponty marxista? Isso no nos interessa.

    Alm de montono, no nos serve. A nossa questo : como extrair e, principalmente,

    selecionar conceitos que nos tragam potncias e foras para o trabalho que entendemos

    ser prprio da Psicologia, o de problematizar os modos de vida e os regimes de

    sensibilidade? Como poderiam os conceitos nos armar para fazer micropoltica? Como

    fazer dos conceitos, armas de combate e ferramentas de criao de novas afetividades,

    novas formas de sentir e criar existncias? Assim, talvez este trabalho carea de pr-

    supostos tomados como elementares para se fazer Filosofia. Mas, sendo outro nosso

    objetivo - o qual, contudo, no se limita a tomar a Filosofia de uma maneira meramente

  • 9

    utilitria estaremos aqui nos empreitando em selecionar conceitos, conectando-os ou

    pinando-lhes partes que nos interessam, para rechearem nossa tentativa de construir um

    corporalismo da diferena, ferramentas filosficas capazes de fortalecer um

    materialismo da diferena.

    Nossa proposta

    Ora, no decorrer de nossa trajetria de pesquisa anterior construo desta tese,

    comeamos a perceber que no pensamento esquizo de Deleuze os conceitos de corpo e

    Corpo sem rgos (CsO) parecem ser formados por peas, fragmentos de outros

    conceitos, espalhados em muitas de suas obras. Tambm, atravs do conceito de Corpo-

    sem-rgos, a ideia de corpo como expresso imanente de uma tica foi se fazendo

    cada vez mais presente em nossas pesquisas e agora nos sentimos impelidos a trabalh-

    la com maior detalhamento.

    Assim, sempre embasados nos conceitos de Deleuze (e Guattari), gostaramos de

    seguir aprofundando nossos estudos sobre o corpo. Passando pelas obras O Anti-dipo,

    Nietzsche e a Filosofia, Espinosa - Filosofia Prtica, A Dobra - Leibniz e o Barroco,

    Mil Plats, Diferena e Repetio etc. traaremos um alinhavado conceitual, com a

    inteno de potencializar os conceitos de corpo e CsO. Como dizem Deleuze e Guattari

    (1992, p.30) todo conceito apresenta um devir relativo a outros conceitos habitantes do

    mesmo plano, so inseparveis de componentes e variaes heterogneas limitadas

    (idem, p.33); , ento, atrs deste devir para os conceitos de corpo e CsO que estamos.

    H, porm, mais uma linha de constituio deste trabalho. que, no decorrer da

    pesquisa, ao nos depararmos com a alegria e fora desconstrutiva nietzschiana,

    orientados por Nietzsche e a Filosofia, nos vimos imediatamente arrastados pelos

    conceitos de trgico e dionisaco. Impossvel no se sentir revigorado e encantado por

    Nietzsche. Foi inevitvel querer inclu-lo e se sentir marcado irreversivelmente por estes

    conceitos. A partir da, no pudemos deixar de, a todo o tempo, encontrar linhas

    constitutivas trgico-dionisacas nos conceitos de corpo e tica trazidos por Deleuze (e

    Guattari).

    Ento, este trabalho pretende afirmar, a partir do pensamento de Gilles Deleuze e

    dos conceitos de trgico e dionisaco de Nietzsche, a ideia de que nosso corpo uma

    composio, acima de tudo, tica: o corpo material dionisaco de uma tica trgica.

  • 10

    E mais uma vez tentaremos, mais uma vez estamos dispostos a, procurando nos

    desviar dos importantes alertas foucaultianos, deixar algo de inventivo, afirmativo para

    o corpo, especialmente para as nossas reas de atuao, Psicologia e Educao.

    Assim, esquematizamos do seguinte modo os problemas que nos propomos

    enfrentar e os objetivos a que pretendemos chegar neste trabalho:

    Problemas

    Problema principal:

    Qual a relao entre tica e corpo? Em que ela trgico-dionisaca?

    Problemas especficos:

    a) De que maneira constituir uma conceituao de corpo que nos permita

    imanentizar o corpo vida?

    b) Existiria uma corporeidade intensiva?

    c) Seria possvel que o corpo no fosse confundido com uma forma-sujeito

    (individualizados) ou um organismo (universal, generalizante, estatal,

    centralizador)?

    d) H em Deleuze uma corporeidade e uma tica trgico-dionisaca?

    Objetivos

    Objetivo principal: baseando-nos nas obras de Deleuze (e Guattari) e

    acompanhados de Nietzsche, desenvolver o cruzamento entre corpo e tica, destacando

    os componentes trgico-dionisacos a presentes.

    Objetivos especficos:

    a) Aprofundar o conhecimento a respeito do conceito de corpo em Deleuze (e

    Guattari), tomando como norte o conceito de Corpo-sem-rgos e os

    conceitos de trgico e dionisaco de Nietzsche.

    b) Afirmar e potencializar o conceito de corpo, escapando de possveis pontos de

    captura, tais como a recada num pensamento moral, a captura por algum tipo

    de transcendncia e a dicotomizao entre corpo e esprito.

    c) Compreender o conceito de tica, a partir do pensamento deleuzeano e

    estabelecer sua relao com a corporeidade.

    d) Encontrar o sentido de uma tica trgica e de uma corporeidade dionisaca.

  • 11

    Introduo

    Para comeo de conversa... Em que Consiste o Corpo?

  • 12

    Endemonizar o corpo

    Iniciamos, pois, tentando definir o corpo, a partir de nossos autores de referncia.

    O desafio perguntar pelo o que ? o corpo sem cair num essencialismo, ou em

    substancializao. A inteno minimamente conseguirmos selecionar conceituaes

    que nos possibilitem circunscrever o corpo, de maneiras condizentes com a filosofia

    micropoltica de Deleuze. Poderamos dizer, que aqui se trata de traar o plano de

    imanncia, sobre o qual desenvolveremos os demais conceitos que viro compor este

    trabalho. Sabemos bem que perguntar pelo o que ? no bem a questo que Deleuze

    nos indicaria. A questo que ? prejulga a Ideia como simplicidade da essncia;

    ento, foroso que a essncia simples se contradiga, pois ela tem que compreender o

    no-essencial, e compreend-lo em essncia. (DELEUZE, 2006a, p.131) Mesmo

    assim, a teimosia apenas estratgica, ou inicial... A tentativa ser a de desterritorializar

    a imagem de corpo, tal como, no senso comum se o tem: matria oposta alma,

    msculo e ossos de um ser, corpo concreto como realidade primeira e ltima de um

    empirismo mal acabado. Assim, como chamam a ateno Deleuze e Guattari (1992,

    p.68), no se trata de, estabelecer o Universal, mas sim, de operar uma seleo do que

    cabe de direito ao pensamento.

    Portanto, o corpo nosso ponto de partida. Qualquer outra instncia seria

    trascendente (CARDOSO JR., 2002, p.189), para se falar de tica.

    ____ ,, ____

    Um corpo um composto heterclito de foras. Qualquer relao de foras

    constitui um corpo: qumico, biolgico, social, poltico. (DELEUZE, 2001, p.62) Para

    haver um corpo, preciso haver foras, no plural e, alm de plurais, mltiplas e, alm

    de mltiplas, desiguais. Analisemos, ento, que quer dizer foras no plural e foras

    desiguais. Vejamos at que ponto conseguimos levar esta pequena definio de corpo.

    Em certo sentido, o plural designa apenas aquilo que no s, o contrrio do uno:

    uma profuso quantitativa de seres de mesma espcie: enxame, cardume, rebanho,

    massa, povo. O plural aqui uma quantidade de foras diversas tomadas em funo da

    sua espcie, a qual um conjunto de individualidades marcadas por um conceito

    partilhado, mas idntico e indeterminado (cf. DELEUZE, 2006b, p.61): uma unidade

    mnima sobre um indeterminado mximo. Mas, em outro sentido, o plural genrico,

    isto , nele est contida a distribuio do gnero como um elemento agregador de uma

    diversidade, uma diferena mais marcante porque capaz de identificar-se em mais seres

  • 13

    (cf. idem, p.63): uma diversidade mxima contida numa identidade mvel. Como

    vemos, nestes dois aspectos, a identidade a funo do plural, que s quer dizer muitos

    de um. Se tivermos um pouco mais de acuidade veremos que, num sentido um pouco

    mais profundo, ainda quantitativo, o plural, ao designar uma medida maior de um, a

    qual uma medida qualquer, uma quantidade indeterminada, j inicia uma discreta

    extrapolao, inicia uma desmedida. Neste modo de conceber o plural, a identidade

    ainda referncia, mas o plural j est fora de controle, j do tipo bando, gangue,

    horda. O idntico , pois, uma referncia para denominar uma pluralidade incalculvel,

    pejorativamente incalculvel. Com efeito, tambm um sentido no qual o uno comea a

    tornar-se intil, j que no serve para muito, alm de ser medida para se distinguir de

    uma quantidade desmesurada, que j pode ser chamada mltipla. O mltiplo , ainda

    neste caso, uma divergncia, uma dissidncia partidria, oposio ao uno. Mas, no se

    deve confundir o mesmo do uno com a identidade de um conceito geral diz Deleuze

    (ibidem, p.105). O mesmo se diferencia da identidade genrica ou especfica porque

    deve servir no mais para ser partilhado ampla ou minimamente, mas para fundamentar

    o verdadeiro, a coisa mesma de uma coisa.

    Porm, a partir de outro lugar, num sentido afirmativo, forte, o plural no mais

    muitos, nem mesmo o mltiplo, mas o multiplicitrio e a multiplicidade. Alm de ser

    uma desmesura, um exagero quando julgado -, uma desmesura qualificada,

    diferenciada, na qual o uno inexistente, ou apenas se afirma em funo da

    multiplicidade e na multiplicidade. O multiplicitrio, macho da multiplicidade, ainda

    uma quantidade, mas uma quantidade qualificada. Sem identidade, mas qualificada. A

    multiplicidade, uma grande fmea csmica; o multiplicitrio o macho que se debate

    dentro da fmea, fervendo seus ovos gelatinosos para encher-lhe o ventre de diferenas.

    A multiplicidade gesta e pari pequenos filhotes que so, paradoxalmente, larvas

    maduras, germinais, mas prontas, na medida em que so diferenas colocadas

    absolutamente, nascem sem dvida, nada devem, nada lhes falta. O multiplicitrio no

    secreta sementes de plagiadores, divergentes, mas quantidades anrquicas,

    assumidamente traidoras, para proliferar, nos tecidos pregueados da multiplicidade, um

    cosmo, uma multido. Os filhotes multido: uma horda anmala, em que se compartilha

    a diferena. No o filho edipiano, atropomrfico, mas o filhote, animal e selvagem. O

    multiplicitrio qualifica, a multiplicidade multiplica parindo a multido: um taosmo da

    diferena. A multido uma espcie de enfurecimento da diferena, ou a coroao do

    simulacro. Aqui j nada est fundamentado no mesmo, inclusive porque o fundamento

  • 14

    s o pode ser, na medida em que o seu mesmo remetido diferena (cf. DELEUZE,

    2006b, p.106). A multido, filhote monstruoso do mltiplo e da multiplicidade, uma

    comunidade anrquica reunida pela diferena, um conjunto de singularidades, o

    nome de uma imanncia, da qual no se pode abstrair nem as diferenas essenciais das

    singularidades, nem a multiplicidade de seu corpo diferencial, isto , ela no forma nem

    um povo enquanto conjunto plural de identidades, nem uma massa, enquanto agregado

    destitudo de diferena. (cf. NEGRI, 2003, p.163) Ainda nos termos de Negri (cf. idem,

    p.165), a multido o conjunto de singularidades que produz alm da medida. Por

    isso que dizemos ser o simulacro o constituinte da multido compositora do corpo. O

    corpo feito de simulacros, ou seja, sua materialidade escape da forma, tenso

    imanente que no se deixa captar numa essncia simples e, a cada vez, s pode ser

    definido em funo da maneira como escapa forma e das transformaes que sofre sob

    ao de sua prpria complexidade O simulacro o verdadeiro carter ou a forma do

    que o ente -... (DELEUZE, 2006b, p.106) Quer dizer, por mais que haja uma

    matria definvel como corpo concreto ou emprico, sua materialidade mais profunda

    a de um paradoxo intensificador desta matria. Conforme Deleuze, o simulacro no no

    uma cpia degradada do mesmo essencial, da ideia, ele sim, uma negao tanto do

    original identitrio, quanto da cpia aspirante (DELEUZE, 2003, p.267). Mas ele nega

    por ser indiferente ao mesmo e por ser uma afirmao de um absolutismo da

    dessemelhana. Instaura o mundo das distribuies nmades e das anarquias

    coroadas. (idem, p. 268) Portanto, o corpo, ao ser tomado com composio de foras

    mltiplas, pode tambm ser tomado como um naco de caos.

    Coloca-se a diferena como sendo um novo elemento de distribuio, desta vez,

    indiferente ao mesmo como cisto distributivo e, ainda assim, compartilhada pelas

    foras. Elemento indiferente ao mesmo, mas sensvel diferena como sendo, ela

    mesma, o novo elemento de distribuio diferencial. O mesmo afunda e a diferena no

    mais se determina pela grande ou pequena aproximao deste mesmo, nenhuma delas

    participa mais ou menos do ser (idem, p.69) no h mais hierarquia para a diferena,

    portanto. Alm disso, j no h grande diferena ou pequena diferena entendidas

    enquanto continncia de uma quantidade maior ou menor de especificidade. Acontece

    agora, que este compartilhamento tampouco se afirma de um conceito abstrato da

    diferena, ou de uma diferena sem conceito (DELEUZE, 2006b, p.54), pois o

    simulacro aquele que compreende o conceito da diferena em si, enquanto perfaz o

    dspar como elemento da sua distribuio. (cf. idem, p.107). Deste modo, a diferena

  • 15

    distribuda enquanto preenchimento o mais amplo possvel de um espao, no qual a

    unidade que se afirma s afirmada a partir das diferenas que preenchem este espao.

    (cf. idem, p.68) Trata-se, pois de um espao de desenvolvimento da diferena, um

    espao que requer ser preenchido pela diferena enquanto esta se desenvolve na

    desmesura do simulacro e no compartilhamento desigual desta desmesura. Desenvolver

    a diferena quer dizer, pois, faz-la afirmar-se em sua prpria metamorfose; preencher o

    espao pela distribuio da diferena quer dizer preench-lo pela diferenciao da

    diferena, ou seja, pela sua multiplicao no prprio movimento de tornar-se outra

    coisa, simulacralizar-se.

    Aqui, preciso ver bem as desterritorializaes que resultam da conexo entre o

    conceito de corpo como composio de uma multiplicidade de foras e a conceituao

    da prpria multiplicidade. Em primeiro lugar, se falamos de corpo a partir da sua

    multiplicidade de foras estamos j o tirando de sua reduo a um corpo individual. Ora,

    falar de corpo passa a ser falar de uma multiplicidade, por assim dizer, aberta, ou

    ilimitada em sua multido diferenciante e constitutiva. Trata-se, como diz Ulpiano

    (1997, p.54), de um corpo expressivo diferente do corpo orgnico.

    O corpo no mais matria formal de um ser, mas material multiplicitrio de uma

    transformao. Assim, opomos a matria ao material: o material feito de

    multiplicidade e diferena, enquanto elementos constituintes, mas a matria a forma

    destas foras quando tomadas como substncia. Falando de outro modo, o corpo uma

    composio de simulacros ou ainda uma multido demonaca, na qual a diferena das

    foras que o compem mais do que uma diversidade de foras, chegando a ser, mais

    exatamente, diferenciao, poder metamrfico de cada fora compositora. A diversidade

    pressupe, todavia, um eixo do qual se destaca o diverso, mas a diferena , como

    dissemos, sempre a-fundada e afirmada na prpria diferenciao. Como destaca

    Deleuze, no se fala mais do quanto nenhum gro de areia se equipara a outro, ou de

    como duas mquinas de escrever no tm tipos iguais, ou ainda, como duas mos no

    apresentam linhas notveis similares. (idem, p53)

    Quer dizer, neste caso em que falamos do corpo, no se o trata mais enquanto

    matria substancial que se distribui e se reconhece em todos ns como elemento do

    mesmo, nem como mera afirmao da diferena pela especificidade individual

    (diversidade) do conceito de cada corpo, seja ele humano, animal ou inanimado. A

    multiplicidade do corpo no se atesta pelo fato de cada um de ns ter um corpo distinto

    formalmente, mas pelo fato intensivo de que o corpo forosamente distinto so as

  • 16

    suas foras constituintes a sua distino mais essencial. Neste sentido,

    desterritorializamos a noo de corpo entendido como corpo especfico de um sujeito ou

    indivduo e, ainda, desfazemos a ideia de corpo enquanto corpo humano, o desligamos

    das partes ou peas que remeteriam a seu conjunto total: msculos, vsceras, olhos,

    pelos etc. O corpo no pode ser definido por suas partes, mas por suas participaes, ou

    seja, pelo entrelaamento complicado das linhas que o fazem. Ele no pode ser

    entendido em sua totalidade formal e sim em sua molecularidade, isto , seu potencial

    de reao. No se fala mais de uma matria-forma, antropomrfica e assujeitada,

    seno de uma matria-fora. Conhecer o mundo como matria-forma convoca a

    percepo, operada pelos rgos dos sentidos; j conhecer o mundo como matria-fora

    convoca a sensao, engendrada no encontro entre o corpo e as foras do mundo que o

    afetam. (ROLNIK, 2004, p.227)

    Tiramos, ento, o corpo da ordem da forma e do senso comum, exteriorizamo-lo

    semelhana, a qual democratizada na forma da matria opaca de todos ns; o corpo

    aqui endemonizado, na medida em que sua essncia constitutiva seja da

    multiplicidade das foras encontradas na dissemelhana dos simulacros que so.

    Porque, da mesma maneira que Deleuze diz haver um senso comum ao pensamento, o

    qual considera que toda gente sabe pensar (cf. idem, p. 190), tambm poderamos dizer

    que h um senso comum do corpo, que o tem como matria de um ser que toda gente

    tem na forma substancial desta matria.

    Retiramos o corpo do lugar de ser uma consequncia das foras, ou de sua parada.

    Fazemos com que ele esteja compreendido tambm do lado intensivo, do lado mesmo

    das foras, j que parece contraditrio separar uma fora de sua multiplicidade e uma

    multiplicidade do corpo que a ela j , enquanto foras agindo. essencial para o

    desenvolvimento deste trabalho considerar que separar o corpo da multiplicidade de

    foras que o compe parece ser uma abstrao impossvel. Veremos que o extenso no

    corpo outra instncia, mas no a dele prprio, que o plano das foras em relao.

    Se podemos falar de corpo , afinal, apenas a partir da afirmao da diferenciao

    das foras mltiplas e multiplicantes. Neste incio, portanto, estamos procurando

    realizar uma raspagem do conceito de corpo. Comeamos afirmando sua

    irredutibilidade, atravs da sua identificao com uma multiplicidade de foras e com o

    processo vital de incorporao.

  • 17

    Corpo forte e a intenso da vida

    Portanto, o corpo corpo quando feito de foras desiguais, distintas; e quando

    estas foras entram em relao. Mas, o que se pode entender por foras? Precisamente,

    por fora, segundo destaca Deleuze, deve-se entender qualquer forma de apropriao e

    explorao de uma quantidade de realidade (cf. DELEUZE, 2001, p.8). O ser das foras

    est na realidade que a expressa, na quantidade de realidade que ela possui, de modo

    que ela inseparvel de sua expresso, de sua atividade. Quer dizer, o corpo, ao ser

    constitudo por diferenas, forma quantidades de fora em relao de tenso umas

    com as outras (idem, p.62), forma uma multiplicidade, a partir do multiplicitrio. Por

    isso, o corpo um tipo de acontecimento, quer dizer, para formar um corpo, s havendo

    uma combinao complexa: preciso um monto de foras e que estas foras se

    encontrem, preciso que elas sejam diferentes, que comecem a entrar em relao e que

    essa relao seja tensa. A complexidade sendo no s a qualidade daquilo que feito de

    muitas partes diferentes plural -, mas tambm por ser feita de relaes tensas, ou seja,

    por uma mobilidade nas relaes que as mantm sempre em desequilbrio, em

    desigualdade - multiplicidade. O princpio da tenso d liga s singularidades

    fenomenais da vida, afirma a processualidade energtica do universo... (BAIOCCHI &

    PANNEK, 2007, p.53) Agora, a diferena a funo da multiplicidade de foras

    existente no corpo: o plural se fortaleceu. O corpo um fenmeno mltiplo, sendo

    composto por uma pluralidade de foras irredutveis; a sua unidade a de um fenmeno

    mltiplo... (ibidem) O corpo imediatamente vrios, foras desiguais que comungam a

    diferena, comunidade de desiguais, em que qualquer uma j a prpria multiplicidade

    que compe o corpo. Da a importncia da palavra irredutvel presente no trecho

    citado acima. Qualquer fora j de tal maneira mltipla e diferente de si, que no pode

    ser reduzida a nenhuma de suas faces, formas ou modificaes, atuais ou passadas.

    Sim, nesta multiplicidade que o corpo, h uma unidade, mas a unidade

    garantida pela tenso, pela diferena. Tambm por isso, essa unidade do corpo no

    forma um Eu, porque o Eu suporia ainda uma funo da identidade. A unidade corporal

    diferena e embate. Assim, a tenso, que caracteriza a complexidade das relaes de

    fora constituintes do corpo, faz dele uma espcie de estrutura dissipativa, isto , seu

    ser justamente a diferena, sua vida depende do desequilbrio (cf. PRIGOGINE, 2002,

    p.21 sobre seu conceito de estrutura dissipativa), a presena de um grau de desmesura,

    que, por um lado, possibilita, oferece aberturas para uma nova fora, uma relao

    insuspeita; por outro lado, este algo a mais impede o fechamento, o embotamento do

  • 18

    corpo. Este algo a mais no corpo to somente a presena contnua de algum grau de

    caos, sendo este caos, no mais um fantasma que ameaa de fora a sua unidade, mas

    justamente aquilo que constitui internamente sua relao: por isso dizemos, um algo a

    mais no corpo e no, do corpo - o caos no uma coisa que o corpo possui, mas aquilo

    que nele se faz. O corpo constitui-se, por isso, sobre um equilbrio metaestvel das

    suas foras. Quando olhamos os corpos, percebemos que no estamos somente diante

    de uma multido de corpos, mas compreendemos que cada corpo uma multido. (...)

    No h possibilidade de um corpo estar s. (NEGRI, 2003, p.170) Em outras palavras,

    a multido de foras aquilo que o corpo essencialmente e, ele nunca est s porque

    h nele mesmo, fazendo parte dele e de seu meio interno, a presena, a companhia

    constante do algo a mais do caos e da diferena. A essa unidade fluida se pode chamar

    tambm consistncia.

    Ora, se pensamos no corpo como uma multiplicidade de foras e relaes,

    entendemos tambm que ele no cresce a partir de um centro. A partir do momento que

    se entende o corpo como unidade irredutvel e dissimtrica de uma multiplicidade

    heterclita, o problema passa a ser: como o diferente, o heterogneo se mantm junto?

    (DELEUZE & GUATTARI, 1997a, p.138) Quer dizer, como as foras que compem o

    corpo ficam juntas, sendo elas todas, foras desiguais, estando relacionadas de modo

    tenso e mvel? No entanto, cada vez que heterogneos se mantm juntos (...), j se

    coloca um problema em termos de consistncia, em termos de coexistncia ou sucesso,

    e os dois ao mesmo tempo. (idem) Aqui lanamos mo do conceito de consistncia -

    ainda que ligeiramente deslocado de sua discusso original para que tenhamos uma

    possvel compreenso acerca do modo como uma multiplicidade de foras heterogneas

    se transforma ou constitui um corpo. Nesta passagem, Guattari e Deleuze buscam uma

    forma de compreender o que faz manterem-se juntas inmeras foras ou componentes

    distintos, sem que, contudo, se explique essa soldagem atravs de um modelo

    arborescente, o qual remeta a coeso das foras a um eixo de equivalncia para todos os

    elementos. Quando se pergunta pelo que mantm junto um conjunto de diferentes

    foras, podemos dizer que se est perguntando pelo que faz com que as foras formem

    um corpo. Da, parece que a resposta mais clara, mais fcil, dada por um modelo

    arborescente, centralizado, hierarquizado, linear, formalizante. (idem) Por isso que

    se lana o conceito de consistncia, no enquanto modo de explicar genericamente a

    ligao entre foras e a constituio de corpos, mas uma maneira de sair de um sistema

    axial e fazer entrar a diferena como sendo justamente aquilo que possibilita a conexo

  • 19

    entre foras. Por um lado, se escapa noo de unidade por unificao centralizada e,

    por outro, se escapa da simples fragmentao ou disperso dos elementos.

    Assim, numa multiplicidade, a partir do encontro entre as foras, algo se passa a

    partir de dentro, como se molculas oscilantes, osciladores, passassem de um centro a

    outro,... (ibidem, p.139) a partir de um espao interior, que se soldam as foras

    heterogneas do corpo. Mas, esse interior no designa um dentro tomado segundo uma

    linha limtrofe que o separaria do fora: o interior , na realidade, o prprio fora, o fora

    intrnseco, aquilo que est dentro do espao e, simultaneamente, exterior aos elementos

    formadores. Junto deles, inseparvel deles, sem, contudo, com eles se confundir. No

    um espao dentro das foras, mas interior ao entre as foras. Este espao intrnseco, o

    espao de tenso, constituinte das prprias foras na relao que elas estabelecem

    entre si, de tal modo que nem as foras se tornam o que se so sem a vibrao deste

    espao, nem o espao passvel de mover-se da maneira como se move na ausncia das

    foras que a ele esto impregnadas. Assim, a relao cresce a partir do meio e de um

    meio. As foras se soldam a partir deste meio delas, ou seja, na medida em que

    acontecem entre elas, densificaes, intensificaes, reforos, injees, recheaduras,

    como outros tantos atos intercalares (no h crescimento seno por intercalao);...

    (ibidem, p.140). Por meio, aqui, quer dizer mais ambiente do que entre dois. O meio

    o caldo de tenses em que as foras esto mergulhadas, um espao e um clima. No o

    espao entre dois, mas o prprio espao complicado das foras.

    Este meio entre as foras espao de trnsito, zona de transporte, pelo qual

    passam, como ondas, pequenos fluxos conjuntos de partculas - lascas, cacos, estilhaos,

    cutculas e poeira - constituintes das diferenas das foras. Essa passagem entre as

    foras, porm, no linear ou, melhor, as trocas no so dialticas e no se fazem por

    revezamento: elas acontecem por simultaneidades. como se, ao se relacionarem, as

    foras emitissem entre si, qualidades singulares, de modo a estabelecerem um canal de

    idas concomitantes a vindas, com muitas direes e sentidos ao mesmo tempo. Porm,

    no se pode dizer que este entre seja um espao pr-existente ao seu trnsito, pois, se

    assim fosse, seria j um espao extenso entre dois indivduos. O espao do entre ele

    prprio trnsito, passagem. Transito intensivo que no o meio termo e, sim, nenhum

    termo da relao, trnsito da prpria relao em relao a si. Agora, mais do que uma

    complexidade, se tem uma complicao das foras, j que tudo se passa

    simultaneamente. E vejamos, ainda, que para que haja preenchimento pela poeira forte,

    o espao precisa ser aberto no meio desse trfego de qualidades diferenciais; preciso

  • 20

    que haja acomodao de intervalos, repartio de desigualdades, a tal ponto que, para

    consolidar, s vezes preciso fazer um buraco;... (idem)

    Ento, o encontro de foras no forma o corpo, isto , no o formaliza, mas o

    consolida, dando-lhe consistncia. E esta consistncia no acontece depois das foras,

    mas junto com elas, imediatamente a elas. Fica mais claro, com isso, o sentido que

    demos ao espao entre as foras enquanto espao intrnseco. A consolidao no se

    contenta em vir depois; ela criadora. (ibidem) Quer dizer, o corpo se faz na medida

    em que apresenta espaos a serem preenchidos e na medida em que vo acontecendo

    preenchimentos desses espaos. Ressalvando-se, porm, que o espao no vazio, mas

    intervalo, ou seja, mais uma qualidade temporal, do que distncia extensiva. Estamos

    falando aqui, do processo de produo de um corpo, tanto no sentido em que ele ganha

    relativa unidade, quanto de que ele ganha em capacidade, em fora, a partir da

    constituio de sua caracterstica multiplicidade. No corpo, as foras no apenas

    coexistem, mas fazem de sua diferena algo pela qual so tomadas umas nas outras

    (Ibidem, p.143) e segundo a qual consolidam a coexistncia de suas diferenas. E tanto

    mais consistente a relao entre as foras, ou seja, tanto mais forte o corpo, quanto

    mais o espao tensional entre elas recheado, enriquecido, esburacado e preenchido por

    qualidades heterogneas. a diferena que aparece no meio, que garante a consistncia

    das foras e, portanto, do corpo. A diferena fortalece. O que torna o material cada vez

    mais rico aquilo que faz com que heterogneos mantenham-se juntos sem deixar de

    ser heterogneos;... (ibidem, p.141)

    Enfim, se um corpo relao tensa de foras heterogneas, a qualidade de um

    corpo dada pela consistncia das relaes de fora que o criam, isto , pela quantidade

    de diferena que ele suporta, sustenta, comporta. Tanto mais qualificado um corpo,

    quanto possua mais quantidade de diferena. Mais consistente aquele apto a captar

    foras cada vez mais intensas. (cf. idem, p.141) Por isso, a pergunta o que ? o corpo,

    na realidade, disfarava uma questo mais precisa, ou mais transformadora, qual seja:

    em que consiste? o corpo. Ora, perguntar por uma consistncia do corpo perguntar

    pela sua fora, isto , pela quantidade de diferenas que lhe compem. Vejamos que, de

    fato, falamos de um corpo cuja essncia justamente a tenso, a heterogeneidade. O

    corpo mais do que uma condensao de foras, mas uma superfcie tensiva.

    Aqui, pois, vislumbramos as primeiras linhas ticas relativas ao corpo, j que no

    falamos mais de uma verdade do corpo, mas de uma fora que o constitui, que lhe d

  • 21

    consistncia. Uma composio mltipla e tensiva do corpo, que indica sua fora, ou

    seja, a sua quantidade de realidade, sua fora de apropriar-se de um naco da realidade.

    Ora, incorporar foras, ou ainda, encorpar, tem uma relao imanente com o

    conceito de vida que agora invocamos tomando a Nietzsche como parceiro.

    Encontramos em Nietzsche, pelo menos duas maneiras muito precisas de definir a vida.

    Em primeiro lugar e sem metfora alguma, a vida caracterizada como um movimento

    nutricional, o qual, necessariamente implicaria sempre o sentido de aumento de poder, a

    partir de incorporao de fora. Chamamos vida uma multiplicidade de foras ligadas

    por um processo de alimentao comum, que cresce incorporando foras alheias e

    alargando seu poder. (NIETZSCHE, 2008b, p.327 e cf. p.366) 1

    Em segundo lugar, tambm essencial ao que vivo, que possua um poder

    configurador, criador de formas a partir de dentro e explorando circunstncias externas.

    (idem, p.328). Porm, nestas duas caracterizaes, ligando uma a outra, existe uma

    definio mais profunda, por assim dizer. Nas palavras nietzscheanas, tudo que vivo

    quer, antes de tudo, dar vazo sua fora, ficando em segundo plano o problema da

    autoconservao. (cf. NIETZSCHE,1992, p.20) Notemos, isso implica que a vida no

    seja um processo harmonioso, o qual tende paz e reconciliao, mas um constante

    embate, uma incessante guerra, em que diferentes foras se digladiam. Nutrir-se e criar

    formas so modos de fazer fluir a fora e requer que elas lancem-se umas sobre as

    outras, de modo a incorporarem mais fora. Somos fecundos apenas ao preo de

    sermos ricos em antagonismos; permanecemos jovens apenas sob a condio de que a

    alma no relaxe, no busque paz... (NIETZSCHE, 2005, p.35) Por isso dizemos que a

    vida possui uma intenso, isto , uma tenso interna, mas que interior to somente s

    relaes de foras. esta intenso que se torna, pois, corpo de uma multiplicidade; ela

    se direciona a outras foras neste sentido as intenciona, as visa -, mas com elas faz

    corpo e a intensiona. Somos gratos a Baiocchi e Pannek por nos haver introduzido a

    importncia do conceito de tenso. Dizem estes autores:

    Tenso a entrelinha, o elo invisvel, atmosfera, energia subentendida entre gestos, sons, silncios, imagens, palavras, objetos,

    pessoas. (...) Onde h vida h tenso, tenso inevitvel. A morte

    coincide com o momento da incapacidade de um corpo manter suas

    intra e intertenses. (BAIOCHI & PANNEK, 2007, p.52)

    O ser das foras est, to logo, na realidade que a expressa, na quantidade de

    realidade que ela possui, de modo que ela inseparvel de sua expresso, de sua

    atividade tensiva. Poderamos dizer que a vida um acontecimento eminentemente

  • 22

    esttico, expressivo, diretamente ligado s foras que a compem, enquanto estas so

    formas de apropriaes, so modos de criao de realidade; e as realidades so estilos

    tensivos. No se poderia, em primeira instncia, separar a essncia da fora de sua

    atividade e de sua expresso, que agir sobre outras foras. Assim, toda fora j fora

    em relao, foras, no plural. Qualquer fora est, portanto, numa relao essencial

    com outra fora. (idem, p.13) Com efeito, se a vida feita de foras que se apropriam

    umas das outras, isso quer dizer tambm que a vida , ela prpria, apropriada pelas

    foras, ou seja, a vida inseparvel das foras que a tomam, ela objeto de ao das

    foras. Vida haveria de ser definida como uma forma duradoura de processo dos

    estabelecimentos de fora... (NIETZSCHE, 2008b, p.327) Ora, parece plausvel dizer

    que prprio da vida querer tornar-se mais forte, j que seu processo o de nutrir-se,

    tomar mais foras, estabelecer fora. Estabelecer fora ou tornar-se forte criar

    realidade, produzir vida na vida, tensionar. Fortalecer a vida , ento, de uma vez s,

    apropriar-se de mais realidade e produzir realidade: criar e tomar so idnticos quando

    se fala de foras vitais. Portanto, quando Deleuze define a fora a partir da realidade que

    ela toma, no quer dizer que se conceba uma realidade pr-existente s foras, mas,

    justamente, que a realidade inseparvel das foras que a possuem, sendo estas que iro

    produzi-la enquanto realidade viva.

    Ento, se consideramos o que viemos dizendo at agora, veremos que o

    fortalecimento da vida se confunde com a constituio ou a consistentizao de um

    corpo, um corpo que necessariamente extrapola o corpo humano e o individual. Se

    poderia dizer, num sentido preciso, que uma vida forte implica numa incorporao; ou,

    ao contrrio, que um corpo forte inseparvel de uma realidade em que a vida incorpora

    uma multiplicidade de foras. Viver encorpar, mas encorpar incorporar realidade,

    possuir mais foras vivas. A fora de uma vida se diz da multiplicidade que ela

    incorpora, do corpo que ela constitui enquanto realidade imediata que ela possui. A vida

    inseparvel de sua tenso incorporante, mas este corpo que ela constitui correlativo a

    uma fora de natureza multiplicitria. Problema tico ligado ao corpo, mas inseparvel

    da multiplicidade da vida. O corpo , pois, consistncia multiplicitria, muito mais do

    que individualidade da matria.

  • 23

    tica: sempre ticas

    Assim, sero estas primeiras conceituaes que nortearo este trabalho, quando da

    conexo entre o problema tico da vida e da constituio de um corpo vivo, uma tica

    do corpo forte e da vida tica...

    Ento, explicitemos de onde vem o ponto focal deste trabalho, que o de

    compreendermos a relao entre tica e corpo. que, diz Deleuze, h um novo ponto de

    partida para se fazer filosofia que Spinoza nos prope. Este novo modelo (DELEUZE,

    2002, p.23) o corpo e acima de tudo porque no se sabe o que pode um corpo, porque

    se tem um profundo desconhecido do corpo (idem, p.24) to insondado quanto o

    desconhecido do pensamento. Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o

    conhecimento que dele temos, e o pensamento no ultrapassa menos a conscincia que

    dele temos. (ibidem, p. 25).

    Quando dois ou mais corpos se encontram - e ideias tambm a se encontram

    acontece de se formar uma relao e esta, por sua vez, pode ser compositora ou

    decompositora. Cada corpo constitudo por uma relao caracterstica e, quando de um

    encontro, forma-se uma terceira relao e, portanto, um terceiro corpo, o qual pode

    compor ou decompor as relaes caractersticas dos corpos envolvidos. O longo e

    contnuo complexo formado pelos encontros de corpos distinto e as respectivas relaes

    mutantes que produz as existncias dentro da vida. Mas ns, seres conscientes, temos

    apenas ideias mutiladas, sinais esparsos, efeitos dessas composies e decomposies.

    Encontramo-nos em uma tal situao que recolhemos apenas o que acontece ao nosso

    corpo, o que acontece nossa alma... (ibidem) Isso o mesmo que dizer que nosso

    saber est sempre em atraso em relao ao que se sucede conosco. Estamos sempre

    antes padecendo das foras e transformaes de um encontro do que sendo capazes de

    compreend-lo ou pens-lo na mesma velocidade com que ele nos faz diferir. Isso nos

    coloca em situao de no sabermos exatamente o que nosso corpo em sua relao

    prpria e o que nossa alma em sua relao prpria. Por consequncia, tampouco

    sabemos o que o outro corpo e sua relao, nem o que a natureza do terceiro corpo

    que formamos.

    Ora, se assim, j comeamos a ter ideia do que seja a tica e do que seja o

    encontro entre tica e corpo. Por tica, se compreende, inicialmente, que se trata de um

    estudo a respeito das relaes e encontros entre corpos. Alm disso, uma vez que se

    trata de um estudo, entendemos que tico o modo de saber que admite um

    desconhecimento necessrio e inescapvel a respeito daquilo sobre o qual se desdobra:

  • 24

    um modo de desconhecer em primeiro lugar, um modo de desconhecer os corpos e suas

    relaes. Perguntarmo-nos pelo que nos acontece no encontro de nosso corpo com

    outros, isto , colocarmos o pensamento a pensar sobre a(s) relao(es) de nosso corpo

    um exerccio tico, j tomar ao corpo como material deste exerccio.

    Na medida em que recolhe apenas sinais fragmentrios dos encontros, o nosso

    saber ordinrio, consciente, apenas transitivo (cf. ibidem, p.27), ou seja, mediador e

    no necessariamente nos oferece acesso relao diferencial que nos constitui.

    Sabermos o que acontece com nosso corpo e alma, o que nos afeta, ainda diferente de

    saber como acontece, onde nos afeta e, acima de tudo, diferente de saber de nosso

    corpo e nossa alma. Isso o mesmo que dizer que a conscincia que temos de nosso

    corpo sempre menor do que aquilo que pode o nosso corpo e daquilo que sua

    natureza enquanto sendo constitudo por uma relao e sendo afetado por um encontro.

    Somos feitos da prpria mobilidade em si e navegamos na prpria incerteza em si. Em

    outros termos, dizemos que a tica a admisso de que no conhecemos imediatamente

    a multiplicidade que nos constitui, tampouco a multiplicidade dos encontros que

    estabelecemos e, menos ainda, a multiplicidade maior na qual estamos inseridos, a

    Natureza, a usina da vida. Por hora, apenas compreendamos que a Natureza a infinita

    e auto-poitica superfcie de produo da vida, cuja expresso se faz nas existncias.

    Ento, tica tambm a problematizao de nossa relao com a Natureza e,

    especialmente, com a multiplicidade.

    Todavia, h um ponto que consideramos muito caro para o entendimento da

    discusso tica: ela se difere muito claramente de uma discusso moral. Ora, na medida

    em que se parte desde sempre do no-saber dos encontros e do processo destes, tambm

    j se instaura a tica como um espao multiplicitrio de fluxo e circulao constante.

    Da, a lgica da tica o do no institudo, o do valor no assentado senso comum.

    Ento, a tica se difere de um sistema do juzo e do consenso. Ela no prescinde do

    problema do valor, mas exime-se deliberadamente do trabalho de ajuizar. Distinguimos,

    pois, o valor de um possvel juzo.

    Segundo Deleuze (cf. 1997, p.144) o juzo se confunde com a psicologia do

    sacerdote, que precisa e deseja julgar, mas tira este poder de julgar do pressuposto

    poder vindo da relao entre a existncia e a ordem do tempo. Esta relao suposta,

    sobre a qual este que ajuza deteria conhecimento, aquela em que o infinito figura-se

    como ordem ditada por Deus e a existncia posta como submetida a este ordenamento

    do infinito, segundo seu trajeto dentro deste ordenamento. O existente tem, ento, uma

  • 25

    dvida com Deus. O juzo nos lana o nome sobre as pginas de um livro autnomo,

    onde se inscrevem as dividas eternas com este infinito ordenado. (cf. ibidem, p.145)

    Trata-se, pois, de um sistema de contratos e tabelionatos, que asseguram em tabulas os

    princpios segundo os quais as existncias devem se distribuir, diz Deleuze (cf. ibidem,

    p.146), em lotes concedidos por deuses; lotes estes merecidos conforme a relao com a

    transcendncia divina e que destinam s existncias formas e fins orgnicos. Na mesma

    passagem, destaca Deleuze, que levada ao limite, a doutrina do juzo dissolve os lotes

    demarcados nos livros porque conquista um encerramento mais sofisticado das vidas,

    no qual cada existncia se loteia, se pune a si prpria, sem relao mais com a

    divindade.

    Vemos assim, que o juzo recai necessariamente sobre indivduos tornados corpos

    privados, propriedades de um sujeito endividado eternamente. Da, o corpo que se

    torna objeto de endividamento e culpabilizao, a partir do momento em que ele feito

    corpo formal de um sujeito e, ento, novamente recortado, conforme Deleuze (ibidem,

    p.148), em lotes orgnicos, rgos encerrados em sua utilidade, organizados conforme o

    poder divino de dividir e distribuir o infinito. Deus-mdico, Deus-psiclogo, Deus-

    padre, se tornam as figuras especialistas deste endividamento do corpo.

    Por outro lado, modulando de forma completamente distinta do juzo, temos a

    tica. A tica se substitui ao sistema de ajuizamento, na medida em que assume o

    problema dos valores, sem remet-los ou confundi-los com uma repartio de mritos e

    louvores dados aos indivduos. Posto que parte do insuspeito das relaes de corpos, a

    tica vem necessariamente lidar com a multiplicidade presente destas relaes. Ela vem,

    no para dividir a vida e inculcar dvida s existncias, mas para captar problemas,

    linhas tensivas que justamente constituem as relaes e encontros de corpos e, to logo

    as existncias. E falamos de linhas tensivas exatamente no sentido que j apresentamos:

    os encontros geram tenses, diferenas de potncia e poder, vibrao irredutvel de

    foras desejosas por acrscimo de mais fora. Se lembramos, ainda, que os encontros

    nos promovem modificaes sem que fatalmente sejamos capazes de apreend-las em

    toda sua fora, logo entendemos que existir e ter encontros ter essencialmente

    problemas sobre os quais nos debruarmos. Desta forma, o trabalho da tica o de

    expor-se tenso de foras constituinte das existncias. Ao contrrio do esprito moral

    do juzo, a tica no se salvaguarda da fora afetiva dos encontros e, por isso, sua

    atividade consiste em problematizar o peso ou a fora das foras, a sua potencia tensiva.

    Se bem entendemos, este jogo de pesos que se chamar de valor.

  • 26

    A tarefa tica a de problematizar e, portanto, de realizar uma crtica dos valores,

    os quais so elementos de onde partem as existncias, mas tambm que as existncias

    secretam (cf. DELEUZE, 2001, p.6). E a palavra secretar por ns usada aqui pode ter

    dois sentidos: o de produzir para expor e tambm o de levar como elemento secreto. As

    existncias trazem seus valores como seu segredo vital. No se trata, por outro lado, de

    submeter as existncias ou de desvend-las, mas de avaliar o seu valor, o seu peso, a sua

    fora tensiva. Diz Deleuze, que uma questo crtica, porque cada existncia ser um

    modo de vida que porta e tem valores que consonantes com sua fora, ou seja, a relao

    entre uma existncia e seus valore , ela prpria uma tenso, uma crise: a existncia no

    ocorre longe da crtica. Alm disso, a tica uma crtica porque estas foras, na medida

    em que produzem modos de vida, produzem diferenas e, portanto, nunca so neutras

    (cf. idem, p.10). Define Cardoso Jr. (2002, 190.) que os modos de vida so a contrao

    imanente dos elementos ou foras que compem um corpo. Em vez de impingir

    formas, organismos e lotes aos corpos, a tica, quando realiza sua crtica d

    existncias um valor, porque avalia, valora e um valor sempre mais uma fora, uma

    fora a mais. Neste sentido, dizemos que a tica favorece a incorporao de foras, d

    mais foras e, to logo, d um corpo. A crtica tica, portanto, fortalece, d um corpo de

    foras s existncias.

    Nas palavras de Deleuze a crtica tica sempre criadora (cf. DELEUZE, 2001,

    p.7), porque diferencia os valores, diferencia as existncias enquanto modos distintos de

    vida. Distinguir criar e criar tornar-se tico. Se a tica critica segundo os valores ela

    no o faz sem tambm criar novos valores. Por isso que crtica e julgamento, tica e

    moral se distanciam claramente. Eis, pois, o que a tica, isto , uma tipologia dos

    modos de existncia6 imanentes, substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existncia

    a valores transcendentes. (DELEUZE, 2002, p.29) A tica a avaliao do fluxo

    infinitamente varivel das relaes e encontros e, logo, no tem como assentar-se sobre

    princpios lgicos ou de conduta, preexistentes desde sempre (no infinito do tempo)

    (DELEUZE, 1996, p.153). Da ela operar necessariamente na imanncia dos encontros,

    segundo os valores e corpos a produzidos, nunca antes e nem depois deles. Ora, isso

    faz da tica uma arte extremamente precisa. Realizar uma crtica ser preciso quanto

    6 Aqui, preciso que distingamos a expresso modos de existncia daquilo que atualmente se chama,

    principalmente na medicina, de estilo de vida (life style). Estes ltimos se referem apenas a hbitos e formas de agir de sujeitos individuais e servem exatamente como material de um julgamento moral por

    parte dos mdicos e especialistas, que podem ser tambm dentistas, psiclogos, estilistas de moda,

    professores. No se trata, como no caso dos modos de existncia, de uma articulao assubjetiva de

    afetos, de percepes, de formas de agir, sentir, de maneiras de criar e fazer cultura.

  • 27

    diferenciao das existncias. Ser tico , ento, tambm uma forma de distribuio de

    valor. S que esta distribuio imanente, j que o pensar tico se produz no

    movimento e na complicao prpria dos encontros; no , pois, distribuio

    verticalizada, transcendente, como faz o juzo; no chuva divina que, caridosa e

    benevolente, rega as lavouras sedentrias; vento que percorre transversalmente a

    cavalgada nmade. A tica a arte da preciso diferenciante, no da generalidade

    homogenizadora: arte dos arqueiros.

    E diz ainda Deleuze, que se todo o caminho da tica se faz na imanncia, porque

    a imanncia o prprio inconsciente e a conquista do inconsciente (idem, p.35), ou

    seja, a tica a aposta num mundo inteiramente desconhecido, ainda por ser produzido.

    Fazemos nossas as palavras de Deleuze, quando diz: O que nos incomodava que,

    renunciando ao juzo, tnhamos a impresso de nos privarmos de qualquer meio para

    estabelecer diferenas entre existentes, entre modos de existncia, como se a partir da

    tudo se equivalesse. (DELEUZE, 1996, p.153) Enfim, enquanto a tica distingue no

    tempo dos acontecimentos, a moral apenas iguala na eternidade de um mundo morto.

    O juzo impede a chegada de qualquer novo modo de existncia (idem) e por isso

    que ela inspira asco e faz enxergar nela uma profunda covardia.

    Deleuze esclarece, assim, que a tica desarticula o sistema do julgamento. A

    oposio dos valores (Bem/Mal) substituda pela diferena qualitativa dos modos de

    existncia (bom/mal). (DELEUZE, 2002, p.29) preciso ter em conta aqui, que valor,

    num sentido para alm de bem e mal muito diferente do sentido de princpio, que

    costuma receber quando ainda est dialeticamente preso entre bem e mal. S quando

    entendido segundo um olhar moral que os valores se tornam princpios e, desde ento,

    leis, deveres, os quais, s podem ser obedecidos ou violados. E obedecer no ainda

    compreender, no problematizar e diferenciar. Por isso que os ditos homens de bem

    dificilmente so bons: eles obedecem aos princpios e mandamentos, mas sempre ao

    preo de corromperem as relaes naquilo que elas so mais caras, as foras e o poder

    de expressar a vida das foras. Ora, no possvel sustentar o bem sem naturalmente

    carregar na valise o mal contra o qual se quer jogar, no possvel ser um homem

    correto sem que antes j se tenha julgado a si prprio um pecador, criminoso, torto. Por

    isso mesmo que Deleuze ainda destaca neste trecho que h uma diferena de natureza

    entre o conhecimento e a moral. A lei, moral ou social, no nos traz conhecimento

    algum, no d nada a conhecer. (idem, p. 30) Diferena qualitativa ao invs de

    oposio bem/mal impositiva. O conhecimento, acrescenta Deleuze, a potncia

  • 28

    imanente que determina a diferena qualitava dos modos de existncia bom/mau.

    (ibidem, p. 31)

    que se as existncias, segundo a moral, so determinadas a serem benevolentes

    ou maldosas, a partir da tica, elas podem multiplicar aberturas existenciais, que lhes

    traro bons ou maus encontros. Nietzsche diria, no lugar do valor escravo bem e mal

    podemos viver sobre valores nobres bom e ruim, sendo o bom aquilo que fortalece e

    promove um modo de vida. Sustentando-se na tica, as existncias no so lotes, mas

    modos, maneiras, estilos e, desde ento, podem ser bons ou maus, conforme apenas a

    mobilidade de seus encontros. So os encontros e suas diferentes potncias trazidas aos

    corpos que podem ser ditos bons ou maus, na medida em que, respectivamente, sejam

    compositores ou decompositores das relaes.

    Mas, se nossa conscincia a respeito dos encontros e de nosso corpo sempre

    pfia, como saber se eles so maus ou bons? Estranhamente, este conhecimento vem

    pela mesma precariedade que temos nestes encontros. que os encontros entre os

    corpos produzem afetos e estes so justamente os fragmentos de realidade que nossa

    conscincia recolhe daquilo que acontece ao nosso corpo. Os afetos produzidos nos

    encontros podem nos trazer uma clara sensao de elevao ou reduo daquilo que

    podemos, de nossa fora de existir. Assim, quando h uma composio de relaes, ou

    seja, quando se forma um terceiro corpo que capaz de fortalecer, dar mais fora, aos

    corpos encontrantes, ento a h um bom encontro. Se, de modo oposto, os encontros

    reduzem a quantidade de foras que podem ser apropriadas pela relao formada pelos

    corpos e pelas suas caractersticas relaes constituintes, da diz-se que o encontro foi

    mau. O bom encontro produz, multiplica e, logo, diferencia, transforma as relaes; o

    mau encontro as desfaz, as limita, divide suas foras.

    O grande detalhe aqui que estes sentidos de aumento de fora ou diminuio so

    sensaes que aparecem conscincia, so os afetos: os mesmos pedaos de realidade

    que nos pem sob a ignorncia so os que, por outro lado, j trazem elementos

    fundamentais para que comecemos o trabalho tico de distinguir para construir a

    existncia sobre foras que nos alimentem. Ora, estas sensaes so as chamadas

    paixes tristes ou alegres, conforme sejam decorrentes, respectivamente, de uma

    reduo ou multiplicao das foras. Se uma existncia se torna capaz de recolher da

    vida foras que lhe servem de alimento e, assim, lhe fortalecem, aumentando por

    consquencia os afetos alegres, ento ela pode ser dita boa. Quer dizer, ela dita boa

    conforme uma crtica tica, uma avaliao do valor fortivo dos encontros. , portanto,

  • 29

    a valorizao das paixes alegres que baseia a tica. A tica necessariamente uma

    tica da alegria: somente a alegria vlida, s a alegria permanece e nos aproxima da

    ao e da beatitude da ao. (ibidem, p.34) Quer dizer, s a alegria nos traz valor, nos

    torna capaz de avaliar, de realizar a crtica tica. A alegria a flecha dos arqueiros

    nmades. Seu arco a abboda de um universo feito de novos valores; seu tiro, sempre

    disparado montado sobre o lombo de um cavalo cavalgante, percorre uma imensa

    plancie, cujo solo feito de um gramado sem comeo e nem fim. A corda do arco a

    tenso de cada encontro e vem ter a medida precisa requerida para derrubar o gado

    moral. A flecha-alegria deve conseguir fazer o mugido do rebanho moral silenciar,

    precisa transpassar o grosso e insensvel couro das vacas moralistas. Como dizem

    Guattari e Deleuze, os afetos so armas e armas de uma artilharia precisa.

    Por outro lado, so os moralistas, aqueles que pensam ser possvel fundar a

    existncia em obedincia pura, os promotores de paixes tristes, diz Deleuze (cf.

    ibidem, p. 31). O escravo, o tirano e o padre... trindade moralista. So estes que

    desejam que a vida deva modelar-se a princpios transcendentes, so estes que, deste

    modo, foram as existncias a viverem tristezas, de modo a impedirem uma seleo das

    alegrias e bons encontros. A moral modo de existir que quer subtrair-se da vida e seu

    movimento produtivo, porque s estabelece como possvel a vida afeita s normas

    divinas. Pela moral, as existncias seriam todas tristes, incapazes de tomar mais foras,

    encorpar-se. No sem motivo so as existncias morais as que mais odeiam uma relao

    alegre e saudvel com o corpo, so as que mais maldizem os fluxos e encontros dos

    corpos, fazendo ode a uma vida terica, metafsica, somente espiritual. Conforme

    Deleuze, afinal, a vida no uma ideia, uma questo de teoria, mas uma maneira de ser.

    (cf. ibidem, p.19)

    Ao estabelecer normas ordinrias, a moral segura a multiplicao da vida, a

    potencializao das existncias, a alegria, porque pretende reinar e impor-se toda vez

    que estas existncias transbordam em novas foras. Numa existncia moral, a vida est

    envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mrito, do pecado e da

    remisso. (ibidem, p.32) E a maneira moralista de condenar a vida exatamente

    fazendo justia em nome da igualdade, produzindo encontros nos quais, por sofrerem

    uma limitao, os corpos so relegados a sentir tristeza.

    Diante disso, a crtica tica vem como uma verdadeira prtica, que consiste

    precisamente em denunciar tudo que nos separa da vida, todos esses valores

    transcendentes que se orientam contra vida... (ibidem) Denunciar toda forma de

  • 30

    entristecimento como sendo produto de maus encontros, de formas tiranas de existncia.

    A questo toda que, esclarece Deleuze, as paixes tristes, justifiquem-se como se

    justificarem, representam o grau mais baixo de nossa potncia, de nossa capacidade de

    produzir, de nos relacionarmos. Neste sentido, a tica inseparvel tambm de uma

    poltica e de uma esttica, isto , de um modo de gestar as foras e de um modo de

    express-las, de um modo de articular-se pela selva de foras da vida e de fazer-se sentir

    nesta selva.

    A, marca-se outra diferena de base entre tica e moral. No h tica que no

    admita que so possveis e desejveis inmeras alegrias, que no se faa positivao da

    multiplicidade de encontros na existncia, que no admita um infinito nmero de modos

    de vida e que, ento, no consolide aos corpos como sendo uma pluralidade de foras

    irredutvel ao saber que deles temos. Enquanto a tica nunca nica, isto , ela s pode

    se realizar realmente em ticas plurais, a moral, ao contrrio, s pode se assentar sobre a

    idia de unidade, de soberania desptica.

    Assim, fechamos esta primeira pincelada a respeito da tica, sintetizando seus trs

    elementos crticos e propositivos que Deleuze destaca: o materialismo, o imoralismo e o

    atesmo (de Spinoza). Primeiro, fala-se de um materialismo tico, porque no se pode

    ser tico longe dos encontros dos corpos, de sua dinmica incerta e cambiante, de sua

    materialidade. So os encontros dos corpos a realidade primeira da tica. Em segundo

    lugar, a tica se distingue da moral e a supera, uma vez que procura conhecer estes

    encontros, diferenciando-os, criando modos de pensar crticos, colocando novos valores,

    os quais legitimem a fora dos corpos e suas relaes. Por ltimo, a tica se faz como

    uma espcie de atesmo, porque despreza toda forma de transcendncia e tbua de

    princpios que possam ser tomados como reguladores da vida. A tica no quer ajuizar a

    vida, nem fazer das existncias principados ordenados por divindades eminentes. Ela

    modo de avaliao das existncias.

    O materialismo se expressa na legitimao da realidade dos encontros dos corpos

    como nvel no qual as existncias se fazem afeitas vida ela prpria; o imoralismo se

    perfaz na avaliao destes encontros como bons ou maus, a partir da constituio das

    capacidades de conhec-los na imanncia e de, da mesmo, criar valores, diferenciar

    modos de existncia; o atesmo se realiza, por sua vez, pela qualificao das paixes em

    alegres ou tristes, segundo uma valorizao das paixes alegres entendidas como

    decorrentes de uma vida forte, capaz de transbordar em fora, indiferente ao julgo de

    um deus ou leis tiranos.

  • 31

    Mas, alm disso, aos trs elementos ticos descritos por Deleuze, gostaramos de

    acrescentar mais um: o coletivismo. Ora, se o juzo moral s age loteando as

    existncias, individualizando os crimes e mritos, se a transcendncia apenas pode algo

    quando inculca castigos e leis sobre sujeitos e obedincias isoladas, se s tornando o

    esprito uma substncia solitria dentro de um corpo fechado o idealismo pode maldizer

    os encontros, por outro lado, a tica vem afirmar um certo modo de coletivismo como

    lmina que vem sangrar estes trs princpios morais. A mistura dos corpos, o fluxo

    irrefrevel das paixes a transformadas, a positivao da alegria como paixo

    decorrente dos bons encontros entre corpos, a avaliao que diz to somente sobre os

    encontros e relaes ao invs de recair sobre indivduos -, o pensamento sendo

    colocado a conhecer as relaes e no os sujeitos -, a crtica sendo feita na

    multiplicidade essencialmente constituinte da imanncia, a criao de valores que se faz

    sobre as existncias enquanto modos: tudo isso j supe um coletivismo ligado

    profundamente tica. Coletivos de foras, de modos, de paixes, de alegrias, de modos

    de existir, de corpos, de encontros, de relaes e de vidas. A tica multiplica, critica

    multiplicando; a moral s pode isolar e tornar solitrias as existncias.

    A diferena final entre tica e moral , ento, que a tica confia inteiramente na

    fora da vida em produzir existncias e encontros alegres, enquanto a moral no passa

    de uma profunda desconfiana em relao vida. E esta confiana na vida tambm

    uma profunda confiana na multiplicidade, a afirmao de que s podem existir ticas,

    no plural, s pode haver tica quando se deseja que a vida se multiplique em uma

    irredutibilidade das maneiras de existir.

    Trgico e dionisaco: alegria de destruir, alegria de criar

    Deste modo, importante, agora, que compreendamos os conceitos de trgico e

    de dionisaco, os quais entraro como pea transversal de articulao de toda

    maquinaria conceitual de nosso texto.

    Em primeiro lugar, talvez no devamos dizer que se trata de dois conceitos, mas

    de um s, com duas faces. Ou, ento, so dois conceitos mesmo, mas inseparveis.

    Acima de tudo, so conceitos inseparveis da vida. Assim, poderamos quem sabe dizer

    que se trata de conceitos que promovem a reconexo da Filosofia com a vida, questo

    que Deleuze tanto valoriza.

  • 32

    O trgico: a luta afirmativa

    Bem, Nietzsche, logo no incio de Nascimento da Tragdia, seu primeiro livro, se

    indaga a respeito do valor da existncia e da relao entre sofrimento e vida; da,

    elabora uma pergunta fundamental: H talvez um sofrimento devido prpria

    superabundncia? (NIETZSCHE, 2007, p.12) Segue, ento, dizendo que este

    sofrimento adviria da necessidade que certos tipos de vida tm de colocarem prova a

    sua fora. importante que destaquemos aqui a agudeza dessa indagao sobre a

    relao entre vida e valor, que Nietzsche traz em sua obra inaugural. Podemos

    compreender que a colocao do problema do sofrimento na existncia e a sua ligao

    direta com o que valora a vida no exatamente a questo. Em outros termos, no a

    dor que precisa ser tomada como ponto de valorao da vida, mas o tipo de dor e o tipo

    de vida a que ela est ligada. preciso que esta pergunta aparentemente religiosa e

    crist seja coloca a partir de uma mirada no-crist, no-religiosa e, to logo, amoral e

    tica.

    Pensando com Deleuze, vemos que, tendo tal questo em pauta, trata-se sempre

    de distinguir o mais claramente possvel duas possibilidades de ponto de partida para

    sua resposta. Por um lado, se tem a possibilidade de encontrar um meio para provar a

    injustia da existncia, mas ao mesmo tempo como de um meio para lhe encontrar uma

    justificao superior e divina. (DELEUZE, 2001, p.32). A vida, neste primeiro

    posicionamento que se tem diante dela, seria feita um algo a ser explicado. Tomada de

    antemo como objeto dividido de seu movimento prprio, a vida se tornaria um

    fenmeno moral e religioso. No mesmo trecho, Deleuze continua dizendo que parece

    e reiteramos, apenas parece - ser generosidade com a vida torn-la justificada a partir do

    empreendimento de um crime contra os deuses e de uma posterior expiao deste crime.

    Seria a posio titnica, pr-crista, que corresponde a mitos nos quais um tit rouba ou

    macula algum poder dos deuses e, por conta disso, depois castigado. como se a vida,

    ao desenrolar-se na existncia, fosse carente de fora ou movimento prprio se no

    estiver submetida ou atacada de alguma maneira e se, em seguida, no for absolvida e

    reparada. Mas, diz Deleuze, uma maneira sutil de a depreciar, de a tornar passvel de

    um juzo (idem, p.33). Nas palavras deleuzeanas, Nietzsche diferencia de modo

    obscuro isto que a titanizao da existncia daquilo que a maneira crist de colocar a

    existncia sob o juzo de Deus. Na concepo crist, esclarece Deleuze, a existncia ,

    desde o incio culpvel e responsvel, enquanto para os gregos titnicos ela apenas

    culpada, na medida do crime que cometido e depois reparado.

  • 33

    , pois, Nietzsche que fala dos mestres da finalidade da existncia

    (NIETZSCHE, 2012, p.50), figuras messinicas e gurus, os quais sempre criam

    finalidades para a existncia e para a vida, ignorando que elas correm necessariamente

    e por si, sempre e sem nenhuma finalidade. So os tipos de homens que, de tempos em

    tempos, aparecem para criar uma nova moral, para a partir dela se poder dizer Sim,

    vale a pena viver! sim, vale a pena que eu viva! (idem, p.52). Nietzsche fala a dos

    inventores de motivaes e razes razo, entendamos, tanto no sentido de

    racionalidade, quanto no de justificao para a existncia e para a vida. Ora, bem

    distingue Ferraz (1994), que esta a forma de trgico - escrito com aspas -, mas no a

    forma do trgico - sem aspas - propriamente nietzschiano. Na forma crist de justificar a

    vida, diz Nietzsche (2012, p.142), sempre se trata do pecado esta noo que, segundo

    o filsofo, inveno judia - e de suas consequncias sobrenaturais e no daquelas

    naturais. To logo, na existncia, tudo deformado de modo que o que seja natural

    a indignidade em si. A, parece-nos que Nietzsche esclarece a diferena que v entre

    cristos e gregos. Para estes seria claro que mesmo o delito poderia ser digno. Um

    exemplo disso, cita Nietzsche, seria o mito de Prometeu, o qual teria roubado o fogo dos

    deuses e dado aos homens, trazendo-lhes sabedoria.

    Problematizando a mesma temtica em outro aforismo (cf. p.135) Nietzsche

    coloca que elaboramos, diante da vida, artigos de f que nos suprem de causas e

    efeitos para tornar suportvel o viver e, no entanto, esta suportabilidade conquistada na

    vida no seria prova alguma de pertinncia ou verdade destas invenes. Ora, a j

    percebemos que, de todo modo, se sente um grande perigo na existncia, isto , sabe-se

    subliminarmente que a vida traz algo muito grande, desmedido, fervilhante e violento,

    que toma a existncia como objeto de um incessante desfazimento, de uma assustadora

    e insistente transformao. Os artigos de f e as finalidades a se encontrariam como

    forma de abafar e arrefecer esta constante ameaa de destruio. So sempre casos em

    que a existncia tomada como objeto de uma explicao, partindo-se de um esprito de

    desvendamento, seja a partir de mitos titnicos, seja atravs de morais religiosas.

    Conforme Deleuze (2001, p.35), porm, tanto no caso grego, quanto no cristo,

    trata-se de um mesmo instinto de depreciao e vingana contra a vida. O cristianismo

    seria uma espcie de sofisticao maledicente desta imperfeio colocada sobre a

    existncia desde a poca pr-crist. Embora efetivamente variantes ambas no

    escapariam a uma piedosa interpretao da existncia. Nos dois casos, se pressupe

    que a existncia seja um erro a ser corrigido: ela deve ser tutelada, tratada como criana

  • 34

    e ortopedizada. A existncia precisa se tornar verdadeira; a exigncia da verdade se

    torna agiota da vida. Ou um deus toma sobre si a responsabilidade da loucura que

    inspira os homens, ou os homens so responsveis pela loucura de um Deus que se

    crucifixa, as duas solues no so ainda suficientemente diferentes,... (idem, p.36) E

    mesmo a cincia, em certos aspectos, seria tambm secretora destas sempre renovadas

    finalidades para a existncia, estas causas e efeitos acalentadores.

    Todavia, se inevitavelmente se pressente que a vida traga ela mesma algo de

    assustadoramente poderoso e feroz - ou seja, que ela transborda em fora -, nem por isso

    ela atua contra a existncia. Ora, tudo o que se convoca para acertar a existncia j

    supe uma forma de apreender e interpretar a vida e suas foras e j supe, por outro

    lado, uma separao entre a vida e a existncia. A que aparecem as formas

    pessimistas de olhar para a existncia, dentro das quais esto a moral crist e o mito

    titnico, segundo o olhar deleuzeano.

    Diante do fato de que a existncia inseparvel da vida e de que s pelo artifcio

    de uma moral se possvel torn-la justa, igualitria e equvoca aqui, tanto no sentido

    de erro, quanto no de equiparvel -, Nietzsche (2007, p.12) faz a mesma pergunta de

    outro modo. H um pessimismo da fortitude? Quer dizer, haveria uma forma de se

    tomar o sofrimento e a dor produzidos pelo mergulho da existncia na vida sem

    amaldio-los e sem ajuiz-los meritosos ou condenveis? O que compreendemos que

    Nietzsche pe em dvida aqui se todo o sofrimento equvoco, isto , tem o mesmo

    sentido e, afinal, o sentido de erro da existncia. Em outras palavras, a questo colocada

    se, dado o sofrimento, possvel t-lo como resultado de uma existncia transbordante

    e superalimentada de vida. Compreendemos que talvez seja este um aspecto essencial

    do que se chama de trgico em Nietzsche. Aqui trazemos Ferraz (1994, p.97) em seu

    destaque de que, para Nietzsche, no a penria e sim a abundncia que reina na

    natureza. A indagao trgica essencial seria, ento, a possibilidade de tomar o

    sofrimento na existncia como efeito positivo de uma abundncia de foras da vida que

    injustificadamente, ou desde sempre justamente, so inerentes vida.

    Haveria, pois, uma outra maneira de se perguntar sobre o valor da existncia e,

    com isso, da vida. Desta vez, se trataria de inocentar a existncia, de faz-la

    irresponsvel e, logo, indiferente ao louvor e censura. Assim, no haveria motivo para

    tornar a existncia endividada, faltosa. Deleuze (2001, p.36) quem diz, a questo no

    : a existncia culpada responsvel ou no? Mas a existncia culpada... ou

    inocente? Mais adiante, complementa: A inocncia o jogo da existncia, da fora e

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    da vontade. (idem, p.38). E diz ainda Nietzsche (2008, p.372), que a punio no

    purifica, pois o crime no suja. Aqui a vida j estaria livre da ideia de crime, pecado ou

    injustia a ser consertada. No se haveria mais de coagir a vida, forando-a a ser

    bondosa segundo finalidades impostas existncia.

    A, trata-se de uma tenso permanente entre a dor que se vive e a possibilidade de

    convert-la em outra coisa, sem neg-la, sem torn-la essencialmente m e pecaminosa,

    ou criminosa. Uma vez que, como j expusemos, a vida inseparvel de uma violenta

    luta entre as foras que a constituem, ela tambm sempre possibilidade de

    metamorfose e criao. O que constitui, pois, o aspecto central do trgico, este

    pessimismo da abundncia, ou seja, esta apreenso muito mais delicada e sensvel de

    que o sofrer advm de uma terrvel fora de transformao que a vida impe

    impiedosamente como luta. Pessimismo porque admite a inevitabilidade da destruio,

    do fim, da severidade da vida. Mas pessimismo da fortitude porque j sente as dores

    elas mesmas como foras vitais constituintes, elementos de uma vida forte; no mais

    quer explicar e acertar as contas com as foras vitais, com seu poder de tomar mundos e

    destitu-los da segurana do equvoco, este assentamento no valor do mesmo e da

    imputao de erro. Trata-se, agora, de encarar as dores como sendo foras, produto da

    luta das foras por se estabelecerem como realidade. Onde h tenso h luta, risco,

    indeterminao e abismo. (BAIOCCHI & PANNEK, 2007, p.54)

    Lembremos que, ao falar da relao entre vida e sofrimento, Nietzsche sempre se

    refere a um grau de sensibilidade dor (NIETZSCHE, 2007, p.15 e 2009, p.52), que

    aumentam ou diminuem dependendo das culturas e tipos de existncia. Especialmente

    nos gregos, Nietzsche diz haver um grau elevado de sensibilidade dor, isto , uma

    tendncia a sentir as aes dos movimentos das foras da vida como sofrimento. Porm,

    justamente este grau de sensibilidade que teria feito com que os gregos produzissem

    este sentido essencial do trgico (NIETZSCHE, 2007, p.15): simultaneamente e no

    dialeticamente um pendor para a alegria, para a festa, para o belo e claro, e tambm

    uma tendncia a se fortalecer com a vivncia do terrvel, do maligno, feroz e violento; a

    necessidade de experimentar na existncia o paradoxo mais inelutvel da vida: a ao de

    suas foras que so to imediatamente e concomitantemente destruidoras e criadoras.

    Ferraz (1994, p.120), quanto a isso, diz exatamente que a chave da noo de trgico est

    associada a um sentimento exuberante de vida e de fora. Por isso que Nietzsche

    tambm diz, em muitas passagens, ser a dor um grande estimulante da vida, algo que

    acompanha toda felicidade (como em NIETZSCHE, 2009, p.52 e 2005, p.253). Mais

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    adiante, Ferraz tambm marca muito bem que no a culpa que est no fundo da vida,

    funcionando como alavanca do sentido de trgico (cf. p.121). Nas palavras da autora,

    tambm por isso, h uma rejeio em Nietzsche da ideia de arte trgica como catarse

    purificadora. Ao invs de ver na produo artstica trgica um processo de e