Monografia_Casa das Águas: Terreiro de Mestres e Orixás

download Monografia_Casa das Águas: Terreiro de Mestres e Orixás

of 86

Transcript of Monografia_Casa das Águas: Terreiro de Mestres e Orixás

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAO SOCIAL

Casa das guas: Terreiro de Mestres e Orixs

Natal/RN 2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAO SOCIAL

Casa das guas: Terreiro de Mestres e Orixs

Cleidiane Vila Nova Santos

Monografia orientada pelo professor Ruy Alkmin Rocha Filho e apresentada ao Departamento de Comunicao Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial obteno do ttulo de Bacharel em Jornalismo.

Natal/RN 2011

Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Santos, Cleidiane Vila Nova. Casa das guas : terreiro de mestres e orixs / Cleidiane Vila Nova Santos. 2011. 83 f.: il. Monografia (Bacharelado em Jornalismo) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Departamento de Comunicao Social, Natal, 2011. Orientador: Prof. Ruy Alkmin Rocha Filho. . 1. Candombl. 2. Sincretismo (Religio). 3. Cultos afro-brasileiros. I. Rocha Filho, Ruy Alkmin. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

RN/BSE-CCHLA

CDU 299.6

CLEIDIANE VILA NOVA SANTOS

"Casa

das guas: Terreiro de Mestres e Orixs

Monografia defendida e aprovada com nota ________ em ______ de dezembro de 2011, pela Banca Examinadora constituda pelos membros abaixo indicados:

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Prof. Ruy Alkmim Rocha Filho (Orientador)

__________________________________________________________ Prof. Ana Lcia Gomes (Membro)

__________________________________________________________ Prof Itamar de Morais Nobre (Membro)

A minha famlia a quela de santo

AGRADECIMENTO

Todo trabalho o resultado de uma jornada coletiva, portanto, gostaria de expressar os mais sinceros agradecimentos a todos que colaboraram (direta ou indiretamente) com a concluso desta monografia. Ao Orientador, Ruy Alkmin, por ter aceitado acompanhar esta empreitada e sua ateno e incentivo para que me empenhasse cada vez mais para a concluso deste trabalho. E a todos os outros professores e funcionrios do DECOM/UFRN responsveis por minha formao. A todos os filhos de santo freqentadores da Casa das guas, sempre to atentos as minhas dvidas. Ao pai Z Maria por permitir a minha entrada na casa e compartilhar o seu saber comigo. Ana e Ednaldo, meus primeiros e grandes mestres na vida, pelo amor dedicado a famlia... Fbio, Fabola e Clvia, meus queridos irmos, que sempre me apiam e incentivam, parceiros importantes nessa jornada universitria; Rayanne, pela paz e alegria que trouxe junto a sua existncia no mundo; e a minha v Ana.

Luciano (com muito amor) e aos amigos que sempre estiveram presentes em minhas batalhas dirias, acompanhando e incentivando para que eu siga minha jornada, em especial, Rita Machado.

totalmente ruim impor uma impresso negativa para uma determinada religio em particular totalmente errado. Atravs da educao, ns tentamos minimizar essas emoes destrutivas e encorajar emoes construtivas.

(Dalai Lama)

RESUMO

O presente estudo tem o objetivo de analisar aspectos relacionados ao Candombl e Jurema no Rio grande do Norte. A monografia est estruturada em trs captulos. No primeiro, apresenta-se o referencial terico sobre as religies afro-brasileiras, o candombl e a Nao Jeje, abrangendo conceitos que possibilitam o estudo desenvolvido no captulo dois, sobre o Candombl de Caboclo e a Jurema em suas mltiplas significncias. Para justificar a metodologia utilizada e sua relevncia, inclui-se ao captulo trs tpicos sobre o documentrio enquanto gnero jornalstico e so apresentados os dados coletados mediante a realizao de um vdeo documentrio. Aps essa pesquisa podem ser enumerados alguns pontos conclusivos dentre eles: i) a relevncia do aprofundamento de estudos sobre a formao das religies afro-brasileiras; ii) o sincretismo que permeia a religiosidade no candombl; iii) a constituio de significados religiosos relacionados ao espao fsico onde se constituem ; iv) o documentrio enquanto gnero que possibilita a apreenso, a vivncia e o exerccio autoral. Palavras-chave: Candombl. Jurema. Sincretismo. Religies Afro-Brasileiras.

LISTA DE ILUSTRAES

Ilustrao 1: Rainha das guas - Imagem da Casa das guas...........................48 Ilustrao 2: Placa da Federao de Umbanda e Candombl do Rio Grande do Norte .....................................................................................................................50

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Natal RN. Centros de Umbanda e Candombl de Natal, por regies/bairros 2007 ..........................................................................................39 Tabela 2: Os Orixs ..............................................................................................54

LISTA DE GRFICOS Grfico 1: Natal - RN. Centros, por regio urbana ................................................38

12

SUMRIO

INTRODUO ...................................................................................................... 13

CAPTULO 1 RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS ............................................. 15 1.1 O candombl no Brasil .................................................................................... 18 1.2 Nao Jeje ...................................................................................................... 24

CAPTULO 2 - CANDOMBL DE CABOCLO .................................................... 26 2.1 Jurema ............................................................................................................ 28 2.2 O espao imaterial constitudo no Candombl e as relaes estabelecidas com a Jurema ....................................................................................................... 32 2.2.1 A Jurema expressa atravs do cantar-orar .................................................. 37 2.5 Terreiros no Rio Grande do Norte ................................................................... 40

CAPTULO 3 DOCUMENTANDO A CASA DAS GUAS................................. 43 3.1 Breves consideraes sobre Jornalismo ......................................................... 43 3.2 Gneros jornalsticos ...................................................................................... 44 3.3 O Documentrio no jornalismo ........................................................................ 45 3.4 A Casa das guas..............................................................................................................48 3.5 Oxum .............................................................................................................. 51 3.6 Il Ax ............................................................................................................. 52 3.7 Roteiro de Vdeo ............................................................................................. 71

CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 76

REFERNCIAS .................................................................................................... 78

ANEXOS ............................................................................................................... 83

13

INTRODUO

O presente estudo, intitulado Casa das guas: Terreiro de Mestres e Orixs apresenta um relato escrito e visual dos rituais e smbolos do Candombl que permeiam o terreiro Casa das guas, localizado na Zona Norte da cidade de Natal. Procurar a compreenso entre os aspectos da tradio popular e o culto dos Orixs foi a motivao primria para pesquisar e descrever sobre a Casa das guas e os rituais de Jurema e Orix, mediante a tentativa de entendimento sobre o que estes elementos abrangem em termos de significado e significncia. Ressalte-se, tambm, a inevitvel ampliao do conhecimento acerca do tema, contribuindo para os estudos do Candombl e de suas relaes com a Jurema no estado do Rio Grande do Norte. O objetivo primordial contribuir com o estudo do candombl, valorizar as culturas formadoras desta religio, reconhecer a contribuio do candombl e da jurema para a consolidao da identidade cultural nordestino-brasileira e promover uma reflexo sem preconceito em torno das diferenas religiosas em nosso pas. Como resultado deste (re)conhecimento, ser produzido um vdeo documentrio com as falas dos atuantes na religio. O presente trabalho vem corroborar o estudo dentro dos temas vdeo documentrio e religio, ressaltando a importncia maior que a pesquisa sobre estes aspectos. Porm, alm dos estudos generalizados do tema, buscamos entender um fator especfico: a representao do Candombl em um terreiro na Zona Norte de Natal, uma vez que esta a regio de maior nmero de terreiros registrados no Rio Grande do Norte. A realizao da pesquisa com imagens pretende avanar no sentido de apresentar exemplo de experincia com imagens, refutando o carter meramente ilustrativo das mesmas. Atravs das visualidades registradas no instrumento de pesquisa procuram-se significados no verbais que descortinem novos caminhos de aproximao para a compreenso de uma viso esttica e cultural.

14

Com este intuito se elegeu como instrumental terico a comunicao, atravs da autora Manuela Penafria e de suas contribuies a cerca do documentrio e a antropologia, atravs dos autores Reginaldo Prandi e Roger Bastide, como profundos conhecedores das religies afro-brasileiras. A metodologia adotada para a produo do texto escrito e audiovisual envolveu a escolha do tema, no primeiro momento. As prximas etapas envolveram coleta de material emprico (revistas, fascculos de jornais e sites da internet), visita de reconhecimento de espaos, elaborao e aplicao de questionrios, produo e gravao de imagens para o vdeo-documental. Desta forma, quanto aos fins, caracteriza-se como uma pesquisa exploratria e explicativa, alicerada em referenciais bibliogrficos. Sobre os meios, convm salientar que se trata de uma pesquisa de campo. A escolha dessa metodologia, de carter qualitativo, carrega consigo a intencionalidade da elucidao e entendimento sobre a temtica proposta Doravante, de acordo com essas orientaes, o estudo de caso insere-se no universo da Casa das guas, terreiro regido pelo Babalorix Z Maria, conhecendo e registrando as singularidades de cultuar os caboclos e orixs, nesta simbologia do sincretismo que reinventa a religiosidade nacional. A monografia est estruturada em trs captulos. No primeiro, apresenta-se o referencial terico sobre as religies afro-brasileiras, o candombl e a Nao Jeje, abrangendo a conceituao dos termos utilizados no decorrer do estudo em conjunto a um breve apanhado histrico sobre a forma como se constituram as religies afro-brasileiras. Esses elementos se mostram essenciais para o estudo desenvolvido no captulo dois, sobre o Candombl de Caboclo e a Jurema em suas mltiplas significncias, a questo do sincretismo e as peculiaridades da juno entre os dois tpicos. No captulo trs, em um primeiro momento, se versa sobre o documentrio enquanto gnero jornalstico, principalmente para que exista o entendimento sobre o porqu da adoo desta escolha para a elaborao da pesquisa. Neste mesmo captulo existe o desdobramento sobre os dados coletados mediante o estudo de campo realizado que possibilita a realizao do vdeo documentrio.

15

CAPTULO 1 RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS

No perodo compreendido entre o sculo XVI e XIX, existe a estimativa de que mais de trs milhes de escravos tenham sido transportados para as terras brasileiras. A populao negra, que fora escravizada, era oriunda, em sua quase totalidade, de Daom (Benin), da Nigria, do Congo, de Angola e Moambique. (BASTIDE, 1971) Com os povos africanos, vieram tambm os cultos religiosos de cada regio de sua origem, e que devido ao comrcio de escravos e a mistura destes, e tambm de rituais, originaram hoje as religies chamadas por muitos de afrobrasileiras ou africanistas. Mesmo com todo o processo inerente a esse sistema escravagista haver dispersado famlias e grupos tnicos mltiplos no pas, alguns traos foram mantidos. Um dos fatores que contriburam para a manuteno desses laos foi a poltica dos portugueses em separar os escravos utilizando como regra a diviso por naes. De acordo com Jensen (2001, p.01):O termo naes se refere ao local geogrfico de um grupo tnico e sua tradio cultural (por exemplo, os que falavam Yorub da Nigria eram os Nag, Ketu, Ijej, Egba etc.) A conseqncia inesperada dessa diviso foi que o conceito de nao desempenhou um papel importante para a manuteno de vrias identidades tnicas africanas e para a transmisso cultural e as tradies religiosas.

Na poca existia a restrio a qualquer prtica religiosa que no seguisse os princpios propalados pela Igreja Catlica de Roma; sendo assim, os escravos recebiam o batismo e deveriam, necessariamente, participar tanto dos sacramentos quanto das missas. Ainda de acordo com Jensen (2001), os escravos conseguiram a manuteno de determinadas caractersticas culturais apoiados em fatores como: a comunicao atravs de sua lngua materna; o nmero de lderes com bases religiosas dentre os mesmos e a constncia de novos escravos que eram trazidos. Evidencia-se que o culto aos Orixs e Voduns exerceu significativa influncia nas religies afro-brasileiras. Os Orixs e Voduns

16

eram cultuados como divindades nos grupos advindos da Nigria e de Benin, que falavam o Yorub. No continente africano, as divindades se vinculavam a um determinado aspecto da natureza e a uma nica famlia. Desta forma passvel de ser compreendido que, diante do processo escravagista e da diviso das famlias, houve uma mudana peculiar; pois essas divindades passaram a ser protetoras de diversos indivduos. Nesse contexto, o elo comum nas religies africanas que passavam a se desenvolver no Brasil, eram festividades destinadas aos Orixs e Voduns, envolvendo a possesso pelas divindades e o sacrifcio de animais. O incio das chamadas religies afro-brasileiras remonta ao sculo XIX. A intolerncia em relao s mesmas, ditada pela Igreja Catlica, permeia tanto o perodo da escravido quanto depois, com o advento da libertao dos escravos. Ser catlico garantia a legitimidade no meio social e isso induzia os negros a vivenciarem a religiosidade atravs dos Orixs e Voduns, mas

concomitantemente a se autodenominarem catlicos, freqentando os rituais associados ao catolicismo. Segundo apontamentos de Camargo (1961), evidente o sincretismo e os inmeros paralelos entre as divindades trazidas da frica e os santos da Igreja Catlica. O autor ressalta que tal pode ser comprovado atravs do candombl da Bahia, no xang de Pernambuco, no tambor-de-mina do Maranho, no batuque do Rio Grande do Sul e diversas outras; de acordo com os ltimos censos do IBGE, a denominao para todas termina por ser a de candombl. Sobre o sincretismo observa-se que:J no Brasil, aps os emprios de escravos; e, com suas convices religiosas, levaram um bom tempo para adapt-las ao Novo Mundo; misturando-se religiosidade de seus patres, aglutinando os Orixs aos Santos Catlicos (sincretismo), e que tambm mais tarde, houve a incluso a religiosidade do amerndio (nativo do Brasil). Das sobrevivncias culturais africanas no Brasil, as maiores influncias inicialmente foram no Nordeste e depois se estendendo h todo o Pas. A contribuio da frica, recebidas em nosso Pas, est em todas as divindades que recebemos direta ou indiretamente do Povo Africano / Negro Sudaneses (Nag / Anago) e Bantus. (RELIGIES 1 AFRICANAS NO BRASIL OU CHAMADAS DE AFRO-BRASILEIRAS)

Disponvel em: Acesso em: 26 nov. 2011.

1

17

No decorrer do processo de mudanas, constituinte das religies afrobrasileiras, nota-se que o culto aos orixs primeiro entrelaou-se ao culto dos santos catlicos e neste momento em que se reconhece como uma religio brasileira, atravs do carter sincrtico. Porm, na dinmica que emana da religio, apagam-se os elementos negros denotando caractersticas de

universalidade para estar inserida no meio social. Exemplo deste momento a origem da Umbanda. Surge um resgate das origens negras que possibilitam ao Candombl se transformar em uma religio destinada a todos. Finalmente retomou origens negras para transformar tambm o candombl. Esse processo de africanizao e dessincretizao carrega em seu interior o desejo de adquirir autonomia em relao ao catolicismo. Feitas essas consideraes, reconhece-se que a aceitao dos orixs pela sociedade em geral representa um passo importante e sua divulgao atravs da msica popular, das novelas de televiso e da literatura, entre outras formas de manifestao artstica, no deixa de ser um meio muito expressivo. (PIERUCCI , 1996) Conforme Prandi (2003), os seguidores dos orixs possuem como um dos pilares da prtica religiosa a eternidade das verdades e da perenidade inerentes da ritualstica envolvida. notrio que muitos dos saberes se perderam em razo das adversidades sociais e culturais enfrentadas, tais como a escravido, a displicncia de sacerdotes mais antigos (diante do fato de no compartilharem o conhecimento adquirido ancestralmente). O resgate deste conhecimento, destes saberes, fator que permite o revigoramento e o fortalecimento dos alicerces da religio e dos seus rituais. Nas religies dos orixs, cada terreiro possui absoluta autonomia, seja no campo administrativo, ritual ou doutrinrio, e as decises so perpassadas pela subjetividade da me ou pai-de-santo (AUGRAS, 1983). Prandi (2003) discorre que, sendo assim, cada comunidade de culto possui a liberdade para experimentar inovaes ou retornar s formas anteriores, incorporando prticas que para outros da mesma religio nem sempre possuem o mesmo sentido. Cada espao constitudo enquanto um terreiro tem o direito de copiar e incorporar novidades, mas usual produzirem outras significncias. Terreiros surgem uns dos outros, porm no existem da mesma maneira, contam com caractersticas prprias, mesmo quando utilizados parmetros entre os

18

terreiros mais antigos, originados de uma mesma matriz fundadora. (PRANDI, 2003)

1.1 O candombl no Brasil

A classificao geral de candombl rene em um mesmo rol as religies afro-brasileiras tradicionais, conforme citado anteriormente, ou seja: as que se formaram a partir do sculo XIX (candombl, xang, tambor - de - mina, batuque). Adota-se o ano de 1830 como data do nascedouro do primeiro terreiro de Candombl, no nordeste, mais precisamente na Bahia. Estas novas religies apareceram primeiro na periferia urbana brasileira, onde os escravos conseguiam uma relativa liberdade de movimento, possibilitando que se organizassem em naes e, estas, se espalharam no Brasil, e tomaram os diversos nomes citados no pargrafo anterior. (JENSEN, 2001) Bastide (1945, 1971, 1978) percorre em seus estudos diversas instncias relacionadas religiosidade afro-brasileira e aponta o Candombl como uma espcie de instituio de resistncia cultural, sendo inerentemente dos africanos, em um primeiro momento; para assumir-se como dos afro-descendentes, possuindo em sua verve a resistncia escravido e aos meandros de dominao da sociedade branca e crist que havia marginalizado os negros e os mestios mesmo aps a abolio da escravatura. Seriam religies de preservao do patrimnio tnico dos descendentes dos antigos escravos. Convm ressaltar que Roger Bastide j observava a presena de brancos no candombl no final da dcada de 1940, pr anunciando a transformao do candombl e congneres em religies de carter universal. Religio que passa a constituir-se como pertencente a todos, o candombl enfatiza a idia de que a competio enfrentada no meio social muito mais acentuada do que se presume, sendo necessrio chegar a nveis de conhecimento mgico e religioso muito mais densos e cifrados para melhor competir em cada instante da vida. Seria atravs do poder auferido pela religio que se aumentariam as possibilidades de minimizar ou eliminar fatos considerados negativos. enfatizada a subjetividade e a complexidade do ser

19

humano, com a variada gama de sentimentos e desejos inerentes sua prpria condio enquanto ser inserido no Universo, existindo a possibilidade da escolha, da deciso e das opes. No existe a negao ou a dissociao entre o que seria o mais apropriado. Tudo ocorreria de maneira simultnea. Atua como uma mediadora, oferecendo o que Prandi (1996) chama de agncia de servios mgicos, destinada aos no praticantes para conseguirem solues para problemas no resolvidos atravs de alternativas, sem existir a necessidade do envolvimento com a religio. Esses servios passaram a atender um amplo rol de clientes, com o jogo de bzios e os ebs2 do candombl se popularizando, concorrendo com a consulta aos caboclos e preto-velhos da Umbanda. (PRANDI, 1991 e 1996). Parcela importante da legitimidade social que a cultura negra do candombl pode desfrutar na atualidade est vinculada esttica formulada pela classe mdia intelectual, e formadora de opinio, do Rio de Janeiro e de So Paulo nas dcadas de 1960 e 1970, que adotou e valorizou aspectos negros da cultura baiana, seus artistas e intelectuais. Dando incio ao processo de

africanizao do candombl, onde o retorno deliberado tradio significa o reaprendizado da lngua, dos ritos e mitos que foram perdidos na adversidade da Dispora; reconhece-se a volta frica no para resgatar o ser africano e tampouco para ser negro, mas para se assenhorar de um patrimnio cuja presena no Brasil denota motivo de orgulho e de sabedoria e assim ser o detentor de uma cultura que prima por ser negra e brasileira, porque o Brasil passa a se reconhecer em concomitncia aos orixs. (PRANDI, 1991) O termo Candombl possui como origem o dialeto de Naes Bantu, do idioma kimbundo. Se originando da palavra Kandombe (ka = costume, uso; + ndombe = preto, costume dos pretos), que quer dizer em africano: Dana antiga africana de Naes Bantu, sem nenhum sentido religioso na frica, espcie de batuque ou batucada, com vrios instrumentos, inclusive com tambores. A funo do Candombl Afro-Brasileiro (baianos e outros) se relaciona ao local onde so realizadas as cerimnias de certos cultos que abrangem rituais de origem africana2

Ebs: So rituais que visam corrigir vrias deficincias na vida de um ser humano (sade, amor, prosperidade, trabalho profissional, equilbrio, harmonia familiar, etc.) A composio de cada Eb depende da sua finalidade, e os seus componentes vo desde bebidas a frutas, folhas, velas, adornos, alimentos secos, mel, leo de palma, louas, artefactos de barro ou gata., etc.. (Disponvel em: Acesso em: 28 nov. 2011)

20

e o sincretismo catlico e indgena (nativo do brasileiro). Com relao a certos rituais, como o jogo de bzios, houve muita reserva; talvez motivo pelo qual poucos so os que tm mo-de-jogos (onif = mo de If / Aquele que tem poder de adivinhao e do destino {odu}). Hoje no Candombl Afro-Brasileiro, no jogo de bzios, toda ao procedida de um orculo j pr-estabelecido, sendo a frmula mais fcil de aprendizado. Dando, desde a origem da pessoa at os procedimentos cotidianos, tartamudeando pelo diagnstico dos problemas que afetam a vida do consulente e pela prescrio dos sacrifcios de animais, caso sejam necessrios sua soluo. Usando, na maioria das vezes, a feitura de orixs, como soluo pela inexperincia de outros recursos. (RELIGIES AFRICANAS NO BRASIL OU CHAMADAS DE AFRO-BRASILEIRAS)3 Prandi (1991) aponta o quanto o candombl trilhou um caminho onde foi alm de suas fronteiras geogrficas, abandonando delimitaes originais de raa e etnia dos seus fiis e ampliando seu territrio. Cada vez mais foi se fazendo compreensvel atravs da imagem apreendida pelas artes e costumes de uma sociedade consumista e multifacetada, estando presente em esferas culturais de cunho no religioso, como a literatura, o cinema, teatro, msica, carnaval, televiso, culinria etc. No interior das religies afro-brasileiras, o pequeno candombl foi crescendo. Um fator que deve ser mencionado o movimento de africanizao do candombl e sua constituio enquanto uma religio autnoma, entremeada ao mercado religioso e passando por um processo de dessincretizao, com o abandono de signos, prticas e crenas de origem catlica. a descatolizao do candombl, que se desarraiga do catolicismo e se mostra como religio autnoma. Porm, o processo de africanizao do candombl desigual e depende das diferentes situaes com que se depara aqui e ali. (PRANDI, 1991) O candombl pressupe o conhecimento e o uso de foras sobrenaturais para interveno no mundo, valorizando a questo do rito e do segredo inicitico(Er). Assim como Prandi (1991) ressalta, Pierucci (2001) tambm aponta que mesmo com o sacerdcio religioso, a magia adquire contornos de

3

Disponvel em: Acesso em 26 nov. 2011.

21

uma atividade profissional paralela de pais e mes-de-santo, voltada para uma clientela religiosamente alheia religio africana. Prandi (2001) explica que para os iorubs tradicionais e os seguidores de sua religio nas Amricas, os orixs so deuses que receberam de Olodumar ou Olorum, denominado como o Ser Supremo, a incumbncia de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsvel por alguns aspectos da natureza e certas dimenses da vida em sociedade e da condio humana. Na frica, a maioria dos orixs possui culto relacionado a um local especfico, limitado a determinada cidade ou regio, enquanto alguns tm culto difundido quase toda a extenso das terras iorubs. Muitos orixs so esquecidos, outros surgem em novos cultos. Calcula-se hoje mais de 400 Orixs nas Amricas, porm, destes, dezesseis so os mais invocados, pois eram deuses guerreiros e assim sobreviveram no Brasil. De acordo com Santos (1975), alguns autores sustentam que os orixs so ancestrais divinizados, chefes de linhagens ou de cls que, por haverem sido participantes de atos excepcionais durante suas vidas, transcenderam os limites de sua famlia ou de sua dinastia, passando a serem cultuados por outros cls at se tornarem entidades de culto nacional. Santos (1975) ressalta, no entanto, que no faz parte do escopo de seu estudo analisar uma hiptese advinda de uma longnqua gnese humana dos orixs, fazendo questo de frisar que os orixs esto associados origem da criao e sua prpria formao e seu ax foram emanaes diretas de Olrun. J os ancestrais (os egns) esto associados histria dos seres humanos. Pertencem a categorias diferentes: os orixs esto especialmente associados estrutura da natureza, do cosmo; os ancestrais, estrutura da sociedade. (op.cit., p.102). O orix seria um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vnculos que lhe garantiram um controle sobre foras da natureza, tais como o trovo, o vento, as guas doces ou salgadas, ou assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caa, o trabalho com metais ou, ainda, por ter apreendido o conhecimento das propriedades das plantas e a maneira de us-las. O poder (ax) do ancestral-orix teria, aps a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenmeno de possesso por ele provocada. (VERGER, 2002, p.18).

22

Verger (2002) estabelece um estudo onde est presente a existncia histrica, pois pressupe um ancestral que foi divinizado; tambm se refere ao orix como uma fora pura, ax imaterial. Esse ax, de acordo com o autor, s se torna perceptvel aos seres humanos incorporando-se em um deles.Esse ser escolhido pelo orix, um de seus descendentes, chamado seu elgn, aquele que tem o privilgio de ser montado, (gn), por ele. Torna-se o veculo que permite ao orix voltar terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram. (Op,cit.,19).

O autor ressalta as caractersticas arquetpicas implcitas na relao entre o homem e o orix. Tal fato poderia ser observado diante do candombl haver aumentado o nmero de seus adeptos, no sendo constitudo somente de mulatos, mas tambm de europeus, de asiticos; enfim, de indivduos destitudos de razes africanas. O carter arquetpico estaria evidenciado desta forma. Todos os seres humanos, sejam africanos e no-africanos, possuiriam em comum, tendncias comportamentais relacionada a um orix especfico:(...) como a virilidade devastadora e vigorosa de Xang, a femilinildade elegante e coquete de Oxum, a sensualidade desenfreada de Oi Ians, a calma benevolente de Nan Buruku, a vivacidade e a independncia de Oxssi, o masoquismo e o desejo de expiao de Omolu, etc. (op. cit.,p. 33 e 34)

Estas tendncias de arqutipos da personalidade estariam escondidas nas pessoas; e o estudioso ressalta o termo escondida porque, segundo ele, no h dvida de que certas tendncias inatas no podem desenvolver-se livremente no decorrer da existncia humana, pressupondo-se que talvez elas entrem em conflito com as regras de conduta, admitidas no meio social. Este autor assegura ainda que uma pessoa escolhida como filho, ou filha-de-santo, pelo orix, cujo arqutipo tem relaes com as tendncias escondidas. Ento, esta ser para a pessoa, a experincia que causar alvio e conforto: No momento do transe, ela comporta-se, inconscientemente, como o orix, seu arqutipo, e exatamente a isso que aspiram as suas tendncias secretas e reprimidas, conclui Verger. (ibidem). Por fim, Verger ressalta que a passagem da vida terrestre condio de orix desses seres excepcionais, possuidores de um ax poderoso, produto de

23

um momento de paixo, onde se originam lendas e mitos que preservam a lembrana.4 Conforme salientado anteriormente, as naes originaram-se em razo da separao das famlias e da manuteno de indivduos com etnia, dialeto e cultura advindas das mesmas regies. Diante disso, Prandi (1995), discorre que:Na chamada "nao" queto, na Bahia, predominam os orixs e ritos de iniciao de origem iorub. Quando se fala em candombl, geralmente a referncia candombl queto e seus antigos terreiros so os mais conhecidos: a Casa Branca do Engenho Velho, o candombl do Alaketo, o Ax Op Afonj e o Gantois. Mes-de-santo de maior prestgio e de visibilidade que ultrapassou de muitos a portas dos candombls tm sido destas casas, como Pulquria e Menininha, ambas do Gantois, Olga, do Alaketo, e Aninha, Senhora e StelIa, do Op Afonj. Candombl queto tem tido grande influncia sobre outras "naes", que tm incorporado muitas de suas prtica rituais. Sua lngua ritual deriva do iorub, mas o significado das palavras em grande parte se perdeu atravs do tempo, sendo hoje muito difcil traduzir os versos das cantigas sagradas e impossvel manter conversao na lngua do candombl. Alm do queto, as seguintes naes tambm so do tronco iorub (ou nag, como os povos iorubanos so tambm denominados): ef e ijex na Bahia, nag ou eba em Pernambuco, oi-ijex o batuque de nao no Rio Grande do Sul, mina-nag no Maranho, e a quase extinta "nao" xamb de Alagoas e Pernambuco. A "nao" angola, de origem banto, adotou o panteo dos orixs iorubas... assim como incorporou muitas das prticas iniciticas da nao queto. Sua linguagem ritual, tambm intraduzvel, originou-se predominantemente das lnguas quimbundo e quicongo. Nesta "nao", tem fundamental importncia o culto dos caboclos, que so espritos de ndios, considerados pelos antigos africanos como sendo os verdadeiros ancestrais brasileiros, portanto os que so dignos de culto no novo territrio em que foram confinados pela escravido. O candombl de caboclo uma modalidade do angola centrado no culto exclusivo dos antepassados indgenas (Santos, 1992). Foi provavelmente o candombl angola e o de caboclo que deram origem umbanda. H outras naes menores de origem banto, como a congo e a cambinda, hoje quase inteiramente absorvidas pela nao angola. A nao jeje-mahin, do estado da Bahia, e a jeje-mina, do Maranho, derivaram suas tradies e lngua ritual do ew-fon, ou jejes, como j eram chamados pelos nags, e suas entidades centrais so os voduns. As tradies rituais jejes foram muito importantes na formao dos 5 candombls com predominncia iorub.(PRANDI, 1995)

Circunscrito a esse universo, em razo do foco do estudo realizado, o enfoque do prximo item dir respeito Nao Jeje.

4 5

Disponvel em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0114346_05_cap_03.pdf

Horizontes Antropolgicos. v. 1, n. 3 (1995).

24

1.2 Nao Jeje Como referido no incio deste estudo, o termo nao associa-se a uma localidade geogrfica de determinado grupo com iguais caractersticas tnicas e culturais. Observou-se que mediante tal conceituao existiu a possibilidade da transmisso de aspectos vinculados cultura e religio destes grupos tnicos.6

A palavra JEJE vem do yorub adjeje que significa estrangeiro, forasteiro. Portanto, no existe e nunca existiu nenhuma nao Jeje, em termos polticos. O que chamado de nao Jeje o candombl formado pelos povos fons vindo da regio de Dahom e pelos povos mahins. Jeje era o nome dado de forma pejorativa pelos yorubs para as pessoas que habitavam o leste, porque os mahins eram uma tribo do lado leste e Saluv ou Savalu eram povos do lado sul. Todas essas tribos eram de povos Jeje. Os primeiros negros Jeje chegados ao Brasil entraram por So Lus do Maranho e de So Lus desceram para Salvador, Bahia, e de l para Cachoeira de So Flix. Toda casa Jeje, em sua contextualizao primria, deve ser situada afastada das ruas, dentro de florestas, onde exista espao com rvores sagradas e rios. Depende das matas, das cachoeiras e dos animais. Os cultos so realizados com os animais tais como, o leopardo, crocodilo, pantera, gavio e elefante que so identificados com os voduns. Ento, este espao sagrado onde fica a casa Jeje, chama-se Runpame, que quer dizer "fazenda" na lngua EweFon; o local onde fica situado o candombl. Para os povos Jeje, as divindades cultuadas so os voduns. Eles so serpentes que tem origem no fogo, na gua, na terra, no ar e ainda tem origem na vida e na morte. Portanto, a divindade patrona desse culto Dan, a "Serpente Sagrada", ou Becm. Muitos voduns tem seus assentos nos ps de rvores consideradas sagradas.

JENSEN, Tina G. Discursos sobre as religies afro-brasileiras: Da desafricanizao para a reafricanizao. Revista de Estudos da Religio N 1 / 2001 / pp. 1-21. Disponvel em: www.pucsp.br/rever/rv012001/p_jensen.pdf. Acesso: 11/nov/2011

6

25

Quando as vodunses esto em transe ou incorporadas com seu vodun os olhos permanecem abertos, ou seja, os voduns Jeje abrem os olhos, diferente dos orixs dos yorubs, que mantm os olhos sempre fechados. A nao Jeje muito particular em suas propriedades. uma nao que vive de forma independente em seus cultos e tradies de razes profundas em solo africano e trazida de forma fiel pelos negros ao Brasil.7 Incorporando, claro, tradies existentes no Brasil e at mesmo de outras naes, como veremos no estudo de caso descrito no captulo trs.

7

NAO JEJE. Disponvel em: http://paulodeoxala.sites.uol.com.br/html/jeje.htm. Acesso: 20/nov/2011.

26

CAPTULO 2 - CANDOMBLS DE CABOCLO

Carneiro (1988) um dos pesquisadores a fornecer uma descrio detalhada desses cultos, apontando para as principais diferenas entre o candombl dito "tradicional" e o candombl "de caboclo". Segundo ele, no candombl de caboclo, alm da introduo desses novos personagens ao lado dos orixs, o tempo da iniciao foi drasticamente reduzido, os tambores so batidos com a palma da mo, os filhos-de-santo so possudos por vrios "encantados" e no se recolhem para trocarem as vestimentas quando incorporados. De maneira dispare encontrada no candombl "tradicional", a representao dos personagens invisveis aceitaria comportamentos associados natureza humana, pois os encantados falam, bebem, fumam e apresentam-se com a ajuda de um canto. De acordo com o autor, tais no se restringem aos iniciados, alcanando qualquer indivduo da assistncia. salientado, tambm, o estilo diferente da dana nos candombls de caboclos em contrapartida coreografia nos terreiros "tradicionais". Carneiro descreve que a primeira "animada, vivaz e decorativa, permitindo muito de iniciativa pessoal", e a segunda seria "pesada, desgraciosa e montona". No entanto, essas diferenas, que se organizam em torno da ritualstica, no constituem critrios fechados que proporcionem uma classificao rgida dos terreiros. Dentre os elementos simblicos introduzidos no sistema religioso, o termo caboclo surge relacionado ao significado de um "protetor", para designar os seres invisveis representados pelos mdiuns. Prandi, em seu artigo A Dana dos Caboclos discorre e analisa, do ponto de vista histrico e religioso ou espiritual, o surgimento do candombl de Caboclo. Sero utilizados apontamentos derivados de seu estudo para a elucidao, conceituao e apontamentos que justificam a relao estreita com a Jurema, enquanto conseqncia de toda uma dinmica.8

8

Para informaes complementares sobre o tema, recomenda-se o acesso atravs da pgina disponibilizada pelo pesquisador atravs do link na Internet: < http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/>, acessada em: 03 dez. 2011.

27

As peculiaridades relacionadas s lnguas e aos ritmos bantos da regio do Sudo, em conjunto ao rol de divindades e seus mitos, s cerimnias e procedimentos iniciticos, foram fundamentais para formao de um quadro religioso afro-brasileiro peculiar: o culto ao caboclo. O fato dos bantos terem chegado antes dos iorubs e dos fons ao Brasil, e estarem adaptados aos costumes no pas, pois dominavam o idioma portugus e haviam assimilado os preceitos catlicos, no lhes conferia uma identidade diferente da africana. Terminavam por serem africanos e brasileiros, de modo concomitante. Em razo de suas origens meridionais na frica, cultuavam os antepassados, que haviam ficado na terra, nas aldeias de onde se originavam: os ancestrais eram parte agregada ao territrio. Por outro lado, enquanto brasileiros, possuam a conscincia de uma ancestralidade tpica do pas: o ndio. Ento:Da necessidade de cultuar o ancestral e do sentimento de que havia uma ancestralidade territorial prpria do novo solo que habitavam, os bantos e seus descendentes criaram o candombl de caboclo, que celebrava espritos dos ndios ancestrais (Prandi, Vallado e Souza, 2001 apud Prandi in: A dana dos encantados)

A contribuio banta junto religiosidade chega atravs do candombl de caboclo e o candombl de inquices denominado angola e congo; modalidades que viriam a se unir em um nico complexo afro-ndio-brasileiro, povoando o Brasil, na dcada de 1960, de terreiros angola-congo-caboclo. Esses cultos de espritos adquiriram feies locais, relacionadas a tradies mticas enraizadas de cada localidade, podendo apresentar

caractersticas acentuadamente indgenas, ou de carter mais marcado pelo universo cultural da escravido, ou mesmo mais prximas da mitologia ibrica transplantada para o Brasil colonial. Nas localidades se originaram cultos a espritos dos ndios, dos negros e dos brancos. Nestas denominaes religiosas caboclas, a concepo dos espritos cultuados foi bastante diversificada. Segundo Prandi, no mesmo artigo citado, na Bahia, o caboclo o ndio que viveu num tempo mtico anterior chegada do homem branco, porm um ndio que aceitou a religio catlica e se vinculou a Jesus e aos demais santos catlicos; o personagem principal do candombl de caboclo o ndio originrio do pas, que viveu e morreu nele. Com o decorrer do tempo, outros tipos sociais foram agregados, como os mestios boiadeiros do serto.

28

Catimb e jurema, as denominaes pelas quais essa modalidade religiosa reconhecida, resultam de dois elementos: o Catimb, que provavelmente uma deturpao da palavra cachimbo, e jurema, o nome da planta e da sua beberagem sagrada (Bastide, 2001 apud Prandi, 2001). Ao norte, no Maranho e no Par, os espritos cultuados so personagens vividos atravs de lendas, que teriam habitado na Terra, mas no conheceram a morte. Havendo passado da vida material ao plano espiritual mediante algum tipo de encantamento: so os encantados. Os encantados podem ser de muitas origens: ndios, africanos, mestios, portugueses, turcos, ciganos etc. Todas essas formas de cultos nascidas no Brasil, que podemos genericamente chamar de religio dos encantados ou religio cabocla, so religies de transe. As entidades cultuadas se apresentam em transe no corpo das pessoas iniciadas e devotas, tal como nos cultos dos orixs, dos voduns e inquices. Da mesma maneira que ocorre no conjunto das religies afro-brasileiras, todas desenvolvem uma diversificada todas elas atividade so mgico-curativa e de

aconselhamento oracular;

danantes e

sua msica

acompanhada de tambores e ritmos de origem africana, embora em modalidades como o catimb a dana tenha sido adotada tardiamente, nesta provavelmente por influncia do xang. Diferentemente das religies de orixs, voduns e inquices, as religies caboclas so, contudo, cantadas em portugus, o que reafirma seu carter brasileiro e mestio. No se esconde a mistura bsica que elemento de cada uma delas: Amrica, frica e Europa, ndio, negro e branco. Estas so as fontes indispensveis da sua constituio. (FERRETTI, 1993 apud PRANDI in: A Dana dos caboclos) Essas trs manifestaes afro-ndio-brasileiras de culto dos ancestrais da terra candombl de caboclo, catimb-jurema e encantaria de mina no foram evidentemente as nicas, mas acredita-se que foram as mais expressivas. Variadas expresses locais da religiosidade cabocla se encontraram, se influenciaram, se fundiram e se espalharam.

2.1 Jurema

Neste ponto, tornam-se necessrias explicaes mais detalhadas sobre o culto da Jurema inserida em uma linha histrica, e retoma-se a sua

29

conceituao enquanto uma prtica religiosa de tradio indgena, especialmente das tribos do Nordeste, vinculado rvore do mesmo nome (jurema), a qual possui seu habitat no agreste e na caatinga nordestina. Diz-se tambm que esta rvore sagrada, porque nela a Virgem Maria teria escondido o menino Jesus durante a fuga da sagrada famlia para o Egito. Durante os perodos de grande estiagem, a jurema se destaca do resto da vegetao nativa pelo fato de manter-se exuberante, resistente falta de gua. Quando ingerida, acredita-se que tal bebida possui a propriedade de transportar os homens para o mundo do alm, possibilitando-os a comunicao com os seres que l habitam. (SALLES, 2004) Amaral (2009) complementa que em alguns estados denominada de catimb, sendo a Jurema um culto fitoltrico de origem indgena mesclado a prticas de origem africana e europia (catolicismo e kardecismo). Por essas afinidades, coaduna-se aos Candombls de Caboclo. Pode-se notar, contudo, a prevalncia das prticas de origem indgena no culto Jurema, chamado por seus praticantes, simplesmente, de a jurema". Essa forma de religiosidade constituiu, em si, uma prtica total, com doutrina, preceitos e histria prprios, inseparveis da histria das religies no Brasil. Especialmente no norte e no nordeste do pas, onde encontra grande nmero de praticantes para os quais constitui veculo de autotransformao e desenvolvimento social, este culto se mantm tanto no interior, como no litoral e nos centros urbanos. O culto, cujos rituais denominam-se "mesa" ou "toque de jurema", ocorre em torno da ingesto da jurema, bebida fermentada feita com hidromel e cascas da rvore de mesmo nome (acrescentados alguns segredos), da fumaa das razes queimando no cachimbo (ou catimbo, da qual teria derivado o termo catimb) e dos pontos ou linhas (cantigas), entoados ao som dos maracs, palmas, atabaques, xeres, agogs e tringulos. Conjuntamente, estes elementos produzem alteraes da conscincia e propiciam o transe de encantados e de espritos indgenas que incorporam os juremeiros para realizar curas e resolver problemas. (AMARAL, 2009) Na tentativa de uma apresentao preliminar do culto da Jurema, pode-se utilizar a relao com um complexo semitico, fundamentado no culto aos mestres, caboclos e reis, cuja origem remonta aos povos indgenas nordestinos. As imagens e smbolos presentes neste complexo remetem a um lugar sagrado,

30

descrito pelos juremeiros como um Reino Encantado, os Encantos ou as cidades da Jurema. Ainda se desconhece grande parte sobre a religiosidade dos ndios nordestinos e menos ainda da religiosidade dos ndios do perodo colonial. Contudo, no necessrio muito esforo para perceber que neles se encontram as gneses do culto da Jurema. De fato, a presena de elementos amerndios no cerimonial, a importncia da Jurema como elemento de identidade tnica dos atuais povos indgenas do Nordeste, entre outros, no deixam dvidas quanto a essa procedncia. Em 1788, o padre Jos Monteiro de Noronha faz, em seu Roteiro da Viagem da Cidade do Par at as ltimas Colnias do Serto da Provncia, o seguinte relato sobre os ndios Amanaj: Nas suas festividades maiores usam os que so mais hbeis para a guerra da bebida que fazem da raiz de certo po chamado Jurema cuja virtude nimiamente narctica (apud Lima 1946, p. 60) De um modo geral, a literatura deixada pelos escritores coloniais, bem como os documentos alusivos a esse perodo, ainda que de inquestionvel valor, so bastante superficiais quanto religiosidade desses povos. O fato que desde o primeiro sculo da colonizao foi difundida pelos missionrios a idia de que os ndios brasileiros no tinham religio, vivendo em completa anomia.

Costumava-se dizer, por exemplo, que a lngua dos gentios carecia das letras F, L e R e, deste modo, no possuam f, lei ou rei. Como escreveu frei Vicente de Salvador: Nenhuma f tm, nem adoram a algum deus; nenhuma lei guardam ou preceitos, nem tm rei que lha d e a quem obedeam (SALVADOR, 1975, p.78). Assim, ao contrrio dos colonizadores hispnicos, cuja tradio

demonolgica fez predominar a idia do ndio como um ser herege, os portugueses viam os habitantes do Novo Mundo como criaturas no idlatras, que no acreditavam em Deus, mas tambm no acreditavam no diabo. Como dir Viveiros de Castro: antes de serem efmeras e imprecisas esttuas de murta, os tupinambs foram vistos como homens de cera, prontos a receber uma forma (apud VAINFAS, 1999, p. 29). Souza (2002) discorre que no Brasil quinhentista surgem as primeiras manifestaes de uma religiosidade nascida do encontro entre missionrios e ndios, inserindo o catolicismo na mitologia indgena.

31

O que fundamental para a discusso sobre o culto da Jurema o fato de evidenciar que, ainda no primeiro sculo da colonizao, os ndios estavam longe de absorver de forma passiva as idias e crenas do cristianismo europeu. Ao contrrio das narrativas da histria oficial, durante a colonizao os invasores tiveram que enfrentar forte resistncia desses povos. A Jurema seria um exemplo desta resistncia ao colonialismo portugus. (SALLES, 2004) O culto da jurema difundiu-se dos sertes e agrestes nordestinos em direo s grandes cidades do litoral, tendo o smbolo sagrado da rvore da jurema, originado na cultura indgena, sincretizado-se com elementos da magia europia, do catolicismo e da (1978) e Bastide (1985). Em Imagens do Nordeste Mstico, Bastide (1945) afirma ser o Catimb de origem ndia, considerando como tradies indgenas, nesse culto, o uso da defumao para curar doenas, o emprego do fumo para entrar em estado de transe e a idia do mundo dos espritos, no qual h casas e cidades. Refere-se a esse culto como sendo remanescente da antiga festa da jurema, ritual comunitrio que se realizava anualmente entre as tribos indgenas do Nordeste, modificado em contato com o catolicismo e com a passagem da organizao tribal para outro tipo de organizao, a partir da desagregao da tribo em famlias dispersas no litoral. Alm da influncia indgena, existe a influncia negra no Catimb, tendo sinalizado a primazia dos negros bantos na Paraba e em Pernambuco, os quais se adaptaram religiosidade indgena em virtude de ela estar centralizada, como a sua, na descida do deus ao corpo humano e subseqente transformao da personalidade. (BASTIDE, 1985) Cascudo (1978) trata o Catimb como o mais ntido exemplo do processo de convergncia afro-branco-amerndia. Foi esse autor quem assinalou a influncia da bruxaria europia na religiosidade popular brasileira, perseguida pela inquisio, tendo aqui encontrado canais de assimilao principalmente junto s populaes negras e ndias que tambm possuam seus rituais mgicos. Na poca de seus estudos, Cascudo (1978) encontrava cerimnias de catimb tratadas como sinnimo de adjunto de jurema. Nesse adjunto nome que significa reunio, sesso havia a prtica de fazer e consumir a bebida da jurema em cerimnias. Considera o cachimbo, o marac, a farmacopia e a matriz africana, conforme citado por Cascudo

32

bebida da jurema elementos indgenas que persistiram no catimb, atribuindo ao negro a invocao com ritos e ritmos musicais. A misso de pesquisas folclricas de 1938, organizada por Mrio de Andrade, ento chefe do departamento de cultura da cidade de So Paulo, contava com uma equipe de pesquisadores que tinha como meta coletar dados sobre a cultura popular no Norte e Nordeste do Brasil. Em alguns terreiros, o culto Jurema considerado a porta de entrada para a iniciao religiosa dos adeptos. (SANTIAGO, 2008) Conforme ser explanado subseqentemente, esse processo difere da vivncia constatada no terreiro objeto do documentrio utilizado neste estudo.

2.2 O Candombl e as relaes estabelecidas com a Jurema

Sodr (1988) explica que um terreiro uma associao litrgica organizada (egb) e que, atravs dessas organizaes, transferiu-se para o Brasil grande parte do patrimnio cultural negro-africano. Este autor utiliza a palavra patrimnio no sentido de lugar prprio. Ela tem em sua etimologia o significado herana: um bem ou conjunto de bens que se recebe do pai (pater, patri). Mas tambm uma metfora para o legado de uma memria coletiva, de algo culturalmente comum a um grupo. (Sodr, 1988, p.50). Sodr (1988) tambm explica que nesse terreiro operou-se uma sntese original: a reunio de cultos ao orix que, na frica, se realizavam em separado, seja em templos, seja em cidades; a condensao do prprio espao geogrfico africano nos dispositivos morfo-simblicos da roa, (ok, outra palavra, diz Sodr, para terreiro) e que conota as comunidades litrgicas como situadas no mato, fora do contexto urbano. Um terreiro de candombl constitudo de muitos espaos cheios de significados. Em alguns possvel entrar e em outros, no. Mesmo nos espaos em que o acesso permitido preciso que algum do terreiro, de preferncia, explique sua funo. 9

9

Disponvel em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0114346_05_cap_03.pdf

33

Alm disto, onde se cultua Orixs e Mestres, deve-se ter espaos e momentos reservados para cada um. Santiago (2008) elaborou um significativo estudo e anlise sobre as entidades louvadas durante as sesses rituais da jurema. Tais costumam ser agrupadas em trs mdulos: as das matas, referentes aos Caboclos e ndios; os Mestres, considerados os donos da cincia da jurema, e os Pretos-velhos. Exu e Pomba-gira so entidades do panteo dos orixs, que foram reinterpretadas no culto da jurema, que se destacam no incio das sesses. Existe uma mstica que se une construo simblica vinculada especificamente ao mundo sobrenatural da jurema, mais prxima das tradies indgenas, sua raiz primordial. Trata-se dos reinos ou cidades, espaos onde habitam os espritos (entidades) da jurema, reinos vinculados em certa medida s rvores sagradas da jurema, em baixo das quais os adeptos realizavam o culto do catimb/jurema. Cmara Cascudo (1978), tratando da mitologia que perpassava o catimb existente na cidade de Natal-RN, entre 1928 e 1949, poca de suas pesquisas, j mostrava a crena que os adeptos possuam na existncia de um mundo sobrenatural dividido em reinos encantados. Santiago (2008) explica que as entidades da jurema so consideradas espritos de mortos - eguns, almas de mortos - pessoas que viveram, morreram e se incorporam nos fiis, tendo como sustentao mstica a interpretao kardecista da reencarnao. Em seu conjunto so consideradas espritos terra-aterra, em nvel abaixo dos orixs dentro da hierarquia astral, posto que so as nicas que podem fazer o mal. As entidades da jurema so as que efetivamente executam os trabalhos, curas, atravs das consultas. Os orixs, pela sua pureza, no tm condies de realiz-los. Dessa forma, so as entidades juremeiras as mais solicitadas para praticarem o seu famoso catimb. Um marco distintivo entre as entidades da jurema e os orixs est relacionado condio de fala, uma vez que as juremeiras quando se incorporam nos filhos j se apresentam falando, enquanto os orixs precisam de uma preparao, falando pouqussimo, s vezes s anunciando seu nome. Outro marco que diferencia as entidades da jurema e dos orixs so as vestimentas usadas pelos fiis durante as sesses litrgicas. Para a jurema costumam usar o colorido, enquanto para os orixs usam branco ou cores especficas para cada

34

um deles. Existe, ainda, a grande diferenciao entre as entidades do orix e da jurema relacionada ao uso de bebidas alcolicas e fumo. Enquanto as primeiras no permitem cigarros ou cachimbos, incorporam e trabalham mediante o uso de tais materiais - quanto mais fumaa mais firmeza para as entidades juremeiras. Nas sesses para os orixs, algumas casas permitem nas saudaes a Exu e Pomba-gira, no incio do ritual, a utilizao de fumo; terminadas essas homenagens se interdita o fumo at para os visitantes, porm, na maioria das casas, no so usadas bebidas ou fumaa em nenhum momento do culto. Feitas essas diferenciaes entre as entidades que compem a linha da jurema e a do orix, seguem entidades juremeiras, marca distintiva da influncia do catimb/jurema na religiosidade em questo.

- MESTRES: No antigo catimb, o Mestre era o chefe responsvel pela direo do culto, pessoa que recebia os espritos invisveis de outros Mestres j mortos. Segundo Fernandes (1938, p. 92), os Mestres seriam os espritos de grandes catimbozeiros mortos, que presidem os ofcios conjuratrios, reinando sobre os elementos naturais e de poder de obedincia entre os demnios, aos quais deveriam manejar para fins hostis individuais. Autores como Bastide e Cascudo, especializados no antigo catimb, apontam o Mestre como a figura central desse culto, tanto como designativo do chefe da casa religiosa, quanto como entidade principal do culto. A denominao Mestre tambm usada como distintivo de sabedoria e maior conhecimento espiritual, podendo um Preto/a-velho/a vir a ser um/a Mestre/a ou uma Pombagira uma Mestra quando estes se destacam das demais entidades que compem suas falanges, sendo-lhes outorgado mais prestgio, poder e hierarquia. Os atuais Mestres podem se incorporar nos adeptos como Z Pilintra, Baianos, Boiadeiros, Prncipes, Cangaceiros, Ciganos, Vaqueiros etc. To grande a importncia do Z Pilintra no culto da jurema que ele chega a ter uma falange prpria dentro da corrente dos Mestres. Existem vrias verses para o nome do primeiro Z que deu incio falange do Z Pilintra: para alguns religiosos, foi o prprio Z Pilintra; outros falam em Jos Gomes da Silva ou, ainda, Jos Filintra de Aguiar. Alguns religiosos afirmam que Jos de Aguiar, ou Z Pilintra, teria nascido no municpio de Alhandra/PB (cidade sagrada da Jurema), sendo enterrado no cemitrio da cidade de Goiana/PE, ficando

35

conhecido pela sua fama de beber muito, ser bomio e gostar de mulheres. Tais caractersticas so amplamente evidentes durante as incorporaes dos mestres, sobressaltando seu estado de embriagus. (SANTIAGO, 2008) Uma outra caracterstica do Mestre est relacionada a seu trnsito nas esferas que praticam o bem e o mal. Assuno (1999) discorre sobre o processo de reelaborao dos smbolos e significados do antigo catimb quando do encontro com a umbanda e com o candombl, exemplificando atravs do caso dos Mestres que passaram a ser associados aos Exus. Segundo depoimentos de alguns religiosos, a proximidade dos Exus com os Mestres se d pelo fato de os primeiros serem considerados entidades do panteo dos orixs que passeiam pelos dois mundos, o das divindades e o dos mortos, sendo o orix mais prximo dos humanos. Exu possuidor de uma moral fluida que tanto beneficia como pode prejudicar uma pessoa, aproximando-se da identificao com os Mestres, que so espritos de humanos mortos, praticantes do bem e do mal. Percebe-se, assim, que no foi difcil associar as caractersticas dos Exus s dos Mestres catimbozeiros. Z Pilintra um exemplo claro dessa reeleborao. Na umbanda carioca e paulista ele considerado Exu, guia de atendimento de consultas e limpador de demandas, conforme estudos de Negro (1996) e Trindade (1982). Nos terreiros, Z Pilintra Mestre que se transforma em Exu aps a meia noite ou nas horas grandes, como so tratados os horrios das seis da manh e da tarde, das doze e das vinte e quatro horas. Os Exus nessas casas exercem a funo de cuidar das entradas e sadas. Com relao Pomba-gira, a consorte de Exu - para alguns, sua mulher; para outros, o Exu fmea - existe a associao dessa entidade com as Mestras, no sendo, contudo, uma viso unnime entre os religiosos. Pode-se supor que essa associao pode ter vindo em decorrncia da vinculao dos Mestres com os Exus, conforme j vimos, estabelecendo-se, conseqentemente, associaes semelhantes entre as categorias femininas dessas entidades, no caso Pomba-gira e Mestra. Existe uma distino entre as Pombas-giras vinculadas aos orixs e da jurema. No orix, elas limpam demanda sem realizar trabalhos nem atendimento aos filhos, enquanto na jurema contam com maior participao, auxiliando atravs de aconselhamentos, principalmente no referente s questes amorosas.

36

Os juremeiros que vivenciaram o processo de introduo da umbanda e do candombl na religiosidade paraibana, especialmente no catimb, fazem uma leitura sobre a apreenso de Exu e Pomba-gira ritualstica da jurema como proveniente da influncia do candombl.(SANTIAGO, 2008)

- CABOCLOS/NDIOS: A viso mais comum entre os religiosos de que os Caboclos e ndios so espritos de mortos. Os Caboclos e ndios, quando incorporados, bebem mel colocado em folhas sobre o cho, comem carne bovina crua embebida em mel e vinho, alm de frutas, tendo predileo por vinho, em vez de cachaa como preferem os Mestres. So pouco faladores, no atendem consultas; soltam gritos de guerra, empunhando arcos e flechas nas mos, quando incorporados. Seu linguajar pouco entendvel, puxado para o tupi-guarani. A presena do Caboclo na religiosidade afro-brasileira uma marca distintiva da influncia indgena na nossa cultura. Alm dos Exus, foram transportados para os rituais da jurema, e reinterpretadas, as entidades dos orixs que se aproximavam das caractersticas eminentes a esta corrente, no caso o orix Oxossi, por ser caador, e Ossim, ligado s florestas e plantas medicinais, agrupando-os entre as entidades da mata. Oxossi assume uma posio de prestgio dentro da jurema, sendo a entidade com a qual se iniciam as louvaes para o povo das matas, ritualstica herdada dogmtica da umbanda na qual Oxossi, entidade espiritual em plano superior de evoluo, comanda a falange dos Caboclos. Os(as) Caboclos(as) so identificados por suas descendncias tupi e tapuia, naes indgenas (Cabocla Jurema, Tapuia, Iracema, Rei Canind); por adereos indgenas (Cabocla de Pena, Caboclo Pena Branca, Pena Vermelha, Sete Flechas, Flecheiro); e por referncias a elementos da natureza ( Caboclo Mata Virgem, Folha Verde).

- PRETOS-VELHOS: A primeira reflexo

sobre o pertencimento dos Pretos-

velhos vertente da jurema relaciona-se influncia da umbanda, uma vez que esta possuidora dessa entidade dentro do seu quadro doutrinrio. Entretanto, outra anlise pode ser feita tomando como referncia os estudos de Cascudo (1978), datados a partir de 1929, onde ele encontrou catimbs no Nordeste

37

presididos por negros, poca em que a umbanda no se fazia presente no imaginrio religioso nordestino. Referencia a cultura negra banto como a que se introduziu na faixa da Paraba e Rio Grande do Norte, tendo esses povos se juntado ao ndio e branco europeu para processos de bruxarias. Nos catimbs estudados pelo autor, encontrou negros velhos mestrando o culto, com nomes de descendncia angolana: Negro do Congo ou Pai Angola. Conforme salienta o mesmo autor: O Caboclo velho e o negro velho so os lados de um ngulo cujo vrtice o Mestre do catimb (Cascudo 1978, p.90-91).

Conforme se pode constatar nas anlises anteriores, a matriz original indgena manteve-se fortalecida, expressa sobretudo nas entidades espirituais da jurema, as quais so as mais procuradas pelos clientes e adeptos para os

atendimentos de consultas, prerrogativa atribuda especialmente aos Mestres e Pretos-Velhos. No processo de reorganizao sincrtica entre as entidades da jurema, da umbanda e do candombl, encontra-se o movimento em direo de fortalecimento da chamada linha da jurema, na medida em que as entidades do rol das duas ltimas religiosidades (umbanda e candombl) foram resignificadas para serem agrupadas em torno da dogmtica juremeira. (SANTIAGO, 2008)

2.2.1 A Jurema expressa atravs do cantar-orar

O crescente processo de globalizao econmica tem implicado mudanas que se coadunam velocidade do mundo contemporneo e despertado em diversos grupos culturais o sentimento de homogeneizao e esvaziamento de suas prticas, ritos e estilos de vida gestados ao longo do tempo pela prpria experincia e pelas escolhas implcitas. Igualmente, esse mesmo processo tem despertado a conscincia histrica de muitos desses grupos, levando-os valorizao ou revalorizao de prticas e tcnicas e reivindicao do reconhecimento oficial de sua existncia e contribuio social, histrica e cultural. Por estarem imersos em um contexto global com seus valores, os grupos se legitimam, elaboram sua identidade e valorizam a sua experincia coletiva. Nesse contexto dinmico de mudanas, os sistemas de crenas desempenham papel

38

primordial na significncia outorgada, permitindo aos indivduos atriburem significado ao ser e estar no mundo em todas as esferas de sua vida, marcando sua particularidade, seu modo de viver. O indivduo religioso pensa a vida de modo peculiar. Ele vive e se expressa usando conceitos e termos prprios, derivados da experincia religiosa. Pode-se dizer que sua a maneira como estabelecida a relao com o mundo, com o entorno, advm do prprio patrimnio, representado nas vrias dimenses da vida: do comer ao orar, do vestir ao cantar. Desta forma, iniciativas que so pontuadas pela procura do conhecimento e do reconhecimento, preservando os valores e a memria de grupos com menor poder de resistncia, possuem um valor imprescindvel. Haja visto que sua valorizao propicia a manuteno da identidade e a preservao de sua auto-estima, garantindo-lhes estatura cultural, facilitando seu dilogo com a sociedade. (AMARAL, 2009) Tornando-se relevante, segundo Amaral (2009), pontuar que a audio dos pontos promove uma viso holstica do culto em si, bem como de peculiaridades culturais do Brasil, um dos alicerces deste estudo. Tornando-se expresso do inconsciente coletivo, a Jurema abarca memrias e saberes sociais que no deveriam se perder. De acordo com Rosa, em artigo pertinente sobre os pontos entoados:So quatro as categorias das diferentes entidades da jurema, que so classificadas tambm como linhas ou correntes espirituais: -a de caboclas(os) - cultuada no ms de janeiro, vive nas matas. Por ser composta por entidades crianas considerada a corrente mais pura. Para dar oferendas a estas entidades necessrio oferecer primeiro Comadre Florzinha, entidade feminina que vive nas matas:

Oi siu, siu, siu, siu, a Comadre Florzinha chegou Oi siu, siu, siu, siu, a cincia da mata chegou As entidades caboclas so representadas de forma quase assexuada, no havendo diferenas significativas entre caboclas e caboclos. Em termos de raa e etnia esta uma corrente indgena, assim como suas representaes icnicas so bonecas(os) com roupas indgenas e seus instrumentos sagrados o arco e a flecha que possuem grande poderes religiosos. O repertrio musical narra e refora as mesmas representaes. Os aspectos vocais so praticamente os mesmos para caboclas e caboclos:

Ceci pequeninha.

39

Ceci do jurem. Batam palmas pra Ceci. Quero ver Ceci flechar

A maraca um dos mais importantes instrumentos de acompanhamento para este repertrio e o padro rtmico executado pelo trio de ils o coco, padro muito popular na jurema. -a de mestras(es), vive nas encruzilhadas e cemitrios. Cultuada em maro. considerada uma corrente da esquerda, onde h lcool e fumaa. As mestras so mulheres jovens consideradas grandes conhecedoras do amor e do sexo. A diferena entre as representaes de gnero ntida para mestras e mestres. As mestras so entidades hiper-sexualizadas no gestual e nas vestimentas. As cantigas das mestras geralmente falam sobre relacionamentos amorosos:

Cala a boca, homem, voc no sabe o que diz. Cala a boca, homem, voc nasceu pra mim. Alm de louco, s um sofredor. Cala a boca, homem, voc no sabe o que o amor

As representaes de gnero e de sexualidade so expressas na performance vocal e no gestual das entidades. Muitas mestras falam e cantam alto, bebem, fumam e falam palavro. Raa e etnia j se apresentam de forma mais hbrida. Estas so mulheres nordestinas e mestias. Os padres rtmicos executados pelos tambores so o coco e o toque de macumba, um dos mais populares da jurema. -Pretas(os)-velhas(os) corrente espiritual tambm considerada pura. Cultuada no ms de maio. Entidades negras e velhas que vivem nas matas, ou na Bahia. Praticamente no h diferenas entre ambos os sexos, havendo similaridades no gestual e na performance musical destas(es). So representadas como assexuadas. So chamadas(os) de vov():

L vem a vov descendo a ladeira. Ela vem to bonita. Vem com seu rebolado, com seu requebrado e seus laos de fita Eu quero ver, vov. Eu quero ver, vov. Eu quero ver, se filho de umbanda tem querer -Pombagiras e exus: vivem nas encruzilhadas e cemitrios. So cultuadas em agosto. a esquerda dentro da jurema, pois tem lcool e fumaa. As pombagiras tambm so mulheres jovens hipersexualizadas. Por vezes, assim como com as mestras a questo de raa e etnicidade de maior hibridez. Suas cantigas mencionam seus poderes:

40

Ela pombagira aqui. Em qualquer lugar Toma cuidado, moo, ela um perigo. Ela Tata Mulambo, mulher de sete maridos

-Ciganas (os): Comparadas a mestras(es), pombagiras e exus, estas so entidades consideradas finas. So mulheres jovens e tambm hiper-sexualizadas e pertencem corrente oriental da jurema, sendo o aspecto tnico e racial forte em suas representaes narradas nos pontos. Seu repertrio musical no to conhecido por serem entidades raras: Minha guitarra chora. Ai, como eu vivo a cantar. cigana, cad a minha rosa, rosa vermelha que eu guardei para te dar?

Ressalte-se, a ttulo de elucidao e maior esclarecimento, a importncia atribuda a Seu Z Pilintra atravs da toada de seu ponto de chegada:Seu Z Pilintra quando vem, Ele trs sua magia, Para saudar todos seus filhos, E retirar feitiaria Seu Z Pilintra quando vem, Ele trs sua magia, Para saudar todos seus filhos, 10 E retirar feitiaria.

2.5 Terreiros no Rio Grande do Norte

Segundo levantamento estatstico feito em 2007 na FEUC existem cerca de 641 terreiros, casas religiosas de matriz africana no Estado do RN, sendo 329 na cidade de Natal. Na capital, a maior concentrao encontra-se na Zona Norte da cidade, com 46,50%, conforme demonstra o grfico a seguir:

TERRA LETRAS. Portal. Disponvel em: http://letras.terra.com.br/umbanda/1378400/. Acesso: 29/Nov/2011.

10

41

Percentual dos centros por Zona de Natal46,50 50 % 40 26,14 30 20 10 0 Z. Sul Z. Oeste Z. Leste Z. Norte 7,90 19,45

Grfico 1: Natal - RN. Centros, por regio urbana.

Nos quadros a seguir, so apresentados os dados absolutos referentes a cada zona da regio urbana da cidade de Natal, distribudo respectivamente por seus bairros. importante ressaltar que a maior concentrao encontra-se no bairro Potengi, localizado na Zona Norte da cidade.Natal RN. Centros de Umbanda e Candombl de Natal, por regies/bairros - 2007 N Zona Sul Lagoa Nova N. Descoberta Cidade Satlite Morro Branco Ponta Negra Pirangi Potilndia Parque Colinas Total das 2 26 2 1 5 2 1 6 centros 7 de Zona Norte Potengi N.S. Apresentao Igap Lagoa Azul Pajuara Redinha Total 18 19 29 17 19 153 N centros 51 de

42

N Zona Leste Quintas Alecrim Lagoa Seca Cidade Alta Rocas Santos Reis Petrpolis Me Luiza Braslia Teimosa Bairro Nordeste Tirol Total 3 1 64 2 centros 10 11 3 3 12 3 3 13

de Zona Oeste Bom Pastor Felipe Camaro Guarapes Dix Rosado Nazar Cidade Esperana Cidade Nova Planalto Nova Cidade Total da Sept

N centros 18

de

16 6

11 10

10 8 6 1 86

Tabela 1: Natal RN. Centros de Umbanda e Candombl de Natal, por regies/bairros - 2007 Fonte: FEUC, 2007

43

CAPTULO 3 DOCUMENTANDO A CASA DAS GUAS

3.1 Breves consideraes sobre Jornalismo

O jornalismo aparece como uma atividade que deseja proporcionar uma resposta sobre o que acontece no mundo. Suas aes esto relacionadas apurao e cobertura de acontecimentos e fatos, bem como ao indivduo que determina significncias em relao ao mesmo. Inserido em um contexto onde a realidade, um tanto individual e particular, se torna algo categorizado e singularizado por representaes que so organizadas segundo as experincias subjetivas.( Silva 2004) Mediante relatos, sejam orais ou escritos, o universo que permeia o jornalismo pode ser caracterizado como o da aparncia. Posto isso, um dos questionamentos que se apresentam diz respeito objetividade que muitas vezes lhe outorgada, pois se deve relevar que as fontes utilizadas partem de interlocutores que so sujeitos expressando fatos/ experincias transpassadas por sua vivncia individual, assim sendo, tal objetividade nos parece inalcanvel. Assim, o texto, enquanto produto do jornalismo, em todas as ramificaes e tentativas de exprimir e explicar o mundo se aliceram neste texto. 11 Clvis Rossi (1981, p. 07) discorre que o autntico jornalismo informativo pode ser representado atravs da notcia, da reportagem e da entrevista; sendo atravs desses meios que o jornalismo empreende tentativas de conquistar integralmente os interlocutores.

o acontecer na cultura que mais estimula o interesse do leitor, pois a cultura o prprio fazer do homem. a sua imagem refletida nos objetos e no trabalho; o conjunto das prticas, das tcnicas, dos smbolos e dos valores. Em outros termos, na cultura o indivduo se v e v os outros. E o jornalismo o instrumento que amplia essa viso e oferece uma melhor visibilidade das aes do homem na sociedade. (SILVA, p. 02)

11

Idem.

44

A linguagem utilizada no jornalismo mltipla e surge composta por relatos de cunho enunciativo com o intuito de referenciar objetos do mundo que se apresenta. Desta maneira, ainda que a fala carregue um referente comum ao jornalista, ao interlocutor e demais atores envolvidos, o sentido no ser o mesmo para cada um destes. (FREGE, 1978) Por conseguinte, atravs dos diversos gneros jornalsticos, poder se enveredar por caminhos diversos, existindo a intencionalidade na forma como o discurso ser apreendido e quais relaes sero estabelecidas. Sero apresentados os gneros comumente utilizados para que exista o entendimento sobre as vertentes que possam ser empregadas.

3.2 Gneros jornalsticos

Os diversos gneros tendem a estabelecer como alicerce dois objetivos primrios da informao na atualidade: a) o relato dos fatos e acontecimentos; b) estabelecer juzos de valor sobre as causas sobre esses acontecimentos. Na contemporaneidade, existe a tendncia a categorizar os diversos gneros de acordo com a funo exercida pelos mesmos, quais sejam: relatar e comentar. Quando se adentra o terreno da informao, utiliza-se o gnero informativo, tal qual a notcia, por exemplo, narrando fatos. Diante da anlise de determinado acontecimento, o gnero interpretativo evidencia-se como o predominante; as reportagens talvez sejam um vis para o entendimento amplo disso, onde existe um rol de questionamentos implcitos sobre as motivaes, com a valorizao do acontecimento de modo opinativo. (CHAPARRO, 1999) O documentrio, enquanto gnero pertencente ao jornalismo escapa s definies simplistas; porque apenas os tipos textuais no so capazes de apreender todo o seu escopo e possibilidades. Desta forma, ser introduzido um subitem especfico sobre o documentrio enquanto gnero, haja visto ser essa a forma elencada como a mais adequada apresentao deste estudo.

45

3.3 O Documentrio no jornalismo

O documentrio possui peculiaridades em relao ao seu gnero e sero essas caractersticas que tornaro possvel a sua apreenso como tal. Independentemente do foco temtico tratado, o interlocutor consegue identificar um documentrio de outros meios de produo audiovisual. Podem ocorrer equvocos de interpretao pela inexistncia de gneros puros. Sobre esse aspecto, ressalta-se a observao de Rondelli (1998, p. 29) sobre a diversidade de meios audiovisuais:

... os telejornais e documentrios deveriam ser o reino dos discursos sobre o real, enquanto as telenovelas e seriados, o lugar da fico. Entretanto, esses gneros alm de no serem puros no modo como narrativamente constroem suas representaes, convivem com uma srie de outros gneros que transitam entre dois plos sem nenhum compromisso de serem fiis ou coerentes com a realidade ou com a 12 fico, e que ficam mergulhados numa regio cinzenta.

Nichols (2005, p. 47-48) salienta que o documentrio no mera reproduo da realidade, mas funciona como uma representao da mesma:

Representa uma determinada viso do mundo, uma viso com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mundo nela representados nos sejam familiares. Julgamos uma reproduo por sua fidelidade ao original sua capacidade de parecer com o original, de atuar como ele e de servir aos mesmos propsitos. Julgamos uma representao mais pela natureza do prazer que ela proporciona, pelo valor das idias ou do conhecimento que oferece e pela qualidade da orientao ou da direo, do tom ou do ponto de vista 13 que instila. Esperamos mais da representao que da reproduo.

12

RONDELLI, Elisabeth. Realidade e fico no discurso televisivo. In: Imagens, Campinas, n 8, pg. 26-35, maio/ago 1998. NICHOLS, Bill. Introduo ao documentrio. Campinas: Papirus, 2005.

13

46

No documentrio ocorrem diversas possibilidades de variao em relao utilizao de recursos que se assemelham ao jornalismo. Sendo assim, o documentarista pode decidir (ou no):

usar a figura do locutor (on ou off), construir o filme apenas em cima de depoimentos, utilizar o recurso da reconstituio para contar a histria, criar personagens para dar maior dramaticidade narrativa apresentar documentos histricos14

Esta lista no aponta todos os recursos, mas pode ser tomada como um indicador de que o documentrio se caracteriza como um discurso pessoal, um evento que prioriza exigncias mnimas de verossimilhana, literalidade e o registro in loco. Sobre o registro in loco, salienta-se que o documentrio deveria apresentar todas as evidncias factuais em seu contexto original, mediante suas possibilidades. Essa caracterstica, em particular, de ser um discurso elaborado partindo do real, utilizando imagens in loco, aproximam o documentrio da prpria prtica jornalstica. Porm, documentrios e reportagens no podem ser vistos apenas como reflexos, mas sim como construes do social. Doravante, no documentrio ou na reportagem no se est diante da simples documentao, mas de um processo que prima pela fabricao de valores, significados e conceitos, pois, qualquer relato sempre resultado de um trabalho de sntese, que envolve a seleo e ordenao de informaes, e tal sntese pode variar dependendo da posio ideolgica, social, cultural do sujeito que enuncia. O documentrio , portanto, uma obra pessoal; mais do que isso, um gnero essencialmente autoral, sendo absolutamente necessrio e esperado que o diretor exera o seu ponto de vista sobre a histria que narra. impossvel ao documentarista apagar-se. A subjetividade e a ideologia esto fortementeSOUZA, Gustavo. Aproximaes e divergncias entre documentrio e jornalismo. UNIrevista Vol. 1, n 3 : (julho 2006). Disponvel em: http://www.unirevista.unisinos.br/_pdf/UNIrev_Souza.pdf. Acesso: 18/nov/201114

47

presentes na narrativa do documentrio, oferecendo representaes em forma de texto verbal, sons e imagens. Penafria (1999) afirma que a escolha de um ponto de vista reflete-se numa escolha esttica e em determinadas opes que so utilizadas em detrimento de outras como tipos de plano ou tcnicas de montagem. Cada uma dessas opes feita pelo documentarista a expresso da prpria subjetividade das escolhas do mesmo. O documentarista, na construo da obra, procura a opinio de pessoas diante de acontecimentos ou personalidades, no intuito de confirmar uma tese ou confrontar opinies. As entrevistas so fontes de informao para que ocorra a construo do texto. O documentrio constitui-se enquanto um espao onde o debate sobre os diversos contornos da sociedade so analisados e traduzidos na obra audiovisual. Alguns fatores podem ser eleitos como propiciadores dessa essa inferncia: o carter marginal do documentrio, alm dos critrios estabelecidos pelo mercado; as caractersticas autorais que tornam o gnero singular, estabelecendo reas de significado e sentido que expressam a multiplicidade da natureza humana e do meio social. (SOUZA, 2006) O tratamento autoral permite ao documentrio analisar questes, no somente atravs de processos descritivos, mas adentrando o terreno de estudos aprofundados sobre causas e razes. Os personagens envolvidos estabelecem um dilogo de via dupla, onde o documentarista tem a oportunidade de promover relaes diferenciadas com o entrevistado, questionando posicionamentos, propondo desafios. Essas facetas fazem com que o documentrio no se restrinja enquanto um espao onde o entrevistado tenha o direito expresso de suas opinies, mas evidencia-se como espao onde a base sustentadora so as falas resultantes da interao mtua. Diante disso, o documentrio consegue

apresentar ao espectador vozes singulares, mltiplas, enriquecidas por essas caractersticas resultantes dos dilogos, permitindo a construo de novos pontos de vista e a tessitura de novas consideraes.

48

Neste sentido, elegeu-se o tema Candombl para ser documentado, como j enunciado na introduo deste trabalho, por suas peculiaridades e encantos. O Candombl nordestino, recriado e reelaborado com a juno Jurema sagrada.

3.4 A Casa das guas

Ilustrao 1: Rainha das guas - Imagem da Casa das guas. Fonte: Luciano Rock

De agora em diante, usaremos as falas dos detentores deste saber to especfico para compor este captulo. A fala no dos tericos ou acadmicos que, assim como eu, despenderam um tempo de suas vidas aos estudos do Candombl ou ao conhecimento de seus rituais. Mas a fala de quem dedica sua vida a religio, com um profundo amor pela Jurema e pelos Orixs. Alguns dos fatos expostos, rituais e sincretismos podem ainda no ter sido catalogados oficialmente, uma vez que a cultura popular e a tradio oral tem a magia de ser recriada a cada contato com um novo interlocutor.Quando mantemos a nossa tradio no necessrio recuperar nem inventar novas tradies, pois os velhos usos ainda se conservam, mesmo que seja fundamental que se transformem e ganhem novas linguagens e referncias. (FARIAS, 2006, p.81)

Nosso objetivo com este trabalho fazer um apanhado do funcionamento de um terreiro da Zona Norte da cidade de Natal - RN, no bairro do Pajuara, com suas nuances particulares, sem por a prova se certo ou errado, inventado ou pertencente a tradio.

49

Nosso objeto de estudo a Casa das guas, barraco da Jurema Sagrada e de Candombl, da nao Jeje15, fundado em 1993, pelo pai Z Maria, Tata It Aluoj o pai dos olhos que tudo ver. O pai Z Maria descendente de sua av Luisa Gabriel de Gois, zeladora de um barraco no bairro da Redinha, iniciada por Joozinho da Golmeia, e foi revelado ainda criana por ela:Eu fui muito cedo... eu ouvi isso, eu nem sabia. Depois que eu fiquei grande foi que minha v disse: o meu orix nomeou voc a religio esprita e um dia o meu filho vai tomar conta disso aqui. E eu fui pondo aquilo na minha cabea, fui crescendo e vendo, aprendendo, cantando e vendo a religio toda e j sabia... quando ela se acamou, eu vim tomar conta (Pai Z Maria)

Atualmente a av do Tat tem 93 anos de idade e est muito debilitada para participar dos rituais da casa. Mas, para nomear o seu sucessor, Dona Luisa, ainda com 63 anos, passou pelo ritual comum de nomeao do descendente, fazendo um sucessor para que os trabalhos na casa no cessem. incorporada pelo seu Orix, Ogum, que revelou:O orix da minha v, quando eu era criana ainda, virou nela e disse: esse garoto, ou essa luz, no sei como ele chamou, vai tomar conta do canto que minha filha leva, vai tomar conta da minha casa (Pai Z Maria)

Ela foi

J Z Maria foi iniciado por Magnos de Ogum Xeroqui e Socorro de Oi, que trabalham em um barraco localizado no bairro das Quintas (Zona Oeste de Natal). Seu ciclo de orix16 foi feito com Ftima e Alexandre, do Pajuara (Zona Norte), sendo renovado com os pernambucanos, na casa de Pai Raminho de Oxossi.

15

Apesar de ter influenciado em grande escala na cultura Yorub no Brasil, ponto de ter centenas de vocbulos, prticas e rituais inseridos naquela cultura, o Jje tem as suas razes, totens, famlias e origens estabelecidas com grande fundamentos em alguns locais do Brasil, como na Bahia, , em Pernambuco, e no Maranho. Tal esta influncia, que se criou o termo Jje-Nag, para se identificar a mistura do Yorub com o Ewe, G, Fanti, Ashanti, Mahii, Mina, etc. *observamos que o barraco do pai Z Maria no realiza as prticas originrias desta nao, cultuando apenas os orixs. Atividade advinda da juno de prticas de outras naes. 16 Aps iniciado no candombl, o filho de santo passa sete anos sendo doutrinado e, ao final, ao completar o ciclo, recebe o Dec (representa a funo e a patente).

50

Na Jurema consagrado para Z Pelintra, por Srgio (Zezinho do Acaes Paraba) que, por sua vez, consagrado por Carol. Sendo assim, Pai Z Maria neto de Carol, da raiz do Acaes - Cidade sagrada da Jurema17. Aps a av de Z Maria envelhecer, passou todos os trabalhos da casa para ele, que poca, j tinha 14 anos de Candombl. A casa que era de Ogum, passou a ser de Oxum, Guia do Pai Z Maria. O Barraco tinha por nome Il Ax Omim Oxum Egemun, mas h trs anos, em 2008, a casa recebeu uma visita da Federao de Umbanda e Candombl do Rio Grande do Norte - FEUC RN - para nomear a casa como Casa das guas, ao toque do Rio Doce, reunindo neste espao todas as casas da Zona Norte que homenageiam Oxum (deusa das guas). Na ocasio o barraco recebeu uma placa da Federao, nica em todo o estado do Rio Grande do Norte, comprovando e reconhecendo os trabalhos desenvolvidos pelo Pai Z Maria em devoo a Oxum.PLACA FEDERAO DE UMBANDA E CANDOMBL DO RIO GRANDE DO NORTE

Ilustrao 2: Placa da Federao de Umbanda e candombl do Rio Grande do Norte. Fonte: Luciano Rock.

17

A cidade sagrada da Jurema Alhandra na Paraba, entre Joo Pessoa e Recife. Este o Marco Zero da Jurema no Brasil e tambm centro de romarias de milhares de pessoas anualmente. Dentro de Alhandra esto trs outras cidades sagradas conhecidas por Acais, Tapui e Estiva.

51

Como a partir de ento a festa em homenagem a Oxum, realizada no ms de julho, seria unificada, reunindo seguidores da Umbanda e de outras naes do candombl, como o Ketu e o Nag, alm de pertencentes a outras religies como o catolicismo, a casa passou a ter um nome em portugus, sem identificao particular de alguma religio. Essa foi uma forma que a Federao encontrou para reunir todos os seguidores e admiradores de Oxum em uma linda festa que homenageia o Orix nas guas do Rio Doce, no caminho de Jenipabu (Extremoz RN).

A casa foi escolhida porque o presidente da Federao viu que eu tenho um amor e uma dedicao muito grande a Oxum. um orgulho muito grande ter essa placa, esse reconhecimento

3.5 Oxum

Quando Orumil estava criando o mundo, escolheu oxum para ser a protetora das crianas. Ela deveria zelar pelos pequeninos desde o momento da concepo, ainda no ventre materno, at que pudessem usar o raciocnio e se expressar em algum idioma. Por isso, Oxum considerada o orix da fertilidade e da maternidade. Por sua beleza, Oxum tambm tida como a deusa da vaidade, sendo vista como uma orix jovem e bonita, mirando-se em seus espelhos e abanando-se com seu leque (abeb). Para os seus filhos, aqueles que entregaram seu ori para ela, Oxum muito mais que um Orix da beleza. vida.

Oxum a natureza, meu anjo da guarda. Abaixo de Deus, Oxum tudo na minha vida. Oxum quem me conduz, me ilumina. Oxum o meu amanh, meu amanhecer. Ela me ouve assim como se fosse minha me carnal, que eu hoje no tenho mais. A nica me que eu tenho Oxum (Pai Z Maria)

52

Sua ligao com a terra tambm reverenciada:Segundo a nossa f, oxum foi quem trouxe a fertilidade a terra. E quem trouxe as guas para correr soberanamente sobre os rios. Oxum ax. Todos os orixs so ax, mas Oxum muito fluente sobre a regncia da terra (Pai Hercules)

3.6 Il Ax

Ax energia mgica, universal, sagrada do orix. O que existe de mais significativo no terreiro de candombl o ax. A palavra Ax de origem yorub, muito usada no Candombl e significa "fora, poder". Il Ax o espao mgico/sagrado para o desenvolvimento das atividades religiosas, que significa a prpria casa de Candombl em toda a sua plenitude. Da, uma Yalorix tambm ser chamada de Yalax(Iylse), ou seja, Me do Ax ou a pessoa responsvel pelo zelo do Ax ou fora da casa de Orix. E Il Ax isso. A casa do Ax. A casa da fora, uma fora inerente s realidades e que torna possvel o processo vital.

Entrando no Terreiro O Il Ax que visitamos, assim como boa parte das casas de culto da religio afro-brasileira, funciona no fundo do quintal da casa do Mentor, Pai Z Maria. Quem nos recebe prximo ao porto Exu18 em sua qualidade Tranca Rua das Almas. Seu quarto sagrado o primeiro espao da casa, pois ele sempre o primeiro, a porteira. Seu quarto escuro e reservado dos demais Orixs, pois ele uma entidade individual. Ele o orix mais presente do ser humano, pois representa alegria, tristeza, sexo, harmonia, amor, desunio, ilaru (briga) e todos os sentimentos terrenos.18

Exu extremamente importante no contato entre o real e o supra-real, pois ele o responsvel em transmitir a resposta dos orixs ao Babalorix na leitura de Bzios, assim como dele a funo de abrir caminho para a entrada dos eguns no reino dos mortos e iniciar qualquer cerimnia, trabalho ou festa nos cultos afro-brasileiros. Nada chega ao seu destino de origem como nas matas e outros locais fora da cidade sem que antes sejam realizadas oferendas a Ex Tranca Rua.

53

A sua imagem a de um negro msculo e viril. Tem chifres e um garfo na mo. Aos seus ps fica o seu Ot, uma pedra onde o Orix come e pessoas depositam ali os seus pedidos. Alcanando a graa, seus devotos vm lhe oferecer cachaa em agradecimento sua bebida predileta. No pescoo, usa suas guias (colares preto e vermelho) que representam os lados positivo e negativo. Tambm tem junto ao pescoo a chave para abrir os caminhos e destrancar o que estiver trancado. No espao externo ao salo, logo em frente ao barraco, possvel ver uma fonte, a fonte sagrada de Becem (um Deus), Orix Met19. Becem o smbolo da Nao Jeje, e representado por uma cobra encantada de duas cabeas, a fase fmea e a fase macho. Segundo os seguidores da religio, a gua que cai purificada e abenoada pelos orixs e funciona para a cura de dor de cabea dos que freqentam a casa.

Becm traz a gua nos caminhos dele tambm, como Oxum e Iemanj. A gua simboliza a pureza, a renovao. Os filhos de becem trazem esse odu (destino) de prosperidade, de fartura e de riqueza. (Me Carla)

Reservando uma frondosa sombra para o Becem, o p de Iroco sagrado uma rvore robusta - completa o cenrio de paz e tranquilidade que pode ser apreciado pelos que l esto. O Iroco20 tido com rvore guardi da casa de Candombl, pois, ter esta rvore plantada no terreno da casa de Candombl representa fora e poder. O Iroco encarnado no Orix Xang e por isso, todos os fundamentos para o tempo so feitos aos ps dele. So oferecidos ao Orix vinho branco, cerveja ou usque,E quando estamos fazendo estes fundamentos o tempo muda. Se tiver o sol quente, vem uma nuvem negra. Se tiver chovendo, o cu abre e vem o sol. muito impressionante este ritual e muito bonito. S vendo mesmo com os prprios olhos para crer (Pai Z Maria)

Orix Met ou Met-met um Orix de dois sexos. Becm, na nao Ketu, recebe o nome de Oxumar e o Orix da riqueza. 20 Na Nigria, Irk cultuado numa rvore que tem o mesmo nome. Porm, no Brasil esta rvore foi substituda pela gameleira-branca que apresenta as mesmas caractersticas da rvore usada na frica.

19

54

Ao lado do Iroco observamos outra rvore denominada Acoco, uma folha africana que tambm representa Xang, usada para fazer obrigaes de patentes da casa, como Ogans, Equedes, Ebomes, Ebames, e iniciaes de Pai e Me de Santos. Usada tambm, junto a outras ervas21, para a preparao do ab. Em minhas visitas a casa tomei o banho de ab duas vezes, para ento poder entrar em contato com os orixs, feito com a mistura de gua e algumas ervas como concha de ogum, iroco e manjerico.O Ab banho de descarrego, para limpar da sujeira do mundo. E cada orix tem as suas ervas, quentes ou fria