O Ludodiagnostico e a Psicopatologia Inf
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O Ludodiagnóstico e a Psicopatologia Infantil: Compreensão e Intervenção junto a Crianças em Sofrimento Psíquico Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo
Nesse texto abordamos o Ludodiagnóstico como procedimento que os
psicólogos clínicos empregam em sua atuação junto a crianças, especialmente as que
apesentam sofrimento psíquico. Trata-se de técnica que pode ser usada para mediar o
contato com a criança, favorecendo a comunicação entre o psicólogo1 e seu pequeno
paciente. Permite que o clínico possa compreendê-lo e favorece a intervenção,
independente da manifestação psicopatológica da criança.
Trataremos do conceito de sofrimento psíquico, da tarefa diagnóstica e da
intervenção necessária. E traremos ilustrações clínicas, que evidenciam esse caráter do
brincar da criança, em especial pelo poder de mediar o contato com ela, usando
referencial teórico de base analítica nessa breve explanação.
Psicopatologia pode ter definições distintas, como o estudo das enfermidades.
No entanto, compreendendo pathos como sofrimento, pode-se pensar em Psicopatologia
como o estudo e a compreensão do sofrimento psíquico. No caso de crianças e
adolescentes, o estudo e a compreensão das manifestações relativas ao sofrimento que
sentem.
Nesse sentido vale a pena refletir sobre a noção de saúde, que é muito mais do
que ausência de enfermidade.
Diz Assumpção Jr (2008) mais do que simplesmente a ausência de doenças, a saúde
corresponde a um estado físico e mental relativamente liberto da dor e do
desconforto que permite ao indivíduo funcionar o melhor possível durante
a maior parte do tempo, em um ambiente no qual a casualidade ou a
escolha a colocaram.
1 Nesse texto nos referimos especialmente ao Ludodiagnóstico como procedimento empregado no Psicodiagnóstico e no processo psicoterapêutico de crianças. Esse procedimento é empregado por outros profissionais em distintas áreas: educação, em brinquedotecas, em hospitais , enfim na saúde, na educação, no lazer. E mesmo em Psicologia Clínica pode ser usada com adultos e idosos. Nesse texto abordaremos o emprego com crianças.
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Dessa forma, embora em Psicanálise, a partir de seu genial criador a noção de
que a infância é acompanhada de sofrimento e conflitos a serem enfrentados, houve em
alguns quadros uma demora em admitir a presença da manifestação, como no caso da
depressão infantil. Em Psicanálise se encontrem relatos de sintomas depressivos em
crianças e jovens, realizados por Abraham, Bowlby, Klein e Freud (Winnicott, 1983), o
Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA somente admitiu a existência da depressão
em crianças e adolescentes a partir de 1975. (Guerra, 2008)2
Assumpção (2008) estabelece que existe para a criança a possibilidade de
adoecer mentalmente; esse adoecer pode, inclusive, envolver algum grau de severidade;
existem benefícios na prevenção e no tratamento precoce dessas ocorrências; devem
existir recursos na comunidade que possam ser acessados quando necessários.
Vale refletir sobre sofrimento psíquico que pode acometer crianças e
adolescentes. Assim, conforme definimos (Tardivo, 2007), Barus-Michel (2001) se
dedica ao estudo da noção de sofrimento, dizendo que as qualidades que lhe são
atribuídas são diversas e esclarecedoras: ele pode ser, como a dor, agudo, vivo,
dilacerante, fulgurante, lancinante, surdo, atroz, intolerável, extremo. Os sinônimos para
esses termos apresentam toda a infelicidade do mundo: aflições, pesar, dilaceramento,
luto, tormento, desgosto, tristeza, angústia, infelicidade, dilaceração, abandono, mal-
estar, miséria, feridas. O sofrimento afeta o sujeito (a subjetividade) em sua unidade e
integridade, sua coesão e coerência. Corresponde ao que a Psicanálise atribui ao ego,
instância reguladora, preservando, nas ambivalências e contradições ( a divisão do
sujeito), e sob a pressão da realidade e das outras instâncias (id e superego), uma
unidade de identidade e uma estabilidade emocional. O sofrimento se refere, assim, a
sérias dificuldades de manter a continuidade e a integridade do eu.
O mal-estar, a doença, o patológico, literalmente o que é sofrido, é uma ruptura
ou desestabilização dessa unidade e desse equilíbrio, prossegue a autora (Barus-Michel).
Essa ruptura é experimentada como difícil de suportar, causando sensações
desagradáveis, equivalentes, no plano psíquico, à dor física, podendo a dor psíquica e a
dor física converterem-se uma na outra ou se sobreporem uma à outra. O sofrimento,
ainda de acordo com a mesma autora, refere-se a um excesso emocional que acompanha
uma interrupção do sentido ou uma representação difícil de se entender. Qualquer que
2Valter Guerra , DEPRESSĂO NA CRIANÇA E NO ADOLESCENTE: UM BREVE ESTUDO E UM OLHAR ATENTO enviado em agosto de 2008; recuperado em www.leilatardivo, 30 de junho de 2010
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seja o recurso a que recorramos ou a que nos direcionemos, ele tem a função de
rearticular. Dessa forma, o brincar da criança poderá favorecer a comunicação e essa
rearticulação tão necessária, nas diversas situações que muitas crianças e adolescentes
vivenciam, na relação terapêutica que se estabelece entre a criança e o psicólogo.
Abordando a tarefa diagnóstica, referimo-nos na ao modelo compreensivo
(Trinca, 1984) que emprega a psicanálise como fundamentação teórica.
Assim Trinca (1984) assim define o tipo de diagnóstico compreensivo:
(...) no diagnóstico psicológico, uma série de
situações que inclui, entre outros aspectos, o de encontrar um
sentido para o conjunto das informações disponíveis, tomar
aquilo que é relevante e significativo na personalidade, entrar
empaticamente em contato emocional e, também conhecer os
motivos profundos da vida emocional de alguém”.(p.15)
Ainda para o autor (Trinca, 1984), o processo de diagnóstico do tipo
compreensivo engloba fatores estruturantes que dizem respeito ao objetivo de elucidar
o significado das perturbações, visando assim a explicitação das funções das
perturbações e dos motivos inconscientes que se mantém. Há, também, uma busca de
composição psicológica globalizada do paciente, visando realizar uma síntese
dinâmica e estrutural da vida psíquica, considerando aspectos intrapsíquicos,
interfamiliares e forças sociais e culturais. São ressaltados, ainda, os aspectos de
centrar-se nos pontos nodais, produzindo julgamento clínico e a prevalência do uso de
múltiplas técnicas de exame fundamentadas na associação livre, aí inserindo-se a
Hora de jogo, como procedimento baseado na associação livre.
A HORA DE JOGO DIAGNÓSTICA, que em geral deve ser a primeira
entrevista com uma criança ou adolescente é equivalente à entrevista livre com o adulto.
E consideramos que a atividade lúdica é a forma de expressão típica da criança, e essa
técnica é um instrumento para o conhecimento. (Tardivo, 2006).
Ocampo, (1981) menciona para a Hora de Jogo Diagnóstica, como
indicadores de análise: escolha dos jogos, modalidade do brinquedo, personificação,
motricidade, criatividade, capacidade simbólica, tolerância à frustração e adequação à
realidade. Aberastury (1981) faz colocações sobre essa técnica e outros autores propõem
outros sistemas de avaliação. Honorato e Gebara (2004) embasando-se em Ocampo
(1981) e Garcia Arzeno (1995) , colocam que se trata de um recurso técnico utilizado no
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processo psicodiagnóstico com o objetivo de conhecer a realidade da criança a ser
consultada e que implica no vínculo transferencial breve para conhecer e compreender a
criança. As possibilidades de comunicação são mediadas e compreensão utilizando-se a
atividade lúdica, por meio de um brinquedo a criança pode expressar aquilo que
vivencia no momento.
No Psicodiagnóstico empregamos o enfoque que busca o sentido das
manifestações, ou seja, das condutas (Bleger,1975 ). Assim esse autor considera que
toda a conduta tem um sentido, e os sintomas são uma conduta, cujo significado
visamos alcançar. Também nos apoiamos na concepção de que o diagnóstico é feito
de forma indissociada da intervenção.
Atuamos em Psicologia Cínica, na qual se insere a Hora de Jogo valendo
conceituar a Psicologia não somente como a ciência dos fenômenos mentais, mas
como “o estudo de todas as manifestações do ser humano e estas se dão sempre,
realmente, no nível psicológico de integração” (Bleger, 1975 , p.35). O mesmo autor
dá uma visão que contempla os estudos que venho fazendo, bem como minha atuação,
quando diz
A psicologia clínica é sempre o campo e o
método mais direto e apropriado de acesso à
conduta dos seres humanos e sua
personalidade (p.28).
Assim consideramos o Psicodiagnóstico nessa perspectiva psicanalítica na
transformação de modelos metodológicos positivistas baseados na relação sujeito-objeto
para um tipo de relação que valoriza cada vez mais a relação entre sujeitos, como vimos
trabalhando (Tardivo, 2004).
Como realizamos o Psicodiagnóstico, os aspectos de investigação e intervenção não
podem ser vistos de forma dissociada. (Vaisberg, 1999)e Tardivo (2007). Autoras como
Ancona-Lopes (1995) e Santiago (1995) também apontam para a transformação da
visão diagnóstica como prática investigativa e interventiva ao mesmo tempo, e as
questões que decorrem deste processo.
Em nosso meio, Gil (2005) e Paulo (2004) com adultos, enfatizam a utilidade
clínica do método de psicodiagnóstico interventivo. Vimos trabalhando segundo essa
perspectiva (Tardivo, 2003), ao longo dos últimos anos, buscando trazer contribuições
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ao campo do psicodiagnóstico interventivo realizando pesquisas que têm aliado
diagnóstico e intervenção na prática clinica.
“Afirmamos que o papel do psicólogo
clínico como investigador e profissional que
intervem (papéis a meu ver indissociados) não é
nunca o de julgar, mas o de se aproximar para
compreender e, se possível, propor medidas que
possam levar a mudanças” (Tardivo, 2004).
Essa noção das relações entre investigação e intervenção tem respaldo nas
concepções de Winnicott (1971)que considera que a entrevista diagnóstica deve ser uma
entrevista de caráter terapêutico. Esse mesmo autor traz noções que são fundamentais
no enfoque que atribuímos à Hora de Jogo, bem como aos encontros com os pacientes.
Winnicott valoriza especialmente o brincar e a experiência cultural; vinculam o
passado, o presente e o futuro, e que ocupam tempo e espaço.” (Gil, 2011)
Nesse sentido, o Brincar é um dos elementos centrais da teoria do
desenvolvimento emocional proposto por Winnicott e ele evolui ainda mais
estabelecendo que a comunicação entre terapeuta e paciente está sempre embasada no
brincar. No brincar, tanto o bebê como a criança e, também o adulto estabelecem uma
ponte entre o mundo interno e o mundo externo por meio do espaço transicional, na
relação que se estabelece. Por essa condição, é possível conhecer e ao mesmo tempo
intervir. Ele ainda amplia essas noções colocando que “A psicoterapia se efetua na
sobreposição de duas áreas de brincar, a do paciente e a do terapeuta.”
Para refletir sobre a importância do jogo nas relações com crianças em situação
de sofrimento e como o brincar media as relações, possibilita a compreensão e favorece
a intervenção, traremos duas ilustrações clínicas. Trata-se de crianças atendidas no
APOIAR3 , a partir de parcerias com Instituições dedicadas à atenção a crianças em
situação de violência e de risco. 4
Começamos pela ilustração da Hora de Jogo como primeiro contato com uma
criança. Maria 5 , de sete anos, encontra-se institucionalizada devido à de negligência
por parte de seus pais. Foi encaminhada para atendimento, por suspeita que tenha 3 Amplo projeto inserido no Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Departamento de Psicologia Clínica do IP-USP 4 Os Termos de Consentimento foram assinados pelos Diretores da Instituição (que tem a guarda legal das crianças) , sendo que é permitido empregar o material para fins acadêmicos e científicos, como o do presente texto, mantendo-se o anonimato da Instituição e de todos os envolvidos no caso 5 Nome fictício, para manter o anonimato dos envolvidos no caso.
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sofrido abuso sexual por parte de seu pai, antes de ser abrigada e por apresentar
diversos sintomas que evidenciavam muito sofrimento: rejeição a qualquer
aproximação com técnicos homens e apresentava falta de controle esfincteriano,
(enurese e encoprese) . A mãe não confirma o abuso, calando-se e dizendo que o pai de
seus filhos fez algo que nunca poderá ser perdoado. Os irmãos (uma adolescente) eu um
menino menor também foram abrigados; a adolescente voltou a viver com a mãe. A
criança nunca aceitou falar sobre a suspeita de abuso nem com os técnicos do abrigo.
O primeiro contato com a criança com a psicóloga6, foi estruturado como uma
hora de jogo. Maria tendo entrado na sala onde havia brinquedos e matérias diversos à
mostra, parecia muito assustada, evitando qualquer contato visual com a psicóloga e não
respondendo a qualquer pergunta. A criança manteve-se quieta, sem se aproximar dos
brinquedos e não se manifestando mesmo quando a terapeuta a convidava para brincar.
Maria trouxera para o atendimento um caderno de sua escola e seu estojo, e a terapeuta
se interessou e ocorreu o primeiro contato visual entre ambas e começaram a conversar.
Ela disse que era o seu caderno da escola e se aproximou da terapeuta para mostrá-lo.
Ela não gostava da escola, mas não quis comentar porque, e voltou a se calar, evitando o
contato. A terapeuta depois de um lhe propõe o Jogo do Rabisco. Ela aceitou, utilizando
canetinhas dela e pedindo que a terapeuta também as usasse. Foram feitos três desenhos,
embora ela se recusasse a associar No primeiro desenho fizeram um coração; no
segundo desenho, ela fez uma bola e pediu para a terapeuta completar com riscos
dentro. No terceiro desenho, ela pediu que a terapeuta desenhasse uma bola e ela
preencheu todo o círculo com traços. Depois disso, Maria decidiu desenhar sozinha, e
fez um “parquinho onde ninguém brincava nele por estar chovendo”. Mais à vontade
(embora com dificuldade) Maria decide “jogar um joguinho”, a terapeuta a deixa
escolher e, ela pega o jogo da memória. Ela arrumou simetricamente as cartas em cima
da mesa, exigindo que a terapeuta virasse as que ela escolhia. Depois da primeira
partida – que ela “ganhou” por não deixar a terapeuta virar as cartas que lhe permitisse
fazer os pares, não foi mais possível continuar o jogo, pois Maria se detinha em
arrumar as cartas e procurar maneiras para que estas ficassem cada vez mais em ordem.
Ficou um tempo ali. Quando a terapeuta avisou que a sessão chegara ao fim, Maria
ficou aflita e começou a pegar todos os brinquedos que estavam expostos, dizendo que
6 Agradecemos o apoio das terapeutas do APOIAR do projeto de atendimento a crianças abrigadas, matemos os nomes das psicólogas que atendem os casos aqui apresentados, a fim de garantir o anonimato das crianças.
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queria brincar com eles, de forma agitada, denotando muita angústia; querendo todos
ao mesmo tempo. A terapeuta explicou que voltariam a se encontrar, e ela poderia
brincar novamente, aí Maria se tranquilizou e aceitou sair da sala, porem não quis se
despedir e voltou a se fechar.
Como primeiro contato, se pode perceber que Maria mostra inicialmente pela
dificuldade de brincar, toda a sua dificuldade de fazer contato, e sua intensa angústia. A
partir do interesse pelo que ela trouxe e da acolhida da terapeuta , Maria conseguiu se
aproximar, ainda que com muita angústia. Ela consegue fazer alguma atividade junto da
terapeuta ao concordar com o jogo do rabisco, atendo-se ao gráfico, de forma ainda
desconfiada. Os símbolos lembram afeto (coração), mas em seguida círculos cortados,
riscados e, no desenho que faz só fala de sua solidão e abandono. Contida e
compreendida, Maria consegue jogar. Ela controla a terapeuta e “ganha “ o jogo da
memória. Pode-se observar que ela tenta por meio do jogo vivenciar de forma ativa, o
que viveu de forma passiva (ela à mercê de adultos que a vitimizaram e
negligenciaram). Maria evidencia tentativas de se defender de tanta angústia,
“arrumando” de forma obsessiva as cartas. E de forma angustiada também se aproxima
dos brinquedos dos quais se afastou boa parte da sessão, e de forma extremamente
angustiada e descontrolada. Maria demanda cuidado no contato com ela. Quando é
acalmada, pela certeza do reencontro com a terapeuta, ela consegue deixar os
brinquedos e sair da sala, voltando se defender. Maria demonstra esse medo intenso do
contato, afastando-se e quando se aproxima busca controlar, e se apropriar do outro é de
forma muito intensa e angustiante. A partir da presença viva e continente da terapeuta,
Maria pôde se colocar e mostrar seu sofrimento, evidenciando-se também como , por
meio da atividade lúdica, uma forma de buscar uma elaboração dessas vivências tão
difíceis.
Pedro7, foi abrigado em 2008, quando tinha então 7 anos, foi abrigado e a
procura pelo atendimento pelos profissionais do abrigo ocorreu assim que conheceram
sua história de vida. Ele havia vivenciado situações intensas de sofrimento devido
negligência e violência a que fora exposto. Desde o contato inicial com os profissionais
do abrigo (psicóloga e assistente social), ambos referiam-se a Pedro com muita
afetividade e também com muito pesar devido à história de vida dele. Ao mesmo tempo
7 Nome fictício para manter o anonimato
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manifestavam esperança devido ao fato de ele poer ser adotado por uma família do
exterior.
A queixa principal que os profissionais trouxeram se referia à "instabilidade
emocional" , e comportamentos regredidos, sendo que Pedro apresentava enurese e fala
infantilizada, como bebê. Apresentava dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita,
e problemas para se expressar e de se defender frente à agressão dos colegas. Em
entrevista, esses profissionais relataram que Pedro fora abrigado devido a uma denúncia
feita pelos agentes do PSF (Programa da Saúde da Família) ao Conselho Tutelar. Pedro
ficava muito tempo preso sem o cuidado de um adulto, sem comida e água no barraco.
Os vizinhos temiam fazer a denúncia. Pedro ficou preso pelo padrasto (que se
identificava como pai) que o abandonava por períodos (deixando-o só e sem cuidados)
após o falecimento da mãe. Os vizinhos (que temiam o padrasto) fizeram uma pequena
abertura no canto inferior do barraco por onde eles passavam comida e água para que
Pedro se alimentasse e pudesse sobreviver.
Houve problemas sérios em demais membros da família, parentes da mãe (uma
tia que não cuidava dele quando ele a visitava e Pedro voltava ao abrigo em pior
condição) , por isso foi decidido a destituição do poder familiar, e o encaminhamento à
adoção.
Descrevemos um trecho de uma sessão de no terceiro mês de atendimento.
Pedro começa a sessão abrindo a caixa onde estão os brinquedos e resolve jogar com a
terapeuta, e vai formando pares e ele ganha. Conversa com a terapeuta, admite pela
primeira vez que não sabe ler e escrever. Também não sabe a data de seu nascimento.
Diz que não sabe de nada. A terapeuta o acolhe. Ele vai ao banheiro e ele começa a se
comunicar com a terapeuta por baixo da porta do banheiro. Primeiro brincando de atacá-
la (como se fosse uma arma). Depois lhe pedindo uma bebida também por baixo da
porta, por um pequeno espaço. A terapeuta “brinca” de passar um copo por baixo da
porta. E ele muito interessado pega, e logo joga fora. Nesse momento a terapeuta
consegue falar a ele que ele sabe coisas e está mostrando a ela. Ele continua brincando
e dramatiza situações de forte agressividade com bonecos. Dramatiza também a morte
de um bebê e de uma moça de forma muito violenta. Pedro vai ampliando a brincadeira
e mantem a situação de briga, pedindo a terapeuta que represente a polícia. Ele telefona
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e chama a polícia. Mas ao mesmo tempo ele fica do lado do “mau” e imitando uma voz
grossa e masculina diz: “ Só eu e você filho!”
Esse trecho mostra que Pedro se coloca como não sabendo nada, sentindo-se
pior que os outros. A partir da acolhida da terapeuta, ele dramatiza claramente situações
vividas por ele em sua vida o confinamento, e os contatos por baixo da porta. Ele é
alimentado por baixo da porta e também expressa a agressividade que ele vivenciou. É
importante destacar que Pedro tendo sido vítima de violência intensa, quando brica
toma o lugar do agressor, atacando e “matando” a terapeuta. Também vivencia o risco
de morte do bebê e a morte da uma mulher. Pedro pôde se comunicar com clareza, ser
acolhido e compreendido. Ao mesmo tempo, brincando pode experimentar muitas
emoções que precisam ser partilhadas, evidenciando-se o caráter de intervenção que
ocorria junto da possibilidade de compreensão que a possibilidade de brincar trouxe
para a terapeuta.
Pelos exemplos dados de forma breve se percebe o valor do brincar, do
ludodiagnóstico, como possibilidade de compreensão e intervenção junto a crianças em
sofrimento psíquico, configurando-se como possibilidade de atuação muito rica de
atuação e investigação em Psicologia Clínica.
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