presencismo

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A Teoria da “Presença” Fernando Paulo Rosa Dias 1 Este ensaio resulta de um levantamento efectuado para operar na nossa tese de mestrado sobre o expressionismo em Portugal de entre-Guerras, tempo em que a revista Presença (1927-1940) foi das mais relevantes no esforço de um posicionamento teórico e estético, sobretudo literário, mas com orientações mais abrangentes para a cultura portuguesa. A sua incisão crítica e doutrinal superou alguma relativa dimensão regional, das suas origens coimbrãs – considerando que a sua fomentação se desviava por modernidade dos centros académicos desta cidade, o que atenuaria fortemente esta dimensão periférica nacional. O que constatamos, e que de seguida exporemos, é um esforço de teorização, algo entre o surrealismo e o expressionismo, num esforço para atenuar as distâncias com as capitais europeias da cultura que, à distância, procuravam sintonizar. Para o seu entendimento, convém posicionar as suas origens nos anos 20 do século XX, onde a mundanidade de janotismo cosmopolita já não vivia o malogrado esforço de vanguarda que a segunda metade da década anterior, em torno de Orpheu e de Portugal Futurista, sobretudo, tinha sido. O esforço da Presença foi exactamente em querer saber o que tinham sido esses tempos e de procurar simultaneamente um sentido ou destino actual. Nesta perspectiva, nascida em meados da segunda metade dos anos 20, a Presença procurava saltar aquela década para se ligar a uma continuidade de uma mítica vanguarda dos anos 10. Após uma introdução sobre esse contexto emergente da revista Presença («Antes da Presença»), dividiremos o nosso trabalho («Presença em Presença») em cinco partes que são cinco linhas de orientação da teoria presencista que resgatámos: 1. A Liberdade Individual 2. A Sinceridade Espontânea 1 Professor Auxiliar da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

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A T e o r i a d a “ P r e s e n ç a ”

Fernando Paulo Rosa Dias1

Este ensaio resulta de um levantamento efectuado para operar na nossa tese de

mestrado sobre o expressionismo em Portugal de entre-Guerras, tempo em que a

revista Presença (1927-1940) foi das mais relevantes no esforço de um posicionamento

teórico e estético, sobretudo literário, mas com orientações mais abrangentes para a

cultura portuguesa. A sua incisão crítica e doutrinal superou alguma relativa dimensão

regional, das suas origens coimbrãs – considerando que a sua fomentação se desviava

por modernidade dos centros académicos desta cidade, o que atenuaria fortemente esta

dimensão periférica nacional. O que constatamos, e que de seguida exporemos, é um

esforço de teorização, algo entre o surrealismo e o expressionismo, num esforço para

atenuar as distâncias com as capitais europeias da cultura que, à distância, procuravam

sintonizar. Para o seu entendimento, convém posicionar as suas origens nos anos 20 do

século XX, onde a mundanidade de janotismo cosmopolita já não vivia o malogrado

esforço de vanguarda que a segunda metade da década anterior, em torno de Orpheu e

de Portugal Futurista, sobretudo, tinha sido. O esforço da Presença foi exactamente em

querer saber o que tinham sido esses tempos e de procurar simultaneamente um

sentido ou destino actual. Nesta perspectiva, nascida em meados da segunda metade

dos anos 20, a Presença procurava saltar aquela década para se ligar a uma continuidade

de uma mítica vanguarda dos anos 10. Após uma introdução sobre esse contexto

emergente da revista Presença («Antes da Presença»), dividiremos o nosso trabalho

(«Presença em Presença») em cinco partes que são cinco linhas de orientação da teoria

presencista que resgatámos:

1. A Liberdade Individual

2. A Sinceridade Espontânea

1 Professor Auxiliar da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

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3. A Pureza Infantil

4. Intuição e Inconsciente

5. A Deformação

Concluiremos com uma síntese em que propomos a nossa perspectiva de articulação

entre as possibilidades de uma teoria expressionista, a primeira e algo tardia na cultura

portuguesa2, e uma aproximação ao surrealismo. Nesta perspectiva, a Presença

apresenta-se como um projecto editorial que nos pode permitir entender que estas duas

linhas culturais determinantes no século XX, podem ter vários pontos de aproximação.

O nosso esforço, entre as páginas da própria Presença, de outros textos dos seus

colaboradores e de comentadores, procurou efectuar-se com uma proximidade com as

fontes cuja escrita original procurámos manter dentro de uma estrutura ou arrumação

que é proposta nossa e que se efectuou em consonância com as nossas referidas

orientações e as considerações finais. Apresentamos este estudo como um contributo e

comemoração tardia para os 75 anos do lançamento da revista Presença que, em 2002,

foi uma efeméride que passou algo despercebida e de restrita mobilidade cultural.

A n t e s d a “ P r e s e n ç a ”

Os anos 20 foram marcados por um mundanismo urbano que deu o mote cultural

(visual e por vezes teórico) das principais revistas que reivindicavam o estatuto de

modernas. Assumindo mais o grafismo e a ilustração como meio principal para essa

actualização, acabou por se disfarçar a inoperância de tal tentativa: na rendição à

imagem confluiu a ambiguidade dessa modernidade que dependia da eficácia da sua

mensagem visual.. Sob uma temática da mulher e da cidade canalizava-se a via

mundana de uma modernidade tanto estilizada como artificial mas, sobretudo,

A Teoria da “Presença”

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2 Foi esta questão que tivemos a oportunidade de trabalhar antes, no âmbito da nossa tese de Mestrado em História da Arte contemporânea, da qual resultou a investigação que se desenvolveu para a construção do presente ensaio. Cf. Fernando Paulo Rosa Dias, Ecos Expressionistas na Pintura Portuguesa (1910-1940), (2 volumes), Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Novembro 1997.

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desproblematizada. Os anos 20 aparecem assim como uma década de lenta

sedimentação de uma modernidade no gosto de um público que só tornava possível tal

aceitação na própria artificialidade dos meios e na alienação de qualquer densidade e

fulgor perturbador como o foram Orpheu ou Portugal Futurista: «Na ausência de

contrapartidas mais sólidas, os artistas recorrem por isso aos periódicos, imensos

laboratórios onde também se vão ensaiar e exercitar as fórmulas de uma modernidade,

que deste modo penetra lentamente na sociedade. (...) é através dos periódicos que se

realiza o verdadeiro encontro entre o público e o artista, com especial evidência no

magazine, dotado de um poder novo e fascinante, num tempo ávido de informação

viva; fenómeno de época, ele é também seu espelho e consciência»3.

Os efémeros mas agitados escândalos dos novos do círculo de Orpheu, que buscavam

radical e confessionalmente o seu ser moderno com uma intimidade ôntica, sofriam um

efeito letargo na década seguinte sobre a miragem moderna de um conjunto de

periódicos. Contemporânea foi a principal dessas publicações periódicas, marcando os

limites das possibilidades modernistas de uma capital que se pretendia temporalizar

com as principais cidades europeias, mas que pouco mais conseguia ser para além

duma artificiosa maquilhagem de elegância e urbanidade estilizadas de uma capital

que, invertendo os termos de uma expressão de Almada Negreiros, só era moderna

pela sua maneira de vestir e não pela maneira de ser, e que só no Chiado assim se

conseguia vestir. A estilização sintética da linguagem gráfica, que fornecia os modos

desse vestir, é o próprio exemplo dessa interpretação idealizada e artificiosa de

interpretação de uma modernidade para a capital, mas que nos equívocos da sua ficção

não conseguiu tanto impor modos reais de comportamento mas apenas maquilhagens

tão irreais como as que se representavam nas ilustrações dos magazines: «semblantes

irreais e sonhados na impossibilidade de o serem» 4 .

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3 Maria Helena de Freitas; “Imagens e Miragens de uma década”, in Pacheko, Almada e “Contemporânea”, Lisboa, Centro Nacional de Cultura, Bertrand Editora, 1993, p.71.

4 Ibidem, p.73.

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O surgimento da revista (ou «fôlha de arte e crítica»5) Presença em 1927 assinala a

antecipação cultural do fim dessa estilização artificiosa da modernidade que marcara a

década de 20, recuperando a reflexão ontológica de Orpheu, mas agora mais

sistematizada e consciente desse ser moderno que Orpheu ainda procurava6. Presença era

assim uma espécie de modernidade já identificada e menos inquieta como vanguarda,

mas já podendo fazer reflexão histórica e crítica desse teor modernista: e era

exactamente nesse campo de reflexão crítica e ensaísta, e não tanto criativa, como fora

em Orpheu, que Presença encontrou o seu grande meio de perturbação e inquietação. O

obstinado apelo à sinceridade por parte desta revista, como adiante avaliaremos,

acentuava o sentido dessa inversão ao sentido artificioso com que a modernidade se

estendera nos anos 20, ao mesmo tempo que se procurava recuperar os valores criativos

dos círculos de Orpheu ou de Portugal Futurista, como que fazendo vazio à década que

praticamente lhes fica intermédia. Daí que a ligação possível que os vários periódicos

mundanos e urbanos dos anos 20 (mesmo de Contemporânea que seria a que se

apresentava com um teor mais moderno) estabelecem entre Orpheu e Presença, se

apresente sob a forma de um parênteses ou relativo vazio; e que a própria Presença, por

oposição, tivesse surgido em Coimbra, fora desse Chiado cultural. É só no contexto

com o ambiente cultural (literário) em que surge, que a revista Coimbrã aparece com o

papel de agitadora, propondo com a sua “literatura viva” uma alternativa mais

animada da literatura livresca e moribunda da prosápia académica7: “Assim se substitui

a arte viva pela literatura profissional”, proclamava José Régio logo na abertura do

primeiro número da revista8.

A Teoria da “Presença”

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5 Foi com estas características e pretensões que o projecto se apresentou ao longo de toda a primeira série. Só durante a escassa segunda série (de apenas dois números) se afirmou, de facto, como “revista”.

6 «Sá-Carneiro e Pessoa buscam porque não são. Os Presencistas são e buscam». Eduardo Lourenço; “Presença ou a contra-revolução do Modernismo Português”, in Revista do Livro, Rio de Janeiro, nº23-24, Ano VI, Julho/Dezembro, 1961, p.81. Mais tarde, o mesmo autor consideraria esta uma «injustiça de ordem crítica e histórico-literária que (…) tinha cometido». Cf. Eduardo Lourenço,”Orpheu e Presença”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, nº808, 19 Setembro 2001, p.14.

7 Ver E. M. de Melo Castro; As Vanguardas na poesia portuguesa do séc. XX, Lisboa, Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve, 1987 (2ª edição), p.56.

8 José Régio; “Literatura Viva, in Presença, nº1, Coimbra, Março 1927, p.1.

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No meio intelectual coimbrão, Presença surge como uma proposta modernizada

relativamente a outros periódicos de teor mais saudosista e nacionalistas, onde a

modernidade era, também aí, indecisa ou mesmo ignorada9. Mas esta imagem da

cidade do Mondego era a mesma que se verificava no país. A Presença começou assim

por reivindicar a memória da mais evidente acção vanguardista que o país conhecera,

mas não compreendera. Presença propõem-se a fornecer essa compreensão e com ela

dar legitimidade à sua própria acção cultural de afirmação de uma modernidade

«viva». «Esta reincarnação da revista quase mítica de 1915 na de 1927, constituía a

principal e algo justa reivindicação da “Presença’” (...). Ela era comprovada fisicamente

pela colaboração que Fernando Pessoa sempre cordialmente lhe daria, não poupando

elogios de simpatia e apreço aos seus dois ou três directores, e bem compreendendo que

seria nas páginas da revista destes novos amigos que a sua obra se projectaria, do

silêncio a que se remetera, voluntariamente. E, com Pessoa, outra gente do “Orpheu”

viria com inéditos, como Almada, Sá-Carneiro, Mário Saa (...) e Raul Leal, em sua fase

“Henoch”, com colaboração herética, “A Virgem-Besta” que pôs problemas de possível

aceitação, em 1929. E onde haviam eles de colaborar senão na publicação de

Coimbra ?...»10.

É nessa apatia cultural pos-Orpheu em que a revista vai mergulhar, e na sua proposta de

renovação, que surge a sua possível revolução e o seu equivocado vanguardismo: Sem

ser “«contra-revolucionária»11 ou «tradicionalista» 12 , Presença também dificilmente

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9 Dessas revistas coimbrãs salientem-se A Rajada (com 5 números em 1912 e dirigida por Afonso Duarte, futuro colaborador da Presença), Dionysios (em 4 séries irregulares entre 1912 e 1928, sendo apenas as duas primeiras de Coimbra, passando depois a revista para o Porto), Ícaro (3 números entre 1919-1920), Bizâncio (6 números entre 1923-1924) ou Tríptico (com nove números em 1924). Estas revistas apresentavam já colaboração de futuros intervenientes da Presença: no conjunto, contudo, tais edições estavam longe de se decidir pelo modernismo. Ver Óscar Lopes; História da Literatura Portuguesa. III. Época Contemporânea, Lisboa, Editorial estúdios Cor, 1973, pp.748-749.

10 José-Augusto França; Os Anos Vinte em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1992, p.356.

11 Como teorizou Eduardo Lourenço. Ver deste autor “Presença ou a Contra-revolução do Modernismo”, in suplemento de “Cultura e Arte” de O Comércio do Porto, Porto, 14-6-1960. Este mesmo texto, então censurado, foi depois publicado em versão recuperada na obra do mesmo autor Tempo e Poesia.

12 «David-Mourão Ferreira sublinhou o “provincialismo” dos presencistas e Eduardo Lourenço vê-os como factores de uma “contra-revolução” relativamente ao único autêntico Modernismo, o primeiro. Até sob o ponto de vista editorial, os volumes essenciais da poesia de Pessoa são posteriores aos dos presencistas. (...). O Segundo Modernismo serviu afinal de mediador ao primeiro». Óscar Lopes; op. cit., p.748.

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seria de «vanguarda», ao não ter, como Orpheu, a urgência de «criar novas linguagens»

e pelo assumir com energia de uma acção pedagógica13, necessária para a sua

geração14. Presença procurou assim dar um sentido ao caos moderno e revolucionário da

primeira geração (Orpheu), com a distância temporalizada de uma memória, e, ao

mesmo tempo, sair da apatia do moderno artificial dos anos 20 (Contemporânea)15. Como

reconheceria Gaspar Simões no seu ensaio autobiográfico em torno de José Régio e da

Presença, esta revista era afinal a modernidade não do primeiro modernismo, mas do

segundo e, por isso mesmo, a do seu tempo: «Se a Presença, com José Régio na

primeira linha, foi contra-revolucionária, uma coisa há que reconhecer: que toda a

literatura europeia de entre as duas guerras – a de 14 e a de 38 – o foi também”»16. De

facto, se a Presença não foi vanguardista relativamente a um outro tempo, apesar de

passado (o de Orpheu), foi-o certamente relativamente ao seu (afinal, o tempo da

Presença).

P r e s e n ç a e m “ P r e s e n ç a ”

Por processos de teoria e crítica artística (sobretudo literária), a revista Presença produziu

a sua própria ideologia, ou até política, cultural. Com a agressividade contundente, que

A Teoria da “Presença”

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13 “(...), Presença desempenhou um papel que ideologicamente não era o seu: o da vanguarda, confundindo-o com uma necessária acção pedagógica”. E. M. de Castro; op. cit., p.57.

14 «No final de contas o que porventura justificaria a acusação de contra-revolucionária feita à revista coimbrã seria o amadurecimento do seu diapasão crítico, o qual, aceitando o que de mais revolucionário havia em Fernando Pessoa, em Mário de Sá-Carneiro, em Almada negreiros, em Raul Leal, o superava, dando um conteúdo doutrinal ao que o não tinha nas páginas de Orpheu. (...).Seja qual for, portanto, o impacte revolucionário da revista Orpheu, tal impacte só conquista em Portugal posição de relevo a partir da doutrinação presencista. Até 1927 o Orpheu não passava, aliás, de uma “revista de doidos”». João Gaspar Simões; José Régio e a História do Movimento da “Presença”, autobiografia, Porto, Brasília Editora, 1977, pp.27-34.

15 «Se o Orpheu hesitara entre o decadentismo e o modernismo e no ponto de vista das ideias pecara por indecisão e pobreza doutrinal, a Presença, pelo contrário, desde logo se afirma antes de mais nada uma publicação fortemente doutrinária e excepcionalmente cônscia das ideias que animavam o movimento que servia. Grosso modo, diremos que a Presença vinha consciencializar o estado de espírito, por de mais instintivo e polémico, evidenciado pelo Orpheu. Se o primeiro modernismo fora revolucionário, contundente, destruidor nas sua linhas gerais, o segundo ia ser crítico, argumentativo, construtivo e classicizador no seu ideário e na sua acção principal». João Gaspar Simões; Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa, Lisboa, Editora Arcádia, 1964, pp.330-331.

16 João Gaspar Simões; op. cit., p.28.

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se tornou típica e famosa dos principais colaboradores da revista coimbrã, essa

ideologia tornou-se forte interveniente do ambiente cultural vivido pelo país durante

toda a existência da revista, apesar da irregularidade da mesma. Dos valores defendidos

pela revista, os mais sublinhados são os da defesa da liberdade, da individualidade, da

intuição (ou do não racionalismo) e da autenticidade17. Estes valores apresentam-se, contudo,

teoricamente articulados entre si: a intuição como meio para a autenticidade, este para a

individualidade que, por sua vez, justifica a liberdade (tratando-se, no fundo, de liberdade

individual). Outros valores que se podem acrescentar aos anteriores, como caracterizas

muito particularmente a revista no panorama nacional, são o da defesa do infantilismo e

do primitivismo como processo originário e puro da criação e, como tal, base da

autenticidade e sinceridade pretendida em tal acto. Embora diluindo-se a partir de meados

dos anos 30, para praticamente serem esquecidos nos números da segunda série, tais

valores são bastante incisivos nos primeiros números, quando da necessidade de expor

os parâmetros teóricos da revista, onde se articulam com outros. Tal diluição, na defesa

destes valores, que se verifica nos últimos tempos da revista, acaba por ter analogia com

a atenuação da defesa da intuição nos moldes e na intensidade com que antes aparecia.

Sobrepondo-se anteriormente à distanciação racionalista, a imediatez intuitiva acaba

por se reconciliar com ela, num equilíbrio, e mútuo controlo, que se começava a achar

necessário (sobretudo em Régio); ou a evitar-se essa sobreposição colocando-as,

intuição e razão, em planos paralelos e sem oposição, mas ambos necessárias.

Sublinhamos ainda a deformação, acto inerente à criação artística como inevitável re-

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17 Segundo David Mourão-Ferreira; “Esta nova Presença da presença”, in Presença (edição fac-similada compacta: tomo I), Lisboa, Contexto, 1993, pp.5-6.

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criação da realidade. Outros valores poderão ser apontados e desenvolvidos18: os que

aqui serão desenvolvidos não deixam de ser uma escolha e interpretação próprias,

resultado de uma investigação que procura determinados objectivos.

Mas procuremos as confirmações destes valores nos próprios ensaios que se distribuem

ao longo dos 13 anos de existência da revista coimbrã. Percorrendo a revista observa-se

o atravessar destes valores, em continuidades flutuantes, como que procurando a sua

própria maturidade teórica, desenvolvendo-se em conflito com outros (ou outros

autores periódicos), e articulando-se uns com os outros. A proposta de sistematização

que se propõe de seguida não segue por isso qualquer organização semelhante exposta

pela Presença: na revista coimbrã apresentam-se entrelaçadas numa teia especulativa de

ensaios e críticas que procuravam a sua organização e sentido com a contundência

necessária a um meio cultural onde tais valores ainda surgiam como estranha novidade.

Não se segue uma exposição de tudo o que está na Presença relacionado com os títulos

temáticos que se optaram: mas certamente os mais importantes. Sendo uma teorização

estética da revista, ao longo da sua existência, que se expõe, não há preocupação de

restrição particular às artes. As problemáticas levantadas por capítulos atravessam os

vários suportes artísticos (sobretudo literatura, mas também pintura, cinema ou até

música...), numa conciliação estética de uma teoria artística que propunha transcender

as particularidades de cada arte, tal como era apanágio da revista.

A Teoria da “Presença”

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18 Eugénio Lisboa resume assim um «solo comum» entre os principais autores presencistas: «um amor genuíno à arte como arte, um gosto da independência e da liberdade interior, a convicção inabalável de que a arte é obra individual, o horror ao dirigismo crítico, ao dogmatismo doutrinário, a tónica posta nos valores intemporais, o valor atribuído à intuição inicial como base de toda a crítica, um certo ou quase total alheamento em relação à “análise da obra literária como criatura verbal, estrutura de palavras”, uma vocação pedagógica evidente... E, sobretudo, uma inabalável capacidade de defender o objecto artístico contra a tentativa de inovação de pelouros que o não respeitem e que tendem a subvertê-los. E também um genuíno horror a ‘modas’ que se propõem como fórmulas definitivas e exclusivas, (...)». Eugénio Lisboa; O segundo modernismo em Portugal, Lisboa, I. C. L. P., 1984 (2ª edição), pp.70-71. (acrescentar...). «Em relação às tendências precedentes, os escritores de Presença consideravam-se como prospectores de certa riqueza humana entre nós literariamente ignorada: os valores da “sinceridade vinda da região mais profunda, inocente e virgem”, do “acto gratuito” germinado no “inconsciente”, da “recriação individual do mundo”, da “personalidade original”». António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1978, p.1109.

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A L i b e r d a d e I n d i v i d u a l

«La personnalité ne réside pas dans la répétition d’une audace, mais, au contraire, dans l’indépendance

que l’audace permet».

JEAN COCTEAU (Presença, nº1, p.3)

«Nenhuma escola vale mais do que a outra: Os homens é que sim». (Presença, nº5, p.8)

Um dos aspectos mais relevantes da ideologia artística da revista Presença, e que vai ser

evidente em toda a sua existência da revista, é a defesa intransigente da liberdade

individual do criador de arte. A liberdade individual da personalidade artística torna-se

mesmo a base inicial de toda a ideologia estética presencista.

Logo no primeiro número da revista, José Régio, um dos seus fundadores, escrevia num

texto que procurava dar o mote ideológico da revista: «É original tudo o que provém

da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A

primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade a obedecer-lhe. (...),

superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo»19.

E logo no número seguinte o mesmo autor dá continuidade a essa necessidade

individualista do artista, tal como esse outro tono que persistirá na revista, e que surgia

como um aparente paradoxo: a individualidade criativa como legitimação da

universalidade da Arte: «Se ser individualista é ter e seguir obstinadamente uma

individualidade - todos os grandes Artistas são individualistas. Todos são, também,

universalistas, se ser universalista é iluminar humanidade profunda e eterna»20. Ou,

como escreveria ainda, por outras palavras, «a um grande artista, se exige que seja

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19 José Régio; “Literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº1, Março de 1927.

20 José Régio, “Classicismo e Modernismo” in Presença, Coimbra, nº2, Março 1927,p.2.

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simultaneamente o mais individual e o mais universal possível»21. É outro dos

directores fundadores, João Gaspar Simões, quem desenvolverá esta questão num

artigo que propriamente se intitula «Individualismo e Universalismo», e que aparecia

dois números depois como que para justificar a afirmação de Régio. Escrevia ele: «Ora

é nêste poder natural de contínuo renascimento, nesta mocidade insuperável, que

reside a virtude universalista das almas individuais. (...); enquanto a individual, invulgar,

se mantém em eterno nascimento, jamais abandonando a alma matriz que a torna

insusceptível de assimilação. (Todos os túmulos permanecem cerrados perante ela). Daí

a universalidade da obra individual fundamentar-se precisamente em que todos os

homens a contemplarão e sofrerão o choque humaníssimo da sua vitalidade, sem

lograrem sepultá-la em suas tumulares consciências»22. Ou, como viria ainda a escrever

António de Navarro, trata-se de «o indivíduo universo e não o indivíduo átomo

d’universo, (...)»23.

A noção de estilo na arte perde o seu sentido habitual, como processo normativo, então

inadequado à intervenção crítica dos principais autores da Presença, adquirindo para

estes novos sentidos, de independências e possíveis antinomias legitimadoras da própria

arte moderna. Para Régio a «Arte moderna» parece mesmo «poder ser compreendida

sôb êste aspecto individualista» ou «humanista», que se sobrepõe à influência

exagerada da realidade exterior, típica «na Arte sociológica, moralista, ou realista»24.

João Gaspar Simões justifica assim a singularidade do modernismo na arte: «E se as

singularidades das obras dos modernistas são mais dificilmente aceites do que as de

alguns artistas passados, é porque hoje as características fundamentais da arte

repousam na originalidade individual. (...). Cada artista - artista criador - cria uma

A Teoria da “Presença”

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21 José Régio, “Divagação à roda do primeiro Salão dos Independentes”, in Presença, Coimbra, nº27, Junho-Julho 1930, p.4.

22 João Gaspar; Simões, “Individualidade e Universalismo” in Presença, Coimbra, nº4, Maio 1927, p.2. Ver ainda o texto do mesmo autor, “Nacionalismo em Literatura”, in Presença, Coimbra, nº7, Novembro 1927, pp.1-2.

23 António de Navarro, “A propósito do I Salão dos Independentes”, in Presença, Coimbra, nº26, Abril-Maio 1930, p.3.

24 José Régio, “Lance de Vista”, in Presença, Coimbra, nº6, Julho 1927, p.5.

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escola, pois, desde que o livre exercício da individualidade domina a nossa época como

tendência predominante, todo o verdadeiro criador é agente duma nova fórma de arte

que os menos originais assimilam e uniformizam»25.

Assim, a individualidade na arte modernista explica a «avidez de originalidade

característica desta época». A variedade de formas artísticas ou estilos é então

sustentada, por Gaspar Simões, sob a alçada da própria individualidade artística que as

cria: «Admitimos todas as prosas desde que elas correspondam a um estilo individual –

desde que tenham portanto estilo»26. Régio prolonga e confirma a relação entre

individualidade e estilo: «Falando-se dum Artista, personalidade é a maneira própria,

original, dum indivíduo exprimir acções e reacções próprias, originais. É neste sentido

que é verdade o estilo ser o homem. E eu repito aqui o aforismo alargando a palavra

estilo até a fazer sinónimo de individualidade artística. Individualidade artística, ou estilo,

será pois a maneira pessoal, característica, expontânea, fatal, dum artista conceber e

realizar. E a sua individualidade artística será, por assim dizer, uma resultante estética da

sua humanidade: da sua individualidade de homem: (...)». João Gaspar Simões

ratificaria: «Estilo é a forma assumida pela realidade, quando devolvida do íntimo

duma personalidade. Estilo é a personalização da realidade»27. E, novamente Régio,

mais tarde: «(...), a arte é expressão, sugestão, ou representação do mundo (interior ou

exterior) através dum temperamento próprio, dum conhecimento pessoal, duma alma

individualizada»28.

O desenvolvimento de tal ordem de ideias levava Régio a nova defesa do Artista: a

defesa da sua «independência de toda a espécie de convenções»29. A Arte só existe

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25 João Gaspar Simões, “Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº14-15, Julho 1928, p.2.

26 João Gaspar Simões, “Do Estilo”, in Presença, Coimbra, nº8, Dezembro 1927, p.2. Relacione-se esta afectação da realidade pela individualidade íntima de uma personalidade artística com o tema da «deformação, génese de tôda a arte», que o mesmo Gaspar Simões defenderia. Ver neste trabalho parte5, pp.55-57.

27 João Gaspar Simões, “Raul Brandão, poeta”, in Presença, Coimbra, nº30, Janeiro-Fevereiro 1930, p.3.

28 José Régio, “li-te-ra-tu-ra”, in Presença, Coimbra, nº45, Junho 1935, p.16.

29 José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº9, Fevereiro, 1928, p.4.

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verdadeiramente quando assumida num plano puramente individual alheio «de

qualquer fé política, de qualquer preocupação de partido, de qualquer doutrinação

religiosa, de qualquer ambição nacionalista, de qualquer constrangimento social»: Um

artista verdadeiro «não abdica» nunca «da sua finalidade artística»: «A arte é uma

recriação individual do mundo. (...). É que na Obra de Arte, o mundo existe atravez da

individualidade do Artista» (Régio)30. Numa carta enviada à Presença o poeta brasileiro

Jorge de Lima escrevia aquilo a que redacção da revista considerou «uma admirável

defesa da poesia»: «O aparecimento da poesia, o seu maior ou menor quociente sôbre

a terra não depende de leitor nenhum, nem de número de leitores. (...). Está acima de

leitores, de política, de ciência, de filosofia. (...). O poeta está acima dessas coisas,

transcende ao tempo, não liga absolutamente às modas, aos políticos, às guerras, às

revoluções, às tiranias, às mudanças do tempo. (...). Ciência, sociologia, reivindicações

de classe são óptimos temas para discurso de comício, panfletos de combate, teses, etc,

mas não dão um miligrama de poesia»31.

Um sentido de liberdade, alheia a regras e a academismos insinua-se facilmente em tal

defesa intransigente do individualismo. Segundo Manuel Maia Pinto, só uma criação

estética individual permite «uma forma viva de conhecer, e não à adopção de certas

fórmulas, ou à adesão de determinados juízos de valor»32. Para António de Navarro,

cada artista constrói as suas regras; cada artista é uma escola. «Tenha cada um uma

escola em si próprio (...). Olhe cada um com os seus olhos, sinta com a sua alma e veja,

primeiro ou depois (...) com o cérebro e terá feito obra original, terá feito arte

absolutamente moderna. (...) o que verdadeiramente importa ao artista é o que êle

criou pelo próprio esforço.(...): siga cada qual o seu caminho»33. A cada criação artística

A Teoria da “Presença”

170

30 José Régio, Idem, p.2. Relacione-se a citação com o tema presencista da “deformação”. Ver parte 5 deste trabalho.

31 Jorge de Liam; in Presença, Coimbra, nº45, Junho 1935, p.6.

32 Manuel Maia Pinto; “Introdução a uma estética pragmática”, in Presença, Coimbra, nº43, Dezembro 1934, p.7. Esta posição, aceite e desenvolvida na revista, será razão do confronto com as tendências neo-realistas que despontavam na segunda metade da década de 30. Ver final deste capítulo.

33 António de Navarro, “A propósito do I Salão doa Independentes”, in Presença, Coimbra, nº26, Abril-Maio 1930, p.2.

Page 13: presencismo

a sua estética: «Cada poeta vive na sua latitude e, possuído dum mistério só dêle que

procura revelar - a si próprio e depois aos outros - só uma estética vale para a sua obra:

a que dela própria se deduz»34. E a própria redacção sublinha a posição da revista: «(...)

a Presença não é órgão de nenhuma “capela literária”; antes aspira a ser, fora de

qualquer preocupação de escola ou anti-escola, órgão de todos os valores

representativos. (...). Demasiadas vezes nos temos visto acusados dum “partidarismo”

de pessoas, quando entre nós só há - e êsse tem de haver, já que procuramos afirmar -

um partidarismo de tendências»35.

Procurando manter-se «alheia de qualquer credo político, religioso ou moral»;

procurando a máxima liberdade criativa em matéria de «arte ou pensamento», na qual

«não reconhece chefes, nem legisladores, nem ditadores»; não crendo «na eficácia das

escolas, aceitando-as meramente como factos históricos»... a revista acaba por assumir,

cada vez mais, uma curiosa posição perante a modernismo do seu tempo, apontando

os perigos deste próprio criar escola: recusando-se, evidentemente, «a fazer do

modernismo escola»36 . Num «comentário a propósito do segundo salão dos

Independentes», José Régio criticamente insiste nesse perigo da academização e

artificialização do modernismo: «Em Portugal, quási só alguns isolados

compreenderam que o verdadeiro espírito da arte moderna é a absoluta liberdade à

verdade de cada artista. (...). Eis o que é mais preciso combater hoje: o modernismo ôco

e o adepto do modernismo. (...) – êstes modernistas são, na verdade, os maiores inimigos

da arte moderna; porque passando por modernistas aos olhos do vulgo, arrogam-se

perante êle uma autoridade que em outros casos seria mais facilmente reconhecível por

suspeita. (...). Resumo: tende-se actualmente, nas próprias manifestações do

modernismo a regressar subrepticiamente àqueles limites mais ou menos convencionais

contra os quais o modernismo se insurgiu: eis a perfídia, consciente e inconsciente dos

adeptos do modernismo. E tende-se a fazer da evolução modernista pura questão de forma

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171

34 João Gaspar Simões, “Mais além da poesia pura”, in Presença, Coimbra, nº28, Agosto-Outubro 1930, p.5.

35 (Redacção), “João de Castro Osório e a Presença”, in Presença, Coimbra, nº46, Outubro 1935, p.7.

36 (redacção), “Afirmações”, in Presença, Coimbra, nº28, Agosto-Outubro 1930, p.15.

Page 14: presencismo

ou de fórmulas (eis o empenho dos modernistas ôcos), quando tôda a verdadeira

revolução se opera pelo Espírito e no Espírito, (...): pelo Espírito-Forma no Espírito-

Forma»37.

Ao reflectir sobre «a arte e a realidade», João Gaspar Simões considera a «arte» como

«a realidade vista através de um temperamento» tornando-a assim «a expressão da sua

visão do mundo»: «a realidade exterior é sempre a mesma: é o artista que a interpreta e

re-cria». A beleza passa assim por uma «ordem interior», expressão «única de cada

artista» e que, não conformista, o «conduz» à «fuga ao real» exterior para despertar «a

verdadeira realidade - a que está em nós»38. Para a Presença a «Arte» era como que uma

espécie de «documento duma personalidade39». Antes da criação está o criador 40.

Este individualismo sincero e profundo, pretendido para a criação artística, levou a

própria revista (ou os seus autores principais) a ser acusada de psicologismo, observação

que trazia o cunho de crítica anti-social: com o advento ideológico do neo-realismo nos

finais dos anos 30, e com os equívocos teóricos desta que se tornam dominantes,

Presença torna-se ainda mais isolada, vendo antigos colaboradores a afastarem-se ou até

mesmo a criticarem a intransigência da revista na defesa da criatividade individual,

quando se exigiam, diziam, necessidades sociais. Nos últimos tempos da sua existência,

observa-se a luta teórica da revista coimbrã contra as novas mudanças ideologicamente

afectadas que procuravam «estrangular o lirismo intimista»41 tão defendido pelos seus

teóricos. É assim que nos seus últimos números, e pós uma interrupção de quase ano e

meio, a redacção da revista justificava porque «Presença reaparece», quase que como

numa necessidade de salvar a «arte» dessas novas tendências: «Reaparece num

A Teoria da “Presença”

172

37 José Régio, “Comentário a propósito do segundo salão dos independentes”, in Presença, Coimbra, nº31-32, Março-Junho 1931, p.30.

38 João Gaspar Simões, “A Arte e a realidade (a Sarah Affonso)”, in Presença, Coimbra, nº36, Novembro 1932, pp.5-8. Relacione-se novamente com a questão da “deformação”; ver parte 5.

39 Segundo uma expressão de Albano Nogueira inserida numa crítica literária a uma obra de José Rodrigues Miguéis; in Presença, nº36, Novembro 1932, p.10.

40 “Antes do romance – está o romancista”. Albano Nogueira, “Rosamond Lehmann”, in Presença, Coimbra, nº40, Dezembro 1933, p.6.

41 José Régio, “Crítica”, in Presença, Coimbra, série II, nº2, p.123.

Page 15: presencismo

momento histórico tão perturbado, que a alguns parecerá deshumanidade, mania, esta

prova de atenção e amor às questões da arte, da crítica, da cultura, quando a questão

social, a questão económica deveriam, segundo êsses, absorver todo o interêsse de

todos. (...): Como a “fôlha de arte e crítica “presença”, – a revista “presença” manter-

se-á uma publicação de arte e crítica; uma revista especializada, portanto. Inútil e sem

sentido virem acusá-la de ser... o que ela firmemente se propõe. (...). As questões

políticas e sociais não lhe interessam, pois, senão na medida em se correlacionem com

essas, e assim contribuam a iluminá-las, sem que a presença arvore a bandeira de

qualquer doutrina social ou política. Por isso mesmo caberão na presença colaboradores

vindos dos sectores mais diversos; e poderá presença merecer simpatia aos mais diversos

leitores. (...). Quando as tendências ou atitudes políticas, sociais, éticas, religiosas, em

vez de “naturalmente” se reflectirem nas obras dum artista, dum crítico, dum pensador,

grosseiramente alugassem a máscara da arte, da crítica, do pensamento, para melhor

realizarem impùnes a sua verdadeira intenção dedivulgação e propaganda – claro que

a arte dêsses pseudo-artistas seria má, a crítica dêsses pseudo-críticos falsa, o

pensamento dêsses pseudo-pensadores deficientes; e então presença recusar-lhes-ia as

suas páginas. (...) presença pretende ser uma afirmação de independência, inteligência e

larguesa – uma fortaleza espiritual – num terrível momento histórico de múltiplas

tentativas de humilhação do espírito; um orgão de criação e cultura, num terrível

momento histórico de múltiplos ataques à cultura e ao génio individual»42.

A ideia de neutralidade defendida pela revista coimbrã, pela sua própria inacção ou

descomprometimento, embatia contra tais conotações políticas e sociais que exigiam

determinado engajamento activo; ou seja, tal passividade perante os problemas sociais,

colocava a Presença numa posição solitária, numa terra de ninguém metafísica, que

facilmente poderia ser relacionada com um romantismo burguês de preocupações

apenas «formais». Denunciando perigos desse chamado «formalismo», ou essa defesa

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42 (Redacção), “Presença reaparece”, in Presença, Coimbra, série II, nº1, Novembro 1939, p.1-3.

Page 16: presencismo

da «arte pela arte» praticada pela Presença43, os teóricos do neo-realismo procuravam a

contestação a todo o custo, mesmo que para tal se subvertessem as necessidades

individuais da criação44: para o círculo da Presença tal seria a negação da própria arte45:

«Como explicar a quem, positivamente, não quere compreendernos, que não

condenamos senão a autoritária imposição de temas e preocupações sociais, políticas,

ou outras, a artistas cuja individualidade os afaste delas? (...). Sem esta liberdade dada

ao artista a ser como é – liberdade que aliás nem o próprio artista pode alienar -

julgamos não poder existir aquela arte viva, aquela arte humana, que presença tem

defendido desde o seu primeiro número»46.

Se a Presença teve um ponto verdadeiro comum e convergente entre os seus principais

teorizadores e doutrinários (José Régio, Gaspar Simões, Casais Monteiro...), esse foi,

sem dúvida, o individualismo. Contra todos os «ismos», um «ismo» era afinal radical e

algo metafisicamente defendido pela revista: o individualismo47. Ele era mesmo a base, o

A Teoria da “Presença”

174

43 “Como arte, qualquer obra de arte não responde senão a um problema de ordem estética; e a resposta é a própria obra realizada”. José Régio, “Comentário. Interrogações e dúvidas sôbre um depoimento de Rodrigues Miguéis”, in Presença, nº44, Abril 1935, p.12.

44 «Mas em carta redigida em tom cortês e datada de 16/7/1930, Branquinho, Edmundo de Bettencourt (...) e Adolfo rocha desligam-se da revista: (...). De facto, o nº 27, que é o último do 1º vol., Junho/Julho de 1930, já não menciona Branquinho entre os directores. Desta cisão resulta o nº único da revista coimbrã Sinal, Julho de 1930, sem artigo editorial e apenas com colaboração de Adolfo Rocha e Branquinho, este último também sob o seu anterior pseudónimo de António Madeira. Mais tarde, Miguel Torga será o director permanente de Manifesto, Coimbra, com 5 números de Janeiro de 1936 a Julho de 1938, os três primeiros co-dirigidos por Albano Nogueira e o último exclusivamente redigido por Torga; e então sentir-se-á uma clara oposição de tendência virtualmente neo-realista, ao presencismo: (...). Criticam-se “aqueles que, confinando-se na actividade puramente intelectual esquecem a humanidade”, (...)». Porém, nos últimos números da Presença, «figuram neo-realistas como J. J. Cochofel, Mário Dionísio, Joaquim Namorado e António Ramos de Almeida, não obstante a permanente polémica surda ou aberta com as Revistas O Diabo (1934-40) e Sol Nascente (1937-40). O último volume incluía uma carta de re-adesão assinada por Branquinho e Edmundo de Bettencourt; (...)». Óscar Lopes, op. cit., pp.749-751. Os próprios neo-realistas, na sua oposição, reconheciam a importância histórica da intervenção presencista. A carta do último número salientava-o, mas sabendo que era uma despedida e que a Presença estava mesmo fora do tempo.

45 Sobre esta questão ver, por exemplo: E. M. de Melo Castro, op. cit., pp.58-60.

46 (Redacção), “Mortos ilustres”, in Presença, Coimbra, nº48, Julho 1936, p.24.

47 «A teoria da literatura e arte sustentada nas colunas da Presença é tão radicalmente, ou tão metafísicamente, individualista, que repudia ‘todos os ismos’, a todos apodando de construções dogmáticas. Noutros termos: o individualismo do Modernismo seria um -ismo (ou dois...) acima de qualquer outro -ismo. É um dos pontos em que coincidem perfeitamente os três principais doutrinários sobre literatura: Régio, Simões e Casais». Óscar Lopes; op. cit., p.763.

Page 17: presencismo

ponto de início, da teoria presencista. Todas as tendências dessa teorização

desenvolvem-se a partir desta noção essencial para a criação de uma arte moderna e

viva: a individualidade ou personalidade artística.

A S i n c e r i d a d e E s p o n t â n e a

«Todos os grandes Artistas interpretam, isto é: revelam através da sua personalidade artística -

verdades essenciais, universais, eternas. É por isso que

aparentemente a Arte é tanto mais anti-social quanto mais

original e sincera: Não são fraternidades artificiais ou

superficiais que a Arte denuncia aos homens. São

comunicações subtis, profundas e subterrâneas».

(Presença, nº8, p.7)

«Os meus argumentos consubstanciaram-se comigo; não sei onde estão; sei que estão em mim mesmo e

que são aforismos. Por isso tudo o que digo é verdadeiro desde

que saiba dizê-lo sinceramente».

MÁRIO SAA (Presença, nº14-15, p.4.)

«Tôda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez

que a vemos. (...). Há frases repentinas, profundas porque vêm do

profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem

se define, sem definiçã»”

ÁLVARO DE CAMPOS (Presença, nº30, p11,15)

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Page 18: presencismo

A defesa da liberdade individual levou os pensadores presencistas à sinceridade do acto

criativo para justificar as bases profundas e puras da personalidade e originalidade

individual. Logo no seu importante texto do primeiro número («Literatura Viva»), e

espécie de manifesto de lançamento da revista, afirmava José Régio após discursar

sobre a personalidade artística: «Da pouca originalidade da literatura portuguesa,

naturalmente resulta em grande parte a sua pouca sinceridade. (...): tanto mais que o

problema da sinceridade é hoje complicado, como de resto, todos os problemas

contemporâneos. A expressão directa, simples, orgânicamente ingénua, tenta sem

dúvida o artista moderno; mas não parece ser característica dêle. Os artistas de hoje

mais directos, mais simples, mais ingénuos – são-no conscientemente. Salvo raríssimas

excepções. Ora ser conscientemente ingénuo, simples, directo, já é complicar-se. A

complicação que julgo ver na Arte moderna pode, pois, tomar aparências de pouca

sinceridade: o lirismo e a ironia, o abandôno e a atitude, o sub-consciente e a razão –

emaranham-se na arte de vários mestres contemporâneos. Daí resulta uma novidade de

processos e meios de expressão que surpreende, irrita, perturba, ou provoca o desdém

dos não iniciados»48. No número seguinte, o mesmo autor faz ainda referência aos

«maiores artistas modernos» que «se recusam a caber numa escola, preferindo seguir

livremente o seu instinto criador»49.

João Gaspar Simões, também logo nos primeiros números, faz o elogio a uma

«comunicação instintiva, directa e inconsciente», «contra o enfatuamento duma arte e

duma literatura demasiado sábia»50; ou ainda que «é nas superiores manifestações

intelectuais, que êste sincero e individual processo de reacção se reflete

particularmente» e que «é artista superior o que mais original, individual, possuir a

alma e, logo, o que à realidade opuzer um mais puro sistema de reacções»51 (e nestes

textos Gaspar Simões fazia ainda a defesa da pureza infantil e primitiva - como meio

A Teoria da “Presença”

176

48 José Régio, “Literatura Viva”, in Presença, Coimbra, nº1, Março 1927, p.1.

49 José Régio, “Classicismo e Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº2, Março 1927, p.1-2.

50João Gaspar Simões, “Contemporâneos Espanhóis. Pio Baroja”, in Presença, Coimbra, nº3, Abril 1927, p.6.

51 João Gaspar Simões, “Individualismo e Universalismo”, in Presença, Coimbra, nº4, Maio 1927, p.1.

Page 19: presencismo

para esta sinceridade - que seria um outro aspecto saliente da sua ensaística inicial na

Presença)52. Em elogio crítico a Dostoievski, o mesmo Gaspar simões refere que a

escolha dos actos das personagens do escritor soviético «realiza-se não no segredo das

suas consciências, não enquanto simples ideias, mas já depois de actos. Daí a

sinceridade de que eles se revestem e a loucura de que ao vulgar leitor parecem

possuídos» (e na mesma ordem de ideias continua a defesa do primitivismo) 53 . Num

ensaio sobre o «estilo», afirma ainda que este só o é «verdadeiramente quando chega a

ser uma directa emanação da individualidade do escritor». Assim, o «grau de estilo» só

se atinge quando o que «se escreve vem espontâneamente (origináriamente) das

profundidades daquele que escreve. A maior dificuldade até se possuir um estilo reside

na grande dificuldade de descobrir-se - ou antes de achar o caminho seguro que a si

próprio conduza», ou ao «que é necessário» «para se “ser” verdadeiramente».

Criticando o «estilo culto» e as «qualidades literárias» dos escritores portugueses, critica

nestes a «retórica» («falta de correspondência entre o que se exprime e o que se diz»), a

«beleza falsa e aparente» para lhes «pedir» «mais sinceridade» e «mais aderência

individual» 54 . A sinceridade, verdadeiro meio para se conquistar a individualidade

criativa é a razão de ser do próprio «estilo». Num estudo sobre André Gide

caracterizava ainda o termo «génio» ligando-o o termo «às faculdades intuitivas,

naturais, espontâneas»55.

Em «Ideias sobre Ibsen», e referindo a «espontaneidade» deste dramaturgo que

desenvolvia as «suas mais naturais ideias», defendia Gaspar Simões o «individualismo»

da arte do dramaturgo nórdico: «(...) é um individualismo puramente interior, o culto

da personalidade, o respeito pelas leis invioláveis do nosso ser, pelos princípios

indestrutíveis da alma. (...) segundo êle o homem deve procurar viver consoante a sua

personalidade natural, para o que protegerá sempre o desenvolvimento espontâneo

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52 Ver parte 3 deste trabalho: “A Pureza Infantil ou Primitiva”.

53 João Gaspar Simões, “Depois de Dostoievski”, in Presença, Coimbra, nº6, Julho 1927, pp.1-2.

54 João Gaspar Simões, “Do Estilo”, in Presença, Coimbra, nº8, Dezembro 1927, pp.1-2.

55 João Gaspar Simões, “Sôbre André Gide e o génio Francês”, in Presença, Coimbra, nº12, Maio 1928, p.7.

Page 20: presencismo

dessa personalidade contra todos os preconceitos, contra toda rigidez automática das

convenções. (...). Ibsen condena continuamente aqueles que substituem as leis naturais

das suas almas, pelas leis artificiais da sociedade. Leis estas, falsas, porque exteriores,

mecânicas, egoístas»56.

Diogo de Macedo, iniciando a sua colaboração em ensaios críticos sobre artes plásticas,

integrava-se neste pendor ideológico da revista, falando da «lei» da «sensibilidade

moderna» como tendo «de ser natural e criadora». A beleza, «alegre e sábia só comove

e ensina sendo franca a ofertar-se»57. É assim que refere Rousseau como «sincero

amador», de Cézanne que «sentiu e pintou ”livre”»58, ou de António Carneiro como

«espontâneamente sincero», além de «sonhador, infantil e cristão»59.

José Régio, num vasto artigo que, como um manifesto, ocupa todo um número, dá

continuidade às suas ideias, marcantes para a definição da ideologia estética da revista.

Defende a «finalidade estética» acima do mero «obedecer a finalidades morais, sociais,

religiosas», para que, «quanto mais profunda e sincera for» a obra de arte, poder ela

levantar problemas de «ordem moral, social, religiosa»60.

Gaspar Simões, referindo a «variedade» e «singularidade» da arte modernista e da

tendência desta para reagir contra os «formalismos estéticos» e as «sistematizações»,

fala da «crescente procura das fontes directas dos sentimentos, das sensações e das

ideias»: «“Só o que se diz espontâneamente é poesia”, eis uma das afirmações dos

dadaístas». E mais adiante: «(...) – um artista é grande quando é êle próprio, e tanto

maior quanto mais original, mais pura, mais virgem fôr a sua personalidade. O que

exibir mais poderosa, natural e sinceramente estas qualidades será o mais modernista

dos artistas»61. Ao reflectir sobre «Realidade e Humanidade na Arte», Simões defende

A Teoria da “Presença”

178

56 João Gaspar Simões, “Ideias sobre Ibsen”, in Presença, Coimbra, nº11, Março 1928, pp.2-3.

57 Diogo de Macedo, “O que deve ser a Arte”, in Presença, Coimbra, nº3, Abril 1927, p.3.

58 Diogo de Macedo; “Paul Cesanne”, in Presença, Coimbra, nº24, Janeiro 1930, p.9.

59 Diogo de Macedo; “António Carneiro”, in Presença, Coimbra, nº27, Junho-Julho 1930, p.12.

60 José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº9, Fevereiro 1928, pp.2-3.

61 João Gaspar Simões, “Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº14-15, Julho 1928, p.3.

Page 21: presencismo

uma arte individual cuja totalidade e essência se funda numa intensa realidade interior:

«Ora um tal prazer obtém-se pelo exercício da intuição, isto é, pelo acto de aderência

às próprias coisas, imediato, espontâneo, natural, primitivo. E assim, o mundo não é,

para êle, o que de facto é, mas o que lhe parece, ou conforme lhe aparece ao fundo da

consciência embrionária, inorgânica, mal distinta ainda da subconsciência. Por isso é

ingénuo na sua visão das coisas, irreal, primário. Ingénuo, não inumano». O mundo do

artista «é duma realidade mais directa, mais viva, mais evidente, e, no fim de contas,

mais real: da única realidade, concedida ao homem – a sua própria»62.

Num ensaio sobre «o problema Valéry», poeta e teórico francês várias vezes debatido

ao longo da revista e muito apreciado no panorama literário, Gaspar Simões faz uma

crítica à «estética desumanizadora» e «impura»63, com aspirações «a um conhecimento

objectivo perfeito» e, por comparação, um elogio a Stendhal: «Valéry não admite que

uma obra de arte seja um sistema de correspondências directas, e mais ou menos

espontâneas, com uma personalidade humana. (...). O homem não é a obra. A obra é

uma hábil arquitectura de ficções, de convenções, de escamoteações, exactamente

construída para o evitar». Por seu lado, a Stendhal «nada mais seduzia» «do que a sua

alma e a nada tanto aspirava como a nudez, à sinceridade, à comunicação viva e

directa do seu mundo interior»64.

No ensaio «Antonio Botto e o problema da sinceridade», é ainda Gaspar Simões que

faz uma intensa defesa da questão da «sinceridade», como «inconsciente» «acto de

vontade», «misterioso» e «inefável», mas, por isso mesmo, base de todo o «segrêdo da

criação artística» e «eterno valor duma obra de arte»: «Ser “sincero” para um artista é

um mistério. A “sinceridade”, em arte, é, nem mais nem menos, do que a origem da

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62 João Gaspar Simões, “Realidade e Humanidade na Arte (a propósito de ‘la deshumanizacion del arte’ de Ortega y Gasset)”, in Presença, Coimbra, nº16, Novembro 1928, p.3.

63 Adolfo Casais Monteiro chamaria ainda de “impura” à poesia de Valéry: “Eu chamo pura a esta poesia que está para além do bem e do mal, da razão e por vezes da vida; do social e do intelectual (é por isso que um dia chamei impura à poesia de Valéry); a poesia pura é a que apenas se ‘alimenta’ de valores poéticos - ou antes, do valor poético de cada coisa -: (...)”. Adolfo Casais Monteiro, “Mário de Sá-Carneiro”, in Presença, Coimbra, nº21, p.2.

64 João Gaspar Simões, “O problema Valéry”, in Presença, Coimbra, nº19, Fevereiro/Março 1929, p.6.

Page 22: presencismo

própria arte. (...). Todavia, a “sinceridade” que se reclama, em arte, é a “sinceridade”

perigosa e difícil de dizer o que únicamente é “sincero por ignorarmos que o é”! (...): a

“sinceridade” dum artista não se procura, nem se descobre, por um “acto superficial de

vontade”. A “sinceridade” artística impõe-se-nos, procura-nos, insinua-se-nos. É

verdade, também, deixar-se procurar, mas não pelo movimento honesto de

voluntàriamente “querermos ser sinceros”. (...). Não se é “sincero pelo facto de querer

ser”: logo - não se “é artista pelo facto de o querer ser”. (...): a região da personalidade

onde despontam e permanecem os atributos essenciais, psicológicos, dum artista – é

“intranponível” por um “acto de vontade”. Daí tais atributos só chegarem à superfície

desde que “livremente a atinjam”. Isto é: a superfície (a expressão artística) alcança-se

por um simples fenómeno involuntário, natural. (...). Pode acontecer, portanto, um

qualquer homem ser artista sem o saber; como acontece muito “artista” não o ser

embora julgue sê-lo. O que se ignora artista revela-se, porém, como tal nos actos mais

vulgares e involuntários, porque através dêles, nós presenceamos qualquer coisa de

profundo e belo que os transfigura, enquanto nos actos intencionalmente artísticos do

que se imagina artista nada mais se presencia do que um “aparato”, uma “retórica”,

uma caricatura do profundo e do belo». Assim, Gaspar Simões considera António

Botto um «artista», «porque é “sincero”», porque se abandona, confia e entrega

completamente aos seus desejos, «às suas aspirações mais íntimas», revelando o

«êssencial da sua personalidade»65. Num «comentário», respondendo a uma crítica

feita a António Botto, surgida no Diário de Notícias, o mesmo Gaspar Simões defendia

«que no fundo de tôda a verdadeira obra de arte está expressa a sinceridade do

artista!»66. Num ensaio em que debate a questão de uma «poesia pura» afirma que

nesta o poeta passa pela «expressão directa do seu debate interior», numa

«correspondência entre os seus poemas e a atitude de homem interior; sem enfeites e

sem disfarces. E é assim que o grito se faz arte»; «nascido num jacto». Assim, surgem

A Teoria da “Presença”

180

65 João Gaspar Simões, “Antonio Botto e o problema da sinceridade”, in Presença, Coimbra, nº24, Janeiro 1930, pp.2-3.

66 João Gaspar Simões, “Comentário”, in Presença, Coimbra, nº28, Agosto-Outubro 1930, p.14.

Page 23: presencismo

«condensadas as intuições latentes, as aspirações, o sonho, e todas as vibrações que no

arco tenso da sua receptividade se chocam, contradizem e penetram»67.

«A propósito do I Salão dos Independentes» é António de Navarro que faz «a apologia

da sinceridade e, pois, do individualismo» como «condenação formal do espírito

escolástico e do mecanismo uniforme e sectário da escola, ou da Academia»,

pretendendo assim «um anarquismo ordeiro e superior» feito por verdadeiros artistas,

por «profetas de depois-de-amanhã», «verdadeiros paladinos do anarquismo anti-

revolucionário, mas “revulsivo”»68.

José Marinho, no ensaio em que inicia a sua colaboração com a revista, depara-se com

uma «antinomia» no «progresso cultural», de heranças platónicas: «(...) existe um

equívoco em supor a consciência reflexiva ou meditativa divorciada da consciência nas

suas formas mais espontâneas». Esta ideia será importante e terá desenvolvimentos na

revista, mesmo por outros autores. Marinho faz depois a defesa do aforismo (defesa que

continuará em toda a sua colaboração), elogiando a sua imediatez: «Estou pela minha

parte convencido de que um pensador aforístico, (...), por tender a realizar uma

projecção directa da vida interior que marginiza a ideação, é capaz de ser mais

fàcilmente apercebido do que um lógico. (...). Os homens que descobrem, que

inventam, que prevêem o novo não têm possibilidade de explicitar inteiramente a sua

descoberta, a sua invenção, a sua previsão, porque aprenderam a pensar com uma

dialéctica que era explicitação do anterior ao que entenderam ou descobriram».

Defende por isso «a expressão do ideal de Nietzsche que êle sente não poder realizar

senão por momentos. (...), o que o seu pensamento trazia de novo não podia

perfeitamente explicitar-se: eis porque recorre ao aforismo e à negação e é

contradictório»69. Nietzsche, na imediatez do seu pensamento, é um dos nomes mais

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67 João Gaspar Simões, “Mais além da poesia pura”, in Presença, Coimbra, nº28, Agosto-Outubro 1930, p.7.

68 António de Navarro, “A propósito do I salão dos Independentes”, in Presença, Coimbra, nº26, Abril-Maio 1930, pp.2-3.

69 José Marinho, “O equívoco Chestoviano”, in Presença, Coimbra, nº29, Novembro-Dezembro 1930, pp5-7.

Page 24: presencismo

referenciados na Presença ao lado de Bergson, este no elogio do inconsciente e da

intuição.

Num ensaio intitulado «Fernando Pessoa e as vozes da inocência», Gaspar Simões

estabelece a diferença entre o poeta «lírico puro» e o «lírico intelectual»: «O poeta

lírico puro é um criador espontâneo, em que os momentos poéticos da alma (os

poemas) se formam segundo um sistema paralelo ao da cristalografia. Os seus poemas

são cristais, estalactites ou estalagmites de palavras momentâneas, mas únicas,

expressivas em tôda a sua extensão, onde a sua alma se deixou imobilizar quando

aspirava a qualquer inconsciente ideal de beleza. A êsse ideal, perfeitamente

espontâneo, se deve a inocência e a incerteza alada dos seus contos. Partindo, êles

sabem ir direitos a algures: sabem-se levando o quer que seja que os leva. Outro tanto

não sucede com os líricos intelectuais. O lirismo dêsses é um lirismo de estilo, ao

contràrio do daqueles que é psicológico. Isso simplesmente, porque a beleza lhes não é

ideal oculto ou inconscientemente procurado». O «ideal de beleza» de Fernando

Pessoa é, evidentemente, de um «lirismo» inocente, e não «perfeitamente consciente»

ou «prè-concebido»: só pela «expansão de fôrcas espontâneas, desinteressadas» é que a

sua poesia «é poesia»70.

Num outro ensaio, Gaspar Simões estabelece a diferença entre os atributos de prosador

(em que enquadra Cesário Verde) e a de poeta (de Raul Brandão). Considera assim a

primeira de «analítica e concreta», num «contacto permanente com o real»; enquanto

a segunda é essencialmente instintiva, «intuitiva e abstracta». «Daí, o prosador

trabalhar sôbre um corpo de experiências retrospectivas» e «a sua expressão realizar-se

em sucessivos regressos da inteligência à memória»; «analítica» pressupõe a

«memória», e «memória pressupõe realidade apreendida»; assim, «quem analisa recebe

a vida em lugar de a viver». O poeta «repudia a memória», flutuando «num mundo de

alusões e de desenraïzamento da realidade»; «vive como se não possuísse memória, ou

como se esta continuamente se formasse», «e as suas representações são puros

A Teoria da “Presença”

182

70 João Gaspar Simões, “Fernando Pessoa e as vozes da inocência”, in Presença, Coimbra, nº29, Novembro-Dezembro 1930, p.9-10. Sobre este conflito intelectual entre a defesa da razão (António Sérgio) e a do inconsciente (Presença), ver na parte 4, “Intuição e Inconsciente”, pp.45-46.

Page 25: presencismo

reflexos». Referindo-se já especificamente a Raul Brandão, afirma que este, «em vez de

empregar “processos imitativos” e de descer ao conflito, ao drama (...), apenas fica no

extânse, na comunicação directa dos sentimentos, os quais não são propriamente dos

heróis mas do seu criador. (...). Tôda a sua obra é pura “criação”, puro instinto, pura

intuição»71.

No seu famoso conflito com António Sérgio (que implicou vários ensaios mútuos),

Gaspar Simões sublinha, em contra-resposta, a defesa da sinceridade como

característico da sua geração: «(...), mostrar, também, ao sr. António Sérgio que a ideia

de sinceridade em arte, que êle parece querer-me ensinar, é uma das tais ideias que se

encontra formulada a cada canto da minha pequena obra: e sobretudo que é uma das

tais ideias que a minha geração tem ensinado a muito mestre». E, defendendo a sua

posição de uma «arte sincera», opondo-se às definições de António Sérgio: «De resto,

quem dá valor à arte revelação sincera de uma individualidade como, com grande

surpresa e regozijo vejo que o sr. António Sérgio dá, não pode pôr em dúvida que a

expressão sincera de “desmandos sentimentais” – seja verdadeira arte. É tão grande

artista o que os exprima, livremente, como o que os discipline ou submeta à ordem

clássica»72.

Numa crítica literária, capítulo por onde trespassa grande parte da teoria presencista,

José Régio defende a «sinceridade profunda» do artista, essa necessidade de este atingir

«a expressão própria, pessoal, do seu mundo íntimo»: «(...) – o que importa à arte é que

a “verdade humana” do homem-artista seja “verdade artística”». O autor deve

encontrar a sua «expressão natural e justa». Sem isso, «pode não chegar a ser “verdade

artística” a “verdade humana” dum poeta». Só nas profundezas dessa íntima e

espontânea necessidade de «se exprimir», o artista encontra a originalidade pessoal de

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71 João Gaspar Simões, “Raul Brandão, poeta”, in Presença, Coimbra, nº30, Janeiro-Fevereiro 1931, pp.2-4.

72 João Gaspar Simões, “Última contribuição para desfazer um equívoco do sr. António Sérgio”, in Presença, Coimbra, nº35, Março-Maio 1932, p.15.

Page 26: presencismo

ser moderno: «Que o melhor meio de ser moderno é não pensar em sê-lo ou não sê-

lo»73.

E, numa outra crítica, afirma agora Adolfo Casais Monteiro: «(...) a poesia não vai de

fora para dentro, isto é, que não é fabricando arquitecturas convencionais que ao

poema se pode impôr o ritmo, o qual é, fundamentalmente, a ressonância dum

dinamismo interior. (...). O discurso é uma concatenação lógica! A poesia, alguma coisa

de anterior ao discurso, de pré-lógico, e directamente revelador da intimidade do

poeta»74.

Nas suas crónicas musicais iniciadas nos começos dos anos 30, Fernando Lopes-Graça,

adequa-se ao espírito da revista, criticando a «facilidade castiça» de determinados

«chatos representantes do nacionalismo musical» (como Turina) e elogiando o

«nacionalismo singular e espontâneo de todo o artista de génio, que, para fazer obra

nacional, não necessita abdicar da sua individualidade, nem da sua

personalidade» (como Ravel)75.

Numas notas sobre uma carta de Fernando Pessoa, João Gaspar Simões escreve «sôbre

a sinceridade», como «problema fundamental pôsto pela carta de F. Pessoa». Assinala

uma dicotomia que algumas vezes é apontada na revista coimbrã: a diferença entre «o

homem querer ser sincero e sê-lo realmente». «A intenção não basta. Para que alguém atinja a

expressão real da sua personalidade tem de começar, realmente, por um acto de

franqueza». E concluindo: «A poesia é mais verdadeira do que o poeta. Toda a arte é

uma denúncia»76.

A Teoria da “Presença”

184

73 José Régio “Crítica: Sub=solo, poemas de Luiz Guedes, edições presença, Porto, 1932”, in Presença, nº35, Março-Maio 1932, p.18.

74 Adolfo Casais Monteiro, “Crítica: Acrónios, poemas de Luiz Pedro, com prefácio de Fernando Pessoa, Lisboa, 1932”, in Presença, nº35, Março-Maio 1932, pp.18-19.

75 Fernando Lopes-Graça, “Comentário. Música. A orquestra Filarmónica de Madrid em Coimbra”, in Presença, Coimbra, nº37, Fevereiro 1933, p.15.

76 João Gaspar Simões, “Notas à margem de uma carta de Fernando Pessoa”, in Presença, Coimbra, nº48, Julho 1936, p.20.

Page 27: presencismo

Adolfo Casais Monteiro define assim a «realidade poética» como uma «destruição de

símbolos» e «anulação de imagens eloqüentes»: deve-se «ignorar como se pode fazer um

poema; não saber (ou esquecer) que existe no mundo uma técnica a que chamam

poética. A técnica nascerá expontâneamente, como jacto indomável da poesia, (...). O

poeta que se contempla, em vez de contemplar nos outros os tics (...), vê-se demasiado

só para que o subterfúgio das regras que lhe apareça como a maior traição parta com

êle próprio. (...). O poeta ignora. E êste ignorar, é a chave do seu íntimo saber»77.

Defendendo a individualidade pura de cada artista, a Presença necessitou de apelar, nas

profundezas de cada um, a sinceridade íntima da sua acção criadora. A teoria presencista

acabaria nesta procura de uma expressão natural e sem artifícios, a encontrar no

ingenuismo infantil ou primitivista a legitimidade desse mesmo agir sincero.

«O meu espanto é alegria de reflexão e mais ainda de adivinhação.

...ái, mas a minha ignorância é minha única sabedoria!... sou sempre ‘menino’ e deslumbrado».

D. DE MAFAMUDE (Presença, nº6, p.7)

«Procuro despir-me do que aprendi

Procuro esquecer do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a natureza produzi»”

ALBERTO CAEIRO (Presença, nº48, p.14)

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77 Adolfo Casais Monteiro, “A Realidade Poética”, in Presença, Coimbra, nº38, Abril 1933, p.2.

Page 28: presencismo

«Chora, poeta,

Chora como uma criança!»

SAÚL DIAS (Presença, nº52, p.13)

«Há mais imensidade no olhar fresco da criança do que no pressentimento do maior vident»”

NOVALIS (Presença, nº1, série II, p.75)

A P u r e z a I n f a n t i l o u P r i m i t i v a

Ao procurar a pureza sincera da criatividade artística a teoria presencista acaba por se

remeter para a defesa de um espírito ingenuista: a infantilidade ou o primitivismo. Aí

procurou um fundo virginal, franco e não afectado do acto criativo, onde o artista,

liberto das regras ou normas académicas, se encontrasse consigo próprio, no sentido

mais profundo e íntimo da expressão.

A saliência deste aspecto surge na terceira revista, num ensaio de José Régio em defesa

histórica da primeira «geração modernista», quando da referência a Almada Negreiros:

«O seu espírito é engenhoso como o duma criança. Almada é superior quando

reinventa como as crianças, coisas que os outros já banalizaram à força de as terem

inventado à muito, e aperfeiçoado de mais... Assim as já estafadas descobertas das

pessoas grandes tomam nas suas mãos um virginal sabôr de primitivismo: (...) – êsse fundo

infantil (e nem por isso inconsciente) inspira-lhe os seus mais belos poemetos, os seus

desenhos mais puros e as suas frases mais achadas»78. Cerca de onze anos depois, no

último número da primeira série da revista, o mesmo Régio, e novamente referindo-se

a Almada Negreiros, observa ainda «certa forma de ingenuidade e simplicidade» deste.

A Teoria da “Presença”

186

78 José Régio, “Da Geração Modernista”, in Presença, Coimbra, nº3, Abril 1927, p.2.

Page 29: presencismo

Mas sem adiantar então que «não raro a sua ingenuidade nos surge demasiado

consciente, demasiado voluntária», apesar de «verdadeira»79.

João Gaspar Simões, num ensaio sobre escritores espanhóis, faz o seu elogio à «visão

primitiva e expressão directa», «numa época em que o ingénuo e infantil se tornam

fontes onde todas as bocas sequiosas de alguma coisa de novo e profundamente virginal

se desalteram»80. O mesmo autor, num ensaio em que faz a defesa de um artístico

«pensar sincero» e de uma «acção directa», afirma que «a manifestação vital brota

dum espírito de sinceridade que atinge as fronteiras do infantil, do inviolado e é

profundamente individual» e que o homem, «tanto tempo olvidado debaixo dos

escombros de construções meramente colectivas, começa a emergir do intelecto raso,

puro». A verdadeira atitude de modernização brota «da região mais profunda, inocente

e virgem de cada homem e que pela sua natureza espontânea assumem uma fisionomia

a tal ponto viva, infantil que a cada instante estão a revelar o seu poder humaníssimo

de mobilidade e perpetuidade»81. No número seguinte, e procurando uma melhor

explicação do seu «mecanismo de alma individual», o mesmo autor sente a necessidade

de continuar a exposição das suas ideias, para tornar «mais claro» o «conceito de

inocência e virgindade da alma individual». Continuando a defesa de um infantilismo

ou primitivismo na criação artística, Gaspar Simões sente agora, de um modo mais

lúcido, como nestas atitudes se pode estabelecer uma postura que, sem ser anti-

historicista e contra o passado82, se apresente liberta de «preconceitos culturais»: «(...)

entre as modernas correntes infantilistas, tais como o “Dadaísmo” e o “Ultra-realismo”,

se procura supreender a criação estética o mais possível na sua origem, para o que

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79 José Régio, “Crítica: Nome de Guerra, romance de José de Almada Negreiros, Colecção de autores Modernos Portugueses, Edições Europa, Lisboa”, in Presença, Coimbra, nº53-54, Novembro 1938, pp.26-27.

80 João Gaspar Simões, “Contemporâneos Espanhóis. Pio Baroja”, in Presença, Coimbra, nº3, Abril 1927, pp.6-7.

81 João Gaspar Simões, “Individualismo e Universalismo”, in Presença, Coimbra, nº4, Maio 1927, pp.1-2.

82 A teoria presencista sofreu a contradição de recusar qualquer sentido academista da arte, procurando assim a pureza do acto criativo, sem contudo recusar os génios do passado: para tal defendeu uma noção de génio artístico como anti-académico e puro criador para o seu tempo. Contradição que os presencistas tentaram ultrapassar afirmando que todos os grandes criadores do passado foram modernos para o seu tempo

Page 30: presencismo

todos êsses conhecimentos são arredados da mente do artista ou substituidos por outros

mais expontâneos e primitivos. Mas não é a tais correntes, de certa maneira utópicas,

que eu me quis referir, pois a ideia que formulo de reacção infantil e virginal das almas

individuais se filia, principalmente, na visão que do mundo estas almas purificadas de

quais quer preconceitos culturais serão capazes de realizar”. A “alma culta logra

emancipar-se da sua cultura, para reagir directa e virginalmente ante o espectáculo do

mundo (...)». Porém, em analogia com o esquema Freudiano dos sonhos, a camada

cultural do passado adquirida «não é, na verdade, repudiada, senão recalcada». Simões

defende um «rejuvenescimento dos resíduos culturais», «uma infatilização, pois infantil

é a fisionomia de tôdas as criações originais»83. Num ensaio sobre o «modernismo» fará

ainda referência à actualidade do «culto da arte infantil, da arte primitiva, da arte

negra, da arte dos loucos»84. Em outro ensaio de Gaspar Simões, sobre Dostoievski, o

primitivismo justifica a vitalidade e sinceridade do génio do escritor soviético: «E esta

vitalidade, esta potência cósmica, advem-lhe não só do processo novelesco do escritor,

mas também a sua nudez do seu primitivismo. A sinceridade só pode ser absoluta nas

crianças ou nos bárbaros, sêres primários da criação em cuja linfa espiritual ainda se

não reflectiram as faces dissimuladoras das coisas e dos homens»85. Num estudo pouco

posterior sobre Ibsen, refere a «imaginação altamente nórdica» deste, em que «os

elementos infantis se fundem com os elementos filosóficos», captando as «ideias» (mais

intensas) «no estado natural»86.

Estas ideias de Gaspar Simões aparecem numa pequena edição Presença, com o título

Temas, que reúne artigos e conferências de 1928-29. Aí o autor continua estas ideias,

num «esforço para dialectizar o conceito de ingenuidade, inocência, espontaneidade

A Teoria da “Presença”

188

83 João Gaspar Simões, “Individualismo e Cultura”, in Presença, Coimbra, nº5, Junho 1927, p.4. Contudo, Gaspar Simões parece já hesitar perante um total assumir do infantilismo e do primitivismo, numa desconfiança que terá um desenvolvimento crescente ao longo da revista e que se acentuará em meados dos anos 30 para, a partir de então, estes aspectos perderem a sua relevância nas teorias presencistas. «Gaspar Simões, por exemplo, evoluirá no sentido de uma crescente desconfiança em relação à arte, ou poesia, primitiva, ingénua, infantil ou popular». Oscar; Lopes, op. cit., p.756.

84 João Gaspar Simões, “Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº14-15, Julho 1928, p.3

85 João Gaspar Simões, “Depois de Dostoievski”, in Presença, Coimbra, nº6, Julho 1927, p.1.

86 João Gaspar Simões, “Ideias sobre Ibsen”, in Presença, Coimbra, nº11, Março 1928, p.2.

Page 31: presencismo

artística, ou poética, e para assim evitar efectivamente aquela espécie de naturalismo

instintivamente reprodutivo da “realidade interior” (...)». Ai «concebia uma

“inocência” ou “ingenuidade” que dispusesse de toda uma técnica, sem dela se

aperceber»87. Gaspar Simões não deixa aí de exaltar infantilismo e primitivismo

valorizando o ingenuismo e o elemento psicológico no processo artístico e, adiantando

já o surrealismo que o influenciará, fazendo referências à pintura de Miró. O livro de

Gaspar Simões aparecia assim com um sentido de modernidade no panorama

português, com temas que neste estavam ausentes. Casais Simões chamava-lhe então «o

primeiro livro de crítica moderna que entre nós aparecia»88.

Num dos seus «ensaios-manifesto» da revista, Régio refere que «é de hoje um interesse

muito vivo pelas manifestações mais primitivas» tal como o anti-historicismo desta

postura. «E quem o não compreenderá - sabendo que êsse interesse revela sobretudo

um fastio de todo o virtuosismo ou academismo ôco; um desejo de reencontrar as

fontes virgens da criação artística; e uma reacção contra todos os dogmas, peruas e

ensinanças dos Mestres oficiais...? Além de que há infantilidade de génio. Isto é: Obras

em que uma grande inteligência se manifesta intintivamente. E por mais simples e nuas

que pareçam tais Obras - são sempre mais ricas do que parecem». E de seguida:

«Porque tais manifestações artísticas primitivas que interessam o nosso século, se pode

sustentar: primeiro: Que embora influenciando poderosa e salutarmente o nosso

século, elas não são, própriamente, dêle. segundo: que só são dêle na medida em que

revelam uma grande “inteligência”: embora instintiva; ou embora dessas que os de

dentro da cidade chamam bárbaras - porque “repelam os processos usuais de se ser

inteligente”»89.

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87 Óscar Lopes, op. cit., p.754. Curiosamente, José Régio propõe-se a atenuar um pouco esta exaltação do primitivismo de Gaspar Simões, nesse diálogo vivo que na Presença se estabeleceu entre os dois, num artigo da revista que ocupa todo um número: José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº9, 9-Fevereiro-1928.

88 In Águia, nº9, Junho 1929. Cit., José-Augusto; França, Os Anos Vinte em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1992, p.346.

89 José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº9, Fevereiro 1927, p.6. “O Dadaísmo declara desprezar a Arte reduzindo-a à revelação expontânea do homem primitivo”; idem, p.7.

Page 32: presencismo

Em Maio de 1928, inicia-se a colaboração de Afonso Duarte, intelectual de Coimbra

ligado a alguns periódicos da cidade desde o inicio da segunda década do século, e que

muito contribuiria muito para a defesa da arte infantil e popular. Afonso Duarte, foi

intelectual activo em Coimbra desde a segunda década do século, a quem Gaspar

Simões viria a chamar de «pré-modernista», como poeta «que já não cabia no

saudosismo e é como que uma preparação para o modernismo eminente»90, agia com

a geração da Presença, colocando-se ao lado da revista coimbrã no desenvolvimento e

determinação de posições teóricas. José Régio, numa crítica elogiosa à poesia de Afonso

Duarte, falaria da sua «espontaneidade» e «inconsciência criadora, de todos os

verdadeiros Poetas»; ou ainda da sua «simplicidade e grandeza, às vezes quási com

infantilidade»91.

Num ensaio que reconhecia a «lição tradicional de séculos» da «Arte popular

portuguesa», Afonso Duarte salientou que «êstes temas folklóricos, mais do que ao

erudito, interessam ao Artista e ao Educador, sabido que a arte do primitivo é análoga

à expressão artística da criança, e que o regresso a um conhecimento mais perfeito das

formas que durante séculos surgiram espontaneamente no povo, é hoje mandamento

da corrente biológico-estética mundial»92. O mesmo autor continuará esta tendência

teórica, não só nas suas colaborações na Presença como fora dela.

Num número dedicado a João de Deus, Afonso Duarte escreve sobre este num elogio à

sua sensorialidade e «sentido gestual das coisas»: «Como as crianças, como os

primitivos, é um sensorial que prefere a palavra, o gesto, a linguagem dos aromas e das

visualidades, o sentido do movimento e da acção»93.

A Teoria da “Presença”

190

90 João Gaspar Simões, Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa (De 1189 a 1964), Lisboa, Editora Arcádia, 1964, pp.302-303.

91 José Régio, “Crítica: os 7 poemas líricos de Afonso Duarte, edições Presença, Coimbra”, in Presença, Coimbra, nº26, Abril-Maio 1930, pp.10-11.

92 Afonso Duarte, “Para uma nova posição estética. Subsídios de Arte popular portuguesa”, in Presença, nº12, Maio 1928, pp.4-5.

93 Afonso Duarte, “No centenário de João de Deus. Palavras de Afonso Duarte”, in Presença, Coimbra, nº25, Fevereiro-Março 1930, p.3.

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Num estudo publicado na Presença, dedicado ao «desenho infantil» «como documento

psicológico», Afonso Duarte defendeu «as actividades espontâneas das crianças» como

processo pedagógico: «Mal avisados andam, pois, aquêles que, logo ao comêço, exigem

precisam no trabalho, sujeitando as crianças a intempestivas correcções quando o

natural, o educativo, é que eles se exprimam por si, dentro das possibilidades que lhe dá

o seu estádio de desenvolvimento, não se vá (...) provocar um corte na impressão

recebida pela criança ou um desvio da expressão que lhe é natural, fazendo-lhe perder,

se não todo o interesse pelo desenho, pelo menos tôda a frescura e originalidade».

«Ora, não há nada que mais obstrua a compreensão da arte das crianças – e de tôda a

arte – do que êsse convencional formalismo que faz limitar os meios de expressão a

uma imitação tão fiel quanto possível da natureza. A habilidade é a técnica do lugar

comum e de modo algum pode servir a bem compreender a produção gráfica ou

plástica das crianças, deformadoras que elas são, e por excelência, da realidade. Vivem,

portanto, fora do mundo infantil aquêles que têm a criação artística como pura

actividade de imitação, – fiéis que ficaram à velha escola que tinha o desenho como

uma prenda, encarcerando a criança nos moldes do adulto». Culmina com um elogio a

uma lição pedagógica de Garrett, com 100 anos, mas com uma «eclética posição»

nesta «querela do desenho de imitação e o desenho espontâneo e livre»94. Régio

dedica-lhe um comentário de homenagem à sua obra, onde sublinha a sua dedicação

ao estudo da arte infantil e à verdadeira expressão popular (contra o «nacionalismo

anedótico» que se estendia então cheio de equívocos): «O desenho decorativo do povo

e a expressão gráfica das crianças»; eis as preocupações de Afonso Duarte e, «decerto,

as duas fontes originais de grande parte da pintura moderna»95. Os ensaios de Afonso

Duarte (dentro ou fora do meio presencista, mas inserido no meio coimbrão), sobre a

arte infantil e a popular ou tradicional, mas sempre no ensejo de uma naturalidade

criativa, foram determinantes. Revelante é, por isso, o seu ensaio sobre «Os desenhos

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94 Afonso Duarte, “Algumas notas pedagógicas de Afonso Duarte: Do desenho infantil. Da habilidade, do papel quadriculado, de Garret e a nova didática do desenho. Da educação da infância”, in Presença, Coimbra, nº36, Novembro 1932, pp.1-3.

95 José Régio, “Comentário: a obra de Afonso Duarte na extinta escola normal primária de Coimbra (hoje escola do magistério)”, in Presença, Coimbra, nº36, Novembro 1932, pp.12-13.

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animistas de uma criança de 7 anos», lição-conferência pronunciada em 1932 na

Escola do Magistério de Coimbra e que em 1933 se publicava em O Instituto. Elogiando

o desenho como primeira expressão da criança, «verdadeira gramática das crianças»:

«O desenho, na sua expressão espontânea, é a linguagem que verdadeiramente pode

dizer-se, e em tôda a sua extensão, tão infantil como a criança. Livre dos

condicionalismos da linguagem verbal, ali, onde a palavra tantas vezes esconde a

representação que do mundo se faz a criança, é de uma nudez virginal a linguagem

gráfica». Estuda de seguida os desenhos de uma criança, numa metodologia que segue

noções de Piaget, Luquet, Stern, entre outros, segundo termos como egocentrismo,

sincretismo, animismo e artificialismo. Esta termonologia, com noções aplicadas à arte

infantil, e por vezes à primitiva, terá alguma marcação na revista Presença96. Num seu

último ensaio publicado na Presença (colaborará ainda com poesia), continua a defender

a espontaneidade da cultura colectiva e a necessidade de não deixar escapar essa

riqueza lírica sobre «o ritmo dinamogenizante do progresso mecânico em desiquilibrio

com o espiritual: O folclorista já raro poderá recolher, da bôca do povo, reminiscências

dessa cultura colectiva que fêz a riqueza viva dos nossos cancioneiros e romanceiros.

(...), o certo, é que essa riqueza espiritual pertence aos domínios do espontâneo, do

primitivo, do não dissociado pela cultura»97.

Nas suas crónicas sobre «Os vencedores de Paris», também Diogo de Macedo não

deixa reconhecer a importância de uma linha primitivista na manifestações recentes do

centro artístico referencial de Paris. Na que dedicou a Kisling, a quem chamou «grande

creança», escreve que «Picasso, Matisse e Derain procuravam os feitiços do negróides

para apregoarem a nova estética – nova por ser primitiva (...)», e refere as «esculturas

canibais» de Mondigliani98. No que dedica a Picasso faz referência ao Cubismo como

algo que, após ter parecido «uma fórmula», se baseou, além da «matemática», «no

arcaico e na composição sensível dos primitivos», da «sensação inédita da arte

A Teoria da “Presença”

192

96 Afonso Duarte, “Os desenhos animistas de uma criança de 7 anos”, in O Instituto, Coimbra, Imprensa da Universidade, vol.86, nº1, 1933.

97 Afonso Duarte, “Santos, Heróis e Poetas”, in Presença, Coimbra, nº41-42, Maio 1934, p.5.

98 Diogo de Macedo, “Os Vencedores de Paris”, in Presença, Coimbra, nº12, Maio 1928, p.6.

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negra»99. Diogo de Macedo apresentava na Presença, e nas imagens de uma referencial

pintura parisiense, as certezas das influências primitivistas na arte moderna.

Numa «breve história da pintura moderna», é José Régio que, retomando a teorização

primitivista, a aplica à pintura. Contudo, uma hesitação surge para marcar uma

contradição que, no futuro desenvolvimento teórico da revista, vai atenuar a defesa do

infantilismo e do primitivismo (ou pelo menos reconsiderá-la num outro contexto

teórico): como reconciliar a pureza primitiva ou infantil, com todo o sentido anti-

historicista que esta transporta, com a consagração (e respectiva herança) de certos

grandes mestres do passado que a revista não deixa nunca de admirar e elogiar? «Eis,

em suma, o que distingue a pintura do nosso tempo: Re-descobrindo as verdades

imortais da sua Arte, regressando, pelo próprio excesso de civilização atingida, às

atitudes primitivas, os Artistas modernos também não desprezam a verdadeira

civilização: a lição dos séculos e dos mestres, fatalmente presente no seu sangue».

Numa reestruturação teórica posterior, onde o primitivismo e o infantilismo perderão

parte da sua importância, os principais intervenientes da revista tentarão ultrapassar

esta contradição: de momento pretendia-se apenas criticar o academismo e salientar «a

derrocada da técnica comum-de-todos», na «afirmação de que cada Artista tem a sua

técnica própria», ou mesmo, «que cada momento do Artista tem a sua expressão

própria»100, sublinhando o individualismo como principal eixo da teorização presencista.

Num ensaio de elogio a Mário Saa, o mesmo Régio defende o pensamento do antigo

colaborador de Orpheu pela sua postura anti-sistemática e primitivista (ou oferecendo

«contactos inesperados com a barbárie» em épocas «ultra-civilizadas»): «À

irremediável decadência do homem que se hiper-civilizou (civilização, num sentido

vulgar, quere dizer: adaptação, hábito, despersonalização, continência,

aproveitamento101) opõe Mário Saa o génio primitivo: Glória ao que “ingénuamente

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193

99 Diogo de Macedo, “Os Vencedores de Paris”, in Presença, Coimbra, nº14-15, Julho 1928, p.12-13.

100 José Régio, “Breve história da pintura moderna”, in Presença, Coimbra, nº17, Dezembro 1928, p.11.

101 Note-se nesta hesitação de crítica à “civilização” – na necessidade de a justificar como um tipo ou género de “civilização”: não aquela que fez os grandes “génios” do passado artístico, estes “personalizados”, mas as que estabeleceu as escolas e os academismos – uma relação com outra atrás referida. Ver citação relativa à nota 81.

Page 36: presencismo

interroga e responde - e cuja interrogação já é uma resposta, e cuja resposta ainda é

uma interrogação...” Êsse é o Pensador. Para êsse, pensar é apenas viver e reviver

superiormente: É suspeitar verdades, que nada têm com os sistemas tão

engenhosamente urdidos pelos homens. (...). Senhor duma “dura experiência” da vida,

mas também duma infantilidade incorrigível; civilizado decadente herdeiro de gerações

e gerações, mas bárbaro brutal rico de tôdas as fôrças primitivas – (...)102». Em «ainda

uma interpretação do Modernismo», Régio avança com uma teorização que

desenvolve a já referida hesitação perante uma via anti-historicista do Modernismo:

«Chamo aqui Modernismo à tendência a não aceitar como completa qualquer

afirmação do passado remoto ou recente, nem como definitiva qualquer sua negação,

nem como perfeita qualquer afirmação da hora presente, nem como dogmática

qualquer negação actual - e a esperar sempre mais do futuro, e a dispor sempre duma

atitude de expectativa simpatizante e anti-sectária... (...). Para se avançar não é preciso

negar o caminho andado. E mesmo... não é preciso senão alargar e multiplicar o

caminho andado. (...) – a tendência moderna é para afirmar sem ter de negar. Em

suma: é para não restringir. O modernismo é uma questão de sensibilidade e

pensamento (isto é: de personalidade) – não uma deliberada escolha que seria astúcia,

cabotinismo, ou simples intelectualismo. E propriamente, qualquer Mestre de hoje só é

modernista na medida em que, sem ter de negar seja qual fôr das descobertas “vitais”

do passado, se encaminha para novas descobertas e antevê novos mundos... que podem

não ser mais do que a imprevista sondagem dos mundos já conhecidos. (...). Pois só

uma coisa o modernismo nega: É que seja preciso restringir para avançar»103.

Hesitante, Régio já não falará praticamente mais de infantilismo ou de primitivismo

para a sua justificação da arte ou da modernidade.

Gaspar Simões, num ensaio sobre «as vozes da inocência» em Fernando Pessoa fornece

uma curiosa justificação Freudiana para a legitimidade do infantilismo na expressão

A Teoria da “Presença”

194

102 José Régio, “A explicação do Homem de Mário Saa”, in Presença, Coimbra, nº19, Fevereiro/Março 1929, pp.1-3.

103 José Régio, “Ainda uma interpretação de Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº23, Dezembro 1929, pp.1-2.

Page 37: presencismo

artística: «Freud para explicar a essência da arte fala de sublimação. Certas tendências

sexuais infantis inibidas evadir-se hiam por uma esfera diferente, isto é, não sexual,

assumindo, dessa maneira, aspectos puramente ideais (não práticos). O complexo de

Oedipo e tôda a misteriosa vida sexual infantil tem, pois, uma influência decisiva sôbre a

futura vida da criança. O chamado “fundo sentimental” do artista é quási sempre uma

sobrevivência dessa remota agitação sexual dos primeiros tempos de vida. “A psicologia

do criador, escreve Jung, é na realidade psicologia feminina, o que prova nascer a obra

criadora de inconscientes profundidades: em verdade, da região maternal!” Em

conclusão: às crises sexuais infantis estão incontestàvelmente ligadas as linhas

psicológicas da obra de arte»104. No ensaio «Raul Brandão, poeta», em que defende a

supremacia estética da poesia relativamente à prosa, Gaspar Simões afirmava que «o

que há de mais abstracto e de universal na poesia relaciona-se com uma espécie de

visão primária do mundo»105.

Nos seus habituais aforismos, com que gostava de se expressar à maneira de Nietszche,

José Marinho expunha uma teoria de tábua rasa com alguma vontade de aproximação

ao filósofo alemão: «Só importam no plano superior da vida do espírito aqueles

homens que vivendo recomeçam a vida. Recomeçar a vida, isto é, refazer a própria

vida desde o ínicio, vivendo-a desde as raízes, desde as origens. (...). Remontar às

origens para viver a vida desde as origens, afastando o que não é vivo, mas sobreposto e

artificioso, procurar dar expressão a essa verdadeira vida e agir nela e de acôrdo com as

suas possibilidades profundas, tal é o ideal do nosso tempo». «Só é impossível persistir

ao que não é capaz de renovar-se»106.

Eduardo Lôbo, num ensaio filosófico em que expõe o seu «infinitismo», valoriza a

inteligência instantânea e instintiva, recusando as pressões do passado e da memória:

«O presente é a ruína do passado, mas a memória é a grilheta da força do que nos

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195

104 João Gaspar Simões, “Fernando Pessoa e as vozes da inocência”, in Presença, Coimbra, nº29, Novembro-Dezembro 1930, p.10.

105 João Gaspar Simões, “Raul Brandão, poeta”, in Presença, Coimbra, nº30, Janeiro-Fevereiro 1931, p.2.

106 José Marinho, “Reflexões e Aforismos”, in Presença, Coimbra, nº31-32, Março-Junho 1931, p.4.

Page 38: presencismo

prende aos ombros do que fomos. Se queremos viver livremente o presente é preciso,

primeiro que tudo, esquecer; destruir as cadeias que nos prendem; apagar as imagens

que um momento se tivessem gravado em nós, para que as do momento seguinte não

se sobreponham a elas, não se combinem e deformem; desfazer todos os vestígios de

impressões vividas, como se a nossa vida começasse em cada momento (...); extinguir

tôdas as representações passadas, para se obter a representação pura e plena de ideias

novas; (...). Para se possuir a lucidez do génio é indispensável limpar a inteligência de

tôdas as impurezas que a maculam; esvaziar a consciência de todos os pensamentos

que a preenchem, não atingir o vazio absoluto como finalidade, mas para preparar

uma concepção mais perfeita do Infinito que a encha; (...). Os sábios são sempre

homens velhos, mas a sabedoria existe na mocidade. O esquecimento transforma o

presente numa realidade viva, indestrutível, e a vida numa mocidade eternamente

florida». No desenvolvimento destas ideias o autor defende não só a legitimidade da

«contradição», como o próprio «não-saber»: «Ora verdade existe na originalidade. Só

a ignorância realiza as condições indispensáveis a uma nítida e perfeita assimilação da

Verdade, libertando-nos de todos preconceitos. (...); e para ser sempre original é preciso

ser contraditório e estar em pleno desacordo consigo. (...). A ignorância é assim a

plenitude do saber: é o saber em si mesmo, antes de ser possuído e imitado, para não

dizer destruído. É a potencialidade de conhecer identificada com o próprio ser, não lhe

fazendo perder por isso o seu carácter absoluto. (...). Mas possuir sabedoria é matar a

Sabedoria. A Verdade é a Sabedoria plena e portanto só se atinge pela ignorância

absoluta. As crianças falam a verdade porque ignoram. É preciso saber ignorar; e por

isso o saber é anterior a si próprio»107.

Casais Monteiro, reflectindo sobre a «Realidade Poética» afirmava também o ignorar

do poeta: «O poeta ignora. E este ignorar, é a chave do seu saber». O poeta, ao criar

está «isento de qualquer reflexão sobre a sua criação», daí os termos usados para

A Teoria da “Presença”

196

107 Eduardo Lobo, “Infinitismo”, in Presença, Coimbra, nº34, Novembro-Fevereiro 1932, pp.10-13.

Page 39: presencismo

definir a criação: «Autonomia, pureza originário do canto, infantilidade, primitivismo,

ingenuidade do poeta...»108.

Num ensaio sobre a «deformação» como «génese da arte», Gaspar Simões justifica a

honestidade criativa do desenho infantil: «Se disserem a uma criança de seis anos ou

sete anos que desenhe uma casa, a criança fará todos os esforços para reproduzir a

imagem que no seu espírito conserva de uma casa. (...). Se não é exacto dizer-se que o

desenho de uma criança de seis anos é realista, visto a criança ainda não ver a

realidade, a verdade é ela esforçar-se por reproduzir com fidelidade aquilo que vê. (...).

O seu escrúpulo levou-a, por exemplo, a desenhar a chaminé perpendicularmente ao

telhado, o que denuncia ela não confiar senão nos traços que contornam as paredes da

casa. (...). Ora, tal escrúpulo é denúncia de que a criança sabe que um desenho não é a

realidade. A criança é mais honesta do que Velazquez»109.

A partir de meados da década de trinta a defesa e exemplo da arte primitiva ou infantil

começa a ser desacentuada e hesitante. Já não justificava e legitimava a expressão

artística. No último número da revista, Gaspar Simões ainda falava da imaginação

«rica» e «não falsa» da criança numa crítica a uma história para crianças e sobre

crianças110. Mas é um discurso que já não entrava na discussão séria da arte, que já não

servia para esta descobrir as suas raízes profundas. O debate presencista desviou-se para

acentuar as questões do inconsciente (e da razão), para reflectir sobra a importância de

Jung, Freud ou, sobretudo, Bergson. Neste último os teóricos da Presença encontraram a

força da intuição como reencontro com as profundezas de uma criação artística

sincera, espontânea e verdadeiramente individual.

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197

108 Adolfo Casais Monteiro, “A Realidade Poética”, in Presença, Coimbra, nº38, Abril 1933, p.2.

109 João Gaspar Simões, “deformação. génese de tôda a arte. Conferência lida na abertura da exposição Júlio, organizada por esta revista no salão da Sociedade de Belas Artes de Lisboa em Março de 1935”, in Presença, Coimbra, nº45, Junho 1935, p.11.

110 João Gaspar Simões, “Crítica: Iratam e Iracêna, os meninos mais malcriados do mundo, por Olavo d’Eça Leal, Lisboa 1939”, in Presença, Coimbra, nº2, série II, Fevereiro 1940, p.116.

Page 40: presencismo

“En art, il n’y a pas que deux choses essentielles: l’instinct et le don”

VLAMINCK (Presença, nº1, p.3)

“As vidas humanas decorrem na mesma íntima inconsciência que as dos animais. (...). E, na verdade,

tudo vem da sem-razão”.

BERNARDO SOARES (Presença, nº34, p.8)

“Mas quem de tôda a multidão

Revela o oculto pensamento,

São as crianças que não

Pensam em nada - e vão

Atrás do regimento”.

CARLOS QUEIROZ (Presença, nº35, p.8)

I n t u i ç ã o e I n c o n s c i e n t e

Uma das principais características da teoria presencista, e que não só a demarcou como a

levou a determinadas e importantes disputas intelectuais e críticas, é a sua defesa do

inconsciente no pensamento artístico e cultura, um poço profundo de riquezas

humanas que subverte os domínios racionais e lógicos que só um imediato, e não

controlado pela razão, acto intuitivo pode revelar com pureza. A sinceridade

verdadeira e pura atinge-se por um processo intuitivo que remete às profundezas do

inconsciente. Régio diferenciava assim a obra de génio da de talento acerca da «Arte

clássica»: «Êste equilibrio é obra de génio quando o Artista o consegue

A Teoria da “Presença”

198

Page 41: presencismo

espontâneamente. É obra de talento, e sempre então muito menos completo, quando o

acha pelo estudo, pela insistência, pela evolução consciente e provocada»111.

Gaspar Simões salienta os aspectos que «colaboraram decisivamente nessa feição

individualista que a literatura contemporânea tão maravilhosamente ostenta»: «A

descoberta do inconsciente e a sua colaboração nas mais rudimentares manifestações

psíquicas; o espírito de análise e a exploração dos recônditos interstícios da alma

humana; a dissociação das sensações e a sua combinação em gamas subtilíssimas; a

revelação do mundo extraordinário das nervosas e a criação inconsequente biológica,

das figuras novelísticas (...)»112 . Ao reflectir sobre o «estilo», enquadra este como

expressão originária emergente das profundidades de quem escreve. E refere Bergson,

um dos filósofos mais citados pelos presencistas ao lado de Nietzsche, para legitimar essa

profundidade recôndita à consciência: «A nossa personalidade, o nosso “eu profundo”

de que fala Bergson, existe desde que somos; mas existe soterrado debaixo de tudo

quanto não somos»113. Num ensaio sobre Ibsen, apresenta este como um «percursor de

Freud»: «Para, qualquer dêstes grandes escritores já o subconsciente era um aceno

incomensuravel: bem mais incomensuravel do que a consciência»114. Noutro ensaio

sobre a substância do «modernismo», Gaspar Simões volta a referir a conveniência de

Freud acrescentando ainda a de Bergson: «Daqui o sucesso de Bergson com os “seus

dados imediatos da consciência”, e a actualidade de Freud com o seu processo de

“Psicoanálise”, em que a livre emissão de ideias é aceite como a mais profunda,

essêncial e clara revelação do carácter; em que os sonhos, os êrros, os “lapsus-linguae”

adquirem um valor inestimável para o conhecimento da personalidade humana; e em

que o sub-consciente aparece terrivelmente vasto, inexplorado, e tão rico de

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199

111 José Régio, “Classicismo e Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº2, 28 Março 1927, p.1.

112 João Gaspar Simões, “Individualidade e Universalismo”, in Presença, Coimbra, nº4, 8 Maio 1927, p.1.

113 João Gaspar Simões, “Do Estilo”, in Presença, Coimbra, nº8, 15 Dezembro 1927, p.1.

114 João Gaspar Simões, “Ideias sobre Ibsen”, in Presença, Coimbra, nº11, 31 Março 1928, p.2.

Page 42: presencismo

possibilidades que, com êle, e à sombra das teorias freudianas, se esboça já uma

renovação da crítica e da educação infantil»115.

José Régio chama ao «instinto, o dom que todos os homens possuem (mas que só os

artistas conseguem exteriorizar poderosamente) de re-criar o mundo atravez da sua

própria individualidade». E refere uma «inteligência instintiva»; uma inteligência «no

sentido Bergsonista»116. Ao reflectir sobre a «pintura moderna», fala desta como

expressão de uma «visão íntima» do artista, de uma «pessoal visão interior»: «A sua

pintura um meio de tornar “vísivel” seu mundo psíquico»; porque o «homem nada

pode “ver” senão através de si»117.

A arte, para a teoria presencista, passa assim fora e para além das capacidades

inteligíveis, impotentes para a decifrar. Para Casais Monteiro a «poesia moderna está

fora do alcance da crítica racional, da explicação por processos de inteligência»118. Para

João Gaspar Simões a «poesia» «ultrapassa os limites do racional. Impossível ser

verdadeiramente poeta na inteira consciência das faculdades intelectuais. O que não

deve parecer excessivo, pois o valor de qualquer manifestação poética está na

impossibilidade real de ser repetida ou imitada conscientemente. (...): em essência,

poesia - é o indefínivel! E indefínivel, neste caso, é tudo o que é de exclusiva criação

individual: tudo o que se precipita do mais profundo do homem independentemente da

razão, da vontade ou da intenção”». Os «poetas» «não pesam, nem medem – mas

ùnicamente aceitam a fôrça das suas intuições. (...). Daí estar reservada ao poeta a

faculdade de nos chamar à nossa realidade mais íntima e essencial»119.

É um ensaio de Gaspar Simões sobre Fernando Pessoa, expondo a sua noção de

«transposição» alusiva à filosofia Bergosiana, que melhor exprime a importância dada

A Teoria da “Presença”

200

115 João Gaspar Simões, “Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº14-15, 23 Julho 1928, p.3.

116 José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº9, 9 Fevereiro 1928, pp.1,7.

117 José Régio, “Breve história da pintura moderna”, in Presença, Coimbra, nº17, Dezembro 1928, pp.4-5.

118 Adolfo Casais Monteiro, “Mário de Sá-Carneiro”, in Presença, Coimbra, nº21, Junho-Agosto 1929, p.2.

119 João Gaspar Simões, “João de Deus ou o sentimento de altitude”, in Presença, Coimbra, nº25, Fevereiro-Março 1930, pp.6-7.

Page 43: presencismo

pela Presença à arte como meio de comunicar com as profundezas humanas do

inconsciente. Segundo ele, pela transposição, «o homem retoma a tensão original da sua

vida interior». E referenciando Bergson: «O artista é, assim, para Bergson, não sei

porque circunstância, o homem para quem o véu entre a natureza e nós é

transparente.Bergson fala ainda num desinteresse, num “détachement naturel, inné à la

structure du sens ou de la conscience”, que faz com que o artista, vença a vida de

convenção que obscurece a sua verdadeira natureza psicológica. (...). Segundo o seu

critério da transposição, essa conquista é feita pelo regresso em tensão sôbre a nossa vida

essencial. Isto, já em parte desenvolvido (...), quere dizer que o artista ou o poeta é pela

realização do estilo, e pelas suas possibilidades de estilização, que consegue retomar a

força original das suas emoções, sensações, ideias, etc., sem, contudo, dar ao estilo a

noção falsa de embelezamento, artificialização, ou prestígio formal. (...). A linguagem

quotidiana é a linguagem da convenção; - o estilo a própria linguagem re-conquistada

à alma». Refere ainda Freud e Jung, para provar «nascer a obra criadora de

inconscientes profundidades». A poesia permite assim (no caso, a de Fernando Pessoa)

«re-encontrar a tensão original dessas vozes que monòtonamente lhe falam do fundo

da existência». Ela é «libertadora de fôrças subjectivas», um «contacto com a

inquietante persistência dessas vozes obscuras». «A beleza é a realização do subjectivo

no objectivo. Como diz Hegel, isto é, a presença viva e vísivel dum espírito na

matéria»120. Para Gaspar Simões a percepção do poeta «é uma contínua elucidação do

seu mundo interior». O poeta precisa é de «crêr numa única coisa indiscutível: a visão

interior, a intuição, a imaginação»121.

O aforismo é uma das expressões sublinhadas pelos presencistas como meio intuitivo de

atingir verdades profundas, para além das limitações do racionalismo. José Marinho,

um dos principais defensores do aforismo nas páginas da Presença, numa evidente

relação com a filosofia de Nietzsche, salienta a importância do «pensamento aforístico»,

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201

120 João Gaspar Simões, “Fernando Pessoa e as vozes da inocência”, in Presença, Coimbra, nº29, Novembro-Dezembro 1930, pp.9-11.

121 João Gaspar Simões, “Raul Brandão, poeta”, in Presença, Coimbra, nº30, Janeiro-Fevereiro 1931, p.2.

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escrevendo que este pode «ser capaz de apreender o que não apreende o lógico»122.

«Aqueles que buscam pensando não sei que ideal lógico que é o ideal da linha recta,

êsses não chegarão a nada de fecundo. Mas aqueles que movem o seu espírito numa

espiral imensa que ora se alarga tocando tudo, ora se fecha realizando uma unidade do

que tocou, êsses sabem poder chegar a atingir o que os outros inconsciente e

incertamente buscam»123. Numa dessas suas defesas do aforismo, «que devia ser

objecto de atitude compreensiva», José Marinho entende que a «forma aforística»

«procede de uma incapacidade não já acidental do homem para traduzir certas

intuições instantâneas, certas obscuras experiências, que pela sua mesma superioridade

são remotas, fugazes e em vão poderíamos desenvolver discursivamente. (...) o aforismo,

(...), revelando o ser do homem no qual a vigília que é o pensamento, é tecida ainda de

sonho e a continuidade é ainda prenhe de descontinuidade, revela também, na sua

vigília entrecortada, na sua descontinuïdade resignada, o ser que é pura vigília,

continuïdade perfeita» O «aforismo não significa ausência de interior discursividade.

Implica, sim, uma discursividade realizada em planos diversos de intelecção». Não

admira que tanto os gregos, no próprio nascimento do pensamento filosófico, tal como

Nietzsche, percursor e toda uma modernidade de ruptura e vanguarda como

pensamento, tivessem que «recorrer ao aforismo»124.

Para Duarte Lôbo «o absoluto só pode ser objecto de intuição e nunca de

representação». Salientava assim uma «pesquisa da verdade» com base na intuição e

por meio de um rasgo imediato que lembra o aforismo defendido por José Marinho: «A

posse da verdade será uma plenitude, um êxtase sublime, uma intuição infinita, ou

nunca existirá. Ela só pode existir num lampejo fugaz que mal brilha um momento

logo se apaga nas cinzas que produziu. A plenitude não pode ter duração. A sua posse

prolongada consumiria a consciência nas labaredas candentes do seu fôgo. A análise

não passa dum caminho que conduz ao nada - o ideal da dissociação. A síntese é uma

A Teoria da “Presença”

202

122 José Marinho, “O equívoco Chestoviano”, in Presença, Coimbra, nº29, Novembro-Dezembro 1930, p.7.

123 José Marinho, “Reflexões e Aforismos”, in Presença, Coimbra, nº31-32, Março-Junho 1931, p.2.

124 José Marinho, “Aforismo e Discurso”, in Presença, Coimbra, nº43, Dezembro 1934, pp.4-6.

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quimera representativa. Só a intuição pode ser um processo seguro, uma via luminosa

que rasgue os horizontes do infinito, mas com a condição essencial de ser absoluta».

Explica depois o «infinitismo», processo filosófico de teor Nietzschiano para chegar ao

infinito que, como tal, tem que estar liberto das «minísculas proporções da evidência»:

«O infinitismo só pode, pois, assentar no absurdo e no paradoxo. O absurdo mais

extravagante, será o enunciado da verdade mais sublime. A sabedoria é

necessàriamente contraditória, porque abrange tôdas as teses e antínteses. O homem

sábio resume em si tôdas as opiniões, por mais antagónicas que pareçam. (...). Só as

vibrações intensas do delírio, a exaltação absorvente do Cáos, podem exprimir o que

fica para além da inteligência humana. (...). A sabedoria tem de ser intuitiva e a

imaginação criadora é a única faculdade do nosso espírito que nos permite uma

intuição pura. (...). Duvidar de tudo é possuir sabedoria, porque é atribuir a tôdas as

possibilidades, valores de probabilidade diferente de zero. (...). A certeza é portanto a

negação da verdade». A loucura torna-se mesmo «transcendência» e «gesto

incompreensível» pelo «abismante da sua sabedoria»: «A loucura é a vertigem da nossa

vida, é o delírio da nossa febre, e por isso mesmo é tudo o que há de mais profundo,

tudo o que há de mais íntimo»125.

O grande momento de defesa do psicologismo subjectivista de influências

Bergsonianas, pela Presença, acontece quando a revista se defende de críticas de António

Sérgio que a ataca exactamente do mesmo. Tal acontece com a individualidade de

Gaspar Simões num seu famoso despique intelectual com António Sérgio: Aí defende a

(sua) posição presencista, radicalmente confrontada com o racionalismo de António

Sérgio. Debatem-se duas filosofias, mas também duas formas de olhar a arte. Como

debate filosófico é António Sérgio que melhor se expõe, como debate sobre a arte já a

balança pende para Gaspar Simões. Defende-se este nas páginas da Presença: «Quanto a

mim, porque somos uma fôrça da natureza, quanto a mim, porque nem sempre

analisamos, deduzimos ou induzimos, - mas vivemos, somos arrastados por fôrças que

levam consigo a análise, a dedução, a indução, etc. (...) rótulos que o homem inventou

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203

125 Eduardo Lôbo, “Infinitismo”, in Presença, Coimbra, nª34, Novembro-Fevereiro 1932, pp.10-13.

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para caracterizar o que ele supõe o movimento do seu intelecto. Quanto ao intelecto

em si - está-se nas tintas para os palavrões: caminha pelos seus próprios passos. (...). Se

todos os mistérios se explicassem, se o desconhecido fosse uma palavra incompreensível

para o homem, a arte, tal como nós hoje a concebemos e sentimos, não poderia existir.

(...). Digo que a arte é um regresso ao “eu profundo”, mas insisto no valor da poesia

como revelação». Para finalizar a sua resposta a António Sérgio, Gaspar Simões

defende-se sob o escudo do nome de Bergson: «Esquece-se sobretudo, que grande parte

da poesia, da arte e da crítica modernas está sob o signo de Bergson. (...): chame-lhe

também charlatão»126.

Esta polémica aberta alarga-se a outros colaboradores da Presença, tornando-se

António Sérgio a simbolizar o outro lado de uma postura teórica e filosófica a que a

revista se opõe. Casais Monteiro, numa crítica literária, coloca-se nessa posição

presencista de defesa da intuição contra o racionalismo de António Sérgio: «Mas parte

daqui António Sérgio para uma oposição que se me afigura demasiado simplificadora,

e consiste em filiar tais vícios na excessiva importância dada à sensibilidade, e

contrapor-lhe, como antídoto, o culto da razão. Duma maneira geral, pensa António

Sérgio que há demasiada sensibilidade, e demasiado poucas idéas, na nossa literatura.

Assim se pode ler, no prefácio ao I volume do Ensaios ...um novo sargaço da onda romântica -

o Bergsonismo - que com as suas calúnias à Inteligência e seus deritambos ao sentimento tornou mais

caóticos os já caóticos, mais palavreiros os já estéricos, mais intuitivos os já pueris, mais indispostas as

almas liristas a guiar com lógica uma parelha de idéas pelas congostas lôbregas do seu bestunto. Ora

quer-me parecer que esta transcrição revela suficientemente a confusão estabelecida

por António Sérgio entre sentimento e palavreirismo, entre intuição e falta de lógica, etc.

vê portanto na falta de lógica, de idéas, de disciplina racional, a causa das debilidades

da nossa literatura, ao mesmo tempo que nela verbera a qualidade negativa do excesso

de sensibilidade. Mas tanto sofre a nossa literatura de escassez de sentimento como de

escassez de razão. (...): tanta falta de razão há entre nós, como de intuição. E já seria

tempo que António Sérgio e os seus discípulos, usando os seus princípios racionalistas,

A Teoria da “Presença”

204

126 João Gaspar Simões, “Última contribuição para desfazer um equívoco do Sr. António Sérgio”, in Presença, Coimbra, nº35, Março-Maio 1932, pp.14-17, 20. Ver nota 69.

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aprendessem a distinguir intuição e caotismo, intuição e puerilidade, lirismo e lógica,

etc., etc... (...) abrissem os olhos da sua razão, se analisassem, e viessem enfim dizer-nos

claramente quais são os perigos da intuição, e onde estão manifestados. E então talvez

nos pudessemos entender, já que se averiguaria que a intuição de que falam é bem

diferente do que qualquer pensador claro e lógico (como um Bergson, que tanta espécie

lhes faz, talvez porque não percebam como um pobre intuitivo pode pensar com tanta

penetração, e exprimir-se com tanta lógica e clareza) entende por intuição»127.

Nos últimos números da Presença a defesa do irracional e do subjectivo chega a evitar

o confronto e oposição com a razão para procurar alguma reconciliação. Apoiando -se

no pensamento de Leonardo Coimbra, filósofo que se encontrava por detrás da

formação intelectual dos principais colaboradores da revista. José Marinho dá o mote:

«A razão é fraterna com o irracional, no mesmo seio do irracional se ilumina e em

constante relação com êle se dinamiza e supera. (...), a Razão e o Irracional, se dão as

mãos ocultamente e como fraternos se abraçam e implicam na afinidade funda, que de

fora se não Vê». E citando Leonardo Coimbra: «Há uma liberdade, excedendo as suas

criações; (...); um Irracional criando tôdas as razões, sem nelas se esgotar, nem sequer

diminuir» (in A Alegria, a Dor e a Graça, p.239)128. Num ensaio sobre «Razão e

Irracionalismo», José Marinho defenderia ainda que a razão nunca é absoluta, mas é

sempre «razão correlativa com o irracional». «O irracional é o vasto e obscuro seio no

qual a razão procede, mas ele é também presente à razão nela mesma. (...). Assim,

também, razão e irracional em nós se acompanham. Eles não estão só nas

lisongeiramente luminosas, mas nas obscuras representações do mundo. (...). Pretender

que a razão existisse sem o irracional, ou o irracional sem a razão, é como pretender

que o vivente existisse sem vida ou a vida sem o vivente. (...). Mas o irracional é sempre

presente à razão nela mesma (...)». Ambas são importantes e complementam-se: «É o

espírito do homem, ao mesmo tempo, apreensão e compreensão. Sem a razão, a

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127 Adolfo Casais Monteiro, “Crítica: Estudos Críticos, por Castelo Branco Chaves, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932”, in Presença, Coimbra, nº40, Dezembro 1933, p.12.

128 Cit. José Marinho, “O Homem, suas possiblidades e valores no pensamento de Leonardo Coimbra”, in Presença, Coimbra, nº50, Dezembro 1937, pp.3-4.

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intuição seria constantemente retomada e perdida, a representação constantemente

evanescente. Se a razão, pelo que a liga à intuição da verdade e dos valores aponta

incessantemente a unidade suprema, pela sua ligação à vida diversa e vária, ela

reconhece as possibilidades de diversos caminhos. Há sempre novas maneiras de pensar

ou de sentir, de agir ou de adorar não supostas. (...). A compreensão só se torna

subsistente quando lhe assiste a apreensão da verdade absoluta. Mas também a

apreensão da intuïção fulgurante da verdade só se torna efectiva depois de a

compreensão laboriosa lhe trazer o seu: consinto»129.

Aleixo Ribeiro fala também de Bergson numa reflexão sobre arte: «Esta atmosfera é

sobretudo composta pelos elementos emoção e intuição, segundo os quais o Homem

principalmente vive e sente a sua humanidade. Tal compreensão precisou-a a nova

escola construtiva do irracionalismo revelada por Bergson, e segundo que,

principalmente, sendo o pensamento racional função de apenas uma parte orgânica da

vida, a não poderia apreender no seu todo complexo (a vida, a constante

transformação, o constante vir-a-ser, enquanto a inteligência apenas descrimina o que

se deu), e então substitui-se o raciocínio que resolve o que vê claro, pela intuição, outro

raciocínio, que se deixa resolver mergulhando lá na vida onde o pensamento se perde,

de cada vez impressionando-se mais». Esta doutrina, «ampliando o campo da crítica» e

o «domínio do conhecimento» é «eminentemente artística». Por ela os novos artistas

vêm-se mais «profundos e sensíveis, portanto mais intuitivos». Essa é também a razão

do seu individualismo criativo130.

Também para Gaspar Simões, a intuição liga-se ao individualismo: «Uma obra de arte

é uma visão pessoal da realidade. (...). É preciso, pois, que o homem que escreve um

romance seja um artista com o sentido - a intuição - pessoal das paixões humanas, para

que essas paixões surjam no romance com uma fôrça expressiva pessoal. Não basta que

tenhamos a intuição das paixões; (...): é preciso termos uma intuição pessoal dessas

A Teoria da “Presença”

206

129 José Marinho, “Razão e Irracionalismo”, in Presença, Coimbra, nº1, série II, Novembro 1939, pp.44-46.

130 Aleixo Ribeiro, “Corpo e espírito da arte”, in Presença, Coimbra, nº50, Dezembro 1937, pp.9-11.

Page 49: presencismo

paixões»131. Em «diálogos inúteis», Gaspar Simões fala da «hipocrisia» da razão, uma

espécie de «disfarce de humanidade» «para justificar a sua força». A razão está como

que desfigurada numa aplicação è lei da selva: «Procedem como o canibal que quisesse

explicar às suas vítimas que as tinha de comer em obediência a altos princípios...»132.

Para José Bacelar o pensamento está viciado por um apriorismo racionalista: «em vez

de se partir do cáos das coisas para a sua explicação, parte-se da explicação para o

cáos. Acontece assim que a explicação é uma espécie de molde já feito a qual, a bem ou

a mal, terá de adaptar-se o caos»133.

Casais Monteiro, no último número da Presença, encerra com um ensaio uma

oposição que foi um dos cavalos de batalha da revista: a oposição entre razão e intuição

(que já vinha sendo anunciada por José Marinho). Casais Monteiro legitima as duas

expressões, colocando-as em planos diferentes, portanto, sem directa oposição. Mas

fala-se ainda de Bergsonismo: «Quereria mostrar que em opor a intuição e a razão,

como se uma e outra se excluissem, é que consiste o grande equívoco de quási tôdas as

especulações que se têm feito sôbre o assunto; especialmente em opô-las “como se”

estivessem no mesmo plano, isto é, como se estivessem em letígio sôbre o domínio da

mesma região». Torna-se assim redundante o «espectáculo de pessoas amigas da razão

e da medida que propondo-se, por exemplo, combater a poesia que se declara

indiferente aos cânones do pensamento discursivo, limitam a sua ofensiva à tentativa de

provar que... as teorias de Bergson sôbre a intuição não passam de fantasias mais ou

menos líricas». No campo artístico tal confronto intuição/razão verificou-se ainda mais:

«Há na criação artística uma realidade fundamental que é irredutível à razão. (...). Ora

semelhante descoberta não poderia deixar de perturbar oa espíritos aos quais a intrusa

vinha tirar a paz duma cómoda arquitectura intelectual. (...): é que de facto o

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131 João Gaspar Simões, “Algumas notas dum caderno de romancista”, in Presença, Coimbra, nº51, Março 1938, p.8.

132 João Gaspar Simões, “Diálogos inúteis”, in Presença, Coimbra, nº1, série II, Novembro 1937-Maio 1939, pp.56-57.

133 José Bacelar, “Gazeta da Presença, pequenos ensaios, comentários, actualidades, Aquário”, in Presença, Coimbra, nº1, série II, p.55.

Page 50: presencismo

racionalista não pode, sem abdicar dos seus princípios, dispensar-se de encarar a arte

sob o ponto de vista da acção que ela exerce sôbre os homens, àparte o seu valor

estético; moralista por definição, importa-lhe essencialmente defender a razão como

instrumento de perfectibilidade. (...). O homem deve ser governado pela razão, diz êle;

logo, quando se ocupa de arte, não podem deixar de lhe importar os desgovernos, o

desiquilíbrio, a carência de organização, de ordem, da mesma forma que lhe

importam, para os combater, quando o seu objecto fôr a moral, a metafísica, etc. tendo

como lema que a arte será racional ou... não será, o racionalista está forçosamente numa

atitude prevenida, pois o que êle pensa que a arte deve ser e significar, como deve

influir, etc., o inibe de a olhar com olhos virgens quando se preocupa de saber o que ela

é. Não são pois de estranhar os parti-pris do racionalista, a quem o seu culto da razão

impede de pensar a arte senão em têrmos racionalistas, e, portanto, de a compreender.

(...): foi preciso chegar-se a uma época em que se deu direito de cidade ao irracional,

para a arte poder ser compreendida! (...) Reconhecer a importância do irracional não

quere dizer usá-lo como método, e significa, pelo contrário que se pensa tendo em

conta a sua existência, que se lhe concede o lugar que ocupa de-facto na criação. (...).

Proclamar a base irracional da actividade poética não quere tampouco dizer que o

poeta não temha nada que ver com a razão». Mas, para o defensor da razão, será díficil

«reconhecer pùblicamente aquilo que no íntimo pode considerar verdadeiro» sempre

que tal corresponda a uma face que «êle sabe perigosa para a harmonia» dos seus

fundamentos morais e pedagógicos. Torna-se difícil a conciliação: «É que se trata agora

do irracional como inimigo das leis e da cidade, do equilíbrio e da ordem: (...): negar o

irracional, ou melhor, considerá-lo só valioso depois de filtrado pela razão (o que

redunda numa forma de negação) não o faz desaparecer. (...). Parece pois que o seu

objectivo será de preferência canalizá-lo e purificá-lo. O que – suponho – êle quererá

de preferência evitar é que se afirme a irracionalidade. O que êle nega não é a

existência, mas sim o valor do irracional. (...). Ora os valores irracionais são

inassimiláveis pela razão, a qual terá de se limitar a imitá-los, e logo a traí-los. (...). O

racionalista dar-se-ia por satisfeito se o seu adversário reconhecesse que o que a

intuição colhe nas suas sondagens não vale nada sem o filtro-razão, e que sem êste é

A Teoria da “Presença”

208

Page 51: presencismo

puro caos, absoluta inorganicidade, etc. Ora tal não se poderia dar sem traição por

parte do “partidário” do irracional, que não estará nada disposto a reconhecer que êste

seja apenas caos, e nada valha por si só. (...). Seria pois, de desejar que o debate fôsse

transferido para o plano onde se nos depara uma irredutibilidade. Esse plano, liberta

de equívocos, a antinomia de qualidade entre o racional e o irracional». Só neste ponto

se pode de facto procurar compreender com intensidade a arte; libertando-a de uma

compreensão meramente racional: «A arte é de facto inconciliável com qualquer

sistema filosófico que tenha a razão, a ordem e o equilíbrio como pilares (...). Com a

sua simples existência, a arte nega a paragem, a morte, a anquiloze que estão na

essência da racionalização de tudo». Se, «como todos os valores normativos, a razão

torna-se fatalmente em instrumento de asfixia», então, «sendo a arte uma permanente

válvula de escape do criacionismo irracional, o filósofo racionalista ou opta por a

desvirtuar, ou por a combater»134. Casais Monteiro mais que autonomizar a intuição

da razão, procurou libertá-la através da «irredutibilidade» de ambas; no fundo, de

retirá-la do alvo das críticas a que os ditos racionalistas lhe vinham dirigindo,

orientando-as para a Presença, principal defensora da importância decisiva da intuição.

O confronto acabava e, curiosamente, com ele também a própria revista coimbrã.

Como se, salva a intuição e o seu subjectivismo das garras da razão, o seu papel

intelectual e crítico estivesse cumprido.

“O que importa é o olhar, não o que é olhado”

CASAIS MONTEIRO (Presença, nº21, p.2)

“O mundo exterior não existe, porque tenho consciência dele”

EDUARDO LOBO (Presença, nº37, p.9)

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134 Adolfo Casais Monteiro, “Poesia, Intuição e Razão”, in Presença, Coimbra, nº2, série II, Fevereiro 1940, pp.109-115.

Page 52: presencismo

“A realidade é muito mais rica do que a fazem quaisquer espécies de fanáticos: principiando pelos

fanáticos do real”

Redacção (Presença, nº1, série II, p.3)

A D e f o r m a ç ã o

Defendendo a individualidade artística acima de tudo e preocupada com uma íntima

visão pessoal no acto criativo, a Presença acaba por suster uma relação filtrada com o

mundo exterior: este é sempre «deformado» pelo mundo interior do artista135. O primeiro

ensaio da revista que prepara uma justificação coerente e verdadeiramente teorizada da

deformação no processo artistico (embora o termo ainda não aí apareça claramente) é o

que José Régio apresenta no sexto número da revista. Colocando o Artista (individual)

entre a Realidade e a Arte, torna a arte expressão dessa realidade, mas afectada ou filtrada

pelas faculdades «anormalmente desenvolvidas» pelo «Homem-Artista» («a imaginação, a

sentimentalidade, a inteligência, a emotividade, etc.»). A Realidade torna-se assim um

pretexto para o Artista exteriorizar os seus dons; e a Arte surge como que uma espécie de

«re-criação». Régio chega mesmo a estabelecer parcelas de importância desses agentes

na dimensão da Arte: «O HOMEM (7)+ O ARTISTA (5)+A REALIDADE (3)=ARTE

(15)» 136 . E, três números depois: «Dizendo atraz que a Arte é uma re-criação

individual do mundo, visei sobretudo a pôr em relevo estes dois essenciais elementos de

toda a criação artística: O indivíduo e aquilo a que chamamos a realidade. se da

realidade nada possuímos senão os dados dos nossos sentidos e da nossa experiência

interior, segue-se que é dos dados que a nós próprios fornecemos que depende a nossa

valorização do Universo. O mundo valerá o que nós valermos. (...): Na Obra de Arte, o

mundo valerá o que valer o Artista. E nela, as coisas não são “o que” são: são o “como”

são. isto é: são – o que são através do Artista. O artista fornece o “como”». Ou seja,

«que a vida, a natureza, a realidade, o homem – valerão na Obra de Arte o que valer a

A Teoria da “Presença”

210

135 Ver as aproximações já apontadas ao tema da “deformação” nas notas 25, 29 e 37.

136 José Régio, “Lance de Vista”, in Presença, Coimbra, nº6, Julho 1927, pp.5-8.

Page 53: presencismo

personalidade artística que o reflita»137. A Arte é assim, perante a realidade, uma

espécie de inevitável deformação desta pela individualidade (através) do artista. Num

ensaio sobre uma peça de Ibsen, Régio referirá a «deformação involuntária» e

«involuntária» que este faz aos seus personagens, que «foge espontaneamente ao que

possa haver de convencional, de artificial, de literário, numa caricatura»138 . A

deformação que se começa a teorizar inevitável num sincero acto criativo não pode

perder os fundamentos dessa mesma espontaneidade em que se concebe qualquer

verdadeira criação.

Também Gaspar Simões desenvolve uma teoria da «transposição» que parece remeter

para o sentido de uma fuga à realidade para apontar uma ultra-realidade «interior»,

«subjectiva»139: «A arte, (...), é uma “transposição”140 da vida: dos sentimentos, das

sensações, da inteligência que o homem tem dela quando é artista. É uma transposição,

porque entre os sentimentos, as sensações, as ideias vividas e a sua expressão formal há

uma verdadeira transição; (...)»141.

De novo na Presença, e sobre a «Realidade e Humanidade na Arte» e àquilo a que

chamava «transposição estética», o mesmo Gaspar Simões afirma que a «Arte

perfeitamente realista», como «actividade que persegue a configuração física das

coisas» de modo submisso, «não a há – porque a não pode haver». Tal seria uma

«actividade completamente mecânica» que «não pode havê-la» devido «à estrutura

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137 José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Presença, Coimbra, nº9, Fevereiro 1928, p.4.

138 José Régio, “Atravez duma peça de Ibsen (“O Pato Bravo”), in Presença, Coimbra, nº11, Março 1928, pp.6-7.

139 Ver LOPES, Óscar; op. cit., p.757.

140 A noção de “transposição” aparecia também na sua edição de ensaios pela Presença denominada Temas. «A “transposição” é um indescrítivel processo de “fuga ao real comum”. É o regresso em tensão sobre a nossa vida essencial: interpreta-se num sentido vitalista literal, que aliás coincide com o “élan vital” de Bergson». Óscar Lopes, op. cit., p.755. No catálogo do I Salão dos Independentes um texto de Gaspar Simões voltava a salientar a ideia de transposição: «A arte é uma transposição da vida: dos sentimentos, das sensações, da inteligência que o homem tem dela quando é artista. É uma transposição, porque entre os sentimentos, as sensações, as ideias vividas e a sua expressão formal há uma verdadeira transição - uma fatal, invencível, involuntária transição, no fim de contas indispensável a dar-lhes o carácter de estéticas: a estilizá-las». João Gaspar Simões, in Catálogo do I Salão dos Independentes, Lisboa, Maio 1930, p.19.

141 João Gaspar Simões, “Modernismo”, in Presença, Coimbra, nº14-15, Julho 1928, p.2.

Page 54: presencismo

humana da alma dos artistas: à natureza espiritual do seu aparelho reprodutor». Ao

contrário da máquina fotográfica, um «aparelho reprodutor», no homem há «uma

alma de substância misteriosa, impressionável embora, mas impressionante (que

impressiona ou imprime) sobretudo»: No homem trata-se de uma «organização activa

que re-age e a-molda» na «impossibilidade de alcançar natureza objectiva completa». É

assim que a arte moderna, se estribando «no subjectivo e na visão individualista do

homem», não aceita o «mundo externo como realidade superior à sua realidade

interna». «Uma ideia da realidade, por menos real que seja, é, contudo, real e humana

na medida que o parece à consciência que a vive». A aparente irrealidade da arte

moderna exprime sempre uma realidade: a «visão da realidade» pela individualidade

que a cria – «a sua própria»: «o mundo não é, para êle, o que de facto é, mas o que lhe

parece, ou conforme lhe aparece»142. Sobre o «egocêntrismo abstracto» do poeta escreve

ainda Gaspar Simões: «Percepcionando cria um mundo que, no entanto, só

compreende pelas analogias que pode estabelecer com o seu. Daí a sua compreensão

egocêntrica da vida. E embora pareça que o poeta devesse ser principalmente um

realista, em virtude da sua vida perceptiva e reflexa, tal não sucede, visto o “real” só lhe

ser compreensível como individual. A sua percepção não lhe diz que o mundo exterior

existe; diz-lhe, antes, que é êle próprio que o cria»143. A actividade artística (neste caso

poético) está nesse limiar conflituoso entre a realidade exterior e a interior. Não se fala,

por momento, de deformação, mas ainda de re-criação.

Numa crítica literária, José Régio redefinia a relação do artista com a realidade exterior

perante o inevitável da sua solidão: «Afinal, o mundo exterior ainda não passa duma

impressão, duma representação, duma série de impressões, duma série de representações... e

assim o autor recai sobre si próprio»144.

A Teoria da “Presença”

212

142 João Gaspar Simões, “Realidade e Humanidade na Arte (a propósito de ‘la deshumanizacion del arte’ de Ortega y Gasset)”, in Presença, nº16, Novembro 1928, pp.2-4.

143 João Gaspar Simões, “Raul Brandão, poeta”, in Presença, Coimbra, nº30, Janeiro-Fevereiro 1931, p.2.

144 José Régio, “Crítica: “O momento e a Legenda, Edmundo de Bettencourt, Presença, 1930”, in Presença, Coimbra, nº28, Agosto-Outubro 1930, p.13.

Page 55: presencismo

Eduardo Lôbo questiona: «O mundo é como nós o criarmos; que nos importa então

compreender como é?». E, mais adiante: «O não-ser é uma forma de ser: é o ser-antes

de ser descoberto. (...). Criar é (...) objectivar uma virtualidade. A imaginação está em

cada momento a construir o que o entendimento destrói. Todo o conhecimento é

ilusório visto que implica o desdobramento da realidade ou a sua duplicação»145. E,

noutro ensaio, o mesmo autor volta a afirmar as possibilidades de acção da imaginação

sobre a realidade: «quanto maior o potencial da imaginação, tanto maior a deformação

do real que o conhecimento traduz»146.

Num ensaio sobre «A Arte e a Realidade», dedicado a Sarah Affonso, Gaspar Simões

expõe um desenvolvimento teórico desta tendência em que a «arte» é a «realidade vista

através de um temperamento»: «”Afinal, pensou o homem de hoje, não há nada tão

pobre e tão ilusório como o mundo exterior. O que vemos é uma aparência. A única

realidade é o homem; somos nós, homens”. (...). O artista perdeu a confiança na

realidade exterior, caiu extasiado sôbre o seu próprio mundo: também êle tinha

descoberto que a realidade é uma aparência - e uma aparência passiva». Os «caprichos

estéticos» podem existir na natureza, «mas quem os descobre é o homem», «é o

homem que anima as suas possibilidades». «Além de que não se pode reter todos os

pormenores do que se vê sem o perigo de reproduzir o que se não chegou a sentir. (...),

o pintor apenas recolhe da realidade o que veio ao encontro das suas possibilidades

expressivas». E concluindo: «Não conformismo com o real - eis qual deve ser o grito do

artista»147. A arte é no fundo esse despertar do que está em nós, interior, e que age

sobre a realidade exterior.

Num comentário de resposta a um depoimento de Rodrigues Miguéis, afirma José

Régio acerca da relação artista/realidade: «Nunca ao artista de vocação a fantasia

poética parece um crime perante seja que realidade (palavra cheia de alçapões...) por essa

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145 Eduardo Lôbo, “Infinitismo”, in Presença, Coimbra, nº34, Novembro-Fevereiro 1932, pp.12-13.

146 Eduardo, Lobo, “Metafísica infinitista”, in Presença, Coimbra, nº37, Fevereiro 1933, p.11.

147 João Gaspar Simões, “A Arte e a realidade (a Sarah Affonso)”, in Presença, Coimbra, nº36, Novembro 1932, pp.5-8,11.

Page 56: presencismo

fantasia ser, para êle, tão real (ou mais) como qualquer outra realidade»148. Desconfiado

de uma objectiva apreensão da realidade exterior, Régio legitima a subjectividade da

realidade interior.

O grande ensaio-programa sobre a «deformação», onde esta é afirmada e defendida

como «génese de tôda a arte», é o que Gaspar Simões escreve para uma conferência

lida na abertura de uma exposição individual de Júlio em 1935 na Sociedade Nacional

de Belas Artes, e que se publicou na Presença no mesmo ano. Começa por contestar a

própria noção habitual de realismo: «O realismo, isto é, a expresão fiel da realidade, da

natureza ou do universo, não tem valor absoluto. Obra de arte realista não quer dizer

obra simuladora da realidade, mas obra capaz de sugeri-la. (...) a realidade procurada

pela obra de arte não é a realidade objectiva, exterior a quem a cria, mas a realidade

subjectiva, íntima do artista. (...). Com efeito, o realismo de uma pintura só deve ser

encarado dentro dos limites do caixilho. (...). Arte é criação de uma realidade pessoal,

isto é, de uma realidade onde só intervenham elementos da realidade escolhidos pelo

artista. Um artista incapaz de decidir por estes ou aqueles elementos do real - não é um

artista. Se se dicidir por todos êles - um imitador. (...). Pintor a quem a natureza não

impressione pode ser o que quiserem menos um artista. O imitador é exactamente

aquele que por falta de capacidade de emocionação aceita tôda a natureza e a

reproduz sem a re-criar. (...). Exprimir, do latim exprimire, significa fazer sair de. Ora a

pintura faz sair do pintor a realidade que para dentro dêle entrou pelos seus olhos. (...).

Fazer sair a realidade de si próprio não é outra coisa senão traduzir, isto é, levar de um

lado para o outro, a realidade vista. (...). Ver é olhar com certa intenção. O pintor que

vê a realidade vê-a na intenção de a pintar, isto é, de a exprimir. (...). O pintor elege, na

realidade, como digno de ser levado para a tela, o que na realidade se lhe apresenta

mais digno de atenção. E aqui intervém a valorização da realidade feita pelo artista.

(...). Na escolha intervêm mil factores. Um no entanto se me afigura para ponderar: o

factor de ordem emocional. Não se pode fazer sentir profundamente o que se não

sentiu. O pintor escolhe de entre os elementos da realidade aquêles que mais

A Teoria da “Presença”

214

148 José Régio, “Comentário. Interrogações e dúvidas sôbre um depoimento de Rodrigues Migueis”, in Presença, nº44, Abril 1935, p.14.

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profundamente sentiu. (...): se a criação artística é o resultado dessa selecção operada

pelo artista no mundo real, toda a criação artística tem de ser uma deformação da

realidade. Nem de outra maneira pode ser, uma vez que o artista extrai de si, isto é

exprime, não tôda a realidade, mas apenas os elementos que nela o impressionaram. (...). Imitar a

realidade não é exprimir a realidade. Quem imita não tira nada de si, colhe fora de si.

Imitar é fingir. Finge-se o que se não é. Ora a arte é essencialmente a revelação do que

cada um é, ou melhor ainda, do que em cada um de nós é o mundo exterior. Por isso

arte e imitação são antónimos. (...) – é à obra deformada, quere dizer, formada

consoante uma visão pessoal dela, que está reservado o poder de impressionar

esteticamente». E procurando extrair emoções estéticas do real, retira a natureza da

estagnação da imobilidade artística, através duma arte que fale numa «linguagem

directa»: «(...), para que a realidade se nos exprima é antes de mais nada necessário

romper-se o seu equilíbrio, violentando, no sentido de a tornar excessiva, a impressão

que ela em nós produziu. Para que uma impressão ressalte, num conjunto de muitas

impressões, afigura-se-me fundamental a sua exageração até ao extremo limite em que

ela a si mesma se ultrapassa. Ali onde não houver agitação, dinamismo, tensão da

matéria, desiquilibrio, enfim, não há com certeza expressão. Exprimir é romper o

eauílibrio dos elementos da natureza apresentando-os, tendo ultrapassado o limite

normal da expressão no mundo dos fenómenos. (...). Deformar será, pois, romper-se o

equilíbrio com que as coisas se nos exibem na natureza, de molde a tornar-se

eternamente dinâmico o que a materialidade da arte haveria fatalmente de tornar

eternamente estático». Para Gaspar Simões a «deformação» torna-se assim «uma lei de

toda a criação artística»: «Quanto mais expressiva fôr uma obra de arte, tanto mais

deformada. (...). Deformar é, por conseguinte, uma lei biológica da arte. Criar, no

sentido estático, é deformar, ou transfigurar deformando». Portanto, «o artista», ao

querer fixar a realidade – «deforma-a, isto é, altera-lhe a sua forma própria, para lhe

impor uma outra, que é aquela cujo aspecto êle a vê». O realismo da arte não se

confunde com o do real: «o realismo em arte floresce negando, comprometendo ou

violentando o real». Toda esta dissertação sobre a deformação da arte conjuga-se

inevitavelmente com o individualismo artístico, de uma realidade interior,

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protagonizado pela teoria presencista: «Para além da realidade, eis qual deve ser a

marcha do pintor. Deformar é-lhe, a êle, inevitável e fecundo. Porém não há

deformação verdadeira onde não houver imposição à realidade de uma forma pessoal.

Deformar, no sentido estético, não é re-encontrar artificialmente um sinal da realidade,

mas tornar vísivel uma visão pessoal do universo». Exemplos desta deformação aponta-

a Gaspar Simões através de mestres da arte, com que procura legitimar a sua tese:

Assim, Velazquez «inverteu a ordem da natureza», não por um escrúpulo de verdadeiro

realismo, «mas por uma necessidade de criar sôbre a tela uma segunda realidade»,

deformando a realidade «para ser artista»; «no desenho de David nota-se um total

desprezo pela realidade» e «apenas fêz traços, traços, e nada mais», nada mais fazendo

«senão alterar a forma da realidade», ou seja, «David apenas deformou o que a natureza

havia informado»; Rodin pôs de parte a experiência fotográfica para seguir a do seu

instinto, que lhe disse não ser possível fixar o movimento senão «violentando a

realidade»149. Para Gaspar Simões o artista encontra na natural expressão da sua

individualidade artística o verdadeiro encontro com a realidade: O homem que

interpõe entre si e a realidade o véu das ideias sujeita-se a pensar a realidade em vez de a

fazer viver150.

«É simultâneamente por evolução e reacção que o

Expressionismo aplaude toda a excentricidade no seu sonho

anti-realista, requintando até à obscuridade e à infantilidade

o seu amor do sintético e do geral.»

JOSÉ RÉGIO (Presença, nº2, p.2)

A Teoria da “Presença”

216

149 João Gaspar Simões, “deformação. génese de tôda a arte. Conferência lida na abertura da exposição Júlio, organizada por esta revista no salão da Sociedade de Belas Artes de Lisboa em março de 1935”, in Presença, Coimbra, nº45, Junho 1935, pp.7-11.

150 João Gaspar Simões, “Algumas notas dum caderno de romancista”, in Presença, Coimbra, nº51, Março 1938, p.11.

Page 59: presencismo

“O expressionismo desencadeia sôbre a natureza todos os sonhos, febres, âncias e tormentas do homem

interior”

JOSÉ RÉGIO (Presença, nº9, p.7)

C o n s i d e r a ç õ e s F i n a i s

Ao surgir, a Presença, estabelecia-se cronologicamente assumindo a herança de Orpheu,

onde convergiu historicamente o primeiro modernismo, e a apatia do pós-guerra até ao

surgimento da revista coimbrã, que pretendia assumir um segundo modernismo. Os

teorizadores da Presença apoiaram-se na legitimação de Orpheu, e no estudo teórico desta

revista, então ainda não feito, para confirmarem a sua própria posição de

modernidade. Sofreu assim a contradição inicial de se construir no seu tempo e de, ao

mesmo tempo, se fazer relativamente e sobre o passado orphista. Perante a fraqueza e

hesitação doutrinal de Orpheu, demasiado instintiva e polémica para se doutrinar, os

presencistas encontraram, no olhar para esse (recente) passado, um vazio argumentativo e

construtivo por onde poderiam agir para o seu tempo, encontrando grande parte da

sua originalidade na consciência de ideias que apenas intuitivamente atravessavam os

poetas de Orpheu. Sobre a herança inconsciente de Orpheu, os presencistas encontraram o

suporte da sua própria consciência doutrinária. Procuraram por isso sistematizar uma

teoria da Arte que justificasse os artistas de Orpheu e que servisse para o seu tempo.

A teoria da Arte presencista não deixa mesmo de se construir sobre esta necessidade de

dar sentido ao primeiro modernismo do grupo de Orpheu, remetendo os seus teóricos a

uma reflexão crítica que chegava a exceder a própria criação artística dos

colaboradores da Presença. Numa época de regresso à ordem, tal como se tem

conhecido a História da Cultura e da Arte de entre as duas Guerras, a Presença foi-o de

facto na sua criatividade, mas não no seu julgamento crítico e teórico onde desenvolveu

um raciocínio estético que, no legitimar das manifestações culturais das primeiras

vanguardas em Portugal, despoletou uma energia crítica com maior contundência e

teor intervencionista que a sua arte. Com base na explicação de uma arte orphista, mais

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do que de uma presencista, encontraram os teóricos da revista coimbrã os moldes dos

seus próprios critérios teóricos. Essa força alastrou-se, atravessou as outras artes, e

elaborou uma certa sistematização estética com razoável coerência ao longo dos treze

anos que durou a revista.

A teoria presencista assumiu um radicalismo de posições cuja menção inaudita no

panorama nacional, acentuava o seu intervencionismo. Ela protagonizou com energia

crítica, mais além do que aquela que se exigia a uma edição provinciana (e várias

críticas a que foi submetida pareciam acusá-la dessa petulância), longe do Chiado, cuja

centralidade ela próprio criticava, assumindo nesta crítica esse mesmo provincianismo.

A Presença é também essa modernidade que só à distância se internacionalizou,

provincianamente, contra os estrangeirados e urbanos do Chiado, que caíram na sua

própria modernidade artificial dos anos vinte. Apesar de escassa edição e com

distribuição fraca, o que colocava a intervenção da revista apenas entre poucos curiosos

e intelectuais, a Presença foi a edição crítica cuja intervenção melhor soube dar

continuidade aos vanguardismos de Orpheu, tornando mesmo tudo o que de intermédio

ficara como que um mero parênteses. A impetuosidade e novidade com que soube

lançar as suas teorias, sustentando-se em motes fornecidos desarticuladamente pelo

Orpheu, fez da Presença a primeira grande teorização de uma modernidade, feita para

um novo tempo, sem saudosismos, embora reconhecendo modernidades de outros

tempos, já do passado. As próprias polémicas intelectuais entre a Presença com os neo-

realistas (que contudo reconheceriam a importância e abertura da revista151) ou com a

tertúlia racionalista de António Sérgio são testemunho desse sentido intempestivo152.

Os presencistas recusaram qualquer sentido artificial para a modernidade e, no seu

provincianismo, souberam sê-lo mais que os urbanos do Chiado. Do mesmo modo

criticaram a actividade de Ferro no S. P. N., vindo mesmo por isso a sofrer censura nos

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151 Ver nota 43.

152 “(...) assistimos, pela primeira vez, ao desdobrar de uma problemática nesse domínio, que entra a certa altura em diálogo de surdos com o intelectualismo de António Sérgio e, depois, com o intervencionismo neo-realista seu contemporâneo da última fase”. Óscar Lopes; op. cit., p.751.

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últimos número153. A teorização presencista era de vários, mas convergindo para ideais

semelhantes, e sempre orientados por José Régio, Gaspar Simões e, depois, ainda por

Casais Monteiro. A doutrina estética é praticamente desenvolvida até 1930, altura em

que termina o primeiro volume ou série. Até aí a posição é sobretudo de definição

teórica dessa mesma doutrina, através de uma espécie de «diálogo entre Régio e

Gaspar Simões»154 . É também onde ela é mais contundente. Com a saída de

Branquinho em 1930, salienta-se a participação de Casais Monteiro, ao lado de Régio

e de Gaspar Simões. A partir de cerca de 1935, atenuam-se algumas ideias que até aí

eram manifestas, como a defesa do infantilismo e, de modo menos relevante, do

primitivismo, e procura-se uma espécie de reconciliação das defesas do inconsciente e

da intuição com as do consciente e da razão. O lançamento da Presença assume o teor

intervencionista, numa expressionista vontade de mudar as coisas, de criar uma nova

literatura: uma «literatura viva». A sua especulação teórica está nessa vontade de

justificar o como dessa criação literária e artística.

Na procura de uma defesa de uma estética moderna, liberta dos apáticos e

adormecidos academismos que criticava, a Presença encontrou na defesa da

«individualidade artística» a directriz em torno da qual se desenvolve toda a sua

principal teoria. O individualismo do artista é a particularidade de uma intransigente

liberdade, que só responde a si na memória da história ou no espaço das influências. É

defendendo o individualismo até ao mais intenso e profundo estado que os presencistas

vão articular os tópicos mais importantes da sua teoria. Para começar «para se ser

artista é preciso ter uma individualidade». Só dela é possível o desenvolvimento de tudo

o que para a Presença é fecundo e dissociável do processo artístico. A própria

universalidade e eternidade da Arte, romanticamente defendidas pela revista, são

questões da individualidade. Só aí, atingindo as profundezas de uma humanidade

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153 “O que não impedirá de comentar, em 33, os prémios instituídos por António Ferro na sua função de Secretário da Propaganda governamental do Estado Novo - que havia de lhe impor censura política, na parte final da publicação”. José-Augusto França; Os Anos Vinte em Portugal, p.357. Das críticas da Presença às actividades do secretariado comandado por António Ferro ver os números 33 (Julho-Outubro 1931, p.15), 40 (Dezembro 1933, p.15) ou 47 (Dezembro 1935, p.20).

154 Óscar Lopes, op. cit., p.751.

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particular, se encontra o gene comum a todo o colectivo humano: O profundo do

individuo é universal! Um evidente sentido expressionista subsiste nesta doutrina, onde

o «Eu absoluto» se assume como centro criador, em que a sua verdade íntima e particular

se faz verdade universal.

Essa «individualidade» íntima só faz sentido na defesa sequente da «sinceridade

espontânea» do acto criativo. Sem artificialismos, nem distâncias demasiado

construídas ou elaboradas, a Presença propõem uma liberdade interior manifestada e

exteriorizada. Só então faz sentido verdadeiro a individualidade defendida. A sua

elaboração artificial é a sua destruição. Numa proximidade com uma linha

expressionista, a Presença propõe a imediaticidade do acto criativo, antes deste se

escapar para o domínio da razão que a si a submete e artificializa.

Para essa sinceridade se exprimir correctamente, para ela não se escapar para esse

domínio intelectivo de uma elaboração artificial, a Presença defende um sentido

ingénuo do acto criativo, sentido que remete para o infantilismo ou ainda o

primitivismo. Estes estados, puros como actos agenciadores e criativos, estariam livres

de prévios esquemas que se sobrepusessem ao indivíduo. Para os presencistas (sobretudo

até inícios dos anos 30), a arte deve brotar de uma confissão imediata e pura, em

analogia com as crianças e os primitivos, que se viram para o mundo sem esquemas

prévios. Nesta defesa a Presença fez o elogio de poetas como João de Deus, Afonso

Duarte ou Saúl Dias (Júlio) ou de pintores como Júlio, Almada ou Sara Afonso, artistas

onde uma espécie de inocência ou ingenuismo atravessava a sua criação.

A sinceridade assim desejada da íntima criação individual, na sua expressão pura,

remeteu inevitavelmente os presencistas a uma teoria introspectiva, do inconsciente e do

subjectivo, onde tais questões se fundam. Assim, na leitura do inconsciente de Freud e

de Jung, mas sobretudo no de Bergson e da sua intuição155, encontraram os presencistas

um dos principais fulcros da sua teoria. Por ela legitimaram a profundidade de uma

A Teoria da “Presença”

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155 «O Bergsonismo era a doutrina filosófica que melhor justificava as interpretações dos críticos da nova revista. Á intuição como elemento fundamental da criação atribuíam estes a essencialidade do acto poético». João Gaspar Simões, História da Poesia Portuguesa do Século Vinte acompanhada de uma antologia, Lisboa, Imprensa Nacional de Publicidade, 1959, p.756.

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confissão que brota do íntimo profundo do sujeito, escapando à consciência deste e

revelando-se como expressão originária do mesmo, sem artifícios. O psicologismo da

presença não procurou contudo revelar pesadelos ou dramas profundos, mas propôs-se

apenas como o meio mais legítimo da expressão de uma subjectividade inerente à

própria personalidade artística.

No confronto com a realidade o artista projecta assim nesta esse seu individualismo,

filtrando-a com um olhar interior que a deforma. Para a Presença, o artista não imita,

mas recria um mundo, deformando e metamorfoseando o mundo exterior. A realidade

da arte é aquela que passa pela interioridade artística e que por este se projecta. Não

necessariamente uma deformação agressiva e tragicamente perturbada, na via do

expressionismo, mas uma lírica que apenas revele do real exterior aquilo que se afecta

no real interior. A subjectividade não assume a via da psicanálise, de um inconsciente

profundo e de pulsões eróticas, nem de símbolos próprios à psicanálise, numa via

directa ao surrealismo (muito menos as vias políticas que interessaram o programa

surrealista internacional de Bergson, que não poderia ser via ou interesse presencista).

Para a Presença só há uma realidade na Arte: aquela que brota de uma íntima e sincera

individualidade artística.

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