M. Delly - Entre duas Almas

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Entre duas Almas M. Delly O prestigiado marquês Elias de Ghiliac, pretendia casar- se. A futura marquesa viveria afastada da vida mundana, cuidando de sua filha, veria-o o mínimo possível e não deveria apaixonar-se, nem exigir-lhe nada. Na bela provinciana Valderez, julga ter encontrado a mulher ideal. Porém, ela casou-se por obrigação, tinha-lhe verdadeiro horror e após casar-se, confessou estar amargamente arrependida dessa união. Para Valderez seu marido não passava de um homem desprovido de coração, frio e egoísta. Mas aos poucos o marquês capitulava em seu orgulho, curvando-se a todos os desejos da esposa, estava profundamente apaixonado e já não conseguia esconder a ânsia em saber se era correspondido por Valderez, que o tratava tão friamente e com desconfiança. Tal mudança no

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Biblioteca das Moças - volume 48, Do original francês: Entre Deux Ames

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Entre duas AlmasM. Delly

O prestigiado marquês Elias de Ghiliac, pretendia casar-se. A futura marquesa viveria afastada da vida mundana, cuidando de sua filha, veria-o o mínimo possível e não deveria apaixonar-se, nem exigir-lhe nada. Na bela provinciana Valderez, julga ter encontrado a mulher ideal. Porém, ela casou-se por obrigação, tinha-lhe verdadeiro horror e após casar-se, confessou estar amargamente arrependida dessa união. Para Valderez seu marido não passava de um homem desprovido de coração, frio e egoísta.

Mas aos poucos o marquês capitulava em seu orgulho, curvando-se a todos os desejos da esposa, estava profundamente apaixonado e já não conseguia esconder a ânsia em saber se era correspondido por Valderez, que o tratava tão friamente e com desconfiança. Tal mudança no comportamento do indiferente marquês era visível aos que o conheciam, o que aumentava ainda mais o círculo de intrigas em volta da invejada marquesa de Ghiliac, a fim de separá-los.

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Biblioteca das Moças – volume 48

Do original francês: Entre Deux AmesCOMPANHIA EDITORA NACIONAL

1987 Impresso no Brasil

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CAPÍTULO I

Haviam festejado nessa noite os membros do Jockey Clube a recentíssima eleição do marquês de Ghiliac para a Academia — Ghiliac, o célebre autor de delicados estudos históricos e alguns romances psicológicos, cujo valor literário era incontestável. Num dos luxuosos salões, um grupo composto do que o círculo contava de mais aristocrático cercava o novo imortal a fim de se despedir dele, porquanto ia já alta a noite, e só permaneceriam ainda os jogadores inveterados...

De todos os que ali estavam nenhum poderia jactar-se de poder nivelar com o ente de harmoniosa beleza e suprema elegância que era Elias de Ghiliac. O rosto de linhas soberbas e viris, a tez ligeiramente mate, a boca fina e irônica, os cabelos castanhos, naturalmente anelados, os olhos de um azul-escuro, cuja beleza era tão célebre como as obras do senhor de Ghiliac, o talhe alto e esbelto — todo este conjunto de graça fácil, correção altiva e distinção patrícia faziam desse homem de trinta anos um ser de incomparável sedução.

E essa sedução, naquele momento, exercia-se visivelmente sobre todos os que o cercavam, apertando-lhe a mão. A uns, respondia graciosamente, a outros altivamente, com palavras fulgurantes, que eram o mais fino, o mais delicado do espírito francês — um verdadeiro mimo, como dissera mais uma vez o seu parente, o conde d'Essil, homem já maduro, de feições finas e graciosas, inclinando-se ao ouvido de um jovem russo, amigo íntimo do senhor de Ghiliac.

O príncipe Sterkine assentiu num gesto entusiasmado, fitando os olhos azuis, claros e francos, no amigo que admirava cegamente.

Nesse instante Ghiliac, tendo cumprido os seus deveres de polidez, dirigiu-se para o senhor d'Essil:

— Tem carruagem, primo?A todos aqueles dons recebidos do céu, juntava ele ainda uma voz quente, de

inflexões singularmente encantadoras, e de que sabia servir-se de modo incomparável.

— Sim, meu caro, tenho um táxi à minha disposição.— Mas não gostaria antes que eu, de passagem, o deixasse em casa?— Com muito prazer, tanto mais quanto aprecio extraordinariamente os seus

automóveis.— Pois venha gozá-la mais uma vez esta noite... Até amanhã, Miguel! Esperar-

te-ei às duas horas.— Combinado. Boa noite, Elias. E os meu respeitos à senhora d'Essil, senhor

conde.O príncipe apertou as mãos do conde e de Ghiliac, que se afastaram, retirando-se

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dos salões.Fora, um landaulet elétrico, maravilha de luxo sóbrio, aguardava o marquês

de Ghiliac, o qual fez entrar nele o primo e, dando ao chofer o endereço do senhor d'Essil, subiu por sua vez, sentando nas macias almofadas, ao mesmo tempo que murmurava num tom de irônica paciência:

— Que coisa enfadonha! D'Essil bateu-lhe no ombro.— Enfarado de cumprimentos, de incensos, de adorações! Oh, que homem!Ghiliac sorriu.— Enfarado de tudo! Mas, se não lhe desagrada, falemos de coisas sérias,

primo. E já que estamos a sós, quero pedir-lhe uma informação. Não sei se já lhe disse que penso em tornar a casar-me?

— Não, mas soube indiretamente que a duquesa de Versanges está muito triste, porque você lhe refuga, impiedoso, as candidatas, escolhidas, aliás, entre o que nossa aristocracia conta de mais fino, a todos os respeitos.

— Perfeitas! Mas, que quer? Tenho cá o meu ideal.D'Essil lançou um olhar admirado àquele belo semblante, onde as pupilas

escuras brilhavam com sedutora ironia.— Você, Elias, tem um ideal?!— Em que tom me diz isso! Parece-me que o faço admirar-se escandalosamente

e desconfio que me crê incapaz de alimentar no meu espírito cético a chamazinha azul de um ideal qualquer. Mas o termo, bem sei, é impróprio às circunstâncias, por isso que se trata simplesmente de um casamento de conveniência.

— Escolheu, então...— Por enquanto ninguém. Ainda não encontrei o meu... como dizer?... o meu

sonho?... Não, é ainda muito etéreo... Meu tipo? É vulgar... Enfim, o que procuro.— Cáspite, você é difícil de contentar, meu caro! Tem a seus pés todas as

mulheres, e sabe de antemão que a feliz eleita será objeto de ciúmes ferozes...— Creio que não terão muitas ocasiões para se tomarem de zelos da que há de

vir a ser minha mulher — ponderou tranqüilamente Elias.D'Essil olhou-o um tanto admirado.— Por que, meu amigo?Elias esboçou de novo o sorriso sarcástico que lhe era habitual.— Oh! Não vá agora emprestar-me intenções de um Barba-Azul... Se bem que

hajam falado lindas coisas desse gênero a propósito de Fernanda... — acrescentou, dando ligeiramente de ombros. — Deixei que falassem, a tal ponto subia a estupidez. Hoje, parece-me, já ninguém pensa mais nisso... Mas, tornando à futura marquesa,

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Elias de Ghiliac, eu quis somente dizer que nenhuma dessas damas se sentiria com forças para levar a existência honesta, retirada, que destino à minha segunda esposa.

Seria interessante ver o pasmo que se estampou no semblante de d'Essil, pois que o primo não pudera conter seu riso juvenil e franco, sem nenhuma mescla de ironia, dessa vez, e nele muito raro.

— Quer então retirar-se, Elias?— Eu, não! Falo de minha mulher. Explicou-me...Afundou ainda mais nas almofadas, num movimento displicente. À suave

claridade da lâmpada elétrica, velada de amarelo-pálido, via-lhe d'Essil os olhos profundos, que chispavam assombrados pelos longos cílios.

— Não será preciso dizer-lhe que o meu primeiro casamento foi um erro. Nunca se encontraram dois caracteres mais díspares, incapazes de se compreenderem, que o de Fernanda e o meu. Por isso, sofremos ambos... Resolvi então nunca mais recomeçar experiências desse gênero. Pretendo continuar livre. Todavia, desejava tornar a casar-me, a fim de ter um herdeiro do meu nome, pois sou o último da minha estirpe. Esta é a questão principal. Além disso, não me desagradaria dar uma mãe a Guilhermina, cuja saúde, ao que parece, deixa muito a desejar e cujas mestras e governantas tantos aborrecimentos causam à minha mãe, devido às suas contínuas mudanças.

— E então?— Então, aqui tem você: quero uma moça séria, que goste de crianças, deteste a

sociedade, sinta-se feliz em viver todo o ano em Arnelas, e se contente em ver-me de tempos em tempos, sem se arrogar o direito de exigir de mim coisa alguma. Nada de frivolidades, nem gostos intelectuais ou artísticos, muito pronunciados. Desejo uma mulher honesta, de inteligência comum, mas de bons sentimentos e, sobretudo, nada sentimental! Oh! As mulheres sentimentais, as românticas, as exaltadas! E as lágrimas, as crises nervosas, as cenas de ciúme! Essas cenas cruciantes com que me gratificava a pobre Fernanda sempre que lhe vinha à cabeça uma idéia disparatada!...

Sua voz tomava entonações quase ásperas, e os olhos brilhavam-lhe, por instantes, num lampejo irritado.

— Mas, meu caro, há todas as probabilidades de que uma mulher, seja qual for, por mais grave que seja, se apaixone — e apaixone-se profundamente — por um marido, como você — replicou sorrindo o senhor d'Essil. — É inevitável, veja bem.

— Espero que, se ela for como desejo, hei de fazer compreender-lhe a inutilidade e o perigo de um sentimento dessa espécie a meu respeito, porque dele eu jamais poderia participar — replicou Ghiliac. — Uma mulher inteligente e nada romântica compreenderá logo os serviços que eu espero dela e poderá encontrar ainda

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algum prazer numa união desse gênero. Agora, vamos à informação que eu lhe queria pedir: não conhece você, entre a sua parentela e os seus inúmeros conhecimentos de província, alguém que corresponda à minha aspiração?

— Hum!... com semelhantes condições, é extremamente difícil! Pois não vê que seria preciso uma mulher de vontade quase sobre-humana para aceitar esse viver à margem da existência mundana do marido, ver-se relegada o ano inteiro em Arnelas, quando poderia ser uma das mais invejadas mulheres da terra e gozar os prazeres que proporciona uma riqueza como a sua?

— Concordo, e justamente por isso é que já quase desesperei de a descobrir. Todavia, quem sabe? Um acaso!... Talvez que uma moça muito piedosa...

— Uma jovem piedosa hesitará em casar-se com um indiferente como você, Elias.

— É possível. Contudo — e ia-me esquecendo de dizer-lhe que este ponto é para mim essencial — a muita piedade, na mulher, é a melhor das salvaguardas e a primeira garantia para o marido.

— Mas não admite que ela possa exigir reciprocidade? — inquiriu o conde, com um sorriso ligeiramente brejeiro. — Todavia, sucede, em geral, que a mulher verdadeiramente cristã quer encontrar no esposo os mesmos sentimentos. Eis, aí está, pois, mais uma dificuldade.

— Oh! Você está a desencorajar-me! — exclamou Ghiliac num tom entre sério e insolente, tomando nos dedos a flor que, soltando-se-lhe da lapela, viera cair-lhe sobre os joelhos. — Ora vamos, folheie bem nas suas recordações. Você e a prima têm lá no Franco-Condado, na Bretanha, nos quatro cantos da França, inumerável quantidade de parentas moças, de jovens amigas...

— Sim, mas não me parece haja alguma nas condições de satisfazer os seus desejos. Um homem como você não pode querer um basbaque como Henriqueta d'Erqui...

— Não, primo, nada de basbaque...— Odette de Hérigny é feíssima...— Não é isso o que eu quero!— Quer então um tipo de beleza?— Absolutamente, pelo contrário. A mulher bonita é necessariamente faceira,

quereria tornar-se mundana... Não, nada disso! Uma moça que não cause medo a ninguém, mas que seja principalmente distinta — bem educada e de caráter igual, dócil.

— Ah! Meu amigo, você é de uma exigência!... Enfim, vamos ver...E o senhor d'Essil apoiou a fronte na mão, como se tentasse extrair uma idéia,

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uma recordação. Elias, com uma das mãos desenluvadas, torturava a flor cor de enxofre. No interior estofado reinava um ar tépido, em que flutuava o perfume esquisito, sutil, que impregnava todos os objetos de uso pessoal do marquês de Ghiliac.

Súbito, d'Essil ergueu a cabeça.— Ora, espere... Quem sabe se... Ser-lhe-ia indiferente esposar uma jovem

pobre, completamente pobre, a ponto de lhe ficar a você o encargo de toda a família — pai, mãe e seis irmãos e irmãs mais moços?

— A questão de dinheiro não existe para mim. Mas sempre lhe direi que toda essa família seria bem incômoda.

— Talvez não tanto, porque a senhora de Noclare, sempre doente, nunca sai do Jura, onde vive toda a família, no seu castelo dos Altos-Pinheiros, nas cercanias de Pontarlier. Valderez, a filha mais velha, é afilhada de minha mulher...

— Valderez?... Foi a senhora d'Essil que lhe deu esse nome?— Foi; é, como sabe, um dos prenomes de Gilberta, que é condadina. Não lhe

agrada?— Como não? Queira continuar.— Essa jovem viu-se, ainda criança, obrigada a substituir a mãe doente, tratá-la,

ocupar-se dos irmãos e das irmãs, dirigir, enfim, a casa com os recursos que iam diminuindo cada vez mais, porque o pai, um desmiolado, desbaratara no jogo e nos prazeres seus bens de fortuna. Atualmente, leva ele nos Altos-Pinheiros uma existência precaríssima, sem ter a energia de procurar uma posição que lhe possa entravar a carreira para a miséria extrema. É irascível, rabugento, e por conseguinte a pobre Valderez está longe de ser feliz junto do pai sempre rezingão, e da mãe, doente do corpo e da vontade, com a constante preocupação do dia seguinte e os mil cuidados do lar, que recaem todos sobre ela. Afianço-lhe, meu amigo, que o considerariam lá como um salvador.

— Pode descrever-me?— Há três anos que não a vemos. Nessa época teria quando muito, os seus

quinze anos, nem feia nem bonita, de traços ainda indecisos, algo desajeitada e mal feita, mas, todavia, distinta. Cabelos magníficos, dentes admiráveis, olhos belíssimos. Muito séria, extremamente devotada aos seus, muito piedosa, demasiado tímida, ignorando completamente o mundo, mas inteligente e suficientemente instruída.

— Mas é justamente o que eu procuro! Bem me queria parecer que você é quem me podia arrumar este negócio. E a família, é de bom sangue?

— Velha nobreza condadina, isenta de más alianças.O senhor de Ghiliac permaneceu calado um instante, olhos vagos, torturando

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com os dedos a flor, já agora irreconhecível.— Segundo me diz, não terá ela mais que dezoito anos — disse ele. — É ainda

muito criança.— Será assim mais maleável.— Tem razão. E se é séria, principalmente... Habituada a viver no campo, numa

quase miséria, Arnelas deve parecer-lhe um Éden.— Evidentemente. Quer-me também parecer que não é nada romântica. Verdade

é que, com as mulheres, nunca podemos saber se... Meu caro Elias, pode fazer o favor de respeitar uma das minhas inocentes franquezas, deixando de martirizar essa pobre flor?

— Perdão, meu amigo, tinha-me esquecido... Correu a vidraça, deitando fora as pétalas esmigalhadas. Depois, voltando-se

para o senhor d'Essil:— Ora, aí está o que se chama amar as flores! Quanto a mim, esses produtos de

estufa, essas criações complicadas, deixam-me insensível. Depois de haver por algum tempo admirado a sua beleza, destruo-a sem piedade. Para mim a verdadeira flor, aquela na qual somente tenha tocado para admirar-lhe a harmoniosa simplicidade, é a humilde flor dos campos e dos bosques.

O senhor d'Essil arregalou os olhos, estupefato, o que teve por efeito excitar de novo a mordacidade folgazã de Ghiliac.

— Justos céus, primo! Dir-se-ia que lhe revelo nesta noite horizontes nunca suspeitados! Elias de Ghiliac, lírico e sentimental! Mas você não tornará mais... nem eu, tampouco... Ora, falemos sério. E falávamos, não de uma flor, mas da senhorita de Noclare — que é o mesmo, talvez.

— Justamente, uma flor dos campos, Elias. E este esboçou um meio sorriso.— Nesse caso esteja tranqüilo, tratá-la-emos como tal. Mas não me seria

possível ver-lhe a fotografia?— Minha mulher tem uma, que data infelizmente de há três anos. Mandar-lhe-ei

amanhã.— E com o endereço exato. Uma vez que estou decidido a tornar a casar-me,

quero acabar com isto o mais depressa possível. Assim, se a fisionomia me agradar, partirei imediatamente para o Jura, para vê-la pessoalmente. Faz-se, porém, necessário um pretexto para que eu me apresente, da parte do primo, ao senhor de Noclare.

— Escreverei um bilhete a ele, dando como motivo da sua viagem o desejo que você tem de consultar velhas crônicas, que ele possui e das quais já lhe falei...

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— Para um meu próximo trabalho. Perfeitamente. Espero que ele terá pelo menos a gentileza de apresentar-me à filha...

— Para maior segurança, minha mulher incumbir-lhe-á de uma comissão, um presente qualquer que você se encarregará de entregar à senhorita de Noclare.

O senhor de Ghiliac fez um gesto de aprovação.— Muito bem... Goza boa saúde essa moça?— Excelente. E posso garantir-lhe que não há moléstia hereditária na família.— Ah! sim, é esse um ponto de que faço muita questão. Evidentemente,

encontrei o que desejo.De novo, entre os dois, caiu um curto silêncio. Ghiliac brincava negligentemente

com a luva, enquanto o primo o examinava de viés, com ar perplexo e curioso.— Com que então, nada de ideal, hein, Elias? — exclamou de repente o senhor

d'Essil, inclinando-se para ele.As pálpebras, que Elias tinha descidas, ergueram-se, os olhos carregados

cintilaram, e d'Essil, ainda uma vez admirado, viu passar por eles uma flama, que pareceu iluminar repentinamente o belo semblante do amigo.

— Tenho pelo menos um: a pátria! — disse Ghiliac, em tom calmo e vibrante.Decididamente o pobre senhor d'Essil caía nessa noite de assombro em

assombro. Era hábito, aliás, desse indecifrável enigma que era Elias de Ghiliac, embaraçar as pessoas com os saltos abruptos, aparentes ou reais, das suas idéias.

— Oh! Muito bem! — aplaudiu o conde, buscando recuperar os seus pensamentos. — É um ideal nobilíssimo, esse, um dos mais nobres... Mas não terá porventura ainda outros?

— Talvez, quem sabe? Tudo pode acontecer...O cético reaparecia, súbito, volvendo-se-lhe o olhar irônico e impenetrável.Nesse momento, parava o automóvel diante da residência do senhor d'Essil, o

qual, despedindo-se do primo, ganhou lépido o terceiro andar onde tinha o seu apartamento.

Ao entrar em seus aposentos, viu ele, pela porta entreaberta, uma réstia de luz. A senhora d'Essil já estava deitada, mas lia ainda. Ao ver entrar o marido, voltou para ele o rosto frio e grave, cuja expressão era dulcificada por um sorriso.

— Ainda estás acordada, Gilberta? — disse o conde, aproximando-se.— É impossível conciliar o sono, meu amigo. Então, que tal a festa?— Excelente. Elias estava de veia, essa noite; podes imaginar o que teria sido a

conversação. Que homem extraordinário! Ainda agora, em viagem para cá, porque teve a gentileza de me trazer de automóvel, deixou-me completamente atordoado.

— Conte-me lá isso, se não estás muito ansioso por te meteres na cama.

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— Absolutamente! — exclamou d'Essil, instalando-se numa cômoda poltrona, ao pé do leito. — Oh! Não podes imaginar o que tenho para contar-te! Imagina tu que é bem possível que a tua afilhada Valderez de Noclare esteja em vias de fazer um casamento inaudito, maravilhoso.

A senhora d'Essil encarou o marido, profundamente admirada.— Por que me falas assim, à queima-roupa, de Valderez, quando estamos a

tratar de Elias de Ghiliac?O conde esfregou as mãos, rindo maliciosamente.— Não compreendes, hein? Pois é muito simples. Ele procura uma segunda

mulher, e eu indiquei Valderez!Gilberta deixou escapar um gesto de espanto.— Estás doido, Jacques? Que significa essa brincadeira?— Brincadeira? De modo nenhum. Por sinal que amanhã tenho de enviar-lhe a

fotografia da tua afilhada.E o senhor d'Essil contou em seguida à esposa a conversa que tivera com Elias.Quando terminou, Gilberta sacudiu a cabeça.— Seria, realmente, uma grande felicidade para ela... Mas seria Valderez feliz

com uma união desse gênero? Elias é de natural tão estranho, tão enigmático!— Todavia, cumpre reconhecer, Gilberta, que nenhuma censura pode ser feita à

sua vida privada.— Decerto, e devemos dizer desde já em sua honra, mas nem por isso deixou de

ser o seu primeiro casamento bem infeliz.— Fernanda era uma pobre cabecinha, uma boneca vã e frívola! Suas exaltações

sentimentais, os seus ciúmes, a sua pretensão em intrometer-se nos trabalhos do marido deviam necessariamente exasperar um homem como Ghiliac, que é a independência e — digamo-lo também — o egoísmo personificados.

— Sim, o egoísmo, dizes bem. E o seu procedimento para com a filha, de quem não se ocupa e a quem apenas conhece? E o seu ceticismo, seus hábitos ultramundanos, seu sibaritismo? E, principalmente, o que dele desconhecemos, o que se oculta sob o encanto sedutor daquele olhar, daquele sorriso, daquela voz?... E depois, Jacques, crês que deve ser agradável a uma mulher ver o marido objeto de constantes adulações de uma entusiasta corte feminina?... Sobretudo quando ela mesma não representaria junto dele senão o papel secundário destinado por Elias à sua segunda mulher?...

— Realmente... realmente. Eu não digo que tudo seria perfeito nesse casamento; mas julgo, Gilberta, que Valderez seria feliz e que sua união com Elias acarretaria ao mesmo tempo o bem-estar para os seus, enquanto ela viveria tranqüila nesse

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admirável castelo de Arnelas, tendo por tarefa assistência e afeto a essa criança sem mãe; traria um dos mais belos nomes de França, gozaria o luxo requintado de que se sabe rodear Elias de Ghiliac...

A senhora d'Essil interrompeu-o com um alçar de cabeça.— Se ela ainda é o que era antigamente, não visará decerto encontrar

compensações em semelhantes vantagens. A perspectiva de servir de mãe a Guilhermina seria provavelmente mais tentadora para ela, que é tão maternal, tão devotada para os irmãos e irmãs.

— Mas, afinal, que pensas de tudo isso, Gilberta? A condessa refletiu um instante, passando os finos e longos dedos pela fronte.— É uma questão muito séria! Confesso-te, meu amigo, que Elias me parece um

tanto para temer como marido. D'Essil pôs-se a rir.— Vai dizer isso às suas inumeráveis admiradoras! Contudo, é evidente que ele

será sempre o senhor, pois é de seus hábitos o fazer-se obedecer! Mas é muito delicado, e estou certo que uma mulher honesta e boa nada terá de recear do seu caráter, muito orgulhoso, muito autoritário, sim, mas leal e generoso.

— E caprichoso, e... confessa-o, Jacques, — no íntimo, desconhecido. Se eu tivesse uma filha, dar-lha-ia em casamento? Não, ou, pelo menos, com o coração muito apreensivo.

— Oh! Sim, eu também! Entretanto, quer-me parecer que nele o valor moral é muito maior do que o fazem crer as aparências. Acreditas, por exemplo, que seja um patriota fervoroso?

— Absolutamente, tenho-o até por demais apático a esse respeito.— Pois bem! Ainda agora acaba de confessar-me que é extremado patriota.

Pode bem ser, portanto, que ainda oculte outras surpresas agradáveis. Mas, afinal, que resolves quanto a Valderez?

— Nós não temos absolutamente razões sérias para negar o nosso apoio a esse projeto, Jacques. Se há muitos contras, há também muitos prós. Na lamentável situação econômica em que se encontra sua família, Valderez dificilmente encontraria casamento. E mais dia menos dia, eles nem terão talvez um pão para comer. Nestas circunstâncias, impõe-se-lhe sacrifícios para uma solução inesperada como a que seria o pedido de casamento por parte do marquês de Ghiliac. Se Valderez é romântica, se porventura arquitetou algum desses sonhos tão comuns às donzelas, é de recear que não seja feliz; mas é bem possível que nem sequer tenha tido tempo para sonhar, pobre Valderez! E, neste caso, aceitará sem dúvida esse casamento de conveniência, essa existência sacrificada, a cortês indiferença do marido. Assim, pois,

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poderá encontrar satisfações em semelhante união, ao menos a de ver os seus, para sempre, salvos da miséria, porque estou certa de que Elias há de mostrar-se regiamente generoso — está nos seus hábitos... Uma coisa, todavia, há de ser provavelmente muito desagradável a Valderez: a indiferença religiosa do senhor de Ghiliac.

— Ele tem se revelado sempre, nos escritos e nas palavras, muito respeitador das crenças alheias, e é quase certo que dará à esposa a liberdade de seguir a religião que quiser.

— Sim, mas uma donzela piedosa como Valderez deseja naturalmente mais do que isso. Enfim, se Elias se decidir por ela, os Noclares hão de necessariamente nos pedir informações a seu respeito, e nós então lhes diremos tudo, os prós e os contras, e eles que resolvam.

— Sim, é a única solução possível. Acho que a sogra, desta vez, não se há de mostrar enciumada da jovem marquesa, como o era com Fernanda, tão bela, tão mundana, e que se vestia admiravelmente, defeitos imperdoáveis aos olhos da bela e sempre jovem senhora.

— Sim, não terá razões para o ser, se Elias cumprir o programa que te revelou. Uma vez que a nora não queira eclipsá-la e não seja amada do filho idolatrado, ela não lhe fará sombra.

— Então, enviar-lhe-emos amanhã a fotografia. Agora, minha amiga, boa noite; é quase madrugada. Vê se dormes.

Beijou-a na fronte alta barrada de algumas rugas e deu dois passos para a porta. Súbito, porém, voltou-se para a esposa:

— Olha cá, Gilberta, não te parece que Elias alimenta uma utopia, julgando que há de persuadir a mulher a que tenha por ele uma afeição moderada?

— Assim o creio. E é isso o que me faz temer por Valderez. Aliás esse casamento seria para eles uma sorte inaudita, inverossímil!... Olha, Jacques, não sei o que diga! Esse teu enigmático primo transtornou-me o juízo, e duvido muito que eu possa conciliar o sono esta noite. Manda-lhe a fotografia... e não sei o que mais deseje: que ela lhe agrade ou que lhe desagrade, é-me indiferente.

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CAPÍTULO II

O senhor de Ghiliac, num gesto displicente, tomou da salva, que o criado lhe apresentou, o sobrescrito, em que logo reconheceu a letra do conde d'Essil, e abriu-o negligentemente.

Estava no gabinete de trabalho, imenso salão, do mais puro estilo Luís XV, onde tudo denotava os gostos de requintado luxo e delicada elegância do proprietário. Nenhuma casa em Paris podia rivalizar, a esse respeito, com o palacete de Ghiliac, antiga e opulenta morada dos antepassados de Elias, e que este havia transformado consoante as exigências modernas sem, todavia, lhe alterar o nobre cunho avoengo. Um dos seus parentes, do lado paterno, grande fidalgo austríaco, legara-lhe em tempo todos os haveres, isto é, uma renda de alguns milhões, de modo que Elias, já em si bastante rico, podia realizar os mais dispendiosos caprichos — coisa de que absolutamente não se privava.

Homem original e infinitamente enigmático, como tão bem o haviam classificado o senhor d'Essil e a esposa. Os melhores amigos, subjugados pela sedução de sua pessoa e superioridade de sua inteligência, as irmãs, a própria mãe, a quem testemunhava uma fria mas atenciosa deferência, todos o consideravam um enigma indecifrável. Encontravam-se nele os mais surpreendentes contrastas. Assim, por exemplo, esse homem, que dava o tom à moda masculina e examinava atentamente o mais insignificante pormenor do seu traje, avidamente copiado pela mocidade elegante, esse sibarita que se cercava de requintes inauditos, fizera, havia dois anos, uma perigosa viagem, atravessando uma parte quase desconhecida da China, mostrando-se, dentre todos os companheiros, homens aliás experimentados nesse gênero de expedições, o mais enérgico, o mais empreendedor, o mais infatigável, em meio dos perigos e provações de toda a sorte. Fora assim que, ainda na véspera, deixara o cético mundano entrever, aos olhos pasmados do primo, ser um fervoroso patriota.

Envolviam-no as mulheres de admirações apaixonadas a que ele, até então, permanecera insensível. Deixava-se adorar com irônica indiferença, divertindo-se tão somente às vezes com excitar, por uma atenção efêmera, os zelos femininos. Uma ou outra vez, empenhava-se num flerte, que não durava mais de uma estação.

Então os amigos já sabiam que o romancista descobrira um tipo curioso para estudar, e que o haviam de encontrar dissecado com incomparável mestria no seu próximo romance. Ironista muito ferino e mordaz, afligia com uma palavra, escrita ou falada, todas as fraquezas, todos os ridículos; sua mordacidade, que se revestia de formas delicadas quando se dirigia às mulheres, era temida de todos, porque encabulava até aos mais senhores de si mesmos.

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Tal a personagem singular que a senhora d'Essil tinha com razão capitulado de enigmática.

Naquele momento, considerava Ghiliac atentamente a fotografia que acabava de tirar do envelope. Como lhe dissera d'Essil, representava ela uma jovem por volta dos seus quinze anos, muito magra, de linhas indecisas, mas de olhos soberbos e graves. Bastos cabelos coroavam-lhe a fronte juvenil, na qual as preocupações pareciam ter já gravado traços de sua passagem.

— Uma fotografia nada significa, principalmente quando é horrivelmente executada, como esta — murmurou o marquês de Ghiliac. — Aliás, a fisionomia não me desagrada: tem os olhos bonitos, e num rosto é o principal. Irei um destes dias até lá, e então veremos.

Fez um afago distraído a Odin, o grande lebreu fulvo, que se aproximou, pousando-lhe timidamente o longo focinho nos joelhos. Um pretinho que estava acocorado aos pés de Elias, enviesou ao cão um olhar ciumento. Benaki fora trazido da África pelo marquês de Ghiliac, que o comprara num mercado de escravos; participava com Odin dos favores do imperioso e original amo, bom, sim, mas que parecia considerar apenas o moleque como um animalzinho interessante e gentil, com que, às vezes, se dignava de folgar, e que emprestava uma nota original à opulenta decoração do gabinete.

Reapareceu o criado, anunciando:— A senhora baronesa de Brayles pergunta se o senhor marquês pode recebê-la.— Mande-a entrar — ordenou secamente Ghiliac, pousando a fotografia sobre a

secretária. Levantou-se, repelindo com o pé Odin e Benaki. O negrinho refugiou-se num canto do salão, enquanto o amo, com passos displicentes, foi ao encontro da visitante.

Era esta uma jovem loira, pequena, delicada, de elegância apurada e muito parisiense. Os olhos furta-cor, a um tempo azuis e verdes, rebrilharam súbito, logo que os fixou no senhor de Ghiliac, estendendo-lhe ao mesmo tempo a mão com um entusiasmo que parecia não corresponder ao dele.

— Estava aflita, com receio de que já tivesse saído! E logo hoje, que tinha tanta necessidade de encontrá-lo em casa. É que tenho um favor, um grande favor a pedir-lhe, Elias.

Fora Roberta de Grandis amiga de infância da irmã mais velha do senhor de Ghiliac e de sua primeira mulher. Existia até um laço de longínquo parentesco entre sua família materna e os de Ghiliac. Mais moça do que Elias somente dois anos, havia, quando criança, brincado muitas vezes com ele. Adolescentes, montaram juntos a cavalo, praticando todos os desportos de que sempre fora apaixonado o

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senhor de Ghiliac, o qual tinha em Roberta a mais ardente admiradora, não ignorando mesmo a paixão de que já era objeto. Contudo, fingira sempre não dar por isso. Quando, aos vinte e dois anos, desposou a filha mais velha do duque de Monthécourt, Roberta quase morreu de desespero. Cedeu, porém, pouco a pouco, às instâncias dos pais, acabando por aceitar a mão que lhe oferecia o barão de Brayles, a quem não amou nunca, mas que a deixou viúva e quase arruinada, ao cabo de três anos.

Um ano depois, perdia Elias a mulher. Roberta sentiu renascer-lhe a esperança, pois em sua alma a paixão não fizera senão crescer. Buscava todas as ocasiões de encontrar-se com Ghiliac, multiplicando junto dele todas as carícias discretas, os trejeitos a um tempo faceiros e humildes, que ela supunha agradariam ao seu orgulho masculino. Debalde! Elias continuava inacessível, não se afastando jamais dessa cortesia meio zombeteira e algo desdenhosa — um pouco impertinente, diziam as mais susceptíveis — que em geral testemunhava a todas as senhoras, tendo somente para com ela uns longes de familiaridade que a velha amizade de infância autorizava.

— Um favor? Qual? Queira mandar a este seu criado — disse Elias, designando à moça uma poltrona.

Ela sentou-se com um leve ruge-ruge, atirando para trás a peliça. Passeou em seguida o olhar admirado pelo magnífico salão, muito seu conhecido aliás, e disse, voltando-se para Ghiliac, que se sentara noutra poltrona:

— É uma coisa que desejo muito! Você, de certo não ma recusará, não é assim, Elias?

Inclinou-se um pouco para a frente; nos olhos lia-se-lhe uma súplica.— Se estiver nas minhas forças...— Oh! Se está! Trata-se do seguinte: a senhora de Oabrols dá, no próximo mês,

uma festa de caridade. Como haverá uma parte literária, concebi o ousado projeto de vir pedir-lhe um entreato, apenas um entreato, Elias! Só por esse fato, teria a nossa festa um êxito extraordinário.

— Sinto muito, mas é impossível.— Oh! Por quê?O marquês arrugou ligeiramente as sobrancelhas; não gostava que o

interrogassem sobre a razão de suas negativas, as quais nunca revogava — e isso, talvez, porque as proferia muitas vezes sob o império de algum capricho que lhe atravessa súbito o espírito.

— É impossível, repito! — disse ele friamente. — A senhora terá muitos outros a quem recorrer, e não será a ausência do meu concurso que roubará o êxito a essa festa.

— Não! Não será a mesma coisa! Ninguém se negaria a auxiliar-nos, se

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pudéssemos inscrever o seu nome glorioso em nosso programa. Como foi delicioso esse entreato que compôs para a sua festa no verão passado!

— Pois bem: autorizo-a a fazê-la representar novamente.— Mas eu desejava um inédito!... Queria que você fizesse alguma coisa

especialmente, unicamente para... mim.Os lábios de Ghiliac entreabriram-se num sorriso de ironia.— Ah! Que eu fizesse alguma coisa unicamente para a senhora? — disse ele,

frisando a palavra, enquanto o olhar irônico fazia que se baixassem um pouco os olhos cambiantes que o exortavam. — Ora aí está o que teria lisonjeado a sua vaidade, não é assim, Roberta? Poderia dizer a todos e a todas: "Fui eu quem decidiu o senhor de Ghiliac a escrever isto".

Ela, erguendo para ele os olhos, disse em voz baixa e trêmula de entonações ardentes:

— Sim, eu quisera que você o fizesse um pouco por minha causa, Elias!Durante alguns segundos, as pupilas azul-escuro, fascinantes, dominadoras,

fixaram-se na baronesa. Esse homem, que tinha certamente a consciência do seu poder, parecia comprazer-se na súplice adoração daquela mulher, que se rebaixava desse modo a mendigar o que ele sempre lhe recusara.

Mas uma ruga de desdém irônico vincou os lábios do marquês, ao mesmo tempo que dizia friamente:

— A senhora é muito exigente, Roberta. Repito-lhe, é-me impossível aceder ao seu desejo. Olhe, dirija-se a Maillis ou a Corlier que o farão da melhor vontade.

No fino semblante da senhora de Brayles passou ligeira crispação.— Paciência! — murmurou ela, suspirando. — Contudo, sempre trouxera

comigo uma esperança... Enfim, perdoa-me, Elias, o ter vindo incomodá-lo.Levantou-se, aconchegando a peliça. Nesse momento, o seu olhar caiu sobre a

fotografia pousada em cima da secretária. A Ghiliac não passou despercebida a súbita comoção que se apoderou de Roberta, pois liam-se-lhe na fisionomia uns longes de satisfação.

— Ao contrário, estou encantado por ter tido o prazer de sua visita — disse ele cortesmente. — Vê-la-ei esta noite na embaixada da Inglaterra?

— Oh! Certamente! Posso reservar-lhe uma contra-dança?— Como não? Previno-a porém que chegarei tarde.— Que tem isso? Tê-la-á ainda assim, Elias. E quero pedir-lhe ainda outra coisa

— uma daquelas soberbas flores que ali estão. Oh! Não sei realmente o que é que fazem os seus jardineiros de Cannes e de Arnelas, para obterem semelhante maravilha!

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Ghiliac estendeu a mão, colhendo na jardineira de Sèvre, pousada sobre a secretária, um enorme cravo amarelo-pálído com o qual presenteou a senhora de Brayles.

A moça retirou logo o ramalhete de violetas de Parma, preso à jaqueta, substituindo-o pela flor que iria; dentro em pouco, mover o ciúme das boas amigas, e ocultar-se depois entre as páginas de algum livro predileto, onde essa parisiense do século vinte, tagarela e frívola, mas tomada sentimental pelo amor, a contemplaria beijando-a talvez.

E, enquanto os dedos enluvados de branco prendiam o cravo, na gola bordada do casaco, o olhar mirava, ainda uma vez, essa fotografia que decididamente a intrigava.

Elias acompanhou-a até ao vestíbulo, voltando depois para o gabinete. Tomou de novo o retrato, considerando-o por alguns instantes...

"Deve ser distinta — dizia ele entre si. E isso é o bastante. Quanto ao mais que lhe faltar, eu a moldarei consoante os meus desejos. O essencial é que seja dócil e suficientemente inteligente".

Sobre a secretária, permanecia o ramalhete de violetas, esquecido, involuntariamente ou não, pela senhora de Brayles. Elias tomou-o, atirando com ele ao lebreu.

— Toma lá, Odin, diverte-te com isso! E mergulhou na poltrona, seguindo durante alguns instantes, com um sorriso

irônico, o cão que espalhava as flores pelo tapete. Depois, fez soar a campainha, ordenando ao criado:

— Retire isso daí, Celestino. E mande atrelar ao cupê a parelha de cavalos baios.

Nessa mesma hora, anunciavam em casa da senhora d'Essil a marquesa de Ghiliac. Foi o conde d'Essil quem apareceu no salão, desculpando a esposa, a quem uma dolorosa nevralgia prendia no leito.

— Vinha justamente saber se estava doente, porque não a vi ontem à noite em casa da senhora de Monthécourt, — explicou a mãe de Elias.

O senhor d'Essil agradeceu, ao mesmo tempo que dizia de si consigo: "Que quererá ela de nós?" porque a bela e fria marquesa não tinha por hábito incomodar-se facilmente com o próximo.

Depois de terem trocado algumas palavras insignificantes, perguntou a senhora de Ghiliac à queima-roupa:

— Diga-me uma coisa, meu caro Jacques, não conhece porventura, nos seus solares de província, alguma moça de velha estirpe, séria e modesta, que possa ser boa esposa e boa mãe?

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Por trás dos óculos piscaram ligeiras as pálpebras do senhor d'Essil.— Boa esposa e boa mãe? Mercê de Deus, conheço algumas, aptas para esse

belo mister.— Sim, mas é que se trata de um caso particular. Elias, meu caro Jacques —

disse-me ele mesmo, não há muito — pretende tornar a casar-se. Precisamos arranjar-lhe uma moça inteiramente diversa do que foi a pobre Fernanda. O senhor conhece-o bem, sabe que seria tempo perdido tentar alguém ser amada por ele. O que ele quer, é unicamente um casamento de conveniência, a fim de perpetuar o nome, e dar uma mãe a Guilhermina. Não se trata pois de uma jovem mundana, de uma moça frívola, nem de uma intelectual ou sabichona.

— Sim, sei que ele tem horror a esse gênero de mulheres.— Cumpre que essa moça aceite a condição de residir todo o ano em Arnelas,

velar pela criança e não tentar jamais entravar a independência do marido. Deverá ser suficientemente inteligente, pois Elias não desposaria nunca uma mulher estúpida.

— Compreendo... Uma inteligência média... Bonita?E ao dirigir-lhe esta pergunta, uns longes de ironia lampejaram nos olhos pálidos

do senhor d'Essil, os quais, num rápido relance, envolveram a bela marquesa de Ghiliac — bela, sim, e de aparência ainda jovem, posto que já fosse várias vezes avó.

Uma ligeira contração cerrou os lábios finos da gentil marquesa.— Não, senhor; principalmente que não seja bonita — disse ela com ímpeto. —

Se o fosse, teria talvez pretensões de garridice, que Elias não toleraria. Mas, que não se trate também de um monstro de fealdade...

Percebia-se-lhe no tom um tal ou qual pesar. No olhar do senhor d'Essil acentuou-se ainda mais a maliciosa expressão.

— Oh, decerto! Seria demasiado forte o contraste — disse ele sorrindo. — Eu já sei o que a senhora quer, Hermínia... isto é, já sei o que Elias deseja. Devo, porém, comunicar-lhe que ele mesmo já me falou ontem acerca deste assunto, e eu lhe indiquei uma moça que talvez lhe convenha.

— Sério? Quem é? — perguntou ela, ansiosa. D'Essil repetiu-lhe o que já dissera na véspera a Elias no tocante a Valderez de

Noclare. A senhora de Ghiliac ouvia-o com toda a atenção. Quando ele terminou, perguntou-lhe a marquesa:

— Tem algum retrato dessa jovem?— Enviei-o esta manhã a Elias. Aliás, é uma fotografia de há três anos passados.— Não quer dizer nada, pode-se ter uma idéia...— Pois peça a seu filho que lhe conte a sua impressão, minha cara Hermínia.Anuviou-se por instantes o olhar da senhora de Ghiliac.

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— Elias não consente que se intrometa alguém nos seus negócios — respondeu, em tom seco. — Ele não me encarregou de lhe procurar esposa, e ficarei até muito agradecida ao senhor se lhe não falar desta minha visita. Eu, porém, desejo vê-lo casado, por causa de Guilhermina... e porque receio também se deixe ele arrastar a algum casamento do gênero do primeiro. Há tão hábeis tentadoras!... Roberta de Brayles, por exemplo, que aqui entre nós, tanto se aventura com ele, como ainda ontem me fazia sentir a senhora de Monthécourt...

D'Essil sorriu maliciosamente.— Tranqüilize-se, Hermínia, seu filho não é homem para ceder às carícias de

sedutoras. Cumpre lhe façamos esta justiça. Essa pobre Roberta perde o seu tempo e, o que é mais grave, a sua dignidade. Felizmente, para ela, Elias é um perfeito cavalheiro. Mas que cabecinha louca, a dessa moça? Também eu jamais desejaria a Elias semelhante esposa.

A senhora de Ghiliac, erguendo-se, casquinou uma risadinha.— Cabecinha louca!... Não é tanto assim! De parte a sua paixão por Elias, seria

um belo sonho o tornar-se marquesa de Ghiliac, depois de se ter visto reduzida a viver de expedientes... E, aqui entre nós, meu caro Jacques, não terá um sonho igual essa pobrezinha lá da província, se vier a ser a mulher de Elias?

— Oh, coitadinha! Essa nada terá de mundana; talvez nem sequer saiba vestir-se...

— Ah! Isso não tem importância... Terá de viver no campo.Os olhos do senhor d'Essil cintilaram de malícia, ao mesmo tempo que replicava

num tom imperceptivelmente irônico:— Oh, decerto, não tem importância nenhuma!... Nenhuma absolutamente.E, acompanhando a senhora de Ghiliac até à porta, murmurava ainda...

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CAPÍTULO III

A neve cobria inteiramente o grande pátio dos Altos-Pinheiros, ocultando à vista os lajeados lamentavelmente desiguais e disfarçando no telhado do velho castelo, sob a sua brancura imaculada, o triste estado das ardósias e a decrepitude das estátuas de pedra que ornavam as mais altas janelas...

Brancos estavam também os vales profundos e a encosta onde se agachava a aldeia de Saint-Savinien; brancos, os pinheiros que escalavam os aclives abruptos; brancos ainda os pastos agora desertos.

Pelo pátio, ia e vinha Valderez de Noclare, fazendo estalar docemente a neve sob os seus soquinhos, transportando do lavadouro, velho alpendre arruinado, para a cozinha a roupa de última lavagem. Envolvia-lhe a cintura, elegante apesar da saia mal talhada, um velho avental de pano azul. Era alta e admiravelmente bem feita de corpo, mas o capuz que trazia à cabeça impedia se lhe vissem as feições. Era fácil, contudo, verificar que no seu trabalho caseiro ainda conservava os modos e uma graça natural incomparáveis.

Súbito, estacou no meio do pátio, ao perceber uma criança que acabava de aparecer no alto da escada.

— Que é, Cecília? — perguntou Valderez.— Diz Bertrand que é hora de merendar — esganiçou, gaguejando, a vozinha da

criança. — E o papá está zangado porque não encontra a chave do quarto dos livros velhos.

— Ah! Sim, esqueci-me de pendurá-la no lugar! Vem tu buscá-la, Cecília!A menina desceu, vindo-lhe ao encontro, caminhando em passinhos curtos e

apressados. Tomou a chave que lhe entregou a irmã, mas permaneceu parada, levantando para Valderez a carinha expectante.

— Que esperas? — perguntou a moça, em tom malicioso.— É que... Bertrand quer merendar!— E a menina Cecília também, não é assim? Pois vai, vai depressa, que eu

dentro de cinco minutos lá irei ter com vocês. Cuidado com a chave, não a percas por aí!

Inclinou-se para aconchegar aos ombros da criança a romeirinha que resvalara. Esse movimento fez que lhe caísse o próprio capuz, mal abotoado. Nesse momento, por entre as nuvens pardacentas de que o céu se achava coberto, insinuou-se um raio de sol, iluminando triunfalmente o semblante da moça, de linhas puras e tez maravilhosamente branca, cabelos macios e ondulados, de um castanho-louro admirável.

— Valderez, olha um senhor! — murmurou Cecília apontando com o dedinho

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para o portão.Valderez, voltando a cabeça para o lado que lhe indicava a criança, viu por entre

o gradil um moço alto e bem posto, que lhe era completamente desconhecido.No mesmo instante, o rapaz, desviando o olhar que se fitara na moça, bateu

fortemente a campainha.Fez a moça um movimento para entrar em casa, a fim de depor a roupa. Mas,

oh!, ela não podia fazer esperar aquele cavalheiro, ali, com os pés na neve. Dirigiu-se, pois, para o portão, sem se desfazer da carga, ajustando como pôde o capuz.

O mancebo descobriu-se, perguntando-lhe.— Estarei realmente nos Altos-Pinheiros, em casa do senhor de Noclare?Respondeu-lhe Valderez afirmativamente, fazendo ao mesmo tempo rodar a

chave na fechadura e abrindo o batente do portão.— Poderei falar com ele? Venho da parte do conde d'Essil...Iluminou-se logo a fisionomia grave e algo tímida de Valderez.— Pois não! O senhor d'Essil é um excelente amigo de nossa família. Queira ter

a bondade de entrar...O moço atravessou com ela o pátio, ao mesmo tempo que as penetrantes pupilas

azuis a envolviam num olhar investigador, como a estudar-lhe todos os movimentos.— Cecília! — gritou Valderez.Mas a menina, medrosa, havia desaparecido. Valderez voltou-se então para o desconhecido:— Tenha a bondade de subir — disse ela designando a velha e arrumada

escadaria, cujo lamentável estado a neve ocultava aos olhos do visitante. — Vou desembaraçar-me desta trouxa de roupa, e volto já.

E afastou-se, enquanto o mancebo subia os degraus e entrava num amplo vestíbulo de escuras paredes de pedra, onde toda a decoração se resumia em alguns troféus de caça, três ou quatro bancos e arcas de carvalho velho...

Em verdade, tudo isto tresanda miséria! — disse ele para si, passando o olhar em derredor, enquanto despia a riquíssima peliça e a depunha sobre uma das arcas.

Pouco depois reaparecia Valderez, já sem avental e sem capuz. Fez entrar o visitante para o amplo salão, quase desguarnecido, onde restavam, por únicos vestígios de um passado melhor, alguns velhos trastes, ainda bem conservados, e o retrato de um senhor do século dezesseis, com as insígnias do Tosão de Ouro.

— Quem devo anunciar a meu pai, senhor?Ao fazer esta pergunta, ergueu Valderez os olhos para o estrangeiro. E esses

olhos de um castanho aveludado, grandes e profundos, eram os mais belos olhos que se podem imaginar: tinham uma surpreendente expressão de altivez e doçura,

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deixando transparecer, cristalina, a alma pura e honesta de Valderez.— O marquês de Ghiliac — respondeu o mancebo. A moça estremeceu ligeiramente de surpresa, e corou um pouco. Elias viu

passar-lhe no olhar uma expressão de assombro, se não de incredulidade. A jovem provinciana, ignorando a sociedade, teria decerto, apesar de todos os pesares, ouvido falar dessa celebridade, e perguntava a si mesma, com estupefação, o que viria fazer nos Altos-Pinheiros um homem como aquele.

Mas afastou-se, com andar elegante, extremamente gracioso. Ghiliac aproximou-se de uma janela, que deitava para o jardim, naquele momento, vasta extensão de neve; seus olhos pareciam seguir, por instante, o brilho dos raios do sol na branca ornamentação dos pinheiros.

É interessante, esse meu primo d'Essil, com a sua fotografia de há três anos! — pensava, com um leve sorriso brejeiro. — Para quem não procura um tipo de beleza, está mesmo a calhar não há dúvida! Admirável, positivamente admirável! E quantas das nossas jovens mundanas não invejariam a graça natural, a elegância tão aristocrática desta provincianazinha, perdida aqui entre a neve e estes pinheiros, toda mal amanhada e ocupada nesses rudes serviços domésticos! Além disso, uma incomparável formosura moral, porque, decerto, aqueles olhos não mentem... Que interessante estudo de caráter!

Voltou-se ao ouvir abrir-se uma porta. Entrou então na sala um homem de regular estatura, magro, porte distinto, os cabelos grisalhos. A fisionomia denotava-lhe também algo de surpresa e de satisfação.

— Realmente, senhor! É muita honra!... Com um tempo assim!Enquanto o senhor de Noclare lia a missiva, Elias observava-o de viés: aquela

fisionomia móvel, de linhas flácidas, deixava adivinhar a natureza desse homem, pródigo incorrigível, alma a um tempo fraca e voluntariosa, que conduzira os seus à ruína e não encontrara em si a coragem de tentar refazer o que malbaratara.

— Realmente, é uma feliz idéia a que teve o meu amigo d'Essil em se lembrar das nossas velhas crônicas! — exclamou o senhor de Noclare, ao terminar a leitura. — Para nós tal idéia resume-se no favor tão lisonjeiro quanto imprevisto de termos o prazer de sua visita, meu caro marquês. Ah! Conquanto já não seja parisiense, sei todavia o lugar que o senhor ocupa na literatura francesa... Queira ter a bondade de sentar-se! Sinto ter de recebê-lo aqui assim... É tão frio este salão...

De feito, o senhor de Ghiliac já se arrependia de haver despido a sua peliça.— Se me permitisse... — continuou Noclare hesitando — poderíamos passar à

sala da família, o parlatório, como dizem as crianças. Teria o imenso prazer de apresentá-lo à minha mulher e oferecer-lhe uma xícara de chá. Entrementes, minha

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filha mais velha lhe procuraria essa crônica; ela é quem conhece essas coisas antigas de que eu, confesso-lhe, nunca me ocupei.

— Nada me seria mais agradável que me tratarem sem cerimônia, meu caro senhor, e sentir-me-ia muito feliz em poder apresentar as minhas homenagens à senhora de Noclare.

— Então permita-me que vá preveni-la. Retirou-se, voltando pouco depois, para convidar o hóspede a segui-lo.

Atravessaram o vestíbulo, passando a uma sala guarnecida de velhas tapeçarias, ornamentada de velhos móveis de nogueira cuidadosamente espanados. Ramos de azevinho e agarico pendiam de açafates rústicos suspensos da parede. Ao pé da janela, num viveiro, alguns pássaros gorjeavam. No grande fogão de pedra escura flamejava um grande lume de achas, espalhando pelo salão um calor agradável.

Junto à chaminé, recostada numa espreguiçadeira, estava uma senhora dos seus quarenta anos, a qual, voltando para o estrangeiro o rosto diáfano, de olhar triste e cansado, lhe estendeu a mão, balbuciando com voz fatigada algumas palavras amáveis.

O senhor de Noclare, apressado, ofereceu ao hóspede a melhor poltrona, e foi à procura da filha, voltando pouco depois, como homem que não quer perder um minuto de tão preciosa visita.

Fez derivar a conversação para Paris, as suas festas, os seus prazeres. Ghiliac podia ler-lhe nos olhos, semelhantes na cor aos de Valderez, mas muito diferentes na expressão, a profunda saudade que esse homem de cinqüenta anos tinha pela sua vida frívola de outrora. Alguns minutos depois, apareceu uma menina franzina, mas de carinha esperta, trazendo um prato com torradas. Logo a seguir, entrou Valderez carregando a bandeja com as chávenas e o bule de chá.

— Minha filha mais velha, que o recebeu ainda há pouco — disse o senhor de Noclare. — Esta aqui é Marta, mais moça.

Valderez pôs-se a servir o chá. Elias, embora conversando com o encanto sedutor que lhe era habitual, não perdia um só movimento da moça. Ninguém, como ele, possuía esse dom, precioso para o escritor, de apreender nos outros as mesmas nuanças, parecendo todavia inteiramente absorvido na conversação.

Valderez apresentou-lhe a chávena, que ele aceitou, agradecendo, e colocando-a em cima da mesinha que o senhor de Noclare acabava de avançar; depois, fitando os seus nos olhos da moça, disse-lhe com um sorriso:

— Antes que me esqueça, senhorita, aqui tem a encomendazinha que minha prima d'Essil me pediu que lhe entregasse.

E ofereceu-lhe um embrulhinho atado com uma linda fitinha. Valderez tomou-o,

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agradecendo-lhe com uma graça tímida.Em seguida, retirou-se, indo à procura da crônica, voltando pouco depois com

um rolo de pergaminhos amarelos. Ghiliac, tendo-se desculpado cortesmente por havê-la assim incomodado, pôs-se a percorrer os velhos papéis, continuando a conversa com o senhor de Noclare. De quando em quando, interrompia-se para pedir a Valderez um esclarecimento, pois seu pai lhe dissera estar ela mais ao corrente das antigas crônicas do país. A moça respondia com muita clareza e simplesmente, se bem que no íntimo se sentisse muito perturbada diante desse ilustre estranho, cujo imperioso olhar parecia querer examiná-la até ao mais íntimo da alma.

— Pesa-me não poder levar mais longe as minhas pesquisas sobre este assunto. Creio que descobriria aqui coisas muito curiosas — disse Ghiliac, enrolando com cuidado os pergaminhos.

— Pois leve-os, meu caro senhor! Guarde-os em seu poder o tempo que quiser! — deu-se pressa em exclamar o senhor de Noclare que parecia literalmente em êxtase diante de Ghiliac.

— É que eu privaria talvez a senhora... — objetou Elias, voltando-se para Valderez.

— Oh, eu não tenho tempo de me ocupar nessas pesquisas. Pode levar, sem receio, esses papéis, senhor.

Elias inclinou-se, agradecendo, e, olhando as horas, levantou-se, fazendo observar que era tempo de partir, se não queria perder a hora do trem. Despediu-se da senhora de Noclare e de Valderez, saiu do locutório com o senhor de Noclare.

— Então, então! Que é isso? Valderez, olhe estas crianças! — gritou zangado o senhor de Noclare.

No vestíbulo, Cecília e outro garotinho da mesma idade estavam ao pé da arca, sobre a qual havia o senhor de Ghiliac deposto a sua peliça, e divertiam-se a esfregar as carinhas no arminho magnífico que a adornava.

— Oh! Não tem importância! — disse Elias, sorrindo. Mas Valderez acorreu logo, um tanto ruborizada.Tomou pela mão as crianças, levando-as para a sala vizinha. Aos ouvidos de

Elias chegaram ainda estas palavras, pronunciadas em tom de meiga severidade pela voz harmoniosa da moça:

— Oh! Como é feio ir uma menina remexer assim no sobretudo do moço!Ao que replicou uma vozinha infantil:— Oh! Valderez, estava tão quente, e cheirara tão bem!— Tem muitos filhos, o senhor? — perguntou Elias, que, tendo já vestido a

peliça com o auxílio do hóspede, muito solícito, se dirigia para a porta do vestíbulo.

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— Sete! — suspirou profundamente o senhor de Noclare. — E com a mulher sempre doente! Se não fosse a minha Valderez, não sei o que seria! É dedicadíssima para os irmãos e irmãs. Mas pode casar, mais dia menos dia... se bem que uma jovem sem dote... Porque, infelizmente, nem sempre é bastante a beleza...

— Sim, nem sempre... Mas não se incomode, por quem é! Não consinto que me acompanhe mais longe...

Tornando ao parlatório, exclamava entusiasmado o senhor de Noclare:— Que excelente rapaz! Como é distinto! Que elegância! Está ainda acima de

tudo o que já ouvira dizer dele. É um homem para fazer virar todas as cabeças. Que te parece, Germana?

— Oh! Sim! — concordou a senhora de Noclare, a quem a visita parecia ter ligeiramente despertado do torpor habitual. — Que bela surpresa nos fez o senhor d'Essil! É muito amável este senhor de Ghiliac... Um tanto orgulhoso, todavia...

— Tem o direito de o ser! Ah! É um homem para quem tudo sorri na vida! — murmurou Noclare, com um suspiro de inveja.

E começou a passear de um lado para o outro o cenho carregado, aspirando com prazer o sutil perfume que ainda flutuava no ar tépido da sala. Valderez entrou, ocupando-se em arrumar a mesa que servira para o chá. Súbito postou-se-lhe diante o pai.

— Tu bem podias ter mudado essa saia! — disse ele em tom desabrido. — Achas que é bonito apresentar-se alguém assim, com esses trajes? Que juízo não há de ter feito de ti o senhor de Ghiliac, acostumado a todas as elegâncias?

— Mas, papai, você bem sabe que eu não tive tempo! De fato, esta saia é velha, mas está limpa... E que nos importa o juízo que de nós possa fazer esse estranho? Ele há de ter visto logo que somos pobres, o que não é desonra, se sabemos conservar a nossa dignidade.

— Ah! Sim, ele viu logo!... Ser obrigado a receber um homem como ele nesta casa miserável, e com isto às costas! — exclamou, designando o velho jaquetão. — Os seus criados me poriam na rua, se eu me apresentasse assim em casa dele!

Deu de ombros, recomeçando o passeio pela sala. Quando Valderez desapareceu, achegou-se ele da mulher:— É extraordinário como essa criança é tão despida de garridices! Com a beleza

que possui!...— Sim, é linda... De dia para dia, torna-se mais bela...Interrompeu-se, hesitando um momento, e murmurou:— Observaste, Luís, que o senhor de Ghiliac não lhe tirava os olhos de cima?

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Noclare deu novamente de ombros.— Ah! Sim, admirava-a, porque é digna disso! Mas não vás agora imaginar com

isso que ele se tome de amores pela nossa filha. Primeiramente, quer-me parecer que tem o coração muito pouco inflamável; depois, falta ainda muito à nossa pobre Valderez para agradar a um homem como o marquês de Ghiliac, mundano refinado, fidalgo dos pés à cabeça e admiravelmente inteligente! Pertence à nossa mais alta aristocracia e é fabulosamente rico... enquanto que nós não passamos de uns pobres fidalgos arruinados, bons, quando muito, para mover a sua desdenhosa piedade — concluiu o senhor de Noclare em tom amargo.

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CAPÍTULO IV

Havia nesse dia, nos Altos-Pinheiros, um monte de roupa para engomar e passar a ferro.

Na imensa cozinha abobadada, Valderez manejava com furor, o ferro de engomar, enquanto Cecília e Bertrand, os dois loiros gêmeos de sete anos, brincavam a um canto, ao pé da velha Cristiana, a única criada dos Noclares, ocupada em limpar legumes para o jantar.

Uma ruga profunda vincava a bela fronte de Valderez. Enquanto ia trabalhando, refazia mentalmente as contas das despesas do último mês. Apesar de uma economia de todos os instantes, essas despesas ultrapassavam a módica soma de que dispunha. É bem verdade que o senhor de Noclare exigia para si uma alimentação mais cuidada, o seu vinho, os seus charutos... E hoje a pobre Valderez via-se atrapalhada, percebendo que havia dívida. Eram de pouca monta, mas até então, à custa de muitos prodígios, de fadigas e privações pessoais, vingara sempre equilibrar o magro orçamento.

Além disso, o pai, desde a visita do senhor de Ghiliac, tornara-se macambúzio e rabugento. Dir-se-ia que a visita desse privilegiado, cumulado com todos os dons da fortuna, podendo dispor à vontade de todos os prazeres de que era ávido o senhor de Noclare, despertara no fundo dessa alma fraca todos os ressentimentos e desejos. E mais: havia já alguns dias, acabrunhava-o pesar maior que outrora, e Valderez perguntava a si mesma com angústia se teria piorado ainda mais lamentável situação.

— O correio trouxe-te uma carta de Alice d'Aubrilliers — disse Marta entrando na cozinha. — E o papai recebeu outra de Paris, um envelope cinzento-claro, lindamente acetinado, e com uma coroa de marquês ao alto. Provavelmente, é do senhor de Ghiliac, não te parece, Valderez?

— Não sei nada, minha abelhuda.A breve passagem de Elias de Ghiliac pelos Altos-Pinheiros deixara no espírito

de todos profunda impressão; só Valderez não pensava mais nisso desde o dia seguinte, pois em verdade tinha muitas outras coisas que fazer e mais que pensar!

— Ah! Alice vai casar! — exclamou ela, logo às primeiras linhas.— Com quem, Valderez?— Com um advogado de Dijon, o senhor Vallet, moço muito sério, bom cristão

e de excelente família — diz ela.— Mas não é nobre!Valderez deu ligeiramente de ombros.— Que tem isso, desde que ele reúne as qualidades principais? Alice parece

estar muito contente!

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— Então tu também não punhas dúvida em casar com plebeu?— De modo nenhum, uma vez que fosse bem educado e de mentalidade igual à

minha. Cumpre atendermos primeiro ao principal, minha Marta, e não nos preocuparmos com considerações secundárias... Mas é muito pouco provável que moças pobres como nós tenham de se desposar com semelhante problema, — acrescentou Valderez com um sorriso triste.

— Oh! Por que não? — replicou Marta, fazendo uma pirueta.E viu-se em frente de Cristiana, que limpava os legumes.— Que dizes a isto, Cristiana? Quem devemos escolher para marido?A pobre mulher suspendeu o trabalho, erguendo para Marta o rosto severo e

triste, pergaminhado de rugas:— É preciso ver... Mas não, farás muito melhor se permaneceres aqui onde

estás, em vez de prender aos pulsos a cadeia do matrimônio. E Valderez também: mais vale para ela ficar nos Altos-Pinheiros, se bem que nem sempre esteja aqui entre rosas. O casamento é a miséria... Sim, filha, é o que te digo — repetiu ela em tom grave, estendendo o braço para Valderez.

— Sim, na maioria das vezes; mas, afinal, Cristiana, devemos cada um cumprir o nosso fado nesse mundo! — ponderou Valderez, sacudindo brandamente a cabeça.

— Decerto! Estás a dizer coisas impossíveis, Cristiana! — exclamou exaltada a irmã mais moça. — Havemos de casar, seremos muito felizes, e tu hás de ficar com as tuas agourentas predições. Julgas que a nossa Valderez não é bastante linda para se fazer desposar por um príncipe?

Cristiana pousou a face nos joelhos, cruzou as mãos e ergueu para Valderez os olhos amortecidos pela idade.

— Minha filha, eu te lastimaria se um homem casasse contigo unicamente pela tua beleza! Porque a beleza passa e vem depois o abandono! E tu mereces mais do que isso, Valderez, porque tens a alma ainda mais bela que o rosto.

Tais palavras eram muito para estranhar na boca da velha criada, em geral sempre taciturna, e mais propensa a dirigir às suas jovens patroas observações melancólicas do que cumprimentos e galanteios. Valderez e Marta olharam-na surpresas. Ela, porém, espalmou a mão para a mais velha...

— Mas, filha, hei de rogar sempre por ti! — disse solenemente.E, retomando a faca, continuou na sua tarefa.Marta retirou-se, e Valderez relendo rapidamente a carta da amiga, recomeçou o

trabalho. Mal tinha dado algumas passadas com o ferro, quando a porta se abriu, dando passagem ao senhor de Noclare, muito corado e comovido...

— Anda cá, Valderez, tenho que falar-te — disse ele com a voz estrangulada.

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— Que há, papai? — exclamou a moça já ansiosa.Sem responder, o pai levou-a ao parlatório. Valderez soltou um grito de terror,

ao perceber a mãe meio desacordada, estendida na espreguiçadeira.— Oh! não é nada!... É de alegria! — disse o pai, vendo Valderez precipitar-se

para a mãe. — Um acontecimento assim tão imprevisto, quase incrível, tão... tão...— Mas que foi? — perguntou maquinalmente Valderez, chegando um frasco de

sais às narinas da pobre senhora.— Pedem-te em casamento. E adivinha quem?— Pedem-me em casamento? — repetiu ela, com espanto. — Não posso saber

quem... não conhecemos ninguém...— Ah! Com que então desconheces o senhor marquês de Ghiliac? — disse

Noclare, com uma voz que ressoou como fanfarra triunfal.O frasco escapou das mãos de Valderez, indo partir-se no soalho. A menina,

pondo-se de pé, encarou o pai com ar incrédulo.— Quer você dizer, papai, que... se fosse ele...— Não, querida, é ele... É ele quem me escreve pedindo a tua mão, Valderez,

minha filha, minha querida filha!Tomara-lhe as mãos entre as suas, que tremiam de comoção. Valderez, cujo

rosto purpurejara, murmurou, ainda incrédula:— Mas, papai... não compreendo...— Como não compreendes? Pois não estou falando claro? É preciso que eu te

repita que o marquês de Ghillac pede a mão de Valderez de Noclare?Nesse momento, a senhora de Noclare, tornando a si, abriu os olhos. Estendeu

os braços para a filha, balbuciando:— Minha filha, oh! Quanto sou feliz! Um tal casamento! Parece um sonho!...Valderez, tornando-se repentinamente pálida como um cadáver, apoiou a mão

trêmula nas costas de uma cadeira. No seu lindo rosto não havia um traço sequer da transbordante alegria que irradiava a fisionomia dos pais. Era antes, sim, um misto de espanto e terror.

— Como pode o senhor de Ghiliac querer para esposa uma moça a quem ele mal percebeu, quando muito durante uma hora? — ponderou a moça com voz trêmula. — Ele não me conhece!...

O senhor de Noclare riu-se.— Como és ingênua, minha pobre Valderez! A metade dos casamentos faz-se

assim. Demais, o senhor de Ghiliac é desses que julgam as pessoas por um simples lance de olhos... E depois, minha filha, ignoras porventura que és por demais bela para arrebatar qualquer homem? Todavia, explica-se a tua surpresa, porque, com tudo

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isso, era impossível imaginar-se semelhante coisa! Um homem, como ele, célebre, extraordinariamente requisitado, prodigiosamente rico! Além disso, herdeiro único do tio-avô, o duque de Versanges, cujo título lhe será igualmente atribuído.

Atalhou-o com um gesto Valderez.— Essas considerações, papai, me parecem todas muito secundárias. Eu vejo no

casamento outra coisa...— Sim, bem sabemos que timbras de prudente e desinteressada. Mas, olha, lê tu

mesma a carta do senhor de Ghiliac, e verás as razões em que ele baseia o seu pedido.Valderez tomou a folha de papel cinzento-claro, de onde se exalava o mesmo

sutil e suave perfume que persistira da outra vez no parlatorio, quando da visita do marquês de Ghiliac. Percorreu rapidamente a carta, em que este lhe solicitava a mão em frases elegantes e frias, declarando que esperava encontrar na senhorita de Noclare, filha e irmã devotadíssima, a esposa honesta que ele procurava e uma mãe inteiramente disposta a amar a filhinha que ele houvera de seu primeiro matrimônio.

"Sua filha não terá que recear ver alterarem-lhe profundamente os hábitos, ao se tornar marquesa de Ghiliac, — acrescentava ele. — Não tenho absolutamente a intenção de constrangê-la a entrar na vida mundana, deplorável sob qualquer aspecto. Viverá com minha filha no castelo de Arnelas, onde a existência lhe correrá muito tranqüila — quase como nos Altos-Pinheiros. Procuro, antes do mais, uma moça séria e boa, e tal me parece a senhorita de Noclare".

O que, no tom dessa missiva, escapara ao pai e à mãe, loucos de orgulho e alegria, se acentuou nitidamente no espírito da moça, que compreendera, logo, sob o disfarce das frases corretas do homem de sociedade, a glacial indiferença, provavelmente tão profunda quanto a dela própria, a respeito de Elias de Ghiliac. Admitindo mesmo que este se houvesse apaixonado por Valderez, como dissera o senhor de Noclare, ele soubera ocultá-lo, devido talvez à sua habilidade literária.

Desse lisonjeiro pedido de casamento, resumia-se claramente o seguinte: o marquês de Ghiliac procurava uma mãe para a filha, julgara encontrá-la nessa moça pobre, afeita a uma existência apertada e ao trato das crianças. Pelo senhor d'Essil tivera as informações necessárias e, não pensando senão num casamento de conveniência, não gastava frases inúteis com essa humilde provinciana, a quem dava a honra de oferecer-lhe o nome, um dos mais gloriosos do armorial francês.

Valderez compreendeu logo tudo isso, um tanto nebulosamente, é certo, porque era inexperiente e nunca tivera a idéia de refletir sobre a questão de casamento, por ela considerada como algo inacessível.

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Devolveu em silêncio ao pai a elegante missiva, cujo perfume a impressionava desagradavelmente.

— Então, que dizes a isto? É ou não é sério? Bem vês. Ele não quer uma mundana... o que não impedirá que, uma vez casada, consigas dele tudo o que quiseres. Não valeria a pena ter uma posição como essa, se não fora para aproveitar-se dela.

— Realmente, papai, você me conhece muito pouco! A perspectiva dessa vida tranqüila e desse dever a cumprir junto de uma criança sem mãe teria, ao contrário, para mim grande atrativo se... se não fora ele.

— Como? Se não fora ele?! — exclamou o senhor de Noclare, enquanto a esposa se voltava um pouco para encarar com espanto em Valderez.

— Sim, porque ele não me agrada, e não creio que possa inspirar-me alguma simpatia.

— Ele não te agrada?! — gaguejou a senhora de Noclare. — Ele, a quem denominam o mais belo fidalgo da França!

O senhor de Noclare, depois de um curto instante de espanto, destampou uma risada sarcástica.

— Estarás, por acaso, fraca do miolo, Valderez? — perguntou, batendo com o dedo na fronte. — Um pretendente dessa ordem! Um pedido destes nem sequer se discute. Aceitamo-lo como uma dessas sortes inauditas que jamais ousáramos conceber a idéia. Ah! Ele não te agrada, esse homem que não tinha senão que escolher entre as mais nobres e mais opulentas! Criança louca, quantas mulheres, portadoras dos maiores nomes da Europa, pertencentes até a famílias soberanas, exultariam de felicidade se lhes fosse endereçado semelhante pedido! Tu não o viste, ou então estavas cega, nesse dia, para nos vires agora com essa insanidade: "Ele não me agrada!"

Como tantas outras naturezas fracas, o senhor de Noclare era violento com aqueles sobre os quais exercia certa autoridade. Valderez pressentiu a tormenta prestes a deflagrar. Contudo, não se intimidou, prosseguindo corajosamente:

— O que eu quero dizer, papai, é que, à simples visita, verifiquei logo que nada havia de comum entre nós dois — os gostos, os hábitos, a educação de um diferem completamente da educação, dos hábitos e dos gostos de outro. Ele, você mesmo o confessa, é extremamente mundano; adivinhamo-lo logo pelo trajar, requintadamente aprimorado, talvez em excesso... E aquele franzir sarcástico dos lábios, que você também, de certo, lhe notou...

— Olá, vejo que a minha piedosa filha sabe muito bem observar e murmurar do próximo! — interrompeu Noclare, com irritada ironia. — Mas tudo isso são

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infantilidades! Falemos sério, Valderez.— Estou falando sério, papai. O assunto é por demais grave para que o

encaremos de outro modo. Digo-lhe com toda a franqueza que o senhor de Ghiliac me inspira uma espécie de terror, e pois, parece-me impossível que eu me venha a tornar sua esposa.

Estas últimas palavras, pronunciou-as a moça em voz trêmula, porquê bem sabia o furor que iria desencadear com semelhante resistência. Mas, parecia-lhe que, lealmente, devia dizê-las.

— Valderez! — gemeu a mãe.Uma onda de sangue afluiu às faces do senhor de Noclare que pousou a mão no

ombro da filha, e tão duramente que Valderez estremeceu.— Ouve — disse ele em voz sibilante — quero que saibas as conseqüências de

semelhante recusa. Arrisquei o pouco que ainda nos restava em operações financeiras, que pareciam ter muitas probabilidades de êxito; mas soube ultimamente que esse negócio periclita. Se conseguir salvar a quarta parte dar-me-ei por muito feliz. Bem vês, pois, minha filha, é a miséria, a negra miséria. Os Altos-Pinheiros serão vendidos por um pedaço de pão, e ver-nos-emos obrigados a ir mendigar pelas estradas...

Valderez, esmagada por esta revelação, permaneceu sem dizer uma palavra.— Se casares com o marquês de Ghiliac — prosseguiu o pai — tudo mudará,

porque naturalmente ele não há de consentir que passem necessidades os pais de sua mulher, há de prover à educação das crianças...

— Não, não, isso não! Eu trabalharei, ocupar-me-ei seja no que for... mas não me peça isso, papai! — opôs a jovem com voz estrangulada.

— Eu sempre desejaria saber como conseguirias sustentar os teus irmãos, tua mãe e eu! — replicou ironicamente o senhor de Noclare. — Não digas semelhantes tolices, Valderez!

A moça baixou a cabeça. O pai tinha razão: ela pouco poderia fazer e jamais conseguiria remediar um pouco sequer a situação angustiosa em que estavam.

— É, pois, este casamento, para nós, uma verdadeira tábua de salvação. Ele nos dará enfim a tranqüilidade e assegurará brilhantemente o teu futuro, ao mesmo tempo que fará de ti uma das mais ilustres senhoras da França.

— Oh! Eu!... — murmurou Valderez em voz quase extinta.Seu olhar tornou a encontrar-se com o da mãe, súplice e patético. Ah! Também

ela lhe negava socorro! A senhora de Noclare era uma alma fraca, unida a um corpo fatigado; não tivera nunca outra vontade que não a do marido; nunca soubera dirigir os filhos. Era Valderez, admiravelmente dotada de grande força moral, que assumia

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as responsabilidades de educação dos irmãos e das irmãs. Tendo pela mãe um afeto inconscientemente protetor, misto de compaixão e de respeito, timbrava em lhe poupar os mínimos cuidados. Por isso, compreendeu logo a significação daquele olhar.

— É também de teu agrado, mamãe? — balbuciou ela, o coração opresso, inclinando-se para a senhora de Noclare.

— Se é! Pois é o descanso para todos nós, minha filha! Saber-te assim tão bem casada!... Sou eu, é teu pai, são teus irmãos, todos nós salvos da miséria! Ora, vamos, Valderez, não há que hesitar!

— Sim, devo refletir — disse a moça em tom firme retificando a postura e voltando-se para o pai. — Tal decisão não pode ser tomada inconsideradamente. De resto cumpre informarmo-nos com o senhor d'Essil! Nós nada sabemos do marquês de Ghiliac... nada, nem sequer se tem alguns sentimentos religiosos e se a esposa dele pode contar com o respeito às suas convicções.

O senhor de Noclare fez um gesto de impaciência.— Julgas, acaso, que é um sectário? Como todos os Ghiliacs é, naturalmente,

católico; agora, quanto a ser praticante, parece-me pouco provável. Cumpre, porém, não exigir muito e não afetar de exagerada. Todavia, vou escrever ao senhor d'Essil, se fazes questão disso. E, enquanto não vem a resposta, refletirás à vontade. Mas não esqueças que se trata, para nós todos, ou da miséria, ou de um futuro tranqüilo, conforme a resolução que tomares.

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CAPÍTULO V

Oh! Não, ela não devia esquecê-lo, pobre Valderez. Toda a noite volveu e revolveu consigo mesma a terrível alternativa: ou a miséria para todos os seus e a vida tornando-se um inferno devido ao ressentimento paterno, ou o casamento com esse desconhecido.

Por que, pois, lhe inspirava esta última solução semelhante horror? Não o saberia dizer claramente. Natureza excepcional e encantadora, amadurecida pelas grandes responsabilidades que lhe estavam afetas, pela existência severa que levara, conservava, até então, Valderez, além do mais, a ingênua simplicidade, o espírito impressionável de criança. A extrema circunspecção do seu caráter e sua profunda piedade preservavam-na de toda e qualquer tendência romanesca, de quaisquer desejos de luxo e vaidade. Por isso, nessa primeira visita de Ghiliac, sentiu-se menos impressionada pelo exterior atraente desse estrangeiro do que pelo que havia de enigmático e inquietador naquela fisionomia, naquele olhar, naquele sorriso. E pois, como dissera ao pai, para logo o pressentira completamente diferente dela mesma, da humilde Valderez, afeita à pobreza, aos duros misteres caseiros, desconhecendo inteiramente os requintes de elegância tão diferente, em todos os seus gostos, das jovens de seu meio. Seria possível que ela se tornasse a esposa desse ilustre titular? Não seria por demais frisante a incompatibilidade entre ambos?

Tais foram as perguntas que, na manhã seguinte, após uma noite de insônia, dirigiu ela, na igreja, ao bom e velho cura de Saint-Savinien com quem fora aconselhar-se.

— Eis aí, minha filha, uma alternativa muito séria — disse o padre, sacudindo a cabeça. — Quanto a esse ponto, acho que não deves ter receio, por isso que ele mesmo declarou que não terias uma existência mundana. É que ele procura, antes de tudo, uma esposa honesta, coisa que depõe muito a seu favor e deve inspirar-te confiança.

— Mas posso eu, lealmente, aceitar o seu pedido, quando por ele tenho indiferença — mais do que isso, uma espécie de desconfiança?

— Isso agora é mais grave. E por que essa desconfiança, minha filha?— Eu mesma não sei, senhor cura... Ele é tão diferente dos demais homens que

tenho visto até aqui! Seu olhar tem uma expressão que não sei definir, que atrai e perturba ao mesmo tempo. Demais, sob suas maneiras afáveis, é frio e altivo... receio que seja sarcástico e muito cético. Finalmente, senhor cura, para tudo dizer numa palavra, eu não o conheço, e é isso o que me faz temer.

— E o senhor d'Essil não poderia dar-te informações?— Meu pai vai escrever-lhe. É um homem sério e leal; há de, com certeza,

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dizer-nos tudo o que sabe a respeito. Preocupa-me também muito a questão religiosa. Parece-me que o senhor de Ghiliac é ateu.

— Minha filha, o teu caso é muito delicado. Se se tratasse somente de ti, eu diria: "Não aceites, já que te inspira tanto horror a idéia de semelhante união". Mas trata-se também dos teus... Pedem-te um sacrifício. E tu, Valderez, és bastante forte para o fazeres. Ora, o ponto está em saber se tens esse direito. O matrimônio é um sacramento com que não se deve brincar. Só podes aceitar o pedido do senhor de Ghiliac se te resolveres, não somente a cumprir todos os teus deveres de esposa, senão ainda afastar de ti esse temor, essa desconfiança, e empregar todos os esforços para amá-lo, o que é um preceito divino. Se não te julgas com forças para isso, então, por mais que te custe dize que não.

Valderez esfregou as mãos frias e trêmulas, murmurando:— Não sei! Se ao menos pudesse conhecê-lo um pouco mais! É bem verdade

que o tom de sua carta parece ser sincero... mas sê-lo-á? Que fazer, meu Deus, que fazer?

E pelas faces lhe corriam lágrimas. O bom cura contemplava-a comovido, pois bem conhecia essa alma, a um tempo terna mas enérgica. Saberia esse estranho, que pedia a mão de Valderez, compreender e apreciar essa alma delicada, esse coração amante, de que ele ia ter as primícias? Ah! Pelo retrato que dele lhe fizera a moça, sentia o cura tomar-se de dúvidas a esse respeito. Esteve a pique de lhe dizer que recusasse. Não ignorava, porém, a lamentável situação da família de Noclare, como também não ignorava que, em caso de recusa, o senhor de Noclare não perdoaria jamais a filha e que a existência desta se tornaria insuportável. E se o sacrifício pudesse ser feito, sem que se atentasse contra os direitos da consciência, não cumpria consumá-lo, fosse como fosse?

Foi o que ele explicou a Valderez, acrescentando que a suposta incredulidade do senhor de Ghiliac não seria, nesse caso, um obstáculo absoluto, contanto que se achassem asseguradas a liberdade religiosa da esposa e a educação dos futuros filhos.

— Isto que te digo, minha filha, eu não o diria a todas as moças. A incredulidade do marido é, em geral, um perigo para a fé da esposa e para a dos filhos. Mas tu és uma alma profundamente crente, inteligente e reta, estás bem instruída na religião e é possível que o sejas ainda mais. Nessas condições, não haverá perigo para ti, e podes até esperar que, com o auxílio dos teus exemplos e de tuas orações, consigas converter o teu esposo.

— Ainda assim, será desagradável para mim! — suspirou Valderez. — Deve ser tão bom terem marido e mulher as mesmas crenças, as mesmas celestes esperanças!

— Oh! Minha filha, como eu quisera que assim fosse! Reflete muito, pede muito

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a Deus principalmente Valderez. Vê se te podes habituar à idéia dessa união. Segundo me dizes, do tom da carta do senhor de Ghiliac parece evidente que tudo se resume para ele unicamente num casamento de conveniência. Logo, ele não pode, por enquanto, exigir de ti mais do que a obrigação de cumprires os teus deveres para com ele e de lhe ganhares pouco a pouco a afeição! Terás uma bela tarefa junto dessa criança, órfã de mãe, e outra ainda, mais delicada e não menos bela ao pé de teu marido. Tudo isso deve ser para ti um incitamento se, conforme as informações que receberes, nada se opuser a esse casamento.

— Serei obrigada a abandonar os meus irmãozinhos! — exclamou sufocada. — Que será deles, sem a sua Valderez?... Mas não! Ninguém é indispensável no mundo.

— És, pelo menos, minha filha, muito útil; eles porém, já estão em idade de se recolherem a um internato, e Marta já pode substituir-te. Demais, minha filha, não tens o direito de escolha — concluiu o cura, num suspiro. — Volta para casa, e amanhã celebrarei o santo sacrifício por tua intenção.

O que Valderez sofreu nestes três dias, só o souberam Deus e o velho cura, confidente de sua alma. Quantas vezes invejou ela a sorte de Alice d'Aubrilliers, cuja carta denotava em cada linha uma felicidade tranqüila, cimentada numa sincera e mútua afeição.

E como um incessante aguilhão, repetia-lhe de contínuo o pai: "Feliz Valderez, tu, sim, podes dizer, tiveste as fadas por madrinhas!". A mãe murmurava em êxtase: "Minha futura marquesinha!", e Marta exclamava cem vezes por dia; "Oh! Por que hesitas? Eu teria dito, imediatamente, sim!"

Ninguém podia pensar na impossibilidade de uma recusa. E Valderez, o coração opresso pela angústia, dizia para si mesma que nada, humanamente, poderia salvá-la dessa união.

A resposta do senhor d'Essil não se fez esperar. Dizia francamente tudo o que sabia a respeito de Elias, suas dúvidas, suas inquietações, e também as suas suspeitas de predicados mais sérios do que permitiam julgar as simples aparências.

O senhor de Noclare não leu à filha essa carta. Passou em silêncio o que era desfavorável, espraiando-se longamente quanto ao mais, insistindo no fato de que no proceder do senhor de Ghiliac nada havia que pudesse sofrer crítica, e que, por mais indiferente que parecesse, o marquês desejava possuir uma esposa, que fosse muito boa cristã.

— Um indiferente! — murmurou Valderez com tristeza.— Ah! Procurarás convertê-lo eis aí! Já é muito de sua parte querer seja

religiosa a esposa. Parece-me que isto deve encorajar-te.

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Valderez, num gesto inconsciente, esfregava as mãos.— Que sacrifício, papai! Asseguro-lhe que só mesmo a situação em que nos

achamos é que faria que eu aceitasse um casamento nestas condições!O senhor de Noclare precipitou-se para ela.— Estás doida varrida. Ora já viram uma rapariga assim? Não se deve discutir

contigo, uma vez que tens semelhantes raciocínios e idéias tão estapafúrdias. Vou responder agora mesmo ao senhor de Ghiliac. Sim, não é verdade?

Uma derradeira hesitação paralisou a alma de Valderez. A moça disse entre si "Meu Deus", se é preciso que eu faça este sacrifício, eu o farei por eles, e com vontade firme de cumprir o meu dever para com ele". E, em voz clara, respondeu decidida:

— Pois sim, papai.

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CAPÍTULO VI

Alguns dias depois, chegava aos Altos-Pinheiros o senhor de Ghiliac. Valderez pusera o seu vestido domingueiro, uma saia azul-ferrete de uma simplicidade monacal, desgraciosa pelo mau talhe da costureirinha da aldeia. Muito pálida, as feições alteradas pela insônia e pelas dolorosas incertezas desses últimos dias, sentara-se no parlatório ao pé da mãe. O senhor de Ghiliac, introduzido pela velha Cristiana, que o observava por baixo dos olhos, cumprimentou a senhora de Noclare e em seguida, inclinando-se diante de Valderez, pronunciou algumas palavras com os mais rebuscados agradecimentos. Depois, tomando-lhe a mãozinha um tanto trêmula, pousou nela os lábios, enfiando-lhe no dedo o anel de noivado.

A loquacidade do senhor de Noclare e os modos extremamente mundanos do marquês vieram felizmente em auxílio de Valderez, que a custo pronunciou algumas palavras estranguladas. Ghiliac contou, com vivacidade um pequeno incidente da viagem, que punha de manifesto o traço particular do caráter condalino, dirigindo-se, de quando em quando, a Valderez. Esta respondia com poucas palavras, visivelmente constrangida diante desse mágico conversador, que percebia ser um tanto mordaz, e também intimidada por esses olhos penetrantes e enigmáticos, cujo olhar às vezes se encontrava com o seu.

— Valderez, deves aproveitar este raio de sol para mostrares ao senhor de Ghiliac a vista que se descortina do terraço — lembrou Noclare.

— Se isso lhe interessa, senhor...— Como não senhorita! — assentiu Ghiliac, pondo-se logo de pé.Valderez pôs na cabeça uma touca de pano escuro e acompanhou-o ao jardim.

Caminhava pela aléia principal, um ao lado do outro. Ela, presa ainda de irreprimível timidez, não encontrava uma palavra que dizer ao noivo, tão corretamente elegante, tão friamente cortês. Mas Elias de Ghiliac não era homem que se deixasse embaraçar, fossem quais fossem as circunstâncias. Começou, pois, a inquirir Valderez sobre coisas de religião, ao que a moça, dominando-se, respondia com simplicidade, patenteando assim a inteligência apuradíssima, muito penetrante e muito mais cultivada, do que o julgara Ghiliac, porquanto este, a certa altura, disse-lhe com certa surpresa;

— Julgava que não houvesse nunca saído deste canto de província; mas vejo que é bem instruída...

— Fui educada, até aos dezesseis anos, nas Beneditinas de S. João, muito perto daqui, onde os estudos são seriamente dirigidos por uma abadessa ilustradíssima. Aqui mesmo, nos meus raros momentos de lazer, eu estudava ainda... Mas não julgue encontrar em mim a ilustração moderna, tão extensa quanto variada — acrescentou

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ela sorrindo — um sorriso tímido, delicioso, que lhe comunicava à fisionomia um indescritível encanto.

— Oh! Nem eu quisera isso, asseguro-lhe! — disse ele com certa vivacidade. — Em geral, costumam ensinar às jovens toda a sorte de conhecimentos, que as mais das vezes, lhes é inútil.

Chegaram, assim, à base do terraço, cujos degraus começaram a subir lentamente. A neve estalava-lhes debaixo dos pés. Elias debruçou-se à balaustrada de pedra carcomida, contemplando demoradamente o vale todo branco, os pinheiros cobertos de sua ornamentação alvíssima, as encostas rochosas, entre as quais se cavavam abismos profundos. Era de uma austera beleza esse panorama, sob os pálidos raios do sol, que fazia a neve resplandecer em grandes manchas de luz, e irradiar cintilações argênteas nos ramos dos pinheiros.

— Isto aqui é magnífico, mas de aspecto severo — ponderou Ghiliac, voltando-se para Valderez. — A vida deve-lhe correr aqui muito triste.

— Ainda não tive tempo de dar por isso. Demais gosto muito daqui, e o campo, mesmo no inverno, tem para mim um grande encanto.

— Então há de gostar também de Arnelas. O castelo está admiravelmente situado na mais bela parte do Anjou; os arredores são lindos... Poderá fazer ali algumas agradáveis relações. Deseja conhecer as distrações mundanas?

Esta pergunta, ele dirigiu-lhe quase à queima-roupa.— Oh! Absolutamente! — respondeu ela. — Se bem que eu ignore a sociedade,

o que dela tenho ouvido dizer, confesso-lhe, não me tem tentado. Nunca desejei senão uma vida tranqüila e utilmente ocupada.

Elias envolveu num rápido olhar o semblante de linhas admiráveis, iluminado pelos doces raios desse sol hibernal que punha reflexos de ouro-velho nos magníficos cabelos de Valderez, arrepanhados com a mais extrema simplicidade. Nos olhos castanhos, o inimitável observador podia ler uma sinceridade absoluta.

— Tem razão, e eu só posso louvar tão prudentes palavras — disse ele, em tom sério. — Vejo que a Guilhermina estará em boas mãos, coisa que, parece, até aqui lhe tem faltado.

Parece. Esta palavra soou estranhamente aos ouvidos de Valderez, que perguntou timidamente:

— E essa criança me acolherá bem? Qual é o seu caráter?— Confesso-lhe que disso nada sei absolutamente! A falar verdade, posso

mesmo dizer que nem a conheço; vejo-me por isso impossibilitado de lhe dar qualquer informação sobre este assunto... Ah! Sim, lembro-me de ter ouvido minha mãe dizer que é um pouco triste por causa da sua saúde delicada, mas que é muito

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meiga.— Então o senhor não a vê nunca? — interrogou Valderez, erguendo os olhos

para o belo rosto altaneiro do senhor de Ghiliac.— Sim, vejo-a às vezes, quando estou em Arnelas. Mas não me preocupo com

ela; o que tem sido até aqui tarefa de minha mãe; agora será a sua, pois que houve por bem aceitar o meu nome.

O tom frio e peremptório, em que eram ditas estas palavras, gelou a pobre Valderez, estupefata e aterrada ante essa completa indiferença paterna. É provável que o senhor de Ghiliac percebesse o efeito produzido por elas; não se dignou, porém, atenuá-las. Mudando o rumo à conversa, perguntou, lançando um olhar ao anel de noivado, cujo magnífico diamante, ferido pelo sol despendia brilhos maravilhosos:

— Agrada-lhe esse anel? Escolhi-o de acordo com o meu gosto, que pode não ser o seu. Nesse caso, diga-me francamente.

— Oh! Agrada-me, sim, senhor! Eu nunca tive jóias.Bem desejaria ela acrescentar: "Importa-me isto tão pouco, em comparação com

tantas outras questões mais sérias!"— E a senhorita gosta de jóias?— Confesso-lhe que não cheguei nunca a desejá-las.— Pois quero ter o prazer de oferecer-lhe ainda outras. Mas desejo antes

conhecer o seu gosto.— Oh! Peço-lhe que as escolha à sua vontade, será muito melhor.— Pois sim — assentiu ele, num tom de quem dirigia a pergunta por simples

cortesia, mas que, de fato, julgava a solução de todo o ponto razoável.Deixaram o terraço. O senhor de Noclare e Marta vieram ao encontro dos

noivos, e juntos regressaram todos à casa, cuja velha arquitetura Ghiliac examinou como artista que era. À entrada do salão, despediu-se Valderez. Cristiana estava nesse dia com o seu reumatismo; precisava auxiliá-la no preparo do jantar, mais complicado que de ordinário, mercê das circunstâncias.

Enquanto a moça atava à cintura um grande avental, Cristiana, erguendo o rosto inclinado para o fogão, disse em tom sentencioso:

— Fazes mal, minha filha, em te casares com esse parisiense. Olha que ele não foi feito para ti.

— Por que pensas assim? — consultou Valderez, tentando sorrir.— Não é difícil adivinhar. É bem verdade que ele tem uma carinha e maneiras

que farão andar à roda muitas cabecinhas; mas tu não é nenhuma dessas; o que precisas é de alguma coisa mais grave do que isso. Pouco importa que seja marquês e

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tenha milhões, dos quais não sabe o que fazer; não será isso que te dará felicidade... Nem isto tampouco... — acrescentou, apontando para o anel que brilhava no dedo de Valderez. — não é o teu ideal, minha filha, e receio muito que não se entendam.

— Que pássaro de mau agouro que me estás saindo, minha boa Cristiana. Esperemos que não se realizem as tuas sinistras predições!

A criada sacudiu a cabeça resmungando algumas palavras. Era de natural melancólica, "sempre inclinada para o pior", costumava dizer o senhor de Noclare com impaciência, e o menor acontecimento servia-lhe de pretexto para sombrios vaticínios.

Contudo, naquele momento, Valderez não estava longe de acreditar que a velha via claro o assunto. Ela bem sentia, sob as aparências corteses do homem de sociedade que era o senhor de Ghiliac, uma fria indiferença.

Sim, em verdade ele era o mais frio dos noivos. Durante o jantar, conversou o maior tempo com o senhor de Noclare sobre corridas, teatros, desportos, elegantes assuntos prediletos do futuro sogro e de todo o ponto estranho à noiva. Aliás, Valderez não teria podido sustentar uma conversação seguida, porquanto era obrigada a superintender a criada suplementar, contratada para aquele dia. Duas ou três vezes, apesar do sobrecenho carregado do pai, teve de levantar-se a fim de suprir por si mesma uma falta no serviço; fazia-o, porém, com uma graça tão simples e digna que, ainda assim, era infinitamente aristocrática e encantadora.

Ghiliac parecia não dar por isso. Como verdadeiro fidalgo que sabe adaptar-se a todas as situações, sentia-se tão à vontade nesse meio de pobreza como se estivesse em sua casa, cercado de atenta criadagem, que o sabia exigentíssimo até nos mínimos pormenores do serviço. Dir-se-ia que saboreava aquele simples mas bem preparado jantar como se fosse o requinte culinário do seu cozinheiro, um artista, a quem pagava verdadeira fortuna.

Em certa ocasião, foi Valderez quem lhe mudou o prato. Elias lançou um olhar à sua mãozinha bem feita, mas curtida e um tanto maltratada pelos trabalhos caseiros; depois olhou para as suas, brancas, finas, cuidadas como as da mais elegante mulher. Durante alguns segundos, brincou-lhe nos lábios um sorriso, ao mesmo tempo que uma expressão indecifrável lhe atravessava o olhar que se pousara rapidamente no belo semblante da moça, um tanto corada pelo calor da sala e, principalmente, pela comoção.

Findo o jantar, Elias pouco mais se demorou, retirando-se logo, a fim de não perder o trem da noite. Havia decidido que o casamento se realizaria daí a seis semanas.

— Tão depressa! — ponderou involuntariamente Valderez, corando, entretanto,

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ao olhar de surpresa ligeiramente irônico que se pousou sobre ela.— É que depois estarei muito ocupado, razão esta por que eu desejaria que o

nosso casamento se efetuasse o mais cedo possível — justificou Ghiliac. — Todavia, se lhe parece muito curto este prazo, nós o adiaremos para quando julgar conveniente.

Mas já Valderez tornara a si, parecendo-lhe preferível que o fato inevitável se consumasse o mais breve possível. E a data ficou definitivamente assentada, como desejava Ghiliac.

Esse noivo original não deu mais sinal de si, a não ser pela remessa quotidiana de ricas corbelhas de flores, verdadeiras maravilhas que arrancavam gritos de admiração à senhora de Noclare e à Marta, enquanto Cristiana sacudia a cabeça, murmurando:

— Aí está como se deita dinheiro fora! Andaria melhor esse belo senhor se viesse ver a sua prometida!

Valderez, entretanto, dizia de si consigo que assim era melhor, pois, pelo menos nesses derradeiros dias de sua vida de donzela, podia refletir melhor, encorajar-se, recorrendo às suas orações e aos conselhos do velho cura para o futuro muito próximo — o terrível futuro que a poria sob a autoridade desse estranho, que a desejava, e, ao mesmo tempo, receava conhecer melhor.

Um dia, chegou a corbelha da noiva. Valderez, indiferente, via os pais que examinavam as sedas, as peliças, as rendas, retirando dos estojos dois adereços, um de brilhantes, outro de esmeraldas...

— Tudo isto é de uma riqueza sem nome! — exclamava a senhora de Noclare, com a voz trêmula de admiração. — Olha este manto de pele! É mais que principesco! E esta renda de Alençon!

— Oh! Ele pode dar tudo isto à esposa, e muitas outras coisas mais! — afirmou o senhor de Noclare, num tom em que se mesclavam a inveja e a satisfação orgulhosa. — Avalias, porventura, Valderez, a fortuna que representa esta corbelha?... E ela nem olha sequer! Sempre és uma noiva... Que estás aí a malucar com esse ar tão sério?...

— Pergunto a mim mesma, papai, por que me envia o senhor de Ghiliac todas estas coisas, se eu tenho de viver no campo.

— Ah! Imaginas isso? Pois eu não o creio, já agora, porque, a meu juízo, tudo isto significa que teu noivo, vendo que trarias como nenhuma outra estes adereços, destina-te uma existência mais brilhante do que julgas.

— Eu não o desejo! — disse ela, com uma espécie de terror.— Ora! Quero que me digas isso depois de haveres experimentado e gozado,

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minha selvagenzinha! Não podem imaginar o efeito que hás de produzir... Sim, senhor! Que gosto em tudo isto! Ah! Ghiliac conhece a elegância! Terás uma boa escola, onde possas fazer a tua educação mundana, minha filha! E vejam como ele soube escolher o que melhor se ajusta ao gênero de beleza de sua noiva! Estas esmeraldas são de um efeito incomparável nos teus cabelos, Valderez!

Colocou na testa da filha o magnífico diadema, enquanto Marta envolvia a irmã nas dobras macias de uma seda bordada a ouro.

— Sim, foste feita para trazeres semelhantes adereços, minha filha! — exclamou, entusiasmada, a senhora de Noclare.

Valderez retirou silenciosamente o diadema, colocou-o no estojo, dobrou a esplêndida fazenda, e foi recolher a roupa da última lavagem.

Como de boa vontade daria ela tudo aquilo em troca de um pouco de afeto, de uma simpatia recíproca!

Acompanhava a corbelha um curto bilhete. Este era uma obra-prima de fina elegância, delicada cortesia, mas fria deferência. O senhor de Ghiliac, cumpre fazer-lhe justiça, não afetava sentimentos que não possuía.

Viu-se, pois, Valderez, obrigada a responder-lhe. Era, de ordinário, senhora de um estilo fácil e elegante, mas dessa vez parecia-lhe tarefa muito acima de suas forças. Para esse noivo a quem, realmente, desconhecia, o coração se conservava mudo, e o espírito, fatigado, recusava-se a ditar-lhe algumas frases suficientemente corretas.

Valeu-lhe o esforço uma tão forte dor de cabeça acompanhada no dia seguinte de febre alta, de modo que foi o pai quem teve de responder ao futuro genro, informando-o da indisposição da filha.

Sempre muito correto, o senhor de Ghiliac enviou imediatamente um telegrama pedindo notícias, e o mesmo fez nos dias seguintes até ao momento em que Noclare lhe telegrafou: "Valderez completamente restabelecida".

Nos Altos-Pinheiros, ouvia a moça todos os dias entoarem louvores ao noivo. Realmente, os Noclares só podiam ter por ele um extremo reconhecimento. É que Elias, muito delicadamente, oferecia ao futuro sogro uma renda inesperada, cuja cifra entusiasmava o senhor de Noclare. Juntamente com a corbelha, chegaram também magníficos presentes para a senhora de Noclare e para Marta, acompanhados de frases amáveis. Certo era generoso, devia mesmo sê-lo no mais alto grau; mas isso era, sem dúvida, uma qualidade inata, fácil para quem possuía imensa fortuna e que podia não ser incompatível com uma grande frieza de coração.

— Meu Deus, fazei que eu lhe ganhe amizade! — rogava Valderez a todos os momentos. — Fazei que ele seja para mim um esposo bom e honesto.

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E, invariavelmente, evocava-o então a conversar com o pai sobre assuntos frívolos, ou no terraço, revelando-lhe a sua indiferença paterna. Qual seria o seu caráter? Isto era ainda para Valderez um terrível e profundo mistério.

O marquês de Ghiliac chegou aos Altos-Pinheiros na antevéspera do casamento religioso. Ofereceu à noiva uma fotografia de Guilhermina, dizendo-lhe que acabava de vê-la no castelo de Arnelas, aonde fora com o fim de dar um lance de olhos aos preparativos feitos para receber a jovem marquesa.

— Já anunciei a sua chegada — acrescentou-lhe. — Tenho a certeza de que transformará dentro em breve essa criança ainda um tanto selvagem, cujas mestras sucessivas não se deram provavelmente ao trabalho de lhe estudar o caráter.

Valderez contemplou longamente o rostozinho infantil um tanto magro, de grandes olhos tristes.

— Não se parece com o senhor, exceto talvez nos olhos — disse olhando para Ghiliac.

— Sim, é antes o retrato da mãe — concordou este num tom breve e ligeiro franzir das sobrancelhas.

Achavam-se a sós no parlatório. A senhora de Noclare, por sentir-se um pouco fatigada, recolhera-se ao quarto, e Noclare se demorava na procura de uns papéis que desejava mostrar ao futuro genro. Tinham pensado ambos que, para noivos muito discretos e cerimoniosos como eram, não seria mau o benefício de um colóquio, a sós.

Ghiliac, tomando as tenazes, inclinou-se a fim de endireitar uma acha que caira do fogão.

— A senhora verá amanhã minha mãe e minha irmã mais velha, a viscondessa de Trollens — disse atiçando o fogo. — A mana Cláudia, com muito pesar, não poderá vir da Áustria.

— Mas escreveu-me uma carta encantadora, enviando-me um belo presente. Deve ser muito amável!

— Sim, muito boa e graciosa e estou certo que lhe agradará muito mais que Leonor. Esta é um tanto moderna, o que lhe há de parecer bastante estranho. É, aliás, muito inteligente tendo até alcançado certo nome na literatura como romancista e poetisa. Ainda não leu nenhuma produção dela?

— Sim, lembro-me agora, já li alguns versos...— Então? Agradaram-lhe?As veludosas pupilas de Valderez denotaram um tal ou qual embaraço.— Confesso-lhe que não compreendi muito bem — disse com sinceridade.

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Elias soltou uma risada — um riso são, sem mescla de ironia, que lhe era pouco habitual.

— Ah! Pois isso é justamente a perfeição do gênero simbolista! A senhorita é profana... e eu também, tranqüilize-se. A esse respeito, temos tido, Leonor e eu, pequenas escaramuças, mas vá lá alguém convencer uma mulher, compenetrada de sua superioridade mental e que vê o marido constantemente em êxtase ante as suas nebulosas criações! Esse pobre Anatólio é o rei dos parvos.

Mostrava-se nesse dia, muito alegre e muito menos frio, exibindo todo o encanto irresistível do seu espírito pela noiva, a quem ele nessa tarde pertencia inteiramente. De quando em quando, o olhar volvia-se-lhe de inflexões sedutoras enquanto Valderez, a um tempo fascinada e comovida, pensava que não seria talvez tão difícil descobrir-lhe o lado bom do caráter e ganhar-lhe amizade e afeição.

— Mas ainda não falamos de nossa viagem de núpcias — disse ele. — Prefere que a façamos logo após a cerimônia, ou somente depois de passarmos alguns dias em Arnelas?

— Eu preferia conhecer logo Guilhermina, se o senhor nisso conviesse, — respondeu ela.

— Pois não. E partiremos em seguida para onde quiser. Qual o país que prefere?— Parece-me que gostaria muito de conhecer a Itália...— A viagem clássica. Sou também admirador entusiasta de algumas regiões

desse belo país e terei muito prazer em fazer que o conheça também. De passagem, nos deteremos em Menton, pois quero apresentá-la aos meus excelentes tios, o duque e a duquesa de Versanges, que há um mês ali estão como o fazem todos os anos. De volta de nossa viagem, poderemos passar algum tempo em Cannes, onde possuo uma vila. Por esse tempo, ser-lhe-á talvez agradável, se o mar não lhe causar enjôo, fazermos um cruzeiro a bordo do meu iate, cujas reparações estarão completamente terminadas dentro de dois meses. Voltaremos depois a Paris, onde em fins de abril se realizará a minha recepção na Academia.

Valderez ouvia-o, surpresa e perplexa. Que seria de Guilhermina, em meio de todos esses projetos, cuja saúde delicada exigia, como ele próprio havia declarado, a assistência contínua de Valderez no campo?

Essa mudança de vida não deixava de causar à pobre jovem um secreto receio — ela, que não passara nunca além de Besançon e vivera sempre na completa ignorância de si mesma, imaginando-se muito inferior ao que podia dela esperar o senhor de Ghiliac.

Havia ainda outra coisa que temer: a futura família. A condessa Serbeck, irmã de Elias, o duque de Versanges, tio-avô de Ghiliac, e a duquesa, todos lhe haviam

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enviado com soberbos presentes de noivado, palavras muito amáveis; mas as que acompanhavam o presente da senhora de Ghiliac e de sua filha mais velha eram frias e inexpressivas. Essas, sim, inquietavam um pouco Valderez que as sabia muito mundanas. Receava, a moça, não fosse por elas vista com bons olhos a escolha do marquês de Ghiliac. Todavia, ambas se deram ao incômodo de vir, em pleno inverno, a esse frio Jura, apesar dos incômodos da viagem e da estada nos Altos-Pinheiros, por mais breve que esta fosse. Se elas estivessem descontentes, certo não lhes teriam faltado pretextos para se absterem de assistir ao casamento.

Que figura faria Valderez ao lado dessas senhoras tão diferentes dela? Pessoalmente, pouco se lhe dava a opinião dessas damas, a seu respeito, mas é que já agora nutria o desejo, todo novo, de não desagradar ao senhor de Ghiliac.

— O senhor me dirá o que devo fazer, não é assim? Pois ignoro inteiramente os usos mundanos — disse ela a Elias nessa mesma noite da chegada do noivo, quando este se despedia, depois do jantar.

Ele sorriu ao ver o olhar belo e tímido de Valderez.— Com muito prazer, se vir que há necessidade mas a senhorita é por instinto

uma grande dama, e depois há de se adaptar desde logo a todas as circunstâncias.Ela corou ligeiramente. Era o primeiro galanteio que ele lhe dirigia. E o olhar

com que o noivo a sublinhou fez nascer no coração de Valderez uma emoção desconhecida.

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CAPÍTULO VII

"É um homem de todo perplexo e estupefato, quem ora te escreve, minha Gilberta. Ao aceitar ser uma das testemunhas de tua afilhada, estava eu bem longe de supor a surpresa que me reservava Elias a quem com muita razão qualificaras de extraordinário. Pois bem! Ali estava o homem que me declarara não querer, principalmente, mulher bonita, e...

"Mas deixa-me contar-te tudo por miúdos. Chegamos, pois, aos Altos-Pinheiros, nessa tarde, de carruagem, a senhora de Ghiliac, Leonor, Anatólio de Trollens, o príncipe Sterkine e eu. Recebeu-nos o senhor de Noclare. Está inteiramente mudado, não o reconhecerias: só tinha olhos para o futuro genro. Entramos no salão. Elias apresenta aos parentes a senhora de Noclare e a noiva. Aqui, uma mudança em cena. Temos diante dos olhos a mais ideal beleza que já se viu. Cáspite! Oh, quanto mudou esta criança! É uma desenvoltura de grande dama, se bem que estivesse visivelmente constrangida. Imagina, também, se podes, as impressões da pobre Ermínia, cuja beleza, posto que bem conservada, está longe de competir com a da nora. Apesar de toda a sua ciência de mulher de sociedade, não conseguiu ela dissimulá-la completamente, a ponto de dizer-me o príncipe Sterkine, instantes depois:

"— Felizmente, a senhora de Ghiliac não tem influência sobre o filho, que foi sempre senhor de suas ações, e esta deliciosa marquesinha será idolatrada pelo marido, porque, se assim não fora, como eu a lastimaria!

"Idolatrada? Sim, assim devia ser. Mas a verdade me obriga dizer-te que Elias não parece de modo nenhum estar apaixonado. E coisa ainda mais estranha — Valderez também não parece bastante enamorada!

"Sem dúvida, ainda se conhecem muito pouco! Mas estamos habituados a ver as paixões que inspira uma simples fotografia de Elias. Por isto, acho que Valderez há de se ter sentido fascinada e cativa desde o primeiro momento em que o viu. Verdade é que ele parece muito glacial para com ela... Muitas vezes, pergunto a mim mesmo, Gilberta, se fizemos bem facilitando esse casamento. Sua fisionomia pareceu-me nesta tarde mais impressionante que nunca. Contemplei-o enquanto fazia a apresentação da noiva! Vi-lhe nos olhos a expressão de alegre ironia, e nos lábios o meio sorriso sarcasticamente enigmático que me desagradam. Evidentemente esse amador se comprazia em notar as diversas expressões de surpresa que se estampavam nas fisionomias dos parentes e do amigo; sim na minha também, provavelmente. Ele não ignora que sua mãe vai ficar com ciúmes da nora e que a irmã fará outro tanto. Terá ele com isso algum prazer?

"E irá realmente confiná-la nas Arnelas? O príncipe Sterkine, como nos preparássemos para subir na carruagem, a fim de nos dirigirmos à mairie, segredou

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ao ouvido de Elias:"— Olha cá, meu amigo, que surpresa, hem? Fazer tudo isto às escondidas! Aí

está uma marquesinha de Ghiliac que vai causar sensação nos salões de Paris."— Engana-se. Minha mulher não se destina a viver essa estúpida existência

mundana — replicou Elias em tom breve, que indica ser ociosa á observação."O excelente Sterkine permaneceu um instante como enleado. De fato, com

Elias nós nunca sabemos onde estamos. É o ente mais original que conheço."A tua afilhada, minha cara Gilberta, é uma deliciosa criança, tanto no físico

como no moral. Não, a palavra criança não lhe cabe bem: é já uma jovem, a verdadeira jovem, que conservou toda a candura, toda a delicadeza de sua alma. Saberá Elias apreciar o tesouro que vai possuir? Deixar-se-á tocar esse enfarado, esse insensível, pela graça pura, pela frescura de alma, pelo coração de Valderez que adivinho extremoso, sensibilíssimo, e ao qual tão facilmente poderá fazer sangrar? Ter-lhe-á o cérebro abafado completamente o coração?

"Confesso-te, minha amiga, que hei de sentir-me amanhã um tanto apreensivo ao vê-los trocar os juramentos. Se as coisas se repetissem... juro-te que eu não lhe tornaria a falar de Valderez!

"Agora, alguns informes quanto ao modo como nos instalamos, por estas vinte e quatro horas. Hospedei-me nos Altos-Pinheiros; a senhora de Ghiliac, Leonor, Elias e o príncipe Sterkine irão dormir no castelo das Virettes, próximo daqui, posto por seus proprietários à disposição dos Noclares.

"Preparam ligeiramente, para as circunstâncias, o melhor possível, os principais aposentos dos Altos-Pinheiros, — por conta, provavelmente, de Elias. Confessou-me Noclare que estava em vésperas de ruína completa quando lhe chegou o pedido do marquês de Ghiliac. Era a salvação para todos — e desconfio que Valderez se sacrificou pelos seus, simplesmente.

"Sacrificar-se, casando com Elias! Eis aqui uma palavra que soaria estranhamente aos ouvidos de muitas mulheres — que dizer, cara amiga? — e, principalmente, aos de Roberta de Brayles. Mas Valderez é feita de outro estofo. Se Elias não a amar sincera e honestamente, muito há ela de sofrer, porquanto não me parece que se satisfaça com atenções passageiras, caprichos de seu senhor e patrão, como também, sem dúvida, será capaz de o adorar cegamente, nos seus defeitos e nas suas qualidades, como o fariam, decerto, muitas outras.

"Bem vês que torno sempre aos nossos receios. Vou ver se consigo conversar a sós alguns instantes com Elias, a fim de procurar surpreender o seu verdadeiro pensamento. Tarefa difícil, para não dizer impossível.

"Aproxima-se a hora do jantar. É tempo de me despedir de ti, minha cara

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Gilberta. A nossa bela noivinha encarregou-me de apresentar-te as suas afetuosas lembranças, bem como a senhora de Noclare. Esta, um pouco sobre-excitada neste momento, parece-me menos combalida. É curioso: este casamento não parece inspirar-lhe nenhum cuidado! Como o marido, está igualmente fascinada por Elias. Que terrível fascinador que é este homem! Pois se até eu, às vezes, me deixo levar como os demais! Mas, ainda assim, não lhe daria uma filha com tanta serenidade.

"Marta está uma criança muito interessante, e Orlando um belo menino, galante e bem educado: tem o olhar puro e profundo da irmã mais velha. Queria ser padre, mas disse-me Noclare que jamais o consentirá: prefere, sem dúvida, que o filho se torne um inútil e uma ruína moral como ele próprio...

"Vou terminar, Gilberta. Estarei contigo depois de amanhã; contar-te-ei então minuciosamente tudo o que se tem passado, inclusive os desgostos da senhora de Ghiliac, a qual, entre parênteses, devia nutrir suspeitas quanto à escolha de Elias, apesar do modo como este nos declarou, ao regressar dos Altos-Pinheiros: "A senhorita de Noclare satisfaz todos os meus desejos e será uma segunda mãe para Guilhermina". Era necessário, sem dúvida, que ela tivesse um forte desejo de conhecer sua futura nora, para que viesse, com um tempo destes, até aqui, privando-se, se bem que por vinte e quatro horas, de todo o seu luxuoso conforto habitual."

Terminava o sarau. O grande salão dos Altos-Pinheiros, mobiliado apressadamente mas com gosto, ornado de tufos, azevinho e agárico, apresentava nessa noite um desacostumado aspecto. Havia já muito tempo que o velho salão não presenciava semelhantes reuniões, e grande deveria ser o pasmo da jovem desposada, que, pela primeira vez, se via em contato com algumas das mais notáveis personalidades do meio em que iria viver.

Valderez trajava nessa noite um vestido de tecido leve, feito por excelente costureira de Besançon; o tom cor de pele de amêndoa condizia admiravelmente com a tez deliciosa da moça. Essa toilette, embora simples, não se eclipsava ao lado dessa outra, de extrema elegância, da senhora de Ghiliac, nem ao lado daquela outra, mais excêntrica, da senhora de Trollens, ambas confeccionadas em célebres casas de modas.

A moça falava pouco. Intimidava-a a bela marquesa de Ghiliac, soberba morena de olhar frio; desagradava-lhe, como já lhe predissera o noivo, a senhora de Trollens, de porte altivo e por demais presumida. O visconde de Trollens era um joão-ninguém. De parte, naturalmente, o senhor d'Essil, que já conhecia e apreciava, desde muito tempo, só lhe era simpática a fisionomia franca e serena do príncipe Sterkine.

Durante a cerimônia do casamento civil, como durante o jantar, bem tivera

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Valderez a consciência de que era alvo de exame discreto mas incessante. Secretamente vexada por todos esses olhares, conseguira entretanto manter a atitude habitual de encantadora simplicidade com uns longes de recato, a um tempo tímido e altivo, que lhe comunicava à beleza um caráter particular.

O senhor de Ghiliac estava nessa noite verdadeiramente encantador. Sua conversação fascinara literalmente os poucos amigos dos Noclares, convidados para o jantar, inclusive o próprio cura. Valderez ouvia-o com um misto de prazer e terror. Esse homem extraordinário emitia conceitos profundos, teorias morais irrepreensíveis; súbito saía-lhe de novo nos olhos soberbos a ironia, o que mais se acentuava com o tom da voz, de inflexões melancólicas. E a pobre noiva, inteiramente desamparada, não sabia o que devia pensar ou esperar.

Não haviam tido os noivos, nesse dia, o mais ligeiro colóquio. O senhor de Ghiliac, aos olhos de estranhos, não denotava o seu amor pela noiva. Voltava a encontrar nele a frieza, que lhe parecera na véspera ter sofrido um eclipse. E o coração apertava-se-lhe de novo.

Pelas onze horas, os hóspedes dos Altos-Pinheiros despediram-se, a fim de se dirigir aos seus respectivos aposentos. Valderez, que se afastara um instante, para endireitar os tições que estalavam, despedindo fagulhas, estremeceu ligeiramente ao ver junto de si o senhor de Ghiliac.

— Deixa-me fazer isso. Com um vestido assim leve, seria uma imprudência.E com três toques das tenazes acalmou os tições; depois, voltando-se para a

moça:— Agora, deixe que a cumprimente pela sua linda toilette, que está

encantadora e a torna ainda mais bela, se é possível. Mas há de estar fatigada, não comeu quase nada. É preciso que vá descansar, minha cara Valderez.

Falava a meia voz, num tom repassado de desacostumada meiguice. A moça ergueu para ele os grandes olhos luminosos, que refletiam uma tímida comoção. Os cílios castanhos de Elias palpitaram, e o olhar tornou-se estranhamente meigo. Inclinou-se e, tomando a mão de Valderez, levou-a aos lábios com a inimitável galanteria que fazia o apelidassem "o derradeiro palaciano". Mas, desta vez, o beijo foi mais demorado que de costume. E quando Elias retificou a postura, Valderez, toda corada de tímida comoção, viu um brilho desconhecido nos olhos azuis que se pousavam de novo sobre ela.

Nessa noite, quando se achou só no quarto, sentiu algo como um clarear impreciso de felicidade, uma aurora de esperança que lhe fazia bater descompassadamente o coração.

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CAPITULO VIII"Uma Noclare que se casa num dia em que cai neve, é quase certo ser feliz no

lar".Este adágio, murmurava-o a velha Cristiana ao levantar-se na manhã do dia em

que se realizaria a união do marquês de Ghiliac com Valderez de Noclare. Este casamento não era do agrado de Cristiana e, por isso, não se cansava ela de repetir os sombrios presságios que deviam, a seu juízo, anunciar a sorte da jovem desposada.

A senhora de Noclare viera presidir à toilette da filha e, vencida pelo cansaço e pela comoção, teve de retirar-se logo, a fim de repousar um pouco antes da partida para a igreja. Marta ficou então junto da irmã para auxiliá-la nos últimos retoques da toilette.

— Pronto, querida! Estás linda, Valderez! Certo, o senhor de Ghiliac...Nesse instante, bateram de mansinho à porta. E Marta ao abri-la, deu de rosto

com a senhora de Ghiliac, no seu vestido sobriamente elegante, propositadamente escolhido para esse casamento no campo.

— Posso ver sua irmã, menina?— Pois não, minha senhora! Faça o favor de entrar — respondeu logo Valderez,

indo ao encontro da sogra.A senhora de Ghiliac estendeu-lhe a mão.— Soube agora mesmo, minha filha, que a senhora sua mãe teve necessidade de

deixá-la a fim de repousar um pouco, e então vim ver se você precisava de alguns conselhos quanto à sua toilette.

— Oh! Minha senhora, quanta bondade! — exclamou Valderez, tanto mais admirada, quanto a atitude da marquesa havia sido na véspera sempre fria e reservada. — Agradeço-lhe de todo o coração, mas como vê, já estou pronta.

— Tanto melhor para você em ser pontual, porque Elias não tolera que o façam esperar.

E dizendo e fazendo, inclinava-se, compondo os cabelos da moça. Seus lábios crisparam-se ligeiramente, ao mesmo tempo que o olhar, onde brilhava uma chama, envolvia o admirável semblante de Valderez, e encontrava-se com os seus olhos castanhos de reflexos dourados, feitos para encantar o coração mais duro.

— Sim, será melhor assim, minha filha... Está, decerto, muito triste, por ter de deixar sua família e partir com um estranho?... Porque, enfim, conhece Elias há muito pouco tempo...

E, por baixo dos olhos, perscrutava avidamente a fisionomia comovida da moça.

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— Sim, minha senhora, e é isso o que me inquieta, porque eu desejava cumprir o melhor possível os meus deveres de esposa; mas ignoro quase completamente o caráter dele, os seus gostos, o que lhe pode agradar ou desagradar. Se a senhora quisesse dar-me alguns conselhos, indicar-me alguns traços do caráter do senhor de Ghiliac...

Um ligeiro tremor agitou o semblante da marquesa, cujos olhos se desviaram um pouco do belo olhar confiante e tímido. Valderez viu, com surpresa, aparecer na fisionomia da senhora de Ghiliac uma expressão de comiseração um tanto irônica.

— Ah! Minha filha! O que você me pede! Conselhos para viver com Elias? Mas eu não lhes poderia dar sem que lhe arrebatasse algumas ilusões... porque, decerto, você sempre terá algumas. Vejamos, que entende você por deveres?

— Oh!... amar a meu marido, ser-lhe inteiramente dedicada, obediente em tudo que for justo, em tudo que não estiver em desacordo com a minha consciência...

A senhora de Ghiliac interrompeu-a com um ligeiro sorriso.— Decerto, o devotamento e a obediência serão indispensáveis. Quanto, porém,

à afeição... Será prudente, em todo caso, que você a modere, minha filha, se não quiser sofrer como a que a precedeu...

— Sofrer?... Por quê?... — balbuciou Valderez.— Porque você não encontraria nunca em seu marido a reciprocidade desse

afeto. Isso mesmo, conheceu-a Fernanda, ela que o amava apaixonadamente, e, em troca, sempre se viu tratada com uma frieza desdenhosa que lhe repulsava todas as manifestações de ternura e se irritava quando se mostrava zelosa. Elias não a amou nunca; desposara-a tão somente porque a sua posição se ajustava à dele e sabia vestir-se com muito gosto e elegância, o que era, nessa época, de primacial importância aos seus olhos — mas devo acrescentar que, atualmente, já não pensa assim, e que, se escolheu você, foi precisamente por sua simplicidade, por sua ignorância de todas as vaidades mundanas. O que ele quer é uma mulher séria e suficientemente inteligente para não imitar a pobre Fernanda, tolhendo-lhe com um afeto muito intenso a independência absoluta, que ele preza acima de tudo. Meu filho tem o caráter muito autoritário e, já desde criança, ninguém conseguia dobrar-lhe a vontade. Mas sempre foi generoso e cortês. Somente é incapaz de uma afeição, digo-o com experiência própria. Um cérebro, eis o que ele é!

Falava num tom tranqüilo e comedido, que traía tal ou qual ressentimento, principalmente nas últimas palavras.

Valderez ouvia-a imóvel, fitando nela os olhos cheios de terror.— Todavia, uma mulher, que não seja romântica nem sentimental, poderá ser

muito feliz com ele — continuou a senhora de Ghiliac. — Bastará que aceite

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unicamente o que seu marido houver por bem conceder-lhe de afeto, não procure nunca intrometer-se em seus trabalhos, nem se inquiete com as suas ausências e viagens, coisas com que Fernanda não se conformava. Mas, com isso, ela só alcançou, provocar da parte do marido uma antipatia cada vez maior, a ponto de, para evitar que o incomodasse, impregnar os seus aposentos particulares, e até as carruagens, de um certo perfume do Oriente que entontecia e repugnava a Fernanda. Mas uma mulher discreta e prudente saberá evitar esses atritos, que lhe tirariam Elias completamente. Saberá compreender o seu papel ao lado dele, que só se decide a este novo casamento na esperança de ter um herdeiro — nascimento de uma filha seria verdadeira decepção, que ele nunca perdoaria à criança. Elias desconhece o amor paterno e o amor conjugal. Digo-lhe francamente, minha filha, porque você me pediu que lhe dissesse alguma coisa sobre ele. Advirto-a também que é inimitável psicólogo, que vê somente nas pessoas curiosos estados de alma, interessantes complicações de caracteres. Depois de ter estudado a fundo todos os corações femininos mais ou menos frívolos de que ele é o ídolo, talvez se compraza em estudar a sua alma ainda virgem, talvez lhe agrade causar-lhe impressões que ele analisará em seguida, subitamente, num próximo romance. Confesso, minha filha, que seria doloroso deixar-se você embalar por um sonho, julgar ter conquistado o coração de seu marido e convencer-se afinal de que, para ele, você nada mais era que um objeto de estudo, talvez um objeto de capricho, que o seu diletantismo poria de lado no dia em que dele se enfadasse.

Valderez, que se tornara pálida como um cadáver, fez um movimento de recuo, murmurando em voz trêmula:

— Mas então... eu não quero casar com ele... Não quero, em semelhantes condições...

— E por que não, minha filha? Julgava então outra coisa? Deu-lhe acaso a atitude de Elias direito a supor o contrário do que lhe estou dizendo?

Um observador teria percebido inflexões nervosas na voz da marquesa. Mas Valderez via-se inteiramente presa de dolorosa comoção.

Súbito, aos olhos de Valderez ressurgiu a cena da véspera, no momento em que o noivo se despedira dela. Ouvia-lhe a voz quente de entonações quase ternas, revia-lhe o olhar de mágica doçura, sentia sobre a mão a carícia daquele beijo. Então lhe parecera que se lhe haviam dissipado quase de todo os seus receios...

Mas consoante com o que lhe acabava de dizer a senhora de Ghiliac, ela já começava a ser para ele apenas "objeto de estudo", cujo coração o noivo se divertia em fazer vibrar!

Oh! Não, era impossível!

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E, todavia, como tudo isso que lhe diziam se ajustava às maneiras frias de Elias, à sua fisionomia enigmática, ao seu sorriso cético, à sua tranqüila confissão de indiferença paterna! Como tudo isso explicava também a instintiva desconfiança que lhe inspirava o olhar dele!

Em resposta à pergunta que lhe dirigia a senhora de Ghiliac, Valderez balbuciou:

— Eu julgava que, pouco a pouco, nascesse entre nós dois um afeto recíproco. Mas a senhora acaba de dizer que o senhor de Ghiliac me recusará o dele e não aceitará o que lhe dedicar!...

O belo semblante, ainda há pouco colorido, empalideceu de novo. A custo, saíram dos lábios secos da moça as palavras que dizia.

— Não, minha filha, ele o aceitará, contanto que esse afeto seja razoável e não o incomode em coisa alguma. Entristece-me vê-la assim tão comovida — acrescentou a senhora de Ghiliac, lançando um rápido olhar à fisionomia decomposta de Valderez. — Você me parece muito impressionável, querida; aconselho-a a que se habitue a dominar as suas emoções, porquanto muito sofreria com o gênio de Elias, inimigo de sensibilidade. Fie-se na minha experiência, acalme o seu coração e aceite tão somente as poucas satisfações que lhe tocar, sem sonhar com o que poderia ser. Elias será um bom marido se você for sempre dócil e discreta; não a incomodará muito, porque residirá tranqüila, muito feliz, no castelo de Arnelas, que é uma maravilha.

Estas palavras zoavam nos ouvidos de Valderez.Não estaria sendo vítima de um pesadelo? Mas não, ali estava em sua frente a

senhora de Ghiliac, muito grave, visivelmente sincera, que a prevenia por bondade, por compaixão de sua inexperiência, ela que tivera sob os olhos o exemplo do primeiro casamento do filho.

A senhora de Ghiliac pousou-lhe a mão no ombro.— Não haveria algum sonho romântico nessa cabecinha? — disse ela, a meia

voz. — E muito me admiraria se assim não fosse, porque você seria então a primeira mulher que não se sentisse mais ou menos apaixonada por meu filho. Não imite Fernanda, minha querida, pois esta sofreu muito. Guarde o seu coração, uma vez que Elias nunca lhe poderia dar o dele.

De fora a voz de Marta perguntou:— Estás pronta, Valderez?— Sim, descemos já — respondeu a senhora de Ghiliac.E tomando-lhe a mãozinha gelada, apesar das luvas, acrescentou em voz baixa:— Não me quererá mal, não é verdade, minha filha, por ter assim, a seu pedido,

desfeito algumas de suas ilusões?

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Algumas! Oh! Onde estariam já as suas poucas ilusões, as suas tímidas esperanças!

— Não, minha senhora — respondeu a moça, em voz trêmula. — Ao contrário, agradeço-lhe até por me haver esclarecido, de antemão, acerca do papel que devo representar ao lado do senhor de Ghiliac. Confesso que ele não se ajusta absolutamente à idéia que eu fazia do casamento, e que se eu soubesse...

Não terminou. Os lábios tremiam-lhe convulsivamente.A senhora de Ghiliac não replicou e, abrindo a porta, saiu, acompanhada por

Valderez. Quando ambas entraram no salão, um discreto murmúrio de admiração correu por todos os que ali estavam reunidos. O senhor de Ghiliac, interrompendo súbito a conversa que entretinha com o príncipe Sterkine e Orlando de Noclare, o irmão mais velho de Valderez, envolveu num longo olhar a noiva divinamente bela no seu vestido de longa cauda, que lhe acentuava ainda mais a incomparável elegância do porte, sob o leve véu de tule, que idealizava admirável semblante de noiva. Dirigiu-se ao seu encontro, tomando-lhe a mão para beijá-la...

— Que tem, Valderez? Está gelada — disse ele. — Parece que está sentindo alguma coisa...

— Não, senhor, estou bem, muito obrigada. Sinto-me somente um pouco fatigada — respondeu a moça tentando dominar-se, ao mesmo tempo que desviava do noivo o olhar. E, afastando-se, foi cumprimentar a senhora de Trollens.

Alguns instantes depois, já estava sentada com o pai na carruagem, forrada de veludo branco e guarnecida de soberbas peles, a qual chegara na véspera aos Altos-Pinheiros.

Durante o trajeto, o senhor de Noclare não lhe deu tempo de refletir nem de coordenar os tristes pensamentos. Sentia-se tomado de uma orgulhosa exaltação, que o fazia de uma loquacidade inesgotável a respeito do futuro genro e da família deste. Foi como uma quase sonâmbula que Valderez penetrou, pelo braço do pai, na velha igrejinha, profusamente engalanada de flores. Na antevéspera, Elias comunicara ao sogro que chegariam na manhã seguinte, de Cannes, dois dos seus jardineiros com as flores necessárias para a ornamentação do santuário, de cujo trabalho se encarregariam. Era o único luxo dessa cerimônia, e que belas eram essas flores, delicadamente brancas, perfumadas, velando a decrepitude das paredes, cobrindo o altar, festonando o coro e descendo em redolentes guirlandas até o genuflexório, onde se ajoelhava a jovem.

Mas Valderez não tinha olhos para nada. Com a cabeça entre as mãos, enviava ao céu o grito de angústia do seu coração desamparado. Que fazer? Se fosse realmente verdade? Se esse homem nada mais fosse que o frio diletante, esposo e pai

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odioso, como lhe haviam revelado as palavras da senhora de Ghiliac?Sim, havia de ser verdade. Essa mulher, distinta e visivelmente inteligente, não

se rebaixaria a invenções dessa ordem, principalmente contra o filho. Demais, tudo era plausível! Desde o primeiro dia, ele lhe dera que pensar. Que frieza, durante o noivado! Como ele timbrava em lhe testemunhar a sua indiferença! Temeria, provavelmente, que, tal como a primeira mulher, não lhe ganhasse Valderez demasiado afeto? E essa mordacidade tão freqüente, esses relâmpagos de indefinível ironia que lhe atravessavam o olhar? E... tudo, enfim, tudo até a sua atitude da véspera: primeiro, voltando à frieza primitiva: depois, à noite, tornando-se tão meigo, tão íntimo, durante esse curto instante em que ela pela primeira vez, desde o seu noivado, sentira uma sensação de íntima felicidade.

Estremeceu quando, ao erguer a cabeça, viu a seu lado Elias, de pé, os braços cruzados.

O cura apareceu precedido dos meninos do coro. No órgão, a filha do notário de Saint-Savinien tocava um prelúdio, cujo tom grave se harmonizava com os tristes pensamentos de Valderez. Um perfume algo inebriante, exalando-se de todas as flores, invadia a pequena igreja. Sentia a noiva tomar-lhe o cérebro um como atordoamento, parecendo-lhe que se lhe abria de antemão um caminho muito escuro, por onde ela ia entrar como cega...

Meu Deus! Meu Deus! Que devo fazer? — rogava ela com todo o coração.O cura começou a alocução. Valderez ouvia-o como num sonho, buscando

entretanto o seu espírito ansioso apreender uma palavra que a animasse em sua fraqueza.

"Deveis, senhor, amar a vossa esposa como Jesus Cristo amou a sua Igreja. Sim, por que não? Pois amou Jesus Cristo a sua esposa mística a ponto de se dar todo inteiro a ela? Não vela todos os dias por ela com terna solicitude? Não é ela para ele superior a todas as riquezas, mais bela que as maravilhas acumuladas na terra e no céu, pelo seu poder todo criador? Do mesmo modo, senhor, deveis amar aquela que se vai tornar Deus a vossa companheira."

Quase involuntariamente, levantou Valderez os olhos para o senhor de Ghiliac, que de cabeça erguida, olhava atentamente o cura, sem que sua atitude calma e sobranceira demonstrasse comoção alguma. Provavelmente, estudava o romancista aquele tipo de padre rústico, sorrindo intimamente da ingenuidade do bom sacerdote que o conjurava a amar muito a esposa, amá-la com devotamento, amá-la, depois de Deus, acima de tudo o mais.

"E vós, minha filha, que devereis fazer senão unir-vos ao vosso esposo, tal como a Igreja ao seu Divino Mestre!... Ser-lhe fiel nas perseguições e nos reveses, assim na

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dor como na alegria! Amá-lo de todo o coração, cristãmente, sempre pronta a tudo sacrificar-lhe, exceto no que toca à salvação de vossa alma!"

Amá-lo! Mas, já agora ela não o ousaria! O receio de ser iludida, de não encontrar nele senão a fria curiosidade do psicólogo e do diletante, paralisá-la-ia sempre, por-lhe-ia no coração uma contínua desconfiança. Oh! Por que lhe dissera a senhora de Ghiliac!... Ela já se tinha esforçado tanto, com suas preces e graves reflexões, a preparar-se para os seus novos deveres, a defrontar com calma a obrigação de unir-se a esse esposo desconhecido! Agora, não sabia o que fizesse, atordoavam-lhe o pobre cérebro ansioso a dúvida e a angústia...

E, entretanto, se a senhora de Ghiliac não lhe houvesse falado; ela não estaria com tal desconfiança, ao contrário, ter-lhe-ia entregue muito simplesmente, o seu jovem e confiante coração...

"Em que hei de crer? Em que?" disse para si mesma a moça, desvairada.— Vamos, Valderez!Era o senhor de Ghiliac que, um tanto curvado, lhe murmurava essas palavras

com voz em que havia algo de surpresa. Valderez estremeceu, vendo que era chegado o momento de dirigir-se para o altar.

Deu maquinalmente alguns passos, colocando-se ao lado de Elias. Parecia-lhe que tinha diante dos olhos uma nuvem; que as flores, as luzes lhe dançavam ao derredor...

Arrancou-a deste estado de semi-inconsciência a voz breve e firme, à pergunta do padre. Em seguida, perguntou o cura:

— Valderez de Noclare, aceitais por vosso legítimo esposo Elias Gabriel Bernardo de Koveyre de Ghiliac?

Reinava na igreja o mais completo silêncio. Valderez ouviu as pulsações do próprio coração, que lhe saltava dentro do peito. A angústia aumentava, fazendo-a estremecer. Ergueu os olhos para o padre, que leu neles uma cruciante interrogação. A sua ovelhazinha implorava-lhe socorro. Por quê?

Valderez sentiu que pousava sobre ela o olhar de Ghiliac. Era geral a ansiedade. Um momento mais, e todos se admirariam de semelhante hesitação...

Com a voz quase extinta, algo estrangulada, a jovem pronunciou finalmente a terrível palavra que a unia para sempre a Elias de Ghiliac.

Consumado! Era já a marquesa de Ghiliac. Elias tomou-lhe a mão, a fim de lhe introduzir no dedo a aliança. Mas essa mãozinha ardente agora tremia tanto que ele teve de retomá-la duas vezes para enfiar-lhe o anel.

Na sacristia, todos notaram as feições decompostas da moça e quando esta, pelo braço do senhor de Ghiliac, descia a estreita nave, os murmúrios: "Que lindo par!"

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foram seguidos deste outro: "Como está pálida!"Elias ajudou a esposa a subir na carruagem, envolveu-a nas peliças e sentou-se-

lhe ao lado. Durante o trajeto, muito curto aliás, da igreja aos Altos-Pinheiros, não trocaram palavra. Valderez voltara um pouco a cabeça para fugir ao olhar que sentia pesar sobre ela, perscrutador e surpreso. E o coração batia-lhe cada vez mais descompassado!

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CAPÍTULO IX

Valderez devia lembrar-se, por toda a sua vida, desse almoço de núpcias. Enquanto todo o seu ser moral se debata na angústia, que crescia de minuto a minuto, cumpria-lhe conversar, sorrir e servir de alvo a todos os olhares, a todas as atenções. Sentia-se falta de forças quando terminada a refeição, os convivas se levantaram para deixar a sala.

O senhor de Ghiliac inclinou-se para ela:— É tempo de ir preparar-se para a partida, Valderez — disse a meia voz...Incapaz de pronunciar uma palavra, pois a garganta se lhe constringia, inclinou a

moça afirmativamente a cabeça, e, saindo da sala, ganhou o parlatório.Oh! Ver-se afinal só, longe de todos, longe "dele" principalmente, cuja atenção,

durante todo o almoço, não se desviava dela! Poder enfim refletir... e dizer a si mesma que procedera mal, que cometera um pecado...

Pois não seria um pecado o haver dito "sim", quando nesse mesmo instante se apoderava dela um incoercível terror, ao mesmo tempo que a dúvida atroz do abismo moral existente entre ela e o noivo se lhe implantara vitoriosamente no espírito? Havia cedido a uma espécie de alucinação, causada pela presença de todos os que se achavam na igreja, o temor do efeito que produziria a sua resposta negativa, à idéia da terrível cólera do pai e de todas as conseqüências de semelhante ato...

Havia dito "sim", e com esta palavra prometera, tacitamente, amar o marido. Devia, pois, amá-lo apesar de tudo, fosse ele como fosse. Mas como o conseguiria agora, com essa desconfiança e esse terror cravados no coração?

Na sala contígua, cuja porta ficara aberta, uns passos firmes e macios fizeram estalar o assoalho. Valderez sentiu um calafrio de horror à vista do vulto masculino que se lhe deparou.

Num movimento instintivo, recuou até ao vão da janela, onde ficou de pé.O senhor de Ghiliac estacou por um momento. Sua fisionomia contraiu-se

ligeiramente. Em seguida, dirigiu-se para a esposa, dizendo-lhe num tom de fria ironia:

— Dir-se-ia, realmente, Valderez, que eu lhe produzo o efeito de um papão! Poderia saber o motivo desse fenômeno?

Agora, um ardente rubor substituía nas faces da moça a palidez que as descorava havia pouco, sentia invadir-lhe o cérebro sobre-excitado, latejante de angústia e de dúvida, uma como alucinação. Num arroubo de sinceridade, murmurou com voz trêmula:

— Cometi um pecado... Compreendo agora que andei mal, cedendo à pressão de meus pais, porquanto o senhor só me inspira terror e nenhuma simpatia. Ainda há

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pouco, ao ouvir o nosso cura falar dos deveres da esposa cristã, senti que jamais poderia... com o senhor...

Não ousava encará-lo, mas falava intrepidamente dizendo a si mesma que devia, com toda a liberdade, dar-lhe a conhecer os seus sentimentos.

— Ah! São esses escrúpulos de moça piedosa o que a atormenta... Porque esse bom padre lhe disse que era preciso amar a seu marido, você se sente incapaz de cumprir esse dever? Tranqüilize-se, Valderez, não sou tão exigente como ele, e já que você não me dá a honra de conceder-me a sua simpatia, eu lha dispenso, creio, sem que veja nisso um crime de sua parte.

Dizia estas palavras num tom de sarcasmo, que sublinhava ainda mais a desenvoltura irônica dessa declaração.

Valderez sentiu correr-lhe nas veias um arrepio de gelo. Erguendo os olhos, encontrou um olhar cuja expressão, misto de zombaria, de irritação e de desafio sobranceira, era difícil definir.

— O senhor tem uma idéia original sobre o casamento! — exclamou Valderez, esforçando-se para a voz não tremer:

— Perdão, não se trata de minha pessoa! A senhora fez-me a confissão — muito pouco gentil, seja dito entre parênteses — da repulsa que eu lhe inspiro. Ora, pois! A sabedoria ordena-me que lhe responda como o fiz! Quero crer que não pensaria que, com essa revelação, me levaria ao desespero...

Oh! Não, ela não havia tido jamais semelhante idéia, pobre Valderez! Mas também estava longe de imaginar essa ironia glacial depois das palavras e daquele olhar da véspera.

— E, quanto ao modo como compreendo o casamento, não sei se ele vale menos que o de uma jovem que consente que a constranjam a desposar um homem a quem sabe não poder suportar, e que só depois de realizada a cerimônia é que dá conta ao marido dos seus verdadeiros sentimentos.

— Senhor!A tez mate de Elias cobriu-se de um leve rubor.— Peço-lhe perdão se a ofendi, mas foi a senhora mesma quem acabou de

confessar-me...— Que havia levado muito longe a obediência filial. É que eu esperava então

que, entre nós, nascesse a simpatia e estava resolvida, acredite-me, a cumprir fielmente os meus deveres. Mas compreendi, ainda agora, que fizera mal assim pensando, pois eu nunca poderia...

— É um pouco tarde, não lhe parece? Já agora estamos casados e não podemos voltar atrás... a menos que requeiramos a anulação deste casamento... forçado.

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— Oh! Sim, sim!A exclamação foi espontânea. Uma ruga de ironia franziu os lábios do senhor de

Ghiliac.— E será a senhora bastante heróica para considerar, sem tremer, no que seria a

sua vida aqui, depois de uma ruptura desse gênero?Baixando os longos cílios dourados, como para esconder o olhar doloroso, a

moça murmurou num tom de indescritível sofrimento:— Oh! Eu preferia tudo a ter de pronunciar, como há pouco, a palavra que nos

unia para toda a vida!O senhor de Ghiliac recuou alguns passos, ao mesmo tempo que a fisionomia se

lhe tomava rígida e os olhos de tal modo sombrios que pareciam quase negros.— Ante uma tão declarada antipatia, o meu dever de cavalheiro é curvar-me e

respeitá-la — disse ele, frio, glacial. — Mas o que não desejo absolutamente é uma ruptura escandalosa. A senhora continuará a ser, aos olhos de toda a gente, a marquesa de Ghiliac, posto que na realidade, vivamos separados, conservando cada qual a sua independência. Vou ter a honra de acompanhá-la a Arnelas onde, espero, procurará consoante as nossas convenções, cuidar de Guilhermina. Agora, permita-me que lhe lembre que temos apenas um quarto de hora para a partida.

— Oh! Deixe-me ficar aqui... seria muito mais lógico! — pediu Valderez, com voz alterada.

— Será preciso que lhe recorde o preceito: "A mulher deve seguir o marido"? Liberto-a de todas as obrigações que a senhora julgue ter para comigo, menos dessa.

A moça deu um passo para ele, e de mãos postas, com um olhar de dolorosa súplica:

— Senhor, peço-lhe, deixe-me ficar aqui!Elias desviou os olhos, replicando friamente;— Neste ponto, a minha resolução é inabalável. Tenha a bondade de ir mudar de

toilette, enquanto a espero no salão.E foi-lhe abrir a porta. Valderez saiu do parlatório, dirigindo-se para a escada.

Mas, junto desta, teve de parar porque as pernas lhe vergavam.Alguém pousou-lhe a mão no ombro e a voz de seu irmão Orlando murmurou-

lhe:— Que tens, Valderez?— Nada, apenas um pouco de cansaço, meu querido irmão.— Agora, quando tornaremos a ver-te, minha Valderez? Consentirá o senhor de

Ghiliac nos visites amiúde?Contemplava-a com ternura. Era o irmão predileto, porque os gênios de ambos,

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igualmente delicados e retos, sempre se haviam compreendido.— Reza por mim, meu Orlando! — murmurou Valderez, voltando o rosto e

subindo apressadamente os degraus, pois temia sufocassem-na os soluços, e não queria que os entes por quem se sacrificava lhe adivinhassem o sofrimento.

Sabia agora que sobre um ponto, pelo menos, a senhora de Ghiliac, falara verdade: Elias nada mais era que um frio egoísta, desprovido de coração. Nem ela podia ignorar — pois ele lhe fizera compreender o mais claramente possível — que a Ghiliac muito pouco se lhe dava o afeto da esposa. Oh! Quanto não seria preferível, esse sarcasmo delicado, a essa ironia glacial, os acessos de fúria do marido!

E bastaria, entretanto, uma palavra — uma palavra só, dita com alguma meiguice ou indulgência, para que dissipasse toda a dúvida, desaparecesse todo o receio.

Mas agora!Valderez despia-se e vestia-se maquinalmente. Ao terminar, passou

demoradamente o olhar em derredor, por todo esse velho quarto mobiliado estritamente com o indispensável, quase pobre, onde nesses últimos anos a haviam salteado tantos cuidados, mas onde nunca conhecera um sofrimento como o que naquele instante a acabrunhava. Caindo de joelhos diante do crucifixo suspenso na parede, por cima do leito, implorou, juntando as mãos:

— Meu Deus, se cometi um pecado, tende piedade de mim, atentai na minha inexperiência e socorrei-me neste novo caminho que hoje se abre à minha vida!

— Estás pronta, Valderez? O senhor de Ghiliac está à tua espera e diz que é tempo de partir — gritou de fora a voz de Marta.

— Sim, meu anjo, estou pronta.Oh! Esse momento da partida! Ontem, à noite, ainda ele lhe parecia menos

doloroso. Mas hoje!...Afinal, despediu-se de todos, reprimindo a dor que lhe apertava o coração e

prometendo escrever sempre, sempre...— E virás ver-nos de quando em quando, Valderez? O senhor lhe dará licença

para isso, não é verdade, Elias? — perguntou, ansiosa a senhora de Noclare, atentando na fisionomia decomposta da filha.

— Oh! Sempre que ela o queira! Será absolutamente livre para ir onde quiser! — respondeu o senhor de Ghiliac, que nesse momento se despedia da sogra.

Enquanto o marido fazia as últimas despedidas à sua nova família, Valderez se dirigiu para o vestíbulo. Dir-se-ia que estava agora com muita pressa de se ver longe dos Altos-Pinheiros.

— Eu rogarei à Virgem por ti, minha filha! Creio que nem sempre tudo será

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delícias para o teu novo lar!Era Cristiana que, de pé, no vestíbulo, pronunciava estas palavras num tom

profético.Valderez pendurou-se-lhe no pescoço, beijando as faces pergaminhadas da

velha.— Até à volta, Cristiana! Sim, reza pela tua Valderez!E deu-se pressa em ganhar o pátio pois sentia que a afogavam os soluços.Num quarto de hora, a carruagem que conduzia o marquês de Ghiliac e sua

esposa chegou à pequena plataforma da estação. Ao mesmo tempo, partiam a senhora de Ghiliac, que se dirigia a Cannes, os Trollens, o senhor d'Essil e o príncipe Sterkine, que seguiam para Paris.

Elias acomodou Valderez no carro especial que os esperava e, tendo-se informado de que nada faltava à esposa, pôs-se a abrir a correspondência que acabava de lhe ser entregue pelo seu criado particular. A moça pôde, então, dar livre curso às suas lágrimas, silenciosamente, com a fronte apoiada à vidraça, vendo desaparecer, com os recortes das suas caras montanhas, seu passado de donzela, muitas vezes áspero, sim, mas suavizado pela ternura das irmãs e dos irmãos.

E agora ali estava sob a autoridade daquele que para ela nunca passaria de um estranho.

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CAPÍTULO X

Pela estrada larga e bem tratada, que vai da estação de Vrinières ao castelo de Arnelas, deslizava suave o automóvel do senhor de Ghiliac. Valderez, um tanto corada, contemplava de olhos vagos a encantadora paisagem. A seu lado o marquês indicava-lhe alguns pontos de mais atenção. O dia estava claro, sereno, e o ar puro entrava pelas portinholas, cujas vidraças Elias baixara, a pedido de Valderez, pois lhe desagradava o esquisito perfume de que se achava impregnado o interior do carro.

O senhor de Ghiliac mostrava-se de uma irrepreensível correção; tivera para com Valderez todas as atenções corteses, que um homem bem educado tem com uma senhora. Comprara-lhe, durante a viagem, alguns jornais e revistas; conversava sobre os lugares que atravessavam, porque conhecia todos eles e, ao chegarem a Paris, onde deviam demorar um dia, antes de partirem para Arnelas, perguntara-lhe se desejava permanecer ali mais algum tempo — tudo isso, porém, com polida reserva e perfeita indiferença que bem argüiam as relações que deveriam existir entre ambos.

Recusou Valderez o oferecimento do marido. Que lhe importava a ela essa Paris. O que ela queria era entrar, quanto antes, em Arnelas, atirar-se à tarefa que lhe assinalara o senhor marquês de Ghiliac, ver-se finalmente só — só, com a sua nova existência ante a tarefa, talvez consoladora, que lhe estava reservada junto dessa orfãzinha que a esperava.

Alquebrada por uma fadiga mais moral que física, passou o dia no palacete de Ghiliac, nos aposentos que haviam sido os da primeira marquesa. Apesar do tempo relativamente curto do noivado, Elias havia-os transformado completamente, com esse cunho de luxo, a um tempo sóbrio e magnífico que sempre possuíra. E Valderez, que somente conhecera em toda a sua vida os Altos-Pinheiros ou as casas relativamente modestas dos amigos da família, sentia-se estranhamente constrangida em meio dos requintes desse luxo, e dos esmeros inauditos de um serviço em que se ocupava um exército de criados admiravelmente adestrados.

Via o marido somente às refeições, feitas em comum. Com outro, que não o marquês de Ghiliac, esses momentos deveriam ser muito desagradáveis. Ele, porém, tinha em verdade uma arte incomparável para sair-se galhardamente das mais incômodas situações mercê de uma conversação sempre interessante, posto que indiferente, de uma cortesia que não ia nunca além da mais extrema reserva. De resto, nem uma alusão sequer ao que se passara na véspera, o que, para ele, evidentemente, significava que a questão estava definitivamente liquidada.

O automóvel, deixando a estrada, seguia por uma soberba alameda, margeada de olmos seculares.

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— Eis Arnelas, Valderez — disse de repente o senhor de Ghiliac.Além da vasta clareira, erguia-se um portão magnífico, encimado, pelas armas

dos Roveyres. Ao olhar deslumbrado de Valderez, transposto o imenso pátio senhorial, deparou-se uma admirável construção da Renascença, cujos silhares de uma das faces laterais se refletiam num lago azulado.

— Então, agrada-lhe? — perguntou Elias, que a examinava com discreta atenção.

— Magnífico. As descrições que o senhor me fez ficaram muito aquém da verdade.

— Tanto melhor. Pois muito sentiria se lhe causasse uma desilusão — disse ele nesse tom entre sério e irônico que deixava sempre os interlocutores perplexos quanto aos seus verdadeiros sentimentos.

Subiram juntos os degraus da escadaria, em cujo topo se perfilavam dois criados, trajando a libre dos Ghiliacs; entraram no vestíbulo, cujo régio esplendor fez que Valderez corresse os olhos por instantes, deslumbrada. Que faria ela nesse palácio mais que principesco? Oh! Como estavam longe — e com que saudade — os seus Altos-Pinheiros, o seu rude labor cotidiano, os seus pesados mas queridos deveres para com a mãe e os irmãos!

— Antônio, vá dizer à menina Guilhermina que a estamos esperando no salão branco. Diga também que nos sirvam imediatamente o chá — ordenou Ghiliac.

Em seguida foi introduzindo Valderez pelos vários salões, cuja esplêndida e artística magnificência a moça, mais e mais deslumbrada, apenas confusamente distinguia. Afinal, introduziu-a numa sala, forrada de seda branca, bordada de grandes flores de tons delicados e ornada de móveis deslumbrantes, objetos e arte de um gosto tão extremado e de tão perfeita beleza, que Valderez confessava a si mesma que nunca sonhara pudesse existir coisa igual.

— Se esta sala lhe agrada, a senhora poderá fazer dela o seu salão particular, — disse Elias ajudando Valderez a tirar a capa. — Até hoje, posto que uma das mais lindas do castelo, tem sido sempre evitada como uma desgraça. Minha mãe e Fernanda nunca a puderam suportar. Diziam que estas tapeçarias brancas lhes eram absolutamente desfavoráveis à cútis. Mas talvez que a senhora seja isenta de semelhantes fraquezas...

A moça confirmou com tranqüila frieza:— É verdade, nunca tive tempo, nem sequer a idéia para ocupar-me de

semelhantes bagatelas.— Pois congratulo-me por tão alta sabedoria. Mas não terá receio de que lhe

apareça o aspecto da duquesa Cláudia?

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— Quem é a duquesa Cláudia? — perguntou Valderez, aproximando-se do fogão para expor as mãos geladas ao calor da chama que se elevava no lar, apesar da temperatura agradável mantida pelos caloríferos.

— Era uma das minhas avós, antiga castelã de Arnelas. Bela, inteligente, enérgica sob aparência delicada, foi a alma do partido da Liga, do qual o marido era o chefe. Realizaram-se aqui festas magníficas, das quais era rainha incontestada a bela duquesa Cláudia. Entre os convidados salientava-se uma jovem, feia e tanto ou quanto malfeita, mas vestindo-se faustosamente: era prima da duquesa, Francisca d'Etigny. Não se sabe por que aberração alimentava ela, havia muito tempo, a esperança de esposar o duque Elias, um dos mais belos senhores da França. Daí, o ciúme feroz que essa alma mofina e torva votava à duquesa Cláudia — ciúme, aliás, habilmente dissimulado. Um dia, Cláudia desapareceu. Procuraram-na por muito tempo; o marido, inconsolável, prometeu riquezas a quem descobrisse o paradeiro ou a sorte que levara a sua amada esposa. Entretanto, ninguém vira a duquesa ausentar-se do palácio; os homens de armas juraram, todos, não terem abandonado um instante os seus postos. E, além disso, por que abandonaria voluntariamente o lar essa moça feliz, tão amada, cristã, fervorosa, esposa e mãe tão ternamente dedicada? Ordenou o duque Elias esquadrinhassem o lago, as masmorras, restos da antiga cidadela, sobre a qual se construiria o atual palácio. Pesquisaram tudo, revolveram tudo, e a jovem duquesa não apareceu. Elias de Versanges, louco de desespero, disse adeus ao mundo, vivendo só para a sua dor. Pouco a pouco, foi-se-lhe transformando o cérebro: afirmava que a mulher não deixara o castelo, mas que gemia, encerrada em algum esconderijo desconhecido, chamando-o em seu socorro. Além disso, afirmava uma das camareiras ter visto a senhora aparecer, alta noite, trajando ainda o vestido de brocado e prata que trazia no dia em que desaparecera. Era nesta sala que ela passava todo o seu tempo, e outras vezes, na galeria aqui ao lado...

E abriu uma porta. Valderez, ao aproximar-se, soltou uma exclamação admirada.— Esta galeria é uma das maravilhas da Renascença e contém verdadeiros

tesouros de arte. Foi decorada consoante as ordens de Francisco de Versanges, que mandou concluir o castelo começado pelo pai. Esse duque Francisco era homem duro e cruel que passava, dizem, por mágico. Realmente, parece que possuía um notável talento para fazer desaparecer os que o incomodavam, sem que se pudesse saber o fim que levavam tais pessoas.

Valderez deu alguns passos pela misteriosa galeria, frouxamente iluminada pela luz pálida coada através de riquíssimos vitrais, e parou diante do retrato de uma jovem, extraordinariamente bela, em suntuoso traje do século dezesseis, constelado de jóias. Ao lado, sob o fundo escuro, erguia-se a imagem de um jovem senhor, de

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gesto orgulhoso, cuja fisionomia se assemelhava um pouco à do senhor de Ghiliac.— A bela duquesa Cláudia e o duque Elias — disse o marquês, apontando-os.— E que foi feito desse pobre duque? — perguntou Valderez.Ghiliac esboçou um sorriso de escarninho.— Pois bem! Esse viúvo inconsolável acabou por desposar muito simplesmente

Francisca d'Etigny, que chorava com ele, cercando-o, bem como às crianças, dos mais desvelados carinhos. Alguns meses depois, morria envenenado o filho mais velho. Mas, desta vez, a jovem duquesa, tendo procedido descuidadamente, viu-se traída por uma criada de sua confiança. Atribuíram-lhe para logo, e não sem razão, o estranho desaparecimento da prima. Vendo-se descoberta, precipitou-se no lago de modo que nunca ninguém soube o que fora feito da duquesa Cláudia. O duque Elias, depois de todas essas desgraças, ficou completamente doido, espedaçando a cabeça de encontro a esta chaminé de mármore. Como vê, Arnelas encerra em si trágicas recordações... Depois disto, não se encherá a senhora de terrores do fantasma da bela Cláudia ou do de Francisca, a maldita, que paira às vezes por sobre o lago?

— Oh, não! Nós também temos dessas lendas, e mais terríveis ainda, lá nos Altos-Pinheiros; apesar disso, nunca me deixei dominar por semelhantes terrores.

— Prova de que tem os nervos equilibrados. Tanto melhor! — exclamou Elias num tom indiferente.

Voltaram à sala. Aí, deparou-se-lhes, de pé, uma menina franzina, cujas madeixas castanhas lhe emolduravam o rostinho doentio, mas iluminado pelo fulgor de uns soberbos olhos azuis, embora tímidos e tristes.

— Ah! És tu, Guilhermina? — exclamou, num tom seco, o senhor de Ghiliac. — Anda cá, vem cumprimentar a tua nova mãe.

Mas Valderez já se tinha precipitado para a criança, tomando-a nos braços e beijando-a na testa.

— Minha Guilherminazinha! Que prazer em conhecer-te! Dá-me um beijo, querida!

A criança com os grandes olhos surpresos e medrosos, contemplou-a um momento, pousando depois timidamente os lábios pálidos na face da moça.

O coração alanceado de Valderez dilatou-se ao pensar na bela tarefa que a aguardava junto daquela criança sem mãe.

Depô-la em seguida em terra e, tomando-lhe a mãozinha, dirigiu-se ao marquês que ficara de pé junto ao fogão.

— É muito gentil a sua Guilhermina. Hei de amá-la de todo o coração... Mas, que é o que se diz a papai, minha flor?

Guilhermina ergueu os olhos para o senhor de Ghiliac e Valderez pôde notar

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nesse olhar da criança uma expressão a um tempo tímida e terna, que muito a comoveu.

— Bom-dia, papai! — disse a criança, em voz medrosa e infantil.Ele acariciou com a mão distraída as madeixas da criança e respondeu

displicente:— Bom-dia, Guilhermina. Quero que sejas sempre muito obediente à tua

mamãe, ouviste? Agora, podes voltar para junto de tua mestra.O copeiro entrou, trazendo o chá. Valderez perguntou timidamente:— Consente que Guilhermina se demore um pouco mais?— Como não! — assentiu o pai, indiferente, enquanto Valderez descalçava as

luvas. Elias, tendo despedido o criado, dirigiu-se à esposa: — Se não está fatigada, quer ter a bondade de nos servir o chá?...

Não, não estava cansada, respondeu. Mas a verdade é que, se não estava fatigada fisicamente, moralmente era enorme o seu cansaço. Pesava-lhe sobremaneira a atmosfera desse palácio! E como desejava ela ver-se longe desse grão-senhor, cuja impecável cortesia lhe parecia antes uma pungente ironia!

Serviu pois o chá, tentando fazer falar a criança. Mas foi debalde; Guilhermina parecia quase muda.

Ghiliac, sentado em frente de Valderez, passeava em derredor o olhar distraído, que por vezes caía sobre a mulher e a filha. Valderez pôde então observar o quanto ele se sentia bem ali, na decoração daquele luxo aristocrático, em meio do qual, pensava ela, deviam produzir um efeito singular o costume de viagem, muito simples, da nova marquesa e a sua rusticidade.

— Deixe essa tolinha, Valderez! — disse ele, afinal, um tanto contrariado. — Não conseguirá arrancar-lhe duas palavras, em minha presença. É um bicho-do-mato!

Dizendo e fazendo, levantou-se, indo colocar a xícara sobre a mesinha do chá.— Dá-me a honra de lhe mostrar os seus aposentos? Tenho de ocupar-me em

seguida com a minha correspondência, que se acha muito atrasada...Valderez aquiesceu prontamente e, dando a mão a Guilhermina, acompanhou-o

até ao primeiro andar. Se não se achasse conturbada por tão dolorosos cuidados, teria certamente caído em êxtase diante da escada — uma das principais maravilhas desse solar, que as tinha tantas! — como também ao se lhe depararem os aposentos que lhe eram destinados, os mais ricos do castelo, tanto pela deliciosa vista que se descortinava dos balcões, como pela delicadeza e artística magnificência da decoração.

— Eram estes os aposentos da bela duquesa Cláudia — disse Ghiliac. — Veja, aqui estão enlaçados os dois CC tanto nos móveis como no teto. Recordam-lhe a

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divisa Candidior candidis, mais branco que as coisas mais brancas, que foi também a da meiga rainha Cláudia de França, madrinha da mãe de Cláudia e cuja lembrança ficou para sempre venerada na família.

Era impossível ser mais cortês e disfarçar mais elegantemente um egoísmo absoluto.

Quando Elias se retirou, Valderez reiterou as tentativas para fazer falar Guilhermina e, desta vez, a língua da criança se desvencilhou um pouco. Bem razão tinha o senhor de Ghiliac em dizer que era a sua presença que intimidava a criança.

— Por que não dizes nada ao teu papai, minha flor? — perguntou Valderez.Os lábios de Guilhermina tremeram nervosamente.— O papai não gosta de mim! — murmurou com um ar tão triste que Valderez

sentiu confranger-se-lhe o coração.— Por que dizes isso, meu amor?— Oh! Eu o sinto! Primeiro, foi Frida quem me disse...— Quem é Frida?— A governanta austríaca. E depois, eu vejo que os outros pais não são como

ele. O tio Carlos beija a todo instante as filhinhas, o senhor d'Oubignies passeia de carro com Caetana e Henriqueta, e não franze nunca as sobrancelhas, quando as vê entrar ou quando as encontra no parque... Oh! Eu bem sei que o papai não gosta nem um pouco de mim! — repetiu ela, com um fundo suspiro.

— E tu, querida, gostas dele?A criança não respondeu mas, inclinando a fronte sobre o ombro de Valderez,

pôs-se a soluçar. Quando se sentia mais calma, pôde a moça perceber, através de algumas frases soltas, o quanto sofria essa criança, entregue a mercenárias mais ou menos dedicadas, não tendo que esperar, por parte da avó, mundana e fria, senão um afeto muito superficial, e da parte do pai uma indiferença completa, apesar de ter no coração, pelo pai quase desconhecido, uma ternura ardente e concentrada, que se tornara tímida e medrosa por causa da glacial e indiferente apatia do senhor de Ghiliac.

"Pobre filhinha, terás em mim o que te falta: um coração de mãe!" pensava Valderez, cerrando nos braços a criança.

CAPITULO XIO senhor de Ghiliac demorou-se ainda oito dias em Arnelas. Entrementes,

mostrou a Valderez todo o castelo, os jardins e o parque, em todos os seus

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pormenores; deu com ela alguns passeios, fizeram algumas visitas. E, julgando assim ter cumprido fielmente os seus deveres, voltou para Paris, deixando Valderez ainda um pouco desorientada no meio desse imenso e magnífico solar, mas já entregue de toda a sua alma à tarefa que lhe competia ao pé de Guilhermina.

Um dos primeiros cuidados da moça foi o de substituir a mestra inglesa, que muito lhe desagradava. Tendo-lhe declarado o senhor de Ghiliac, a quem falara sobre isso antes de sua partida, que ela se achava investida de plenos poderes para tudo a respeito de Guilhermina, escreveu Valderez à abadessa do mosteiro onde fora educada, a qual lhe enviou pouco depois uma jovem inglesa, séria e distinta, que muito lhe agradou, bem como a Guilhermina. Valderez, que já falava corretamente o inglês, julgou de bom aviso aprender o alemão, para melhor dirigir Frida, a governanta, em suas relações com a criança. Era uma ocupação a mais, um lenitivo aos seus tristes pensamentos. Só o trabalho e o cumprimento exato de todos os seus deveres poderiam salvá-la do tédio e da profunda tristeza que a acabrunhavam. Ia todas as manhãs à missa, visitava em seguida alguns indigentes que o cura lhe indicava, levando-lhes ao mesmo tempo socorro material, palavras de carinho e alguns conselhos discretos. Mas não procurava travar relações. As três ou quatro pessoas, a quem visitara em companhia do marido, se haviam dado pressa em retribuir-lhe a visita, o que mostrava o grande prestígio do nome que ora trazia Valderez. Apesar, porém, dos reiterados convites que lhe eram feitos, e se bem que uma pelo menos dessas famílias, os Oubignies, lhe fosse simpática, ela não os tornara a visitar... À proporção que os dias passavam, ia ela percebendo que a ausência prolongada do marido, o exílio a que este a votara, excitavam uma crescente admiração, dando lugar a comentários mais ou menos comiserativos. Para a alma delicadamente altiva de Valderez, era isso uma nova mágoa e, pois, preferia a pobre moça conservar-se retirada, longe da curiosidade indiscreta dos estranhos. O senhor de Ghiliac somente dava sinal de vida remetendo-lhe com freqüência livros e revistas. Era aliás para Valderez, o melhor meio de estar a par da existência do marido. Revistas, quer puramente literárias, quer mundanas, todas mencionavam sem cessar o nome que ocupava um dos primeiros lugares tanto no círculo das letras como no da alta elegância. Foi assim que ela soube da apresentação de um novo livro do marido, de sua recente viagem a Espanha, onde fora recebido como íntimo da corte, e de sua estada atual em Pau. Já agora não ignorava que o marquês de Ghiliac, cavalheiro consumado, era um fervoroso amador do pólo e da caça à raposa. Pôde também admirar um soberbo garanhão, adquirido a peso de ouro por Elias, que era grande amador de cavalos e possuía as mais belas parelhas da França. Voltando a página, viu-o entre um grupo elegante — fotografia tirada numa festa dada por uma alta

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personagem russa, ora em Biarritz.Tudo isso teria convencido — se já não o estivesse de há muito — do abismo

existente entre esse adulado mundano e a modesta Valderez que desconhecia completamente esses prazeres que tanto compraziam ao marido. Tomou-se, por isso, de uma ainda mais profunda tristeza e, para distrair-se multiplicava as visitas de caridade, distribuindo em esmolas a soma, para ela enorme, depositada em uma das gavetas de sua secretária, e que lhe fora concedida para os seus alfinetes, pois que as despesas da casa corriam por conta do mordomo do marquês. Para si tomava unicamente o necessário, e ninguém, por aquelas regiões, se vestia com mais simplicidade. Esse dinheiro vindo dele, assim como o luxo que a cercava naquele palácio, pesavam sobre a moça, asfixiando-a. Ser obrigada a dever-lhe tudo!... E pensar que lá nos Altos-Pinheiros todos viviam de suas liberdades.

Às vezes, perguntava a si mesma se não estaria a sonhar, se realmente se teria tornado marquesa de Ghiliac. De dia para dia, parecia-lhe mais estranho, mais difícil suportar semelhante situação. Por que tivera o senhor de Ghiliac essa crueldade inútil de afastá-la dos Altos-Pinheiros? Por amor da filha? Era pouco provável, visto a sua indiferença paterna. Quisera então estadear a sua maldade, buscando talvez vingar-se da pobre moça que não se julgava muito feliz por lhe trazer o nome? Desejaria poder afirmar desse modo a sua autoridade e, para o futuro, talvez dentro em breve, autorizasse Valderez a voltar definitivamente para os Altos-Pinheiros, levando consigo Guilhermina...

Mas enquanto esperava, ela sofria. E assim passou um mês, sem que tivesse notícias diretas do senhor de Ghiliac.

Uma tarde, trouxe-lhe o correio uma carta de Noclare. Era, nada mais nada menos, que um longo ditirambo em favor do genro, cuja real generosidade permitia dar aos Altos-Pinheiros o seu aspecto de outrora.

"O que eu não consigo entender é que não hajas acompanhado a Pau o teu marido", acrescentava ele. "Receio, minha filha, que oponhas os teus gostos, deploravelmente prosaicos, aos desejos de Elias. Porque o que ele quer é associar-te à sua vida mundana; provam-no os esplendores da tua corbelha. Pensas, por ventura, convertê-lo às tuas idéias? Seria isso um erro deplorável e peço-te não perseveres nele, pois afastarias Ghiliac de ti."

Tornando a dobrar a carta, Valderez teve um sorriso cheio de amargura. Em suas cartas para os Altos-Pinheiros não falara nunca da situação em que vivia. Todos os seus a julgavam feliz, e receavam que ela procurasse fazer do marquês de Ghiliac um esposo prosaicamente burguês.

Nesse momento, entrou um criado com o lanche de Guilhermina, que vinha

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todos os dias merendar ao pé da madrasta — a querida mama, como já lhe chamava a criança.

— O senhor marquês acaba de telefonar, comunicando que chegará amanhã de manhã, no trem das dez, e deu ordem para que o dissesse à senhora marquesa, — notificou o criado.

Tal notícia produziu no ânimo de Valderez uma impressão complexa. Certo, ser-lhe-ia penoso o tornar a vê-lo, pois que a presença do marido lhe causaria profundo mal-estar, mas, de outro lado, já não passaria aos olhos dos outros por uma esposa inteiramente abandonada.

Todavia, a perspectiva dessa chegada ocasionou-lhe uma noite de insônia, o que, aliás, não impediu que, à costumada hora matinal, Valderez se dirigisse à igreja para assistir à missa. Como de costume, fez o trajeto a pé, pois nunca teria a idéia de mandar aparelhar a carruagem, ainda que, como nesse dia, não estivesse muito seguro o tempo, — tais malícias eram completamente desconhecidas da intrépida Valderez dos Altos-Pinheiros.

Na volta, foi visitar alguns indigentes, demorando em casa de um deles, velho paralítico que pouco teria de vida, e a quem ela queria reconduzir para Deus. Quando saiu da pobre choupana a chuva caía a cântaros. Deu-se pressa Valderez em alcançar o castelo, onde chegou completamente encharcada, indo dar de frente, justamente no vestíbulo, com o senhor de Ghiliac, que o automóvel acabava de trazer da estação.

— De onde vem a senhora, com esta chuva?— Da aldeia. Demorei-me um pouco e...— Da aldeia? A pé, e com um tempo destes? Realmente, eu...Interrompeu-se, lançando um rápido volver de olhos para os criados que

estavam presentes.— Vá mudar depressa essa roupa molhada, Valderez.— Oh! Destas, apanhei-as eu muitas, lá nos Altos-Pinheiros! Demais, trazia,

como vê, esta capa que me resguarda inteiramente.Tão grande era a comoção e mal-estar que lhe causava a vista do marido, que até

se esquecera de lhe apertar a mão. Foi ele quem tomou a dela, levando-a aos lábios... — Suba depressa... Dar-me-ás depois notícias suas e de seus pais — disse Elias.A moça foi mudar de roupa, demorando-se um pouco nos seus aposentos a fim

de tornar a vê-lo o mais tarde possível. Afinal, como soasse meia hora depois das onze, decidiu-se a descer, dirigindo-se à biblioteca, onde se instalava geralmente para trabalhar. Agradava-lhe extraordinariamente essa como galeria, decorada com a arte maravilhosa da Renascença, guarnecida de livros raros e de todas as principais produções literárias. As imensas janelas deitavam para o lago, para além do qual se

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estendiam os jardins e o parque, os quais, dentro em breve ressurgiam do torpor hibernal.

Sentou-se Valderez junto à alta chaminé, obra-prima de escultura, onde crepitavam alegremente grossas achas, pondo-se a trabalhar numa obra destinada a caridade. Assim lhe corriam os dias entre os trabalhos de agulha, os necessitados e a leitura de bons autores, representados na biblioteca de Arnelas. Recomeçaram também os estudos de piano, iniciados no convento mas quase de todo esquecidos nos Altos-Pinheiros, por falta de tempo. Musicista de instinto, passara, durante o mês que acabava de findar, horas muito deleitosas no convívio dos grandes mestres, exercitando-se assiduamente todos os dias, a fim de adquirir a agilidade que lhe faltava.

Felizmente, havia um piano num dos seus aposentos, pois Valderez não ousaria jamais utilizar-se dos do salão de música, durante a estada de Ghiliac, porquanto este declarara um dia, no correr da visita que ambos haviam feito à baronesa de Oubignies, que ele detestava as marteladoras de piano. Ora, a Valderez parecia-lhe que ela se arrolava naquele número, principalmente ao pé de Elias, que diziam ser um musicista notável.

A certa altura, escapou-lhe dos dedos a agulha que diligentemente manejava: entrava na sala o senhor de Ghiliac seguido da filha.

— Guilhermina indicou-me o seu retiro, Valderez. É mister tenha alguém os seus gostos modestos, para, como a senhora, afeiçoar-se a esta sala de preferência a outras mais elegantes.

Arrastou uma poltrona, sentando-se em frente da mulher, enquanto Guilhermina apoiava ternamente a cabeça nos joelhos de Valderez.

— Então, que tal lhe parece isto aqui? Não sente falta do ar puro dos Altos-Pinheiros? — perguntou com polido interesse.

— Até agora, ainda não dei por isso, pois este clima me parece excelente.— Assim o dizem. Mas cumpre não lhe neutralizem os efeitos com

imprudências. Pergunto a mim mesmo por que razão a marquesa de Ghiliac vai por aí, amassando a lama dos caminhos, quando possui, e tem à sua disposição, automóveis, carruagem e cavalos.

— Confesso-lhe que nunca pude compreender, para pessoas moças e sadias, a devoção ou caridade em equipagens.

— Sim, mas com bom tempo, não em um dia como o de hoje!... A simplicidade e a humildade são coisas preciosas, mas quero crer que a senhora não estará disposta a exagerá-las...

— Estou habituada a uma vida severa e um tanto rústica, e por isso o que para os

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outros seria penoso, não me causa o menor abalo — respondeu friamente Valderez, desviando o olhar dos olhos do marido, nos quais via sempre os mesmos lampejos de ironia.

— Evidentemente. Mas a senhora cedo se habituará a outro gênero de vida, e então perguntará a si mesma como pôde suportar a existência dos Altos-Pinheiros.

— Oh! Não, não! Nada me será mais caro que o meu passado, e os meus Altos-Pinheiros, onde quisera estar ainda.

Estas palavras haviam saído involuntariamente, impetuosamente, dos lábios da moça, cujas faces logo se tingiram de rubor. O senhor de Ghiliac franziu o sobrecenho, mordendo nervosamente os lábios; mas, apoiando o braço na guarda da poltrona, perguntou tranqüilamente:

— Tem tido notícias de sua família?Esforçando-se por dominar o tremor da voz, Valderez contou-lhe da saúde da

mãe, agora um pouco melhor, do pai, que rejuvenescia — como lhe escrevera Marta — e das crianças, que dificilmente obedeciam a esta. Depois pedia ao marido notícias da sogra, dos d'Essil, das cunhadas. Pouco a pouco desaparecia o embaraço, constrangimento de há pouco. Elias não julgara de bom aviso revidar as palavras de Valderez — prova de que ele não estava disposto a voltar ao assunto, pelo menos por enquanto.

A moça retomou o trabalho e o senhor de Ghiliac começou a ler os jornais. E esse casal belo e jovem, essa criança ternamente aconchegada a Valderez, formavam um delicioso quadro de família, na atmosfera quente desse soberbo salão.

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CAPÍTULO XII

O motivo da vinda do senhor de Ghiliac a Arnelas fora a necessidade que ele tinha de fazer uma seleção entre os manuscritos inéditos que possuía em grande número, memórias e cartas de seus antepassados, e, particularmente, da bela duquesa Cláudia. Viera-lhe ultimamente à idéia, como ele mesmo confessou a Valderez, o exumá-las e dá-las a conhecer ao público letrado.

Todos esses antigos papéis encontravam-se na biblioteca, e por isso ali se instalou o senhor de Ghiliac para proceder às suas pesquisas, sozinho, porquanto, contra o seu costume, não trouxera o secretário. Valderez, vendo isso, absteve-se, logo ao segundo dia, de ir trabalhar ali. Mas, nessa mesma noite, disse-lhe Ghiliac, ao acompanhá-la ao salão branco:

— Previno-a, Valderez, que se a minha presença aqui faz que a senhora altere os seus hábitos, ver-me-ia na obrigação de regressar imediatamente a Paris. Pode continuar a trabalhar na biblioteca sem nenhum receio de incomodar-me.

Retomou, pois, a moça, no dia seguinte, o seu lugar costumeiro, mas sem entusiasmo, pois já lhe parecia demasiado penoso o colóquio de ambos durante as refeições, muito embora em presença de Guilhermina e da professora (aceita, sem a menor observação, por Ghiliac), se bem que, até então, a criança não viesse à sala de jantar.

De vez em quando, lia o marquês à mulher os trechos mais curiosos dos manuscritos que examinava. Um dia, mostrou-lhe um cujos caracteres estranhos eram quase indecifráveis para ele, de natural pouco paciente. Valderez, depois de algum esforço, conseguiu decifrá-los e, como esses mesmos caracteres reapareciam em muitos outros documentos, pediu-lhe o marquês que os copiasse. Via-se, assim, a moça associada ao trabalho do marido a quem, aliás, muito interessava a inteligência arguta e viva de Valderez. Era agora nesse terreno histórico e literário que eles continuamente se encontravam. Elias parecia comprazer-se em conversar com a esposa, guiá-la em suas leituras, e isso com um tato, um cuidado moral, que muito deram que pensar ao cura de Vrimères, quando Valderez lhe comunicou que o senhor de Ghiliac somente lhe autorizara a leitura de dois dos seus próprios romances.

— Eis aí como ele se revela muito mais honesto do que o julgam! Quantos maridos, que se dizem cristãos, nunca tiveram esse cuidado, essa delicadeza para a alma em flor de suas companheiras!

Mas essa natureza singular permanecia sempre um enigma para ela. Se o coração da moça continuava ainda inquieto e profundamente desconfiado, o espírito penetrava-se do encanto dessa deslumbrante inteligência, dessa erudição sempre clara e elegante, de tudo aquilo enfim de onde derivava o mágico prestígio da

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personalidade intelectual de Elias de Ghiliac. Ela devia reconhecer que nada havia nele de superficial, e que estudava sob todas as faces os assuntos de que tratava, não se aventurando nunca em hipótese. Demais, esse homem cético e mundano tinha, a respeito de muitos pontos de moral, uma opinião de que o julgariam incapaz. Mas Valderez sabia também que um indivíduo pode professar as mais perfeitas teorias sem, contudo, dar-se ao trabalho de as pôr em prática.

Sim, penetrava-a algo do encanto de Elias. Quando porém, se via só, sentia-se invadir de um mal-estar indefinível, e então dizia consigo que, para ele, nada mais era que um objeto de estudo, como o provava o olhar de penetrante observação que às vezes surpreendia cravado sobre ela. E era-lhe tão horrivelmente penosa a idéia de servir de objeto a essa fria curiosidade intelectual, que se veria levada a cortar essas relações agora tão frequentes, se o cura de Vrinières, seu diretor espiritual, não lhe houvesse dito:

— Apesar de tudo isso, e qualquer que seja a atitude do senhor marquês, cumpri o vosso dever, que é o de aproximar-vos dele tanto quanto ele vô-lo permitir. Fostes imprudente em lhe declarar abertamente o vosso afastamento logo no dia do casamento. A escusa está na vossa própria inexperiência e no desvario que as palavras, pelo menos inconsideradas de vossa sogra, causaram ao vosso coração muito amante e muito reto. Infelizmente, a atitude e as palavras do senhor de Ghiliac vieram confirmar o que a seu respeito vos dissera. O desamparo em que vos deixou durante um mês inteiro, também não é para que o reabilite aos vossos olhos. Mas, apesar disso, sois sua mulher, e se ele descura dos deveres que tem para convosco, compete a vós o cumprirdes os vossos para com ele na medida em que ele vô-lo permita.

Seguindo pois estes conselhos, tinha Valderez como estrita obrigação aceitar sempre o convite do marido para um passeio a pé ou de carruagem. Levava então consigo Guilhermina, a quem o pai parecia agora considerar menos indiferentemente. Outras vezes, dava-lhe o marido conselho sobre a execução de alguns trechos musicais, pois reconhecera nela muito delicado talento, certo dia em que á ouvira tocar no salão de música, supondo ela que ele tivesse partido para Angers, de automóvel. Ele mesmo sentava-se muitas vezes ao piano, que amiúde ressoava até alta noite, esquecidos, tanto aquele que tocava como aquela que ouvia, das horas que passavam, enlevados ambos pela emoção artística que lhes comunicavam as obras-primas dos grandes mestres.

Contudo, não havia nessas relações a menor intimidade. Valderez mantinha uma atitude tímida e um tanto altiva a que a cortesia ligeiramente orgulhosa do senhor de Ghiliac, ou a sua amabilidade cerimoniosa não conseguia modificar.

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Devia conhecer, por exemplo, que ele às vezes buscava realizar os poucos desejos manifestados por ela, que também não sentia os efeitos dessa vontade autoritária que se exercia tão bem sobre os outros.

Alcançaria ela porventura conhecê-lo um dia, saber enfim o que podia haver de verdade no que lhe dissera a sogra? Ah! O que ela sabia é que esse homem estranho lhe demonstrara muito claramente o seu terrível egoísmo e a sua dureza de coração naquela cena dos Altos-Pinheiros cuja lembrança pesava dolorosamente no coração de Valderez! É que ele não procurava aproximar-se dela moralmente e tratava-a como se fora uma estranha!

De outro lado, era muito para admirar que ele se privasse das festas mundanas que o esperavam em toda a parte, nessa época do ano, para continuar habitando no campo. Os velhos manuscritos podiam ser facilmente transportados para Paris. Só uma explicação havia para isso: o romancista estudava um tipo curioso de provincianazinha e, por isto, demorava-se em Arnelas. Quando já a tivesse estudado a fundo, iria para outros lugares em procura de novos estudos.

Era este pensamento que fazia Valderez estremecer em presença do marido, sempre que as magnéticas pupilas azuis pousavam longamente sobre ela.

Elias mostrava-se absolutamente respeitador das convicções religiosas da esposa, e mesmo algumas palavras suas davam a entender que não era tão incrédulo como o demonstravam as aparências. Em compensação, Valderez pôde medir-lhe a grande diferença em matéria de religião, pouco tempo depois de sua chegada, a propósito de Benaki. Num dos seus passeios pelo parque, em companhia de Guilhermina, encontrara a moça certa vez o negrinho que andava aos saltos por uma das aléias, vestido com uma tangazinha branca, por sobre a qual, quando saía, lançava uma espécie de albornoz de um encarnado estridente. Até então, Valderez mal o percebera. Desta feita, porém, chamou-o, falando-lhe com meiguice, interrogando-o acerca da vida que levava. Contou-lhe então Benaki, num falar arrevesado, que fora vítima de uma razia (expedição predatória), lá na sua terra, certa aldeia africana cujo nome ignorava; que seus pais haviam sido mortos, e ele vendido como escravo. O senhor de Ghiliac, que viajava por lá, vira-o e comprara-o. Benaki fazia então datar daí a sua felicidade.

Mas Valderez, levando mais longe as suas perguntas, verificou, não sem algum pesar, que essa criança, cujo encargo moral e físico assumira o senhor de Ghiliac, ao comprá-lo aos seus raptores, não recebia nenhuma educação religiosa, e só tinha um culto no mundo: o seu amo, ao qual dedicava verdadeira adoração.

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Nessa mesma noite, dominando a timidez e o constrangimento, falou sobre isso ao marido, quando este, depois de jantar, passeava fumando pela magnífica estufa, em que terminavam os salões de recepção.

— Diga-me uma coisa, Elias: Benaki é batizado? Ghiliac estacou diante da mulher, sentada ao pé de uma colunata, onde se

enroscavam enormes elementos de uma malva cor-de-rosa.— Não. Nunca pensei nisso, confesso-o.— Permita que eu me ocupe com a sua instrução religiosa?— Pois não! Mas isso naturalmente a fatigará, causar-lhe-á tédio...— Ao contrário, será para mim uma grande felicidade, e ao mesmo tempo o

cumprimento de um dever — respondeu gravemente.— Nesse caso, será ouro sobre azul; confio-lhe da melhor vontade Benaki, para

que faça dele um cristãozinho.Isso dizia Ghiliac, sem o menor vislumbre de ironia. Logo no outro dia, foi o

pretinho enviado pelo amo onde estava Valderez. Daí em diante, todos os dias, reservava ela alguns minutos para a instrução religiosa da criança, ensinando-lhe ao mesmo tempo a ler, pois a indiferença e o desdém do senhor de Ghiliac levavam-no a equiparar, nesse ponto, o pobre Benaki ao seu cão Odin.

Esses contrastes de uma natureza tão volúvel fariam desorientar uma alma ainda mais experimentada que a de Valderez. O cura de Vrinières, a quem ela perguntara o que devia pensar das obras do marido, respondera que, pondo mesmo de parte o seu raro valor literário, continham ainda um real valor moral, por isso que punham em jogo sentimentos muito nobres, verberavam o mal, deixando transparecer atos nobres e belos pensamentos. Alguns, porém, se envolviam em forma tão ousada, que ele não podia autorizar que uma jovem inocente as lesse.

— Sentimos que lhe falte o fio condutor — acrescentara o padre. — Com a fé, esse escritor produziria uma obra admirável, repleta de benefícios! Enquanto que o seu talento, posto não seja nocivo, e pode sê-lo para algumas almas inexperientes, tem unicamente um efeito moral muito atenuado pelo ceticismo que o malsina amiúde.

Era isso, com efeito, o que já verificava Valderez, ao ler os dois volumes do marquês de Ghiliac, cuja leitura lhe fora permitida. Ora, precisamente ao terminar o último, pouco antes da hora do jantar, entrou Elias no salão branco e, como visse o livro que tinha nas mãos, perguntou, sentando-se:

— Então? Qual a sua opinião, Valderez?Ainda sob o encanto do fulgurante estilo, tão gracioso, tão vernáculo, a moça

respondeu entusiasmada:

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— Oh, o senhor escreve muito bem! Sente a gente pena de ter acabado o livro!— Sinto-me infinitamente lisonjeado! — agradeceu ele, em tom grave... E

quanto ao mais?... o fundo, as idéias?Corando ligeiramente, respondeu Valderez com toda a sinceridade:— Há nele coisas que muito apreciei... mas outras não tanto.— Quais?... Vamos, diga-me com franqueza tudo o que pensa sobre a obra, —

acrescentou, percebendo-lhe o embaraço.A moça desenvolveu então o seu pensamento, com muita clareza e sinceridade.

Ghiliac, diante dela, ouvia-a atentamente, com o cotovelo apoiado na mesa.— Realmente, os seus pensamentos são belíssimos, muito mais elevados que os

meus — disse ele, quando ela terminou. — São os de uma cristã. Mas acredita-me capaz de atingir essas alturas?

E entreabriu os lábios, num sorriso irônico. Na alma de Valderez agitava-se qualquer coisa de, estranho — uma irritação, um sofrimento, um que quer que fosse. Desviando os olhos do olhar em que lhe parecia ver fulgir um como desafio, a moça respondeu friamente:

— É verdade, seria talvez mais acertado duvidarmos disso.Ele esboçou um riso escarninho.— Até que enfim usa de franqueza! Mas talvez seja errôneo semelhante juízo.

Quem dos que me conhecem, saberá o de que sou capaz? Quem? Confesso-lhe que nem eu mesmo o sei!

A entrada de Guilhermina e da mestra veio interromper este colóquio que parecia deslizar por um lado desconhecido até então de ambos. Mas, a partir desse dia, o senhor de Ghiliac pediu amiúde a opinião de Valderez a respeito de algumas obras que lhe punha nas mãos, e se ainda lhe discutia os conceitos, já o fazia entretanto sem aquele ar sardônico que tanto havia impressionado a moça.

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CAPÍTULO XIII

Recebera Valderez uma carta de sua amiga Alice que, tendo de passar no dia seguinte por Angers, pedia à senhora de Ghiliac lhe enviasse um telegrama dizendo-lhe se permitia que ela fosse visitá-la em Arnelas, a fim de apresentar-lhe o marido e, ao mesmo tempo, conhecer o senhor marquês de Ghiliac.

Certo Valderez sentia-se feliz com a idéia de tornar a ver essa amiga tão querida. Mas sentia invadi-la uma surda tristeza, porque sabia que a vista da felicidade conjugal de Alice iria avivar a oculta ferida de seu coração.

Lançou os olhos à pêndula. Era já tarde: se queria que o telegrama fosse expedido a tempo, cumpria-lhe ir, quanto antes, comunicar a Ghiliac os dizeres dessa carta. Para isso, era preciso ir aos seus aposentos, onde o marido estava a trabalhar nesse dia.

Ao mesmo tempo, aproveitaria a ocasião para lhe transmitir um pedido que lhe haviam feito e que somente o seu bom coração e delicada caridade haviam impedido de recusar. Era o caso que, havia pouco, recebera Valderez a visita de uma pobre mas honesta viúva, que fora recomendada pelo cura de Vrinières, a qual, em companhia do filho, viera solicitar-lhe para este o emprego de segundo secretário do senhor de Ghiliac, pois o atual estava prestes a casar-se no estrangeiro. O pretendente, Luís Dubiet, apresentava as melhores informações; mas a saúde, devido a dolorosas provações morais pecuniárias, estava um tanto abalada, tendo além disto o pobre rapaz, pouco favorecido da natureza, uma cara triste, à qual mais ainda desfavorecia a roupa, limpa mas surrada.

O senhor de Ghiliac, quando o suplicante se lhe apresentara, despedira-o cortesmente. Por isso, tinham vindo agora os infelizes, mãe e filho, implorar à jovem marquesa intercedesse por eles junto do marido para que este o admitisse como seu secretário, pois o cargo, bem remunerado, seria a salvação de ambos. Não duvidaram eles que Valderez convencesse o marido a reconsiderar a sua primeira decisão. Cedeu a moça a tais súplicas, e principalmente às lágrimas que revieram aos olhos da pobre mãe, prometendo-lhe fazer o que pudesse, embora muito lhe custasse dar semelhante passo, pois, de antemão, estava certa que seria inútil o seu pedido. O senhor de Ghiliac não era certamente acessível à piedade, não tendo suas decisões apelação nem agravo, tanto mais quanto seria inadmissível que um homem, timbrando em cercar-se de harmonia e beleza, aceitasse para secretário esse pobre rapaz.

Enfim, prometera-o e havia de cumpri-lo. Serviria de pretexto a carta de Alice. Dirigiu-se pois, para o gabinete de trabalho de Elias, o qual comunicava por uma escada particular com os seus aposentos do primeiro andar. Não conhecia ainda essa parte do castelo, e por palpite bateu a uma porta.

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A um breve "entre" a moça abriu-a e achou-se à entrada de uma sala de imponentes dimensões, decorada e mobiliada no estilo mais puro do século XVI. Por toda a parte havia flores que exalavam delicioso aroma, que se misturava ao perfume predileto de Ghiliac e ao odor de fino tabaco turco.

Recostado negligentemente numa espécie de divã, Elias fumava, olhos fitos no teto, admiravelmente pintado, em cujos ângulos se viam as armas da família. Como não tinha voltado a cabeça, Ghiliac estremeceu ligeiramente ao ouvir junto de si a voz tímida de Valderez:

— Perdão, Elias...Num movimento instantâneo, pôs-se logo de pé, despertando o pretinho que

cochilava, sentado no tapete, e que não pôde refrear um grito de assombro.— Desculpe! Julguei que fosse o meu criado de quarto.A atmosfera quente e saturada de perfumes fez subir repentinamente às faces de

Valderez um rubor ardente. Demais, era-lhe tão penoso pedir ao marido alguma coisa!

— Não me incomoda absolutamente. Queira sentar-se... Vai-te embora, Benaki!Ainda tonto de sono, o moleque parecia não compreender a ordem que lhe

acabava de ser dada. Não era costume do amo mandá-lo retirar-se quando recebia as lindas senhoras que vinham cumprimentá-lo. Um certo gesto, porém, muito conhecido, veio avivar-lhe a compreensão, e Benaki eclipsou-se, perguntando a si mesmo por que a linda marquesa, sempre tão amável, fazia que o despedissem assim.

— Estou inteiramente à sua disposição — disse Ghiliac, aproximando uma cadeira da poltrona que oferecera a Valderez.

— Queria perguntar-lhe se não lhe desagrada-o receber amanhã a minha amiga, a senhora Vallet e o marido, que desejam visitar-me e, ao mesmo tempo, conhecê-lo.

— Pois não! Teria até muito prazer com isso. Convide-os para almoçar, jantar e até passar a noite se isso não lhe causar incômodo.

— Nesse caso, vou mandar expedir um telegrama a Alice, que me deu o endereço do seu hotel em Angers.

— Há melhor ainda. Thibaut vai partir imediatamente para Angers, para onde vou mandá-lo para um negócio meu particular. Escreva, pois, um bilhete à sua amiga, que ele irá levar-lhe ao hotel. Diga-lhe que não se preocupe com o trem de amanhã: mandarei o automóvel buscá-los à hora que ela indicar.

— Muito agradecida, Elias. De fato, será isso muito mais agradável para eles... Mas, tenho de lhe pedir ainda outro favor...

Crescia o mal-estar que a invadira à entrada do aposento. Eram-lhe intoleráveis aqueles perfumes, e jamais o olhar de Elias a perturbara tanto como naquele instante.

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— Teria muito prazer em poder ser-lhe agradável. Trata-se de...?— De um moço que solicita o lugar de seu secretário, um pobre rapaz doente,

mas muito honesto, que ainda há pouco veio aqui, em companhia da mãe, procurar-me...

— Um tal Luís Dubiet? Sim, de fato... Trouxe-me excelentes recomendações quanto ao duplo ponto de vista moral e intelectual, mas quanto ao físico!... Esse infeliz rapaz parece ter saído do túmulo e, a falar verdade, eu não desejaria ter ao pé de mim uma tão triste figura. Com que, então, apelou para a senhora?

— Sim, ele e a mãe pediram-me que procurasse mudar essa sua resolução. É verdade que o semblante e o trajar desse pobre rapaz não depõem muito a seu favor, mas parece ser muito honesto. Creio que, com uma boa alimentação e tranqüilidade de espírito, a saúde lhe voltará.

— Mas conservará sempre as mesmas feições e nem por isso o seu talhe exíguo crescerá, sequer uma polegada.

— Oh, o senhor a preocupar-se com coisa tão insignificante? Que vale isso quando se trata de prestar um serviço a um desgraçado, salvá-lo talvez da miséria? Experimente ao menos; sou eu quem lhe pede.

Seus grandes olhos úmidos exprimiam uma tímida súplica, os lábios tremiam-lhe ligeiramente, porquanto... oh, sim, decididamente, muito lhe custava o solicitar-lhe qualquer coisa!

Elias inclinou-se e Valderez viu, então, muito perto de si, fulgurarem os olhos do marido entre os cenhos carregados.

— A senhora tem a eloqüência do coração... e da beleza. Resta-me confessar-me vencido. Aceito pois o seu protegido, e prometo-lhe ser indulgente... e não olhar para ele.

— Muito agradecida... O senhor é muito bom — balbuciou a moça, sentindo tomá-la uma vertigem.

Mas ergueu-se murmurando:— Por favor, abra-me uma dessas janelas!Elias arremessou-se para uma das portas-janelas, abrindo-a completamente.

Valderez dirigiu-se logo para aí, encostando-se à mesma, oferecendo o rosto ao ar fresco e vivificante.

— Vou tocar a campainha a fim de que a criada de quarto lhe traga alguma coisa para cheirar — disse ele com voz um tanto inquieta.

Valderez interrompeu-o com um gesto.— Oh, não! Não é preciso. Este ar será suficiente.— Talvez que a incomode este cheiro forte de tabaco... Tenho o hábito de fumar

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no meu gabinete. Devia, antes, tê-la recebido no salão, aqui ao lado.— Não; foram estas flores, estes perfumes... Como pode o senhor viver neste

ambiente?— Confesso-lhe que nem dou por isso. De resto tenho geralmente abertas as

janelas. Hoje, porém, estou num dos meus dias de preguiça, marasmava-me neste calor... Tal como aquele que ali está...

E mostrou o lebreu, estirado na almofada, dormindo a sono solto.— São as minhas horas de "nirvana", que só não dão a felicidade... porque a

felicidade é uma quimera. Mas colhamos as flores da vida e não sonhemos impossíveis paraísos terrestres. Que lhe parece, Valderez?

Esta, dissipado o atordoamento, recobrara a posse de si mesma; tinha pressa de ver-se longe dali. Nunca, como agora, vira no olhar do marido essa expressão de suave e provocadora ironia.

— Parece-me que o entorpecimento voluntário é sempre um pecado — respondeu ela friamente. — Quanto ao procurar somente as flores da vida, é uma concepção inteiramente paga... E os paraísos terrestres já não existem.

— Bem sei. E é pena! Nos tempos que correm, a vida é demasiadamente estúpida! Muito me agradaria um bom edenzinho. Verdade é que não faltarão pessoas que digam que eu aqui possuo todos os elementos de um paraíso. São, porém, uns néscios que não vêem um palmo adiante do nariz.

Ela voltou o rosto e deu alguns passos para fora, no terraço.— Se quer respirar por mais algum tempo o ar fresco do jardim, vou dar ordem

para que lhe tragam um agasalho, pois, do contrário, arrisca-se a apanhar um resfriado, principalmente saindo de um aposento quente como este — disse Elias, que a seguira até o terraço.

— Não, senhor; vou-me retirar. A vertigem já passou, preciso escrever umas linhas a Alice.

— Não tenha pressa: Thibaut esperará o tempo necessário. Quanto ao seu protegido, diga-lhe que venha falar-me um destes dias.

Valderez murmurou um "obrigada" e retirou-se. Ghiliac seguiu-a com os olhos, tornando depois para o gabinete. Com um gesto impaciente, afastou a poltrona onde ela se sentara, havia pouco.

"Decididamente, é irredutível essa antipatia! — disse entre si. — Que razões de queixa tem ela contra mim? Julguei que isso não passaria de uma criancice de jovem devotada, rodeada de escrúpulos. Quis castigá-la, porque, primeiramente, isso feria fundo o meu amor-próprio; e, depois, não podia proceder de outro modo com uma criatura que me declara a impossibilidade em que estava de amar-me. Pensei

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conseguir, em pouco tempo, fazê-la mudar de opinião e julgar-se muito feliz por eu querer olvidar as palavras pronunciadas por ela. Mas não! Dir-se-ia até que a sua desconfiança para comigo aumenta de dia para dia! E é por essa mulher, que me desdenha, que eu cometi a primeira loucura em minha vida, uma inominável loucura porque, afinal, esse pobre diabo parece-me quase um moribundo e tem uma cara que me é sumamente desagradável. Mas como resistir àqueles olhos... e àquela alma feita de caridade e delicada bondade? Só para mim é que ela é glacial como a neve, da qual possui a alvura. Virá amar-me algum dia? Mas esta situação não se pode prolongar, indefinidamente. É preciso que acabemos com isso, de um modo ou de outro. Se, decididamente, não mudar de atitude a meu respeito, tratarei de obter a anulação do casamento. Pelo menos, reenviá-la-ei para os Altos-Pinheiros, não quererei ouvir falar dela, nunca mais verei essa criatura que me faz estúpido como um adolescente."

Deixou-se cair numa poltrona, acendeu um cigarro com mão trêmula, ensombrando os supercílios, o que deu à fisionomia uma expressão algo severa.

"Ora aí está uma que não tem faceirice, e cuja cândida simplicidade, por mais cético que seja, sou obrigado a reconhecer. Talvez por isso mesmo é que eu lhe causo medo. Tem-má sem dúvida, por algum negro demônio. Ora pois! Deixemo-la com as suas crenças; deixemos a esse floco de neve na sua solidão, e vamos cuidar de outra coisa, meu bom Elias, porque de fato, estás um tanto doente... e um tanto doido", concluiu ele, com um riso escarninho, que ressoou pelo amplo aposento, cujos perfumes capitosos, o ar frio, que vinha de fora, dissipara inteiramente.

No dia seguinte, deu-se pressa Valderez, ao sair da missa, em ir à casa dos Dubiets levar-lhes a boa nova.

Fugindo, toda comovida, aos seus calorosos agradecimentos, voltou a moça para o castelo, passando pelo parque. Caminhava lentamente, um tanto pensativa. Estava-lhe sob os pés a neve que caía havia dois dias. Sobre o vestido, muito simples, feito por ela mesma com o auxílio da camareira, trazia uma das peliças de sua corbelha de noiva, esse mesmo manto do qual a senhora de Noclare dissera, e com razão, que faria inveja a rainhas. Uma observação de Ghiliac, que se admirava por não vê-la servir-se dele, decidira Valderez a usá-lo, desde então, algumas vezes. Em sua inexperiência, mal julgava ela o valor que representava semelhante peliça. A admiração, porém, da velha baronesa d'Oubignies, com quem se encontrara nesse manhã, ao sair da missa, os olhares de inveja que nesses últimos dias lhe lançava a senhora de Vrinières, haviam-na esclarecido um pouco sobre isso. A sua simplicidade, o seu afastamento de tudo o que podia chamar a atenção dos outros,

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faziam com que ela o usasse constrangida; era, todavia, obrigada a servir-se dele, nos dias frios, pois que o marido lhe havia dito:

— Quero que se utilize dele o mais possível, tanto pela manhã como durante o dia, porque tenho horror às coisas que permanecem inúteis.

Observação a que a senhora d'Oubignies acrescentara, com um fino sorriso, quando Valderez lhe repetira, havia pouco, essas palavras do marido:

— Tem muita razão o senhor de Ghiliac. E como foi ele que escolheu esta maravilhosa peliça, quer ter o prazer de apreciar o quanto ela a torna ainda mais linda.

A aragem dessa manhã de inverno banhava refrescando o rosto de Valderez fatigada por uma noite de insônia. Sentia-se a moça, nessa manhã, muito cansada, inquieta e triste. Pesava ainda sobre ela alguma coisa da véspera. Parecia-lhe que a existência, tal como era havia um mês, tornava-se-lhe impossível. Sua desconfiança, longe de diminuir, tomara desde a véspera uma acuidade maior. O senhor de Ghiliac revelava-se-lhe sob uma luz nova e, entre todas, perturbadora. Subsistia ainda na alma de Valderez um profundo pesar, se bem que, na véspera, à noite, tivesse encontrado o marido tal como de costume, talvez mesmo um pouco mais frio.

Súbito, estacou imobilizada por uma grande surpresa. Por uma das aléias do parque, vinha a cavalo o senhor de Ghiliac, trazendo sentada à frente da sela Guilhermina, toda corada de alegria.

Alguns dias antes, entrara ele de improviso no salão branco, no momento em que a criança, nervosa e facilmente irascível, era presa de uma dessas crises muito freqüentes nela, e que Valderez só conseguia acalmar a custo de muita meiguice e paciência. À entrada do pai, cessou a criança imediatamente de bater os pés, e, toda trêmula, olhos baixos, ouvira-lhe a voz friamente irritada que a condenava à privação da sobremesa e do passeio em carruagem durante toda semana.

— Que influência tem o senhor sobre essa criança que o ama estremecidamente! — disse Valderez ao marido, quando a menina se afastou.

Sinceramente surpreso, Elias replicou:— Ela me ama? A mim? Muito me conta a senhora, porque eu nada tenho feito,

confesso-o francamente, para obter semelhante resultado.— E ela bem que o sabe, a pobrezinha! E muito sofre com isso!Parecendo não dar muita atenção a estas últimas palavras, fizera ele derivar a

conversa para outro terreno. Teria, entretanto, refletido, dando-se conta das suas sem-razões para com a criança?

Aproximando-se, pois, de Valderez, descobriu-se Elias, dizendo-lhe a sorrir:— Aqui está uma menina que encontrei no parque e arrebatei a miss Ebville.

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Tinha de lhe dizer alguma coisa em segredo, que espero não lhe esquecerá. Vamos descer Guilhermina!

Passou a criança a Valderez e apeou-se também. Levando pelas rédeas o cavalo, fez-se Elias de volta para o castelo, em companhia da mulher e da filha, falando dos hóspedes a quem esperavam, depois que se informou, com a costumada cortesia, da saúde de Valderez. Quando Guilhermina se viu sozinha com a madrasta, atirou-se-lhe aos braços, rindo e chorando ao mesmo tempo.

— Que tens, meu amor?— Papai deu-me um beijo!... Chamou-me sua querida filhinha!— Sim? Deves então estar muito contente!— Oh! Muito, mamãe! Mas também ralhou comigo! Disse-me que eu fazia

muito mal em incomodar-te com as minhas raivas; que eu fazia com isso que ficasses doente; que, se continuasse, ele me faria entrar para o colégio, e eu ficaria longe de ti, longe dele!

E, a essa perspectiva, a menina rompeu a chorar.— Ora vamos, filhinha! Já sabes qual o meio de evitar essa desgraça: não tens

senão que empregá-lo, e, com isso, o teu papai ficar-te-á querendo ainda mais. Agora, vamo-nos vestir, porque já é tarde, e os nossos hóspedes estão para chegar.

O senhor de Ghiliac, quando o queria, era o mais amável dono-de-casa. Nesse dia, tiveram disso a prova o senhor e a senhora de Vallet. Alice, porém, que se sentira impressionada pelo tom reservado, quase constrangido, das cartas da amiga, não se deixava deslumbrar completamente, como o marido, pelo sedutor castelo. Inteligente e conhecendo bem o caráter de Valderez, teve logo a intuição de que a jovem marquesa, a despeito de todas as aparências, não era feliz. Todavia, não lhe tendo esta feito nenhuma confidencia, não ousou interrogá-la despedindo-se um tanto preocupada, nessa mesma noite, cortando logo os elogios entusiásticos do marido com estas palavras, pronunciadas num tom de surda animosidade:

— Sim, meu caro André, ele deu-te volta ao miolo, a ti também. Quanto a mim, porém, receio muito que esse belo senhor torne, em breve, infeliz a minha cara Valderez!

Entretanto, tendo acompanhado os hóspedes até o automóvel, que os ia reconduzir a Angers, Ghiliac e Valderez detiveram-se no terraço. A noite estava maravilhosamente estrelada; não soprava a mais leve aragem. No céu, lavado de nuvens, cintilavam as estrelas, e o crescente lançava um doce luar sobre os relvados e as estufas, cujas cúpulas se recortavam ao longe,

Valderez apoiara-se à gradinata, enquanto Ghiliac, imóvel, junto dela, ficara a contemplar-lhe o delicado perfil, emoldurado na branca écharpe de renda em que a

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moça envolvera a cabeça.Súbito, junto de Valderez, salta à balaustrada um corpo felpudo, Era um gato

preto, pertencente sem dúvida, a um dos ajudantes de jardineiro. Valderez, soltando uma exclamação de terror, recuou, num movimento instintivo, mas fê-lo tão abruptamente que foi cair nos braços do marido, os quais, instintivamente, se abriram para recebê-la. Durante alguns segundos, os lábios de Elias roçaram a fronte da moça, que sentia nas pálpebras a carícia dos seus cuidados bigodes. Ela, porém, se desvencilhou rápida, balbuciando:

— Perdão... esses animais causam-me sempre uma impressão desagradável...E dirigiu-se para o salão. Elias permaneceu ainda alguns momentos no terraço, a

fumar e a passear de uma a outra extremidade. Sozinha no salão, Valderez retomara o trabalho. Mas a agulha, nessa noite, não

lhe corria veloz entre os dedos. Medrosa, inquieta, a moça levantou-se, na intenção de se recolher aos seus aposentos.

— Vai já subir?Era Elias que entrava, pronunciando estas palavras com voz indiferente.— Vou. Sinto-me um pouco fatigada. Boa-noite!— Permita-me que a detenha ainda alguns minutos. Quero comunicar-lhe a

minha próxima partida... depois de amanhã.— Realmente! O senhor decidiu-se muito depressa!— Como sempre. Detesto os projetos demorados. Vou passar alguns dias em

Paris, e de lá partirei para Cannes.— Mas, então... Benaki vai com o senhor?Um sorriso de inexplicável ironia entreabriu os lábios de Ghiliac.— Ah! Os seus cuidados são pelo Benaki! Levo-o, naturalmente. Será

interrompida a sua instrução religiosa, mas a senhora a continuará depois. É bem possível que o envie para cá, no verão, se me decidir pelo projeto de uma expedição ao pólo norte.

— Uma expedição ao pólo norte! — repetiu a moça, com os olhos esbugalhados de surpresa.

— Por que não? Se obtiver resultado, será uma glória a mais; se deixar por lá os ossos... nada se perderá com isso, não é assim?

Deu uma risadinha sarcástica, vendo Valderez desviar um pouco o olhar, ao mesmo tempo que esboçava um gesto de protesto.

— Peço-lhe que não se julgue obrigada a dizer-me o contrário! Prefiro a sua habitual sinceridade. E quanto a mim, creia que não me causa pesar o ir morrer naqueles rincões, longe da civilização, longe de tudo. Dirão, sim, por algum tempo

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nos círculos elegantes de Paris e alhures: "Que pena! Pobre Ghiliac! Um belo rapaz! Um grande talento! Uma grande fortuna! Que loucura!" Depois, esquecer-me-ão como esquecemos todas as coisas. Vaidades das vaidades! Sentença esta que será verdadeira até o fim do mundo. Boa-noite, Valderez!

Tomou, sem beijá-la — como era seu costume — a mão que a moça lhe estendeu, e afastou-se apressadamente.

Valderez permaneceu, um instante, imóvel, com as feições retraídas. Depois, lentamente, subiu para o seu quarto, prevendo já que essa noite seria de insônia, tais as angústias, as dúvidas, as incertezas que lhe martelavam o espírito.

Ao mesmo tempo, o senhor de Ghiliac, entrando nos seus aposentos, murmurava com um sorriso escarninho:

— É Benaki quem a preocupa!... somente Benaki! Delicioso!

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CAPÍTULO XIV

Nessa quente manhã de Junho, passeava Valderez, a passos lentos, pelos atalhos do bosque de Arnelas, em companhia da senhora Vangue, a mulher do médico de Vrinières. Estava, havia muito, em contínuas relações com essa moça, que ela sempre encontrava à cabeceira dos pobres doentes visitados por ambas. Aproximara-as discretamente o cura, convencido de que a companhia desta última, senhora distinta e honesta, e fervorosa cristã, só podia ser favorável à jovem castelã de Arnelas, sempre solitária em sua faustosa residência. A diferença de posições não impedira que ambas logo se simpatizassem e, por isso, passeavam agora vagarosamente, em perfeita intimidade.

Eram já decorridos três meses desde a partida do senhor de Ghiliac. Desta vez, porém, ele escrevia à esposa todas as semanas, enviando-lhe ora um livro, ora um trecho de música; aconselhava-a acerca de suas leituras, ao mesmo tempo que lhe pedia a opinião sobre tal obra ou fato histórico. Assim tornava-se entre os dois relativamente fácil a correspondência e Valderez, muito menos constrangida que nas conversas com o marido, mostrava-lhe assim, sem que disso se apercebesse, as suas preciosas qualidades morais e a rara inteligência. Em troca, recebia carta como só as sabia escrever o senhor de Ghiliac, pequenas obras-primas de graça e de estilo, que fariam a alegria dos letrados.

Essa correspondência literária e as freqüentes remessas de flores, frutas confeitadas e várias guloseimas, enquanto estivera em Cannes, representavam evidentemente o que Elias supunha os seus deveres para com a esposa.

Tivera esta o ensejo de admirar, a uma revista mundana, a maravilhosa Vila do senhor de Ghiliac, contornada de esplêndidos jardins, e ler a descrição das festas de Cannes, Nice e Monte Carlo às quais ele assistira, e onde brilhava a bela marquesa Hermínia. Depois, a sua recepção na Academia ocupara todos os jornais, todas as revistas. Sessão de que não havia lembrança de outra igual; os assistentes premiam-se, esmagavam-se, e ao surgir o anfitrião, "todos os corações palpitavam, todos os olhos o fitaram", consoante o dizer do cronista de uma revista elegante.

Valderez leu e releu o discurso de Elias.Era um trabalho admirável. Compreendeu a impressão que devia ter produzido o

seu discurso, feito com sua voz de timbre quente e vibrante, voz sedutora que era um encanto para quem a ouvia.

E repetiu, sem o saber, uma frase do senhor d'Essil à mulher, murmurando com um frêmito de terror:

— É um terrível fascinador!Algum tempo depois, soube, simultaneamente, por uma carta do marido e pelos

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jornais, da partida do marquês de Ghiliac para um cruzeiro na Noruega, a bordo do seu novo iate. Eram provavelmente os pródromes da viagem ao pólo norte. E Valderez pôde então ver-lhe a fotografia, em traje de yatchman, no convés do soberbo navio que era descrito como digno do homem de requintado gosto que era o seu proprietário.

Quando tornaria ele a Arnelas? Ignorava-o Valderez. A idéia de tornar a vê-lo causava-lhe um invencível mal-estar; de outro lado esse abandono parecia a todos incompreensível e modesto. Em certas ocasiões, a moça perguntava a si mesma qual seria o seu futuro... Como lhe dissera um dia o cura de Vrinières, era impossível que esse estado se prolongasse indefinidamente. Compreendia-o agora Valderez. Mas fosse qual fosse o modo como o resolvesse o senhor de Ghiliac, aguardava-a, sem dúvida e inevitavelmente, o sofrimento, dizia para si a moça, com um frêmito de angústia.

Ao ver o doutor Vangue e sua esposa unidos, felizes em sua mediocridade, enchia-se a moça de melancólicas reflexões. E observando a ternura do doutor pelos filhos, sua preocupação com a boa educação física e moral deles, involuntariamente comparava tudo isso com a indiferença paterna do marquês de Ghiliac.

Todavia, era forçoso convir que, sob esse aspecto, havia algum melhoramento. Elias, em suas cartas, informava-se da saúde da filha, já lhe tendo enviado da Noruega, pouco tempo antes, uma linda boneca, da qual Guilhermina, no auge da alegria, não se separava nunca, beijando-a a todo momento.

Reconhecia Valderez que não havia dado ainda um passo para o conhecimento do caráter do marido; a esfinge continuava, impenetrável, mais do que nunca indecifrável. Em sua angústia, quando a alma se lhe volvia profundamente atormentada pela dúvida e pelo sofrimento, apelava a moça para Deus, sentindo-se então mais resignada e tranqüila.

A oração, a caridade, os seus cuidados com Guilhermina, de quem era ardentemente amada, eis em que se resumia a vida de Valderez. O único prazer que lhe trazia essa posição tão invejável de marquesa de Ghiliac era o de espalhar o bem em derredor de si. Os pobres e os aflitos da redondeza conheciam todos a jovem castelã que sabia sempre juntar com o outro alguma coisa de si própria, de seu coração, de sua graça encantadora, e cujo sorriso delicioso alegrava os mais tristes lares, ao mesmo tempo que os seus conselhos, graves e meigos, faziam que tornassem ao dever muitos desgarrados.

Havia já quinze dias que Valderez não recebia cartas do marido. Soubera, entretanto — pelos jornais — que ele se achava agora em Paris, continuando a costumada vida mundana. Num palacete de um dos arrabaldes da cidade, acabava de

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ser representada uma comédia escrita por ele; entre as atrizes, todas portadoras de velhos nomes da França, depararam-se-lhe os nomes da condessa de Trollens e da baronesa de Brayles. Este último não lhe era desconhecido; era o da amiga de infância de Elias e da senhora de Trollens, a quem se referira Ghiliac, no decurso de uma conversa com o senhor de Noclare, que conhecera o barão de Brayles.

Evidentemente, Elias não reapareceria tão cedo em Arnelas. Estava-se em plena estação mundana. E passada esta, se a expedição ao pólo ainda estivesse nos seus planos, ele a empregaria em organizar tudo o que necessitava para tal empreendimento.

Numa das ruas do bosque, diante das duas senhoras, Guilhermina e sua amiguinha Tereza Vangue corriam, brincando com o cãozinho do doutor, um pequeno lulu muito folgazão. Súbito, deixando as meninas, começou o animal a latir, enfiando por um atalho transversal.

— Oh, olha Odin! — gritou Guilhermina. — Mas então, o papai!... Ah, lá vem ele, mamãe!

Efetivamente, acabava de aparecer o senhor de Ghiliac, precedido do lebreu e seguido por Benaki, mas um Benaki transformado, pois que os seus trajes de selvagem haviam sido substituídos por um terno à européia.

Foi tal o pasmo de Valderez, que parou involuntariamente.— O senhor... a esta hora! Mas se não há trem!— E para que se fizeram os automóveis? — respondeu ele, sorrindo.Recobrando logo a sua serenidade, Valderez, estendendo-lhe a mão, apresentou-

o à senhora Vangue, para quem era ele ainda um quase desconhecido, porquanto esta apenas o havia observado de longe, durante as suas temporadas em Arnelas. A esposa do médico fazia do marquês um juízo pouco lisonjeiro devido ao seu estranho proceder para com Valderez, a quem admirava e amava. De resto, o castelão de Arnelas era tido por um cético, escarnecedor, muito frio e pouco acessível ao comum dos mortais. Foi por conseguinte, grande admiração para a senhora Vangue ver-se em presença de um fidalgo simples e afável que lhe fez delicados elogios ao marido e a Terezinha; erguendo depois Guilhermina nos braços para beijá-la, disse-lhe alegremente:

— E tu também, minha querida, como estás linda. Vê-se logo a dedicação com que és tratada pela tua mãezinha.

Este tutear inusitado causou grande admiração a Guilhermina, cujas faces, agora sempre coradas, irradiavam alegria.

Quando, após alguns minutos, a senhora Vangue se despediu em companhia da filha, achava-se ela completamente encantada com o marquês de Ghiliac, e deplorava

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que dois seres tão admiravelmente dotados não se pudessem harmonizar.— Vamos, Benaki, cumprimenta a senhora marquesa — disse Elias, chamando

com um gesto o pretinho que se conservava afastado. — Participo-lhe, Valderez, que ele fez grandes progressos. Dubiet — a quem, entre parênteses, só tenho que elogiar — ensinou-lhe a ler e ocupou-se de sua instrução religiosa. Resta somente que a senhora o faça batizar.

As pupilas de Valderez brilharam de alegria.— Oh, meus parabéns, Elias, por ter feito continuar a tarefa iniciada! Sim, hás

de ser batizado, meu pobre Benaki — acrescentou ela, acariciando a grenha crespa do moleque, cujos olhos bondosos, extasiados, se ergueram para a moça. — Então, Elias está satisfeito com Dubiet?

— Inteiramente satisfeito. É um excelente rapaz e muito inteligente.— Já não lhe antipatiza a ingrata figura?— De modo nenhum. Aliás, está menos magro e de melhor aparência. Ademais,

como bem dizia a senhora, são pormenores de somenos importância... De onde vinham?

Assim conversando, iam os três caminhando pelo atalho. Ghiliac, sorrindo, ao olhar entre alegre e tímido da criança, chamara-a para junto de si e levava-a pela mão, como pai que se sente feliz por tomar a ver a filha depois de longa ausência.

— Fui, em companhia da senhora Vangue, visitar uma família pobre. E, já de volta, dávamos um passeio pelo bosque enquanto as crianças brincavam.

— Parece simpática, essa moça; mas não é de sua posição.— Da minha posição! Confesso-lhe que essa consideração não me impedirá que

trate como amiga uma pessoa tão distinta, tanto no físico como na moral.— Não queira ver nas minhas palavras uma censura — disse ele. — Era uma

simples observação, mas o que a senhora fizer está bem feito. Tem, na verdade, a alma muito nobre para cair em semelhantes pequenezas.

Um ligeiro rubor subiu às faces da moça. A voz de Elias tinha nesse momento vibrações graves, para ela até então desconhecidas.

— Fez ainda outros conhecimentos, agora que os arredores começam a se povoar? — perguntou ele ao cabo de um instante de silêncio.

— Não, senhor... Visitei somente duas vezes a senhora d'Oubignies, e uma vez a senhora de Hornettes. Não tenciono visitar a mais ninguém.

Tornou a corar. É que não podia dizer que o estado em que a deixavam as ausências e o abandono do marido, tornava-lhe infinitamente penosas essas relações com estranhos, cuja ávida curiosidade bem adivinhava.

Teria ele compreendido o seu pensamento? Franziram-se-lhe os sobrecenhos e

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uma ruga barrou-lhe a fronte por alguns instantes.— Vai brincar com Benaki, filhinha, corre um pouco por ai — disse ele,

largando a mão de Guilhermina.Acompanhou com o olhar, durante alguns momentos, a criança que arrastava o

pretinho numa carreira louca atrás de Odin. Depois, voltando-se para Valderez:— Se não lhe agrada a sociedade, talvez agora se julgue muito infeliz — disse

ele, num tom entre sério e irônico. — No fim de agosto começarão, prolongando-se até o fim da estação de caça, as nossas partidas em Arnelas. A senhora terá então ensejo de provar as suas primeiras armas como dona-de-casa.

Valderez não pôde conter um movimento de terror.— Eu... O senhor está gracejando! Como quer que... Eu seria absolutamente

incapaz de...De fato, sabia, pelo que lhe haviam dito a senhora d'Oubignies e a esposa do

notário, o que era a estação de caça no castelo de Arnelas: uma série ininterrupta de recepções faustosas, distrações mundanas, desportes de todo o gênero, que reuniam em Arnelas a mais elegante e aristocrática sociedade.

— Não é essa absolutamente a minha opinião — replicou Elias, muito tranqüilamente. — Já observei que a senhora é uma excelente dona-de-casa, a criadagem é dirigida por mão firme e destra, tudo corre às mil maravilhas no interior do nosso lar. O mesmo se dará, estou certo, quando estiverem aqui os nossos hóspedes. Além disso, o mordomo, o cozinheiro e a criada encarregada da rouparia lhe facilitarão muito a tarefa devido à prática que têm dessas recepções. A mana Cláudia que, espero, virá passar dois meses conosco, auxiliá-la-á da melhor vontade, e para os pormenores desse código mundano, que tanto a atemoriza, estarei sempre ao seu inteiro dispor.

Ela encarava-o com tão visível espanto que Elias não pôde reprimir um sorriso.— Dir-se-ia, Valderez, que lhe estou a contar a coisa mais extraordinária deste

mundo!— Por certo! Ignorando absolutamente o que seja a sociedade, nunca poderei

receber convenientemente os seus hóspedes...Ele pôs-se novamente a rir.— Oh, isso não me dá cuidado! A senhora nasceu grande dama, e eu me

encarrego de, em dois meses, fazê-la uma mulher da alta sociedade, não como essas cabeças ocas de almas fúteis que há de ver andar-lhe à roda, mas tal como eu a entendo, o que é coisa muito diversa.

Valderez não demorou a perceber o sentido oculto dessas palavras. A decisão do marido, essa próxima mudança de existência, que ele lhe anunciava com o ar mais

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natural do mundo, causavam-lhe verdadeiro terror.— Mas o senhor tem sua mãe! — lembrou ela, timidamente. — Que diria ela

se...— Minha mãe sabe muito bem que, desde o momento em que me casei, é

naturalmente minha mulher quem deve dirigir a minha casa e receber os nossos hóspedes. Não tenha, pois, nenhum cuidado a esse respeito. Afianço-lhe que tudo correrá perfeitamente. Urge também que se ocupe do preparo das suas toilettes.

E envolveu num lance de olhos investigador a saia de lã bege e a blusa de batista clara, que a moça trazia nesse momento.

— Quem foi que lhe fez isso?— Quem cose para mim, desde algum tempo, é uma costureirinha de Vrinières,

que vive com dificuldade.— Mas que cose muito mal! Dê-lhe todos os trabalhos que quiser — não me

oponho absolutamente — mas não ponha mais esse vestido; faça presente dele a quem quiser.

— Irei a Angers, à casa...— Não; levá-la-ei a Paris, à costureira de minha mãe. Escolherá ao mesmo

tempo todo o enxoval e os acessórios. Faremos tudo isso em quinze dias. Agora, dê-me notícias dos seus. Como vão eles?

— Ainda esta manhã, recebi uma carta de Orlando. Estão todos bons, muito obrigada. A mamãe vai recuperando as forças. Ele é que está muito triste, coitadinho!

Ghiliac, afastando um ramo, para que não tocasse no chapéu de Valderez, perguntou interessado;

— Por quê?— Papai recusa-se absolutamente a permitir-lhe a entrada no seminário.— Ah, sim, meu sogro já me falou sobre isso. Compreendo bem que não esteja

satisfeito por ver semelhante vocação no filho mais velho.— Mas se tem outros filhos! E ainda que assim não fosse, se Orlando se sente

realmente chamado ao serviço de Deus, para o papai esse sacrifício é um dever, ao mesmo tempo que lhe deveria parecer uma honra.

— Seu pai vê as coisas a uma luz diferente. Espero, porém, que tudo se acomodará. Orlando pareceu-me inteligente e muito simpático; diga-lhe que conto com ele em setembro juntamente com seu pai, pois que, infelizmente, sua mãe não pode viajar. Todavia, talvez que um carro-leito...

— Não creio. Só a idéia de ter de sair dos Altos-Pinheiros fá-la-ia adoecer. Demais, a existência aqui seria fatigante para ela e prejudicaria as crianças, a Marta principalmente, que se deixaria com facilidade inebriar pelo luxo e mundanidades.

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Muito obrigada, Elias...— Oh, por quem é! Nada mais natural que eu lhe facilite o prazer de ter os seus

em sua companhia. Mas já que isso lhe parece impossível por agora, veremos outra coisa, mais tarde... Olá, a Reynie aberta. Ah, sim, agora me lembro. A senhora de Brayles disse-me que passaria ali alguns dias, a fim de dirigir uns consertos urgentes que tem a fazer.

Referia-se a uma vilazinha cercada de mimoso jardim e situada à orla do bosque.— Ah! Reynie pertence à senhora de Brayles?— Pertence... Olhe, lá vem ela!Pela estrada cheia de sombra, passava nesse momento uma charrete inglesa,

guiada por uma senhora. Por trás do veuzinho branco de tule, dois olhos fecharam febrilmente Valderez.

As mãos que seguravam as rédeas refrearam nervosamente o pônei, quando a carruagem cruzou com o marquês e a esposa. Foi com o mais gentil dos sorrisos que Roberta correspondeu ao cumprimento do senhor de Ghiliac e à apresentação de Valderez.

— Vem por causa dos consertos, Roberta — perguntou Elias.— Assim é preciso! Oh, que maçada para uma mulher. Mas regresso depois de

amanhã. Já combinei tudo de modo a estar de volta a Paris para a primeira representação da Nova Sapho. Provavelmente, lá nos encontraremos, não é assim?

— Ah! Que me importa a mim a Nova Sapho? Nessa época do ano, Arnelas é deliciosa, e eu tenciono não deixá-la antes do inverno.

Tais palavras deviam ter feito pasmar a senhora de Brayles, a julgar pela expressão da fisionomia e pelo gesto de surpresa que não pôde reprimir.

— Pois quê? Vai ficar em Arnelas?... Nesta época?... Em plena estação mundana?

— Por que não? Afianço-lhe que a estação mundana é para mim completamente indiferente. Talvez vá passar alguns dias na Áustria, em casa de Cláudia, e dar ao mesmo tempo uma olhadela nas propriedades que lá possuo. Mas mesmo essa viagem é pouco provável; prefiro ficar em Arnelas, onde me sinto inteiramente à vontade e onde tenho muito que fazer.

Os lábios de Roberta cerraram-se nervosamente:— Como está outro! — disse ela com um sorriso forçado. — Supunha que o

senhor não suportava o campo!— Não nos será permitido mudar de gostos, principalmente quando

envelhecemos?Roberta riu-se.

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— Quem fala em envelhecer! Nem parece ter trinta anos!... Oh, mas quem cresceu e mudou muito foi a Guilhermina! Eu nunca a reconheceria!

— Valderez fez milagre — disse Elias, acariciando a face da filha.Sob os cílios pálidos fulguravam os olhos da senhora de Brayles.— É também o que parece!... Mas que é isso? Dar-se-á o caso, senhora, que haja

também transformado Benaki?E apontava o pretinho, até então oculto por trás de Valderez, e que um

movimento desta acabava de mostrar. Benaki antipatizava singularmente com a senhora de Brayles, fugindo o mais que podia às suas carícias.

— Não, não fui eu — respondeu sorrindo Valderez. — Mas meu marido julgou, e com razão, que já era tempo de lhe tirarmos os adornos de cafrezinho.

— Tanto mais quanto vamos fazer dele um cristão — acrescentou o senhor de Ghiliac, dando uma palmadinha no rosto do menino. — Mas estamos aqui a retê-la, Roberta... Vê-la-emos ainda em Arnelas antes de sua partida?

— Sim, virei amanhã visitá-los... se é que não venho incomodar a senhora...— Absolutamente. Pelo contrário, terei até muito prazer em poder estreitar as

nossas relações — disse gentilmente Valderez.— Então, até amanhã.E, estendendo a mão a Elias e a Valderez, continuou em seguida o seu caminho.Contraíram-se-lhe as feições sob o império de uma raiva surda, ao mesmo tempo

que, entre dentes, monologava consigo mesma:"Não supunha que fosse tão bonita! E que olhos! Que olhar encantador! Ele

naturalmente está apaixonado. Sim, é necessário que assim seja para que se venha enterrar no campo nesta época!... E é ciumento, pois que a traz reclusa... Confesso que não os entendo! Estará ele a representar uma comédia? Quem sabe? O fato é que mudou muito e tenho certeza de que a ama!" concluiu Roberta, atirando uma chicotada ao pônei, que corcoveou, sacudindo a crina, como a protestar contra um tratamento a que não estava afeito.

Entrementes, perguntava Ghiliac à mulher:— Que lhe parece a senhora de Brayles, Valderez?— Uma bela moça, que parece ser inteligente e amável.— Bela! — exclamou ele com desdém. — Tem apenas uma fisionomia

interessante, é o que é. Quanto à inteligência é superficial, como também a sua educação. Mundanidade, convenção, demasiada garridice, eis aí Roberta, e, desgraçadamente, como ela existem muitas. Sim, Valderez, a senhora há de ter muitos estudos curiosos para fazer neste mundo, que ainda ignora. Há de ver então todas as pequenezas, as rivalidades, as intrigas pérfidas, que se ocultam sob as mais

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amáveis aparências. Posso dar-lhe algumas lições sobre isto, porquanto conheço toda essa gente que já não tem segredos para mim.

Ela ergueu para o marido os olhos.— Nesse caso, como gosta ainda o senhor dessa sociedade tão miserável sob

aparência tão brilhante?— Gostar? Oh, decerto que não a aprecio! Tenho-me divertido em estudá-la,

dissecando almas de homens, mais ou menos ocas, almas femininas nulas ou ferozes, lendo numas e noutras estranhas vaidades, complicados cálculos de amor-próprio, penetrando os refolhos de existências brilhantes e invejadas. Sim, a sociedade tem sido para mim um divertimento e um campo de estudos. Quanto porém, a apreciá-la, isto nunca! Conheço-a muito para detestá-la.

— O senhor apavora-me! — murmurou Valderez. — Porque é essa mesma sociedade que o senhor quer-me fazer conhecer...

— Sim, quero que a conheça porque a senhora não se destina a uma vida reclusa; porque, necessariamente, há de achar-se um dia em contato com ela. Eu, porém, lá estarei para guiá-la, mostrar-lhe os seus embustes, preservá-la de suas armadilhas, porque a senhora é ainda muito jovem, muito...

— Muito ignorante! — concluiu ela, sorrindo ao ver que o marido reticenciava.— Digamos ignorante se o quer.E sorriu também, enquanto o olhar, muito sério, se fitava na admirável

fisionomia da moça, onde se espelhava a mais límpida, a mais delicada alma que jamais conhecera o cético marquês de Ghiliac.

No dia seguinte, à hora do chá, chegava a senhora de Brayles. Valderez, que a recebera no terraço, convidou-a para irem ao encontro do senhor de Ghiliac, ocupado em dar umas instruções ao jardineiro-chefe acerca de uma das estufas.

— Com muito prazer, porque não me canso nunca de admirar os jardins de Arnelas. O senhor de Ghiliac é um adorador das flores, e muito poucas propriedades poderão, nesse ponto, rivalizar com esta.

Assim conversando, ganharam o jardim, precedidas de Guilhermina, muito catita em seu vestidinho branco. A senhora de Brayles parava freqüentemente, a fim de poder admirar as flores que mais particularmente lhe chamavam a atenção.

— Ah, aqui estão as formosas rosas "Duquesa Cláudia", assim denominadas pelo senhor de Ghiliac em memória de sua bela antepassada!

E apontava para uma grande roseira, carregada de admiráveis flores acetinadas, brancas, admiravelmente listradas de rosa-pálido.

— Parece que são únicas no mundo! O senhor de Ghiliac tem por elas uma

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espécie de culto; oferece-as muito raramente, e isso mesmo só a hóspedes notáveis. Ninguém ousaria colher uma delas. Recordo-me ainda do dia em que eu e Fernanda tivemos essa ousadia. Oh! Nunca mais sentimos desejo de recomeçar, porque quando alguma coisa o desagrada, ele tem um modo de olhar para a gente, sem dizer nada... Sim, sem dizer nada! É demasiado gentil para negar abertamente uma flor a uma senhora. Mas bem sabíamos com que nos aviríamos, e creio que nunca mais colheu Fernanda uma "Duquesa Cláudia".

Guilhermina, que se aproximara da madrasta, ergueu os olhos para a senhora de Brayles.

— Ah, mas agora o papai já consente que as colham! Ainda agora, mamãe colocou muitas no salão; ele mesmo é que deseja que ela as colha todas. Mas mamãe disse que isso seria uma pena, e que era preferível deixar algumas nas roseiras.

Um ligeiro tremor correu pelo semblante de Roberta, cujo olhar, chispando ódio, flechou a moça que caminhava a seu lado, num passo airoso incomparavelmente elegante e a quem o sol arrancava centelhas de ouro dos magníficos cabelos, iluminando-lhe a cútis cetinosa e rosea, semelhante às pétalas das flores tão queridas do senhor de Ghiliac. Um inexprimível encanto desprendia-lhe dessa jovem criatura, trajando simplesmente um vestido de voai cinzento cor-de-prata, realçado por algumas aplicações de rendas.

A mão de Roberta crispou-se, nervosa, no cabo da sombrinha.— É que, provavelmente, a sua fantasia mudou de objeto — disse ela, em tom

displicente. — Tem os seus caprichos o marquês de Ghiliac, tal qual uma bela mulher, apesar do seu desdém pelo nosso sexo. Porque acha que a mulher não é dotada de faculdades acima das do comum dos mortais, sendo pelo contrário, um ser inferior, bom, quando muito, para deleitar-lhe um instante o olhar. Isto mesmo, ou coisa semelhante, nos disse ele próprio, um dia, falando o mais seriamente possível. Foi, lembro-me bem, ainda em vida de Fernanda, a qual protestou e energicamente, sem aliás conseguir convencê-lo. Ah, somos, realmente, senhora, coisa muito insignificante para as naturezas masculinas dessa tempera!

Sorria, dirigindo de soslaio um olhar ávido ao belo semblante de Valderez, que estremeceu ligeiramente.

— E quando uma dessas naturezas cai em sorte a uma moça, criança ainda, um tanto frívola, mas muito amorável e apaixonada, há quantos dissabores em perspectiva! Há, realmente, coisas muito tristes na vida!

— Sim, muito tristes! — disse Valderez, em voz tranqüila e grave. — Mas, creio, minha senhora, que faríamos melhor tomando por esta aléia, que nos conduziria mais facilmente às estufas.

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— Lá está o papai! — exclamou Guilhermina.O senhor de Ghiliac apressara um pouco o passo ao perceber as duas senhoras.Os olhos de Roberta tomaram logo o brilho estranho que lhe causava a presença

de Elias. De regresso para o castelo, inquirindo-o com interesse acerca das alterações que estava a fazer nas estufas, e sobre a sua célebre coleção de orquídeas.

— Lobic acaba de conseguir uma nova variedade que me parece simplesmente uma maravilha — disse Glúliac. — Precisamente agora vou dar-lhe um nome: chamar-lhe-emos "Marquesa de Ghiliac", em sua honra, Valderez.

Nos lábios de Roberta passou uma ligeira crispação, que ela todavia reprimiu.— Tornar-se-á célebre, dentro em pouco, como aconteceu à rosa "Duquesa

Cláudia" — disse ela, com um meio sorriso. — O que importa é que também não se enfare depressa dessas orquídeas, Elias.

— Como assim? — perguntou ele.— Sim, parece-me que já não faz caso dessas rosas, pois que já as prodigaliza.— Prodigalizar, é demais, Roberta. Parece-me que agrupadas nas jardineiras do

salão branco pelas mãos de minha mulher, com o gosto artístico que ela possui no mais alto grau, eu gozaria muito mais essas flores do que se as deixasse nas roseiras. Isto é ainda egoísmo, e não prova absolutamente que eu já não queira, e muito, às minhas rosas. Ao contrário...

O brilho sarcástico, bem conhecido de Roberta, atravessou, nesse momento, as pupilas do marquês, e ela baixou as pálpebras, dominada como sempre pela ironia glacial desse homem, para quem resultavam inúteis todas as faceirices, todas as sutis intrigas femininas. Forçou novamente os lábios a sorrirem, dirigindo frases amáveis à linda moça que caminhava à direita de Elias, a essa criatura odiosa, por quem, a cada instante, aumentava mais e mais o seu ódio recalcado.

O salão branco tornara-se para Valderez a sala preferida do castelo. Soubera ela dar a esse aposento, a seu ver demasiado luxuoso, um cunho íntimo e sério.

Verificou-o logo Roberta — como também a graça encantadora da jovem castelã no seu papel de dona-de-casa. Demais, parecia Valderez admiravelmente dotada de inteligência: conversava muito bem, salvo em se tratando de assuntos puramente mundanos, que lhe pareciam quase inteiramente estranhos.

Percebendo isso mesmo, apressou-se a senhora de Brayles em torcer para esse rumo a conversa, a fim de infligir pelo menos algumas feridinhas no amor-próprio da sedutora marquesa. Mas, com o senhor de Ghiliac essas perversas astucias não surtiam efeito. Num abrir e fechar de olhos, fez ele derivar a conversação para terreno mais familiar a Valderez, e, segundo seu costume, dirigiu-se à sua vontade, mostrando-se visivelmente satisfeito em fazer realçar a inteligência arguta da esposa.

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Estava nesse dia muito alegre.Sentir-se-ia feliz por se ver de novo ao lado de Valderez? Provavelmente... se

bem que se pudesse perguntar por que razão não buscara mais cedo esse prazer. E divertia-se também, — reconhecia-o Roberta por certa expressão de sua fisionomia — com o ciúme feroz que ele sabia ocultar-se sob as aparências amáveis da senhora de Brayles. Brincava — como sempre o fizera — com esse amor, cuja existência não ignorava.

Tornava-se para "ele" um brinquedo... e ter diante dos olhos essa maravilhosa castelã que gozara talvez da felicidade de ser amada por ele! Oh, era intolerável! Por isso, abreviou Roberta a visita, recusando o convite que lhe fizeram para jantar no castelo, desculpando-se sob pretexto de ter de ultimar ainda importante negócio antes de sua partida.

Enquanto Ghiliac fora acompanhar Roberta à carruagem, voltou Valderez ao salão, sentando-se ao pé da mesa de trabalho. Com um gesto maquinal, pôs-se a acariciar as formosas rosas "Duquesa Cláudia" que floriam numa jardineira de Sèvres enquanto o olhar cismador se detinha na cadeira havia pouco ocupada pela baronesa. Realmente, simpatizava muito pouco com essa senhora de Brayles, e Elias talvez tivesse razão no juízo severo que dela fizera nessa manhã. Suas insinuações acerca da natureza caprichosa do senhor de Ghiliac, da maneira como este compreendia o papel da mulher, dos equívocos entre ele e Fernanda, tudo isso mostrava completa ausência de tato social.

Mas essas insinuações tinham, em todo caso, acordado em Valderez a tristeza latente, como sempre que uma circunstância qualquer lhe vinha pôr mais claramente sob os olhos o que ela bem conhecia — o absoluto egoísmo e ausência de coração do marido.

Todavia, ele parecia agora amar a filha. Como na véspera, mostrara-se Elias afetuoso com ela, parecendo interessar-se por tudo que a mulher lhe dizia com relação à saúde da criança, à viva inteligência e ao melhorar do seu gênio. E, para consigo mesma, Valderez notava no marido uma mudança que lhe chamara logo a atenção. Já não tinha para ela a frieza de outrora, nem a ironia, nem a amabilidade aliciante que, as vezes, tanto a perturbava três meses antes, porquanto lhe deixava entrever à sua inexperiência o terrível poder de sedução que ele possuía, e lhe infundira o receio de que o marido a isso recorria a fim de poder à sua vontade estudar-lhe o jovem coração ignorante, e submetê-lo melhor ao seu domínio. Agora, já não era nada disso. Elias mostrava-se sério e reservado, sem frieza, discretamente amável, já não tendo para ela essas ironias que lhe eram tão familiares. Se continuasse assim... Oh! Sim, realmente, seria possível a existência...

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Elias entrou no salão. No tapete, jazia uma rosa apenas entreaberta, que os dedos distraídos da moça acabavam de fazer cair. O senhor de Ghiliac curvou-se e apanhou a flor.

— Seria pena deixá-la estiolar-se sobre o tapete! — disse ele, enfiando-a na lapela. E, arrastando uma poltrona, sentou-se ao pé de Valderez, que retomara o seu trabalho.

— Essa toalha de altar parece-me uma maravilha. De onde tirou esse desenho?— Imaginei-o, segundo uma velha gravura que encontrei na biblioteca.— Oh, ainda não lhe conhecia esse talento! Decididamente, é uma artista em

tudo. Está admiravelmente concebido esse desenho. Que destino vai dar a essa obra?— Vou oferecê-la à pobre igrejinha de Saint-Savinien. Tenciono tê-la pronta

para a festa da Assunção.— Permita-me que lhe recomende poupar mais os seus olhos: isso deve cansá-

los muito. E, de parte esse trabalho, que mais tem feito a senhora? Gostou dos últimos livros que lhe remeti?

Posta neste terreno a conversa, desaparecia entre eles todo o embaraço, prolongando-se indefinidamente, interessando-se vivamente Elias pelos juízos muito delicados, emitidos pela esposa acerca das obras lidas, e ouvindo Valderez com secreto êxtase a crítica ligeira, mas brilhante e profunda, que delas fazia o senhor de Ghiliac.

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CAPÍTULO XV

Decididamente, já se não pensava mais no pólo norte. O marquês de Ghiliac, como ele próprio havia dito à senhora de Brayles, preparava-se para passar o verão e o outono em Arnelas, como o demonstrava a chegada de todo o seu pessoal, das suas carruagens, dos seus cavalos. Esse ano, debalde o esperariam em Saint-Maurice, Ostende e Dinard. Dessa vez, ele os trocava pelas sombras amenas do seu parque de árvores seculares, pela esplêndida florescência dos seus jardins, a calma majestosa dos amplos salões do seu castelo, e quiçá também pela jovem castelã...

Retomara o trabalho de reconstituição das suas memórias, que tencionava publicar com um prefácio e comentários de sua lavra. Para esse trabalho, parecia-lhe indispensável o concurso de Valderez, pois nenhum dos seus secretários sabia, como esta, decifrar os caracteres amarelados e o velho francês, não raro incorreto. Viu-se pois a moça solicitada a vir passar todos os dias algumas horas no gabinete de trabalho, por ser a biblioteca, exposta para o sul, muito quente durante a estação. Havia desaparecido o perfume detestado por Valderez, como também haviam sido banidas as flores de inebriantes perfumes. Não podia, por conseguinte, esse convite ser por ela recusado, admitindo que tal fosse a sua idéia, o que não era, porquanto não desconhecia que, qualquer que fosse o temor que ainda a atormentava, devia prestar-se a uma reconciliação, se fosse esse o desejo do marido.

Vinha, pois, todos os dias, sentar-se a moça ao lado de Elias, no grande salão de luxo delicado, cujos estores entretinham, corridos, uma agradável temperatura. A leitura, às vezes difícil, dos manuscritos não lhe ocupava, porém, todas as horas; o senhor de Ghiliac conversava então com a esposa sobre muitos e diferentes assuntos, e, particularmente, acerca do romance cujo enredo planejava. Este, submetia-o ele ao juízo de Valderez, pedindo-lhe a opinião e provocando-lhe a crítica. Ora, até então, se havia dado fato semelhante: pedir conselhos a uma mulher, ele, o orgulhoso Ghiliac, sujeitando-se a ver discutidas as suas idéias por essa jovem de dezenove anos, que a si mesma sinceramente se capitulava de ignorante.

É que Valderez tinha os mais maravilhosamente expressivos olhos que se podem imaginar, e de sua deliciosa boquinha saíam palavras judiciosas, apreciações delicadas e graves, que pareciam provavelmente muito dignas de atenção por parte do senhor de Ghiliac, pois que este as solicitava e preciosamente as recolhia.

Não variara porém a atitude dos primeiros dias. Mas sua cortesia revestia-se agora de uns longes de solicitude cavalheiresca, e o olhar grave, ao pousar em Valderez, revia uma penetração misteriosa que a fazia estremecer, não já de terror, como antigamente, mas de uma como ansiosa comoção. Ante essa nova atitude, que transformara o senhor de Ghiliac, o mal-estar de outrora quase desaparecera

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completamente para a moça: e ainda bem, porque as relações entre ambos se tornavam mais amiudadas. Eram agora, de contínuo, passeios, visitas aos castelões dos arredores, sessões de música em comum, lições de equitação, de desportos da moda, dadas por ele mesmo à moça, cuja elegante destreza e rápidos progressos entusiasmavam esse sportman sem rival.

A tudo se prestava Valderez com graciosa deferência. E o que só fora, a princípio, simples submissão aos desejos do marido, era-lhe agora um prazer, por isso que era jovem, com saúde, afeita ao exercício e à fadiga mercê da vida que levava nos Altos-Pinheiros, sempre pronta a gozar dos longos passeios a cavalo pelos caminhos pitorescos da floresta de Arnelas, ou das partidas de tênis sob as velhas árvores seculares, à hora matinal, em que o orvalho da noite refrescava a atmosfera.

Achavam-se assim quase sempre juntos e Valderez perguntava a si própria, com a mesma ansiedade, qual o mistério que se ocultaria por trás do olhar que a fixava de contínuo.

Estava-lhe reservada uma grande surpresa, pouco depois da chegada de Elias, a propósito do batismo de Benaki. Declarara o senhor de Ghiliac, com a maior naturalidade, que ele lhe serviria de padrinho e a mulher de madrinha. Vrinières inteira pasmou com a novidade, e o cura, convidado a fazer conhecimento com esse paroquiano tão pouco exemplar, avistado somente de longe em longe, nas suas curtas estadas em Arnelas, achou-o muito diferente do que julgava, tão amável e discreto que, de súbito, Elias adquiriu um admirador a mais.

— É impossível que não vos entendais com ele, senhora — declarou o cura a Valderez, ao encontrar-se com ela, dias depois. — Que haja procedido mal com a primeira mulher, com a filha, convosco mesmo, não o nego; mas essa natureza deve ter uma certa soma de lealdade, possuir outras tantas qualidades que vos cumpre descobrir. Tolhe-vos a desconfiança, minha filha: buscai cristãmente superá-la se quereis ver desaparecer, algum dia, todo o equívoco entre ambos.

Sim, ainda a dominava a desconfiança. E a mutação real de Elias viera aumentar-lhe ainda mais a perplexidade; via-o muito carinhoso com Guilhermina, generoso e bom com Dubiet, esforçado em alcançar para Benaki uma suficiente instrução e uma boa educação moral; via-o acompanhá-la e mais à filha, todos os domingos, à igreja no seu faetonte, puxado por fogosos e soberbos cavalos, cujo ímpeto ele gostava de frear — assistir à missa ao lado delas. Qual seria o sentimento que o levava a proceder assim? Por que se mostraria agora tão diferente do que fora e ela conhecera alguns meses antes?

Pelos fins de Julho, Elias conduziu Valderez a Paris a fim de provê-la de lindas

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toilettes. Ninguém possuía como ele gosto tão apurado, nem maior aversão à trivialidade e ao convencional; mas, também, ninguém como ele possuía em grau tão sutil o amor à elegância, à beleza harmoniosa, ao luxo sóbrio e magnífico. Disso, teve Valderez, ainda dessa feita, experiência pessoal, vendo as maravilhas com que ele a cumulava. E tais foram elas que a moça se sentiu fascinada, e como entontecida, porque, enfim, era mulher e possuía também em alto grau o gosto da elegância e da beleza. Mas o bom senso cristão, nela tão arraigado, fê-la bem depressa censurar-se à loucura desses gastos de que era objeto.

Um dia, deparou-se-lhe no seu quarto um estojo que encerrava riquíssimo colar de pérolas de raro tamanho e quilate admirável. Já agora, menos inexperiente, podia estimar aproximadamente o alto preço de semelhante adereço. À noite, antes do jantar, encontrando-se com o marido no salão, disse-lhe, depois de agradecer-lhe o presente:

— Realmente, Elias, serão necessárias todas essas coisas? Confesso-lhe que me sinto como que aterrada.

E ele, sorrindo:— Que singular pergunta da parte de uma moça! Não aprecia então as

toilettes, as jóias, todas essas coisas pelas quais tantas criaturas perdem as almas?— Aprecio-as dentro de certo limite, mas o senhor os ultrapassa, Elias. É uma

loucura esse colar.— Eu não penso assim. Desde que lhe posso oferecer, sem causar dano a

ninguém e sem que, com isso, corra o risco de desorganizar o nosso orçamento, não vejo onde está a loucura!

E o seu sorriso, satisfeito, não tinha laivos de ironia.— Sim, porque me será doloroso pensar que trago comigo jóias cujo preço

aliviaria muitos desgraçados — ponderou gravemente Valderez.— Mas cumpre também pensar, Valderez, que com o nosso luxo, as nossas

despesas, ajudamos a viver uma certa categoria de trabalhadores.— Concordo; mas, se esse luxo é exagerado, excita a inveja e o ódio e modifica

a alma e o corpo. Creio que se impõe uma certa moderação.— Sempre o justo-meio! Esse terrível justo-meio tão difícil de atingirmos! A

senhora o observa, Valderez, mas eu, ah!...E rindo, muito satisfeito, ofereceu o braço à mulher a fim de conduzi-la à sala de

jantar, cuja porta o mordomo acabava de abrir. Teria compreendido esse mundano egoísta o sentimento expresso pela moça? Não o acreditava Valderez. Como quer que fosse, desejava ele diminuir os escrúpulos da esposa, porquanto, no dia seguinte, quando esta entrou no salão onde ele a aguardava para levá-la de automóvel a

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Fontamebleau entregou-lhe Elias uma carteira com o monograma dela, dizendo-lhe:— Desejo que me perdoe o que chama as minhas loucuras. Distribua depressa

com os seus pobres esse dinheiro que aí está, e peça-me outro tanto o mais breve possível.

E como Valderez tentasse abrir os lábios para exprimir-lhe o seu agradecimento, atalhou-a:

— Nada tem que me agradecer. Leio-lhe nos olhos que está contente, e isto me basta.

Atos semelhantes, executados gostosamente com uma graça muito simples e cavalheiresca, eram de modo a tocar o coração de Valderez. Por que, pois, ainda conservava ela o espírito dessa dúvida que lhe envenenava a vida e mantinha entre ambos uma barreira intransponível? Nessa época Paris inteira começava a emigrar para outros climas. O senhor de Ghiliac, liberto dos deveres mundanos, aproveitava o ensejo para fazer conhecer a Valderez a Paris artística, mostrava-se-lhe o mais gentil e o mais erudito dos cicerones, a ponto de fazer esquecer à moça as horas no contemplar das obras-primas, e ao ouvir-lhe a voz quente e vibrante que delas fazia ressaltar todas as belezas. À noite, levava-a ao teatro, sempre que a peça podia interessar a Valderez; à tarde, fazia excursões de automóvel, ou iam para o Bosque. Encontravam sempre algumas personagens parisienses que davam pressa em ser apresentadas à jovem marquesa. Por toda a parte, era Valderez objeto de grande admiração que muito a incomodava, mas que fazia brilharem de contentamento e orgulho os olhos do senhor de Ghiliac. Isto mesmo, notou-o certo dia a moça, perguntando a si própria, com tal ou qual ansiedade, se não devia antes atribuir á nova atitude de Elias simplesmente ao fato de que a sua beleza lisonjeava o orgulho do marido que se comprazia em adornar-se com ela, fazendo-a realçar pela requintada elegância da moldura em que a enquadrava; se não seria para seduzir a jovem provinciana recalcitrante que ele se tornava gentil, grave, discretamente solícito...

Revoltava-se Valderez com este pensamento que amiúde a salteava, durante a sua estada em Paris. Mas esta idéia reaparecia-lhe sempre, todas as vezes que julgava surpreender nos olhos de Elias a mesma expressão de orgulhosa alegria que tanto a impressionara: ou, mais ainda, quando o via escolher-lhe com cuidado essas jóias magníficas destinadas a realçarem a beleza de Valderez, dantes tão menosprezada por ele.

Quando se escoaram os quinze dias marcados por Elias para a demora de ambos em Paris, perguntou uma noite à mulher:

— Deseja permanecer ainda algum tempo aqui, Valderez?— Como o senhor quiser, mas sentir-me-ia feliz em tornar a ver Guilhermina,

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para quem o tempo há de custar a passar. Quer ler a sua última carta?Elias tomou do papel, escrito com letra de principiante, correu-lhe rapidamente

os olhos e disse sorrindo:— Pois bem, voltemos então para Arnelas! De minha parte, é o que mais desejo.

Aproveitaremos, para trabalhar, o tempo que ainda nos resta antes de começarem a chegar os nossos convidados.

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CAPÍTULO XVI

Pelos fins de agosto, viram os castelões de Arnelas aparecer a vanguarda de seus hóspedes, nas pessoas do duque e da duquesa de Versanges, tios-avós de Elias. Eram dois velhos amáveis e encantadores, cuja grande dor na vida — a morte do filho único, ocorrida durante uma explosão na África — não os havia tornado misantropos, nem intratáveis com os outros mais felizes. Elias, o seu mais próximo parente e herdeiro do velho título ducal, era, para eles objeto de um afeto entusiasta. Fosse alguém falar-lhes da dureza do sobrinho, que eles tinham em conta de muito boa pessoa e delicadíssimo, sempre pronto em testemunhar-lhes um discreto devotamento! Os que os ouviam, em geral, não protestavam pelo muito respeito que os velhos infundiam, mas lá diziam entre si: "Este bom duque e esta excelente duquesa, na cega admiração que votam ao sobrinho, emprestam-lhe as próprias qualidades, que, entretanto, ele está muito longe de possuir".

Ausentes de Paris, ao tempo em que Valderez lá estivera, não conheciam ainda a nova sobrinha. Logo à primeira vista, conquistou-lhes esta as boas graças. E enquanto a senhora de Versanges conversava com Valderez, murmurava o duque ao ouvido de Elias:

— Admiram-se os teus amigos e conhecidos que te enterres por tão longo tempo no campo; mas quando conhecerem a maravilha que possuis, dar-te-ão toda a razão, meu amigo.

— Meu tio — replicou-lhe, sorrindo, o senhor de Ghiliac — não se desfaça em cumprimentos a Valderez! Previno-o que os recebe indiferente, sem que, com isso, tenha algum prazer.

— É pois tão modesta quanto bela? Magnífico! És o mais feliz dos mortais! Ora aí está uma sobrinha que havemos de deitar a perder à força de muitos mimos. Pode ficar desde já prevenido, Elias.

— Oh, meu tio! Não serei eu quem o faça...— Sim, sim, bem sei! E creio mesmo que não serás o último a culminá-la de

mimos — replicou sorrindo o duque.Nesse momento, a senhora de Versanges, tendo na sua a mão de Valderez,

aproximou-se-lhe dizendo alegremente:— Não imagina, meu caro, a pena que tenho por não ter conhecido há mais

tempo a deliciosa sobrinha que você nos deu. Não lhe perdoarei no-la ter ocultado tanto tempo. Mas hei de me vingar, minha bela Valderez, amando-te dobradamente.

E a amável senhora beijou na fronte da jovem marquesa, que corou um pouco, comovida e encantada por esta sincera simpatia.

— Ah, se eu tivesse uma filha como tu! Se eu estivesse no lugar de Hermínia!

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Há tanto tempo que o nosso lar está vazio!Uma dolorosa emoção embargou a voz da senhora de Versanges.Valderez inclinou-se para ela e seu olhar compassivo e respeitosamente terno

pousou sobre as delicadas feições da velha senhora, emolduradas em bandos de prata.— Permite, minha tia, que eu a ame e lhe testemunhe, tanto quanto me seja

possível, o meu afeto, muito fraco, infelizmente, em comparação com o que perdeu?— Fraco, oh! Não, minha querida, porque ele aquecerá os nossos pobres

corações e será um raio de felicidade no fim de nossa existência! — interrompeu vivamente a senhora de Versanges, beijando a moça.

O duque mordia o bigode para ocultar a comoção, enquanto o senhor de Ghiliac, olhos baixos, acariciava com um gesto maquinal os cabelos de Guilhermina, de pé ao lado dele.

— Felicidade, sim, é o que eu creio que dás a todos os que se acercam de ti, meu amor — continuou a duquesa. — Aqui está uma criança absolutamente irreconhecível, não te parece, Bernardo?

— Sim, é realmente o termo. Agora já há vida e alegria nesses olhos — os teus olhos, Elias! É, com essas belas madeixas castanhas, tudo o que herdou de ti, porque os traços são todos os dos Monthécourts.

Uma ligeira ruga encrespou por momentos a fronte do marquês, enquanto murmurava entre dentes:

— Que não seja, entretanto, uma boneca frívola como a mãe, se tem de lhe reproduzir as feições.

A velha marquesa apareceu nesse ano em Arnelas mais cedo do que costumava. Uma pressa febril impelia-a a defrontar-se com aquela a quem chamava em segredo "a inimiga", a inteirar-se do lugar que Valderez ocupava em casa do filho. Vira com uma irritação tanto mais forte quanto lhe cumpria ocultá-la, desdenhar Elias todos os prazeres mundanos, instalar-se em Arnelas, ao pé dessa moça, que ele a princípio fingira menosprezar. Por mais que a cegasse o ciúme, era-lhe impossível não admitir que o orgulho, se não o coração, inclinava o filho para essa admirável criatura, digna de lisonjear o mais exigente amor-próprio masculino. Sabia também de antemão que decresceria ao lado dessa jovem, para a qual iriam todas as homenagens, todas as admirações dos hóspedes do marquês de Ghiliac.

Durante algum tempo, vendo-o preocupar-se tão pouco com a esposa e continuar sozinho, como dantes, a vida mundana, julgara ela que Valderez se retiraria com Guilhermina para os Altos-Pinheiros, enquanto durasse a estação de caça em Arnelas.

Um dia, pouco depois de Elias regressar do cruzeiro que empreendera,

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incidentemente lhe falara sobre isso. O filho, encarando-a admirado, respondeu-lhe um tanto irônico:

— Que pensa a senhora, minha mãe! Se Valderez tivesse o desejo de ir passar algum tempo no Jura, não seria de certo nesta ocasião, porquanto, naturalmente, é indispensável que minha mulher lá se encontre para fazer as honras de nossa casa.

Algum tempo depois, a partida e a instalação de Elias em Arnelas vinham demonstrar à mãe que a indiferença conjugal do filho era talvez muito mais aparente que a real.

Quando, pois, ao chegar a Arnelas, a bela senhora viu Valderez em pleno desabrochar de uma beleza que aumentara ainda mais; quando notou a graça incomparável com que trazia as toilettes feitas por um dos grandes mestres de corte, todos os demônios da inveja conspiravam dentro dela. Dissera-o um dia o senhor d'Essil à esposa: a senhora de Ghiliac não poderia perdoar nunca à sua nora agravos dessa espécie.

Valderez vira, com secreta repugnância, a chegada da sogra. À proporção que ia adquirindo experiência, compreendia melhor a falta cometida pela senhora de Ghiliac, ao lhe revelar todos os ferrolhos do caráter de Elias, e, principalmente, assegurando, convicta, a uma pobre moça ignorante e cheia de boa vontade, que pelo marido nunca seria amada. Mas era tal a retidão de seu caráter que à moça repugnava ainda o acusá-la de perfídia, tanto mais quanto a senhora de Ghiliac, ao lhe falar, parecera absolutamente sincera — e a atitude de Elias viera em seguida corroborar-lhe as palavras. Contudo, Valderez sentia pela sogra uma antipatia instintiva, um como vago terror; mas, ao mesmo tempo, inquietava-se, temendo desgostá-la com a sua supremacia de dona-de-casa.

Mas a senhora de Ghiliac conhecia muito bem a natureza do filho, para ousar emitir a esse respeito a mais leve recriminação. Cumpria-lhe tragar em silêncio o seu despeito e assistir impassível ao êxito triunfal da jovem castelã com os hóspedes de Arnelas.

Fora sempre um privilégio ser alguém convidado a penetrar na residência do marquês de Ghiliac. Nesse ano, porém, aumentava o atrativo habitual com a perspectiva de conhecer finalmente a segunda marquesa, para a qual eram inesgotáveis os elogios dos que já a haviam conhecido. Além disso, não seria um requintado interesse ver a atitude do senhor de Ghiliac para com essa jovem esposa saber se realmente estaria, desta vez, apaixonado? E para deliciosa coisa para os ciúmes femininos o atentar para todos os atos e gestos da nova castelã, imaginar-lhe os desazos, as imperícias, que certamente iria cometer essa provinciana canhestra, num ambiente desconhecido, ocultando inúmeras ciladas.

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Desiludiram-se, porém, dentro em pouco, as que antegozavam tal prazer.A inata habilidade de Valderez, sua inteligência, sua reserva um tanto altiva sob

a mais graciosa aparência, permitiram-lhe que se colocasse logo ao nível do papel de dona-de-casa, tal como lhe cumpria ser em Arnelas. E ademais, tinha ela em Elias um guia seguro para conduzi-la com mão discreta por entre a selva de pequenas intrigas, zelos, embustes amáveis e a moralidade sorridente, cujos segredos ele os conhecia bem. Sentia-se envolvida por ele de uma constante solicitude, que lhe parecia meiga e tranqüilizador a nesse ambiente, onde a sua alma profundamente cristã se via contra-feita.

Ninguém pensava em contestar à jovem castelã o perfeito desembaraço e a graça inimitável com que recebia os seus hóspedes. O casamento de conveniência, anunciado pela rica marquesa, agora parecia a todos difícil de compreender, e justificado a princípio pelo modo de proceder do senhor de Ghiliac, nos começos de sua união, ante o irresistível encanto da moça. De resto, as muitas mudanças por que passara Elias, e sempre notadas pela ávida curiosidade, davam a pensar a todos que, desta vez, o insensível fora ferido no coração. O interesse afetuoso que testemunhava à esposa, o cuidado em afastar dela tudo que lhe pudesse molestar as idéias, e principalmente o lugar que lhe dera em sua vida de escritor, bastariam a demonstrar a influência que Valderez exercia sobre ele.

E ela? Naturalmente, não podia fazer outra coisa senão adorá-lo. Mas não imitava a primeira mulher, que alardeava os próprios sentimentos e não sabia ocultar os seus ciúmes. Isso devia, evidentemente, agradar ao senhor de Ghiliac, inimigo das manifestações exteriores.

Percebeu logo Valderez a curiosidade de que estava sendo alvo e intuitivamente deu-se conta dos ardentes zelos e invejas que se lhe agitavam derredor. Continuou, porém, a cumprir o seu dever com a mesma graça simples, perdendo o temor que lhe inspirava a princípio essa gente frívola, que ela aprendera bem depressa a conhecer. Uma missa assistida pela manhã dava-lhe para todo o dia a necessária força moral para enfrentar esse ambiente de futilidades e intrigas. Passava, então, sempre graciosa e boa, alheada intimamente, pelo meio desse turbilhão que arrastava os hóspedes de Arnelas, de distrações em distrações, de festa em festa.

Mas dizia para si mesma, um tanto perplexa, que era preciso fosse Elias realmente muito frívolo para comprazer-se com uma existência desse gênero. Verdade era que ele não parecia agora encontrar nisso um excessivo prazer, deixando até de bom grado a outros o cuidado de organizar os divertimentos, nos quais tomava parte, obrigado pelos seus deveres de anfitrião. Por seu lado, Valderez entregava esse cuidado à sua sogra e à senhora de Trollens, infatigáveis mundanas, que esbanjavam

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tesouros de imaginação logo que se tratava de prazeres. Assim, podia ela, todas as manhãs, achar uma hora para ir trabalhar ao lado de Elias, que continuava a rever as memórias de seus antepassados. Era, de ordinário, nesses momentos que ele lhe dera alguns conselhos e ela lhe pedia o seu juízo sobre tudo o que a embaraçava naquela nova tarefa.

Deparou-se também a Valderez uma auxiliar e verdadeira amiga na pessoa da condessa Serbeck, a irmã mais moça do senhor de Ghiliac. Casada desde muito criança com um fidalgo austríaco, encontrara Cláudia de Ghiliac no marido um coração nobre, reto e muito cristão, que soubera dirigir para o bem essa alma boa e honesta, a quem uma falsa educação frívola começava a corromper. Desde o primeiro instante, haviam as duas moças simpatizado uma com a outra. Cláudia, de natureza entusiástica, entoava a um tempo os louvores da jovem cunhada e do irmão, no culto de cuja admiração fora educada pela mãe, para quem no mundo só existia o filho. Tendo perdido desde o casamento os seus gostos mundanos, comprazia-se Cláudia nos cuidados da família, e muitas vezes ela e Valderez, deixando à senhora de Ghiliac e à filha mais velha o encargo de dirigirem as conversas no salão, iam para junto das crianças, sempre reunidas à volta da senhora de Versanges, que morria de amores pelos seus segundos-sobrinhos, principalmente por Guilhermina, desde que Valderez transformara a criança triste e um tanto selvagem numa criaturinha afetuosa, radiante de alegria e espontaneidade.

— Sua filha é admiravelmente bem-educada, meu caro amigo — declarou ela um dia ao senhor de Ghiliac. — Bom seria que todas as mães tomassem por modelo a Valderez e lhe copiassem esse misto de severidade e doçura que sabe empregar com esta criança.

O dia pressagiava trovoada. Todavia, alguns hóspedes de Arnelas haviam partido a passeio. Á maior parte, porém, os menos intrépidos, espalhavam-se pelos salões de bilhar e música, ou se assentavam ao redor das mesas de bridge. A marquesa Hermínia, centro de um pequeno círculo, conversava no jardim de inverno, onde deveria ser servido o chá. Discutiam-se os melhores métodos de educação. Elias, que passeava de um para o outro lado, conversando com o senhor d'Essil, chegado havia pouco, parou diante da senhora de Versanges e disse-lhe gravemente:

— Estou inteiramente de acordo com a sua opinião, minha tia. Valderez é, realmente, a educadora ideal.

— Mas não lhe parece que essa educação seria talvez menos rígida, menos perfeita, se, em vez de uma enteada, se tratasse dos seus próprios filhos?

Era a senhora de Brayles quem pronunciara estas palavras com a sua voz algo cantante. Chegada, havia três semanas, Reyne não faltava às reuniões de Arnelas,

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onde a velha marquesa, que nunca lhe testemunhara grande simpatia, agora, nesse ano, se fizera muito sua amiga.

— Não. Tenho disso a certeza. A firmeza é um dever, e para minha mulher o dever é a grande lei de que nunca se afastará.

— Magnífico... Mas é austero demais! — murmurou uma jovem, cujas momices langorosas, destinadas a atrair a atenção de Elias desde alguns dias, muito divertiam a todos.

— Austero? Sim, para os que não vêem na vida senão prazer e divertimentos; mas, para os outros, o dever é quem nos dá ainda o máximo de felicidade, afianço-lhe, princesa!

A loira princesa Ghelka corou ligeiramente ao olhar de fria ironia que pousou sobre ela. A velha marquesa, cuja fronte se arrugava logo que se tratava da nora, interveio com voz grave que lhe denotava secreta irritação:

— Tornas-te inverossimelmente grave, Elias. Às vezes pergunto a mim mesma se não acabas por te encerrar em alguma Tebalda.

Ele esboçou um sorriso ligeiramente irônico.— Talvez fosse essa a mais sábia resolução; mas, por enquanto não penso em

tal. Paris há de me ver ainda, mais ou menos tempo; isso dependerá de Valderez que ali se diverte menos talvez do que em qualquer outra parte. É ela quem decidirá de nossa estada aqui ou alhures. Quanto a mim, pouco se me dá, acho-me bem em toda parte.

Um instante, pelo jardim de inverno, passou um silêncio de puro assombro. Semelhante declaração, feita por um homem tão orgulhoso de sua autoridade, revelava a todos o lugar que, em sua vida, ocupava Valderez.

O brilho satisfeito que irradiava dos olhos do marquês dizia que ele tinha perfeita consciência do efeito produzido pelas suas palavras. O senhor d'Essil relanceara um olhar discreto à nobre senhora de Ghiliac, em cujo belo rosto algo passara que o fizera estremecer. A declaração de Elias viera, sem dúvida, confirmar-lhe os seus receios.

E dirigindo o olhar curioso para Roberta, viu chisparem-lhe de ódio seus olhos azuis. Ao fundo, à entrada dos salões, avançavam Valderez e a condessa Serbeak, que seguiam Guilhermina, os filhos mais velhos de Cláudia, Otto e Hermínia, e os dois da senhora de Trollens.

— Que vêm fazer aqui essas crianças? — perguntou Hermínia num tom seco, logo que as duas senhoras penetraram no jardim de inverno.

Respondeu-lhe Valderez.— Como prêmio do exemplar comportamento, desde alguns dias, eu lhes havia

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prometido para hoje uma chávena de chocolate, guloseima que muito apreciam e que me parece lhes saberá melhor tomada nesta hora, em nossa companhia. É uma recompensa inteiramente excepcional. Mas se isso a incomoda...

Elias, que avançara alguns passos, interrompeu logo:— Ao contrário, está muito bem assim. Nós só podemos sentir-nos satisfeitos

em receber e lisonjear crianças bem comportadas... Que dizes, Guilhermina?E erguendo nos braços a criança, beijou-lhe a face cor-de-rosa que ela

graciosamente aproximou dos lábios do pai.Valderez inclinou-se um pouco, a ajeitar o laço que prendia as madeixas de

Guilhermina e esta, num movimento imprevisto, lançou-lhe os braços ao redor do pescoço. Durante alguns instantes, os cabelos castanho-loiros de Valderez e os castanhos de Elias misturaram-se por cima da cabeça da criança aproximando as suas frontes. O olhar de Elias, carinhoso e terno, ia da filha à esposa, a qual, inconsciente do delicioso quadro familiar formado pelos três, atava tranqüilamente o laço de fita cor-de-rosa.

— Você tem realmente uma fantasia desnorteadora — disse com a sua voz aguda a senhora de Trollens.

— Por que diz isso? — inquiriu ele, muito tranqüilo, descendo a criança.— A propósito dessa sua repentina ternura paternal! Parece-me que não se ajusta

muito ao seu temperamento...Elias esboçou um sorriso de ironia.— Muito obrigado pelo cumprimento! Faz você um bom juízo de seu irmão,

Leonor! Com que então, julga-me incapaz de cumprir os meus deveres de pai, parecendo-lhe que assim procedo sob o impulso de uma simples fantasia?

— Pôs se você quase nos habituou a isso, meu caro. Ghiliac, dirigindo-se para a mesa do chá, à volta do qual Valderez começava a

servi-lo, tomou lugar numa poltrona vaga e, acomodando-se, num movimento displicente, disse com irônica frieza:

— Eu desejaria que você se explicasse.Quando tomava esse tom e essa postura, quando mantinha sob o brilho

cruelmente irônico do olhar os seus interlocutores, estes perdiam em geral o jeito, gaguejavam e se calavam lastimavelmente. A senhora de Trollens, apesar de toda a sua empáfia, não escapava à regra, e, mais de uma vez, o irmão, irritado por suas pretensões e intriguinhas dissimuladas, já lhe havia implacavelmente infligido essa humilhação.

— Foi o mano mesmo quem o disse uma vez... declarando que, em você, tudo dependia do seu capricho momentâneo... — balbuciou a irmã.

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— Sim? É bem possível que eu tenha feito semelhante declaração. Sou, de fato, o mais caprichoso dos homens... salvo quando se trata das minhas afeições.

— Eu que o diga! Quanto à sua amizade, já tenho experiência! — exclamou alegremente o príncipe Sterkine. — Há quase vinte anos que somos amigos, e longe de enfraquecer, cada dia mais se fortifica nossa amizade.

— Ainda bem... Mas a senhora minha irmã te dirá que a honra é toda tua, por isso que, ainda rapazes, ambos de dez anos, nos ligamos outrora intimamente em Cannes, e tens tido o heroísmo de suportar os saltos fantásticos, o egoísmo, a vontade autoritária do teu amigo, a quem, ainda assim, prezavas, e que não te estimava, segundo parece, pois que o julgam incapaz de um sentimento desse gênero.

Ria-se e riram-se também os que o cercavam, não sem lançar olhares maliciosos à senhora de Trollens, a quem a mordacidade irônica do irmão reduzia ao silêncio.

Contudo, não se esgotaria talvez tão depressa a veia mordaz de Elias, se não fosse a aparição dos demais hóspedes de Arnelas, que vinham chegando para o chá. Dentro em pouco, as conversas e os risos invadiram o jardim de inverno. Valderez servia o chá, auxiliada por Cláudia e uma priminha de Ghiliac, Madalena de Vérans, cuja mão, havia pouco, fora pedida pelo príncipe Sterkine. Guilhermina, que lobrigara um tamborete, viera sentar-se ao lado do pai. Este, brincando com as longas madeixas da criança, respondia com ar distraído às perguntas da senhora de Brayles, que conseguira, por sábias manobras, uma cadeira ao lado dele. Disfarçadamente seguia-lhe Roberta a direção do olhar, e via-o sempre como que invencivelmente atraído para a jovem castelã, que ia e vinha por entre os grupos.

— Quer café, Elias?Valderez aproximava-se do marido, com uma bandeja na mão.— Como não! Qualquer coisa... o que você quiser. Respondia, de certo, maquinalmente, muito mais preocupado com a esposa do

que com o que esta lhe oferecia.A senhora de Brayles esboçou um risinho breve, mas contrafeito.— É delicioso um marido assim condescendente. Ofereça-lhe, Valderez, a

bebida mais amarga, que ele aceitará sem hesitar.— Certamente, porque sei que, se minha mulher me oferece, é que vê nisso o

bem de seu marido! — volveu-lhe Elias, com leve sorriso irônico.Depois, baixando a voz, e tornando logo séria a fisionomia, perguntou:— Está cansada, Valderez?— Oh! Não é nada, uma simples nevralgia.— Tome então imediatamente alguma coisa para ver se melhora. Esta

temperatura borrascosa pode aumentá-la.

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— Sim, subirei daqui a pouco.— Suba já. Vejo perfeitamente que luta com um forte sofrimento. Aí estão

Cláudia e Madalena para cuidarem, a fim de que aos nossos hóspedes nada falte.— Tanto mais quanto não é muito de seu agrado ver uma pessoa que padeça,

não é assim, Elias? — interveio a senhora de Brayles, cerrando nervosamente os lábios pálidos.

— Perdão! — volveu ele, num tom seco e altivo. — A senhora está enganada. O que eu acho insuportável são as mulheres sempre preocupadas com as suas doenças imaginárias, e incomodando continuamente os maridos; mas sei compreender um sofrimento real, compadecer-me dele e procurar-lhe um lenitivo. Descanse, não sou o monstro que a senhora caridosamente parece acreditar.

Esboçou um dos seus sorrisos irônicos, e levantou-se, a fim de ir ao encontro da mãe que o chamava, pedindo-lhe que tocasse uma recente composição musical de um jovem romeno, protegido dele.

Valderez, tendo-se aproximado da mesa do chá, comunicava a meia voz a Madalena de Vérans sua ausência momentânea. Ao voltar-se, a fim de se retirar do jardim de inverno, deu de frente com a senhora de Brayles.

— Vá depressa deitar-se, minha cara — disse-lhe a voz cantante da jovem viúva. — Apesar do que ele diz, o fato é que o senhor de Ghiliac acha insuportáveis as mulheres doentes. Sentiu-o a mãe de Guilhermina! Sujeita a muito freqüentes achaques, via o marido tomar o trem para Viena ou Petersburgo, quando não embarcava para as Indias ou para a Groenlândia. Era um modo encantador de ir em auxílio daquela pobre, de saúde combalida, tanto mais quanto ela não podia viver longe da presença do marido! Ah! Os homens! Os homens!

Franziram-se as lindas e loiras sobrancelhas de Valderez, ao mesmo tempo que replicava com acento glacial:

— É muito difícil, minha senhora, a saber a parte de responsabilidade que num lar toca a um e a outro dos dois cônjuges. Mais vale não ser juiz, do que falar sobre isso inconsideradamente.

Inclinou ligeiramente a cabeça e retirou-se do jardim de inverno, deixando a senhora de Brayles algo aturdida pela altaneira e feliz resposta — uma lição dada sem rodeios, como a si mesma repetia, furiosa, Roberta.

Valderez subiu aos seus aposentos, tomou uma cápsula de aspirina, e desceu imediatamente. Mas, em vez de tornar aos salões, ficou no salão branco. Esta sala era-lhe inteiramente reservada; aí é que ia trabalhar sempre que obtinha um momento de folga. Estava constantemente ornamentada com as mais belas flores provenientes das estufas e dos jardins de Arnelas, escolhidas todas as manhãs, com minucioso

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cuidado pelo chefe dos jardineiros, por ordem do senhor de Ghiliac.Chegou-se a moça a um porta-janela e abriu-a. O ar tornava-se quase

irrespirável; negras e pesadas nuvens suspendiam as suas massas líquidas sobre a terra, sombreando lugubremente as águas do lado. Não corria a menor viração; reinava na atmosfera uma pesada imobilidade.

Do salão de música chegavam aos ouvidos de Valderez sons de piano. Ela reconheceria, entre mil, essa execução terna e firme, tão profundamente expressiva, que ouvira tantas vezes com seu secreto encanto.

— Quando tocas, papai, a mamãe põe-se a ouvir com tamanha atenção que nem me sente entrar — disse um dia Guilhermma.

E Valderez ouvia-o ainda nesse momento, um pouco trêmula, buscando entender, nas frases musicais, expressas com tão esquisita delicadeza, alguma coisa da alma daquele que as executava.

Ouviram-se surdos ribombos. Aproximava-se a tempestade e grandes gotas de chuva já caíam, esparramando-se no solo do terraço.

Valderez pensava na senhora de Brayles, com quem antipatizava cada vez mais. A insinuação de ainda há pouco fora demasiado imprudente. Era impossível passarem despercebidas a Valderez essas manobras de faceirice empregadas à volta de Elias como também a frieza deste, cada vez mais acentuada, para com a amiga de infância.

Já desde algum tempo, perguntava a si mesma Valderez se as injustiças de Ghiliac, no tocante à primeira esposa, seriam realmente tais como lhe pareciam fazer crer as palavras ditas outrora pela velha marquesa, e, ainda há pouco, as pronunciadas por Roberta. Como quer que fosse, não seria impossível que Fernanda as cometesse também, e tais que pudessem explicar, se não escusar completamente as do marido. Cláudia pintara-a frívola e exaltada, pouco inteligente, incapaz de compreender uma natureza como a de Elias; ciumenta a ponto de espiar-lhe todas as saídas, dirigindo-lhe recriminações acompanhadas de crises nervosas logo que a menor suspeita lhe invadia o espírito. Evidentemente, não era esse o melhor modo de ganhar o coração de um homem como Ghiliac.

E, agora, no íntimo — se bem que não pudesse explicar a atitude do marido no dia do casamento e nos meses seguintes — Valderez o acreditava bom, suscetível a processos delicados, como o demonstrava o seu procedimento para com ela. Desde há tempos, sentia todos os dias desabar, aos poucos, alguma coisa dessa barreira que se levantara entre ambos. Como as suas pupilas azuis se volviam tão estranhamente meigas ao se pousarem nela!

Súbito, um relâmpago envolveu a moça e um ribombo seco rolou, no alto, fazendo estremecer os vidros.

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Valderez recuou maquinalmente. Outro relâmpago fulgurante acabava de iluminar-lhe o espírito, mostrando-lhe o sentimento que se desenvolvera nela, que a dominava agora. Ela amava Elias... E amava-o tanto que sofreria profundamente se ele agora se afastasse.

Sim, já não era somente o dever, como havia pouco acreditara, o que a prendia a ele. Amava a esse homem enigmático, amor tímido e medroso que não ousava mostrar-se e expandir-se, porque sobre a alma de Valderez pairava ainda uma desconfiança, como um traço sutil de veneno derramado por mão criminosa.

E, justamente, tornava-lhe ao espírito a advertência da sogra. "Talvez lhe agrade fazer nascer no seu coração impressões, que ele analisará em seguida num próximo romance". Ah! Se fosse isso!... Se ele soubesse...

Não, ele não o saberia! Ela lhe ocultaria o seu segredo enquanto ignorasse o que escondia sob a terna doçura do olhar que lhe fazia descompassar o coração.

E repetiu com um misto de angústia e de felicidade:— Amo-o!... Amo-o!...Fora, a chuva caía nesse momento com violência e, sem que percebesse (tão

absorta estava em seus pensamentos), já lhe molhara o vestido de crepe da China rosa-pálido, adornado com lindos bordados, e que nesse dia lhe emprestava à beleza um encanto extraordinário.

Agora é que ela compreendia bem a impressão que causara a ele a sua confissão, ingenuamente feita, da impossibilidade em que se achava de amá-lo. Tal declaração devera parecer estranhamente mortificante a esse homem idolatrado, vinda principalmente duma jovem humilde que ele se dignara escolher. O seu orgulho não pudera suportá-lo, e Valderez sofrera o castigo de sua franqueza. Teria ele, pouco a pouco, refletido? Dispor-se-ia, porventura, a esquecer e perdoar?

O piano acabara de soar havia já alguns momentos; de repente, à entrada de uma porta que ficara aberta, surgira um vulto masculino, justamente no momento em que um novo relâmpago iluminava o busto imóvel da moça.

— Em que está pensando — perguntou Elias, com voz trêmula e inquieta.Surpreendida por essa aparição súbita, no momento em que pensava "nele", tão

no íntimo, Valderez estremeceu, recuando instintivamente.Ghiliac, que avançara ao seu encontro, estacou a meio do salão.— Amedrontei-a? — perguntou friamente.— Não... É que não o tinha visto e, demais, estou um tanto nervosa por causa da

tempestade — balbuciou a moça, corando.— Desculpe-me — continuou Elias com a mesma frieza. — Em verdade, entrei

um pouco inopinadamente. Mas como é que continua aí com esse vestido leve? A

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temperatura baixou extraordinariamente, e quer-me parecer que as suas nevralgias não se acomodarão muito bem com semelhante tratamento. Sente ainda alguma coisa?

— Sim, um pouco.— Parece-me que todo esse movimento, toda essa existência a que não está

habituada, a fatigam muito. Vá pois, descansar esta noite, recolha-se aos seus aposentos, que me encarregarei de a desculpar com os hóspedes.

— Oh! Não! Uma simples nevralgia. Não está nos meus hábitos fraquear por coisa tão insignificante.

— Mas vá, quando mais não seja, só para me obedecer. E outra vez, quando estiver chovendo, não se ponha ao pé das janelas de modo a se molhar!

— Realmente, nem pensava nisso! — murmurou ela, levando a mão à fronte.Tinha os nervos, sem dúvida, muito excitados, pois sentiu que as lágrimas lhe

revinham aos olhos. Então, para que ele não as visse, estendeu mais que depressa a mão a Ghiliac.

— Já que ordena, vou subir. Boa-noite, Elias.Os dedos tremeram-lhe um tanto sob a carícia do beijo que os roçou.— Boa-noite, Valderez! Durma bem, para que amanheça completamente livre

dessa nevralgia.E ficou a contemplar a moça, enquanto esta se afastava. Depois, maquinalmente,

foi sentar-se junto à mesa onde estava o trabalho de Valderez e, apoiando a fronte na mão, murmurou com tristeza:

— Ainda outro recuo... E, entretanto, vi-lhe lágrimas nos olhos. Que terá, pois, essa mulher? Essa alma límpida, que lhe rebrilha nos olhos cheios de luz, não deixa transparecer o seu segredo. Mas eu não posso mais viver assim! É preciso que saiba o que existe sob sua delicada submissão, sob sua encantadora doçura... Urge que eu saiba se realmente sou amado; porque, em verdade, tudo conheço dessa alma reta e cândida, menos isso! E não será porque ela própria o ignora?

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CAPÍTULO XVII

"Pesa-me, realmente, minha cara Gilberta, que não hajas consentido em acompanhar-me a Arnelas. O outono aqui é singularmente delicioso, e terias podido facilmente insular-te um pouco da existência demasiado mundana que aqui se leva. A mesma jovem castelã te facilitaria isso, porque, te compreenderia muito bem. Oh, que deliciosa criatura! E eu jamais pensei que, oferecendo a Elias a tua pobre afilhada, ela seria a mulher ideal, a que ninguém, nem sequer as que a rodeiam, ousa contestar a beleza sem defeito e a graça aristocrática! E confesso-te que fiquei inteiramente estupefato ao ver a habilidade com que ela faz as honras da casa.

"E, contudo, que diferença dos Altos-Pinheiros! Lembro-me ainda dos pobrezinhos dos seus vestidos, que ela fazia durar o mais que podia. E, agora, ei-la que parece inteiramente à vontade nas suas toilettes, das quais a de menor preço custou uma soma que bastaria para fazer viver sua família durante alguns meses! Toilettes escolhidas por Elias! Não é preciso dizer mais, não é assim? O seu sentido tão apurado de harmonia e beleza, o tato, o gosto sério e delicado de Valderez deveriam necessariamente afastar todos os exageros, toda a fealdade e inconveniência dos atuais adornos femininos. Por isso, tua afilhada sobressai a todas e é por todos admirada, inspirando ao mesmo tempo o acatamento a que as demais estão em vias de perder o direito.

"E quanto a mim, o que mais admira é que essa jovem não parece absolutamente inebriada por semelhante mudança de vida! Ainda outro dia, como eu a cumprimentasse por trazer um vestido cor-de-malva guarnecido com rendas de Argentan, que me pareceu de uma beleza extraordinária, e causou, sei-o com fundamento, muitas invejas, a começar por Hermínia, que não possui um igual, respondeu-me com o sorriso encantador de que já lhe falei:

"— Já não me contraria tanto o trazer sobre mim rendas de tal preço, desde que soube que elas ajudam a viver a operárias muito interessantes, e que assim concorro para o restabelecimento de uma indústria que permite às mulheres o trabalharem em sua própria casa. Mas... isto...

"E designava os diamantes que a adornavam nessa noite."— ...Imagine, primo, que já não ouso pôr o meu colar de pérolas desde que

Cláudia me disse o quanto valia. E, justamente, de todas as minhas jóias, era a que eu mais prezava. Mas é horrível uma semelhante riqueza inútil, sem aproveitar a ninguém!

"— Ela, porém, tem o mesmo valor no cofre como no seu colo, minha querida prima, — repliquei-lhe, sorrindo, se bem que, no íntimo, me sentisse tocado por semelhante escrúpulo, que decerto não existe em nenhuma destas senhoras, nem

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mesmo em Cláudia, por mais grave que esta se tenha tornado."— Evidentemente. Mas é uma loucura da parte de Elias, não lhe parece, primo?

E confesso-lhe que o luxo, exagerado que reina aqui, o modo de vida que aqui se leva, causam-me um certo terror.

"Era deliciosa ao falar assim, com o seu ar de honesta simplicidade."— Pois bem, cumpre obter de seu marido que mude um pouco no tocante a este

assunto.Corou ligeiramente e desviou a conversação para outro rumo."Cada vez mais me persuado de que Elias está profundamente apaixonado por

Valderez. E ela já o fez mudar muito. Como te dizia em minha última carta, agora está mais sério, menos cético, menos sarcástico. Demais, é um pai extremoso, muito afetuoso: ele, que não gostava de crianças, interessa-se agora pelos sobrinhos, os Serbecks pelo menos, porque Francisco e Ghislaine de Trollens ele não os tolera, por serem já de um insuportável pedantismo. Sente-se também que tem para a esposa uma solicitude discreta, mas incessante. Parece, contou-me Cláudia, que, quando a mãe lhe apresentou a lista dos convidados para as partidas de Arnelas, riscou vários nomes, entre outros o da condessa Monali, por causa de suas indecorosas toilettes; o da senhora de Sareilles, cuja reputação muito deixa a desejar, o do marquês de Garlonnes, cujo divórcio escandaloso, ainda no ano passado, deu pábulo à imprensa. Demais, fez ver a Leonor, a grande diretora do teatro de Arnelas, que ele desejava passar os olhos por todos os projetos de representação, pois não queria que os seus hóspedes assistissem em sua casa, como aconteceu no ano passado, a espetáculos que pudessem ofender, por mais levemente que fosse, a moral.

"Já estás a ver o furor concentrado, naturalmente, de Hermínia e Leonor. Garlonnes é um ator mundano de primeira ordem, a condessa Monali tem uma voz soberba, a senhora de Sareilles possui um gênio endiabrado para organizar divertimentos. Quanto à questão do teatro, é a arca santa para Leonor, a ponto de quase tornar-se uma perfeita cabotina. Naturalmente, e não sem fundamento, viram nisso a influência de Valderez. Vê-se claramente que Elias envida todos os esforços para afastar dela tudo que a possa molestar. Compreendeu de certo sua alma delicada, que admira e preserva. Mas o que esse homem, aparentemente saciado, cético e frio, pode fazer, a mãe e Leonor não o conseguem. A alma de Valderez ultrapassa a compreensão de suas almas mesquinhas e invejosas, que se contentam com um mínimo de moralidade, que toca muitas vezes pela amoralidade.

"Contudo, não ousam contrariá-la. Elias não tolera a mínima censura à esposa. Disso já teve a prova Hermínia, quando, por duas ou três vezes, tentou fazê-lo. Agora já está desenganada. Mas que rancores não se ocultarão dentro dela!

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"Perguntas-me o que fez Roberta de Brayles? Vem constantemente a Arnelas, mais vezes do que nos anos anteriores, borboleteia incessante à volta de Elias e assume posturas de provocadora garridice, que não esmorecem ante a frieza cada vez mais glacial de Ghiliac. A Valderez não podem passar despercebidos semelhantes manejos. E Elias contraria-se com isso, pois ainda ontem, dizia-me ao voltar do tênis:

"— Urge que na primeira ocasião eu faça sentir à senhora de Brayles que deve ficar em sua casa.

"E assim falando, deixava transparecer que Roberta não reeditaria a comédia desde o dia em que receber esse ultimato. E depreendi mais por algumas palavras suas, que deseja afastar de Valderez essa mulher, que deve, naturalmente, odiá-la com todas as forças de sua alma.

"Aliás, a pobre moça está envolvida num círculo furioso de invejas. Mas nada há que recear por causa da vigilância contínua do marido. Bem razão tinha eu em pensar que este homem valia muito mais do que o fazem supor as aparências. Cumula-me de cortesias. Será de reconhecimento pela pérola rara que lhe descobri? É possível, pois, repito, creio-o profundamente apaixonado.

"E ela? Como pensar que o não está igualmente? É inadmissível, tanto mais quanto tem Elias na conta de perfeito cavalheiro, e nada há que lhe censurar, porquanto até suprimiu completamente os seus pequenos "flertes de estudo", como ele dizia. Contudo, ela faz timbre em ocultar os seus sentimentos, pois mesmo diante de nós, seus parentes, é para com ele de uma reserva que mais parece de uma estranha que de esposa. E isso é tanto mais extraordinário quanto se mostra para os outros, para Cláudia e Carlos, para o bom duque de Versanges e a mulher, e para mim, de uma espontaneidade encantadora e muito afetuosa.

"Dize-me pois o que pensas de tudo isso, minha cara Gilberta, ou melhor, vem tu mesma dizer-me. Contrariando a tua opinião, creio que o clima de Biarritz não é indispensável para tua saúde. E Valderez encarrega-me de instar contigo, pois deseja muito ver-te.

"Noclare chegou a semana passada com Orlando. Tornou à tepidez antiga e parece viver aqui num perpétuo deslumbramento. É sempre o mesmo estouvado, mas felizmente não deixou esta qualidade ao filho mais velho. Que encantador rapaz, este Orlando! É o retrato moral da irmã. Está dito tudo.

"Nós continuamos a série das soberbas montarias que fizeram a reputação de Arnelas, mais ainda do que todas as maravilhas deste domínio. Elias foi sempre apaixonado desses desportos: é uma característica de sua raça: seus antepassados foram todos grandes monteiros. Valderez acompanha as caçadas a cavalo; monta admiravelmente e é a amazona mais encantadora que se pode imaginar. Mas repugna-

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lhe o ver montear o veado; mantém-se por isso a distância, no que é acompanhada por Cláudia, que sente a mesma aversão. Roberta, ao contrário, não recua ante o encalço à vítima, nem ao espetáculo do halali. Talvez que, conhecendo o gosto de Elias, julgue assim agradar-lhe; mas, se assim e, engana-se redondamente, pois, ainda há dias, dizia-me ele, ao regressarmos de uma caçada com falcões, que fora o encanto dos amadores desse gênero:

"— Eu não censuro absolutamente as mulheres que se comprazem nas emoções da caça; julgo, porém, infinitamente mais delicado e mais feminino e, pois, mais atraente para nós outros, homens, o afastarem-se desse desporto sanguinário.

"— Como Valderez? — perguntei, sorrindo."— Sim, como Valderez. Ela perderia aos meus olhos alguma coisa do seu

encanto, se eu a visse como Leonor, Roberta e outras, assistir impassível à morte de um animal. Toda pieguice é ridícula, mas a sensibilidade é uma das mais delicadas virtudes femininas, quando bem dirigida, como é o caso de minha mulher.

"Então, Gilberta? Quando eu te dizia!... Ama-a ele, ou não?"

Sentada no salão branco, acabava Valderez de escrever à mãe. Ao puxar para si um envelope, a fim de lançar-lhe o endereço, viu entrar o senhor de Noclare, todo pimpão, e ensaiar visivelmente, como os esnobes da intimidade do senhor de Ghiliac, a postura e maneiras do genro.

— Desejaria falar-te, minha filha. Mas estás ocupada?— Não, papai, já acabei. Pode sentar-se.Ele se deixou cair numa poltrona, relanceando ao mesmo tempo o olhar

extasiado em derredor.— E dizer que é minha filha a dona e senhora de todos estes esplendores! Que te

dizia eu, Valderez, quando foste pedida por Elias? Pesa-te agora o haver aceitado?E ria esfregando as mãos. A moça desviou o olhar sem responder, enquanto o

pai, sempre loquaz, prosseguia:— És aqui uma rainha... e eu venho recorrer ao teu poder. Imagina tu que,

durante a minha estada em Aix, no verão, joguei... um pouco e tive a infelicidade de perder. Escrevi então a Elias, pedindo-lhe que me adiantasse um trimestre da pensão que ele nos dá, sem dizer ao certo para quê. Respondeu, enviando-me a quantia "sem prejuízo do que lhe será entregue como de costume" acrescentava ele, gentilmente.

— Oh! Papai! — exclamou Valderez olhando-o com tal expressão de dolorosa censura, que fez, por momentos, baixar os olhos ao senhor de Noclare, que se pôs a cofiar, nervoso, os bigodes grisalhos.

— Que queres? Sim, fui culpado... sobretudo na segunda vez.

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— Como, segunda vez?— Sim, ultimamente voltei a Aix a fim de ressarcir o prejuízo; mas,

decididamente, nada havia que fazer. Perdi novamente...Dos lábios trêmulos da moça escapou uma segunda exclamação.— O meu parceiro, um distinto rapaz, concedeu-me prazo para o pagamento.

Todavia, não posso adiar por mais tempo a solução desse compromisso. Ora, somente teu marido pode vir em meu auxílio. É necessário que tu lhe peças...

— Eu? — contraveio rápido a moça, num gesto de protesto.— Sim, tu, porque obterás isso muito mais facilmente do que eu. Primeiramente,

Elias, se bem que seja muito gentil comigo, parece-me de má sombra desde que se trata de solicitar-lhe alguma coisa; depois, partindo de ti o pedido, a quantia — quarenta mil francos — lhe parecerá insignificante. Esse brochezinho que trazes aí no peito vale mais do que isso.

Valderez levantou-se num ímpeto, trêmula de comoção.— Quarenta mil francos! Será possível? Nunca eu ousaria pedir a Elias

semelhante soma, depois de tudo que tem feito pela nossa família!— Ora! Que é isso para ele? Como te exaltas por tão pouco, minha filha! Ele se

sentirá, ao contrário, muito feliz por lhe ocasionares novo ensejo de te agradar. E quanto a mim, prometo-te nunca mais tocar numa carta; sou de muito azar! Mas urge que me ajudes a sair desta situação aflitiva...

— Oh! O papai não sabe quanto me custaria semelhante passo! Peça-lhe o senhor mesmo, papai!

O velho fez um gesto de irritada impaciência.— Como te dás pressa em servir-me e poupar-me a um desgosto! Muito bem,

não há dúvida!...— Pois sim, falar-lhe-eu — decidiu a moça, com um gesto resignado.Tomou-lhe as mãos o pai, apertando-as com força.— Até que enfim! Por que te fazes de rogada para uma coisa tão fácil?Valderez esteve a pique de lhe explicar:— Você não a julga tão fácil nem tão natural, pois não ousa falar pessoalmente a

Elias sobre isso.Tendo-se afastado o senhor de Noclare, Valderez meteu a carta no envelope, fez

soar a campainha, entregou a carta a um criado, e dirigiu-se para o terraço onde, nessas belas manhãs de outono, quase tépidas, gostava de as passar a duquesa de Versanges, rodeada de um círculo mais ou menos numeroso, consoante a hora e as ocupações de cada um.

Nesse momento, tinha ela somente ao pé de si o senhor d'Essil, Madalena de

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Vérans com o noivo e a senhora de Ghiliac, ainda em trajes de amazonas, pois, tendo chegado de um passeio a cavalo, detivera-se de passagem no terraço.

— Julgava encontrar Elias aqui — disse Valderez.— Elias? Está no roseiral — indicou a senhora de Ghiliac. — Vimo-lo há pouco,

ao passarmos pela alameda superior do parque, e em companhia da princesa Ghelka, que estava a colher umas rosas.

E lançou por baixo das pálpebras um olhar para a nora. Mas, como Valderez estivesse um pouco de perfil, a expressão fisionômica da moça escapou à marquesa.

— Ei-los, aí vêm! — exclamou o senhor d'Essil.De fato, Elias acabara de aparecer, e a seu lado caminhava a princesa Ghelka,

trazendo nos braços um ramalhete de rosas. Ao chegar aos últimos degraus do terraço ergueu-as acima da cabeça.

— Vejam! São magníficas!— Realmente, cara princesa, foste objeto de uma prodigalidade bem rara! —

exclamou, sorrindo, a senhora de Ghiliac.Elias, que atingia nesse instante a última escaleira do terraço, voltou os olhos

para ela, respondendo friamente:— Pois, em verdade, ignora minha mãe que eu nunca recusei a uma senhora,

quem quer que fosse, as flores que me pede!— Sim, nem mesmo às pobrezinhas — confirmou jovialmente o príncipe

Sterkine. — Lembra-se, Elias, de uma pobre mulher que se nos aproximou, há dois anos, ao sairmos de um sarau no palácio real de Estocolmo, pedindo-me a orquídea que eu trazia na lapela? Dizia que era para ir levá-la à netinha doente que gostava muito de flores.

Ghiliac inclinou afirmativamente a cabeça aproximando uma cadeira da em que acabava de sentar-se Valderez.

— Dei-lhe, imediatamente — continuou o príncipe — e tu também a presenteaste com a sua.

— Sim, pobre velhinha! Sinto até remorso por não lhe ter adicionado algo de mais substancial. O gesto não foi mau, mas faltou-lhe alguma coisa... Não lhe parece, Valderez, você que é tão versada em caridade?

E sentando-se ao lado da esposa, contemplava-a sorrindo, com tão delicada meiguice que não podia deixar de comover os que presenciavam a cena.

Valderez correspondeu ao sorriso, dizendo:— Em verdade, a sua orquídea muito pouco teria aliviado, materialmente, a

essas infelizes. Mas quem sabe se não contribuiu para o restabelecimento da criança pelo prazer que lhe causou a vista da flor?

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— Quero crer; mas, agora, eu teria completado o gesto.— O meio gesto, só por si, já foi encantador — comentou sorrindo a senhora de

Versanges. — Mas realmente, Elias, dá você importância somente às flores espontaneamente oferecidas?

— Sim, quanto ao que me toca. Sou assim, será talvez um grave defeito, mas considero a espontaneidade como o único dom do qual podemos inferir uma dedução qualquer.

E esboçou um meio sorriso, ao mesmo tempo que uns longes de ironia lhe chisparam no olhar, que depois de ter relanceado a fisionomia móvel da princesa Ghelka, pausou sobre a mãe, ligeiramente crispada.

— Estou de pleno acordo com a sua opinião — disse o senhor d'Essil, cujo semblante argüia, a um bom observador, a satisfação que lhe causavam as palavras de Elias. — E o que você diz é sobretudo verdadeiro em se tratando de afeto.

Sobre isso estabeleceu-se um pequeno debate entre d'Essil e a princesa Ghelka. Ghiliac ouvia calado, parecendo distraído a brincar com um botão de rosa, apenas entreaberto, que tinha entre os dedos.

— Aonde vai? — perguntou a meia voz, vendo Valderez, levantar-se.— Preciso dizer uma palavra a miss Ebville, que deve estar no parque com as

crianças.— Eu vou também.Ergueu-se por sua vez e, inclinando-se um pouco, prendeu a flor ao cinto da

esposa.— É das suas prediletas; colhi-a expressamente para você.O senhor d'Essil e o príncipe Sterkine, que pareciam gozar esta cena, trocaram

entre si um olhar malicioso. A loira romena baixou os olhos para as rosas; e a senhora de Ghiliac, arrepanhando com gesto nervoso a sua amazona, dirigiu-se para a entrada do castelo.

— Que lhe parece? Teria sido dada espontaneamente aquela flor? — murmurou o senhor d'Essil ao ouvido do príncipe, seguindo com o olhar o marquês e a mulher que se dirigiam para o parque.

— Sim... como o seu coração — replicou o rapaz com um sorriso satisfeito.Logo que Elias se viu a alguns passos do terraço, perguntou a Valderez:— Quem teria dito à princesa Ghelka que eu estava no roseiral?— Não sei, Elias.— Vou tirar isto a limpo, pois jamais consentirei que se permitam a liberdade de

me perseguirem por toda parte.A voz vibrava-lhe de indignação ao mesmo tempo que uma ruga de

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contrariedade lhe vincava a fronte.Contornavam nesse instante um dos canteiros de relva. Além, perceberam

Orlando de Noclare e Benaki, que se dirigiam para as estufas. O rapaz a quem não seduziam os prazeres mundanos de Arnelas, propusera-se continuar a instrução religiosa do pretinho, e Benaki, radiante, seguia-o agora como se fora a sua sombra.

— Disse-me também o pobre Orlando que você não conseguiu fazer que seu pai mudasse de idéias relativamente à vocação do filho? — perguntou o senhor de Ghiliac.

— Infelizmente, não! Foram inúteis meus esforços contra uma decisão maduramente assentada.

— Contudo, parece-me séria a vocação do rapaz. Já conversamos a respeito; e vejo o modo como se comporta aqui, neste meio que deslumbraria a outro qualquer da sua idade. Isso, da parte de seu pai, importa num verdadeiro capricho. Consente que eu lhe fale sobre isso, e que tente, por minha vez fazê-lo mudar de resolução.

— Oh! — exclamou Valderez, radiante de alegria. — Faria isso, Elias? A você ele não ousará recusar. Eu não ousava pedir-lhe semelhante coisa, porque, segundo o que já me disse um dia, supunha que participava das mesmas idéias.

— Não; sou de opinião que devemos sempre respeitar uma vocação séria e experimentada. Falar-lhe-ei amanhã mesmo... mas, diga-me o que tem, que tanto a amofina? Porque leio claramente em sua fisionomia que alguma coisa... a preocupa...

Purpurearam-se as faces da moça. Não era a primeira vez que esse terrível observador lhe revelava assim que ela era, por parte dele, objeto de um exame vigilante.

— Estou, de fato, um tanto preocupada e... bastante amofinada, como diz. Meu pai acabou agora mesmo de comunicar-me que, em Aix, foi tentar a sorte no jogo e... perdeu.

— Eu já sabia, mas tudo isso já se acomodou.— Sim, graças à sua generosidade! — exclamou Valderez com um olhar

agradecido. — Mas, ah! Infelizmente, recomeçou! E desta vez, é uma quantia de vulto...

— Quanto?Valderez, baixando a voz e corando de pejo, murmurou:— Quarenta mil francos.— Está bem. Vamos ver se ainda o salvamos. Não lhe dê isso cuidado,

Valderez.— Oh! Sim, estou muito aborrecida por ver que meu pai retoma os seus antigos

hábitos, volta a essa terrível paixão, que foi a causa da sua ruína... e, ademais, muito

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me dói ver que você, depois de ter feito tanto pelos meus, é ainda obrigado...Elias cortou-lhe em meio a frase:— Peço-lhe que não falemos mais nisso! O que eu faço é muito natural, pois que

a sua família se tornou minha também. Compreendo, todavia, os seus cuidados relativamente a seu pai. Preciso falar-lhe seriamente sobre isso. Olhe, lá está o nosso diabrete!

E mostrava além, no fim da alameda por onde caminhavam, Guilhermina que corria perseguida pelos primos.

— Como está outra! Torna-se mais forte de dia para dia. Qual é, pois, o seu segredo, Valderez?

— Trato-a somente com todo o carinho, eis tudo; e, principalmente dei-lhe muito amor, pobrezinha!

— Sim, principalmente... No coração é que está a centelha todo-poderosa que opera milagres de renovação moral; nele é que está a fonte das grandes revoluções da alma. É amando puramente, fortemente, que o homem se torna em verdade digno desse nome.

Pronunciara estas palavras como se falasse de si para consigo; a voz tinha vibrações profundas, nas quais passava um frêmito de intensa comoção.

Valderez não respondeu; invadira-a de repente uma alegria misteriosa, que lhe fazia descompassar o coração.

Guilhermina, tendo avistado o pai e a madrasta, correra ao encontro deles. Súbito, um grito agudo: a criança caíra, estendendo-se de comprido no solo.

Acorreram de um lado Ghiliac e Valderez, e de outro miss Ebville. Elias, levantando a menina, cujos joelhos ficaram muito machucados por causa do saibro da alameda, tomou-a no colo, enquanto Valderez procurava estancar-lhe o sangue que corria das feridas. Em seguida voltaram todos para o castelo, Guilhermina carregada pelo pai que a consolava, mimando-a e limpando-lhe as lágrimas.

Ao chegarem diante do terraço, viram a senhora de Brayles prestes a subir os degraus e que, percebendo-os, se voltou dirigindo-se ao encontro deles.

Ghiliac não pôde conter um arrugar das sobrancelhas. E, num tom seco e áspero, perguntou:

— Que há, Roberta? Esqueceu-se ontem de alguma coisa?O tom e a pergunta revogavam em parte os hábitos de cortesia do marquês.

Roberta corou, e uma ligeira crispação correu-lhe pela fisionomia, mas replicou, sorrindo:

— Não; não esqueci nada. Venho para almoçar, atendendo ao convite que me fez ontem a senhora sua mãe.

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— Ah! Não o sabia! — volveu ele friamente, apenas tocando com os dedos a mão que se lhe estendia.

— Que tem a menina? — interrogou Roberta, sem se dar por entendida.— Caiu e arranhou os joelhos! — respondeu Valderez que, inconscientemente,

assumia também uma atitude glacial.— Sim? Ah! Mas é uma simples escoriação!... E admira-me que você, Elias,

esteja-a assim acalentando...— Pode admirar-se, Roberta, ninguém se zangará por isso... Mas ainda, assim,

não terá acabado de me decifrar, porque não é debalde que me denomina "a esfinge", — respondeu ele, com um sorriso sarcástico. — Desculpe-nos deixá-la só, mas urge tratarmos de minha filhinha.

Quando se dirigiam para uma das entradas do castelo, disse o senhor de Ghiliac à esposa:

— Vou pedir à minha mãe que espaceje esses convites à senhora de Brayles. Agora, todos os dias, aqui temos Roberta. E parece-me que você também não vota grande simpatia a esse cérebro fútil...

— Mas se sua mãe gosta de a ver amiúde?Os lábios de Elias coaram um sorriso breve e irônico.— Ali está uma amizade que terá crescido muito rapidamente! Minha mãe,

alguns meses antes, não a tolerava. Mudou de um dia para outro... mas eu sei por quê — concluiu ele, entre dentes.

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CAPÍTULO XVIII

Valderez, de pé diante do grande espelho do psichê, lançava um último olhar à toilette que acabava de vestir. Havia nessa noite, no castelo de Voglerie, um jantar de cerimônia ao qual devia seguir-se um sarau, em que seria representada uma peça do senhor de Ghiliac. Para essa comediazinha, graciosa e deliciosamente escrita, como sempre, quisera ele que Valderez lhe desse a sua opinião, lhe sugerisse idéias, de modo que a moça fora, na verdade, a colaboradora do escritor até então cioso de sua absoluta independência.

O vestido de melânia branca com reflexos prateados envolvia em pregas soberbas o corpo escultural da moça. Velavam-lhe as espáduas rendas magníficas e o colar de pérolas, envolvendo-lhe a brancura de neve do pescoço, desprendia um brilho suave e casto. Nos cabelos, nenhuma jóia; mas estes eram, aliás, o mais rico diadema que pode desejar uma mulher. A elegância sóbria e magnífica dessa toilette fazia-lhe realçar, como nunca, a deslumbrante beleza.

— É um sonho contemplar-se a senhora marquesa — exclamava com entusiasmo a camareira.

Valderez, sorrindo distraidamente, voltou ao quarto para tomar o leque. O olhar caiu-lhe sobre o botão de rosa colhido nessa manhã pelo marido, e que ela depusera em cima de uma mesinha ao começar a despir-se. Tomou-o entre os dedos, contemplando-o demoradamente.

Tinha-o colhido "para ela"! A acreditar nas aparências, não pensava senão nela, buscando todas as ocasiões de lhe ser agradável, afastando dela todos os cuidados. E tudo nele, os atos, as palavras, o olhar, dizia-lhe que era amada por Elias.

Por que então temia ainda? Por que lhe viria à lembrança, nesse momento, o queixume doloroso do poeta?

Seu olhar? Doce e terno, em mim sempre está fito. Mas sua alma? Talvez que seja fria e muda?Oh! Quem penetrará o pensamento oculto? Quem o decifrará? Meu Deus, que desespero! Não há na terra quem o possa adivinhar!— Não, na terra não! — dizia ela entre si. — Mas vós, ó meu Deus, vós o

conheceis, esse ser estranho em que não ouso ainda acreditar! Não permitais, se ele é sincero, que continue ainda a braços com esta desconfiança. Ele foi realmente tão bom para mim esta manhã!...

Aproximou-se de uma colunazinha que suportava uma virgem de mármore, enfiou a rosa entre outras flores que estavam num vaso de cristal, e uma ardente

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invocação escapou-lhe dos lábios, ou, antes, do coração. Depois, dirigiu-se ao quarto de Guilhermina, a quem a queda condenara à imobilidade por alguns dias.

— Oh! Mamãe, como estás linda! — exclamou a criança juntando as mãos. — Não há mulher tão bela como a minha querida mamãe, não é verdade, miss Ebville?

— Oh, decerto! — assentiu espontaneamente a jovem inglesa, muito amiga de Valderez, que se mostrava sempre muito delicada e gentil para com ela.

— Eu quisera, mamãe, que ficasse aqui muito tempo, ao pé de mim! — exclamou com meiguice a criança, beijando a mão da madrasta.

— Que exigentezinha que és, minha flor! Preciso, ao contrário, ir-me quanto antes, para não fazer esperar o teu papai.

— Oh! Papai não te dirá nada, mamãe! Ainda outro dia dizia a vovó a tia Leonor, falando a teu respeito: "Ela poderia fazê-lo esperar bem duas horas, que ele não lhe dirigiria jamais uma palavra de censura!" E dizia isto zangada, a vovó! Por quê, mamãe?

— Não é da tua conta, e eu já te disse que só as meninas mal educadas é que repetem o que ouvem dizer a avó ou as tias. Vamos! Quero ouvir-te dizer a tua oração para ir-me embora.

Curvou-se sobre o leito da criança, que não podia ajoelhar nessa noite, como de costume, e passou-lhe o braço por baixo da cabecinha castanha. Guilhermina, juntando as mãos, recitou devagar a prece costumeira, os olhos fixos no anjo que estendia as asas por cima da piazinha de água benta. A luz velada pela pantalha cor-de-rosa iluminava suavemente o rostinho da criança e o semblante grave e atento de Valderez.

— Meu Deus, recebe lá no céu a mamãe Fernanda, e faze que o meu bom papai te conheça e te ame — acrescentou ao terminar.

Mas exclamou logo a seguir:— Olha ele ali, o papai!A porta, que ficara entreaberta e que, havia alguns momentos, oscilava

ligeiramente, acabava de abrir-se de todo, dando passagem ao senhor de Ghiliac em traje de cerimônia.

— Estou atrasada, Elias? — perguntou Valderez.— Um pouquinho, mas o automóvel terá tempo de recuperar esses minutos. E a

nossa doentinha como vai?— Muito bem. Com alguns dias de repouso, espero que esteja boa.— Alguns dias de repouso, ouviste, minha louquinha? Aí tendes um duro

castigo... Agora, boa-noite, filhinha, e sonha com os anjos.Inclinou-se para o leito; a criança lançou-lhe os braços ao redor do pescoço:

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— Vou sonhar com mamãe! Está tão linda! E os anjos não podem ser melhores do que ela!

— Minha filha, a verdade fala por tua boca! E, Valderez, por mais que se furte aos cumprimentos, tem por força de aceitar os de Guilhermina.

E envolveu a moça num olhar de profunda e terna admiração, Valderez corou ligeiramente, inclinando-se para tomar a "saída de baile", que depusera, ao entrar, sobre uma poltrona. Ghiliac ajudou-a a vesti-la, retirando-se ambos, depois de Valderez ter ainda uma vez beijado a criança.

O trajeto, aliás muito curto, foi feito em silêncio. Valderez sentia uma ameaça de enxaqueca, que a tornara sonolenta. Entretanto, já não havia, no interior da carruagem, o menor vestígio do perfume que outrora tão desagradavelmente a impressionara. Ghiliac banira-o de toda a parte substituindo-o pelo fino e discreto aroma de íris, preferido pela jovem marquesa.

Se Valderez houvesse algum dia almejado as satisfações do amor-próprio, teria atingido, nessa noite, o cúmulo da felicidade. No sentir de todos, nunca fora tão idealmente bela; e ninguém ignorava — o senhor de Ghiliac fizera questão que o soubessem — que fora ela a colaboradora do marido na pequena obra-prima que se representava no teatro de Voglerio.

Foi um triunfante êxito para a jovem castelã de Arnelas. Contudo não parecia absolutamente inebriada por isso e acolhia com uma graça simples e discreta os entusiásticos cumprimentos, o incenso sutil das admirações e louvores que queimavam diante dela e do marido.

A senhora de Ghiliac mordia-se de inveja com o triunfo da nora. Realizava-se o que ela tanto receara: a jovem marquesa deixava na sombra aquela por que tão longo tempo sustivera o cetro da elegância e da beleza. De que lhe serviam, pois, o esplendor da sua toilette, os sábios artifícios destinados a entreter-lhe a aparente mocidade, os diamantes com que se adereçava? — os célebres diamantes de família, que ela nunca tivera a idéia de oferecer à nora, e que Elias, por deferência, nunca lhes pedira! Sim, para que lhe servia tudo isso, ao pé dessa Valderez que trazia também sobre si adereços reais, possuía a beleza sem rival, o discreto encanto, ante o qual todos se inclinavam e, além disso, recebia agora um reflexo da celebridade literária do marido?

Valderez tinha, porém, ainda alguma coisa de mais precioso e mais raro que todas as suas jóias, o amor de Elias.

A afeição da mãe frívola e idolatrada não podia suportar semelhante pensamento. A frieza respeitosa do filho parecera-lhe até então inerente ao caráter de Elias. Dentro em pouco, a velha senhora, já cansada, o coração a transbordar de ódio,

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retirou-se a pretexto do calor para um salão menos iluminado e destinado às pessoas que desejassem descansar um pouco.

Este salão estava deserto; mas apenas decorridos cinco minutos, um rumor de seda anunciou a presença de alguém que lhe vinha perturbar a solidão. E ruborizaram-se-lhe as faces de cólera ao ver surgir Valderez pelo braço do conde Serbeck.

— Ah! Está aqui, mamãe? Buscou também este refúgio de relativa frescura?... Muito obrigada, Carlos; agora, pode ir. Vou ver se descanso um pouco, porque realmente esta cefaléia aumenta cada vez mais e torna-me indisposta.

— E se eu prevenisse Elias? Poderiam regressar a Arnelas...— Não; para que incomodá-lo? Esperarei muito bem aqui, no sossego e pouca

luz deste salão.— Oh! Quer-me parecer que ele não se demorará muito! — disse o conde, com

um sorriso de familiar malícia. — E vou, de fato, preveni-lo porque as suas feições traem visivelmente o cansaço.

— Não, Carlos, por favor!Mas, sem atender à negativa, o conde Serbeck retirou-se do salão.Valderez aproximou-se de uma janela, que abriu, oferecendo o rosto ardente ao

ar fresco de fora.— A senhora é muito imprudente. Deseja então morrer como a mãe de

Guilhermina?A moça voltou-se ao som dessa voz cantante e irônica. À entrada do salão, de

pé, estava a senhora de Brayles.— Ignoro como ela morreu — disse friamente Valderez.— Ah! Sim?Roberta avançou, indo colocar-se ao lado da jovem marquesa, a qual deu de

rosto com as pupilas cambiantes que despendiam um brilho mau.— Oh! Não há nada de extraordinário no modo por que morreu! Em um

vesperal, na embaixada da Espanha, depois de muito haver dançado, e sentindo muito calor, colocou-se Fernanda imprudentemente ao pé de uma janela aberta; com a animação da conversa, não atentou na imprudência; ninguém dos que a cercavam percebeu o perigo que ela corria... nem sequer o marido, que estava, aliás, a pouca distância. Alguns dias depois, uma congestão pulmonar arrebatava deste mundo a pobre Fernanda. Como vê, não há nada mais simples...

— Muito simples, realmente; mas também muito triste, porque essa pobre moça deixava no mundo uma filhinha.

— Sim, e com um pai que se preocupava muito menos com ela que com o seu

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cão favorito... Posso merecer-lhe o favor de fechar essa janela, Valderez? Essa correntezinha de ar causa-me arrepios, e eu não tenho absolutamente desejo de acabar como Fernanda! Aliás, talvez a pobre coitada não se tenha lamentado! Tornara-se sua saúde tão débil com os desgostos domésticos, que teve desde o dia do casamento! E devia decerto ter-se capacitado de que jamais seria possível a união entre o seu caráter e o de Elias.

— Evidentemente, era impossível! — corroborou a velha marquesa, que até então permanecera calada. — A pobre Fernanda era absolutamente incapaz de lhe inspirar sequer a afeição efêmera que ele poderia conceder a uma outra mulher, mais inteligente e sagaz.

— E foi por isso que murmuravam esse rumor estúpido, inverossímil...— Cale-se Roberta! Não recorde essa odiosa intriga de salão.Os lábios de Roberta crisparam-se com o modo peculiar dos felinos, ao devorar

a presa palpitante. Enviezou um olhar à bela Valderez, que se voltara para ela, de cabeça erguida, como a testemunhar-lhe a sua desaprovação quanto ao rumo em que fazia seguir a conversa.

— Sim, uma intriga ridícula! Ninguém deu ouvidos. Veja a senhora o que é o mundo! Bastou que conhecessem a desunião existente entre o senhor de Ghiliac e Fernanda, para que logo, partido não sei de onde, se espalhasse o boato de que... só ele percebera o perigo a que se expusera a esposa.

Valderez teve um movimento rápido, e o olhar, a um tempo altivo e ansioso, cravou-se na jovem viúva.

— Eu não compreendo a razão por que a senhora repete em minha presença esses boatos!

— Decerto, simples boatos, que não diminuíram em nada a consideração em que é tido o senhor de Ghiliac. Parece-me que o fato de permanecer alguém mudo e impassível ao ver uma corrente de ar, mais ou menos mortal, acariciar as espáduas úmidas de uma moça, cuja saúde é muito delicada, não entra absolutamente na categoria das faltas imperdoáveis...

— Cale-se, Roberta! — intimou quase violentamente a senhora de Ghiliac.— Sim, cale-se, senhora! — reforçou Valderez num tom de altiva autoridade. —

A mais elementar delicadeza impunha-lhe o dever de não repetir semelhante calúnia diante da mãe e da esposa do marquês de Ghiliac.

Uma onda de rubor subiu às faces de Roberta. No olhar, com que frechou Valderez, chispava um ódio calcado que fez estremecer a moça.

— A senhora, também não o acredita? É o seu dever, e todos sabemos como, para a senhora, o dever está acima de tudo. É bem a esposa modelo, ornada de todas

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as perfeições...— Mas, realmente, Roberta, a senhora está de veia esta noite para os galanteios!

— exclamou, irônico, o senhor de Ghiliac, que acabava de entrar na saleta, ao mesmo tempo que o olhar penetrante buscava ler na fisionomia contrariada da mãe, na da senhora de Brayles, escarlate e animada, e no semblante comovido de Valderez.

Roberta, perturbada por essa repentina aparição, balbuciou algumas palavras, desviando o olhar contra-feito. Elias aproximou-se da esposa, dizendo-lhe numa voz, que logo se mudou em vibração singularmente meiga.

— Carlos acaba de dizer-me que você se sente fatigada, e vejo bem que não se enganou. Aumentou então a sua enxaqueca?

— Sim, muito. Sinto-me realmente indisposta.E estremeceu, num arrepio que lhe correu pelas espáduas.— Então, retiremo-nos depressa. Já me deveria ter comunicado. O calor destes

salões causa dor de cabeça a qualquer pessoa.— Eu não queria incomodá-lo.— Ora essa! Preocupo-me lá com as festas? — disse ele, com gesto de desdém

para os salões, de onde vinham os sons de uma ária húngara, muito em voga nesse ano.

Despediu-se rapidamente da mãe, cumprimentou com um movimento de cabeça, cortês, mas altivo, a senhora de Brayles, que ainda não se refizera do espanto, e retirou-se do salão com Valderez.

Roberta, levando aos lábios o lencinho guarnecido de rendas, mordeu-o com raiva.

— Ah! Sim! Não se preocupe! — murmurou entre dentes. — Só ela o preocupa! Para ele, só ela existe no mundo; as demais debalde lhe mendigam uma parcela de afeto; para essas não há nada, nada, nada para elas... nem tão pouco para a senhora, sua mãe! Ela é tudo para ele, é sua afeição única.

A senhora de Ghiliac, contraindo o semblante, voltou-lhe a cabeça sem responder, absorvendo-se num doloroso cismar, enquanto defronte dela Roberta torcia maquinalmente entre os dedos a mimosa batista do lencinho.

Ao partir da Voglerie, o senhor de Ghiliac gritou para o chofer; "Depressa, Thibau!" Valderez, apenas entrou na carruagem deixara-se tomar de um como torpor; parecia-lhe que era vigiada por um olhar ansioso que a seguia sempre, buscando ler-lhe a menor contração do pálido semblante; sentia somente a impressão, vaga mas suavemente doce, de estar sendo cercada de uma vigilante solicitude, sentindo às vezes a mão carinhosa de Elias aconchegar-lhe a capa que a trepidação do automóvel

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fazia resvalar. Apoderava-se dela um imperioso desejo de repouso, de solidão; parecia-lhe que o círculo que lhe apertava as fontes, a dor lancinante que lhe martelava o crânio, desapareciam então como por encanto.

Afinal chegaram a Arnelas. Pelo braço do senhor de Ghiliac, Valderez alcançou os seus aposentos onde a aguardava a camareira.

— Traga-me depressa uma bebida bem quente! — ordenou Elias. — E você, Valderez, recolha-se já e já ao leito. Deve ter um pouco de febre, pois tem as mãos ardentes e os olhos brilhantes. Vou mandar chamar o Dr. Vangue...

— Está gracejando, Elias? Uma simples dor de cabeça! Uma noite de repouso será o suficiente para curá-la completamente. Amanhã já estarei boa.

E tentava sorrir, mas o sofrimento era tão pungente que se via claro no sorriso doloroso que esboçou.

— Está bem; mas ponha-se depressa à vontade, despenteie-se quanto antes, pois esses magníficos cabelos devem pesar muito sobre a fronte.

Tinha nas suas as mãos de Valderez, que sentia envolvê-la a ardente carícia do olhar do marido. Súbito veio-lhe a idéia de como seria bom apoiar a fronte dolorida no ombro dele, dizer-lhe tudo o que a atormentava... e ouvir-lhe também o que ele teria para dizer-lhe...

Não! Nessa noite, não! Ela sofria muito, as idéias se lhe confundiam. Amanhã, sim... Urgia que tudo se esclarecesse. Tinha a intuição de que, agora, Elias se explicaria.

— Boa-noite, Elias! — disse ela febrilmente. Ghiliac, inclinando-se, beijou-lhe demoradamente as duas mãozinhas que

estremeciam entre as dele. Ao erguer-se dessa postura os olhares de ambos se encontraram.

— Até amanhã — disse ele, meigamente.— Até amanhã — repetiu ela, retirando lentamente as mãos. E o olhar, velado

pelo sofrimento, iluminou-se-lhe um instante à chama ardente dos olhos de Elias.

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CAPITULO XIXSentada ao pé de uma das janelas do salão que precedia a sua câmara, Valderez

devaneava, olhos fixos na folhagem brunida das árvores do parque, que lá embaixo se estendia até os limites dos jardins.

O mal-estar da véspera deixara-lhe apenas um pouco de cansaço. O senhor de Ghiliac, tendo vindo pela manhã ver a esposa, instara contudo para que almoçasse em seus aposentos, a fim de refazer completamente as forças. E esse homem tão friamente pessoal, no dizer das senhoras de Ghiliac e de Brayles, esse marido que descurava com tanta desenvoltura da sua primeira mulher, quando enferma, permaneceu muito tempo ao pé de Valderez, distraindo-a com a sua conversação, informando-se de tudo o que ela podia desejar, e dando ele próprio as instruções ao mordomo, a fim de que fosse servida à senhora uma refeição ao mesmo tempo leve e substancial.

Nenhuma alusão havia feito ainda ao que se passara na saleta da Voglerie. Entretanto, Valderez estava convencida de que o marido adivinhara qualquer coisa, e lhe exigiria explicações a respeito. Era seu direito, e ela tinha o dever de lhas dar. Estava, por conseguinte, pronta a responder logo que fosse inquirida sobre isso.

As pérfidas palavras da senhora de Brayles, passado o primeiro abalo, não haviam deixado nenhuma impressão em Valderez. Elias podia ter graves defeitos, mas quanto a ser culpado desse crime, nunca! Que odiosa criatura seria então essa mulher, que lhe ousara falar assim do marido, insinuando-lhe tão miseráveis calúnias?

Mas Valderez, desde algum tempo, perguntava a si mesma se outra mulher não se valeria também, a seu respeito, de uma perfídia análoga, desvendando-lhe de antemão, e exagerando-os, os defeitos de Elias e as suas incompatibilidades com a primeira esposa...

Aguardava pois o marido. Este lhe havia dito que voltaria depois do almoço, logo que os seus deveres de anfitrião o deixassem livre. E uma comoção, a um tempo de receio e confiança, fazia descompassar o coração de Valderez, à idéia dessa entrevista.

Se não quando, ei-lo que entra, indo apressadamente ao seu encontro como alguém a quem houvessem retido por muito tempo...

— Esse tagarela de lord Gremhann prendeu-me indefinidamente no fumatório. E eu que estava ansioso por vir saber como está passando!

— Sinto-me perfeitamente bem! Poderia até ter descido para o almoço.Ele sentou-se junto dela no mesmo canapé, e, tomando-lhe a mão, envolveu-a

nesse olhar tão profundo e tão terno com que, havia algum tempo, a contemplava.

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— Não, é preferível que refaça completamente as suas forças. Esta existência, a que não está, habituada, fatiga-a muito, e eu quero, antes de tudo, que tenha cuidado com a saúde. A sociedade não paga a pena de adoecermos por ela. Agora, vou dizer-lhe uma coisa que lhe causará prazer. Tive hoje pela manhã uma longa conversa com seu pai; falei-lhe seriamente e ele prometeu-me que não pegará mais em cartas. Esta promessa, eu lhe recordarei em tempo e lugar conveniente. Obtive igualmente, sem grande dificuldade, que deixasse Orlando seguir sua vocação.

— Ah! Conseguiu isso? Oh, como vai ficar contente o meu querido Orlandinho! Como agradecer-lhe, Elias?

— Vou dizer-lhe, Valderez — continuou ele, com ternura. — Ontem, quando entrei na saleta onde você estava com minha mãe e Roberta, compreendi logo, vendo-lhe a fisionomia, que acabavam de lhe dizer alguma coisa grave... contra mim, provavelmente. Ora, o que eu lhe peço é que me testemunhe inteira confiança cientificando-me de que me acusam, pois tenho o direito de defender-me.

— Tem razão, e eu o dever de lhe dizer o que se passou. A senhora de Brayles acabava de me contar os boatos odiosos que correram... acerca da morte de sua primeira mulher — concluiu Valderez, baixando instintivamente a voz.

— E que pensou quanto a isso? Inclinando-se um pouco, mergulhou o olhar firme e reto, algo ansioso todavia,

nos grandes olhos castanhos da esposa.— Oh, eu não acreditei sequer por um instante! Nunca, Elias! Nunca!E a sinceridade do protesto revia-lhe na voz, no frêmito de toda a sua pessoa.Iluminou-se de repente a fisionomia de Elias. Inclinou-se ainda mais, tocando

com os lábios a fronte aureolada de ouro-carregado.— Obrigado, meu amor! — disse ele, apaixonadamente. — Eu suportaria tudo,

menos vê-la duvidar por um instante da minha honestidade. Diga-me, porém, uma palavra... uma palavra só, Valderez. Diga que me ama!

Ante a imensa ternura do olhar que a implorava, varreram-se-lhe as derradeiras brumas de dúvida. A encantadora cabeça pendeu sobre o ombro de Ghiliac e Valderez murmurou: "Sim, Elias, eu te amo!"

Permaneceram assim longo tempo, na embriaguez da felicidade. São profundas e silenciosas as grandes alegrias; e os beijos de Elias tinham mais eloqüência que as palavras, nesses primeiros instantes em que os dois sentiram enfim bater isócronos os corações.

— Somente de alguns dias para cá, é que me tens deixado ler um pouco nesses belos olhos — murmurou enfim Elias. — Antes disso, eu ignorava se tinha afinal a felicidade de haver conquistado o teu afeto.

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— Tu já o tinhas há muito tempo... creio até que desde o primeiro dia. Mas... oh! dize-me, Elias, por que tiveste essa atitude, por que me falaste assim, no dia do nosso casamento? Bem sei que procedi mal nesse dia que, com certeza, te ofendi. Mas se tivesses pensado na minha pouca idade, na minha inexperiência...

— Sim, fui eu o culpado, o único culpado, querida! O meu orgulho revoltou-se nesse momento, abafando a voz do amor, porque eu já te amava, Valderez, e devia dizer-te logo. Depois, foi ainda o orgulho que ditou o meu odioso proceder para contigo, nos primeiros meses do nosso casamento. Não, não protestes! Foi realmente odioso separar-me de ti, tão criança, e fazer-te sofrer, simplesmente porque o meu amor-próprio de homem não queria dobrar-se a pedir-te uma explicação e dar-te a conhecer que eras amada! Compreendi, afinal, os meus erros e tornei para junto de ti, resolvido a conquistar o teu afeto, mostrando-te que posso ser, que sou realmente um pouco mais sério e grave do que o fazem crer as aparências... e que tenho coração, coisa de que talvez duvidasses também, Valderez...

— Sim, duvidei algum tempo, Elias, confesso-o francamente.— Dei razão para que assim procedesses; mas estarei enganado, pensando que

houve ainda outras razões?... Não estarias por acaso, prevenida contra mim?A moça corou, mas não desviou o olhar de Elias.— Sim, houve quem te representasse aos meus olhos sob as cores mais negras,

sob o aspecto mais egoísta, incapaz do menor afeto, considerando-te somente como um diletante, que em mim apenas visse um curioso objeto de estudo psicológico...

Os braços de Elias enlaçaram mais estreitamente a moça que viu nos olhos do marido um fulgor de irritação profunda.

— Ousaram dizer-te isso? Ah, querida, compreendo agora o terror, a desconfiança que eu te inspirava! Mas quem foi o miserável autor dessa perfídia?

Valderez corou ainda mais, e murmurou:— Suplico-te, Elias, que não me perguntes! Não te poderia dizer...Os olhos de Elias chisparam de novo.— Não, eu não preciso que me digas... Já o adivinhei — disse ele a meia voz.Valderez compreendeu pelo tom destas palavras e pela expressão da fisionomia

do marido, que de fato ele tudo adivinhara e que a sua irritação crescia.— Não digas nada, Elias! — implorou ela, em tom de prece. — Cumpre

esquecer e perdoar. Por mim, eu o faço de bom grado, afianço-te, porque me sinto muito feliz agora!

Ele, beijando-lhe os cabelos, que despendiam reflexos de ouro, murmurou:— Mas eu não sou tão bom como tu, minha Valderez! Esquecer e perdoar isso!

Não, não!

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— Deves fazê-lo, Elias!— Talvez, mais tarde... Por agora, não exijas demasiado de um ser imperfeito

como eu, minha querida! — acrescentou sorrindo docemente, com os olhos fitos nos grandes olhos que o censuravam. — Prometo-te que não direi nada, é tudo o que posso fazer; e, mesmo, porque, ainda assim, devo conservar o respeito filial. Quanto a Roberta, isso agora é outro falar.

— Deixa-a também em paz, Elias!— É impossível. Quando na estrada se nos depara uma víbora, urge esmagá-la.

Não te preocupes com isso, Valderez. Dize-me, antes, se agora já crês em mim, sem reserva; se já varreste completamente de teu coração a desconfiança...

— Tenho toda a confiança em ti, meu bom Elias, porque me permitiste apreciar, desde algum tempo, toda a tua bondade, toda a retidão do teu caráter... e porque sinto, tenho certeza, que me amas realmente. Sofri tanto por duvidar de ti! Eras um mistério acabrunhador para uma pobrezinha ignorante como eu...

— Sou-o para todos — interrompeu ele, com um sorriso comovido — até para os meus parentes e os meus íntimos. Mas tu, meu primeiro e único amor, tu, de quem espero fazer a minha adorada confidente, quero que me conheças com todos os meus defeitos e as minhas boas prendas, porque, enfim, creio que sempre terei algumas apesar de todo o mal que possam dizer de mim.

E pôs-se a falar de si, simplesmente, lealmente. Descreveu-se a si mesmo, criança ainda, de coração ardente e graça encantadora, um despotazinho por todos adorado; depois, adolescente adulado, mas já cético, pois compreendia bem todas as fraquezas humanas, delas escarnecia sem piedade. Essa tendência crescera muito quando, já rapaz, se tornara o ídolo da alta sociedade elegante, que esquecia o impiedoso ironista diante do fidalgo e do escritor de estilo magnífico...

A educação religiosa, muito superficial, recebida na infância, fora logo esquecida. Dela, contudo, ficara-lhe na alma, de instintos muito nobres e cavalheirescos, uma impressão indelével; fora a ela, mais ainda que ao seu orgulho de homem consciente de sua força moral, que Elias devia o ter-se conservado invulnerável às fraquezas e aos erros em que se afundaram tantos outros. Mas, no exagero do seu ceticismo, terminara por calejar o coração, concedendo ao cérebro a preponderância. Exaltara-se o orgulho, entretido em demasia pelas adulações de que era alvo, pela consciência de sua superioridade moral e intelectual. E, por uma contradição que nunca tentara explicar, esse homem que escarnecia e desprezava a sociedade, vivia continuamente nessa ambiência, deixando-se de bom grado incensar, com um sorriso de sarcasmo nos lábios, pelos adoradores idolatras.

Nele os contrastes tinham tido sempre efeito inesperado. É que jamais lhe havia

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sido ministrada séria educação moral, tendo crescido sempre ao arbítrio de sua natureza exuberante, sem outra lei que o seu capricho. O pai morrera moço, e a mãe vira somente no filho, a princípio, a criança inteligente que lhe lisonjeava a vaidade; depois admirara cegamente o rapaz, cuja vontade imperiosa e altiva inteligência a subjugavam. Ainda criança, adivinhara-a frívola, unicamente preocupada consigo mesma. Nunca lhe esquecera uma noite, em que sua irmã Leonor, presa de febre alta, retivera com as mãozinhas ardentes o rico vestido de seda da marquesa que viera, antes de partir para um baile, lançar uma vista de olhos à criança, cuja governanta lhe fora dizer que estava passando mal. A senhora de Ghiliac desviara imediatamente os dedinhos da filha, exclamando: "É insuportável esta menina! Vigie-lhe um pouco esses gestos, fraulein! E se vir que se faz mister o médico mande chamá-lo; mas quer-me parecer que não tem razão para assustar-se".

Não, Elias não poderia esquecer essa cena, que lhe impressionara fortemente o espírito de criança muito observadora. E posto fosse ele o único a gozar de todo o amor materno de que era suscetível o coração da senhora de Ghiliac, nunca lhe concedera senão um frio respeito, porque ela, sendo mãe, não tinha consciência dos seus deveres.

— Agora — acrescentou ele — devo falar-te do meu primeiro casamento, minha cara Valderez, porque julgo que, ainda sobre este ponto, fui um tanto caluniado. Foi ele o que são muitos outros, principalmente em nossa sociedade: uma união de conveniência, de minha parte, pelo menos. Eu tinha vinte e dois anos, Fernanda dezesseis. Os nossos costados de nobreza equivaliam-se; ela era mulher de salão, sabendo vestir-se e dar uma recepção. Conhecendo-a desde a infância, eu a sabia frívola, de inteligência média, mas meiga e fácil de se deixar levar. Tendo o amor, nessa época, na conta de um acessório inútil à existência, — só mudei de pensar quando te conheci! Pareceu-me conveniente tal casamento: Fernanda de Monthécourt tornou-se então marquesa de Ghiliac. Mas, coisa extraordinária, a esposa revelou-se ainda mais criança, mais fútil do que fora a donzela. Conheci então toda a gama das exigências desarrazoadas, das crises nervosas, das exuberâncias sentimentais. Não é que eu pretenda, com isto, negar as minhas culpas! Tive-as, faltou-me a paciência, a indulgência com essa pobre criatura exaltada, que me amava deveras, mas cenas contínuas exasperavam-me, conduzindo-me pouco a pouco à antipatia. Esse casamento foi um erro por parte de ambos. Ela o expiou mais duramente que eu, a pobre coitada, porque me amava; mas, no leito de morte compreendeu que arriscara, por si mesma, e finalmente perdera a sua existência, porquanto, no delírio da agonia, repetia várias vezes: "Enganei-me, Elias! Enganei-me!"

Ficaram ambos calados um momento.

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Passava entre eles a sombra da jovem de cérebro de passarinho mas de coração apaixonado que morrera sem compreender — a não ser talvez nos derradeiros instantes — o que era preciso para conquistar o coração de Elias de Ghiliac.

— Perdoa-me, Valderez, o haver tocado neste assunto do qual não nos deveríamos ocupar — disse meigamente Elias. — Eu, porém, devia fazer-te ciente destes fatos, a fim de que te acauteles contra aqueles que queiram falseá-los. Fui culpado, e ela também. Deus, porém, será o juiz das responsabilidades de cada um. Agora falemos de ti, minha Valderez. Sabes que certa condadina me causou profunda impressão desde o primeiro dia em que a vi, nos Altos-Pinheiros?

— Oh! Contudo, Elias, te mostraste tão frio!... E mesmo depois, durante o nosso noivado...

— Perdoa-me, querida! O meu estúpido orgulho revoltava-se à idéia da influência que tu — eu o sentia instintivamente — exercerias sobre mim desde o primeiro momento em que eu deixasse falar o coração. Porque tu, Valderez, tu és uma inteligência, és uma alma, e que alma! Toda a tua beleza não seria bastante para me vencer, se a não completasses maravilhosamente com a tua formosa inteligência... Vamos, querida, não cores! É preciso que permitas ao teu marido que te fale a verdade. E cumpre também que lhe ensines a imitar-te um pouco, a tornar-se melhor do que é minha boa fadazinha!

— Será tão fácil, com um coração como o teu! Vais-me fazer muito feliz, meu caro amigo!

— E não será sem tempo! Pois que os cuidados e os desgostos não te têm faltado: primeiramente, lá em casa de teus pais; depois, aqui mesmo. Feliz, sim quero que o sejas, em tudo que depender de mim. E, para começar, és tu quem organizará, de hoje em diante, a nossa existência ao teu bel-prazer.

— Permites que ela não seja tão mundana? — inquiriu alegremente Valderez.— Repito, será o que tu quiseres. Basta-me que eu te tenha comigo, em nossa

casa, do resto pouco se me dá. Tu não foste criada para a vida mundana, Valderez. Quis experimentar-te, para saber se o tesouro que eu possuía era realmente de ouro puro. E vi que não mudaste, que continuaste a mesma que eras ante as tentações do luxo, dos galanteios, da vaidade que te podia inspirar a tua posição. Vi-te permanecer indiferente aos atrativos do prazer das mundanidades que tanto preocupam as outras mulheres, sem dares conta sequer da admiração de que te fazias alvo em toda parte. De que forte paciência, Valderez, deves ser dotada, para que conseguisses fazer-me digno de ti!

Conversaram assim longo tempo, juntos, até à hora do chá, quando Valderez se ergueu para ir vestir-se a fim de descer ao encontro dos hóspedes.

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— Que vestido queres que eu ponha hoje, meu caro senhor e mestre? — perguntou ela, com um sorriso de terna malícia.

Elias, inclinando-se, beijou-lhe os cílios castanho-dourados.— Veste-te de branco, minha querida rainha. É a cor que te vai melhor.

Candidior candidis. Esta divisa da piedosa rainha Cláudia e da minha prudente avó será também a tua, meu belo cisne.

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CAPÍTULO XX

Havia já uma hora que a senhora de Brayles fazia e refazia as suas contas; mas para qualquer lado que se voltasse, esbarrava sempre com a terrível realidade: dívidas acumuladas, a Reynie hipotecada, e ali, sobre a secretária, uma ruma de cartas de credores, que a ameaçavam de reclamar judicialmente os seus pagamentos.

O que herdara por parte do marido seria o suficiente para uma mulher de gosto simples e honesto. Quisera, porém, continuar a viver vida mundana, igualar ao luxo das suas mais abastadas relações, trajar toilettes principescas. Dentro em pouco, foi-lhe preciso apelar para os empréstimos; tornou-se devedora de somas importantes a várias das suas amigas, a Leonor principalmente. Recorrera, por último, à senhora de Ghiliac, que parecia mais bem disposta a seu respeito. Mas, já se achando esgotados esses expedientes, viu-se Roberta em transe de uma ruína vergonhosa, que seria para ela a miséria, o abandono de todas as suas brilhantes relações.

Voltara-se na poltrona, tomando uma atitude de completo desalento, para quem tudo se abismava. Porque desde a morte do barão de Brayles, ela só vivera na esperança de conquistar um dia o coração de Elias. O casamento do marquês aterrara-a, como se desde então, nada mais lhe restasse senão pôr fim à existência. Por sobre tudo isso, a vista quase cotidiana de Valderez, a certeza do profundo amor de Elias pela esposa vieram-lhe mover o ciúme sobre-excitando-se até transformá-lo pouco a pouco em ódio num desejo ardente de se vingar dessa mulher fazê-la sofrer.

Era esse o motivo de suas pérfidas insinuações, tais como as da véspera; esse o fim dos seus ensaios de provocante faceirice junto ao senhor de Ghiliac — faceirice que já desde longa data, ela sabia sem efeito sobre ele mas que podia ferir o coração de Valderez, enchendo-o de suspeitas e zelos.

Entretanto, bem compreendia que todos os seus esforços se tornavam infrutíferos, pelo fato de Elias, que a conhecia muito bem, exercer uma vigilância constante em derredor da esposa. E isto ainda mais a exasperava, distendendo-lhe até ao extremo todas as forças malsãs da alma perversa.

— Preciso tomar um pouco de ar, caminhar um pouco! — exclamou súbito Roberta. — Põem-me o cérebro em fogo estas malditas contas!

Tocou o tímpano, chamando pela criada, a quem ordenou que trouxesse a capa e o chapéu. Depois saiu, ao acaso, na direção do bosque de Vrinières.

Viera-lhe um instintivo desejo de solidão; por isso, em vez de tomar pela estrada que atravessava o bosque, seguiu por um atalho paralelo a essa estrada, a qual se percebia através das árvores.

Caminhava com passo irregular, o espírito absorto numa visão, sempre a mesma, insensível ao encanto dessa manhã outonal, à frescura deliciosa da aragem que

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soprava, ao esplendor das folhagens amareladas e brunidas que se lhe agitavam docemente por cima da cabeça e estalavam sob os pés.

De repente, estacou, olhos fitos na estrada, vendo um casal que avançava e ela logo reconheceu. Ele, o talhe esbelto, um pouco inclinado, falava à companheira que se apoiava ao seu braço com o abandono confiante da esposa que se sabe amada; na fisionomia de ambos estampava-se a mesma expressão de amor terno e profundo; mas a do senhor de Ghiliac estava de tal modo transformada, que Roberta acreditou ver nele um outro homem.

Cerrou um instante os olhos, agarrando-se a uma árvore. Estrangulava-a uma dor atroz, paralisando-lhe os movimentos.

Ao abrir de novo as pálpebras, viu que os dois haviam parado em meio da estrada. E a voz de Valderez elevou-se radiante...

— Mas a tua gravata está torta, Elias! Que foi isso, meu amigo?E ele, com alegre riso:— É que mandei passear o Florentino, que me estava a aborrecer, pois eu te

sabia à minha espera, e não queria que por minha causa perdesses a hora da missa. Como ele não tinha acabado de me arranjar convenientemente a gravata, eu também não pensei mais nisso.

— Deixa que eu a componha; do contrário, o meu maridinho perde a reputação de rapaz elegante!

— A menos que isso não pareça, ao esnobismo dos meus contemporâneos, intencionada negligência, que eles se darão pressa em imitar. Podemos assim fazer que adotem as modas mais extravagantes... Pronto? Obrigada, querida. És de uma habilidade que causaria inveja ao próprio Florentino, aliás o modelo dos criados de quarto.

Tomou as mãos da moça, beijando-as demoradamente. E continuaram ambos o caminho ao longo da estrada semeada de folhas mortas, banhada pela luz pálida daquele sol de outono.

Roberta contemplava-os, comprimindo o coração, que lhe pulsava descompassadamente. Lá se iam eles, inebriados ambos de felicidade... Ao passo que ela ficava para ali, simples despojo, de quem todos amanhã se afastariam...

Oh, como ele a contemplava ainda agora, a essa Valderez, que triunfava onde tantas haviam naufragado! Como deveria ser delicioso o ser amada por ele!... Amada assim, principalmente!

E sentia-se tomada de uma febre de furor e desespero. Pôs-se de novo a caminhar pelos bosques, sem destino, até que, já exausta, retomou o caminho da Reynie.

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— O senhor marquês de Ghiliac, que acaba de chegar, está na saleta à espera da senhora baronesa — disse-lhe a criada ao lhe abrir a porta.

Roberta estremeceu tomada de assombro. Elias nunca viera à casa dela, a não ser em dias de recepção... Trazia-o, pois, ali algum motivo muito grave...

E logo de si consigo:— Com certeza, a mulher contou-lhe o que eu lhe disse anteontem, e ele vem

repreender-me...Sacudiu-a um arrepio de terror à idéia de que iria afrontar a cólera, aliás

legítima, do homem que diziam inexorável.Hesitou alguns minutos, com a mão na maçaneta da porta; afinal, abriu-a,

dirigindo-se lentamente para o meio do salão.O senhor de Ghiliac, que estava de pé, em frente a uma janela, voltou-se. Os

olhos de Roberta encontraram-se com aquele olhar duro e sombrio, de que tanto se arreceavam os que incorriam no seu desagrado.

— Desejo dizer-lhe duas palavras — declarou ele friamente.— Oh! Pois não! — balbuciou Roberta. — Estou às suas ordens, Elias, queira

sentar-se...— É inútil — recusou ele com um gesto. — São somente duas palavras, tanto

mais quanto a senhora, naturalmente, já adivinhou o motivo que me traz aqui...— Não posso adivinhar!— Não se faça de desentendida, nem percamos tempo. Compreende que não

podia deixar de inquirir a causa da emoção dolorosa de minha mulher, por demais visível, bem como as feições agitadas e rancorosas da senhora, e o constrangimento de minha mãe, quando anteontem entrei na saleta da Voglerie. Valderez contou-me tudo. Não deve pois admirar-se de que eu lhe venha pedir que nunca mais apareça em nossa casa.

As faces de Roberta, que se haviam ruborizado, descoraram súbito. Durante alguns minutos, fitou em Elias os olhos dilatados, como os de uma pessoa que não entende o que lhe dizem.

— Você... você me fecha a sua porta, Elias? — articulou afinal em voz rouca.— De algum tempo para cá, a senhora tudo tem feito para isso. Essa odiosa

perversidade não foi senão o remate das suas pérfidas manobras. A senhora é a única culpada do que acaba de acontecer.

E deu um passo para a porta. Mas Roberta adiantou-se, pondo-lhe a mão no braço.

— Elias, não é possível! Você não romperá assim uma amizade de tantos anos! Fiz mal, bem sei, fui perversa... mas você sabe muito bem por quê...

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A mão tremia-lhe, ao mesmo tempo que no olhar se lhe estampava uma súplica humilde e apaixonada.

O senhor de Ghiliac afastou-se num movimento altivo.— Não sei nem me importa saber, senhora. Considero somente o fato que

poderia ocasionar um sofrimento à minha esposa, se ela não tivesse depositado em mim absoluta confiança. Ela lhe perdoa, mas eu não! Esse seu apelo para uma amizade, que foi sempre, aliás de minha parte, muito fria, não mudará em coisa alguma a minha resolução.

E saiu, depois de lhe fazer um ligeiro cumprimento... Roberta ficou imóvel, no meio do salão, aniquilada, as faces era fogo, crendo ver ainda pregado nela esse olhar de altivo desprezo que a transpassara durante alguns segundos.

O senhor de Ghiliac, ao deixar a Reynie, seguiu por um atalho que o conduziu a um dos portõezinhos do parque, passando daí aos jardins na intenção de ir visitar as suas estufas. A execução do que vinha fazer trouxera-lhe apenas como conseqüência a comoção desagradável que experimenta todo homem bem educado quando se vê constrangido a dar uma lição algo severa a uma senhora. Contudo, essa comoção se atenuava pelo profundo ressentimento que tinha contra Roberta por ter tentado fazer sofrer a Valderez.

Ao chegar perto das estufas, cruzou Elias, com a mãe, que saía de uma delas trazendo na mão algumas flores. A ruga de contrariedade que barrava a fronte da marquesa desfez-se à vista de Elias.

— Não deste então o teu passeio a cavalo esta manhã? — perguntou ela, dando-lhe a mão a beijar!

— Não, senhora; resolvi fazê-lo a pé. O bosque de Vrinières estava delicioso com a fresca da manhã. E a senhora vem de colher as suas flores.

— Sim... mas desejava principalmente um lírio cor-de-rosa e tive o desprazer de verificar que deles já não existe nenhum. Disse-me o Germano que Valderez os mandara colher todos esta manhã para a igreja, o que muito me admirou, pois é sabido que não consentes que assim te despojem das tuas plantas raras.

Esforçava-se por falar em voz calma, mas a fisionomia acusava o descontentamento que lhe perturbava o espírito.

— Sim — replicou Elias tranqüilamente — há uma festa amanhã na igreja. Valderez é absolutamente senhora de proceder como bem lhe agradar, tanto no que diz respeito às flores como em tudo mais, e sabe melhor do que eu qual o modo como as deve empregar. Se minha mãe faz muita questão desses lírios, é só pedir-lhes, pois que ela ainda os não mandou levar ao presbitério.

— Não, muito obrigada! Eu passarei sem eles — disse ela secamente.

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E dirigiu-se para uma alameda que conduzia ao castelo. O senhor de Ghiliac, em vez de entrar na estufa, pôs-se a caminhar ao lado da mãe.

— Tenho de lhe fazer uma pequena comunicação, minha mãe — disse ele, em tom frio. — A senhora foi testemunha das miseráveis insinuações feitas anteontem pela senhora Brayles a Valderez. Não estranhará, por conseguinte, que eu lhe tenha proibido de nunca mais pôr os pés em nossa casa.

A senhora de Ghiliac teve um leve movimento de assombro:— Quê? Pois fizeste isso, Elias?... Roberta, que conheces há tanto tempo?— Tê-lo-ia feito à minha própria irmã se tentasse manchar-me aos olhos de

minha mulher — disse ele duramente. — E quero que saibam que todas as manobras tendentes a nos afastar, aliás de todo completamente inúteis, não serão jamais toleradas por mim.

As mãos da senhora de Ghiliac tremiam, ao mesmo tempo que uma onda de sangue lhe subia às faces.

— Mas, em verdade, crês tu, meu Elias, que tanto mal queiram assim ao teu lar? — disse ela, num tom entre compungido e irônico. — Eu não nego que Roberta, cega pela paixão que tem por ti, tenha ido um pouco longe; mas Valderez é inteligente, para não dar ouvidos a boatos dessa espécie.

— Sim, agora ela já me conhece; mas não foi assim no dia do nosso casamento...

O olhar surpreso da senhora de Ghiliac encontrou-se com o do filho. Compreendeu que ele sabia tudo.

— Que queres dizer? — murmurou ela, quase maquinalmente.— A senhora não o ignora, minha mãe, e é preferível que, por amor do respeito

que lhe devo, não prossigamos nesse assunto. Quero somente que saiba que Valderez não me declinou o nome da pessoa que assim lhe apresentava de antemão o marido; fui eu que o adivinhei logo, pois já tinha a intuição dos sentimentos de minha mãe a respeito de minha mulher. Se o exemplo desta um dia me tornar menos imperfeito, eu tentarei esquecê-lo. Até lá, porém, sempre me hei de lembrar que minha mãe fez tudo pára me separar de uma moça cuja culpa única consistia em ser bela, ter um coração de anjo e aptidão bastante para fazer de mim um marido feliz e um homem útil.

— Elias! — balbuciou a custo a senhora de Ghiliac.— Basta, minha mãe! — concluiu ele, no mesmo tom glacial — Não devo dizer-

lhe mais nada. Aqui, a senhora estará sempre em sua casa, uma vez que compreenda que todas as intrigas ao redor de Valderez devem cessar completamente.

Inclinou-se e, voltando sobre os passos, dirigiu-se de novo para as estufas.A senhora de Ghiliac continuou maquinalmente o seu caminho. As palavras do

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filho ressoavam-lhe ainda aos ouvidos. Sob as aparências corretas de Elias, sentira ela alguma coisa muito semelhante ao desprezo. Tomou-se de um sofrimento súbito, sofrimento feito de humilhação, de surdo furor contra Valderez, de profundo pesar à idéia de que fechara a si mesma, e para sempre, o coração do filho.

Desde há algum tempo, já lhe notara ela a frieza, cada vez mais acentuada; principalmente, na véspera, à noite, bem lhe quisera parecer que alguma coisa se passara, logo que os vira entrar à hora do chá, alegres, radiantes. O duque de Versanges lhe observara, sorrindo: "Parece-me que, quanto mais vivem, mais lhe sabe, a esses dois, a lua-de-mel".

De fato, tudo o que ela havia tentado, no receio do seu ciúme, volvia-se finalmente em triunfo para essa odiada Valderez. E um triunfo completo, absoluto!

Súbito, apressou o passo, seguindo por uma alameda transversal. É que avistara além do vulto de Valderez, que levava pela mão Guilhermina, e conversava alegremente com Orlando, enquanto atrás deles seguia Benaki. Nesse momento, a senhora de Ghiliac sentia-se incapaz de defrontar-se com a nora, ver a luz brilhante desses olhos incomparáveis que haviam enfeitiçado Elias. E afastou-se, com a alma ulcerada, enquanto aos seus ouvidos chegava uma alegre risada da moça, seguida desta frase:

— Vou pedir daqui a pouco a teu pai, Guilhermina. Sim, prometo-o.Ah, sim, ela podia pedir-lhe tudo, tudo! Desta vez, Elias de Ghiliac encontrara

alguém mais forte do que ele, essa jovem diante da qual capitulara o seu orgulho e se dobrava a sua vontade imperiosa.

Nas proximidades do Natal, Elias e a mulher, depois de uma curta estada em Paris, ganharam o Jura em companhia de Guilhermina. Os Altos-Pinheiros, que tinham visto partir Valderez, com a alma em pedaços, reviam-na agora a mais feliz das esposas. A velha Cristiana pouco faltou para que não tivesse um desmaio ao ver tão imprevisto resultado de uma união que lhe parecera cercada dos mais nefastos presságios. Seria, de fato, esse esposo-modelo, esse homem afetuoso e encantador, o mesmo que, quando noivo glacial, arrebatara Valderez de Noclare aos Altos-Pinheiros?

— E, contudo, a neve caíra no dia do casamento! — murmurava a velha criada, vendo-os afastarem-se para um pequeno passeio, ternamente apoiados um no braço do outro.

Não deveria ser Cristiana a única a admirar-se. Pouco a pouco, ao doce influxo dessa companheira de alma encantadora, tão bem educada e tão profundamente cristã, tornou-se Elias outro homem. A alta sociedade mundana viu-o com assombro ocupar-

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se de obras sociais e religiosas. Essa inteligência superior, esse encanto irresistível, que haviam feito do marquês de Ghiliac o ídolo da sociedade, serviam-lhe agora para conquistar os deserdados da fortuna, que se deixavam seduzir pela grave bondade e delicada generosidade, esse fidalgo afável e simples para com eles.

Discretamente, e sem se deixarem levar pelas decepções e ingratidão humanas, Valderez e o marido multiplicavam os benefícios, unidos na caridade como o eram em todas as demais coisas. Ofereciam a verdadeira imagem do casal modelo, e a bela marquesa de Ghiliac, que se prestava de boa vontade, mas sem entusiasmo, às obrigações mundanas inerentes ao seu estado social, era dada como exemplo às jovens pelas mães de família.

— Ora! Isso não há de durar muito! — diziam alguns, aos quais irritava essa tranqüila felicidade baseada na paz do lar, no dever e no amor cristão. — As flores murcham, as rosas se desfolham...

O duque de Versanges, que ouvira o comentário, contou-o ao sobrinho, uma tarde, em que aquele se achava no palácio de Ghiliac. No lindo salão branco e simples, onde passava habitualmente os dias, Valderez acabava de adormecer o Gabrielzinho, cujo nascimento elevara ao ápice a felicidade de Elias. Sentado ao lado da esposa, a mão pousada sobre os cabelos de Guilhermina, reclinada no colo do pai, o senhor de Ghiliac contemplava o filho.

Às palavras do velho duque, ergueu ele os olhos para Valderez; os dois esposos trocaram entre si um sorriso de terna confiança e um longo olhar de amor. Depois, voltando-se para o tio, disse alegremente o senhor de Ghiliac:

— Permita-me que eu lhe responda, meu tio, com este pensamento da Sra. Swetchine: "As rosas humanas embranquecem mas não murcham."

FIM