Simao Marrul
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CRISE E SUSTENTBILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS
DISSERTAO DE MESTRADO SIMO MARRUL FILHO
UnB/CDS
Braslia, abril de 2001
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UNIVERSIDADE DE BRASIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL
CRISE E SUSTENTABILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS
SIMO MARRUL FILHO
ORIENTADOR: MARCEL BURSZTYN
DISSERTAO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL
BRASLIA, ABRIL DE 2001
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL
CRISE E SUSTENTABILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS
SIMO MARRUL FILHO
Dissertao de Mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel da
Universidade de Braslia como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de Mestre
em Desenvolvimento Sustentvel, rea de concentrao Poltica e Gesto Ambiental, opo
Profissionalizante.
APROVADO POR:
Prof. Dr. MARCEL BURSZTYN
ORIENTADOR
Prof. Dr. BRULIO FERREIRA DE SOUZA DIAS
MEMBRO EXTERNO
Prof. Dr. ANTNIO CSAR PINHO BRASIL JUNIOR
MEMBRO INTERNO
BRASLIA, 24 DE ABRIL DE 2001
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MARRUL FILHO, Simo
Crise e Sustentabilidade no Uso dos Recursos Pesqueiros./Simo Marrul Filho Braslia: Universidade de Braslia, Centro de desenvolvimento Sustentvel. 2001. 107p. (Dissertao de Mestrado de Gesto e Poltica Ambiental. 2001; CDS 038m)
Inclui bibliografia
1. Recursos Pesqueiros 2. Sustentabilidade 3. Regulao I. Universidade de Braslia, Centro de Desenvolvimento Sustentvel. II. Ttulo CDU
concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias dessa
dissertao e emprestar ou vender tais cpias somente para propsitos acadmicos e cientficos. O
autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte dessa dissertao de mestrado pode ser
reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.
Simo Marrul Filho
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Aos meus pais, Simo (in memorian) e Zinomar, sabendo que um presente infinitamente pequeno frente ao presente que me deram: a vida;
Edenia, Indira e Daniel, que compreenderam minha ausncia, compartilharam com o ideal e incentivaram com o sorriso amigo, a palavra carinhosa e o amor dedicado.
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Boaventura Souza Santos, ao explicitar seu guio sobre o saber e a ignorncia, afirma que
uma vez realizada a ruptura epistemolgica entre o conhecimento cientfico e o senso comum, ato
revolucionrio praticado pela cincia moderna, chegou o momento de um novo ato epistemolgico
mais importante: romper com a cincia moderna e fazer com que o conhecimento cientfico se
transforme em um novo senso comum. Para isso preciso criar saberes contra o saber e contra os
saberes, contra-saberes. Crendo que o CDS um espao que permite buscarmos tal nova ruptura,
agradeo aos professores, funcionrios e colegas de turma por terem me feito participar desta utopia.
Agradeo, em especial, Ao Prof. Marcel Burzstyn, que na viagem desta utopia me dedicou
muito mais do que algumas de suas preciosas horas. Proporcionou-me, em seu processo muito
particular de orientao, o encontro de saberes na busca da construo de um contra-saber.
Aos amigos Dias, Elsio, Lia, Norma, Patrcio, Quintas e Vitria, um agradecimento
carinhoso por terem sido leitores crticos e praticado com sabedoria o afirmar sem ser cmplice,
criticar sem desertar topos fundamental do guio saber e ignorncia de Boaventura Souza Santos.
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Resumo
Ultrapassando as estruturas conceituais da cincia pesqueira, sem no entanto
desconsidera-las, este trabalho analisa as causas da sobreexplotao que hoje atinge os principais
recursos pesqueiros.
Procede a uma reviso bibliogrfica que aponta o excesso de capacidade pesqueira como
causa primeira da crise de sustentabilidade por que passam os principais recursos pesqueiros
mundiais e brasileiros.
Incorpora outros marcos analticos para considerar que a raiz primeira de tal crise se
encontra no processo de regulao do uso dos recursos pesqueiros e sua insuficincia, e na reduo
do conceito de sustentabilidade ao de captura mxima sustentvel, em particular no Brasil
Partindo do princpio que a anttese da insuficincia de regulao no a
desregulamentao e sim a re-regulao, prope que este novo processo seja desenvolvido a partir de
um modelo institucional constitudo de espaos comunicativos, onde Estado e usurios dos recursos
pesqueiros possam negociar seus objetivos e projetos de forma democrtica e participativa, e tenha o
conceito pleno de sustentabilidade como vetor instituidor de uma nova ordem no uso dos recursos
pesqueiros.
Palavras-chave: Recursos Pesqueiros; Sustentabilidade; Regulao.
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Abstract
This dissertation analyzes the causes of overfishing of the main fishery resources, by
pushing forwards the existing conceptual structures without denying its fundaments.
A bibliographical review shows an exceeding fishing capacity as the first cause of the
sustainability crisis of world (and Brazilian) fishing resources..
The dissertation aggregates other analytical frameworks in order to consider that the
main causes of the crisis is in the use regulation process of fishery resources and in the reduction of
the concept of sustainability to the one of maximum sustainable yield, particularly in Brazil.
Assuming that the antithesis of insufficient regulation is not deregulation but re-
regulation, the dissertation proposes the development of a new process, based on a new
institutional model. In this process, State and fishery resources users can negotiate their objectives
and projects in a democratic and participatory way. Furthermore, this process must adopt the
concept of sustainability in a full way, as founder of a new fishery resources use order.
Key words: Fishery Resources; Sustainability; Regulation
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NDICE
Resumo _________________________________________________________________ vii
Abstract _________________________________________________________________ viii
INTRODUO ___________________________________________________________ 2
PRIMEIRO CAPTULO - A CRISE: A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS_____________________________________________________________ 6
1 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE A PESCA E A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS EM ESCALA PLANETRIA ______________________________ 7
2 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O MODELO DE DESENVOLVIMENTO PESQUEIRO NO BRASIL ______________________________________________________ 12
3 - A FACE MAIS VISVEL E AMEAADORA DA CRISE ____________________________ 26
4 - UMA PERGUNTA INCMODA, DE DIFCIL RESPOSTA ________________________ 27
5 - ALGUMAS EXPLICAES COERENTES, PORM... INSUFICIENTES_____________ 27
SEGUNDO CAPTULO EM BUSCA DE UM OUTRO OLHAR__________________ 32
1 - ...A REGULAO TEM SEU LUGAR... ________________________________________ 34 1.1 - ...PELO CARTER DE RELAES SOCIAIS DAS PESCARIAS... _________________________ 34 1.2 - ...PELO CARTER AUTODESTRUTIVO DO CAPITALISMO... ___________________________ 35 1.3 - ...PELA RELAO ESTABELECIDA ENTRE PROPRIEDADE ESTATAL E APROPRIAO PRIVADA DOS RECURSOS PESQUEIROS_______________________________________________ 36
2 - ... PORM EXERCIDA DE MANEIRA INSUFICIENTE ... ______________________ 44 2.1 - ... DEVIDO REDUO DA FUNO DE REGULAO..._____________________________ 44 2.2 - ... DEVIDO AO ESTADO ... _______________________________________________________ 45 2.3 - ... DEVIDO AO MERCADO ... _____________________________________________________ 46 2.4 - ... DEVIDO COMUNIDADE ... ___________________________________________________ 48
TERCEIRO CAPTULO BASES PARA UMA REGULAO "SUSTENTABILISTA" NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS ____________________________________ 50
1 - DE QUE SUSTENTABILIDADE SE FALA ______________________________________ 51 1.1 - AS MLTIPLAS NOES DE SUSTENTABILIDADE __________________________________ 56 1.2 - AS MLTIPLAS DIMENSES DA SUSTENTABILIDADE_______________________________ 59
2 A SUSTENTABILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS ________________ 65
CAPTULO QUARTO - A TTULO DE CONCLUSO: UM NOVO CONTRATO OU RE-REGULANDO O USO DOS RECURSOS PESQUEIROS _____________________ 72
BIBLIOGRAFIA __________________________________________________________ 86
APNDICE I ____________________________________________________________ 92
APNDICE II____________________________________________________________ 96
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INTRODUO
No so poucos os pensadores que afirmam que a humanidade vive uma crise
civilizatria cuja dimenso, nos dizeres de Bartholo Jr. (1985), (...) pode ser bem retratada na
radicalidade de seu risco maior: por primeira vez somos confrontados com a possibilidade de
destruio de toda a Humanidade e toda forma planetria de vida, como conseqncia de atos
humanos..
Tambm, no so poucos os que com esse autor consideram que tal risco no se encerra
na possibilidade terrvel do holocausto nuclear. Ameaas de igual gravidade, porm cujos efeitos se
fazem sentir no longo prazo, so encontradas no conjunto das intervenes humanas que produzem,
entre outros efeitos deletrios ao meio ambiente, o esgotamento dos recursos naturais, mesmo
aqueles considerados renovveis.
Desta forma, concordo novamente com Bartholo Jr. (1985), quando ele afirma que O
vetor dinmico desse processo a busca de um crescimento irrestrito da produo material de
valores de uso (...), para satisfazer a (...) insaciabilidade das necessidades econmicas, pretensamente
inerente prpria natureza humana.
Nesse quadro insere-se a crise de sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros. Seus
sinais visveis e inequvocos se mostram na sobreutilizao sem precedentes, na histria da
humanidade, dos estoques pesqueiros mundiais, inclusive os brasileiros.
Perceber a existncia de tal crise pelo marco analtico da biologia pesqueira no tarefa
das mais complicadas, mesmo no se possuindo informaes estatsticas precisas, como o caso do
Brasil.
Porm, h tempo uma situao me inquietava. No me satisfazia o entendimento de que
a aplicao rigorosa das normas de uso, produzidas pela melhor cincia biolgico-pesqueira, apoiada
pelo maior esforo fiscalizador possvel, fosse suficiente para gerar sustentabilidade no uso dos
recursos pesqueiros. Faltava-nos, no entanto, o conhecimento de outros marcos tericos capazes de
nos fazer perceber o que era necessrio sustentabilidade. Faltava-me a viso de que "(...) a natureza
a segunda natureza da sociedade e como sociedade de segundo grau que deve ser estudada..."
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(Santos, 1996) para que assim pudesse buscar nos fenmenos sociais a raiz da crise de
sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros.
O Centro de Desenvolvimento Sustentvel, da Universidade de Braslia, ao oferecer o
Mestrado em Desenvolvimento Sustentvel, com sua proposta pedaggica e de gerao do
conhecimento pela interdisciplinariedade proporcionou-me a oportunidade para uma nova
formulao pessoal.
E, assim, sem desprezar o olhar das cincias naturais, necessrias, porm insuficientes, o
objetivo principal que inspirou esta dissertao foi contribuir para a construo de um outro olhar
sobre a crise, talvez mais amplo que aquele, envolvendo-o, e dessa forma participar da construo de
um outro futuro possvel para as pescarias.
Analisei a crise de sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros apenas sob a tica das
atividades pesqueiras. Tal fato no demonstra meu desconhecimento de que outras aes antrpicas
impactam os recursos pesqueiros. Simplesmente, parti do princpio de que no caso brasileiro no so
elas as principais causadoras da depleo nos estoques, embora em alguns pontos isolados do litoral
isso possa vir a acontecer. Por outro lado, no levei em considerao os fenmenos globais
causadores de perturbaes e degradaes ambientais (por exemplo, mudanas climticas), por no
encontrar na literatura bases de apoio.
Restringi-me s pescarias marinhas. Isso no significa que atribuo uma menor
importncia aos pescadores de guas continentais e sua pescarias. Apenas tomei como base o dito
popular o hbito faz o monge, ou seja, minha experincia profissional, que se construiu
basicamente com pescadores e pescarias de ambientes marinhos.
Corri um risco: analisei as pescarias como se elas fossem um todo homogneo. No o
so. No entanto, o so os fundamentos para a gesto, o que me permitiu question-los como um
todo.
Acredito que mesmo sem nenhuma referncia explcita aos principais diplomas de
regulao internacional que tratam da sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros, entre eles a
Conveno das Naes Unidas para o Direito do Mar, a Conveno das Naes Unidas sobre a
Diversidade Biolgica e o Cdigo de Pesca Responsvel, da Organizao das Naes Unidas para a
Agricultura e Alimentao FAO, seus princpios fundamentais esto incorporados ao texto.
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A metodologia utilizada nesse trabalho se constituiu de levantamento e anlise
bibliogrfica, principalmente de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Substitumos uma
possvel pesquisa de campo (acredito que sem cometer um srio erro metodolgico), pela
recuperao da vivncia que tive com a gesto dos recursos pesqueiros no Brasil, acumulada durante
os vinte e cinco anos em que, ora como tcnico, ora como dirigente, trabalhei nas trs instituies
do poder pblico responsveis pela questo. Mesmo assim, algumas hipteses e dvidas foram
testadas em entrevistas no estruturadas com dirigentes de organizaes de pescadores de pequena
escala, empresrios e armadores de pesca, alm de tcnicos do Instituto Brasileiros do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis IBAMA.
No Primeiro Captulo, tentarei mostrar a existncia da crise e seus contornos. Destacarei
que a sobrecapitalizao a face mais visvel de tal crise para, em seguida, transformar em uma
incmoda pergunta, de difcil resposta, uma afirmativa feita por Diegues (1983): A pesca contm em
si o germe de sua prpria destruio? Apresentarei finalmente um conjunto de explicaes que
entendo coerentes, porm insuficientes para explicar o porque da crise.
Buscarei um outro olhar sobre a crise no Segundo Captulo. Ali, tentarei construir
argumentos para mostrar que a Regulao tem seu lugar, pelo carter de relaes sociais das
pescarias, pelo carter autodestrutivo do capitalismo e pela relao estabelecida entre propriedade
pblica e apropriao privada dos recursos pesqueiros, mas que, no entanto, exercida de maneira
insuficiente, devido reduo da funo de regulao, e s falhas do Estado, do mercado e da
comunidade.
No Terceiro Captulo, buscando construir bases para uma regulao sustentabilista no
uso dos recursos pesqueiros, irei criticar o conceito de desenvolvimento sustentvel para legitimar o
de sustentabilidade como portadora do futuro. Tentarei mostrar, tambm, que a utilizao exclusiva
do conceito de captura mxima sustentvel, como base para a regulao, torna o uso dos recursos
pesqueiros insustentvel.
Finalmente, a ttulo de concluso, no Quarto Captulo, ousei. Partindo do pressuposto
de que a anttese da insuficincia de regulao no a desregulamentao, mas sim a re-regulao, irei
propor a construo de dois espaos comunicativos onde o Estado e os usurios dos recursos
pesqueiros possam vir a negociar seus objetivos e projetos, de forma democrtica e participativa,
tendo a sustentabilidade com vetor instituidor de um novo contrato para que, quem sabe em um
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futuro possvel, a sociedade brasileira possa afirmar com preciso que suas pescarias no contm em
si o germe de sua prpria destruio.
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PRIMEIRO CAPTULO - A CRISE: A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS
"A anlise do presente e do passado, por mais profunda que seja, no pode fornecer mais do que um horizonte de possibilidades, um leque de futuros possveis ..."
Boaventura Souza Santos
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1 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE A PESCA E A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS EM ESCALA PLANETRIA
Registros histricos relatam a ocorrncia de sobrepesca na costa peruana h 3.000 anos
(McGoddwin, 1990). No entanto, esse autor sugere que, do surgimento do homem at o incio da era
moderna, as racionalidades sociais, o baixo nvel das tecnologias empregadas na atividade pesqueira e
a baixa demanda por alimentos, em decorrncia do reduzido tamanho das populaes, alm da
vastido dos espaos pesqueiros disponveis, circunscreveram os casos de sobreexplotao a algumas
poucas espcies, notadamente espcies ssseis, como as ostras.
A Revoluo Industrial se constituiu em importante marco histrico nas relaes
homem-recursos pesqueiros. As formas de organizao social da produo pesqueira, nas quais os
seres humanos retiravam da natureza pequenas quantidades, sem grandes danos ambientais, foram
radicalmente modificadas pelas grandes transformaes tecnolgicas e pela rpida urbanizao,
caractersticas do perodo, e pela construo de portos pesqueiros urbanos, j no sculo XIX.
Do ponto de vista tecnolgico, a primeira grande modificao se deu nos meios de
propulso. At ento movidos vela, tendo suas condies de operao condicionadas pelas prprias
foras da natureza, os barcos pesqueiros passaram a ser movidos por mquinas a vapor e, mais tarde
por mquinas movidas a combustveis fsseis, ampliando assim seus raios de ao e podendo ir at
pesqueiros nunca antes explotados. As transformaes tecnolgicas e o maquinismo logo atingiram
as tarefas de captura, permitindo o desenvolvimento de grandes redes e equipamentos de auxlio
pesca. O desenvolvimento das tecnologias de resfriamento a bordo proporcionou o aumento do
nmero de dias que uma embarcao podia passar no mar, assim como melhorou significativamente
a qualidade do pescado desembarcado, com fortes reflexos nos preos dos produtos pesqueiros.
Dessa forma ampliou-se o poder de captura para limites at ento desconhecidos.
Aps a Segunda Guerra Mundial, o poder de pesca das frotas mundiais foi de novo
ampliado na medida em que toda a tecnologia naval desenvolvida com fins militares foi sendo
rapidamente apropriada e adaptada para as embarcaes pesqueiras. A partir da, surgiram novas
tcnicas de construo naval, novos materiais para a construo de cascos, novas tcnicas de
navegao e localizao de cardumes, com a utilizao de radares e ecossondas, e novos avanos
nos sistemas de refrigerao permitiram o congelamento a bordo.
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Mais recentemente, a navegao orientada por satlite e o uso de computadores que
controlam vrias tarefas pesqueiras com preciso permitiram um nvel de avano tecnolgico que
mudou por completo o conjunto das relaes entre os seres humanos e a natureza, no que se refere
apropriao dos recursos pesqueiros.
O saber-fazer, baseado no conhecimento tradicional sobre a dinmica dos oceanos e no
ciclo de vida dos recursos pesqueiros, suficiente para produzir uma quantidade de pescado necessria
subsistncia das comunidades produtoras e at mesmo sua insero nos mercados locais, vem
sendo substitudo pelo saber-usar instrumentos tecnolgicos, pelo saber-ler grficos, pelo saber-
interpretar informaes, saberes requeridos pela necessidade de produo em larga escala. Explicitava-
se, assim, a completa separao entre os seres humanos e os recursos pesqueiros (natureza) que, h
muito, marcava outros setores da vida humana. A natureza de provedora de subsistncia passa a ser
"produtora" de bens de consumo de origem marinha.
O processo iniciado com a Revoluo Industrial gerou, por sua vez, as condies para a
penetrao e o desenvolvimento do modo de produo capitalista na atividade pesqueira que,
separando completamente o homem da natureza, permite desenvolver uma racionalidade utilitarista e
produtivista na apropriao dos recursos pesqueiros.
Tal processo pode ser dividido em dois perodos, seguindo as etapas globais do
desenvolvimento do modo de produo capitalista em suas relaes com a natureza segundo
OConnor (1994). No primeiro, dominado pela tica da economia de fronteira, prevalece a lgica de
dominao e explorao da natureza, seus bens e servios, considerada externa ao capital. Nessa
etapa, o aumento constante da produo pesqueira, na proporo direta do aumento de esforo -
movimento tpico das fases iniciais das pescarias - consolidou a viso de inesgotabilidade dos
recursos pesqueiros.
O segundo perodo, mais recente, tem origem no momento em que o desenvolvimento
das foras produtivas do capital foi surpreendido pelos primeiros sinais de que os recursos
ambientais, entre eles os pesqueiros, no eram inesgotveis. A partir de ento teve incio um processo
de ressignificao da natureza, que de externa passa a ser entendida como interna ao prprio capital,
sendo seus bens agora vistos como estoques e classificados como elementos de uma natureza
considerada como capital para a finalidade da reproduo expandida do capital (OConnor, 1994a),
chamados de capital natural. Tal ressignificao ocorre na fase que OConnor (1994b) denomina de
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fase ecolgica do capital e constitui base ideolgica para uma nova etapa de acumulao e
crescimento, sob os argumentos da gesto e conservao dos elementos da natureza, cuja
regenerao agora se faz (...) pelo controle dos regimes de investimento (...) integrados no clculo
racional da produo e troca, atravs do milagre do sistema de preos (...) (OConnor, 1994b).
Diferentemente de outros setores produtivos, a pesca encontra nos prprios recursos de
que se apropria algumas caractersticas muito especiais que atuam de forma contrria racionalidade
que hoje a preside.
Assim, cabe destacar que os recursos pesqueiros no surgem como produto do trabalho
humano, pois "(...) ao contrrio da produo industrial, a reproduo dos objetos de trabalho - o
pescado - se realiza segundo leis de reproduo biolgica dos cardumes, as quais escapam ao
controle do homem" (Diegues, 1983). No plano mais geral, OConnor ( 1994a) afirma que (...) um
fato que o capital no controla nem pode controlar a reproduo e modificaes das condies
naturais de produo no mesmo plano em que regula a produo industrial de mercadorias. Desta
forma, tanto na atividade pesqueira como na apropriao capitalista dos recursos ambientais
explicita-se o surgimento das mercadorias fictcias, ou seja, (...)coisas que no so produzidas como
mercadorias mas so tratadas como se o fossem ( OConnor, 1988).
A atividade pesqueira encontra nos ecossistemas marinhos que explota suas prprias
condies naturais de produo - os recursos pesqueiros, categorizados na literatura econmica
como recursos naturais renovveis. No entanto, tais recursos so na realidade potenciais at que sejam
transformados em objeto de trabalho ou em meio de subsistncia pelo trabalho humano.
A reproduo biolgica e o crescimento dos indivduos, fenmenos indispensveis
renovao dos estoques, so limitados pela capacidade de carga do ambiente no qual ocorrem,
impondo limites ao tamanho dos estoques capturveis. Constri-se assim, naturalmente, um teto
mximo sob o qual a atividade pesqueira pode operar - fato contrrio prpria dinmica do
capitalismo em sua tendncia ao desenvolvimento infinito, ou seja (...) um limite biofsico ao
processo de acumulao (OConnor, 1994a).
As flutuaes no tamanho dos estoques explotveis, provocadas tanto por fatores
naturais como por aquelas decorrentes de desequilbrios ambientais ocasionados por atividades
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antrpicas, causam imensas dificuldades na previso de rendas futuras, resultando em altas incertezas
econmicas para a atividade pesqueira.
A mobilidade dos organismos aquticos, a distribuio geogrfica das populaes, a
extenso territorial onde acontece a pesca e a ocorrncia de vrias espcies em um mesmo ambiente
explotado so propriedades que circunscrevem os recursos pesqueiros em "uma classe de recursos
em que a excluso difcil e o uso comum implica rivalidade" (Berkes et al., 1989 apud Fenny et al.,
1990).
As caractersticas de rivalidade e no exclusividade, aliadas incerteza econmica, so
responsveis pelos conflitos entre as racionalidades individuais e coletivas na apropriao dos
recursos pesqueiros, fazendo predominar, quase sempre, a viso e a prtica entre agentes
econmicos, de que tudo aquilo que no pescado agora, e no mximo possvel, por um pescador,
outro o far, logo em seguida .
Neste ambiente de contradio, a produo pesqueira mundial, oriunda das pescarias
marinhas, alcanou um recorde de 87,1 milhes de toneladas em 1996, quando as capturas totais
mundiais chegaram a atingir 94,6 milhes de toneladas (Tabela 1.1; Grfico 1.1). Mais da metade da
produo total deveu-se ao que foi produzido pelos seguintes pases: China, Peru, Chile, Japo,
Estados Unidos, Federao Russa e Indonsia.
Tabela 1.1 - Produo mundial de pescado. Anos Produo (T X 109)
Martima Total 1990 79,29 85,88 1992 79,95 86,21 1994 85,77 92,68 1995 85,62 93,00 1996 87,07 94,63 1997 85,03 93,73
Fonte: FAO ( 1999)
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Grfico 1.1 - Produo mundial de pescado: Total e martima.
Fonte: FAO ( 1999 ).
Apesar de ter alcanado to elevado valor, o ritmo de crescimento vem desacelerando.
De acordo com a FAO (1999), nas dcadas de 1950 e 1960, a produo pesqueira oriunda de guas
marinhas cresceu a uma mdia expressiva de 6% ao ano, duplicando-se entre 1950 (17,0 milhes de
toneladas) e 1961 (34,9 milhes de toneladas), para voltar a duplicar-se nos 22 anos seguintes, tendo
atingido o patamar de 68,3 milhes de toneladas em 1983. Entre os anos 1980 e o incio dos anos
1990, a taxa mdia de crescimento caiu para 1,5% ao ano, tendo decrescido ainda mais no binio
1995/1996 quando no ultrapassou mais que 0,6% ao ano.
Sobre o esforo de pesca empregado para atingir tais nveis e a dinmica de produo,
assim se posicionam Dias-Neto & Dornelles (1996:18): Torna-se relevante destacar que, entre 1970
e 1990 enquanto o esforo de pesca no mundo, em termos quanti-qualitativos aumentou entre 200%
e 300%, a produo aumentou em pouco mais de 30%.
Ainda de acordo com a FAO (1999), o estado de explotao dos principais recursos
pesqueiros - que tm sido objeto de avaliao, e sobre os quais mais se dispem de informaes -
tem-se mantido praticamente inalterado desde o incio dos anos 1990. Assim, confirma-se o fato j
divulgado pelo documento Estado Mundial das Pescarias, em sua verso de 1997, que 44% das
principais pescarias mundiais esto totalmente explotadas e, portanto, as capturas se encontram no
nvel mximo ou muito prximo dele, o que significa que no se prevem margens para expanso.
Cerca de 16% destas se encontram em estgio de sobrepesca, e tampouco oferecem possibilidade de
aumento das capturas, sendo cada vez maior a probabilidade de diminuio de suas produes, se
79,29
79,95
85,77
85,62
87,07
85,03
85,88
86,21
92,68
93,00
94,63
93,73
1990
1992
1994
1995
1996
1997
anos
t X 109
produo total
produomartima
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no forem adotadas fortes medidas corretivas para eliminar a situao de sobrepesca. Outros 6%
esto, aparentemente, esgotados por uma presso pesqueira excessiva, e finalmente, 3% parecem
estar se recuperando lentamente do estgio de sobrepesca.
2 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O MODELO DE DESENVOLVIMENTO PESQUEIRO NO BRASIL
No espao pesqueiro1 martimo brasileiro coexistem formas produtivas diferenciadas
que, embora representando tempos histricos relativamente diferentes, articulam-se e se
interpenetram, estabelecendo uma dinmica muito prpria para o modelo de desenvolvimento2
pesqueiro nacional: a pequena produo mercantil3, e a produo capitalista, tanto a de armadores de
pesca como a empresarial.
Partindo de um processo de trabalho baseado na unidade familiar, ou no grupo de
vizinhana, a pesca de pequena escala constitui-se tendo como fundamento o fato de que os
produtores so proprietrios de seus meios de produo (redes, anzis etc.). A embarcao,
predominantemente de pequeno porte, no , ela mesma, um meio de produo. Para utiliz-la, o
pescador no proprietrio paga, em partes de sua produo, uma renda que se assemelha renda da
terra paga pelo agricultor meeiro. O proprietrio da embarcao, ele tambm um pescador, participa
como os demais de todas as fainas de pesca.
As tecnologias empregadas se caracterizam por um relativo baixo grau de impacto
ambiental, sendo todo o processo produtivo presidido por um saber-fazer baseado no conhecimento
tradicional da dinmica dos mares e de seus seres, abrangendo desde o processo de localizao de
cardumes at os mtodos e tcnicas de captura, apropriados para determinadas espcies, em certas
1 Da mesma maneira que em Diegues (1983), a noo de espao aqui entendida como o conjunto de condies naturais, fsicas e biolgicas que servem de base para determinadas formas de organizao social da produo. 2 Acselrad & Leroy (1999) entendem que "A noo de modelo de desenvolvimento procura descrever o modo pelo qual as sociedades [setores econmicos] produzem e se reproduzem." E assim a utilizamos nesta dissertao. 3 pequena produo mercantil esto associados os termos pesca artesanal e pesca de pequena escala que, aqui, sero utilizados indistintamente.
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pocas do ano, e tendo as cercanias martimas de suas comunidades como o raio de ao mxima de
suas operaes pesqueiras. A utilizao de mquinas se restringia ao motor propulsor da embarcao,
no tendo portanto, a no ser nas pescarias de arrasto, implicaes considerveis na relao
pescadores-ambiente explotado.
O mercado, embora espao das relaes de troca e responsvel pela maior parte da
alocao dos fatores, ainda considerado como perifrico em face do conjunto das relaes sociais
de base comunitrias que do direo e estabilidade ao processo produtivo e s relaes com o meio
ambiente e seus recursos.
Mesmo sendo a produo dirigida para o mercado, portanto dotada de valor de troca,
predomina nesse modo de produzir uma apropriao do produto baseada no sistema de partilha ou
quinho.
O processo de comercializao dominado por um sistema de intermediao que vai do
atravessador individual, em geral algum da comunidade que se especializou na compra e venda de
pescado, at os representantes de empresas de compra e financiamento da produo.
O excedente das transaes comerciais da produo reduzido e irregular, portanto
insuficiente para um processo de acumulao de capital internamente atividade, o que gera uma
total dependncia dos produtores em relao sua principal fonte de financiamento - o capital
comercial, que se manifesta sob a forma de adiantamentos em espcie, abertura de crdito nos
pontos de abastecimento de rancho, gelo ou leo combustvel, ou ainda nas casas de material de
pesca.
A produo capitalista dos armadores de pesca se caracteriza pelo fato de os
proprietrios das embarcaes e dos petrechos de pesca - os armadores - no participarem de modo
direto do processo produtivo, funo delegada ao mestre da embarcao. As embarcaes,
geralmente de maior porte e raio de ao que aquelas utilizadas pela pesca de pequena escala, exigem
uma certa diviso de trabalho entre os tripulantes - mestre, cozinheiro, gelador, maquinista, pescador
etc.
As embarcaes, por seu porte e raio de ao, requerem certas mquinas alm dos seus
motores propulsores, fazendo-se necessrio algum treinamento formal para determinadas funes,
que, no entanto, no substituem completamente o saber-fazer dos pescadores, sobretudo do mestre,
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14
que o emprega da mesma forma que os pescadores de pequena escala, grupo social do qual,
geralmente provm.
Apesar de os pescadores no serem proprietrios dos petrechos de pesca, ainda no se
v nessa forma de organizao pesqueira o assalariamento tpico encontrado em outras atividades
capitalistas. A mo-de-obra continua, como na pesca de pequena escala, a ser remunerada pelo
sistema de partes, ainda que para algumas funes possam existir formas de assalariamento
complementar.
O mercado j se constitui como central nessa forma de produo, determinando
consideravelmente a alocao dos fatores e substituindo as relaes sociais de bases comunitrias na
direo e estabilidade do processo produtivo e as relaes com o meio ambiente e seus recursos.
Bem mais capitalizada que a forma anterior, o grau de acumulao aqui tambm pode ser
considerado baixo, sendo o capital comercial a principal fonte de financiamento seja por meio dos
comerciantes atacadistas dos grandes centros consumidores, seja pelas empresas que processam e
comercializam a produo, que financiam os armadores da mesma forma que os atravessadores
financiam os pescadores de pequena escala.
As estruturas de produo capitalista na pesca atingem seu pice na forma da pesca
empresarial-capitalista.
Proprietria tanto das embarcaes como dos apetrechos de pesca, a empresa se
organiza em diversos setores e, em alguns casos, integra verticalmente a captura, o beneficiamento e
a comercializao.
As embarcaes apresentam o mais alto grau de mecanizao, agora no apenas para a
propulso mas tambm para o desenvolvimento das fainas de pesca como lanamento e
recolhimento de redes, beneficiamento do pescado a bordo, etc. Encontram-se tambm localizadores
eletrnicos de cardume e outros equipamentos eletrnicos auxiliares navegao como os radares.
A mo-de-obra embora, recrutada em sua maioria entre pescadores de pequena escala ou
das embarcaes de propriedade de armadores, necessita de treinamento especfico para a operao
da maquinaria que vem substituir de maneira mais profunda o saber-fazer adquirido pela tradio.
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15
O regime de salrio mensal ou semanal em dinheiro, se constitu uma prtica comum,
porm apenas como um piso mnimo, pois ainda predomina o pagamento de partes que passam a ser
calculadas sobre o valor global da produo.
O mercado domina as relaes de produo e alocao dos fatores, sendo a instncia que
preside o processo produtivo e as relaes com o meio ambiente e seus recursos.
O capital comercial, agora gerado pelo setor de comercializao da prpria empresa,
continua sendo o principal financiador da produo. Aqui. a acumulao de capital maior que nas
demais formas de produo pesqueira, porm ainda insuficiente para financiar uma reproduo
ampliada da atividade capitalista na pesca4.
Assim constitudo, o setor pesqueiro nacional at meados da dcada de 1960 apresentava
um baixo desenvolvimento de foras produtivas. Embora j tivesse constitudo um subsetor
capitalista, a pesca de pequena escala como um modo de produo subordinado era hegemnica no
que se refere ao conjunto das relaes sociais que davam direo e estabilidade ao processo
produtivo e s relaes com o meio ambiente e seus recursos.
fundamental observar que na fragilidade ou quase ausncia de um Estado regulador do
uso dos recursos pesqueiros, este quadro de baixo desenvolvimento das foras produtivas vigente at
meados dos anos 1960, constituiu um dos pontos fundamentais para que se mantivesse certo grau de
equilbrio entre o esforo de pesca e o potencial capturvel dos recursos, no se constatando, at
ento, sinais de sobrepesca nos principais recursos que eram a base da produo nacional.
Partindo da constatao de que o setor pesqueiro nacional no era capaz de acumular
excedentes de capital para se reproduzir ampliadamente, sequer em seu subsetor mais dinmico - o
empresarial-capitalista, o Estado brasileiro do final da dcada de 1960 entra em cena, e assumindo
papel central como promotor do desenvolvimento concebe e edita o Decreto-lei n 221, de 28 de
fevereiro de 1967, como instrumento fundamental para o desenvolvimento pesqueiro nacional.
Utiliza-se como argumento a urgncia em produzir protena animal para satisfazer as
necessidades bsicas da populao brasileira - partindo-se do momento inicial de um investimento
4 As consideraes feitas at esse ponto tiveram como base Diegues (1983, 1995).
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qualquer, a pesca produz mais rapidamente que a agropecuria, alm de ter-se como referencial
ideolgico a grandeza dos mares brasileiros e seu potencial inesgotvel.
Constituram-se em instrumentos para a consecuo de tal objetivo o enquadramento da
atividade pesqueira como indstria de base para efeito dos financiamentos do ento Banco Nacional
de Desenvolvimento Econmico - BNDE e os mecanismos de incentivos fiscais captados a partir do
imposto de renda de pessoas fsicas e jurdicas.
A modernizao e a industrializao das atividades pesqueiras passaram a formar o
paradigma tecnolgico desse novo perodo.
Para as atividades de captura, modernizao e industrializao tinham o objetivo de
constituir frotas industriais dotadas dos mais modernos barcos, equipados com sofisticados sistemas
de pesca, localizao de cardumes e navegao, capazes de rapidamente incrementar a produo
nacional de pescado.
Por outro lado, era necessrio modernizar o gerenciamento dos empreendimentos
pesqueiros. A indstria nascente, praticamente uma evoluo natural dentro do setor, embora no se
possa considerar a pesca de pequena escala como um momento de transio para a pesca industrial,
era de bases familiar e empregava mtodos gerenciais considerados arcaicos e de baixa produtividade.
Com base em tais argumentos os incentivos fiscais - que vieram a se tornar o
instrumento principal da nova estratgia - foram direcionados para empresas de capital aberto, fato
que excluiu do novo processo de acumulao de capital as empresas at ento no ramo, e ao mesmo
tempo atraiu para a atividade pesqueira empresrios e empresas que nenhum conhecimento
possuam de uma atividade complexa e baseada na incerteza.
Com o desequilbrio das contas externas provocado pela crise do petrleo do incio dos
anos 1970, a pesca nacional passou a fazer parte do esforo de exportao, completando-se assim o
paradigma que presidiu o desenvolvimento da pesca nacional at meados dos anos 1980. Dessse
modo, parte considervel do esforo de pesca decorrente dos novos empreendimentos foi
direcionado para a captura de espcies com larga aceitao no mercado internacional (lagosta, pargo
e camares), mas sobre as quais j se encontrava um parque de captura tradicional, fazendo com que
rapidamente tais estoques apresentassem sinais de sobrepesca.
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Na prtica, o novo modelo de desenvolvimento promoveu uma verdadeira
modernizao conservadora - modificando o patamar tecnolgico sem contudo promover mudanas
nas relaes de produo - e insustentvel da pesca nacional.
Desconhecendo-se o potencial das vrias regies que constituem o espao pesqueiro
martimo brasileiro, implantou-se um parque industrial desequilibrado tanto do ponto de vista
espacial como entre os setores de captura e beneficiamento, com a concentrao dos investimentos,
em ambos os setores, nas regies Sul e Sudeste.
Constituram-se frotas com muito mais poder de pesca, quer pela quantidade de barcos,
quer pelo poder tecnolgico de pescar, do que a capacidade de suporte dos ecossistemas, esse foi o
caso da pescaria de camaro no Sudeste-Sul. Fato que levou seguinte e contundente afirmao de
Silva (1972)
"Em primeiro lugar, couberam ao Centro-Sul do pas 80% dos recursos; em segundo,
ao camaro 80% dsses 80%. O resultado que o camaroneiro do Glfo do Mxico,
sobretudo o seu modlo de 'de luxo', o nvo barco 'tpico' da Pesca Brasileira. Mas
comportar o camaro esta expanso fulminante, comportar que todos sses barco
(...) o pesquem em quantidades rentveis? Em outras palavras, teria sido o camaro
consultado (...)?"
Muitas vezes, a fbrica, ou seja, a rea de beneficiamento e transformao de um
empreendimento verticalizado tinha a capacidade de processar vrias vezes o que a frota tinha
capacidade real de produzir em face das condies reais de produtividade do espao martimo.
As frotas recm-formadas no tinham como objetivo a explotao de novos espaos e
recursos pesqueiros. Vieram a operar no mesmo espao e sobre os mesmos recursos que as frotas
tradicionais e onde opera parte da pesca de pequena escala, gerando uma forte e desleal competio
por recursos que mais tarde se mostrariam escassos. Tal fato, "(...) nada mais fez que apressar a
explorao irracional dos recursos pesqueiros, com o empobrecimento gradativo de milhares de
pequenos pescadores." (Diegues, 1973), alm de provocar a falncia de dezenas de empresas que
tradicionalmente operavam com base na compra da produo da pesca de pequena escala.
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Se possvel falar na modernizao tecnolgica da pesca empresarial-capitalista, como
produto direto ou indireto dos incentivos fiscais, o mesmo no se pode dizer da modernizao das
relaes de produo.
O regime de remunerao da mo-de-obra no se modificou substancialmente. O
contrato de trabalho, com carteira assinada e baseado em um ou poucos salrios mnimos,
complementados com uma parte varivel, no declarada, calculada com base na produo, continuou
sendo a regra bsica de contratao da fora de trabalho, sistema que, para Diegues (1973), mascara a
explorao do trabalho pelo capital, gerando a iluso mos trabalhadores de que participam, em
parceria, de um empreendimento comum.
O processo de industrializao e modernizao induzido pelo Estado praticamente no
modificou as condies dos armadores de pesca. Mantendo sua baixa capacidade de acumulao
interna e sem terem se tornado beneficirios dos novos mecanismos de financiamento, no tiveram
acesso fcil s novas tecnologias, no podendo, portanto, fazer parte do novo processo de
desenvolvimento.
Alguns benefcios desse novo processo lhes rendeu o relativo aumento do mercado
comprador de pescado pelo novo parque industrial recm implantado. De fato, embora as novas
empresas possussem frotas prprias, suas linhas de beneficiamento tinham capacidade de produo
sempre superiores ao que suas frotas podiam capturar, indo, portanto, buscar na produo dos
armadores a quantidade necessria ao equilbrio operacional.
Tendo sobredimensionado suas frotas em relao ao potencial pesqueiro dos ambientes
que explotavam, logo as novas empresas passaram a apresentar dficits crescentes no setor de
captura, levando-as a iniciar um processo de venda ou arrendamento de tais frotas aos armadores
tradicionais, mais afeitos aos negcios de captura que, pela imprevisibilidade tpica da explotao
pesqueira, apresentam riscos considerveis, principalmente para empresas rigidamente estruturadas.
Se desse modo os armadores passaram a ter acesso s novas tecnologias e aos novos
barcos, aumentou tambm a sua dependncia ao capital comercial das empresas, pois quase sempre a
venda ou arrendamento das embarcaes eram feitas sob clusulas de exclusividade na entrega da
produo ao vendedor ou arrendador.
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Movimentos recentes de "terceirizao" do setor de captura pelas empresas
verticalizadas ocorreram devido a outros fatores. Na pesca da lagosta, no Nordeste, ocorreu uma
verdadeira "re-artesanalizao" provocada pela imensa queda de produtividade que a pescaria
apresentou nos ltimos anos. A paridade do real em relao ao dlar, nos primeiros anos do Plano
Real fez com que o setor camaroneiro do Norte - que operava altamente de modo verticalizado -
acumulasse imensa perda de competitividade, provocando grandes prejuzos, ensejando que um
processo de terceirizao por parceria se processasse.
No que se refere pesca de pequena escala, deixada margem do processo de
desenvolvimento fundado nos incentivos fiscais, o Estado de ento props e levou a cabo o Plano
de Assistncia Pesca Artesanal - Pescart.
O Pescart partia da premissa que o modo de produzir, a base tecnolgica e o sistema de
comercializao das pescarias de pequena escala eram atrasados e causadores da pobreza dos
pescadores que a praticavam. Da, fundado nos princpios smetodolgicos da assistncia tcnica e
estenso rural, pretendia moderniz-los ensinando-lhes novas tecnologias de produo,
modernizando suas embarcaes, sobretudo pela substituio da propulso vela pela motorizada.
Buscava, ainda, associ-los em cooperativas de comercializao, e assim gerar bases de ruptura com
sua crnica pobreza. O capital necessrio para tal empreendimento deveria ser oriundo de
emprstimos bancrios nas mesmas condies praticadas para os pequenos agricultores.
Inicialmente o Pescart era executado pelas Empresas Estaduais de Assistncia Tcnica e
Extenso Rurais - Ematers em decorrncia de um convnio entre a Superintendncia do
Desenvolvimento da Pesca - Sudepe e a Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
- Embrater. Aps a resilio de tal convnio, a Sudepe assumiu diretamente esses servios em alguns
estados, e, em outros, eles tiveram continuidade por meio de convnios com as Ematers.
No tendo poder de mobilizar polticas sociais necessrias criao de bases para o
rompimento da pobreza que dominava no meio pesqueiro artesanal - como educao, sade,
saneamento bsico, eletrificao e habitao - o Pescart pode ser entendido como promotor, da
mesma forma que os incentivos fiscais, de uma modernizao conservadora e insustentvel das
pescarias de pequena escala.
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Do ponto de vista da relao com os recursos pesqueiros, profundas mudanas podem
ser observadas como resultantes das aes modernizantes levadas a efeito pelo Pescart.
A motorizao da frota de pequena escala, por exemplo, ensejou uma maior presso
sobre os recursos que j eram tradicionalmente explotados, visto que a partir de ento os novos
proprietrios tinham compromissos bancrios a saldar. No se levou em considerao nesse
processo modernizante, que um menor volume de pescado capturado por uma embarcao movida
vela teria um menor custo de produo e, portanto, geraria um lucro lquido superior que aquele
gerado pela quantidade maior produzida pela embarcao motorizada, que tem custos muito mais
altos.
Alm do impacto econmico, a motorizao da frota promoveu a introduo do arrasto
em ecossistemas excessivamente prximos da costa, que se constituem em tradicionais zonas de
criadouros, gerando um grau de impacto ambiental jamais verificado na histria pesqueira nacional.
As aes voltadas para o combate da intermediao, principalmente a formao de
cooperativas de comercializao, no levaram em considerao alguns pontos fundamentais. O
pescador, por sua faina de pesca altamente fatigante, por sua relao com as coisas do mar em
oposio s coisas da terra, no se considera um comerciante e sim um produtor, fato que levou as
cooperativas a serem entregues a gerentes no comprometidos com os objetivos emancipatrios da
proposta e, muitas vezes, no conhecedores sequer dos meandros da comercializao de um produto
altamente perecvel e que exige estratgias complexas para sua boa comercializao.
Foi igualmente desprezado o poder dos intermedirios, poder este que est alicerado
em dois pontos fundamentais: o primeiro vinculado a laos afetivos entre eles e os pescadores, visto
que, em geral, os intermedirios so pessoas da comunidade, ou ex-pescadores que se especializaram
na comercializao e possuem fortes laos de compadrio com aqueles dos quais compram a
produo - relaes sociais que a fria estrutura de uma cooperativa no capaz de reproduzir.
O segundo se refere aos tradicionais sistemas de financiamento da produo. O
Intermedirio possui um gil, informal e flexvel sistema de financiamento, baseado em relaes de
confiana, sistema que embora possa ser considerado "escravizante" no encontrou substituto nos
sistemas formais e burocratizados postos disposio pelas cooperativas a seus associados.
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Alm disso, as cooperativas tiveram que concorrer com os "compradores de empresas",
que nada mais so que corretores que operam em nome e com o capital de uma determinada
empresa, comprando a produo diretamente da pequena produo e sempre muito mais
capitalizados que as cooperativas.
A crise fiscal do Estado, j explicitada em meados dos anos 1980, e as vrias denncias
de corrupo e m aplicao de recursos pblicos levaram o Governo Sarney a acabar com os
incentivos fiscais destinados ao setor pesqueiro desestruturando, desta maneira, a principal forma de
financiamento do projeto desenvolvimentista da pesca industrial.
Neste mesmo governo, assistiu-se aos primeiros sinais de uma reforma neoliberal do
Estado com a extino de vrios rgos pblicos: foi o caso da Embrater, seguida pela extino das
Ematers, na maioria dos estados. Tal fato provocou desestruturao do servio de assistncia
pesca artesanal, principal veculo de modernizao daquele subsetaor pesqueiro, praticamente
desestruturao
Atualmente, o setor pesqueiro industrial-capitalista no conta com nenhum instrumento
especial para financiamento de seu desenvolvimento, tendo de buscar em suas prprias estruturas -
no todo inalteradas - o capital necessrio sua reproduo, com o agravante de estarem a maioria
dos estoques sobreexplotados, como veremos mais adiante.
No que se refere ao financiamento da pesca de pequena escala, algumas linhas de crdito
voltadas principalmente para a pequena produo rural contemplam aquela atividade pesqueira.
Com relao a produo nacional de pescado de origem marinha, Dias-Neto &
Dornelles (1996), analisando como se deu sua evoluo no perodo 1975-94, mostram que:
(...) a produo brasileira de pescado oriundo do mar apresentou tendncia crescente
at 1979, atingindo 731.482t, e decrescendo nos trs anos seguintes, quando retomou
o crescimento at 1985, ano que se obteve a maior produo da histria da pesca
martima nacional: 760.452t. No perodo 1986-1990 a produo decresceu,
apontando para 428.754t, segundo estimativa preliminar. Nos ltimos quatro anos
da srie analisada, parece ter havido um tnue sinal de recuperao, ficando a
produo de 1994, tambm segundo estimativa preliminar, em cerca de 494.006t.
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Para o perodo 1995-98, os dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renovveis - Ibama indicam uma estabilizao na produo em uma faixa situada
entre 413.000t e 432.000t (Tabela 1.2; Grfico 1.2).
Tabela 1.2 - Produo nacional de pescado - total e martima.
Produo Martima Anos t %
Total (t)
1980 635.965 77,3 822.677
1981 635.965 76,3 833.164
1982 627.510 75,2 833.933
1983 675.344 76,7 880.696
1984 747.395 77,9 958.908
1985 760.452 78,3 971.537
1986 734.537 78,0 941.712
1987 704.229 75,4 934.408
1988 624.927 75,3 830.102
1989 579.151 72,5 798.638
1990 435.418 68,0 640.295
1991 467.744 69,7 671.510
1992 469.842 70,1 670.333
1993 472.373 69,8 676.441
1994 479.662 71,0 701.251
1995 419.086 64,2 652.910
1996 430.663 62,1 693.172
1997 475.894 65,0 732.259
1998 447.948 63,0 710.704
Fonte: Ibama (2000)
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Fonte: IBAMA (2000)
Mostrando preocupao com relao ao futuro da pesca martima no Brasil, Dias-Neto
& Dornelles (1996) afirmam que (...) o quadro da produo da pesca martima brasileira pode ser
considerado delicado, seja pelo declnio constatado (...) seja pela quase estagnao nos ltimos anos.
Ainda mais ao se considerarem os nveis crticos de produo dos principais recursos pesqueiros
(...).
Tecendo paralelo entre as pescarias brasileiras e o desenvolvimento da pesca martima
mundial, os autores concluem que Em alguns aspectos, a pesca nacional enfrenta uma situao at
mais grave, com destaque para o percentual dos principais recursos plenamente explotados ou sob
excesso de explotao, ou at esgotados ou se recuperando de tal nvel de utilizao, pois se na
grfico 1.2 - produo nacional de pescado, martima e total
447.948
710.704
435.418
760.452
635.965
822.677
640.295
971.537
0
200.000
400.000
600.000
800.000
1.000.000
1.200.000
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
anos
t
produo martimaproduo total
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primeira cerca de 69%, no Brasil, fica acima de 80%., o que viria a ser tambm constatado por
Paiva (1997) (Tabela 1.3).
As anlises dos autores citados nos pargrafos anteriores e os dados constantes na
Tabela 1.3 se referem, principalmente, aos recursos objeto das pescarias industriais mesmo que sobre
alguns operem tambm pescadores de pequena escala. Infelizmente, no existem estudos sobre o
nvel de explotao daquelas pescarias tpicas da pesca de pequena escala para que se possa afirmar
com convico sobre o estado dos estoques sobre os quais opera. No entanto, rara a discusso com
pescadores em que no demonstrem, por sinais empricos (diminuio do volume de produo, do
tamanho dos indivduos capturados etc.), que o fenmeno da sobrepesca tambm atinge a maioria
dos recursos por eles explotados.
Creio que diante do quadro mostrado, nada mais pode-se dizer alm do que afirmou,
categoricamente, McGoodwin (1990): existe uma crise nas pescarias mundiais.
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Tabela 1.3 - Smula das situaes dos principais estoques explotados pelas pescas industriais, ao longo da costa do Brasil.
Recursos Regies Situaes camaro-rosa piramutaba lagosta-vermelha lagosta-verde pargo peixes de linha camaro-sete-barbas camaro-rosa sardinha-verdadeira goete peixes demersais (1)
albacora-azul albacora-laje albacora-branca albacora-bandolim espadarte caes ocenicos bonito-barriga-listrada camares
N N
N - NE N - NE N - NE
Abrolhos SE - S SE - S SE - S
SE SE - S ASO ASO ASO ASO ASO ASO SE - S NE
em equilbrio sobrepesca sobrepesca sobrepesca
colapso de pesca em equilbrio sobrepesca sobrepesca sobrepesca em declnio sobrepesca sobrepesca
em equilbrio sobrepesca sobrepesca
incerta em declnio
limitada incerta
Legenda: N - Norte; NE - Nordeste; SE - Sudeste; S - Sul; ASO - Atlntico Sul Ocidental. Notas: (1) compreende o conjunto das espcies explotadas: corvina, castanha, pescada olhuda e pescadinha real.
Adaptado de Paiva, 1997.
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3 - A FACE MAIS VISVEL E AMEAADORA DA CRISE
Vrios so os elementos que do visibilidade crise, entre eles poderiam ser citados: a
diminuio da abundncia dos recursos pesqueiros; a diminuio da captura por unidade de esforco
de pesca (CPUE); a diminuio do tamanho mdio dos indivduos capturados; a maior participao
de indivduos de baixas classes etrias na composio das capturas etc. No entanto, entendo, como
Mace (1997), que o excesso de capacidade de pesca, alm de ser a face mais visvel da crise, a mais
ameaadora da viabilidade da explotao dos recursos pesqueiros.
A forma menos abstrata de se perceber o excesso de capacidade de pesca por meio da
sobrecapitalizao, traduzida na quantidade excessiva de barcos ou aparelhos de captura. Estudos da
FAO, citados por Mace (1997) indicam que entre 1970 e 1992 o nmero de embarcaes dotadas de
convs passou de 580.980 para 1.178.160, enquanto que no mesmo perodo o nmero de barcos de
pequeno porte, sem convs passou de 1,5 milho para 2,3 milhes.
Box 1: Estimativa do excesso de capacidade de pesca
Global Para que os rendimentos da atividade pesqueiros cubram os custos
operacionais, a capacidade mundial de pesca deve ser reduzida em 25%; para cobrirem os custos totais preciso que ela seja reduzida em 53%;
O excesso da capacidade pesqueira mundial estimado em 30%. Internacional e nacional Unio Europia - em 1996, reconheceu a necessidade de reduzir sua
frota em 40% nos prximos seis anos; Federao Russa - faz-se necessria uma reduo de 2/3; Estados Unidos - dependendo da pescaria, necessrio que a frota
seja reduzida em at 75% de sua frota; Brasil - preciso uma reduo do esforo de pesca de at 2/3, de
conformidade com o tipo de pescaria empregado.
Fontes: Mace (1997) Dias Neto & Dorneles (1996).
Porm, no s a quantidade de barcos caracteriza um estado de excesso de capacidade de
pesca. O desenvolvimento tecnolgico, no que se refere aos apetrechos e tcnicas de pesca, aos
equipamentos de navegao por satlite e localizadores de cardumes, constitui, tambm, elemento de
aumento da capacidade pesqueira. Fitzpatrick (1995 apud Mace 1997), estudando detidamente o
poder de pesca advindo das novas tecnologias e tomando o ano de 1980 como ano-base, estimou
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coeficientes de impacto tecnolgico de 0,54 para 1965; 1,0 para 1980; e 2,0 para 1995, o que permite
a fcil concluso de que a taxa de crescimento da capacidade pesqueira duplicou entre 1965 e 1995
devido a fatores tecnolgicos.
As pequenas pescarias costeiras, em especial, dos pases mais pobres do planeta, tambm
podem ter problemas devido ao excesso de capacidade de pesca, mesmo que isto no resulte de
modificaes de seus padres tecnolgicos tradicionais ou do aumento da quantidade de
embarcaes. Elevados contingentes humanos ao migrarem para o litoral - tentando fugir da extrema
pobreza rural ou mesmo devido ao processo de concentrao fundiria - e se incorporarem s
pescarias que j operam sobre recursos finitos, podem causar o que Mace (1997) chama de
sobrepesca malthusiana.
4 - UMA PERGUNTA INCMODA, DE DIFCIL RESPOSTA
Como exposto nos itens anteriores, est configurada a tenso fundamental que hoje
domina a explotao dos recursos pesqueiros: recursos limitados a serem explotados por uma
dinmica capitalista que tende a expandir-se ao infinito. Assim, vale indagar: ser verdadeira a
afirmao de que a pesca "(...) contm em si o germe de sua prpria destruio." (Diegues, 1983)?
5 - ALGUMAS EXPLICAES COERENTES, PORM... INSUFICIENTES
A crise (ver Box 2) que atinge as pescarias ao redor do mundo tem sido analisada por
diversos autores que encontram mais ou menos um grupo comum de causas.
Para Mace (1997), as causas mais relatadas ou discutidas da crise que se instituiu no uso
dos recursos pesqueiros, tanto na literatura como nos momentos de avaliao do desenvolvimento
das pescarias so: a inadequao ou insuficincia da cincia pesqueira(ver Box 3); objetivos da gesto
inadequados ou no apropriados; insuficincia ou inadequao de dados estatsticos; instituies
inadequadas e deficincia no envolvimento dos diversos atores; e polticas nacionais e standarts
internacionais inadequados.
Garcia & Grainger (1997) consideram que a natureza dos recursos, a dinmica dos
setores pesqueiros e a deficincia dos sistemas de manejo so as causas fundamentais da sobrepesca
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e sobrecapitalizao, atribuindo responsabilidades compartilhadas entre o setor produtivo
empresrios e pescadores, os cientistas e os gestores dos recursos.
Box 2: Sobre o conceito de crise Crise um fenmeno que pode ser entendido a partir de dois
sentidos. No primeiro, "(...) crise entendida como um episdio em que a reproduo econmica se encontra bloqueada pela interrupo das catstrofes naturais ou eventos exteriores." (Nascimento, 1993). Neste caso, o sistema tende sempre para o equilbrio geral sendo perturbado apenas por fatores externos.
O segundo, em contradio com o primeiro, parte do pressuposto de que o sistema sofre crises a partir de fatores endgenos. Assim, crise passa a ser entendida como "(...) um episdio no qual a dinmica econmica e social entra em contradio com o processo de desenvolvimento que a impulsiona." (ibidem, Ibidem).
No marco da teoria da regulao a crise nada mais que a outra face da regulao e pode ser percebida em dois graus de profundidade, segundo Lipietz (1988). A primeira, chamada por esse autor de "pequena crise" ou "crise na regulao" (grifo do autor), "traduz a incompatibilidade das antecipaes e dos comportamentos; as foras coercitivas, de acordo com as formas institucionais do modo de regulao em vigor, devem, em princpio, trazer todos razo, isto , lgica imanente da configurao atual das relaes sociais.
A segunda, ainda de acordo com Lipietz (1988), configura-se na "grande crise" ou "crise da regulao" (grifo do autor) e se expressa por "(...) uma inadequao entre os comportamentos induzidos pelo prprio funcionamento do modo de regulao (...) e as exigncias da reproduo das relaes sociais na formao econmico-social (...)" ou ainda quando "(...) em conseqncia de uma evoluo no modo de produzir, essas exigncias [da reproduo das relaes sociais na formao econmico-social] tenham-se tornado contraditrias."
Ampliando as categorias de entendimento, Kailola (1998) encontra as razes da
sobrepesca na poltica, na dinmica de vida dos recursos, nos aspectos econmicos das pescarias, na
dinmica do meio ambiente, e no entendimento e comportamento da sociedade diante dos recursos.
Discutindo a crise da pescaria do bacalhau do norte, no Canad, McKay & Finlayson
(1997) afirmam que so por ela responsveis: as mudanas ambientais; a sobrepesca; o relativo livre
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acesso pescaria, apesar de controles formais e informais implementados pelo governo canadense, e,
finalmente, a globalizao.
Analisando o ordenamento da pesca martima brasileira, Dias-Neto & Dornelles (1996)
identificam na falta de clareza dos objetivos, no processo de formao das medidas, na deficincia da
fiscalizao e em outros mecanismos que faam cumprir a legislao, no uso inadequados de
incentivos e subsdios e na interferncia poltica, as principais causas da sobrepesca de nossas
principais pescarias.
As tentativas de explicao das causas da crise pelos diversos autores citados, embora
todas bem fundamentadas de per si, no constituem um todo estruturado que as relacionem entre si e
demonstrem os efeitos sinrgicos de umas sobre as outras.
Referem-se, na maoir parte, to-somente ao processo normativo, ou seja, formulao e
aplicao das normas de uso dos recursos pesqueiros, sendo portanto insuficientes para explicar o
que vem ocorrendo, pois no buscam no conjunto das relaes sociais que presidem, do direo e
estabilidade ao processo de produo e reproduo das pescarias, as disfunes que levaram ao
estado de crise generalizada em que se encontra o uso dos recursos pesqueiros.
Box 3: Inadequao ou insuficincia da cincia
A cincia pesqueira5 comea a se desvincular da biologia nos anos cinqenta quando o senso comum no mais dava conta de explicar o que estava acontecendo: aumentava-se o esforo de pesca e no se obtinham rendimentos proporcionais a tal aumento. Sinais considerveis de sobrepesca de determinadas pescarias do mar do norte e do atlntico norte exigiam explicaes e demandavam medidas de correo at ento desconhecidas.
A partir de ento, vrios modelos, cada vez mais sofisticados, foram
desenvolvidos, desde os mais simples, que buscam entender o comportamento de uma espcie submetida a determinados nveis de esforo de pesca, at os mais sofisticados como os da anlise virtual de populaes e aqueles mais sistmicos que procuram
5 possvel que do ponto de vista epistemolgico no se possa afirmar sobre a existncia de uma cincia pesqueira. O termo aqui utilizado para designar o conjunto de estudos sobre dinmica de populaes de organismos aquticos objeto das pescarias e a avaliao do estado dos estoques.
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compreender a dinmica de determinadas espcies na rede ecossistmica, levando-se em considerao tanto as aes antrpicas como a dinmica ambiental6.
Do ponto de vista de tal desenvolvimento, pode-se concordar com Mace (1997) quando ela afirma que no existe inadequao ou mesmo insuficincia de cincia para a regulao do uso dos recursos pesqueiros.
A inadequao comea a surgir quando se observa que a cincia pesqueira no fugiu regra da cincia moderna. Foi constituda e produz conhecimentos utilizando-se de disciplinas isoladas como a oceanografia fsica, a oceanografia qumica, a geologia marinha, a biologia pesqueira etc. todas com corpos tericos voltados para o entendimento do natural.
Alm de no produzir um todo integrado do conhecimento do natural os mares e seus seres, tal forma de produzir conhecimento ao naturalizar as relaes seres humanos natureza, porquanto, a ela s interessa conhecer os aspectos do meio fsico e o comportamento das espcies objeto das pescarias, perdeu a perspectiva de um todo socioambiental que constitui e preside as pescarias. Assim, os efeitos da ao antrpica sobre os recursos pesqueiros por meio do ato de pescar passaram a ser analisados somente no sentido do ato em si, sua dimenso e conseqncias, independentemente de quem o pratica, e das relaes sociais construdas para praticar e no ato de praticar.
Operando dentro do paradigma da modernidade, a cincia pesqueira passa a ser a nica fonte de produo de conhecimento reconhecida como verdade. Todo o saber sobre os mares e seus seres construdo pelas populaes pesqueiras durante geraes passou a ser desautorizado perante tal conhecimento, agora vlido e que podia ser demonstrado.
No se pode falar apenas na inadequao da cincia. Existe, principalmente em pases com o grau de desenvolvimento igual ou menor que o do Brasil, insuficincia de cincia. Poucas so as instituies de pesquisa pesqueira e poucos so os cientistas dedicados aos estudos dos mares e seus seres.
A avaliao das condies dos estoques pesqueiros e das pescarias, pela complexidade da dinmica do ambiente marinho e das prprias pescarias, requer longas, caras e complexas sries histricas de dados que, para serem obtidas, demandam altas somas de recursos, tecnologia e recursos humanos preparados, o que pases como aqueles nem sempre dispem .
Os resultados de uma cincia insuficiente podem ser os mesmos de uma cincia inadequada. A administrao do uso dos recursos pesqueiros se tornou to cientfica que existe a tendncia de utilizar os parmetros cientficos independentemente da qualidade com que so produzidos.
Apesar de inadequada e insuficiente, a partir dos anos1960, a cincia pesqueira passa a desempenhar um papel normativo e central no processo de regulao do uso dos recursos pesqueiros que deixa de ser uma questo poltica para ser problema tcnico a ser resolvido com base no saber cientfico. Nesse sentido, assim se posiciona Diegues (1995): Os parmetros naturais tornam-se critrios exclusivos para a manuteno dos estoques, independentemente dos hbitos (...) humanos, da existncia ou no de mercado etc. o caso de se utilizar somente o MSY (produo mximo sustentvel) como parmetro nico de uma captura tima7
6 Aqui no se tem o propsito de analisar a eficincia de tais modelos, nem fazer, sequer, uma reviso bibliogrfica do desenvolvimento ao longo do tempo, pontos que podem ser encontrados em Sharp (1995). 7 No captulo sobre sustentabilidade ser feita uma anlise do conceito de captura mxima sustentvel, sua utilizao na gesto e conseqncias de seu uso exclusivo.
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Uma questo central na relao entre cincia e regulao do uso dos recursos pesqueiros. Seja ela inadequada ou insuficiente: as principais concluses dos cientistas sobre o estado dos estoques explotados, principalmente quando tais concluses apontam ou constatam sobrepesca, nem sempre conseguem ser entendidas pelos pescadores ou mesmo chega a convenc-los da necessidade de serem tomadas fortes medidas de restrio a suas atividades. Desse modo, proteger os estoques, passa a ser ponto de conflito entre produtores e tomadores de deciso no mbito das agncias reguladoras, esses, quase sempre alinhados com as concluses da cincia.
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SEGUNDO CAPTULO EM BUSCA DE UM OUTRO OLHAR
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Existe um estado de crise no uso dos recursos pesqueiros. Inmeras pescarias ao redor
do mundo esto sobreexplotadas com perdas monumentais tanto para o meio ambiente como para a
economia de vrias regies ou mesmo de pases inteiros. Vrios autores, tambm do Brasil,
buscando explicaes para as razes que levaram as pescarias mundiais a tal estado, fizeram-no
abordando aspectos parciais do problema, no permitindo, assim, que se construsse um arcabouo
terico mais amplo para o entendimento do porqu da crise e que da se pudessem estabelecer
prticas para um outro modo de apropriao dos recursos pesqueiros.
Alm da abordagem sempre parcial das causas da sobreutilizao dos recursos
pesqueiros, entendemos que os vrios estudos empreendidos no se referem aos problemas
fundamentais da questo.
Consideramos problemas fundamentais como o faz Santos (1996):
"(...)so problemas que esto na raiz das nossas instituies e das nossas prticas,
modos profundamente arreigados de estruturao e de aco sociais consideradas por
alguns como fatores de contradies, antinomias, incoerncias, injustias que se
repercutem com intensidade varivel nos mais diversos setores da vida social."
Dizer que os seres humanos so seres sociais no constitui nenhuma originalidade.
Como tambm no original, mas aqui fundamental, a constatao de que realizam seus desejos e
suas necessidades por meio de projetos, que os unem e os opem de maneira conflituosa e mesmo
contraditria, estabelecendo, assim, relaes entre si.
No instante em que tais relaes se formam "(...) de acordo com um modelo, um
padro, que uma forma social reconhecida, preexistente (...)" (Lipietz, 1989), pode-se falar que
constituem relaes sociais.
O autor reconhece a existncia de uma relao social pela regularidade com que ocorre,
a maleabilidade em sua trajetria, portanto a capacidade de sofrer modificaes e a suscetibilidade de
reproduzir-se. Para ele regulao o "(...) modo como essa relao se reproduz apesar de seu carter
conflituoso e contraditrio" (ibdem, ibdem).
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Peck & Tickell (1992), dando operacionalidade ao conceito, entendem o modo de
regulao como "atos que visam garantir que o sistema de acumulao dominante se reproduza no
mdio prazo, atravs da acomodao, mediao e normalizao das tendncias de crise." Para esses
autores, os elementos formadores do modo de regulao incluem: hbitos e costumes, normas
sociais, leis e o poder de fazer com que sejam cumpridas, e o Estado.
Assim, regulao possui, de acordo com Gibbs (1996), uma: "variedade de formas,
desde a regulamentao das leis [e outra normas legais] e estruturas concretas [ao governamental]
at elementos intangveis como valores, [costumes, prticas sociais] e normas de comportamento."
O conceito de regulao, do modo posto, permite que se desenvolva um marco analtico
para o entendimento de como um conjunto de relaes sociais que envolvem aquelas entre os seres
humanos e desses com o meio ambiente (recursos ambientais) construdo e as razes que levam
sua reproduo, e, nesse contexto, como se apropriam de recursos ambientais como base de sua
reproduo material.
Assim...
1 - ...A REGULAO TEM SEU LUGAR...
1.1 - ...PELO CARTER DE RELAES SOCIAIS DAS PESCARIAS...
So usuais referncias s pescarias relacionando-as com o ambiente fsico sobre o qual
operam - pescarias do mar do Norte, do golfo do Mxico, costeiras, de alto mar, do Nordeste etc. ou
aos recursos que explotam: pesca da lagosta, de camares, do pargo etc., atribuindo um carter
natural e de relao unidirecional entre seres humanos e recursos pesqueiros.
As bases para que se possa conceituar pescarias como "fenmenos humanos"
(McGoodwin,1990) podem ser encontradas em Anderson (1977 apud McGoddwin, 1990), para
quem as pescarias constituem um conjunto de relaes entre "um estoque ou estoques de peixes e
empreendimentos que tm o potencial de explor-los"; em Spoehr (1980, apud McGoodwin, 1990),
que as considera como um "sistema scio-econmico e tecnolgico em interao com o ecossistema
marinho", e, finalmente, em Andersen (1980: 18 apud McGoodwin 1990), que as define como
atividades atravs das quais os indivduos mantm relaes entre si, com o ambiente aqutico e
com os recursos renovveis".
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Para Diegues ( 1983), citando Godelier, as pescarias ocorrem presididas por "normas de
racionalidade intencional entendida como um conjunto de regras sociais, conscientemente elaboradas
e explicadas que se destinam a atingir certos objetivos societrios".
Como todo processo de construo de relaes sociais, aquelas que se definem para a
produo e reproduo das pescarias se do a partir de estruturas conflituosas e contraditrias,
significadas por projetos e objetivos dos indivduos, que buscam se tornarem hegemnicos e dessa
forma balizarem a direo do processo de reproduo social.
1.2 - ...PELO CARTER AUTODESTRUTIVO DO CAPITALISMO...
O sistema capitalista se reproduz, ampliadamente, apesar de uma dupla contradio
interna que por lgica deveria lev-lo autodestruio. A primeira, formulada por Marx, inscreve-se
na relao capitaltrabalho e simbolizada pela taxa de explorao, a qual, segundo Lipietz (1989):
"Pode ser resumida em uma frase: ou a taxa de explorao forte demais e h ameaa
de uma crise de superproduo, ou fraca demais, e a ameaa de sub-investimento.
Essa taxa funo, por um lado, das relaes da distribuio (das normas de consumo)
e, por outro, das transformaes na produo (das normas de produo, e em particular
dos lucros de produtividade e das mudanas na composio orgnica dos capitais."
A segunda, proposta por O'Connor (1991), tendo como base o conceito de condies
de produo e mercadorias fictcias, de Karl Polanyi, expressa a tenso entre capital-trabalho e meio
ambiente, de modo que, quando o sistema capitalista se encontra em uma crise de custos, tende a
destruir suas prprias condies de produo.
Conseqentemente, o capitalismo depende, para o seu funcionamento, de uma estrutura
institucional reguladora que mantenha sua tendncia a crises dentro de limites aceitveis que no
comprometam sua capacidade de acumulao e reproduo ou mesmo de um determinado modo de
produo dele diferente, porm a ele subordinado.
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1.3 - ...PELA RELAO ESTABELECIDA ENTRE PROPRIEDADE ESTATAL E APROPRIAO PRIVADA DOS RECURSOS PESQUEIROS
1.3.1 - A questo da propriedade
Do ponto de vista terico existem cinco categorias de propriedade dos recursos
pesqueiros que tomando-se como base Fenny et. al., 1990, e van der Elst et. al., 1997, podem ser
assim descritos:
Propriedade comum - para os recursos de propriedade comum no existem
proprietrios e nem direitos de propriedade; o acesso aos recursos no regulado,
sendo aberto e livre para qualquer indivduo ou empresa. Muitos autores consideram
recursos de propriedade comum como recursos de livre acesso;
Propriedade privada - aqui os direitos de propriedade pertencem aos indivduos ou s
empresas que tm direitos exclusivos de uso. Como recursos privados, so
administrados por seus proprietrios que tambm tm o direito de manter para si ou
vender, no todo ou em parte, tanto os recursos em si como o esforo de pesca que
lhes pertence e com o qual se apropria de tais recursos. Configuram-se, assim, as
condies de exclusividade e transferibilidade, caractersticas dos bens privados,
cabendo ao Estado apenas assegurar os direitos da propriedade privada;
Propriedade comunal ou comunitria - nesse caso, os recursos pertencem a uma
comunidade ou a usurios que mantm entre si um alto grau de interdependncia. Os
recursos so administrados coletivamente, sendo os direitos de uso vedados a
terceiros. Internamente comunidade, no existem as condies de exclusividade e
transferibilidade sendo o direito de uso e acesso igual para todos. Os direitos de
propriedade comunal ou comunitria podem ser assegurados e reconhecidos pelo
Estado ou simplesmente existir de fato, pela tradio ou direitos de ancestrais. Em
geral, as regras de uso dos recursos so estabelecidas pela comunidade proprietria
associada em maior ou menor grau com o Estado.
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Propriedade do Estado - os recursos sob propriedade do Estado se caracterizam por
encontrarem nessa instncia o poder decisrio sobre o nvel e a natureza da
explotao. O Estado como proprietrio dos recursos pode explor-lo diretamente ou
alocar direitos de uso a seus cidados ou empresas.
Propriedade Global ou Internacional - os recursos que ocorrem alm das zonas
econmicas exclusivas - ZEEs so considerados de propriedade ou uso comum das
naes, prevalecendo para eles, em princpio, a regra do livre acesso. No entanto, para
recursos de grande importncia econmica ou ambiental, convenes, acordos ou
tratados internacionais regulamentam os principais parmetros da explotao,
tentando evitar o livre acesso e suas implicaes negativas sobre a sade dos estoques
e a lucratividade dos empreendimentos econmicos.
No caso brasileiro, os recursos pesqueiros marinhos podiam ser considerados,
juridicamente, de propriedade comum (res nullius) at 1988. Apesar de tal situao jurdica, o Estado
brasileiro exercia tutela sobre tais bens, controlando o acesso e regulamentando as condies de
pesca para as principais espcies.
A Constituio Federal promulgada em 1988, embora no se refira especificamente aos
recursos pesqueiros, modifica substancialmente tal situao. Define, a Carta Magna, em seu artigo 20,
que os recursos naturais da plataforma continental e da zona econmica exclusiva - ZEE pertencem
Unio, assim como o mar territorial. Por conseguinte, pertencem Unio os recursos pesqueiros,
no primeiro caso, por serem um subtipo de recurso natural e, no segundo, por serem parte
constituinte e indissocivel do prprio mar territorial.
Devido ao novo estatuto jurdico, as questes relativas propriedade dos recursos
pesqueiros devem, agora, ser analisadas luz do artigo 225 da prpria Constituio Federal de 1988,
considerando-se que tais recursos, tambm, constituem recursos ambientais por fora do Inciso V,
Artigo 3, da Lei N 6.938, de 31 de agosto de 1981.
O art. 225 da Constituio Federal de 1988 estatui que todos tm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as
presentes e futuras geraes.
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Observe-se que tal dispositivo constitucional contm os trs elementos fundamentais da
organizao de uma sociedade poltica: um direito, um dever e a prescrio de normas. O direito, que
se constitui em um direito fundamental embora no explicitado no captulo correspondente: direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial sadia qualidade de vida; o dever, que se refere ao
Estado e coletividade: defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras
geraes; a prescrio de normas impositivas de conduta, incluindo normas-objetivo, visando mesmo
assegurar o que expressa como direito (Derani, 1997).
O meio ambiente ecologicamente equilibrado, a que todos tm o direito de usufruir, ,
para a autora, "(...) simultaneamente um direito social e individual.", sendo que "(...) desse direito de
fruio (...) no advm nenhuma prerrogativa privada (...)", pois sua realizao "(...) est
intrinsecamente ligada sua realizao social."
Desta forma, o meio ambiente como macrobem, como patrimnio coletivo, sempre
um bem pblico, no podendo, no entender de Farias (1998 apud Dornelles, 1999) ser privatizado.
Esse patrimnio ao tornar-se necessrio realizao material dos indivduos e da
sociedade, passa, porm, a admitir que algumas de suas partes constituintes, entendidas como
microbens, venham a ser pblicas ou privadas.
fundamental observar, nesse caso, que tanto os bens ambientais privados, quanto os
pblicos para os quais se admite apropriao privada, esto regidos pelo princpio do interesse
coletivo ou social, em que "(...) a sociedade representada unida em torno de um interesse comum,
no se procurando esquivar das evidentes diferenas, nem unir idealisticamente todos,
independentemente de suas diferenas sociais, num messinico interesse comum." (Derani, 1997).
Ao direito de usufruir um meio ambiente ecologicamente equilibrado corresponde o
dever de proteg-lo para as presentes e futuras geraes.
O avano considervel que trouxe a Constituio Federal de 1988 reside no fato de que
esse dever no um nus atribudo apenas ao Poder Pblico, a ter lugar no mbito da cada poder
estatal (Executivo, Legislativo e Judicirio) de acordo com as competncias juridicamente definidas,
mas tambm coletividade.
A responsabilidade social que reveste o dever de proteger o meio ambiente aduz a que
Estado e sociedade construam espaos de colaborao e participao no processo de tomada de
deciso quanto ao uso dos recursos ambientais bem como da formulao de normas que lhe do
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conseqncia, ou seja, demanda a formulao e implementao de polticas pblicas que balizem o
comportamento dos agentes econmicos e sociais no aproveitamento de tais recursos.
Dentre as normas impositivas de conduta, que fixam, de acordo com Derani (1997), "(...)
tarefas diretivas e materiais ao Estado, declarando atividades que esto especialmente sob sua tutela e
descrevendo deveres especiais do Poder Pblico" interessa, aqui, fundamentalmente, o inciso I, 1,
do art. 225 da CF, notadamente sua segunda parte:
" art. 225 - ............................................................................................
1 - Para assegurar a efetividade desse direito, incube ao poder pblico:
I - preservar e restaurar os processos ecolgicos essenciais e prover o manejo ecolgico das espcies e ecossistemas.
............................................................................................................." (grifo nosso)
A ao de prover que estabelece essa norma deve ser entendida como a de regular o uso
dos recursos ambientais materiais no sentido claro de estruturar a explorao de tais recursos de
modo que, com a eficincias produtiva e o efeito social da produo, sejam compatibilizados e
traduzidos na sustentabilidade plena.
Assim, luz do artigo 225 da Constituio Federal, os recursos pesqueiros marinhos, no
Brasil so propriedade da Unio Federal, no alienveis, como estoques, pois assim se constituem
um macrobem ambiental. No entanto, so passveis de apropriao privada, se considerados partes
dos estoques, como microbens necessrios para a satisfao de necessidades individuais e coletivas.
Devendo o Estado, nesse caso, regular seu uso para que se atinja, no prprio ato de usar, a
sustentabilidade requerida tanto do ponto de vista ambiental/ecolgico, como social e econmico.
1.3.2 - A questo do acesso
As estruturas de propriedade condicionam as formas ou os direitos de acesso. Derivado
da ausncia de propriedade, de qualquer tipo, ou ainda podendo resultar da quebra das instituies
que garantem a propriedade comunal (Berkes, 1989), o livre acesso caracterizou as normas e formas
de apropriao dos recursos pesqueiros at os primeiros anos do sculo XX (Scott, 1999a). No
obstante, no se deve deixar de reconhecer a existncia de algumas normas que constituam sistemas
de controle entre comunidades pesqueiras aborgines em vrias partes do mundo; ou, dizendo de
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outro modo, no desconhecendo a existncia de propriedade comunal, com uso regulado dos
recursos, em vrias partes do mundo.
Os efeitos do livre acesso sobre os recursos pesqueiros podem ser entendidos a partir
das posies defendidas por Hardin (1968), caso se concorde com a observao feita por Berkes
(1989) de que aquele autor confundiu recursos de propriedade comunal com recursos sobre os quais
no existe qualquer direito de propriedade.
Desta forma, na ausncia de restries entrada na pesca, quando a margem de lucro se
torna decrescente - em funo do aumento do esforo de pesca - os pescadores individuais, ao invs
de diminurem o esforo empregado, tendero a aumentar seu poder de pesca, presididos pela lgica
de que hoje tem mais peixe a ser pescado do que ter amanh. Neste instante prevalecem os
benefcios individuais sobre aqueles da coletividade, e "(...) instaura-se uma dinmica de dilapidao
dos recursos, de superexplorao, bem como de superinvestimento, quando se trata de recursos
dispondo de um mercado."(Weber, 1997).
O acesso aos recursos sob o regime de propriedade privada direito exclusivo do
proprietrio. No caso dos recursos pesqueiros, a propriedade privada e, por conseguinte, o acesso
exclusivo aos recursos surgem como produto das concluses de Hardin (1968), para quem somente a
iniciativa privada ou uma forte regulao estatal seria capaz de evitar a sobreexplotao dos recursos.
A principal forma de propriedade privada dos recursos pesqueiros so as cotas
indivi