O cavalo de Ariosto

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Cavalo de Ariosto O galope da loucura com a razão 1 Boa tarde! Pra começo de conversa, vamos deixar claro o que NÃO vamos fazer aqui: uma apresentação ou análise do poema Orlando Furioso, de Ariosto, tarefa tão insana como se tornará o próprio herói pelo amor da amada, se pretendida em vinte minutos. O que não nos impede de apresentá-lo, rapidamente: sua primeira edição, com 40 cantos, é publicada em 1516, tendo começado a ser escrito por volta de 10 anos antes e encontrando sua forma definitiva, decretada pelo próprio autor um ano antes de sua morte 1532, com 46 cantos. Orlando Furioso teria, como sabemos, a FORTUNA de se tornar não apenas um ícone da literatura universal, mas bastante popular em sua época, popular no sentido próprio da palavra, inclusive decorado e recitado por salteadores, conforme nos narram alguns dos biógrafos do Poeta, mas também com uma galeria ilustre de leitores, contra ou a favor, mas jamais indiferentes. Hoje, por exemplo, se o tempo o permitir, resvalaremos em dois de seus leitores: Maquiavel e Montaigne, mas de leve, quase que apenas um teatro de sombras projetadas em um anteparo, diante da luz do poema. Estamos utilizando a tradução do Prof. Ghirardi, do Depto de Letras, a primeira tradução 1 Antonio Herci Ferreira Júnior. Comunicação apresentada no Colóquio Humanismos do Renascimento”, realizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, de 28 a 30 de agosto de 2007. 1

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Ariosto e a poesia medieval

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Cavalo de Ariosto

O galope da loucura com a razo

Boa tarde! Pra comeo de conversa, vamos deixar claro o que NO vamos fazer aqui: uma apresentao ou anlise do poema Orlando Furioso, de Ariosto, tarefa to insana como se tornar o prprio heri pelo amor da amada, se pretendida em vinte minutos.

O que no nos impede de apresent-lo, rapidamente: sua primeira edio, com 40 cantos, publicada em 1516, tendo comeado a ser escrito por volta de 10 anos antes e encontrando sua forma definitiva, decretada pelo prprio autor um ano antes de sua morte 1532, com 46 cantos.

Orlando Furioso teria, como sabemos, a FORTUNA de se tornar no apenas um cone da literatura universal, mas bastante popular em sua poca, popular no sentido prprio da palavra, inclusive decorado e recitado por salteadores, conforme nos narram alguns dos bigrafos do Poeta, mas tambm com uma galeria ilustre de leitores, contra ou a favor, mas jamais indiferentes. Hoje, por exemplo, se o tempo o permitir, resvalaremos em dois de seus leitores: Maquiavel e Montaigne, mas de leve, quase que apenas um teatro de sombras projetadas em um anteparo, diante da luz do poema.

Estamos utilizando a traduo do Prof. Ghirardi, do Depto de Letras, a primeira traduo em verso para o portugus. Os primeiros oito cantos foram traduzidos integralmente alm de diversos episdios da obra. A edio de 2002, pela Ateli.

Trata-se de um poema pico de cavalaria, anunciado modestamente como continuao (gionta) de um poema anterior, Orlando Enamorado, escrito no sec. XV por outro poeta de Ferrara, Matteo Maria Boiardo. Este, por sua vez, buscou inspirao nos cantares picos da Idade Mdia italiana. J nos sculos XIV, ou mesmo no fim do sculo XIII podemos encontrar exemplos dessa tradio, como o Orlando e a Spagna (como indica o nome, sobre as lutas dos cristos contra os mouros que dominavam a Espanha).

importante afirmar logo de incio esta tradio pica, pois o entendimento do Orlando que fica louco passa pela importncia da tradio do prprio heri, tido como sensato (si saggio). E se quase inevitvel relacionarmos Orlando e Carlos Magno com a Frana e Cid com a Espanha como heris representantes de uma possvel nascente conscincia nacional importante lembrar que Orlando e Carlos Magnos continuam muito populares na prpria Itlia, na poca de Ariosto, pois eram, antes de tudo, figuras representativas da Cristandade, em luta contra o Isl.

[...] Se levarmos em conta, que Carlos era imperador romano e que seus paladinos defendiam valores que tinham em Roma o centro de referncia (a Igreja e o Imprio), perceberemos como [...] Carlos e Orlando continuavam, pois, populares na Itlia.

Pois bem, justamente esse heri sensato, configurado nos valores e tempos da cavalaria, esse paladino de Carlos Magno que agora vai aparecer como um louco enfurecido, que perdeu a razo por ser rejeitado por sua amada Anglica, tendo que recobrar seu juzo no mundo da Lua.

I

Ariosto, de fato, comea o poema dando a configurao que coloca o poema na tradio temtica dos picos de cavalaria:

Damas e paladins, armas e amores,

As cortesias e as faanhas canto

Alm do contexto, tambm a conjuntura histrica fixada pelo poeta:

Do tempo em que o mar d'Africa os rigores

Dos mouros trouxe, e Frana esteve em pranto;

Antes mesmo de nos falar da loucura de Orlando, fala da prpria loucura dos tempos, j que as guerras narradas so tambm elas obras da ira e fria de outro guerreiro [ira e furor juvenil], o jovem rei Agramante.

Ira os movia e juvenis furores

De Agramante seu rei, [...]

Que ousou vingar a morte de Troiano,

Em Carlos, rei e imperador romano.

E logo trata de introduzir nosso heri: Orlando. Mas o que vai se dizer dele AGORA, O que nunca se disse, em prosa ou rima [cosa non detta in prosa mai, n in rima]:

Que ficou, por amor, louco fremente,

Pondo a perder de homem cordato a estima; [I,2]

Como se no bastasse a Loucura do protagonista e loucura dos tempos, alm disso tudo, tambm a obra produto da prpria condio do poeta, que, tambm ele, confessa perder a sanidade pela amada. O poeta, tal qual seu protagonista, se faz demente.

[a] Isto, se aquela que me faz demente

E o pouco engenho me corri qual lima,

Assentir em poupar-me em tal medida,

Que eu possa dar a obra prometida. [I,2]

Mas, alm disso, tambm o poeta homem do mundo, e, servial do Cardeal Hiplito DEste (di poeta cavallar mi feo, dir em uma de suas stiras). Lembremos que o ducado de Ferrara justamente o exemplo dado por Maquiavel para a maior facilidade em se manter um principado hereditrio e acostumado linhagem de seus prncipes. E esta realidade efetiva das coisas, tanto quanto a loucura do prprio autor, esto pautadas desde o princpio, compartilhando com a configurao temtica e a situao histrica a compreenso da prpria extenso do enlouquecimento de Orlando, o que se tornou Furioso. Na dedicatria que faz em seguida Ariosto nos apresenta o poema justamente como

[b] A oferta do criado humilde vosso.

O que vos devo em grande parte vence

Quanto co ' o verbo e a pena pagar posso;

Nem por vos dar to pouco ingrato sou,

Pois do que posso dar, tudo vos dou.[I,3]

Os tempos, a sua realidade efetiva, so apontados de forma contundente quanto vistos da Lua, num momento realmente notvel da obra Orlando ir recuperar seu juzo no mundo da Lua, j que l no existe a loucura so tempos onde, efetivamente, reina a loucura, a fome e a misria, que no devem nada prpria loucura e furor dos mouros

[XXXIV,1: Oh famelice, inique e fiere arpie / ch'all'accecata Italia e d'error piena] ferozes, famlicas harpias,

Que nesta cega Itlia, de error cheia [...]

Crianas inocentes e mes pias

Desfalecem de fome, enquanto preia

Este bando cruel, que, sem demora,

O sustento da vida lhes devora.

O ponto privilegiado pelo poeta no o de cantar as glrias de seus contemporneos, num novo pensamento que, diramos hoje, desmistificaria os heris medievais, mas justamente cantar o enlouquecimento do paladino diante de novos tempos, novas configuraes de valores e juzos e uma Fortuna, presente desde a primeira trama do poema, responsvel por grande parte do que nos acontece, mas que nada pode contra a virtude, que pode, dessa forma abrandar-lhe a ao.

Que o juzo humano tantas vezes erra! [I, 7] e a

Fortuna d e tira todo o bem... Mas Poder contra a virtude s no tem! [III,37]

II

J na primeira cena propriamente de ao do poema podemos ver realadas ambas as questes a fora geradora da Fortuna e a mescla da razo e da loucura, nesta figura que chamamos de CAVALO DE ARIOSTO, e que tentaremos imaginar como uma espcie de paradigma de um tipo de razo que convive com sua contrria: ou a irrazo e a loucura propriamente ditas, ou com a incerteza ou enganao dos sentidos. O escopo de questes que esse tipo de razo aborda justamente o que admite respostas contrrias para uma mesma questo, sem que tais contrrios sejam, eles mesmos, contradies em seus prprios termos.

Tal razo parece buscar certezas, sem contudo oferecer certezas demonstrveis. Como quando digo o sol nascer amanh, do qual tenha l minha certeza, mas tenho tambm o sagacidade de saber que pode no nascer amanh, e que posso afirmar que o sol no nascer amanh sem que isso se torne uma contradio incompreensvel, mesmo que no to certa diante da minha convico que, no obstante, no pode demonstrar a certeza que tem dela.

Orlando e seu primo Rinaldo pretendem a mesma bela Anglica, princesa oriental. No entanto, para evitar um confronto entre aliados e seus arrimos, o Imperador coloca a moa sob custdia do duque da Baviera, espera da disputa no mais dos contendores entre si, mas concorrendo em herosmo contra o inimigo. O mais valoroso e com mais trofus ficaria com a bela Anglica.

Mas o que pensava Anglica disso tudo?!? A bela princesa oriental tinha, no mnimo, um forte esprito de sobrevivncia e pragmatismo diante das conjunturas adversas. Algum que

[...] encara o mundo todo com desdm

Nem cr que merec-la possa algum. [I, 49]

Justamente esse esprito pragmtico que a faz, na condio de prmio, esperar, mas refletir e considerar o andamento das coisas... E perceber que, apesar da configurao a que est atrelada, a de refm de valorosos guerreiros cristos, dos quais o melhor lhe merecer ser senhor, verdade tambm que a Fortuna no anda l muito favorvel a seus pretendentes, com todo o valor e boas intenes que possuam

Sentiu veio um pressgio esclarec-la

Que a Fortuna aos cristos baldara a lida.

Realmente, o duque abandonaria a tenda onde ela se encontrava. E sem que ningum percebesse, a bela princesa oriental, esperta como ela s, no teve dvidas, montou rapidamente o primeiro cavalo disponvel e ps-se em fuga, pondo em movimento a roda da trama.

E, sem que suspeitassem, foi partida.

Assim, entrou num bosque, e num carreiro [I,10]

Nessa fuga acaba se deparando com Rinaldo, um dos primos nobres cristo que disputa com Orlando a bela moa, que trava batalha com um pago, um muulmano representante, como dito na abertura do poema, do lado identificado pelo poeta como movido por ira e furor. Tambm este, desde que aparece, torna-se candidato apaixonado pela princesa oriental!

Anglica, evidentemente, pragmtica como sempre, no v l com muita boa vontade ficar ali, esperando o vencedor, e continua sua fuga, afastando-se de ambos e adentrando a mata.

Os dois combatentes, equivalentes em bravura e habilidade, separados por f e adversrios no amor, estilhaam-se em combate, at que um deles, Rivaldo, o lado da razo, observe o bvio: combatiam por uma princesa que, efetivamente, fugia dos dois, e fariam melhor suspendendo o combate e partindo, EM PARCERIA, em busca do objeto de desejo. A deciso sobre quem seria seu senhor ficaria para um segundo momento, aps o resgate.

Aceitam o acordo, mas Rivaldo, o autor da idia, lembra ao adversrio que havia perdido seu alazo Baiardo. Ento decidem, adversrios, seguirem ambos montados no mesmo cavalo, o do mouro e partem, num mesmo galope, atrs de Anglica, sem nutrir planos perversos entre eles.

Como outrora eram bons os cavaleiros!

Rivais no amor, a f os fazia diversos,

Doam-lhes na carne inda os certeiros,

Duros golpes, recprocos e adversos.

Mas iam juntos por selvas e carreiros,

Sem temer ou nutrir planos perversos. [I,22]

Assim como os dois cavaleiros a razo e a loucura travam um dilogo permanente em todo o poema, e central no entendimento da obra [central, como nos adverte o professor, at mesmo no captulo, 23 num total de 46 Cantos].

Razo e loucura ou irracionalidade no se excluem: caminham juntas. E a prudncia no est do lado da razo purificada da loucura humana, mas justamente na mediao da mescla com a incerteza, a dvida e a prpria loucura.

No podemos deixar de fazer um paralelo com o exemplo do centauro, dado por Maquiavel. Sabe-se que Quiron, um centauro, fora um dos grandes treinadores de heris da antiguidade. Pois bem

Ter um preceptor meio animal meio homem no quer dizer outra coisa seno que um prncipe deve saber usar ambas as naturezas [a racionalidade humana e a irracionalidade animal] e que uma sem a outra no duradoura. [O Prncipe, cap. XVIII]

A virtu no est na proporo da razo que tudo julga de forma demonstrativa ou racional, strictu senso, mas na proporo desta com a irracionalidade, do planejamento com o impondervel, da sensatez com a ousadia, usadas no momento certo, respondendo a uma "verit effettuale", [Prncipe, cap. XV] e no a uma construo puramente lgica, a immaginazione di essa.

Vale notar que senno, ou a prudncia [ou siso] para Ariosto, no a excluso dos diversi, mas a convivncia deles, no apenas juntos, mas num mesmo galope. Pode-se considerar que o poeta se refere a senno como sendo justamente uma RELAO entre a loucura e a razo, relao dinmica, onde no pode nem deve prevalecer completamente uma sobre a outra.

A loucura prevalecendo degenera nosso heri in furore e matto, loucura fremente. No entanto, a razo apenas prevalece por completo e soberanamente, no mundo da Lua.

III

Pelo resgate da sanidade de Orlando, Astolfo vai at a Lua, onde se encontra tudo o que est perdido na Terra, para l reencontrar o siso. Apenas fora do mundo dos homens no existe a loucura, que inerente a ele e na Lua encontra-se tudo o que se perdeu por aqui, sendo que o que mais se v o juzo, o siso da imensa maioria dos sbios.

Falo dos sbios, como nos dir mais pra frente Pascal, e no dos loucos. Eles perderam o siso e nem se deram conta.

No entanto, diante de um mundo novo e instigante, o mundo lunar, Astolfo no se perde, est ali por um objetivo preciso: recuperar o siso de Orlando e VOLTAR PRA CASA!!! Quem vai querer ficar vivendo na Lua?!?

A razo pura de loucura realmente pode ser encontrada na Lua, mas a recuperao do siso se d pela necessidade desta vida aqui da terra, mesmo impregnada de loucura. nessa cega Itlia vista da Lua que se encontra a prpria amada e onde, efetivamente, encontra-se a perspectiva humana, fruto de sua condio efetiva.

Paradigma

Esquecendo o imenso canteiro de obras que adentraramos ao abordar a questo da loucura com a razo, tentemos nos fixar apenas nas conseqncia que se pode tirar desse paradigma que tentamos fixar, apelidado aqui de CAVALO DE ARIOSTO.

A FIGURA: A razo e a loucura seja esta expresso da irrazo ou mesclada do sentido e das paixes, caminhando juntas em busca da verdade, seu objeto de desejo, num mesmo cavalo, numa galopada conjunta.

Se continuarem a disputa entre si, podem at mesmo chegar a um vencedor, mas escapa-lhes o prprio mote da busca, que aqui identificamos com a verdade, que foge no galope. Alm disso, a prpria vitria de uma sobre a outra no vai em si mesmo levar a lugar algum, j que no significa ser senhor desta princesa que se persegue. Em ltima instncia, a escolha de quem vai ser o senhor da princesa, vai caber prpria princesa, que vai, sabemos, no final preterir Orlando em nome de outro guerreiro [Medoro], causa de seu enlouquecimento.

Isso nos leva a concluir que, neste caso, tanto a razo quanto sua contrria no podem atribuir valor, apenas persegui-lo. Ou seja, alm de caminhar juntas, a razo e sua contrria no tm em si mesmas como valorizar a derrota ou vitria de uma sobre a outra, se no lhes arbitrar a disputa pela posse do objetivo que perseguem.

Em valores e habilidades equivalem, rivalizam na f, verdade, mas, paradoxalmente, sua outra rivalidade, o amor pelo objeto de desejo, torna-se seu ponto de cumplicidade, e ambos perseguem juntos.

Podemos, diante desta figura, tentar traar uma analogia com um tipo de retratao da razo, que se torna recorrente na modernidade, e que, uma razo soberana e rbitra diante de um sentido enganador, desvenda uma razo to enganadora quanto, quando se comporta instanciada em si mesma, perdendo a referncia com as questes concretas e extrapolando o campo demonstrativo para questes que no lhe so prprias. Caminham juntos, razo e sentidos, e no podem prevalecer completamente um sobre o outro, pois em ambos os casos perde-se o referencial efetivo sobre a verdade.

Montaigne, tambm leitor de Ariosto, vai nos afirmar tacitamente

Podemos opinar com conhecimento de causa, porquanto so nossos prprios sentidos os juzes: "Se nos enganam, a razo igualmente nos engana' [citando Lucrcio]." Poderemos forar nossa carne a admitir que chicotadas sejam ccegas? E nosso paladar a apreciar a babosa como um vinho Graves [Bordeau Branco]? O porco de Pirro entra aqui em apoio de nossa tese: no se apavora ante a morte iminente; mas se o batermos, gritar [Ensaios, I, XIV, O bem e o mal s o so, as mais das vezes, pela idia que deles temos]

Ao crescente e recente florescimento de uma razo sensata e rbitra suprema, acima da imaginao e aos sentidos, razo que busca expurgar a loucura ou a dvida para estabelecer uma verdade, o poeta ope justamente um dilogo da loucura com a razo, como que a afirmar que tambm as razes que hoje se mostram puras em relao loucura ou imaginao podem ser tambm elas transitrias ou mais ainda, mescladas de loucuras. A loucura de ontem muitas vezes hoje parece ter razo.

Assim como uma razo que tm por fundamento a verdade demonstrada pela impossibilidade e absurdo dela ou da afirmao contrria oferece um tipo de pensamento de VERDADES MESCLADAS, cujo PENSAMENTO CONTRRIO no contraditrio ou absurdo, certezas claras, mas indemonstrveis e incertas ou indistintas, como a j clssica afirmao de que o sol nascer amanh.

realmente insano perder-se por amor?!? realmente ajuizado viver no mundo da Lua, onde no h influncia da loucura?!? Qual dos lados, diante de tantos mortos, tanta fome e tantas cruis harpias, o da razo ou o da loucura, na disputa da f?!?

IV

Que vantagem tem o homem, de todo o seu trabalho, que ele faz debaixo do sol? A meta de nossa existncia a morte; se nos apavora, como poderemos dar um passo frente sem tremer? melhor ser amado que temido?!?

A primeira pergunta de Eclesiastes, citado por Montaigne em seu ensaio Filosofar aprender a morrer, que formula a segunda pergunta, sobre a morte. Se melhor ser amado que temido questionado por Maquiavel, numa retomada de um tema clssico entre os humanistas italianos.

Comer e beber, e gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, em que trabalhou debaixo do sol, todos os dias da sua vida. Feliz a morte que nos surpreende sem que haja tempo para preparativos. melhor ser amado, mas muito mais efetivamente eficiente ser temido.

Mas no estaramos em contradio pensar um pensamento contrrio, de qualquer das questes: que beber e gozar o bem do trabalho seja apenas uma vaidade e aflio de esprito; que preparar a morte nos d uma tranqilidade sobre ela; ou que o homem amado ser, sendo mais amado, mais respeitado.

Por que razes afirmaremos uma coisa? Por quais afirmaremos outras? O que pode mediar a questo?

As perguntas so de tal natureza que podem ser enlaadas num mesmo estatuto comum: parece-me que no buscamos propriamente responder questes, mas procurar respostas diante de questes que poderamos chamar de questes de fato, relacionados com a realidade efetiva das coisas, e demandadas por ela.

verdade que melhor ser amado que temido. Mas a resposta que eu procuro para uma outra pergunta:

Qual a melhor forma de conquistar e manter o poder?!?

Sabe-se, verdade, um guerreiro como Csar Borgia, por exemplo, implacvel com os inimigos e com os prprios soldados, e a execuo figura corriqueira. No entanto, verdade que tal temor economizou centenas de milhares de vidas e apontou para um valor mais alto: a soberania, neste caso, quem sabe, talvez at mesmo mais importante que a liberdade da repblica. Pois se verdade que a liberdade da repblica um bem inestimvel, tambm verdade que, dominados por uma potncia, no existir liberdade alguma, muito menos republicana. E, em certo sentido, uma vez temido e soberano, pode-se muito bem tornar-se tambm amado.

verdade que a morte um fim inevitvel, mas tambm verdade que pautar-nos por ela para traar a prpria vida, no parece ser uma boa soluo, nem tambm ignorar a prpria condio de mortal para considerar-se algo alm do que se efetivamente: humano!

Uma vez nomeado, diz o Eclesiastes, s o que s: homem!!! E se tudo se passar debaixo do sol para esta gerao, tambm verdade, dir Pascal, que outra gerao vir, e assim sucessivamente.

Quando nos colocamos questes com esse estatuto, temos como que uma sensao de que jamais ho de resolver-se, mas apenas deslocar-se num eterno vai e vem de situaes. Prazer, sentido, satisfao e certeza movimentam-se, seno nos livros, pelo menos em ns prprios num contnuo processo de aceitao e negao! Quem poderia afirmar um estatuto privilegiado, que num campo, o das cincias, construiria uma tal ordem de barreira que seria o dique disso tudo?!? Quem, numa certa idade, no se olhou no espelho um dia e no se perguntou: onde estou eu, que me prometi e no me cumpri?!?

V

Orlando louco, Orlando Furioso, desenraizando rvores, recomendado por seu sobrinho, no tem outra opo que a de buscar sua sanidade na Lua. Mas, aquele que vai Lua e l recupera sua sanidade, sabe da sanidade e sabe da insanidade. No mais nem um nem outro. Inclui ambos. Sabe o caminho de ida e volta.

Como diz o grande Piau, cantador de embolada, gnero musical que diante de um estribilho, vai tecendo um desafio entre dois pandeiristas. No caso, desafiavam-se o apaixonado e o realista, diante da figura da mulher amada, o trabalho ou a felicidade que teriam se apaixonando. No vou resgatar o poema, pois apenas ele teria essa maestria, mas o estribilho assim:

o lua o luar, o lua bonita e bela, na lua no tem janela, nem tem casa pra morar.

Ou seja: para o cantador nordestino no tem nada na lua, nem janela, nem casa pra morar, e, nos completa Ariosto, muito menos a amada est por l. Apesar de a Lua ser, daqui da terra, uma eterna fonte de inspirao.

Mas se entre os homens existe necessariamente a loucura, voltar para os homens voltar para ela... Mas, diante do fato de que falta algo de humanidade nesse antro de juzo, a loucura nos parece bem mais divertida e adequada nossa condio.

Razo dos efeitos. Existe um apetite que por definio insacivel; uma morte no pensada como fim; um componente de foras em cada convico; uma luta intestina, aberta ou silenciosa, entre a Autoridade e a Liberdade e, no final das contas, o melhor mesmo tornar-se amado, sendo temido.

verdade que temos, estabelecemos e valorizamos fundamentos. Mas verdade que, efetivamente, em determinados momentos nada mais valem do que uma aposta, uma promessa que, diante de nossa prpria condio, no passa de uma f, um hbito, um costume. A crena de uma objetividade racional e numervel anda, dessa forma, aliada a uma f impondervel e, por vezes, no irracional.

No Cavalo de Ariosto no quem busca que decide sozinho sobre o direito de obter o objeto de desejo, que estamos aqui relacionando verdade: esta arbitragem, pode-se dizer, acaba sendo negociada com a Fortuna, que, mesmo negociando j que no pode vencer a virtude, implacvel com o portador da prpria virtu. E no final, como vemos no enlouquecimento de Orlando, em determinadas questes, pesadas todas as razes, a escolha da verdade nos foge ao controle, e ela acaba abraando a loucura, pois tantas vezes erra a razo humana.

Na busca do sentido, o sentido j est dado pelo que se persegue. Na busca do conforto diante da deteriorao, a questo circular, j que estamos e no estamos, eternamente e necessariamente [ou efetivamente], conformados com isso, j que no temos escolha, e sempre ser reconfortante refletir sobre a questo, o que significa querer viver e temer morrer, ou querer e no temer. Para o PODER, melhor no ser amado ou temido, mas a administrao de tais coisas em vista da eficcia efetiva DE SUA APLICAO.

O que melhor, amar a vida ou temer a morte?!? melhor ser amado que temido?!? De que vale o trabalho do homem debaixo do sol?!? As respostas, quaisquer que sejam nossas crenas, sempre traro incorporados em si mesmas o seu pensamento contrrio, como formular mais propriamente Pascal, quando afirma a existncia de dois tipos de afirmaes verdadeiras: as demonstrveis e as indemonstrveis, ou por serem indemonstrveis, stricto senso, ou por admitirem seu pensamento contrrio sem cair em contradio ou absurdo. Mas, tal qual o porco de Pirro, temendo ou no a morte, tendo ou no intuio da condio ou ponderao sobre a fortuna, sentiremos a lapada no lombo, ou o amargo na lngua, ou o tdio do pregador, ou o temor de quem obedece a um costume.

Podem no ser distintas, parafraseando Leibniz, mas so certezas claras, verdades incontestveis que nossa prpria condio humana nos afirma, mesmo revelia de sua demonstrao lgica. Um no sei o qu a que se refere tambm Pascal, e que Leibniz nos diz que o que sentimos diante de uma obra de arte, por exemplo, uma certeza clara, sem bem que no muito distinta.

E na busca dessa gnese e metamorfose desse chamado pensamento contrrio que tentamos em Ariosto buscar um paradigma, QUE CONSIDERAMOS UM DOS FUNDAMENTOS DE QUALQUER HUMANISMO, DE TODOS OS TEMPOS: a convivncia da razo com seu pensamento contrrio, num mesmo galope, ajudando-se mutuamente.

Atravs de citaes mais poticas do que filosficas, do Eclesiastes, de Montaigne e Maquiavel tentamos ainda mostrar uma maneira de articular esse tipo de pensamento mesclado de certeza e incerteza, num encadeamento que tambm Pascal fixar na histria da filosofia como o movimento do Pr ao Contra, encadeamento de verdades umas dentro de outras de forma INSTANCIADA, reconhecendo o lado pela qual so verdadeiras, mas identificando por qual lado so falsas em outros contextos. Para procurar respostas, caminhamos da afirmao negao, tentando instanciar razes para um acontecimento qualquer em contextos diferentes. E que tem o tambm peculiar objetivo de no responder as questes, propriamente falando, mas buscar as razes de seu movimento, as razes de seus efeitos.

Acreditamos que a questo nos aponta para uma reflexo efetivamente humanista, e de FUNDAMENTAL importncia na conjuntura atual, justamente por assistimos fundamentao de uma nova constituio do pensamento hegemnico, baseado no controle das armas e da informao.

Tal pensamento justamente marcado pela imposio de um pensamento nico, que no admite seu contrrio. No por demonstrativamente tal contrrio no ser possvel, mas por uma recusa sistemtica e arbitrria, que justifica-se na segregao do outro negando-lhe a prpria lgica e nomeando o absurdo que se queira para justificar a excluso. Pautado pelo esmagamento dos conflitos, excluso do pensamento que lhe adverso e uma noo de verdade como uma exclusividade de seu detentor. Para esse pensamento nico, continuam sendo verdadeiros e valorosos tanto a luta pelos direitos humanos quanto os valores humanistas de todos os tempos. No entanto, a contraparte desse pensamento articular tais valores com uma perguntinha cnica e cruel, e que leva por terra qualquer conceito de humanidade, pois quebra-lhe justamente a diversidade e alteridade. Reconhecem o valor humano... Mas perguntam cinicamente por entre os dentes:

Mas, o que que se pode considerar humano?!? Ora, o que no se considera humano, no est passivo de ser humano...

Acredito que negar a possibilidade dessa pergunta a grande tarefa de ns, humanistas de todos os tempos e cores. No demonstrando sua falsidade, mas reafirmando valores arbitrariamente pautados e fundados na no excluso do pensamento contrrio no ajuizamento das nossas verdades anlogo a um movimento mais amplo: pautar a prpria existncia pela no excluso do pensamento da alteridade: um olhar para si mesmo, mas distanciado da exclusividade de si prprio, observando a loucura em que estamos imersos da Lua, mas querendo voltar para a condio efetiva da vida humana: continuar a busca e conviver com a Fortuna.

Bibliografia

ARANOVICH, Patrcia. Histria e poltica em Maquiavel. So Paulo: Dissertao apresentada USP/FFLCH. Orientadores: Maria das Graas de Souza e Francine Markovits , 2003.

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GHIRARDI, Pedro Garcez. Poesia e Loucura no Orlando Furioso. In: ARIOSTO. Orlando Furioso., 2002: 9-47.

LARIVAILLE, Paul. Itlia no tempo de Maquiavel: Florena e Roma. Traduo de J. Batista Neto: Companhia das Letras, 1988.

MAQUIAVEL, Nicolau. Machiavelli and His Friends: Their Personal Correspondence. Edio: James Atkinson e David Sices. DeKalb, Ill.: Northern Illinois University Press, 1996.

. O prncipe. Traduo Maria Jlia Goldwasser. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

MASTERS, Roger. Da Vinci e Maquiavel um sonho renascentista. Traduo: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

So Paulo, 29 de agosto de 2007

Antonio Herci Ferreira Jnior. Comunicao apresentada no Colquio Humanismos do Renascimento, realizado pelo Departamento de Filosofia da Universidade de So Paulo, de 28 a 30 de agosto de 2007.

(GHIRARDI 2002, pgina 11). In: (ARIOSTO 2002)

***O suporte: a imagem do poeta italiano loucura e a razo na mesma galopada em busca da amada; o tema: um movimento que, marcante no renascimento, torna-se central na modernidade: a crtica da razo, ou mesclada pela sua contrria sentido ou loucura [irrazo], ou povoada de incerteza.Atravs de cenas de Orlando Furioso, trataremos analogamente duas conseqncias dessa retratao da razo: a valorao do conflito e a impropriedade demonstrativa de questes de fato, em Maquiavel e Montaigne.

Palavras chave: renascimento italiano, poesia do, humanismo, conflito, pensamento contrrio.

***

Tanto que j no final do sculo XV, na Florena humanista de Loureno, o Magnfico, surgiu a idia de os celebrar mais uma vez. Foi essa idia o que levou a me de Loureno, Lucrcia, a procurar o poeta Luigi Pulci. Muito piedosa, alm de apreciadora da poesia dos cantares, Lucrcia esperava patrocinar uma epopia crist. Nisto, porm, se enganou. O poeta escolhido no conseguia exaltar ideais cristos: era homem cptico, o que se tornou evidente com o poema. Publicada em 1478, a obra revelou "um dos mais geniais caricaturistas da poesia universal, Luigi Pulci, que, no Morgante, alm de refazer gaiatamente as gestas de Carlos Magno, ajunta velha galeria de heris duas novas figuras bizarras, Margutte, o gigante pcaro, e Astarotte, o diabo- herege, corts e sbio"'.

As questes que estamos estudando so de uma sutileza intil?Por que so seguidas as antigas leis e as antigas opinies? Ser que a obedincia um novo dever, que precisa ser inventado para sustentar o da Justia?

O povo segue-o pela nica razo de julg-lo justo, do contrrio, no o seguiria mais. A liberdade a perfeio da sociedade civil, mas a autoridade essencial para sua prpria existncia.

; que o povo siga apenas pela fora; que a submisso deixe de ser objeto de escolha, passando a ser imposta pela autoridade.

Estavam, verdade, numa operao de resgate da amada. Bem diferente, reconheamos, de restagar a amada PARA SI.

Donde se pode afirmar que existe uma diferena essencial entre os dois casos.

Aa essncia do pensamento nico, passvel de multiplicidade, justamente conter em si mesmo a escolha final. Todos cavalguem meu cavalo, mas com a aceitao prvia de que o objeto de desejo MEU! Isso retira da amada o sua escolha: ela no pode interferir no processo. Inclusive o poder de banimento recurso do salvador: ele sim pode rejeitar a amada na ltima cena, pois ela se perverteu e no mais o que era.

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