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  • CRISE E SUSTENTBILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS

    DISSERTAO DE MESTRADO SIMO MARRUL FILHO

    UnB/CDS

    Braslia, abril de 2001

  • ii

    UNIVERSIDADE DE BRASIA

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    CRISE E SUSTENTABILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS

    SIMO MARRUL FILHO

    ORIENTADOR: MARCEL BURSZTYN

    DISSERTAO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    BRASLIA, ABRIL DE 2001

  • iii

    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    CRISE E SUSTENTABILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS

    SIMO MARRUL FILHO

    Dissertao de Mestrado submetida ao Centro de Desenvolvimento Sustentvel da

    Universidade de Braslia como parte dos requisitos necessrios para a obteno do Grau de Mestre

    em Desenvolvimento Sustentvel, rea de concentrao Poltica e Gesto Ambiental, opo

    Profissionalizante.

    APROVADO POR:

    Prof. Dr. MARCEL BURSZTYN

    ORIENTADOR

    Prof. Dr. BRULIO FERREIRA DE SOUZA DIAS

    MEMBRO EXTERNO

    Prof. Dr. ANTNIO CSAR PINHO BRASIL JUNIOR

    MEMBRO INTERNO

    BRASLIA, 24 DE ABRIL DE 2001

  • iv

    MARRUL FILHO, Simo

    Crise e Sustentabilidade no Uso dos Recursos Pesqueiros./Simo Marrul Filho Braslia: Universidade de Braslia, Centro de desenvolvimento Sustentvel. 2001. 107p. (Dissertao de Mestrado de Gesto e Poltica Ambiental. 2001; CDS 038m)

    Inclui bibliografia

    1. Recursos Pesqueiros 2. Sustentabilidade 3. Regulao I. Universidade de Braslia, Centro de Desenvolvimento Sustentvel. II. Ttulo CDU

    concedida Universidade de Braslia permisso para reproduzir cpias dessa

    dissertao e emprestar ou vender tais cpias somente para propsitos acadmicos e cientficos. O

    autor reserva outros direitos de publicao e nenhuma parte dessa dissertao de mestrado pode ser

    reproduzida sem a autorizao por escrito do autor.

    Simo Marrul Filho

  • v

    Aos meus pais, Simo (in memorian) e Zinomar, sabendo que um presente infinitamente pequeno frente ao presente que me deram: a vida;

    Edenia, Indira e Daniel, que compreenderam minha ausncia, compartilharam com o ideal e incentivaram com o sorriso amigo, a palavra carinhosa e o amor dedicado.

  • vi

    Boaventura Souza Santos, ao explicitar seu guio sobre o saber e a ignorncia, afirma que

    uma vez realizada a ruptura epistemolgica entre o conhecimento cientfico e o senso comum, ato

    revolucionrio praticado pela cincia moderna, chegou o momento de um novo ato epistemolgico

    mais importante: romper com a cincia moderna e fazer com que o conhecimento cientfico se

    transforme em um novo senso comum. Para isso preciso criar saberes contra o saber e contra os

    saberes, contra-saberes. Crendo que o CDS um espao que permite buscarmos tal nova ruptura,

    agradeo aos professores, funcionrios e colegas de turma por terem me feito participar desta utopia.

    Agradeo, em especial, Ao Prof. Marcel Burzstyn, que na viagem desta utopia me dedicou

    muito mais do que algumas de suas preciosas horas. Proporcionou-me, em seu processo muito

    particular de orientao, o encontro de saberes na busca da construo de um contra-saber.

    Aos amigos Dias, Elsio, Lia, Norma, Patrcio, Quintas e Vitria, um agradecimento

    carinhoso por terem sido leitores crticos e praticado com sabedoria o afirmar sem ser cmplice,

    criticar sem desertar topos fundamental do guio saber e ignorncia de Boaventura Souza Santos.

  • vii

    Resumo

    Ultrapassando as estruturas conceituais da cincia pesqueira, sem no entanto

    desconsidera-las, este trabalho analisa as causas da sobreexplotao que hoje atinge os principais

    recursos pesqueiros.

    Procede a uma reviso bibliogrfica que aponta o excesso de capacidade pesqueira como

    causa primeira da crise de sustentabilidade por que passam os principais recursos pesqueiros

    mundiais e brasileiros.

    Incorpora outros marcos analticos para considerar que a raiz primeira de tal crise se

    encontra no processo de regulao do uso dos recursos pesqueiros e sua insuficincia, e na reduo

    do conceito de sustentabilidade ao de captura mxima sustentvel, em particular no Brasil

    Partindo do princpio que a anttese da insuficincia de regulao no a

    desregulamentao e sim a re-regulao, prope que este novo processo seja desenvolvido a partir de

    um modelo institucional constitudo de espaos comunicativos, onde Estado e usurios dos recursos

    pesqueiros possam negociar seus objetivos e projetos de forma democrtica e participativa, e tenha o

    conceito pleno de sustentabilidade como vetor instituidor de uma nova ordem no uso dos recursos

    pesqueiros.

    Palavras-chave: Recursos Pesqueiros; Sustentabilidade; Regulao.

  • viii

    Abstract

    This dissertation analyzes the causes of overfishing of the main fishery resources, by

    pushing forwards the existing conceptual structures without denying its fundaments.

    A bibliographical review shows an exceeding fishing capacity as the first cause of the

    sustainability crisis of world (and Brazilian) fishing resources..

    The dissertation aggregates other analytical frameworks in order to consider that the

    main causes of the crisis is in the use regulation process of fishery resources and in the reduction of

    the concept of sustainability to the one of maximum sustainable yield, particularly in Brazil.

    Assuming that the antithesis of insufficient regulation is not deregulation but re-

    regulation, the dissertation proposes the development of a new process, based on a new

    institutional model. In this process, State and fishery resources users can negotiate their objectives

    and projects in a democratic and participatory way. Furthermore, this process must adopt the

    concept of sustainability in a full way, as founder of a new fishery resources use order.

    Key words: Fishery Resources; Sustainability; Regulation

  • NDICE

    Resumo _________________________________________________________________ vii

    Abstract _________________________________________________________________ viii

    INTRODUO ___________________________________________________________ 2

    PRIMEIRO CAPTULO - A CRISE: A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS_____________________________________________________________ 6

    1 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE A PESCA E A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS EM ESCALA PLANETRIA ______________________________ 7

    2 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O MODELO DE DESENVOLVIMENTO PESQUEIRO NO BRASIL ______________________________________________________ 12

    3 - A FACE MAIS VISVEL E AMEAADORA DA CRISE ____________________________ 26

    4 - UMA PERGUNTA INCMODA, DE DIFCIL RESPOSTA ________________________ 27

    5 - ALGUMAS EXPLICAES COERENTES, PORM... INSUFICIENTES_____________ 27

    SEGUNDO CAPTULO EM BUSCA DE UM OUTRO OLHAR__________________ 32

    1 - ...A REGULAO TEM SEU LUGAR... ________________________________________ 34 1.1 - ...PELO CARTER DE RELAES SOCIAIS DAS PESCARIAS... _________________________ 34 1.2 - ...PELO CARTER AUTODESTRUTIVO DO CAPITALISMO... ___________________________ 35 1.3 - ...PELA RELAO ESTABELECIDA ENTRE PROPRIEDADE ESTATAL E APROPRIAO PRIVADA DOS RECURSOS PESQUEIROS_______________________________________________ 36

    2 - ... PORM EXERCIDA DE MANEIRA INSUFICIENTE ... ______________________ 44 2.1 - ... DEVIDO REDUO DA FUNO DE REGULAO..._____________________________ 44 2.2 - ... DEVIDO AO ESTADO ... _______________________________________________________ 45 2.3 - ... DEVIDO AO MERCADO ... _____________________________________________________ 46 2.4 - ... DEVIDO COMUNIDADE ... ___________________________________________________ 48

    TERCEIRO CAPTULO BASES PARA UMA REGULAO "SUSTENTABILISTA" NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS ____________________________________ 50

    1 - DE QUE SUSTENTABILIDADE SE FALA ______________________________________ 51 1.1 - AS MLTIPLAS NOES DE SUSTENTABILIDADE __________________________________ 56 1.2 - AS MLTIPLAS DIMENSES DA SUSTENTABILIDADE_______________________________ 59

    2 A SUSTENTABILIDADE NO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS ________________ 65

    CAPTULO QUARTO - A TTULO DE CONCLUSO: UM NOVO CONTRATO OU RE-REGULANDO O USO DOS RECURSOS PESQUEIROS _____________________ 72

    BIBLIOGRAFIA __________________________________________________________ 86

    APNDICE I ____________________________________________________________ 92

    APNDICE II____________________________________________________________ 96

  • 2

    INTRODUO

    No so poucos os pensadores que afirmam que a humanidade vive uma crise

    civilizatria cuja dimenso, nos dizeres de Bartholo Jr. (1985), (...) pode ser bem retratada na

    radicalidade de seu risco maior: por primeira vez somos confrontados com a possibilidade de

    destruio de toda a Humanidade e toda forma planetria de vida, como conseqncia de atos

    humanos..

    Tambm, no so poucos os que com esse autor consideram que tal risco no se encerra

    na possibilidade terrvel do holocausto nuclear. Ameaas de igual gravidade, porm cujos efeitos se

    fazem sentir no longo prazo, so encontradas no conjunto das intervenes humanas que produzem,

    entre outros efeitos deletrios ao meio ambiente, o esgotamento dos recursos naturais, mesmo

    aqueles considerados renovveis.

    Desta forma, concordo novamente com Bartholo Jr. (1985), quando ele afirma que O

    vetor dinmico desse processo a busca de um crescimento irrestrito da produo material de

    valores de uso (...), para satisfazer a (...) insaciabilidade das necessidades econmicas, pretensamente

    inerente prpria natureza humana.

    Nesse quadro insere-se a crise de sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros. Seus

    sinais visveis e inequvocos se mostram na sobreutilizao sem precedentes, na histria da

    humanidade, dos estoques pesqueiros mundiais, inclusive os brasileiros.

    Perceber a existncia de tal crise pelo marco analtico da biologia pesqueira no tarefa

    das mais complicadas, mesmo no se possuindo informaes estatsticas precisas, como o caso do

    Brasil.

    Porm, h tempo uma situao me inquietava. No me satisfazia o entendimento de que

    a aplicao rigorosa das normas de uso, produzidas pela melhor cincia biolgico-pesqueira, apoiada

    pelo maior esforo fiscalizador possvel, fosse suficiente para gerar sustentabilidade no uso dos

    recursos pesqueiros. Faltava-nos, no entanto, o conhecimento de outros marcos tericos capazes de

    nos fazer perceber o que era necessrio sustentabilidade. Faltava-me a viso de que "(...) a natureza

    a segunda natureza da sociedade e como sociedade de segundo grau que deve ser estudada..."

  • 3

    (Santos, 1996) para que assim pudesse buscar nos fenmenos sociais a raiz da crise de

    sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros.

    O Centro de Desenvolvimento Sustentvel, da Universidade de Braslia, ao oferecer o

    Mestrado em Desenvolvimento Sustentvel, com sua proposta pedaggica e de gerao do

    conhecimento pela interdisciplinariedade proporcionou-me a oportunidade para uma nova

    formulao pessoal.

    E, assim, sem desprezar o olhar das cincias naturais, necessrias, porm insuficientes, o

    objetivo principal que inspirou esta dissertao foi contribuir para a construo de um outro olhar

    sobre a crise, talvez mais amplo que aquele, envolvendo-o, e dessa forma participar da construo de

    um outro futuro possvel para as pescarias.

    Analisei a crise de sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros apenas sob a tica das

    atividades pesqueiras. Tal fato no demonstra meu desconhecimento de que outras aes antrpicas

    impactam os recursos pesqueiros. Simplesmente, parti do princpio de que no caso brasileiro no so

    elas as principais causadoras da depleo nos estoques, embora em alguns pontos isolados do litoral

    isso possa vir a acontecer. Por outro lado, no levei em considerao os fenmenos globais

    causadores de perturbaes e degradaes ambientais (por exemplo, mudanas climticas), por no

    encontrar na literatura bases de apoio.

    Restringi-me s pescarias marinhas. Isso no significa que atribuo uma menor

    importncia aos pescadores de guas continentais e sua pescarias. Apenas tomei como base o dito

    popular o hbito faz o monge, ou seja, minha experincia profissional, que se construiu

    basicamente com pescadores e pescarias de ambientes marinhos.

    Corri um risco: analisei as pescarias como se elas fossem um todo homogneo. No o

    so. No entanto, o so os fundamentos para a gesto, o que me permitiu question-los como um

    todo.

    Acredito que mesmo sem nenhuma referncia explcita aos principais diplomas de

    regulao internacional que tratam da sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros, entre eles a

    Conveno das Naes Unidas para o Direito do Mar, a Conveno das Naes Unidas sobre a

    Diversidade Biolgica e o Cdigo de Pesca Responsvel, da Organizao das Naes Unidas para a

    Agricultura e Alimentao FAO, seus princpios fundamentais esto incorporados ao texto.

  • 4

    A metodologia utilizada nesse trabalho se constituiu de levantamento e anlise

    bibliogrfica, principalmente de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Substitumos uma

    possvel pesquisa de campo (acredito que sem cometer um srio erro metodolgico), pela

    recuperao da vivncia que tive com a gesto dos recursos pesqueiros no Brasil, acumulada durante

    os vinte e cinco anos em que, ora como tcnico, ora como dirigente, trabalhei nas trs instituies

    do poder pblico responsveis pela questo. Mesmo assim, algumas hipteses e dvidas foram

    testadas em entrevistas no estruturadas com dirigentes de organizaes de pescadores de pequena

    escala, empresrios e armadores de pesca, alm de tcnicos do Instituto Brasileiros do Meio

    Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis IBAMA.

    No Primeiro Captulo, tentarei mostrar a existncia da crise e seus contornos. Destacarei

    que a sobrecapitalizao a face mais visvel de tal crise para, em seguida, transformar em uma

    incmoda pergunta, de difcil resposta, uma afirmativa feita por Diegues (1983): A pesca contm em

    si o germe de sua prpria destruio? Apresentarei finalmente um conjunto de explicaes que

    entendo coerentes, porm insuficientes para explicar o porque da crise.

    Buscarei um outro olhar sobre a crise no Segundo Captulo. Ali, tentarei construir

    argumentos para mostrar que a Regulao tem seu lugar, pelo carter de relaes sociais das

    pescarias, pelo carter autodestrutivo do capitalismo e pela relao estabelecida entre propriedade

    pblica e apropriao privada dos recursos pesqueiros, mas que, no entanto, exercida de maneira

    insuficiente, devido reduo da funo de regulao, e s falhas do Estado, do mercado e da

    comunidade.

    No Terceiro Captulo, buscando construir bases para uma regulao sustentabilista no

    uso dos recursos pesqueiros, irei criticar o conceito de desenvolvimento sustentvel para legitimar o

    de sustentabilidade como portadora do futuro. Tentarei mostrar, tambm, que a utilizao exclusiva

    do conceito de captura mxima sustentvel, como base para a regulao, torna o uso dos recursos

    pesqueiros insustentvel.

    Finalmente, a ttulo de concluso, no Quarto Captulo, ousei. Partindo do pressuposto

    de que a anttese da insuficincia de regulao no a desregulamentao, mas sim a re-regulao, irei

    propor a construo de dois espaos comunicativos onde o Estado e os usurios dos recursos

    pesqueiros possam vir a negociar seus objetivos e projetos, de forma democrtica e participativa,

    tendo a sustentabilidade com vetor instituidor de um novo contrato para que, quem sabe em um

  • 5

    futuro possvel, a sociedade brasileira possa afirmar com preciso que suas pescarias no contm em

    si o germe de sua prpria destruio.

  • 6

    PRIMEIRO CAPTULO - A CRISE: A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS

    "A anlise do presente e do passado, por mais profunda que seja, no pode fornecer mais do que um horizonte de possibilidades, um leque de futuros possveis ..."

    Boaventura Souza Santos

  • 7

    1 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE A PESCA E A SOBREUTILIZAO DOS RECURSOS PESQUEIROS EM ESCALA PLANETRIA

    Registros histricos relatam a ocorrncia de sobrepesca na costa peruana h 3.000 anos

    (McGoddwin, 1990). No entanto, esse autor sugere que, do surgimento do homem at o incio da era

    moderna, as racionalidades sociais, o baixo nvel das tecnologias empregadas na atividade pesqueira e

    a baixa demanda por alimentos, em decorrncia do reduzido tamanho das populaes, alm da

    vastido dos espaos pesqueiros disponveis, circunscreveram os casos de sobreexplotao a algumas

    poucas espcies, notadamente espcies ssseis, como as ostras.

    A Revoluo Industrial se constituiu em importante marco histrico nas relaes

    homem-recursos pesqueiros. As formas de organizao social da produo pesqueira, nas quais os

    seres humanos retiravam da natureza pequenas quantidades, sem grandes danos ambientais, foram

    radicalmente modificadas pelas grandes transformaes tecnolgicas e pela rpida urbanizao,

    caractersticas do perodo, e pela construo de portos pesqueiros urbanos, j no sculo XIX.

    Do ponto de vista tecnolgico, a primeira grande modificao se deu nos meios de

    propulso. At ento movidos vela, tendo suas condies de operao condicionadas pelas prprias

    foras da natureza, os barcos pesqueiros passaram a ser movidos por mquinas a vapor e, mais tarde

    por mquinas movidas a combustveis fsseis, ampliando assim seus raios de ao e podendo ir at

    pesqueiros nunca antes explotados. As transformaes tecnolgicas e o maquinismo logo atingiram

    as tarefas de captura, permitindo o desenvolvimento de grandes redes e equipamentos de auxlio

    pesca. O desenvolvimento das tecnologias de resfriamento a bordo proporcionou o aumento do

    nmero de dias que uma embarcao podia passar no mar, assim como melhorou significativamente

    a qualidade do pescado desembarcado, com fortes reflexos nos preos dos produtos pesqueiros.

    Dessa forma ampliou-se o poder de captura para limites at ento desconhecidos.

    Aps a Segunda Guerra Mundial, o poder de pesca das frotas mundiais foi de novo

    ampliado na medida em que toda a tecnologia naval desenvolvida com fins militares foi sendo

    rapidamente apropriada e adaptada para as embarcaes pesqueiras. A partir da, surgiram novas

    tcnicas de construo naval, novos materiais para a construo de cascos, novas tcnicas de

    navegao e localizao de cardumes, com a utilizao de radares e ecossondas, e novos avanos

    nos sistemas de refrigerao permitiram o congelamento a bordo.

  • 8

    Mais recentemente, a navegao orientada por satlite e o uso de computadores que

    controlam vrias tarefas pesqueiras com preciso permitiram um nvel de avano tecnolgico que

    mudou por completo o conjunto das relaes entre os seres humanos e a natureza, no que se refere

    apropriao dos recursos pesqueiros.

    O saber-fazer, baseado no conhecimento tradicional sobre a dinmica dos oceanos e no

    ciclo de vida dos recursos pesqueiros, suficiente para produzir uma quantidade de pescado necessria

    subsistncia das comunidades produtoras e at mesmo sua insero nos mercados locais, vem

    sendo substitudo pelo saber-usar instrumentos tecnolgicos, pelo saber-ler grficos, pelo saber-

    interpretar informaes, saberes requeridos pela necessidade de produo em larga escala. Explicitava-

    se, assim, a completa separao entre os seres humanos e os recursos pesqueiros (natureza) que, h

    muito, marcava outros setores da vida humana. A natureza de provedora de subsistncia passa a ser

    "produtora" de bens de consumo de origem marinha.

    O processo iniciado com a Revoluo Industrial gerou, por sua vez, as condies para a

    penetrao e o desenvolvimento do modo de produo capitalista na atividade pesqueira que,

    separando completamente o homem da natureza, permite desenvolver uma racionalidade utilitarista e

    produtivista na apropriao dos recursos pesqueiros.

    Tal processo pode ser dividido em dois perodos, seguindo as etapas globais do

    desenvolvimento do modo de produo capitalista em suas relaes com a natureza segundo

    OConnor (1994). No primeiro, dominado pela tica da economia de fronteira, prevalece a lgica de

    dominao e explorao da natureza, seus bens e servios, considerada externa ao capital. Nessa

    etapa, o aumento constante da produo pesqueira, na proporo direta do aumento de esforo -

    movimento tpico das fases iniciais das pescarias - consolidou a viso de inesgotabilidade dos

    recursos pesqueiros.

    O segundo perodo, mais recente, tem origem no momento em que o desenvolvimento

    das foras produtivas do capital foi surpreendido pelos primeiros sinais de que os recursos

    ambientais, entre eles os pesqueiros, no eram inesgotveis. A partir de ento teve incio um processo

    de ressignificao da natureza, que de externa passa a ser entendida como interna ao prprio capital,

    sendo seus bens agora vistos como estoques e classificados como elementos de uma natureza

    considerada como capital para a finalidade da reproduo expandida do capital (OConnor, 1994a),

    chamados de capital natural. Tal ressignificao ocorre na fase que OConnor (1994b) denomina de

  • 9

    fase ecolgica do capital e constitui base ideolgica para uma nova etapa de acumulao e

    crescimento, sob os argumentos da gesto e conservao dos elementos da natureza, cuja

    regenerao agora se faz (...) pelo controle dos regimes de investimento (...) integrados no clculo

    racional da produo e troca, atravs do milagre do sistema de preos (...) (OConnor, 1994b).

    Diferentemente de outros setores produtivos, a pesca encontra nos prprios recursos de

    que se apropria algumas caractersticas muito especiais que atuam de forma contrria racionalidade

    que hoje a preside.

    Assim, cabe destacar que os recursos pesqueiros no surgem como produto do trabalho

    humano, pois "(...) ao contrrio da produo industrial, a reproduo dos objetos de trabalho - o

    pescado - se realiza segundo leis de reproduo biolgica dos cardumes, as quais escapam ao

    controle do homem" (Diegues, 1983). No plano mais geral, OConnor ( 1994a) afirma que (...) um

    fato que o capital no controla nem pode controlar a reproduo e modificaes das condies

    naturais de produo no mesmo plano em que regula a produo industrial de mercadorias. Desta

    forma, tanto na atividade pesqueira como na apropriao capitalista dos recursos ambientais

    explicita-se o surgimento das mercadorias fictcias, ou seja, (...)coisas que no so produzidas como

    mercadorias mas so tratadas como se o fossem ( OConnor, 1988).

    A atividade pesqueira encontra nos ecossistemas marinhos que explota suas prprias

    condies naturais de produo - os recursos pesqueiros, categorizados na literatura econmica

    como recursos naturais renovveis. No entanto, tais recursos so na realidade potenciais at que sejam

    transformados em objeto de trabalho ou em meio de subsistncia pelo trabalho humano.

    A reproduo biolgica e o crescimento dos indivduos, fenmenos indispensveis

    renovao dos estoques, so limitados pela capacidade de carga do ambiente no qual ocorrem,

    impondo limites ao tamanho dos estoques capturveis. Constri-se assim, naturalmente, um teto

    mximo sob o qual a atividade pesqueira pode operar - fato contrrio prpria dinmica do

    capitalismo em sua tendncia ao desenvolvimento infinito, ou seja (...) um limite biofsico ao

    processo de acumulao (OConnor, 1994a).

    As flutuaes no tamanho dos estoques explotveis, provocadas tanto por fatores

    naturais como por aquelas decorrentes de desequilbrios ambientais ocasionados por atividades

  • 10

    antrpicas, causam imensas dificuldades na previso de rendas futuras, resultando em altas incertezas

    econmicas para a atividade pesqueira.

    A mobilidade dos organismos aquticos, a distribuio geogrfica das populaes, a

    extenso territorial onde acontece a pesca e a ocorrncia de vrias espcies em um mesmo ambiente

    explotado so propriedades que circunscrevem os recursos pesqueiros em "uma classe de recursos

    em que a excluso difcil e o uso comum implica rivalidade" (Berkes et al., 1989 apud Fenny et al.,

    1990).

    As caractersticas de rivalidade e no exclusividade, aliadas incerteza econmica, so

    responsveis pelos conflitos entre as racionalidades individuais e coletivas na apropriao dos

    recursos pesqueiros, fazendo predominar, quase sempre, a viso e a prtica entre agentes

    econmicos, de que tudo aquilo que no pescado agora, e no mximo possvel, por um pescador,

    outro o far, logo em seguida .

    Neste ambiente de contradio, a produo pesqueira mundial, oriunda das pescarias

    marinhas, alcanou um recorde de 87,1 milhes de toneladas em 1996, quando as capturas totais

    mundiais chegaram a atingir 94,6 milhes de toneladas (Tabela 1.1; Grfico 1.1). Mais da metade da

    produo total deveu-se ao que foi produzido pelos seguintes pases: China, Peru, Chile, Japo,

    Estados Unidos, Federao Russa e Indonsia.

    Tabela 1.1 - Produo mundial de pescado. Anos Produo (T X 109)

    Martima Total 1990 79,29 85,88 1992 79,95 86,21 1994 85,77 92,68 1995 85,62 93,00 1996 87,07 94,63 1997 85,03 93,73

    Fonte: FAO ( 1999)

  • 11

    Grfico 1.1 - Produo mundial de pescado: Total e martima.

    Fonte: FAO ( 1999 ).

    Apesar de ter alcanado to elevado valor, o ritmo de crescimento vem desacelerando.

    De acordo com a FAO (1999), nas dcadas de 1950 e 1960, a produo pesqueira oriunda de guas

    marinhas cresceu a uma mdia expressiva de 6% ao ano, duplicando-se entre 1950 (17,0 milhes de

    toneladas) e 1961 (34,9 milhes de toneladas), para voltar a duplicar-se nos 22 anos seguintes, tendo

    atingido o patamar de 68,3 milhes de toneladas em 1983. Entre os anos 1980 e o incio dos anos

    1990, a taxa mdia de crescimento caiu para 1,5% ao ano, tendo decrescido ainda mais no binio

    1995/1996 quando no ultrapassou mais que 0,6% ao ano.

    Sobre o esforo de pesca empregado para atingir tais nveis e a dinmica de produo,

    assim se posicionam Dias-Neto & Dornelles (1996:18): Torna-se relevante destacar que, entre 1970

    e 1990 enquanto o esforo de pesca no mundo, em termos quanti-qualitativos aumentou entre 200%

    e 300%, a produo aumentou em pouco mais de 30%.

    Ainda de acordo com a FAO (1999), o estado de explotao dos principais recursos

    pesqueiros - que tm sido objeto de avaliao, e sobre os quais mais se dispem de informaes -

    tem-se mantido praticamente inalterado desde o incio dos anos 1990. Assim, confirma-se o fato j

    divulgado pelo documento Estado Mundial das Pescarias, em sua verso de 1997, que 44% das

    principais pescarias mundiais esto totalmente explotadas e, portanto, as capturas se encontram no

    nvel mximo ou muito prximo dele, o que significa que no se prevem margens para expanso.

    Cerca de 16% destas se encontram em estgio de sobrepesca, e tampouco oferecem possibilidade de

    aumento das capturas, sendo cada vez maior a probabilidade de diminuio de suas produes, se

    79,29

    79,95

    85,77

    85,62

    87,07

    85,03

    85,88

    86,21

    92,68

    93,00

    94,63

    93,73

    1990

    1992

    1994

    1995

    1996

    1997

    anos

    t X 109

    produo total

    produomartima

  • 12

    no forem adotadas fortes medidas corretivas para eliminar a situao de sobrepesca. Outros 6%

    esto, aparentemente, esgotados por uma presso pesqueira excessiva, e finalmente, 3% parecem

    estar se recuperando lentamente do estgio de sobrepesca.

    2 - ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O MODELO DE DESENVOLVIMENTO PESQUEIRO NO BRASIL

    No espao pesqueiro1 martimo brasileiro coexistem formas produtivas diferenciadas

    que, embora representando tempos histricos relativamente diferentes, articulam-se e se

    interpenetram, estabelecendo uma dinmica muito prpria para o modelo de desenvolvimento2

    pesqueiro nacional: a pequena produo mercantil3, e a produo capitalista, tanto a de armadores de

    pesca como a empresarial.

    Partindo de um processo de trabalho baseado na unidade familiar, ou no grupo de

    vizinhana, a pesca de pequena escala constitui-se tendo como fundamento o fato de que os

    produtores so proprietrios de seus meios de produo (redes, anzis etc.). A embarcao,

    predominantemente de pequeno porte, no , ela mesma, um meio de produo. Para utiliz-la, o

    pescador no proprietrio paga, em partes de sua produo, uma renda que se assemelha renda da

    terra paga pelo agricultor meeiro. O proprietrio da embarcao, ele tambm um pescador, participa

    como os demais de todas as fainas de pesca.

    As tecnologias empregadas se caracterizam por um relativo baixo grau de impacto

    ambiental, sendo todo o processo produtivo presidido por um saber-fazer baseado no conhecimento

    tradicional da dinmica dos mares e de seus seres, abrangendo desde o processo de localizao de

    cardumes at os mtodos e tcnicas de captura, apropriados para determinadas espcies, em certas

    1 Da mesma maneira que em Diegues (1983), a noo de espao aqui entendida como o conjunto de condies naturais, fsicas e biolgicas que servem de base para determinadas formas de organizao social da produo. 2 Acselrad & Leroy (1999) entendem que "A noo de modelo de desenvolvimento procura descrever o modo pelo qual as sociedades [setores econmicos] produzem e se reproduzem." E assim a utilizamos nesta dissertao. 3 pequena produo mercantil esto associados os termos pesca artesanal e pesca de pequena escala que, aqui, sero utilizados indistintamente.

  • 13

    pocas do ano, e tendo as cercanias martimas de suas comunidades como o raio de ao mxima de

    suas operaes pesqueiras. A utilizao de mquinas se restringia ao motor propulsor da embarcao,

    no tendo portanto, a no ser nas pescarias de arrasto, implicaes considerveis na relao

    pescadores-ambiente explotado.

    O mercado, embora espao das relaes de troca e responsvel pela maior parte da

    alocao dos fatores, ainda considerado como perifrico em face do conjunto das relaes sociais

    de base comunitrias que do direo e estabilidade ao processo produtivo e s relaes com o meio

    ambiente e seus recursos.

    Mesmo sendo a produo dirigida para o mercado, portanto dotada de valor de troca,

    predomina nesse modo de produzir uma apropriao do produto baseada no sistema de partilha ou

    quinho.

    O processo de comercializao dominado por um sistema de intermediao que vai do

    atravessador individual, em geral algum da comunidade que se especializou na compra e venda de

    pescado, at os representantes de empresas de compra e financiamento da produo.

    O excedente das transaes comerciais da produo reduzido e irregular, portanto

    insuficiente para um processo de acumulao de capital internamente atividade, o que gera uma

    total dependncia dos produtores em relao sua principal fonte de financiamento - o capital

    comercial, que se manifesta sob a forma de adiantamentos em espcie, abertura de crdito nos

    pontos de abastecimento de rancho, gelo ou leo combustvel, ou ainda nas casas de material de

    pesca.

    A produo capitalista dos armadores de pesca se caracteriza pelo fato de os

    proprietrios das embarcaes e dos petrechos de pesca - os armadores - no participarem de modo

    direto do processo produtivo, funo delegada ao mestre da embarcao. As embarcaes,

    geralmente de maior porte e raio de ao que aquelas utilizadas pela pesca de pequena escala, exigem

    uma certa diviso de trabalho entre os tripulantes - mestre, cozinheiro, gelador, maquinista, pescador

    etc.

    As embarcaes, por seu porte e raio de ao, requerem certas mquinas alm dos seus

    motores propulsores, fazendo-se necessrio algum treinamento formal para determinadas funes,

    que, no entanto, no substituem completamente o saber-fazer dos pescadores, sobretudo do mestre,

  • 14

    que o emprega da mesma forma que os pescadores de pequena escala, grupo social do qual,

    geralmente provm.

    Apesar de os pescadores no serem proprietrios dos petrechos de pesca, ainda no se

    v nessa forma de organizao pesqueira o assalariamento tpico encontrado em outras atividades

    capitalistas. A mo-de-obra continua, como na pesca de pequena escala, a ser remunerada pelo

    sistema de partes, ainda que para algumas funes possam existir formas de assalariamento

    complementar.

    O mercado j se constitui como central nessa forma de produo, determinando

    consideravelmente a alocao dos fatores e substituindo as relaes sociais de bases comunitrias na

    direo e estabilidade do processo produtivo e as relaes com o meio ambiente e seus recursos.

    Bem mais capitalizada que a forma anterior, o grau de acumulao aqui tambm pode ser

    considerado baixo, sendo o capital comercial a principal fonte de financiamento seja por meio dos

    comerciantes atacadistas dos grandes centros consumidores, seja pelas empresas que processam e

    comercializam a produo, que financiam os armadores da mesma forma que os atravessadores

    financiam os pescadores de pequena escala.

    As estruturas de produo capitalista na pesca atingem seu pice na forma da pesca

    empresarial-capitalista.

    Proprietria tanto das embarcaes como dos apetrechos de pesca, a empresa se

    organiza em diversos setores e, em alguns casos, integra verticalmente a captura, o beneficiamento e

    a comercializao.

    As embarcaes apresentam o mais alto grau de mecanizao, agora no apenas para a

    propulso mas tambm para o desenvolvimento das fainas de pesca como lanamento e

    recolhimento de redes, beneficiamento do pescado a bordo, etc. Encontram-se tambm localizadores

    eletrnicos de cardume e outros equipamentos eletrnicos auxiliares navegao como os radares.

    A mo-de-obra embora, recrutada em sua maioria entre pescadores de pequena escala ou

    das embarcaes de propriedade de armadores, necessita de treinamento especfico para a operao

    da maquinaria que vem substituir de maneira mais profunda o saber-fazer adquirido pela tradio.

  • 15

    O regime de salrio mensal ou semanal em dinheiro, se constitu uma prtica comum,

    porm apenas como um piso mnimo, pois ainda predomina o pagamento de partes que passam a ser

    calculadas sobre o valor global da produo.

    O mercado domina as relaes de produo e alocao dos fatores, sendo a instncia que

    preside o processo produtivo e as relaes com o meio ambiente e seus recursos.

    O capital comercial, agora gerado pelo setor de comercializao da prpria empresa,

    continua sendo o principal financiador da produo. Aqui. a acumulao de capital maior que nas

    demais formas de produo pesqueira, porm ainda insuficiente para financiar uma reproduo

    ampliada da atividade capitalista na pesca4.

    Assim constitudo, o setor pesqueiro nacional at meados da dcada de 1960 apresentava

    um baixo desenvolvimento de foras produtivas. Embora j tivesse constitudo um subsetor

    capitalista, a pesca de pequena escala como um modo de produo subordinado era hegemnica no

    que se refere ao conjunto das relaes sociais que davam direo e estabilidade ao processo

    produtivo e s relaes com o meio ambiente e seus recursos.

    fundamental observar que na fragilidade ou quase ausncia de um Estado regulador do

    uso dos recursos pesqueiros, este quadro de baixo desenvolvimento das foras produtivas vigente at

    meados dos anos 1960, constituiu um dos pontos fundamentais para que se mantivesse certo grau de

    equilbrio entre o esforo de pesca e o potencial capturvel dos recursos, no se constatando, at

    ento, sinais de sobrepesca nos principais recursos que eram a base da produo nacional.

    Partindo da constatao de que o setor pesqueiro nacional no era capaz de acumular

    excedentes de capital para se reproduzir ampliadamente, sequer em seu subsetor mais dinmico - o

    empresarial-capitalista, o Estado brasileiro do final da dcada de 1960 entra em cena, e assumindo

    papel central como promotor do desenvolvimento concebe e edita o Decreto-lei n 221, de 28 de

    fevereiro de 1967, como instrumento fundamental para o desenvolvimento pesqueiro nacional.

    Utiliza-se como argumento a urgncia em produzir protena animal para satisfazer as

    necessidades bsicas da populao brasileira - partindo-se do momento inicial de um investimento

    4 As consideraes feitas at esse ponto tiveram como base Diegues (1983, 1995).

  • 16

    qualquer, a pesca produz mais rapidamente que a agropecuria, alm de ter-se como referencial

    ideolgico a grandeza dos mares brasileiros e seu potencial inesgotvel.

    Constituram-se em instrumentos para a consecuo de tal objetivo o enquadramento da

    atividade pesqueira como indstria de base para efeito dos financiamentos do ento Banco Nacional

    de Desenvolvimento Econmico - BNDE e os mecanismos de incentivos fiscais captados a partir do

    imposto de renda de pessoas fsicas e jurdicas.

    A modernizao e a industrializao das atividades pesqueiras passaram a formar o

    paradigma tecnolgico desse novo perodo.

    Para as atividades de captura, modernizao e industrializao tinham o objetivo de

    constituir frotas industriais dotadas dos mais modernos barcos, equipados com sofisticados sistemas

    de pesca, localizao de cardumes e navegao, capazes de rapidamente incrementar a produo

    nacional de pescado.

    Por outro lado, era necessrio modernizar o gerenciamento dos empreendimentos

    pesqueiros. A indstria nascente, praticamente uma evoluo natural dentro do setor, embora no se

    possa considerar a pesca de pequena escala como um momento de transio para a pesca industrial,

    era de bases familiar e empregava mtodos gerenciais considerados arcaicos e de baixa produtividade.

    Com base em tais argumentos os incentivos fiscais - que vieram a se tornar o

    instrumento principal da nova estratgia - foram direcionados para empresas de capital aberto, fato

    que excluiu do novo processo de acumulao de capital as empresas at ento no ramo, e ao mesmo

    tempo atraiu para a atividade pesqueira empresrios e empresas que nenhum conhecimento

    possuam de uma atividade complexa e baseada na incerteza.

    Com o desequilbrio das contas externas provocado pela crise do petrleo do incio dos

    anos 1970, a pesca nacional passou a fazer parte do esforo de exportao, completando-se assim o

    paradigma que presidiu o desenvolvimento da pesca nacional at meados dos anos 1980. Dessse

    modo, parte considervel do esforo de pesca decorrente dos novos empreendimentos foi

    direcionado para a captura de espcies com larga aceitao no mercado internacional (lagosta, pargo

    e camares), mas sobre as quais j se encontrava um parque de captura tradicional, fazendo com que

    rapidamente tais estoques apresentassem sinais de sobrepesca.

  • 17

    Na prtica, o novo modelo de desenvolvimento promoveu uma verdadeira

    modernizao conservadora - modificando o patamar tecnolgico sem contudo promover mudanas

    nas relaes de produo - e insustentvel da pesca nacional.

    Desconhecendo-se o potencial das vrias regies que constituem o espao pesqueiro

    martimo brasileiro, implantou-se um parque industrial desequilibrado tanto do ponto de vista

    espacial como entre os setores de captura e beneficiamento, com a concentrao dos investimentos,

    em ambos os setores, nas regies Sul e Sudeste.

    Constituram-se frotas com muito mais poder de pesca, quer pela quantidade de barcos,

    quer pelo poder tecnolgico de pescar, do que a capacidade de suporte dos ecossistemas, esse foi o

    caso da pescaria de camaro no Sudeste-Sul. Fato que levou seguinte e contundente afirmao de

    Silva (1972)

    "Em primeiro lugar, couberam ao Centro-Sul do pas 80% dos recursos; em segundo,

    ao camaro 80% dsses 80%. O resultado que o camaroneiro do Glfo do Mxico,

    sobretudo o seu modlo de 'de luxo', o nvo barco 'tpico' da Pesca Brasileira. Mas

    comportar o camaro esta expanso fulminante, comportar que todos sses barco

    (...) o pesquem em quantidades rentveis? Em outras palavras, teria sido o camaro

    consultado (...)?"

    Muitas vezes, a fbrica, ou seja, a rea de beneficiamento e transformao de um

    empreendimento verticalizado tinha a capacidade de processar vrias vezes o que a frota tinha

    capacidade real de produzir em face das condies reais de produtividade do espao martimo.

    As frotas recm-formadas no tinham como objetivo a explotao de novos espaos e

    recursos pesqueiros. Vieram a operar no mesmo espao e sobre os mesmos recursos que as frotas

    tradicionais e onde opera parte da pesca de pequena escala, gerando uma forte e desleal competio

    por recursos que mais tarde se mostrariam escassos. Tal fato, "(...) nada mais fez que apressar a

    explorao irracional dos recursos pesqueiros, com o empobrecimento gradativo de milhares de

    pequenos pescadores." (Diegues, 1973), alm de provocar a falncia de dezenas de empresas que

    tradicionalmente operavam com base na compra da produo da pesca de pequena escala.

  • 18

    Se possvel falar na modernizao tecnolgica da pesca empresarial-capitalista, como

    produto direto ou indireto dos incentivos fiscais, o mesmo no se pode dizer da modernizao das

    relaes de produo.

    O regime de remunerao da mo-de-obra no se modificou substancialmente. O

    contrato de trabalho, com carteira assinada e baseado em um ou poucos salrios mnimos,

    complementados com uma parte varivel, no declarada, calculada com base na produo, continuou

    sendo a regra bsica de contratao da fora de trabalho, sistema que, para Diegues (1973), mascara a

    explorao do trabalho pelo capital, gerando a iluso mos trabalhadores de que participam, em

    parceria, de um empreendimento comum.

    O processo de industrializao e modernizao induzido pelo Estado praticamente no

    modificou as condies dos armadores de pesca. Mantendo sua baixa capacidade de acumulao

    interna e sem terem se tornado beneficirios dos novos mecanismos de financiamento, no tiveram

    acesso fcil s novas tecnologias, no podendo, portanto, fazer parte do novo processo de

    desenvolvimento.

    Alguns benefcios desse novo processo lhes rendeu o relativo aumento do mercado

    comprador de pescado pelo novo parque industrial recm implantado. De fato, embora as novas

    empresas possussem frotas prprias, suas linhas de beneficiamento tinham capacidade de produo

    sempre superiores ao que suas frotas podiam capturar, indo, portanto, buscar na produo dos

    armadores a quantidade necessria ao equilbrio operacional.

    Tendo sobredimensionado suas frotas em relao ao potencial pesqueiro dos ambientes

    que explotavam, logo as novas empresas passaram a apresentar dficits crescentes no setor de

    captura, levando-as a iniciar um processo de venda ou arrendamento de tais frotas aos armadores

    tradicionais, mais afeitos aos negcios de captura que, pela imprevisibilidade tpica da explotao

    pesqueira, apresentam riscos considerveis, principalmente para empresas rigidamente estruturadas.

    Se desse modo os armadores passaram a ter acesso s novas tecnologias e aos novos

    barcos, aumentou tambm a sua dependncia ao capital comercial das empresas, pois quase sempre a

    venda ou arrendamento das embarcaes eram feitas sob clusulas de exclusividade na entrega da

    produo ao vendedor ou arrendador.

  • 19

    Movimentos recentes de "terceirizao" do setor de captura pelas empresas

    verticalizadas ocorreram devido a outros fatores. Na pesca da lagosta, no Nordeste, ocorreu uma

    verdadeira "re-artesanalizao" provocada pela imensa queda de produtividade que a pescaria

    apresentou nos ltimos anos. A paridade do real em relao ao dlar, nos primeiros anos do Plano

    Real fez com que o setor camaroneiro do Norte - que operava altamente de modo verticalizado -

    acumulasse imensa perda de competitividade, provocando grandes prejuzos, ensejando que um

    processo de terceirizao por parceria se processasse.

    No que se refere pesca de pequena escala, deixada margem do processo de

    desenvolvimento fundado nos incentivos fiscais, o Estado de ento props e levou a cabo o Plano

    de Assistncia Pesca Artesanal - Pescart.

    O Pescart partia da premissa que o modo de produzir, a base tecnolgica e o sistema de

    comercializao das pescarias de pequena escala eram atrasados e causadores da pobreza dos

    pescadores que a praticavam. Da, fundado nos princpios smetodolgicos da assistncia tcnica e

    estenso rural, pretendia moderniz-los ensinando-lhes novas tecnologias de produo,

    modernizando suas embarcaes, sobretudo pela substituio da propulso vela pela motorizada.

    Buscava, ainda, associ-los em cooperativas de comercializao, e assim gerar bases de ruptura com

    sua crnica pobreza. O capital necessrio para tal empreendimento deveria ser oriundo de

    emprstimos bancrios nas mesmas condies praticadas para os pequenos agricultores.

    Inicialmente o Pescart era executado pelas Empresas Estaduais de Assistncia Tcnica e

    Extenso Rurais - Ematers em decorrncia de um convnio entre a Superintendncia do

    Desenvolvimento da Pesca - Sudepe e a Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural

    - Embrater. Aps a resilio de tal convnio, a Sudepe assumiu diretamente esses servios em alguns

    estados, e, em outros, eles tiveram continuidade por meio de convnios com as Ematers.

    No tendo poder de mobilizar polticas sociais necessrias criao de bases para o

    rompimento da pobreza que dominava no meio pesqueiro artesanal - como educao, sade,

    saneamento bsico, eletrificao e habitao - o Pescart pode ser entendido como promotor, da

    mesma forma que os incentivos fiscais, de uma modernizao conservadora e insustentvel das

    pescarias de pequena escala.

  • 20

    Do ponto de vista da relao com os recursos pesqueiros, profundas mudanas podem

    ser observadas como resultantes das aes modernizantes levadas a efeito pelo Pescart.

    A motorizao da frota de pequena escala, por exemplo, ensejou uma maior presso

    sobre os recursos que j eram tradicionalmente explotados, visto que a partir de ento os novos

    proprietrios tinham compromissos bancrios a saldar. No se levou em considerao nesse

    processo modernizante, que um menor volume de pescado capturado por uma embarcao movida

    vela teria um menor custo de produo e, portanto, geraria um lucro lquido superior que aquele

    gerado pela quantidade maior produzida pela embarcao motorizada, que tem custos muito mais

    altos.

    Alm do impacto econmico, a motorizao da frota promoveu a introduo do arrasto

    em ecossistemas excessivamente prximos da costa, que se constituem em tradicionais zonas de

    criadouros, gerando um grau de impacto ambiental jamais verificado na histria pesqueira nacional.

    As aes voltadas para o combate da intermediao, principalmente a formao de

    cooperativas de comercializao, no levaram em considerao alguns pontos fundamentais. O

    pescador, por sua faina de pesca altamente fatigante, por sua relao com as coisas do mar em

    oposio s coisas da terra, no se considera um comerciante e sim um produtor, fato que levou as

    cooperativas a serem entregues a gerentes no comprometidos com os objetivos emancipatrios da

    proposta e, muitas vezes, no conhecedores sequer dos meandros da comercializao de um produto

    altamente perecvel e que exige estratgias complexas para sua boa comercializao.

    Foi igualmente desprezado o poder dos intermedirios, poder este que est alicerado

    em dois pontos fundamentais: o primeiro vinculado a laos afetivos entre eles e os pescadores, visto

    que, em geral, os intermedirios so pessoas da comunidade, ou ex-pescadores que se especializaram

    na comercializao e possuem fortes laos de compadrio com aqueles dos quais compram a

    produo - relaes sociais que a fria estrutura de uma cooperativa no capaz de reproduzir.

    O segundo se refere aos tradicionais sistemas de financiamento da produo. O

    Intermedirio possui um gil, informal e flexvel sistema de financiamento, baseado em relaes de

    confiana, sistema que embora possa ser considerado "escravizante" no encontrou substituto nos

    sistemas formais e burocratizados postos disposio pelas cooperativas a seus associados.

  • 21

    Alm disso, as cooperativas tiveram que concorrer com os "compradores de empresas",

    que nada mais so que corretores que operam em nome e com o capital de uma determinada

    empresa, comprando a produo diretamente da pequena produo e sempre muito mais

    capitalizados que as cooperativas.

    A crise fiscal do Estado, j explicitada em meados dos anos 1980, e as vrias denncias

    de corrupo e m aplicao de recursos pblicos levaram o Governo Sarney a acabar com os

    incentivos fiscais destinados ao setor pesqueiro desestruturando, desta maneira, a principal forma de

    financiamento do projeto desenvolvimentista da pesca industrial.

    Neste mesmo governo, assistiu-se aos primeiros sinais de uma reforma neoliberal do

    Estado com a extino de vrios rgos pblicos: foi o caso da Embrater, seguida pela extino das

    Ematers, na maioria dos estados. Tal fato provocou desestruturao do servio de assistncia

    pesca artesanal, principal veculo de modernizao daquele subsetaor pesqueiro, praticamente

    desestruturao

    Atualmente, o setor pesqueiro industrial-capitalista no conta com nenhum instrumento

    especial para financiamento de seu desenvolvimento, tendo de buscar em suas prprias estruturas -

    no todo inalteradas - o capital necessrio sua reproduo, com o agravante de estarem a maioria

    dos estoques sobreexplotados, como veremos mais adiante.

    No que se refere ao financiamento da pesca de pequena escala, algumas linhas de crdito

    voltadas principalmente para a pequena produo rural contemplam aquela atividade pesqueira.

    Com relao a produo nacional de pescado de origem marinha, Dias-Neto &

    Dornelles (1996), analisando como se deu sua evoluo no perodo 1975-94, mostram que:

    (...) a produo brasileira de pescado oriundo do mar apresentou tendncia crescente

    at 1979, atingindo 731.482t, e decrescendo nos trs anos seguintes, quando retomou

    o crescimento at 1985, ano que se obteve a maior produo da histria da pesca

    martima nacional: 760.452t. No perodo 1986-1990 a produo decresceu,

    apontando para 428.754t, segundo estimativa preliminar. Nos ltimos quatro anos

    da srie analisada, parece ter havido um tnue sinal de recuperao, ficando a

    produo de 1994, tambm segundo estimativa preliminar, em cerca de 494.006t.

  • 22

    Para o perodo 1995-98, os dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

    Recursos Naturais Renovveis - Ibama indicam uma estabilizao na produo em uma faixa situada

    entre 413.000t e 432.000t (Tabela 1.2; Grfico 1.2).

    Tabela 1.2 - Produo nacional de pescado - total e martima.

    Produo Martima Anos t %

    Total (t)

    1980 635.965 77,3 822.677

    1981 635.965 76,3 833.164

    1982 627.510 75,2 833.933

    1983 675.344 76,7 880.696

    1984 747.395 77,9 958.908

    1985 760.452 78,3 971.537

    1986 734.537 78,0 941.712

    1987 704.229 75,4 934.408

    1988 624.927 75,3 830.102

    1989 579.151 72,5 798.638

    1990 435.418 68,0 640.295

    1991 467.744 69,7 671.510

    1992 469.842 70,1 670.333

    1993 472.373 69,8 676.441

    1994 479.662 71,0 701.251

    1995 419.086 64,2 652.910

    1996 430.663 62,1 693.172

    1997 475.894 65,0 732.259

    1998 447.948 63,0 710.704

    Fonte: Ibama (2000)

  • 23

    Fonte: IBAMA (2000)

    Mostrando preocupao com relao ao futuro da pesca martima no Brasil, Dias-Neto

    & Dornelles (1996) afirmam que (...) o quadro da produo da pesca martima brasileira pode ser

    considerado delicado, seja pelo declnio constatado (...) seja pela quase estagnao nos ltimos anos.

    Ainda mais ao se considerarem os nveis crticos de produo dos principais recursos pesqueiros

    (...).

    Tecendo paralelo entre as pescarias brasileiras e o desenvolvimento da pesca martima

    mundial, os autores concluem que Em alguns aspectos, a pesca nacional enfrenta uma situao at

    mais grave, com destaque para o percentual dos principais recursos plenamente explotados ou sob

    excesso de explotao, ou at esgotados ou se recuperando de tal nvel de utilizao, pois se na

    grfico 1.2 - produo nacional de pescado, martima e total

    447.948

    710.704

    435.418

    760.452

    635.965

    822.677

    640.295

    971.537

    0

    200.000

    400.000

    600.000

    800.000

    1.000.000

    1.200.000

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    1990

    1991

    1992

    1993

    1994

    1995

    1996

    1997

    1998

    anos

    t

    produo martimaproduo total

  • 24

    primeira cerca de 69%, no Brasil, fica acima de 80%., o que viria a ser tambm constatado por

    Paiva (1997) (Tabela 1.3).

    As anlises dos autores citados nos pargrafos anteriores e os dados constantes na

    Tabela 1.3 se referem, principalmente, aos recursos objeto das pescarias industriais mesmo que sobre

    alguns operem tambm pescadores de pequena escala. Infelizmente, no existem estudos sobre o

    nvel de explotao daquelas pescarias tpicas da pesca de pequena escala para que se possa afirmar

    com convico sobre o estado dos estoques sobre os quais opera. No entanto, rara a discusso com

    pescadores em que no demonstrem, por sinais empricos (diminuio do volume de produo, do

    tamanho dos indivduos capturados etc.), que o fenmeno da sobrepesca tambm atinge a maioria

    dos recursos por eles explotados.

    Creio que diante do quadro mostrado, nada mais pode-se dizer alm do que afirmou,

    categoricamente, McGoodwin (1990): existe uma crise nas pescarias mundiais.

  • 25

    Tabela 1.3 - Smula das situaes dos principais estoques explotados pelas pescas industriais, ao longo da costa do Brasil.

    Recursos Regies Situaes camaro-rosa piramutaba lagosta-vermelha lagosta-verde pargo peixes de linha camaro-sete-barbas camaro-rosa sardinha-verdadeira goete peixes demersais (1)

    albacora-azul albacora-laje albacora-branca albacora-bandolim espadarte caes ocenicos bonito-barriga-listrada camares

    N N

    N - NE N - NE N - NE

    Abrolhos SE - S SE - S SE - S

    SE SE - S ASO ASO ASO ASO ASO ASO SE - S NE

    em equilbrio sobrepesca sobrepesca sobrepesca

    colapso de pesca em equilbrio sobrepesca sobrepesca sobrepesca em declnio sobrepesca sobrepesca

    em equilbrio sobrepesca sobrepesca

    incerta em declnio

    limitada incerta

    Legenda: N - Norte; NE - Nordeste; SE - Sudeste; S - Sul; ASO - Atlntico Sul Ocidental. Notas: (1) compreende o conjunto das espcies explotadas: corvina, castanha, pescada olhuda e pescadinha real.

    Adaptado de Paiva, 1997.

  • 26

    3 - A FACE MAIS VISVEL E AMEAADORA DA CRISE

    Vrios so os elementos que do visibilidade crise, entre eles poderiam ser citados: a

    diminuio da abundncia dos recursos pesqueiros; a diminuio da captura por unidade de esforco

    de pesca (CPUE); a diminuio do tamanho mdio dos indivduos capturados; a maior participao

    de indivduos de baixas classes etrias na composio das capturas etc. No entanto, entendo, como

    Mace (1997), que o excesso de capacidade de pesca, alm de ser a face mais visvel da crise, a mais

    ameaadora da viabilidade da explotao dos recursos pesqueiros.

    A forma menos abstrata de se perceber o excesso de capacidade de pesca por meio da

    sobrecapitalizao, traduzida na quantidade excessiva de barcos ou aparelhos de captura. Estudos da

    FAO, citados por Mace (1997) indicam que entre 1970 e 1992 o nmero de embarcaes dotadas de

    convs passou de 580.980 para 1.178.160, enquanto que no mesmo perodo o nmero de barcos de

    pequeno porte, sem convs passou de 1,5 milho para 2,3 milhes.

    Box 1: Estimativa do excesso de capacidade de pesca

    Global Para que os rendimentos da atividade pesqueiros cubram os custos

    operacionais, a capacidade mundial de pesca deve ser reduzida em 25%; para cobrirem os custos totais preciso que ela seja reduzida em 53%;

    O excesso da capacidade pesqueira mundial estimado em 30%. Internacional e nacional Unio Europia - em 1996, reconheceu a necessidade de reduzir sua

    frota em 40% nos prximos seis anos; Federao Russa - faz-se necessria uma reduo de 2/3; Estados Unidos - dependendo da pescaria, necessrio que a frota

    seja reduzida em at 75% de sua frota; Brasil - preciso uma reduo do esforo de pesca de at 2/3, de

    conformidade com o tipo de pescaria empregado.

    Fontes: Mace (1997) Dias Neto & Dorneles (1996).

    Porm, no s a quantidade de barcos caracteriza um estado de excesso de capacidade de

    pesca. O desenvolvimento tecnolgico, no que se refere aos apetrechos e tcnicas de pesca, aos

    equipamentos de navegao por satlite e localizadores de cardumes, constitui, tambm, elemento de

    aumento da capacidade pesqueira. Fitzpatrick (1995 apud Mace 1997), estudando detidamente o

    poder de pesca advindo das novas tecnologias e tomando o ano de 1980 como ano-base, estimou

  • 27

    coeficientes de impacto tecnolgico de 0,54 para 1965; 1,0 para 1980; e 2,0 para 1995, o que permite

    a fcil concluso de que a taxa de crescimento da capacidade pesqueira duplicou entre 1965 e 1995

    devido a fatores tecnolgicos.

    As pequenas pescarias costeiras, em especial, dos pases mais pobres do planeta, tambm

    podem ter problemas devido ao excesso de capacidade de pesca, mesmo que isto no resulte de

    modificaes de seus padres tecnolgicos tradicionais ou do aumento da quantidade de

    embarcaes. Elevados contingentes humanos ao migrarem para o litoral - tentando fugir da extrema

    pobreza rural ou mesmo devido ao processo de concentrao fundiria - e se incorporarem s

    pescarias que j operam sobre recursos finitos, podem causar o que Mace (1997) chama de

    sobrepesca malthusiana.

    4 - UMA PERGUNTA INCMODA, DE DIFCIL RESPOSTA

    Como exposto nos itens anteriores, est configurada a tenso fundamental que hoje

    domina a explotao dos recursos pesqueiros: recursos limitados a serem explotados por uma

    dinmica capitalista que tende a expandir-se ao infinito. Assim, vale indagar: ser verdadeira a

    afirmao de que a pesca "(...) contm em si o germe de sua prpria destruio." (Diegues, 1983)?

    5 - ALGUMAS EXPLICAES COERENTES, PORM... INSUFICIENTES

    A crise (ver Box 2) que atinge as pescarias ao redor do mundo tem sido analisada por

    diversos autores que encontram mais ou menos um grupo comum de causas.

    Para Mace (1997), as causas mais relatadas ou discutidas da crise que se instituiu no uso

    dos recursos pesqueiros, tanto na literatura como nos momentos de avaliao do desenvolvimento

    das pescarias so: a inadequao ou insuficincia da cincia pesqueira(ver Box 3); objetivos da gesto

    inadequados ou no apropriados; insuficincia ou inadequao de dados estatsticos; instituies

    inadequadas e deficincia no envolvimento dos diversos atores; e polticas nacionais e standarts

    internacionais inadequados.

    Garcia & Grainger (1997) consideram que a natureza dos recursos, a dinmica dos

    setores pesqueiros e a deficincia dos sistemas de manejo so as causas fundamentais da sobrepesca

  • 28

    e sobrecapitalizao, atribuindo responsabilidades compartilhadas entre o setor produtivo

    empresrios e pescadores, os cientistas e os gestores dos recursos.

    Box 2: Sobre o conceito de crise Crise um fenmeno que pode ser entendido a partir de dois

    sentidos. No primeiro, "(...) crise entendida como um episdio em que a reproduo econmica se encontra bloqueada pela interrupo das catstrofes naturais ou eventos exteriores." (Nascimento, 1993). Neste caso, o sistema tende sempre para o equilbrio geral sendo perturbado apenas por fatores externos.

    O segundo, em contradio com o primeiro, parte do pressuposto de que o sistema sofre crises a partir de fatores endgenos. Assim, crise passa a ser entendida como "(...) um episdio no qual a dinmica econmica e social entra em contradio com o processo de desenvolvimento que a impulsiona." (ibidem, Ibidem).

    No marco da teoria da regulao a crise nada mais que a outra face da regulao e pode ser percebida em dois graus de profundidade, segundo Lipietz (1988). A primeira, chamada por esse autor de "pequena crise" ou "crise na regulao" (grifo do autor), "traduz a incompatibilidade das antecipaes e dos comportamentos; as foras coercitivas, de acordo com as formas institucionais do modo de regulao em vigor, devem, em princpio, trazer todos razo, isto , lgica imanente da configurao atual das relaes sociais.

    A segunda, ainda de acordo com Lipietz (1988), configura-se na "grande crise" ou "crise da regulao" (grifo do autor) e se expressa por "(...) uma inadequao entre os comportamentos induzidos pelo prprio funcionamento do modo de regulao (...) e as exigncias da reproduo das relaes sociais na formao econmico-social (...)" ou ainda quando "(...) em conseqncia de uma evoluo no modo de produzir, essas exigncias [da reproduo das relaes sociais na formao econmico-social] tenham-se tornado contraditrias."

    Ampliando as categorias de entendimento, Kailola (1998) encontra as razes da

    sobrepesca na poltica, na dinmica de vida dos recursos, nos aspectos econmicos das pescarias, na

    dinmica do meio ambiente, e no entendimento e comportamento da sociedade diante dos recursos.

    Discutindo a crise da pescaria do bacalhau do norte, no Canad, McKay & Finlayson

    (1997) afirmam que so por ela responsveis: as mudanas ambientais; a sobrepesca; o relativo livre

  • 29

    acesso pescaria, apesar de controles formais e informais implementados pelo governo canadense, e,

    finalmente, a globalizao.

    Analisando o ordenamento da pesca martima brasileira, Dias-Neto & Dornelles (1996)

    identificam na falta de clareza dos objetivos, no processo de formao das medidas, na deficincia da

    fiscalizao e em outros mecanismos que faam cumprir a legislao, no uso inadequados de

    incentivos e subsdios e na interferncia poltica, as principais causas da sobrepesca de nossas

    principais pescarias.

    As tentativas de explicao das causas da crise pelos diversos autores citados, embora

    todas bem fundamentadas de per si, no constituem um todo estruturado que as relacionem entre si e

    demonstrem os efeitos sinrgicos de umas sobre as outras.

    Referem-se, na maoir parte, to-somente ao processo normativo, ou seja, formulao e

    aplicao das normas de uso dos recursos pesqueiros, sendo portanto insuficientes para explicar o

    que vem ocorrendo, pois no buscam no conjunto das relaes sociais que presidem, do direo e

    estabilidade ao processo de produo e reproduo das pescarias, as disfunes que levaram ao

    estado de crise generalizada em que se encontra o uso dos recursos pesqueiros.

    Box 3: Inadequao ou insuficincia da cincia

    A cincia pesqueira5 comea a se desvincular da biologia nos anos cinqenta quando o senso comum no mais dava conta de explicar o que estava acontecendo: aumentava-se o esforo de pesca e no se obtinham rendimentos proporcionais a tal aumento. Sinais considerveis de sobrepesca de determinadas pescarias do mar do norte e do atlntico norte exigiam explicaes e demandavam medidas de correo at ento desconhecidas.

    A partir de ento, vrios modelos, cada vez mais sofisticados, foram

    desenvolvidos, desde os mais simples, que buscam entender o comportamento de uma espcie submetida a determinados nveis de esforo de pesca, at os mais sofisticados como os da anlise virtual de populaes e aqueles mais sistmicos que procuram

    5 possvel que do ponto de vista epistemolgico no se possa afirmar sobre a existncia de uma cincia pesqueira. O termo aqui utilizado para designar o conjunto de estudos sobre dinmica de populaes de organismos aquticos objeto das pescarias e a avaliao do estado dos estoques.

  • 30

    compreender a dinmica de determinadas espcies na rede ecossistmica, levando-se em considerao tanto as aes antrpicas como a dinmica ambiental6.

    Do ponto de vista de tal desenvolvimento, pode-se concordar com Mace (1997) quando ela afirma que no existe inadequao ou mesmo insuficincia de cincia para a regulao do uso dos recursos pesqueiros.

    A inadequao comea a surgir quando se observa que a cincia pesqueira no fugiu regra da cincia moderna. Foi constituda e produz conhecimentos utilizando-se de disciplinas isoladas como a oceanografia fsica, a oceanografia qumica, a geologia marinha, a biologia pesqueira etc. todas com corpos tericos voltados para o entendimento do natural.

    Alm de no produzir um todo integrado do conhecimento do natural os mares e seus seres, tal forma de produzir conhecimento ao naturalizar as relaes seres humanos natureza, porquanto, a ela s interessa conhecer os aspectos do meio fsico e o comportamento das espcies objeto das pescarias, perdeu a perspectiva de um todo socioambiental que constitui e preside as pescarias. Assim, os efeitos da ao antrpica sobre os recursos pesqueiros por meio do ato de pescar passaram a ser analisados somente no sentido do ato em si, sua dimenso e conseqncias, independentemente de quem o pratica, e das relaes sociais construdas para praticar e no ato de praticar.

    Operando dentro do paradigma da modernidade, a cincia pesqueira passa a ser a nica fonte de produo de conhecimento reconhecida como verdade. Todo o saber sobre os mares e seus seres construdo pelas populaes pesqueiras durante geraes passou a ser desautorizado perante tal conhecimento, agora vlido e que podia ser demonstrado.

    No se pode falar apenas na inadequao da cincia. Existe, principalmente em pases com o grau de desenvolvimento igual ou menor que o do Brasil, insuficincia de cincia. Poucas so as instituies de pesquisa pesqueira e poucos so os cientistas dedicados aos estudos dos mares e seus seres.

    A avaliao das condies dos estoques pesqueiros e das pescarias, pela complexidade da dinmica do ambiente marinho e das prprias pescarias, requer longas, caras e complexas sries histricas de dados que, para serem obtidas, demandam altas somas de recursos, tecnologia e recursos humanos preparados, o que pases como aqueles nem sempre dispem .

    Os resultados de uma cincia insuficiente podem ser os mesmos de uma cincia inadequada. A administrao do uso dos recursos pesqueiros se tornou to cientfica que existe a tendncia de utilizar os parmetros cientficos independentemente da qualidade com que so produzidos.

    Apesar de inadequada e insuficiente, a partir dos anos1960, a cincia pesqueira passa a desempenhar um papel normativo e central no processo de regulao do uso dos recursos pesqueiros que deixa de ser uma questo poltica para ser problema tcnico a ser resolvido com base no saber cientfico. Nesse sentido, assim se posiciona Diegues (1995): Os parmetros naturais tornam-se critrios exclusivos para a manuteno dos estoques, independentemente dos hbitos (...) humanos, da existncia ou no de mercado etc. o caso de se utilizar somente o MSY (produo mximo sustentvel) como parmetro nico de uma captura tima7

    6 Aqui no se tem o propsito de analisar a eficincia de tais modelos, nem fazer, sequer, uma reviso bibliogrfica do desenvolvimento ao longo do tempo, pontos que podem ser encontrados em Sharp (1995). 7 No captulo sobre sustentabilidade ser feita uma anlise do conceito de captura mxima sustentvel, sua utilizao na gesto e conseqncias de seu uso exclusivo.

  • 31

    Uma questo central na relao entre cincia e regulao do uso dos recursos pesqueiros. Seja ela inadequada ou insuficiente: as principais concluses dos cientistas sobre o estado dos estoques explotados, principalmente quando tais concluses apontam ou constatam sobrepesca, nem sempre conseguem ser entendidas pelos pescadores ou mesmo chega a convenc-los da necessidade de serem tomadas fortes medidas de restrio a suas atividades. Desse modo, proteger os estoques, passa a ser ponto de conflito entre produtores e tomadores de deciso no mbito das agncias reguladoras, esses, quase sempre alinhados com as concluses da cincia.

  • 32

    SEGUNDO CAPTULO EM BUSCA DE UM OUTRO OLHAR

  • 33

    Existe um estado de crise no uso dos recursos pesqueiros. Inmeras pescarias ao redor

    do mundo esto sobreexplotadas com perdas monumentais tanto para o meio ambiente como para a

    economia de vrias regies ou mesmo de pases inteiros. Vrios autores, tambm do Brasil,

    buscando explicaes para as razes que levaram as pescarias mundiais a tal estado, fizeram-no

    abordando aspectos parciais do problema, no permitindo, assim, que se construsse um arcabouo

    terico mais amplo para o entendimento do porqu da crise e que da se pudessem estabelecer

    prticas para um outro modo de apropriao dos recursos pesqueiros.

    Alm da abordagem sempre parcial das causas da sobreutilizao dos recursos

    pesqueiros, entendemos que os vrios estudos empreendidos no se referem aos problemas

    fundamentais da questo.

    Consideramos problemas fundamentais como o faz Santos (1996):

    "(...)so problemas que esto na raiz das nossas instituies e das nossas prticas,

    modos profundamente arreigados de estruturao e de aco sociais consideradas por

    alguns como fatores de contradies, antinomias, incoerncias, injustias que se

    repercutem com intensidade varivel nos mais diversos setores da vida social."

    Dizer que os seres humanos so seres sociais no constitui nenhuma originalidade.

    Como tambm no original, mas aqui fundamental, a constatao de que realizam seus desejos e

    suas necessidades por meio de projetos, que os unem e os opem de maneira conflituosa e mesmo

    contraditria, estabelecendo, assim, relaes entre si.

    No instante em que tais relaes se formam "(...) de acordo com um modelo, um

    padro, que uma forma social reconhecida, preexistente (...)" (Lipietz, 1989), pode-se falar que

    constituem relaes sociais.

    O autor reconhece a existncia de uma relao social pela regularidade com que ocorre,

    a maleabilidade em sua trajetria, portanto a capacidade de sofrer modificaes e a suscetibilidade de

    reproduzir-se. Para ele regulao o "(...) modo como essa relao se reproduz apesar de seu carter

    conflituoso e contraditrio" (ibdem, ibdem).

  • 34

    Peck & Tickell (1992), dando operacionalidade ao conceito, entendem o modo de

    regulao como "atos que visam garantir que o sistema de acumulao dominante se reproduza no

    mdio prazo, atravs da acomodao, mediao e normalizao das tendncias de crise." Para esses

    autores, os elementos formadores do modo de regulao incluem: hbitos e costumes, normas

    sociais, leis e o poder de fazer com que sejam cumpridas, e o Estado.

    Assim, regulao possui, de acordo com Gibbs (1996), uma: "variedade de formas,

    desde a regulamentao das leis [e outra normas legais] e estruturas concretas [ao governamental]

    at elementos intangveis como valores, [costumes, prticas sociais] e normas de comportamento."

    O conceito de regulao, do modo posto, permite que se desenvolva um marco analtico

    para o entendimento de como um conjunto de relaes sociais que envolvem aquelas entre os seres

    humanos e desses com o meio ambiente (recursos ambientais) construdo e as razes que levam

    sua reproduo, e, nesse contexto, como se apropriam de recursos ambientais como base de sua

    reproduo material.

    Assim...

    1 - ...A REGULAO TEM SEU LUGAR...

    1.1 - ...PELO CARTER DE RELAES SOCIAIS DAS PESCARIAS...

    So usuais referncias s pescarias relacionando-as com o ambiente fsico sobre o qual

    operam - pescarias do mar do Norte, do golfo do Mxico, costeiras, de alto mar, do Nordeste etc. ou

    aos recursos que explotam: pesca da lagosta, de camares, do pargo etc., atribuindo um carter

    natural e de relao unidirecional entre seres humanos e recursos pesqueiros.

    As bases para que se possa conceituar pescarias como "fenmenos humanos"

    (McGoodwin,1990) podem ser encontradas em Anderson (1977 apud McGoddwin, 1990), para

    quem as pescarias constituem um conjunto de relaes entre "um estoque ou estoques de peixes e

    empreendimentos que tm o potencial de explor-los"; em Spoehr (1980, apud McGoodwin, 1990),

    que as considera como um "sistema scio-econmico e tecnolgico em interao com o ecossistema

    marinho", e, finalmente, em Andersen (1980: 18 apud McGoodwin 1990), que as define como

    atividades atravs das quais os indivduos mantm relaes entre si, com o ambiente aqutico e

    com os recursos renovveis".

  • 35

    Para Diegues ( 1983), citando Godelier, as pescarias ocorrem presididas por "normas de

    racionalidade intencional entendida como um conjunto de regras sociais, conscientemente elaboradas

    e explicadas que se destinam a atingir certos objetivos societrios".

    Como todo processo de construo de relaes sociais, aquelas que se definem para a

    produo e reproduo das pescarias se do a partir de estruturas conflituosas e contraditrias,

    significadas por projetos e objetivos dos indivduos, que buscam se tornarem hegemnicos e dessa

    forma balizarem a direo do processo de reproduo social.

    1.2 - ...PELO CARTER AUTODESTRUTIVO DO CAPITALISMO...

    O sistema capitalista se reproduz, ampliadamente, apesar de uma dupla contradio

    interna que por lgica deveria lev-lo autodestruio. A primeira, formulada por Marx, inscreve-se

    na relao capitaltrabalho e simbolizada pela taxa de explorao, a qual, segundo Lipietz (1989):

    "Pode ser resumida em uma frase: ou a taxa de explorao forte demais e h ameaa

    de uma crise de superproduo, ou fraca demais, e a ameaa de sub-investimento.

    Essa taxa funo, por um lado, das relaes da distribuio (das normas de consumo)

    e, por outro, das transformaes na produo (das normas de produo, e em particular

    dos lucros de produtividade e das mudanas na composio orgnica dos capitais."

    A segunda, proposta por O'Connor (1991), tendo como base o conceito de condies

    de produo e mercadorias fictcias, de Karl Polanyi, expressa a tenso entre capital-trabalho e meio

    ambiente, de modo que, quando o sistema capitalista se encontra em uma crise de custos, tende a

    destruir suas prprias condies de produo.

    Conseqentemente, o capitalismo depende, para o seu funcionamento, de uma estrutura

    institucional reguladora que mantenha sua tendncia a crises dentro de limites aceitveis que no

    comprometam sua capacidade de acumulao e reproduo ou mesmo de um determinado modo de

    produo dele diferente, porm a ele subordinado.

  • 36

    1.3 - ...PELA RELAO ESTABELECIDA ENTRE PROPRIEDADE ESTATAL E APROPRIAO PRIVADA DOS RECURSOS PESQUEIROS

    1.3.1 - A questo da propriedade

    Do ponto de vista terico existem cinco categorias de propriedade dos recursos

    pesqueiros que tomando-se como base Fenny et. al., 1990, e van der Elst et. al., 1997, podem ser

    assim descritos:

    Propriedade comum - para os recursos de propriedade comum no existem

    proprietrios e nem direitos de propriedade; o acesso aos recursos no regulado,

    sendo aberto e livre para qualquer indivduo ou empresa. Muitos autores consideram

    recursos de propriedade comum como recursos de livre acesso;

    Propriedade privada - aqui os direitos de propriedade pertencem aos indivduos ou s

    empresas que tm direitos exclusivos de uso. Como recursos privados, so

    administrados por seus proprietrios que tambm tm o direito de manter para si ou

    vender, no todo ou em parte, tanto os recursos em si como o esforo de pesca que

    lhes pertence e com o qual se apropria de tais recursos. Configuram-se, assim, as

    condies de exclusividade e transferibilidade, caractersticas dos bens privados,

    cabendo ao Estado apenas assegurar os direitos da propriedade privada;

    Propriedade comunal ou comunitria - nesse caso, os recursos pertencem a uma

    comunidade ou a usurios que mantm entre si um alto grau de interdependncia. Os

    recursos so administrados coletivamente, sendo os direitos de uso vedados a

    terceiros. Internamente comunidade, no existem as condies de exclusividade e

    transferibilidade sendo o direito de uso e acesso igual para todos. Os direitos de

    propriedade comunal ou comunitria podem ser assegurados e reconhecidos pelo

    Estado ou simplesmente existir de fato, pela tradio ou direitos de ancestrais. Em

    geral, as regras de uso dos recursos so estabelecidas pela comunidade proprietria

    associada em maior ou menor grau com o Estado.

  • 37

    Propriedade do Estado - os recursos sob propriedade do Estado se caracterizam por

    encontrarem nessa instncia o poder decisrio sobre o nvel e a natureza da

    explotao. O Estado como proprietrio dos recursos pode explor-lo diretamente ou

    alocar direitos de uso a seus cidados ou empresas.

    Propriedade Global ou Internacional - os recursos que ocorrem alm das zonas

    econmicas exclusivas - ZEEs so considerados de propriedade ou uso comum das

    naes, prevalecendo para eles, em princpio, a regra do livre acesso. No entanto, para

    recursos de grande importncia econmica ou ambiental, convenes, acordos ou

    tratados internacionais regulamentam os principais parmetros da explotao,

    tentando evitar o livre acesso e suas implicaes negativas sobre a sade dos estoques

    e a lucratividade dos empreendimentos econmicos.

    No caso brasileiro, os recursos pesqueiros marinhos podiam ser considerados,

    juridicamente, de propriedade comum (res nullius) at 1988. Apesar de tal situao jurdica, o Estado

    brasileiro exercia tutela sobre tais bens, controlando o acesso e regulamentando as condies de

    pesca para as principais espcies.

    A Constituio Federal promulgada em 1988, embora no se refira especificamente aos

    recursos pesqueiros, modifica substancialmente tal situao. Define, a Carta Magna, em seu artigo 20,

    que os recursos naturais da plataforma continental e da zona econmica exclusiva - ZEE pertencem

    Unio, assim como o mar territorial. Por conseguinte, pertencem Unio os recursos pesqueiros,

    no primeiro caso, por serem um subtipo de recurso natural e, no segundo, por serem parte

    constituinte e indissocivel do prprio mar territorial.

    Devido ao novo estatuto jurdico, as questes relativas propriedade dos recursos

    pesqueiros devem, agora, ser analisadas luz do artigo 225 da prpria Constituio Federal de 1988,

    considerando-se que tais recursos, tambm, constituem recursos ambientais por fora do Inciso V,

    Artigo 3, da Lei N 6.938, de 31 de agosto de 1981.

    O art. 225 da Constituio Federal de 1988 estatui que todos tm direito ao meio

    ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de

    vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as

    presentes e futuras geraes.

  • 38

    Observe-se que tal dispositivo constitucional contm os trs elementos fundamentais da

    organizao de uma sociedade poltica: um direito, um dever e a prescrio de normas. O direito, que

    se constitui em um direito fundamental embora no explicitado no captulo correspondente: direito

    ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial sadia qualidade de vida; o dever, que se refere ao

    Estado e coletividade: defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras

    geraes; a prescrio de normas impositivas de conduta, incluindo normas-objetivo, visando mesmo

    assegurar o que expressa como direito (Derani, 1997).

    O meio ambiente ecologicamente equilibrado, a que todos tm o direito de usufruir, ,

    para a autora, "(...) simultaneamente um direito social e individual.", sendo que "(...) desse direito de

    fruio (...) no advm nenhuma prerrogativa privada (...)", pois sua realizao "(...) est

    intrinsecamente ligada sua realizao social."

    Desta forma, o meio ambiente como macrobem, como patrimnio coletivo, sempre

    um bem pblico, no podendo, no entender de Farias (1998 apud Dornelles, 1999) ser privatizado.

    Esse patrimnio ao tornar-se necessrio realizao material dos indivduos e da

    sociedade, passa, porm, a admitir que algumas de suas partes constituintes, entendidas como

    microbens, venham a ser pblicas ou privadas.

    fundamental observar, nesse caso, que tanto os bens ambientais privados, quanto os

    pblicos para os quais se admite apropriao privada, esto regidos pelo princpio do interesse

    coletivo ou social, em que "(...) a sociedade representada unida em torno de um interesse comum,

    no se procurando esquivar das evidentes diferenas, nem unir idealisticamente todos,

    independentemente de suas diferenas sociais, num messinico interesse comum." (Derani, 1997).

    Ao direito de usufruir um meio ambiente ecologicamente equilibrado corresponde o

    dever de proteg-lo para as presentes e futuras geraes.

    O avano considervel que trouxe a Constituio Federal de 1988 reside no fato de que

    esse dever no um nus atribudo apenas ao Poder Pblico, a ter lugar no mbito da cada poder

    estatal (Executivo, Legislativo e Judicirio) de acordo com as competncias juridicamente definidas,

    mas tambm coletividade.

    A responsabilidade social que reveste o dever de proteger o meio ambiente aduz a que

    Estado e sociedade construam espaos de colaborao e participao no processo de tomada de

    deciso quanto ao uso dos recursos ambientais bem como da formulao de normas que lhe do

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    conseqncia, ou seja, demanda a formulao e implementao de polticas pblicas que balizem o

    comportamento dos agentes econmicos e sociais no aproveitamento de tais recursos.

    Dentre as normas impositivas de conduta, que fixam, de acordo com Derani (1997), "(...)

    tarefas diretivas e materiais ao Estado, declarando atividades que esto especialmente sob sua tutela e

    descrevendo deveres especiais do Poder Pblico" interessa, aqui, fundamentalmente, o inciso I, 1,

    do art. 225 da CF, notadamente sua segunda parte:

    " art. 225 - ............................................................................................

    1 - Para assegurar a efetividade desse direito, incube ao poder pblico:

    I - preservar e restaurar os processos ecolgicos essenciais e prover o manejo ecolgico das espcies e ecossistemas.

    ............................................................................................................." (grifo nosso)

    A ao de prover que estabelece essa norma deve ser entendida como a de regular o uso

    dos recursos ambientais materiais no sentido claro de estruturar a explorao de tais recursos de

    modo que, com a eficincias produtiva e o efeito social da produo, sejam compatibilizados e

    traduzidos na sustentabilidade plena.

    Assim, luz do artigo 225 da Constituio Federal, os recursos pesqueiros marinhos, no

    Brasil so propriedade da Unio Federal, no alienveis, como estoques, pois assim se constituem

    um macrobem ambiental. No entanto, so passveis de apropriao privada, se considerados partes

    dos estoques, como microbens necessrios para a satisfao de necessidades individuais e coletivas.

    Devendo o Estado, nesse caso, regular seu uso para que se atinja, no prprio ato de usar, a

    sustentabilidade requerida tanto do ponto de vista ambiental/ecolgico, como social e econmico.

    1.3.2 - A questo do acesso

    As estruturas de propriedade condicionam as formas ou os direitos de acesso. Derivado

    da ausncia de propriedade, de qualquer tipo, ou ainda podendo resultar da quebra das instituies

    que garantem a propriedade comunal (Berkes, 1989), o livre acesso caracterizou as normas e formas

    de apropriao dos recursos pesqueiros at os primeiros anos do sculo XX (Scott, 1999a). No

    obstante, no se deve deixar de reconhecer a existncia de algumas normas que constituam sistemas

    de controle entre comunidades pesqueiras aborgines em vrias partes do mundo; ou, dizendo de

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    outro modo, no desconhecendo a existncia de propriedade comunal, com uso regulado dos

    recursos, em vrias partes do mundo.

    Os efeitos do livre acesso sobre os recursos pesqueiros podem ser entendidos a partir

    das posies defendidas por Hardin (1968), caso se concorde com a observao feita por Berkes

    (1989) de que aquele autor confundiu recursos de propriedade comunal com recursos sobre os quais

    no existe qualquer direito de propriedade.

    Desta forma, na ausncia de restries entrada na pesca, quando a margem de lucro se

    torna decrescente - em funo do aumento do esforo de pesca - os pescadores individuais, ao invs

    de diminurem o esforo empregado, tendero a aumentar seu poder de pesca, presididos pela lgica

    de que hoje tem mais peixe a ser pescado do que ter amanh. Neste instante prevalecem os

    benefcios individuais sobre aqueles da coletividade, e "(...) instaura-se uma dinmica de dilapidao

    dos recursos, de superexplorao, bem como de superinvestimento, quando se trata de recursos

    dispondo de um mercado."(Weber, 1997).

    O acesso aos recursos sob o regime de propriedade privada direito exclusivo do

    proprietrio. No caso dos recursos pesqueiros, a propriedade privada e, por conseguinte, o acesso

    exclusivo aos recursos surgem como produto das concluses de Hardin (1968), para quem somente a

    iniciativa privada ou uma forte regulao estatal seria capaz de evitar a sobreexplotao dos recursos.

    A principal forma de propriedade privada dos recursos pesqueiros so as cotas

    indivi