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1 O SABER NA ESCOLA DO SÉCULO XII IRIE, Michelle Cristina Irie - UEM OLIVEIRA, Terezinha - UEM Este trabalho tem como objetivo analisar como se constituía a classificação do ensino nas escolas urbanas do século XII. Para este fim, utilizamos fontes primárias- escritos de mestres contemporâneos ao período de estudo, e fontes secundárias- que trazem estudos a respeito da forma de ensino no século XII. Assim, faremos uma análise histórica. Observa-se no século XII uma “revolução escolar” devido às grandes transformações culturais há um enriquecimento de novos saberes e um número suficiente de indivíduos capazes de assimilá-los e divulgá-los, com isso as instituições de ensino principiam a se solidificar tendo um papel essencial culturalmente. As escolas por volta do século VI ao século XI tinham um programa de estudos estreito inspirado na Escritura deixando de lado a gramática, filosofia, retórica, ciências, história, medicina, direito enfim, tornando inacessíveis o que a cultura greco-romana havia elaborado sendo esquecidos e negligenciados, algumas vezes por não corresponder à demanda social e política, como o direito por exemplo. No início do século XII inicia-se uma mutação no sistema de ensino, o programa de estudos que até então dirigia as escolas vai decaindo, dando lugar a uma nova forma de ensino algumas décadas depois. Inicialmente as escolas se multiplicam e consequentemente os mestres e alunos. A evolução escolar do século XII possui um aspecto qualitativo, há um “afinamento dos métodos de trabalho intelectual, alargamento do campo dos saberes, revalorização de disciplinas negligenciadas, descoberta de textos perdidos ou negligenciados (VERGER, 2001, p. 40)”. Mas, à medida que a escola monástica perdia importância, novas escolas, sobretudo urbanas, desenvolviam-se. Na verdade, a escola urbana não era uma novidade absoluta, pois, desde a Alta Idade Média, certas cidades episcopais a possuíam. Mas é evidente que no século XII as escolas catedrais se tornaram muito mais numerosas – cada vez maior número de bispos e cônegos se preocupavam em fazer funcionar regularmente uma escola. A escola catedral é a escola mais característica do século XII (VERGER, 2001, p. 40).

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O SABER NA ESCOLA DO SÉCULO XII

IRIE, Michelle Cristina Irie - UEM

OLIVEIRA, Terezinha - UEM

Este trabalho tem como objetivo analisar como se constituía a classificação do ensino

nas escolas urbanas do século XII. Para este fim, utilizamos fontes primárias- escritos de

mestres contemporâneos ao período de estudo, e fontes secundárias- que trazem estudos a

respeito da forma de ensino no século XII. Assim, faremos uma análise histórica.

Observa-se no século XII uma “revolução escolar” devido às grandes transformações

culturais há um enriquecimento de novos saberes e um número suficiente de indivíduos

capazes de assimilá-los e divulgá-los, com isso as instituições de ensino principiam a se

solidificar tendo um papel essencial culturalmente.

As escolas por volta do século VI ao século XI tinham um programa de estudos

estreito inspirado na Escritura deixando de lado a gramática, filosofia, retórica, ciências,

história, medicina, direito enfim, tornando inacessíveis o que a cultura greco-romana havia

elaborado sendo esquecidos e negligenciados, algumas vezes por não corresponder à demanda

social e política, como o direito por exemplo.

No início do século XII inicia-se uma mutação no sistema de ensino, o programa de

estudos que até então dirigia as escolas vai decaindo, dando lugar a uma nova forma de ensino

algumas décadas depois.

Inicialmente as escolas se multiplicam e consequentemente os mestres e alunos. A

evolução escolar do século XII possui um aspecto qualitativo, há um “afinamento dos

métodos de trabalho intelectual, alargamento do campo dos saberes, revalorização de

disciplinas negligenciadas, descoberta de textos perdidos ou negligenciados (VERGER, 2001,

p. 40)”.

Mas, à medida que a escola monástica perdia importância, novas escolas, sobretudo urbanas, desenvolviam-se. Na verdade, a escola urbana não era uma novidade absoluta, pois, desde a Alta Idade Média, certas cidades episcopais a possuíam. Mas é evidente que no século XII as escolas catedrais se tornaram muito mais numerosas – cada vez maior número de bispos e cônegos se preocupavam em fazer funcionar regularmente uma escola. A escola catedral é a escola mais característica do século XII (VERGER, 2001, p. 40).

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O novo tipo de escola do século XII é decorrente do declínio e renúncia das próprias

escolas monásticas, que eram quase sempre rurais e ao fato de essas surgirem nos burgos e

nas cidades.

Estas escolas eram, em relação à autoridade eclesiástica, frequentemente autônomas

não tendo dependência de uma forma de ensino única, todavia continuavam a ser instituições

da Igreja.

Não é possível descrever os detalhes do funcionamento das escolas do século XII por

não terem deixado arquivos, contudo uma fonte possível de se obter informações é por meio

dos escritos de seus mestres. Esses escritos nos dão indicações do ensino ministrado, muitas

vezes uma evocação muito viva e serão nossos guias, mas sobre a organização concreta

conhece-se muito pouco.

A região de Paris esteve no centro das mudanças das novas escolas urbanas na

passagem dos séculos XI e XII. Este desenvolvimento pode ser observado nos escritos de

Abelardo, João de Salisbury e especialmente em Hugo de Saint Victor.

Na primeira metade do século XII podemos verificar a instituição escolar por meio de

Abelardo.

As escolas da região de Paris especificamente se inscrevem num espaço com um

dinamismo econômico e demográfico impulsionando a urbanização, a vida social, política e

cultural.

Nos anos de 1114-1117 Abelardo chega a ensinar as artes e a sacra pagina ao mesmo

tempo na escola de Paris, contrapondo o modelo dominante contribuindo para o florescimento

da diversidade institucional.

Esta escola não era gratuita, era necessário organizar o material a ser usado, mas o

vínculo entre mestre e aluno perpassava a questão monetária e se baseava nos valores

intelectuais, nos sentimentos de gratidão e admiração, foi por essas bases que a escola do

século XII se edificou. Os alunos só passavam a ensinar quando o mestre declarava que eles

não tinham mais nada a aprender, sendo fiéis a ele, não costumavam se rebelar como

Abelardoi fez.

[...] o ensino da dialética, ainda que fosse , em teoria, uma disciplina essencialmente técnica, permitia abordar problemas propriamente filosóficos, como os dos “universais” (idéias gerais) que retomavam o velho debate entre o platonismo e aristotelismo, sobre o grau de realidade respectivo das idéias (e

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das palavras que as exprimem) e das coisas apreendidas em sua realidade individual concreta. Esta contaminação recíproca das disciplinas era facilitada pelo fato de que um mesmo mestre, como Abelardo, precisamente, podia ainda ensinar ao mesmo tempo – mas seria ao mesmo auditório? – as artes liberais e a ciência sagrada (VERGER, 2001, p.55).

Abelardo e os mestres parisienses ensinavam os princípios do raciocínio e das artes da

linguagem sendo esses antes de tudo a chave para as outras disciplinas incluindo a teologia,

modificando os métodos. A dialética libera a palavra do aluno para com os mestres, o texto

comentado se torna objeto de reflexões com levantamento de questões por meio do raciocínio,

os debates e as disputas começam a se tornar uma prática escolar.

O método escolástico desenvolveu-se sob a inspiração e o estímulo da lógica aristotélica. A técnica da disputa é inculcada e regrada especialmente nos Segundos Analíticos, nos Tópicos e nas Refutações dos Sofismas, os três últimos livros do Órganon. Desde o século XII observa-se a citação freqüente dos Tópicos como verdadeiro manual de instruções para as disputas (NUNES, 1979, p.250).

O entusiasmo em poder chegar a verdades esquecidas ou escondidas é imenso pela

prática da disputa usando os recursos da razão porém, as idéias novas causam desconfiança e

monges e clérigos tradicionais faziam vigilância nas escolas urbanas.

A ciência sagrada continuou a ser, no século XII, a disciplina dominante apesar da

renovação das artes liberais. Essa ciência transformou-se profundamente, contudo a Bíblia

continuou a ser a única referência.

Enquanto nos mosteiros uma boa formação gramatical parecia uma condição suficiente para abordar a Santa Escritura, na cidade, a proximidade das escolas de artes e em particular dos ensinamentos de lógica ou do quadrivium suscitou inevitavelmente uma maneira diferente de comentar o texto revelado, fazendo surgir dele questões e dificuldades às quais a antiga exegese monástica não prestara atenção; em seguida, estas questões tornaram-se elas mesmas o objeto principal do ensino. Por outro lado, os mestres e os ouvintes das escolas urbanas não eram religiosos devotados ao retiro, à penitência e à prece, mas sim seculares ou ao menos cônegos que viviam em contato com os fiéis leigos, [....] Seus estudos não podiam então se separar totalmente deste contexto concreto (VERGER, 2001, p.118).

As escolas urbanas e os mosteiros tinham abordagens diferentes com relação aos

estudos teológicos. O texto sagrado alimentava a espiritualidade do monge, nutria sua prece e

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guiava sua progressão no caminho da perfeição. Nas escolas urbanas as condições de trabalho

e as finalidades do ensino não eram as mesmas que as dos mosteiros.

Mudou-se os métodos aplicados à mensagem revelada, o público ao qual se dirigia, os

locais em que se fazia o ensino teológico em função da mudança geral da Igreja e da

sociedade no século XII.

No século XII, as cidades estão florescendo, há trabalhos especializados e a escola

vem fazer parte do trabalho da cidade, pois ela passou a ter definições como, suas tarefas e o

tempo de trabalho do professor. O Concílio de Latrão iide 1179, foi o início da expansão das

escolas, pois estabelecia que em cada catedral teria de haver uma escola. É nessas escolas que

se encontram os ‘intelectuais’ medievais, ou seja, os mestres , professores e letrados.

Abelardo e o Sic et non

A geração de Abelardo enfatizou as questões do método por meio da dialética, tendo

domínio da lógica e todas as artes da linguagem, gramática e retórica para saber desencravar

as passagens obscuras dos textos, para retirar os pontos importantes para submetê-los à

discussão e segundo as regras do raciocínio chegar na verdade. A dialética também foi

aplicada ao estudo do texto bíblico.

Nunes (1979), ao discorrer sobre a escolástica diz a respeito da contribuição de

Abelardo:

No século XII Abelardo, apesar de suas turbulências e ousadias, concorreu grandemente para a constituição de Escolástica, tanto quanto à sua forma extrínseca, quanto à sua íntima essência, máxime nos tratados Sic et Non, Introductio ad Theologiam e Theologia Christiana. No Sic et Non inaugura Abelardo no estudo da teologia o uso da questão oriunda do confronto de diferentes opiniões dos Padres da Igreja, mas que nessa obra ele não resolve, como o devia fazer em classe, e como o fez ao tratar de modo sistemático de muitas das suas questões na Introdução à Teologia e na Teologia Cristã. No fim do prólogo do Sic et Non declara Abelardo que recorreu ao processo da contraposição das opiniões dos Santos Padres, porque ele se presta para exercitar o engenho dos jovens estudantes, levando-os à investigação atenta e alerta, uma vez que “a interrogação assídua define-se como a primeira chave da sabedoria e é duvidando que se chega à verdade” (7). Aliás, no início do prólogo Abelardo chama a atenção para o cuidado que se deve ter com a análise dos termos, já que “a significação própria das palavras” é desconhecida de muitos leitores, sobre variarem os significados dos vocábulos conforme a suposição em que são usados (NUNES, 1979, p. 247).

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Na década de 1130, Abelardo compõe o prólogo Sic et non, comparado a uma espécie

de ‘discurso do método’ da exegese dialética.

Em sua obra, Sic et non, Abelardo discute sobre o significado diferente das palavras,

que pode ter mais de um sentido, que seja tomado cuidados com palavras comuns e vulgares.

Estimula o aluno a buscar o conhecimento, questionando, tendo dúvidas, fazendo uso da

razão.

Nunes (1979), nos chama a atenção a respeito de não ser Abelardo o iniciador desse

método :

Primeiramente, atente-se para o fato de que o método do sic et non, pró e contra, exame de opiniões divergentes, não surgiu com Abelardo pela primeira vez na história do pensamento humano. Já entre os gregos, no mundo ocidental, o método fora usado pelos filósofos (NUNES, 1979, P.257).

Nessa obra Abelardo diz que aquele que ensina deve ter cuidado no uso das palavras

para que seja compreendido. A Bíblia possui erros que foram cometidos pelos copistas e,

escritos de padres posteriores também. Portanto, deve-se tomar cuidado para não fazer

interpretações infundadas ao ler esses escritos. “Pode acontecer também que estão

apresentando a opinião alheia, e não o próprio pensamento .... Pode também ser o caso de

terem deixado a questão em aberto, não tendo chegado a uma definição (ABELARDO, 2005,

p.119)”.

O mestre Abelardo relata que quando são ditas coisas divergentes a respeito do mesmo

assunto é preciso examinar; saber se foi escrito a todos ou somente a alguns, verificar o

período, pois o que é proibido em um determinado tempo pode ser concedido em outro.

É preciso tomar cuidado ao fazer acusações dos escritos de santos padres, tendo

também a liberdade de julgar sem ter a necessidade de seguir o que está escrito.

O autor propõe que reúna as sentenças divergentes dos santos padres e procure a

verdade.

João de Salisbury e o Polycraticus

João de Salisbury nos mostra a escola parisiense por volta da segunda metade do

século XII, período subseqüente à Abelardo. Para o estudo da teologia ele prega um ensino

aprofundado nas artes do triviumiii .

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As escolas da metade do século XII se multiplicam, em torno de 20 mestres mantêm

uma escola privada, surge um bairro de escolas e “João de Salisbury se extasia com a

multidão de estudantes que povoam todo este novo bairro de Paris e lhe imprimem uma

atmosfera bastante particular de juventude e de dinamismo intelectual (VERGER, 2001,

p.61)”.

Não existia uma forma de organização única para todas, mas sim um foco escolar. Os

programas se enriquecem e a dialética se expande, inclusive diante do texto sagrado.

Sua obra Polycraticus é um exemplo do exercício da ética, que vem fazer parte do

ensino nas escolas.

O autor diz que o homem vive aspirando as coisas materiais, isso é um mal hábito

porém, se escolher desde criança o melhor modo de vida terá hábito agradável.O príncipe

obedece à lei, governa o povo, se preocupa com os problemas de todos, não se permitindo

nada que se oponha à justiça. O príncipe pune os delinqüentes não pela ira, mas pelo juízo de

uma lei. Já o tirano usa as leis à sua própria vontade, abusando de sua autoridade. Portanto, é

justo que a lei o desarme.

As classificações do saber no século XII

No início do século XII Abelardo trabalhava com os programas estreitos da Alta Idade

Média, já João de Salisbury e Hugo de Saint Victor participam de um alargamento no campo

dos saberes.

Os textos usados na Idade Média eram textos básicos chamados por ‘autoridades’,

sendo os mais antigos os mais importantes. Eram compostos pela Bíblia e completados pelos

textos dos Doutores da Igreja e por obras dos sábios e dos filósofos antigos – podendo ser

utilizados pelos cristãos com cuidado, pois se admitia que possuíssem parte da verdade.

Pouco a pouco, comentários de mestres contemporâneos ao século XII vieram se juntar a

esses textos.

A glosa nas letras, na teologia ou no direito e na medicina, era o breve comentário de um termo ou de um passo, feito de modo conciso e claro. ...No século XII a glosa desenvolveu-se num comentário mais amplo que, devido à extensão, não se escreveu mais à margem, mas se tornou um texto autônomo tal como, por exemplo, os comentários de Santo Tomás de Aquino às obras de Aristóteles (NUNES, 1979, p.249).

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A partir das décadas de 1130 e 1140 há um alargamento considerável do estoque das

autoridades estudadas. Tratou-se de dar versões mais bem apresentadas provendo de glosas,

houve uma busca aos textos negligenciados desde então e recolocados em circulação os

clássicos latinos. Podemos dizer que a renovação dos saberes ensinado procedeu por dois

caminhos no século XII: a melhoria dos métodos e a descoberta de novos textos.

Primeiro atente-se para o fato de que, desde o século XII, em todas as áreas de estudo procedeu-se à recuperação cultural do patrimônio antigo no mundo latino medieval, o que levou ao apego às autoridades, mas apego realizado com desembaraço e espírito crítico, como se colhe dos exemplos famosos de Abelardo e de Santo Tomás de Aquino que, junto com muitos outros mestres, não se limitaram a repetir lições dos Antigos, mas deram ao patrimônio do saber as próprias contribuições e lidaram quanto às fontes com critério pessoal e com independência de juízo (NUNES, 1979, p.256).

Um dos fenômenos culturais mais importantes do século XII, que se deu por volta de

1130, foi o grande movimento das traduções latinas. Estas traduções aconteceram por um

trabalho organizado com financiadores e equipes de tradutores. E, em todos os grandes

centros escolares, ao fim de alguns anos, estas traduções eram encontradas, transformando os

conteúdos e os ensinamentos, continuando na segunda metade do século.

E, para enquadrar o desenvolvimento do saber nas disciplinas buscou-se na

antiguidade grega e entre os árabes a ‘divisão das ciências’.

As sete artes liberais haviam atravessado toda a Alta Idade Média e se conservava no

século XII em duas categorias: o trivium que era as artes da palavra e do signo composto por

gramática, retórica e dialética e o quadrivium que era as artes do número e das coisas

composto por geometria, aritmética, astronomia e música.

Emprestando da tradição filosófica da Antiguidade sentiu-se a necessidade de

completar esse sistema de classificação das disciplinas com esquemas mais ambiciosos. Um

dos sistemas dividia a ciência em três ramos: a física ou filosofia natural, a moral, a lógica ou

filosofia racional. Um outro sistema distinguia a teórica (física, matemática e teologia)- vista

como domínio da especulação, a prática- vista como domínio do agir humano e a poética (arte

e artesanato)- vista como domínio da criação material.

Contudo, muitos dos ramos não eram lecionados por falta de mestres correspondentes

e, procurar-se-ia combinar estes dois sistemas em classificações mais bem acabadas. Nessas

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ramificações havia saberes com maior ou menor grau de nobreza, disciplinas dependentes e

outras dominantes.

Na década de 1130, Hugo de Saint Victor produz as classificações do saber mais bem

elaboradas do século XII.

Hugo de Saint Victor e o Didascalicon

Nascido na última década do século XI, chega a Paris por volta de 1115 e torna-se

mestre encarregado da escola fundada por Guilherme de Campeaux em Saint Victor em 1125.

Morre em 1141, tendo uma vida devotada ao estudo e ao ensino.

A abadia na época de Hugo de Saint Victor foi um dos principais centros da reforma

canonical e um foco importante da vida intelectual.

Dentre suas obras a que nos interessa aqui, Didascalicon, que foi definido como um

manual de estudos, simultaneamente para mestres e alunos.

Diante de seu apetite de saber, Saint Victor expressa o entusiasmo intelectual do

século XII.

Em Didascalicon, o autor define o campo de conjunto do saber e suas divisões

internas e, dá aos estudantes conselhos de método segundo uma ordem conveniente. Saint

Victor dá uma definição nova à Filosofia, sendo esta os princípios de todas as ações dos

homens. Perante esta definição muito ampla, para especificar sua natureza e suas relações

recíprocas, o autor apresenta uma classificação de seus diversos componentes.

Ao que se refere ao conhecimento das realidades inferiores denominou de ciência

‘mecânica’ e, ‘teórica’ e ‘prática’ ao que se refere à inteligência das realidades superiores.

Vem se juntar a estes três ramos uma quarta divisão: a lógica, ciência da linguagem e da

razão, Saint Victor compartilha com Abelardo da confiança na dialética, sendo uma

importante arma da razão e da inteligência humana no processo cognitivo.

No livro II de Didascalicon, Hugo de Saint Victor apresenta a classificação das

ciências dentro da filosofia.

Primeiramente define filosofia sendo todas as disciplinas e artes, sendo dividida em

teórica, prática, mecânica e lógica.

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A teórica se divide em teologia, matemática e física. Saint Victor define a teologia

sendo como um discurso sobre Deus, a matemática é subdividida em aritmética, música,

geometria e astronomia e, a física sendo o discurso que trata das naturezas.

A prática se divide em individual, privada e pública. A individual é própria dos

indivíduos, a privada dos chefes da casa e a pública dos reitores das cidades.

A mecânica é dividida em sete ciências: fabricação da lã, armamento, navegação,

agricultura, caça, medicina e teatro. A mecânica trata da fabricação de todas as coisas, tratam

do trabalho do artífice.

A lógica, ciência do discurso, se divide em gramática e raciocínio. A gramática trata

das palavras e o raciocínio é a teoria da argumentação. A teoria da argumentação se divide em

demonstração, prova e sofística. Faz parte da prova a dialética, que é a disputa, e a retórica,

que é o ato de persuadir sobre o que for conveniente.

Saint Victor instiga seus alunos para a indagação, a disputa, o debate, para as

incertezas do conhecimento da natureza que principiava a ganhar corpo no ambiente

intelectual que se desenvolvia nas escolas. Aliás, esse movimento nada mais é do que o

amadurecimento crescente da Escolástica que dominaria todo o sistema de ensino do século

XIII, nas universidades.

Assim, buscamos demonstrar que o século XII foi marcado pela renovação da

instituição escolar; pelo surgimento de grupos de pessoas com gosto pelo estudo, por novas

atitudes diante do saber, pelo gosto do debate verbal e da competição e pela transformação

nos conteúdos de ensino e dos métodos.

O Didascalicon teve grande sucesso até o fim da Idade Média, sendo uma obra de

referência. Descrevia uma nova atitude diante da renovação das disciplinas e do entusiasmo

dos estudantes, sendo um testemunho sobre a cultura de seu tempo.

Referência

SAINT VICTOR, Hugo de. Didascalicón – Da arte de ler. Petrópolis: Vozes, 2001. NUNES, Ruy. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979. DE BONI, Luis Alberto. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na idade média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. DE BONI, L. A. (org). Filosofia Medieval. Porto Alegre: Edipucrs, 2005.

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VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Bauru, SP: EDUSC, 2001. i Para se aprofundar em pesquisas referentes à Abelardo, sugere-se: DE BONI, Luis Alberto. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na idade média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. ii A Assembléia se reuniu na basílica do Latrão de 5 a 19 de março de 1179 para tomar as providências exigidas pelas circunstâncias. O Papa Alexandre III confirmou as decisões do Concílio. iii O trivium se refere as disciplinas: gramática, retórica e dialética.