M Delly - A Pomba Do Castelo

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A Pomba do Castelo Delly

Casa Editora de A. FIGUEIRINHASRua das Oliveiras, 71 e 87 PORTO

DIREITOS RESERVADOS NA LNGUA PORTUGUESA

TIPOGRAFIA PORTO MDICO, LDPRAA DA BATALHA, 12-A PORTO

Digitalizao e correco: Ftima Toms Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficincia visual.

O comandante Orguin abriu a porta da saleta de estudo, lanou um olhar satisfeito para os dois rostos morenos inclinados sobre os cadernos e perguntou: Quem quer dar um passeio comigo? Ergueram-se duas cabecitas, e duas vozes alegres responderam: Eu, pap! Num salto Jocelyne e Goulven estavam de p. Correram para o vestbulo, pegaram nos chapus, e momentos depois o comandante, entre os dois filhos, seguidos pelo co Nquet, caminhava rapidamente em direco praia. Corria uma brisa fresca, nessa enevoada manh de abril. Barcos de pesca, de velas infladas, balouavam-se no mar ligeiramente agitado. A pequena povoao de Kersanlic, aninhada no fundo duma pequena bahia, estava envolvida numa leve bruma, que tambm cobria os bosques, cuja verdura nova aparecia ao longe, direita.

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O comandante, pelo caminho, conversava com os filhos, a quem queria com ternura. A profisso de marinheiro afastava-o deles muitas vezes; mas, no decorrer das licenas nunca os deixava, completando com os seus ensinamentos de cristoe homem de bem a educao perfeita dada por sua mulher a estes pequeninos seres dotados de magnficas qualidades. Jocelyne era uma linda rapariguita morena, de grandes olhos azues, que deixavam adivinhar uma alma adorvel. O irmo, mais velho quatro anos, parecia-se com ela, mas o seu temperamento era mais vivo, mais ardente, e os seus gostos um tanto ou quanto aventurosos. Ambos sentiam uma profunda afeio pelos pais, que, por sua vez, eram doidos pelos pequenos, enchendo-os de mimos e cuidados. Onde vamos, pap? Perguntou Jocelyne, que se suspendera da mo do comandante. Ao rochedo do Gato, minha querida. Estendia a mo para um dos soberbos rochedos que estavam espalhados pela praia. Era duma configurao particular, parecendo-se com um grande gato corcovado. O mar, quebrando-selhe aos ps, arremessava a espuma at meio da rocha, que fora roendo lentamente.

Goulven corria frente, excitando Niquet. Quando ambos chegaram rocha, o co ficou imvel, de repente, como se tivesse descoberto caa. Ao mesmo tempo uma exclamao, proferida

por Goulven, chegava aos ouvidos do comandante. Ento! que ha? exclamou este ltimo. Oh! pap, um rapazinho que est ali, estendido!... Parece morto! Um desastre?... Espera ahi, Jocelyne, eu vou ver... Apressando o passo, o comandante chegou num instante ao stio onde o filho tinha parado. Na areia estava, efectivamente, estendida uma criana. Parecia ter dez ou doze anos. As feies eram delicadas e os cabelos dum louro cendrado. Com os olhos fechados, tinha mais o aspecto duma pessoa mergulhada no sono,do que dum morto. O comandante verificou isto logo ao primeiro olhar. Ao mesmo tempo, ficou surprehendido pelo facto de a criana, completamente despida, estar envolvida num forte cobertor de l escura.

Curvando-se sobre o pequeno, afastou o cobertor e escutou lhe o corao. Batia dbil e irregularmente. Vive! Deve estar desmaiado, visto que a tua voz, Goulven, e as minhas mos no o despertaram. Ser um nufrago? No me parece: o tempo tem estado calmo; ontem, no foi visto nenhum navio em perigo. De resto, o cobertor est absolutamente seco... O que preciso cuidar j deste pobre pequeno. Depressa, Goulven, corre adiante com Jocelyne, previne a tua me, e depois vai ver se o doutor L Mirec est em casa.

Dito isto, o comandante pegou no pequeno desconhecido, e, com um passo que o pequeno fardo tornava pesado, retomou o caminho percorrido havia pouco. No limiar da casa garrida, com a fachada coberta de folhagem, a senhora Orguin estava espera. O seu rosto delicado e meigo exprimiu uma profunda compaixo quando viu o pequenito inanimado, com a cabea a baloiar nos braos do marido, e, num gesto de ternura maternal, poisoulhe a mo na cabecinha loira. Pobre criana! Vamos deit-la no quarto dos hspedes, Gonzaga? Momentos depois, a criana repousava nos lenis muito brancos duma boa cama. Quando acabavam de o instalar, no mesmo estado de imobilidade, chegou o mdico. Ento! fazes agora descobrimentos sensacionais, Gonzaga? disse ele ao comandante, seu amigo de infncia. No compreendi muito bem o que Goulven me contou... Anda ver, Conan, tu compreenders. O doutor, logo que chegou junto da criana, examinou-a demoradamente. E, durante o exame, ia resmungando entre dentes, como era seu costume: Fraco, este pequenito... No entanto, muito bem construdo... Pobre criana, interessante! Mas est to desmaiado como eu! muito simplesmente um somo letrgico. Temos de o despertar, se for possvel!

Mas, passada uma hora, o excelente homem teve de reconhecer a inutilidade dos seus esforos. Meu amigo, nada feito! Que queres tu, meu velho Gonzaga?! No ha volta a dar-lhe. Acordar dum momento para o outro. Recebeu com certeza, um grande choque, ou sentiu uma emoo forte que determinou este estado. Ora, no dia seguinte, o rapazito continuava a dormir. No fim de oito dias, no tinha ainda dado sinal de querer acordar. Repousava socegado, com uma respirao regular e suave. As faces brancas estavam levemente tingidas de cor de rosa. Era uma criaturinha muito fina. Segundo todas as aparncias, pertencia a uma classe abastada. Nada viera esclarecer a sua identidade. O comandante tinha prevenido a justia, cujas investigaes, at data, no tinham sido coroadas de xito. Fora completamente posta de parte a ideia dum naufrgio; restava apenas a do crime. Mas nenhum indcio lhes fornecera uma pista. Se o maroto ao menos acordasse! dizia o doutor L Mirec, desolado por no poder fazer nada. Este sono esquisito, ha sintomas que o diferenciam do habitual sonoletrgico. Um caso curioso, muito curioso... mas do qual no comprehendo nada! Como era natural, as crianas estavam muito emocionadas com este acontecimento extraordinrio. Depois o seu bom corao interessava-se ardentemente

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pelo pobre pequeno. Sobretudo Jocelyne procurava sem cessar o que poderia fazer para acordar o rapazinho. A todos os instantes, ia ajoelhar-se diante da imagem de Nossa-Senhora de Lourdes, que estava no quarto de sua me, e dizia pondo as mos: Santssima Virgem, acordai-o!

Uma tarde era o oitavo dia aps o encontro da criana a senhora Orguin, muito atarefada a dobrar a roupa da barrela, disse pequenita, que andava a brincar no jardim com Niquet: vai ver se aquele pobre rapaz continua no mesmo estado, meu amorzinho. No tenho tempo de l ir agora. Jocelyne no esperou que lho dissessem duas vezes. Subiu, seguida do inseparvel Niquet, ao primeiro andar, e entrou no quarto dos hspedes, caminhando na ponta dos ps, como pequerrucha habituada a respeitar o sono dos outros. A criana continuava a dormir. Jocelyne parou no meio do quarto, e contemplou-o durante muito tempo. Depois aproximou-se do leito, e pousou levemente a sua mozita na do pequeno. -Acorda, peo-te meu menino! disse ela em tom suplicante. Deves ter muita fome Acorda depressa. Irei buscar-te um bom caldo. A Mathurina faz hoje sopa de carne. Niquet, pondo-se em p junto cama, pousou as patas no lenol, e passou a lngua cor de rosa pelas mos de Jocelyne e do rapazinho.

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Tu querias tambm que ele acordasse, diz, Niquet? Mas muito teimoso... Oh! Subitamente, a voz de Jocelyne embargou-se-lhe. O pequeno dorminhoco comeara a mexer-se, e as plpebras erguiam-se descobrindo uns grandes olhos cinzentos. Jocelyne correu para fora do quarto, gritando: Mam! mam! ele est acordado! Em seguida voltou para junto do leito. Os olhos do rapazinho estavam completamente abertos. Olhavam em volta do quarto, e poisaram-se, ainda vagos, em Jocelyne. Ah! como eu estou contente! exclamou a pequenita. Julgava que no queria acordar. No olhar da criana no se manifestava nenhuma comprehenso: era indeciso, como enevoado. A senhora Orguin chegava a toda a pressa, seguida pelo marido e por Goulven. At que emfim, meu pobre pequeno! disse o comandante, pegando nas mos do rapazinho. Que sono esse!... Guenola, preciso dar-lhe imediatamente os reconfortantes receitados pelo doutor, no caso de acordar. Sim, vou j meu amigo, mas antes de tudo quero beijar esta pobre criana. E, maternalmente, depz um beijo na testa do pequeno desconhecido. Nada se moveu na fisionomia da criana. Os olhos, sempre vagos, continuavam a olhar para

os membros da famlia Orguin, agrupados em volta do seu leito. Bebeu docilmente o lquido reconfortante que lhe trouxe a senhora Orguin. Parecia muito fraco, mas o olhar tornava-se mais vivo de minuto para minuto. No entanto, nenhum som lhe sahiu dos lbios. E o dr. L Mirec, prevenido por Goulven, chegava pressa. Logo entrada, exclamou com o seu vozeiro rabugento: Ento! meu rapaz, como vai isso? A criana olhou para ele com ar de medo. O doutor aproximou-se, deu-lhe umas palmadinhas na face, tomou-lhe o pulso... No tem mau aspecto, o mariola. Mas precisa de socego, parece um tanto aturdido... Como te sentes, meu pequeno? A criana continuava a olhar para ele.Mas nem um vislumbre de comprehenso lhe transparecia nos belos olhos, que longas pestanas claras sombreavam. No comprehendes?... Ser por acaso surdomudo?... A no ser que no saiba o francez. Voltando-se com movimento brusco, o doutor deitou ao cho uma cadeira que estava atraz dele. O pequeno desconhecido estremeceu. Bom, no surdo... por consequncia, nem mudo. Idiota, tambm no o , com semelhantes olhos. Logo... estrangeiro... Inglez, provavelmente, tem typo disso... Gonzaga, fale-lhe, a ver. O comandante fez uma pergunta em inglez.

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Mas a criana egualmente pareceu no ter comprehendido. Tentou ento o alemo: o resultado foi idntico. Esta agora! de que terra, afinal, ser este rapaz? murmurou o doutor desanimado. Emfim, deixem no por hoje; veremos amanh se ha meio de tirar alguma coisa dele.

Retirou-se, porque o esperavam outros doentes, deixando a criana aos compassivos cuidados dos Orguin, muito felizes por verem finalmente terminado este sono inquietante.II

Um caso notvel!... Um caso notvel a valer! Era o dito predilecto do dr. L Mirec, todas as vezes que lhe falavam do pequeno estrangeiro. Tinha verificado, efectivamente, depois de numerosas experincias e observaes, que a criana, nem surdo-mudo nem idiota, como o declarara no primeiro dia, no conhecia, comtudo o uso da palavra. Mas era, no entanto, capaz de o adquirir ou de o recuperarcomo depressa se demonstrou, quando o viram repetir com interesse as palavras pronunciadas volta dele, como o poderia fazer uma criana pequenina. E os progressos eram, extremamente rpidos. Era uma criaturinha duma inteligncia rara. O olhar tinha uma expresso profunda

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e muito recta. Parecia meigo, bem educado. A todos os membros da famlia Orguin e ao bom doutor testemunhava uma afeio pouco expansiva mas singularmente profunda. Jocelyne tornara-se a sua preferida. Por seu lado, a pequenita procurava encontrar o que podia dar prazer a Gonzaga, porque, na ignorncia do seu nome verdadeiro, deram-lhe o do comandante. A justia no descobria, comtudo, nenhuma pista. O senhor Orguin tinha feito aparecer, em numerosos jornais francezes e estrangeiros, a fotografia da criana, com uma notcia relativa s circunstncias em que fora encontrada. Mas a sombra mantinha-se impenetrvel em volta do mystrio. Seria um abandono criminoso? Tudo o levava a acreditar. Segundo a opinio do dr. L Mirec, corroborada pelos colegas que tinham examinado a criana, esta deveria ter sido adormecida com auxlio dum mysterioso narctico, que lhe tirara toda a recordao do passado, juntamente com o uso da palavra. E mesmo quando Gonzaga, passado pouco tempo, chegou a falar to correctamente como os que o rodeavam, sem o mais ligeiro sotaque que o denunciasse como estrangeiro, no encontrou nunca, ao menos pelo espao duns segundos, a memria da sua vida anterior ao despertar na casa Orguin. Quando reconheceram de que provavelmente no chegariam a fazer luz sobre este enigma, o

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comandante, que ia partir para um cruzeiro nos mares da China, disse mulher: Que faremos deste pequeno, Guenola? ela sorriu, fitando-o com terna malcia: Naturalmente, Gonzaga, vamos entreg-lo Assistncia Pblica! O homem pz-se a rir. Sim, naturalmente! Mas a mais desolada no seria a minha querida Guenola, que tem tanta afeio a esta criana? -E o meu bom Gonzaga, que, voltando da China, ficaria pesaroso por o no encontrar? Sim, confesso-o, j tenho amor a este pequeno. E encantador. Goulven e Jocelyne adoram-no. Mas... ns no somos ricos, Guenola! Ora! se chega para dois, chegar para trez, meu amigo! Farei prodgios de economia, has-de ver. E tenho um pressentimento de que este pequeno Gonzaga, to bom e to inteligente, nos honrar um dia. O desconhecido foi, pois, definitivamente adoptado pela famlia Orguin.

Baptisaram-no sob condio, e instruiram-no para a Primeira Comunho, que fez com grande fervor. No mez de Outubro, a senhora Orguin levou-o juntamente com Goulven para o colgio dos Padres, em Vannes, onde se tornou em breve um dos mais brilhantes alumnos. Gostava ardentemente de trabalhar, e foi para

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Goulven, um tanto preguioso, um salutar estmulo. A sade fortificava-se; Gonzaga tornava-se um belo rapazinho, esbelto e nervoso, muito distinto de fisionomia e de maneiras, O seu typo inglez e a aparncia aristocrtica conquistaram-lhe a alcunha de Lordezinho. O temperamento era um tanto frio para com os estranhos, e bastante altivo.

No ignorava a que ttulo se encontrava em casa dos Orguin. O comandante julgara prefervel dar-lhe a conhecer a sua situao, com o fim de evitar mais tarde uma revelao, que seria ainda mais penosa para o adolescente ou para o mancebo do que para a criana sem experincia da vida. Mas Gonzaga sentia um vivo pesar por no pertencer aos Orguin por laos do sangue, e sofria no seu orgulho, por se lembrar de que no passava duma criana abandonada.

Tornar-se-hia facilmente bravio e misanthropo, se no fosse o alegre Goulven e no tivesse os ternos incitamentos da senhora Orguin e de Jocelyne. Mas a religio, sobretudo, devia ajud-lo, cada vez mais, a vencer esta susceptibilidade to forte, que lhe causava uma profunda amargura. Era alem disso uma criaturinha enrgica, muito leal e cheia de delicadeza. No sabia que mais fazer para testemunhar aos seus protectores a sua gratido, sem frases, sem grandes demonstraes, e era o primeiro sempre a oferecer-se quando um deles tinha necessidade dalgum servio.

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Que carreira queres seguir, Gonzaga? Perguntou um dia o comandante, no regresso dum dos seus cruzeiros. O rapazito respondeu resolutamente: Queria uma em que eu podesse ganhar dinheiro em breve, para lhes no ser pesado muito tempo. Isso, meu pequeno, no comtigo! replicou o senhor Orguin. Consideramos-te como nosso filho, e queremos que escolhas com toda a liberdade de esprito. Ficaramos muito descontentes e muito magoados se procedesses doutra forma. Est comprehendido, hein? Gonzaga, muito comovido, fez um gesto afirmativo. Depois o comandante repetiu a pergunta. Gostaria muito de ser engenheiro, respondeu Gonzaga sem hesitao. Muito bem! Espero que triumphes, porque as matemticas so o teu forte. Trabalha a valer, meu rapaz, e depois iremos atacar a Central ou a Politcnica, tua escolha. Jocelyne, que estava presente, fez uma ligeira careta, e disse, sacudindo os caracis escuros: Porque no queres tu ser marinheiro como Goulven, ou ento oficial? to bonito! No, no serei mais que um vulgar paisano, Jocelyne, respondeu ele pegando-lhe na mo e envolvendo-a num olhar afectuoso. Quero ser muito rico. Porqu, Gonzaga?

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Porque quero poder proporcionar mais tarde, mam e a ti, um grande bem-estar, quero que sejam muito felizes, e que tenham tudo o que lhes der prazer, em vez de se privarem de muitas coisas, como so obrigadas a fazer. Jocelyne saltou-lhe ao pescoo com a expontaneidade que a tornava to encantadora. Como s gentil, Gonzaga! Mas v l; se tens vontade de ser oficial, no deves pensar em ns. Dentro em pouco, poderei trabalhar para ganhar a minha vida, e nesse caso a mam descansar, e eu heide pagar-lhe vestidos novos e tomaremos outra criada. Gonzaga, que j tinha um pouco mais de experincia, sorriu replicando. Irmzinha, esse papel pertence-me, e, se Deus quizer, eu que transformarei a vossa existncia.III

Jocelyne, Gonzaga e Goulven estavam reunidos na modesta salinha da casa Orguin. Cahia a tarde. Jocelyne estava sentada ao p da janela, de mos cruzadas na saia preta, cabea encostada ao vidro. Cercava-lhe os belos olhos azues uma orla escura produzida pela fadiga, e em seus finos lbios havia um vinco doloroso. Gonzaga, de p, em frente dela, encostado ao vo da janela, olhava vagamente para fora, e, de tempos a tempos, voltava

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para a irm adoptiva os seus grandes olhos cinzentos, que nesse momento tomavam uma expresso de meiguice grave e afectuosa. Tambm ele trazia na fisionomia distinta e delicada a expresso dum profundo desgosto, que da mesma forma se lia na de Goulven, cujo lento passeio atravs da sala denotava um nervosismo fora de costume. Na manga do seu uniforme de aspirante e na do casaco de Gonzaga viam-se braais de luto, o vestido de Jocelyne era guarnecido a crepe. Na vspera, tinham acompanhado sua me sua ltima morada. A senhora Orguin extinguira-se lentamente. A sua sade, bastante frgil, fora pouco a pouco declinando aps a morte do marido, occorrida dois anos antes. Muito fraca, no pudera suportar o novo golpe produzido pela falncia duma casa bancria, em que se sumia quase toda a sua pequena fortuna. Morrera cheia de resignao e conformada com a vontade de Deus, dizendo aos trez filhos reunidos volta dela: Amai-vos sempre muito, meus queridos! Jocelyne e seus irmos no podiam, porm, entregar-se sua dor, Goulven, que felizmente se encontrava em Brest no momento em que o triste acontecimento se dera, tornara a partir nessa mesma noite e embarcava dali a dias para um cruzeiro. Gonzaga ia occupar o lugar de engenheiro que acabava de arranjar em Hespanha. Era preciso, pois, naquelas poucas horas que lhe restavam para estarem juntos, deliberarem acerca das disposies

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a tomar. Da modesta fortuna do comandante e de sua mulher, restava apenas uma quantia insignificante. Era, para Jocelyne, a pobreza completa, como ela observou, com tranquilidade quando Goulven lhe repetia as explicaes dadas nessa mesma manh pelo notrio. E que tem isso? trabalharei. No coisa para aterrar ningum! concluiu ela. Gonzaga protestou com vivacidade: Trabalhar! E para que esto aqui os teus dois irmos? Nunca permittiremos isso, no verdade, Goulven? Certamente que no! Farei economias do meu soldo; Gonzaga, que vai ter um ordenado muito bonito, completar a quantia necessria que te permitta viver aqui modestamente... Estendeu uma das suas pequeninas mos a cada um dos rapazes. Brilhavam-lhe nos olhos lgrimas de emoo. Sois uns irmos incomparveis! Obrigada, meu querido Gonzaga, meu bom Goulven. Mas nunca aceitarei isso. Sou nova, com sade, posso e devo trabalhar. para mim uma questo de dignidade, comprehendeis? No poderei suportar a ideia de aceitar os vossos magros recursos pecunirios, quando nada me impede de ganhar a minha vida. Ganhar a tua vida? Mas como, no me dirs? Pensei o seguinte: Mrs. Smatten, aquela ingleza velha que mora na vila Branca, e que se

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afeioou a mim, dizia-me ha uns dias que uma das suas amigas lhe pedia uma preceptora franceza, no para ela, mas para uma famlia nobre do seu pas. Tratava-se de continuar a instruo duma pequenita de sade delicada, e de tocar s vezes com outra menina, prima desta. Oferecem um ordenado muito bom. Porque me no apresentarei eu? Mrs. Smatten daria boas referncias, e... Gonzaga protestou novamente: Professora, tu! No, impossvel! No o permittiremos nunca, Jocelyne! Sim, ho-de permittir, porque ho-de reconhecer que eu sou muito razovel procedendo assim. Nem mesmo se sabe quem essa gente resmungou Goulven, que, imobilizado por um momento, continuava o seu passeio atravs da sala. Pelo que diz Mrs. Smatten, so pessoas muito distintas. Pertencem alta aristocracia ingleza. O chefe da famlia o conde de Rudsay, o pai da pequenita de quem a professora tem que se occupar especialmente. ele doente, segundo parece, e vivo. a irm que desempenha as funes de dona de casa. Habitam todo o ano em Rudsay-Manor, onde levam uma vida muito retirada. Eis tudo o que dele sabe Mrs. Smatten. Mas a amiga dela, que uma pessoa sria, afirma-lhe que esta famlia no dava motivos a qualquer crtica. O que no impede que possam ser muito desagradveis e dar-te uma vida insuportvel,

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disse Gonzaga, em cuja fronte se cavava uma grande ruga de contrariedade. Alem disso, s muito nova para essa dura profisso de professora. Muito nova, com dezoito anos! , para uma nica alumna, imagino que a profisso no ser muito dura, Gonzaga. Isso depende do carcter da criana e tambm muito do dos pais. Evidentemente. Mas no ficarei l presa, e, se essa situao no me agradar, estarei sempre a tempo de procurar outra. Vejamos, Gonzaga, diz-me francamente se no concordas com este meu projecto. Havia-se levantado, e, de mos postas nos hombros do seu irmo adoptivo, contemplava-o bem de frente. Tens j o velho hbito de dizer sempre a ltima palavra! disse Gonzaga num tom em que se esforava por mostrar irritao. Pois bem! acho-te muito corajosa, sem dvida... mas tu s a minha irmzinha querida, e no posso suportar a ideia de que estars sob o domnio de estranhos, que te pagaro, tendo o direito de te exigir servios. Uma crist deve estar promta para tudo, e submetter-se vontade divina, querido Gonzaga. Esta situao parece-me vantajosa, vou experiment-la. Uma nica coisa me no agrada: essa famlia protestante. Pedirei a Mrs. Smatten que pergunte se nos arredores existe uma igreja catlica

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onde eu possa cumprir os meus deveres religiosos. O meu consentimento depender da resposta que lhe derem, visto que, isolada como estarei, hei-de precisar, mais do que em qualquer outra parte, dos socorros da minha religio. Sim, isso indispensvel! Mas asseguro-te, Jocelyne, que bem contra vontade que te deixaremos tomar essa resoluo! Ah! certamente, irmzinha! accrescentou Goulven, aproximando-se e deitando o brao ao pescoo de Jocelyne. Quando me encontrar a bordo, a minha tristeza seria menos amarga, acredita, se eu pudesse saber que estavas aqui, na querida casa onde me parece que ho de ficar sempre as almas de nossos pais. Apesar disso nem mesmo aqui poderia ficar, meu pobre Goulven! disse ela, dando um beijo na testa do irmo. O notrio disse que provavelmente seria preciso vend-la, para cobrir as ltimas despesas. Infelizmente, verdade! suspirou Goulven. Ficaram silnciosos alguns momentos, na obscuridade que avanava. Envolvia-os uma pesada tristeza. Gonzaga aproximara-se da outra janela e apoiava a fronte contra a vidraa. Murmurou: Vender a casa!... a querida casa onde fui recolhido, onde todos foram to bons para mim! Ah, no ser eu rico para impedir isto, para te dizer, minha Jocelyne: Nunca deixars de estar aqui, em tua casa!

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A mo da rapariga pegou na dele, numa tremura:

Obrigada, meu bom irmo! Sim, ser para ns uma dor de corao ver a nossa pobre casinha passar para mos estranhas, no possuir j este logar de reunio onde tudo nos falava dos nossos pis muito queridos. Quando poderemos novamente encontrar-nos juntos?... e onde? Deslizavam-lhe lgrimas pelas faces. Era corajosa, a pobre Jocelyne, mas tinha tambm um corao afectuoso e sensvel, que sofria profundamente. Goulven contemplava-a, desolado. Gonzaga mordia furiosamente o bigode loiro. Ah! como se sujeitaria de boa vontade a quaesquer trabalhos, contanto que essa irmzinha muito amada, e to encantadora, no tivesse que suportar mais aquele sofrimento. Ah! mas que podia ele fazer! E esta impotncia irritava secretamente Gonzaga, cujo temperamento, medida que se fazia homem, se afirmava bastante autoritrio, bastante imperioso, e disposto a derrubar fora os obstculos que se opuzessem sua vontade. Apre! aqui est um carcter que seria intratvel, se no tivesse religio! dizia abertamente o dr. L Mirec, muito afeioado a Gonzaga, cujas belas qualidades morais e corao generoso apreciava, pois o jovem era duma grande afectividade, sob a aparncia fria e concentrada de que raras vezes se afastava fora da sua famlia adoptiva.

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Mas Jocelyne respondia: Como pde dizer isso, doutor! Autoritrio, ele!Pois creia que faz tudo quanto eu quero! O bom doutor, piscando os olhos, resmungava ento, entre dentes: Olha a admirao! E quem havia de desobedecer-te, a ti, minha pequena fada!

Jocelyne, tomada a resoluo de tentar a carreira de professora, desejava p-la imediatamente em prtica, para no correr risco de perder a coragem. Por intermdio de Mrs. Smatten, pz-se em ligao com lady Elen Marcill, a irm de lord Rudsay. Depois duma troca de correspondncia, Jocelyne foi definitivamente aceite. Deram-lhe a garantia de que poderia cumprir os seus deveres religiosos na capela catlica de Stampton-Court, uma propriedade situada a seis kilmetros de Rudsay, e pertencente a catlicos. Com o corao carregado de tristeza, comeou os preparativos de partida. O dr. L Mirec recebia em sua casa tudo quanto ela desejava conservar da modesta moblia de seus pais, visto a casa estar j vendida a um negociante de Vannes. O bom homem, padrinho de Jocelyne, a mulher e as filhas, que o igualavam em bondade, tinham insistido com a donzela para que fosse instalar-se definitivmente

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em casa dele. Recusara, agradecendo-lhes com um reconhecimento enternecido. Como v, padrinho, tenho boa sade, posso e devo trabalhar. Sim, sim, mas ver-te ir assim nova para casa de estranhos! Ao menos, se l no estiveres bem, no teimes em ficar. E depois cuida de ti. Jocelyne tranquilizava o bom homem, promettia escrever muitas vezes. A amizade fiel de que a rodeavam em Kersanlic era uma doce consolao para ela, nestes dias de tristeza, em que a partida dos seus irmos a deixava completamente isolada, mas devia tornar-lhe tambm mais doloroso o momento da partida. Deixou Kersanlic num dia sombrio e chuvoso. De manh, depois de ter ouvido missa, rezara durante muito tempo na sepultura dos queridos mortos. De corao despedaado, mas resignada, voltara depois para casa dos L Mirec, onde a esperava uma carta de Gonzaga, muito afectuosa e reconfortante, em que lhe suplicava ainda, como o fizera no momento de partir, que lhe no occultasse, nem a Goulven, os desgostos que por acaso tivesse na sua nova situao. E s 3 horas tomou o comboio para Calais, acompanhada estao pelos amigos que deixava em Kersanlic.

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IV Foi por um tempo chuvoso e frio que Jocelyne chegou ao apeadeiro dHarclife, que servia RudsayManor. No cais esperava-a um criado velho, que, ao v-la, avanou com presteza. Miss Orguin? perguntou em tom respeitoso. ela respondeu afrmativamente, no mais puro inglez. A senhora Orguin falava admiravelmente essa lingua, que ensinara aos filhos, mesmo quele que adoptara. E este aprendeu a com tal facilidade, que mais se arraigou no esprito do comandante e no de sua mulher a ideia de que o rapaz era inglez. O criado pegou na pequena bagagem da donzela, indicou-lhe uma elegante calea que esperava fora da estao e foi levantar a mala. Feito isto, o carro metteu por uma estrada larga entre charnecas, semeadas de blocos de granito. O aspecto da regio era bravio e triste, sobretudo nessa tarde sombria. Um vento spero do mar curvava os carvalhos que, na orla da charneca, limitavam direita o horizonte. Algumas casas de miservel aparncia elevavam-se aqui e alm, ao p dum campo rido, cujo producto no devia impedir que os seus proprietrios morressem de fome. Num cotovelo da estrada, o mar pareceu vista de Jocelyne. Estava soturno e agitado, arremessando

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as vagas cheias de espuma contra os escolhos e as ribas rochosas, chanfradas e escavadas por toda a parte. Aparecia uma ilhota a pequena distncia da terra. Viam-se entre os pinheiros edifcios considerveis, que pareciam em ruinas. Novo cotovelo da estrada. Desta vez, Jocelyne viu erguer-se, no declive abrupto da riba, uma construo imponente, massia e escura, flanqueada por grandes torres. Cercava-a um parque. A donzela pensou: com certeza Rudsay-Manor. E o seu corao, j to oprimido, apertou-se mais ainda, pois que o aspecto dessa habitao, num tal quadro e sob aquele cu carregado de nuvens sombrias, era quase sinistro. A carruagem penetrou numa alameda de carvalhos, torcidos pelas tempestades do largo. Parou num imenso ptio, em frente dum prtico de granito negro. Dois criados de libr escura estavam ao fundo da escada. Um deles veio abrir a portinhola, e, convidando Jocelyne a segui-lo, precedeu-a sob o prtico, at ao alto da escadaria de pedra, muito ampla. A donzela encontrou-se num hall enorme, cuja abbada, com nervuras de pedra, era sustentada por pilares de granito. Mesmo ao fundo, via-se uma escada magestosa, igualmente de granito, que conduzia a uma galeria muito larga e muito alta, com o cho de mosaico, as paredes forradas de tapearias de Flandres e guarnecidas de retratos.

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A luz baa passava com dificuldade atravs dos vitrais antigos das vidraas, e as extremidades da galeria ficavam mergulhadas na sombra. Desta sombra Jocelyne viu surgir uma figurinha que se aproximou dela com passo hesitante. Dois grandes olhos franjados de pestanas loiras levantaram-se para a donzela, e uma voz infantil, muito suave, disse-lhe em francez: A menina Orguin? Eu sou Amy... lady Amy Marcill. A minha alumnazinha? Estou encantada por a conhecer, meu amor. E, inclinando-se, Jocelyne pegou na mo que a criana lhe estendia. Era uma pequenita de dez anos; uma deliciosa criaturinha, cujo rosto delicado, excessivamente branco, era emoldurado por espessos anis dum ruivo doirado. Os olhos, muito escuros, impressionaram logo Jocelyne pela sua gravidade e profundeza, um tanto melanclica. A criana parecia de natureza delicada, e adivinhava-se a sua compleio dbil sob o vestido de l branca, um tanto folgado, que a envolvia. Eu tambm estou muito contente! disse ela num francez ainda indeciso. Tinha medo de ver uma pessoa feia, com um ar intratvel. Mas muito bonita, e agrada-me desde j... Pegton, v frente, sou eu que levo miss Orguin ao seu quarto, accrescentou ela, dirigindo-se ao criado, desta vez em inglez.

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Pegou amavelmente na mo de Jocelyne e conduziu-a, atravs de compridos e sombrios corredores, at uma porta que abriu. este o seu quarto, minha senhora. mesmo ao p do meu. Espero que lhe agrade... Era um largo compartimento iluminado por duas grandes janelas. Ornavam-no belos mveis antigos, tapearias pesadas. Emanava desse quarto, que o dia triste e chuvoso tornava ainda mais escuro, uma impresso de conforto um pouco severo. No ha dvida, agrada-me muito, e estarei aqui admiravelmente, disse Jocelyne. E qual o quarto da menina Amy? Aqui prximo, minha senhora. Veja: esta porta d para a sala de estudo que separa o seu quarto do meu... Nero, vae-te embora! Estas palavras dirigiam-se a um enorme co dinamarquez, que havia entrado atraz da donzela e de Amy, e estendia a sua poderosa cabea. Jocelyne no pudera evitar um movimento de recuo a esta apario inesperada. ele no mau para aqueles de quem eu gosto, afirmou a pequenita, fazendo de passagem uma festa ao co, que se afastou com humildade. E para os outros, Amy? Para os outros, sim! Se eu o deixasse, ha muito tempo que teria devorado Rarvri. Quem Rarvri?

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o ndio do pap. No sei porqu, detestei-o sempre, e Nero como eu. Ento a Amyzinha detesta algum? inquiriu Jocelyne, poisando a mo acariciadora na cabeleira ruiva. Sim, no posso deixar de o fazer, com respeito a Rarvri... uma coisa m, no ? O seu olhar srio erguia-se para Jocelyne. Sim, uma coisa m. Procuraremos, no entanto, modificar essa disposio. Amy abanou a cabea. A respeito dele, nunca ser possivel. Francs como eu. Quando o lobriga ao longe, muda de caminho para no passar junto dele. Vou deix-la agora, minha senhora, para que possa descansar. Sara, a criada de quarto, vai trazerlhe ch. Estendeu a mo a Jocelyne. O seu lindo rosto exprimia uma hesitao. Por fim, perguntou: Por quem est de luto pesado, minha senhora? Por minha me, Amy, respondeu Jocelyne em voz tremente. Ah! como deve estar triste! Tambm eu perdi a minha me, ha trez anos. Mas tenho o pap que gosta muito de mim! Tentarei consol-la, amando-a muito. quer beijar-me, minha senhora? Oferecia a fronte, em que Jocelyne, muito comovida por esta sympathia de criana, deu um beijo.

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Agora vou-me embora. At noite, ao jantar. Mal Amy sahira, entrou uma jovem criada de quarto, que trazia o ch e lhe ofereceu os seus servios. A donzela agradeceu, recusando. Ficando, s, tratou de se instalar. Preferia no ter muitas folgas, para se deixar como que aturdir no comeo desta sua nova existncia, que era bem pesada para a sua alma dolorida, embora o conhecimento, que acabara de travar, com essa criana encantadora, confiada aos seus cuidados, a tivesse aliviado muito das suas inquietaes. Quando arrumou tudo, sentou-se no vo profundo duma das janelas e pz-se a rezar o seu rosrio, afim de invocar a proteco da Rainha do cu nesta nova phase da sua vida. Nenhum ruido vinha perturbar o silncio da imensa habitao a no ser o bramido surdo das ondas que se quebravam contra as rochas onde tinham construdo Rudsay-Manor. As janelas do quarto de Jocelyne davam para o mar. Atravs do vu do crepsculo, podia descortinar ainda a ilhota que tinha notado ao chegar perto do castelo. Depois de escrever algumas linhas para anunciar a Goulven e a Gonzaga que tinha chegado bem, Joceline tratou de se vestir para o jantar, e j estava pronta quando Sara apareceu, a fim de a conduzir sala. Os corredores imensos estavam brilhantemente iluminados, bem como o salo sumptuoso e severo em que Jocelyne entrou.

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Veio ao seu encontro uma senhora loira, alta, muito distinta, mas de feies apagadas, e apresentouse ela prpria: lady Ellen Marcill. Junto ao fogo, em que ardia um magnfico lume de anthracite, estava sentado numa poltrona um homem grisalho, de rosto magro mas fino, duma palidez terrosa. Levantou-se, dizendo com uma frieza delicada: O conde de Rudsay deseja-lhe que seja bem vinda sob o seu tecto, minha senhora. Espero que tivesse feito boa viagem! Jocelyne agradeceu, emquanto pensava, para comsigo, que a fisionomia de lord Rudsay, e sobretudo o seu olhar dissimulado, no lhe eram simpthicos primeira vista. Minha filha disse-me h pouco que a tinha visto, e que lhe agradava muito, continuou. Tenho muito prazer nisso, tanto mais que a minha pequena Amy, muito amimada, nunca encontrou uma preceptora absolutamente a seu gosto. Visto que abordamos este assumto, devo dizer-lhe desde j, minha senhora, que o trabalho desta menina tem de ser muito leve. Deve ter notado que Amy de aparncia delicada. No entanto, nunca esteve gravemente doente; mas os mdicos recomendaram sempre que lhe evitassem as fadigas fsicas ou intelectuais. O seu papel, junto dela, deve ser principalmente o duma boa amiga, encarregada de a instruir um pouco, mas distraindo-a o mais possvel.

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Conformar-me-hei com as suas instrues, mylord... Um ruido de porta que se abria interrompeu Jocelyne. Amy entrou, e, atrs dela, apareceu uma rapariga baixa e magra, que trajava um vestido claro, muito simples. Os cabelos castanho-escuros, finos e leves, extraordinariamente abundantes, caam torcidos sobre a nuca e pareciam fazer-lhe inclinar a cabea fina. Madeixas levemente onduladas emolduravam-lhe o rosto de tez mimosa, e feies delicadas. De toda ela emanava uma impresso de distino natural, de discreta elegncia. Lady Ellen apresentou: Miss Orguin... Minha sobrinha Frances Marcill. Lady Frances estendeu a mo a Jocelyne. Esta encontrou o olhar grave e frio de dois grandes olhos cinzentos, muito belos. F-la estremecer uma impresso singular: este olhar no lhe era desconhecido. Frances, num francsz correcto, dirigiu algumas palavras preceptora de sua prima. Amy, depois de ter cumprimentado amavelmente Jocelyne, foi sentar-se junto do pai e encostava-lhe meigamente a cabea ao brao. Lord Rudsay acariciava-lhe a face branca, e Jocelyne ficou impressionada com a expresso de ardente ternura que transformava aquela fisionomia. Na sala de jantar a conversao decorreu desanimada.

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Lord Rudsay falava pouco, sua irm ainda menos, e lady Frances absolutamente nada. Parecia engolfada em qualquer sonho longnquo, e conservava cerrados os clios castanhos, como para ocultar vista os segredos dos seus pensamentos. De vez em quando o tio dirigia-lhe a palavra. Respondia brevemente, sem olhar para ele, e recaa no seu devaneio. quer tocar alguma coisa, minha senhora? Perguntou Amy quando, depois de jantar, se encontraram todos reunidos no salo. Eu gosto tanto da menina! Com muito prazer, minha queridinha. Miss Orguin no estar fatigada, Amy? Observou Francs. Estava sentada aparte e folheava uma revista. Jocelyne encontrou-lhe o olhar srio e profundo, que novamente lhe causou uma impresso de singular doura. Oh! no, no estou fatigada, mylady! respondeu Jocelyne com ar sorridente. Tocarei de muito boa vontade, se lady Marcill e lord Rudsay o permittem. Mas certamente! Sou um fervoroso melmano, disse lord Rudsay, emquanto sua irm esboava um vago gesto de assentimento.

Jocelyne sentou-se ao piano. Era a primeira vez, depois da morte da me, e as lgrimas subiram-lhe aos olhos, recordao dos seres passados na modesta sala, l longe, junto da me querida,

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que tanto gostava da maneira de tocar to leve e to profundamente expressiva da sua Jocelyne. E Goulven, e principalmente Gonzaga, que lhe dizia: Toca outra vez, toca sempre, minha Jocelyne, nunca me cansarei de te ouvir. Reteve as lgrimas e procurou reprimir a sua emoo, visto que, no meio desses estranhos, no tinha agora a liberdade de se expandir. Tocou a Noite de Schumann, com um sentimento raro. Quando terminou, lord Rudsay felicitou-a pelo seu talento, e Amy, que a escutara com atteno religiosa, declarou que muito desejaria tocar to bem como a menina Orguin. Queria ser uma grande artista, confessou a Jocelyne. Tem muita vocao, accrescentou lord Rudsay. Infelizmente, tem sido mal cultivada at hoje. Mas creio que, desta vez, estar em boas mos. Devia reconhecer-se que ao conde no faltava, apesar do seu ar frio e um tanto secco, urbanidade e cortezia. Porque sentia ento Jocelyne, na sua presena, uma impresso desagradvel? Lord Rudsay, levantando-se com dificuldade da sua poltrona, despediu-se de todos. Retirava-se todas as noites para os seus aposentos muito cedo. Emquanto ele caminhava, arrastando as pernas quase paralisadas encostado ao brao dum criado,

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Amy deu gentilmente as boas-noites a sua tia e a sua prima. Esta, deixando o ar absorto que tivera constantemente, mesmo emquanto Jocelyne tocava, deu um grande beijo na fronte da pequenita. Boa noite, querida. Ficaste encantada com o mimo desse trecho que a menina Orguin tocou to deliciosamente... Deixe-me felicit-la por minha vez, minha senhora. Ao pronunciar estas palavras, estendia a mo a Jocelyne: Espero que consinta algumas vezes em acompanhar a executante bem pouco hbil que eu sou?...

Oh! minha senhora no acredite! protestou Amy. ela toca muito bem! Mas ouvimo-la poucas vezes, pois gosta de tocar sozinha, nos seus aposentos, que so na torre da Rainha, longe dos nossos. Ouvir-me-ha talvez mais vezes, Amy, se eu tocar com a menina Orguin. Estarei sempre, e com o maior prazer, sua inteira disposio, mylady, declarou Jocelyne com a sua amabilidade habitual. Veremos isso um destes dias. Boa noite, minha senhora. Desejo que esta primeira noite em RudsayManor seja boa e tranquila para si. Ao retirar-se para o andar superior com a sua preceptora, Amy perguntou:

Como acha a minha prima? Parece-me encantadora, Amy.

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Sim, ela muito boa, e bonita tambm; mas est quase sempre pensativa e nunca se ri. Talvez tivesse tido grandes desgostos?

Sim, perdeu a me ha dez, doze anos, no me lembro bem. ela era muito pequenina e o irmo morreu tambm pouco tempo depois. No seu ntimo, Jocelyne pensou que a gravidade melanclica de lady Frances devia ter outra causa, pois lhe parecia pouco verosmil que a perda dessa me e desse irmo tivesse deixado uma impresso to indelvel numa criana de seis anos. Ao fazer a orao, nessa noite, a sua aco de graas foi mais longa. No sabia ainda, sem dvida o que lhe poderia reservar o seu papel naquela casa, mas, primeira vista, possua j duas fortes sympathias: Amy e lady Frances. A criana mostrava-se disposta a ganhar-lhe afeio, e a prima parecia sria e boa. Era uma grande felicidade para uma transplantada como Jocelyne, e, j corajosa por sua natureza, encarava o futuro sem demasiado receio, nesta primeira noite que passava na residncia feudal dos condes de Rudsay.V

Era bem feudal, na verdade, esse velho Rudsay-Manor, como Jocelyne pode observar no dia seguinte, percorrendo-o com Amy, que desejava

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desde o primeiro dia, fazer-lho conhecer nas suas partes principais. Era uma arrogante e soberba habitao, que outrora devia ter sustentado muitos assaltos, e que vira entre os seus muros espessos, sucederem-se muitas geraes de Marcill. Atravs dos imensos corredores, nas salas de enormes propores, a branca Amyzinha parecia ainda mais frgil, quase imaterial. Conhecia a histria dos seus antepassados, e contava-a a Jocelyne, emquanto percorriam os sales dum luxo severo, os quartos que poderiam conter uma das pequenas habitaes modernas. Nessa antiga residncia existiam muitos recantos mysteriosos, como Amy segredou sua preceptora, acrescentando que algumas vezes tinha medo, noite, quando pensava nisso. Ter medo, porqu, minha queridinha? disse Jocelyne. Que que a pode assustar? No sei, mas tenho medo, eis tudo. preciso raciocinar, Amy, e sobretudo convencer-se de que nada lhe acontecer sem a permisso de Deus. Nada to eficaz como este pensamento para nos tornar corajosos, mesmo num perigo real. O olhar profundo da criana ergueu-se para Jocelyne. Isso verdade. Procederei assim, minha senhora. E tambm, quando vir Rarvri, direi comigo: ele no pode fazer-me mal sem que Deus

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o permita. E, se Deus o permittir, porque ento isso bom para mim. Jocelyne passou-lhe a mo caridosamente pelos cabelos loiros, sorrindo ao rostoznho delicioso. Est muito bem, Amy. Deus ha-de gostar muito da menina... E agora, onde me conduz? galeria, para lhe mostrar os retratos da nossa famlia. Vai ver lord George, o primeiro conde de Rudsay. No gosto nada dele; quase me causa medo! Jocelyne, deixou-se conduzir, e comeou a descer atrs da criana a ampla escada de granito. Mas Amy parou num patamar e disse: Vou mostrar-lhe a capela. Na extremidade dum corredor lageado, uma porta de carvalho de duplo batente abria-se para o interior do pequeno templo, iluminado pela luz velada, um pouco mysteriosa, que descia dos vitrais. primeira vista, nada distinguia esta capela dum santurio catlico. Os Marcill pertenciam efectivamente ao ramo da igreja anglicana que se chama o ritualismo, e que tende, cada vez mais, a aproximar-se do catholicismo, nas suas cerimnias, no seu culto exterior, nas suas prticas de devoo. Mas onde estava ele, o Deus occulto, o Rei do Amor que se encontra nos tabernculos catlicos, que desce aos coraes dos seus fiis, que infunde verdadeira igreja uma vida to intensa que todas as perseguies, todas as defeces no fazem mais que fortific-la e engrandecla? Que

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vcuo, que fraqueza sob as aparncias correctas desta religio, nascida do capricho dum homem, desse sanguinrio Henrique VIII, que fez uma Inglaterra sismtica, antes de se tornar realmente protestante sob os seus sucessores! Estes pensamentos oprimiam o corao de Jocelyne, emquanto dava volta capela. Os vitrais eram muito belos e mereciam um exame minucioso bem como as esculturas da obra de talha e das cadeiras do coro. Diversos indcios fizeram pensar a Jocelyne que essa capela servira outrora ao culto catlico. Procurou Amy com o olhar, para a interrogar a este respeito. A criana tinha-se ajoelhado, diante dum pequeno nicho todo enfeitado de flores. Jocelyne aproximou-se, e viu com surpresa, entre crisnthemos e urzes, uma imagem pequena, mas muito bonita, da Santssima Virgem. No ignorava que os ritualistas voltam ao culto da Me do Salvador. Foi para ela uma consolao ver, nessa capela protestante, a efgie da meiga Protectora dos aflitos. Voltando os olhos para Amy, ficou impressionada com a expresso de anglico fervor espalhado nessa fisionomia infantil. A criana, de mozinhas postas, orava, pois os lbios moviam-se, e orava certamente com todo o seu corao. Percebendo que Jocelyne estava junto de si, levantou-se e ambas sahiram da capela. Gosta muito da Santssima Virgem, Amy? perguntou Jocelyne meigamente.

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Os olhos de Amy brilharam. Oh! gosto tanto! tanto! disse com enthusiasmo. Foi no ano passado que vi a sua imagem pela primeira vez na igreja de S. Paulo, onde minha tia me levou. Tinha o ar muito terno, e estendia os braos como para me attrahir! Frances, que tambm lhe tem muito amor e que lhe reza todos os dias, comprou-me ento esta pequena imagem, e o pap permittiu-me coloc-la aqui. Sou eu e Frances que conservamos sempre flores em volta dela. A senhora tambm lhe tem amor perguntou a criana erguendo o lmpido olhar para Jocelyne. Oh! muito, Amyzinha! Sempre foi uma felicidade para ns, catlicos, recorrer a ela e rode-la com as nossas homenagens e o nosso amor filial. Fico muito contente por encontrar em sua casa esta devoo nossa comum e to carinhosa Me, filhinha. Eu tambm estou muito satisfeita! murmurou Amy, apertando ternamente a mo da sua preceptora. Sempre a conversar, attingiam a galeria j vista na vspera por Jocelyne. Hoje uma luz melhor permittia admirar-lhe as belas propores e a decorao sobriamente artstica. Retratos separados por painis de tapearias ornavam uma das paredes. Amy, detendo-se diante de cada um deles, comeou a nomear a Jocelyne a personagem que representavam.

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diante de algumas dessas fisionomias desconhecidas, a donzela experimentou uma estranha impresso, como se j as tivesse visto. No entanto, esses antepassados do actual conde de Rudsay tinham vivido dois ou trs sculos antes. Eram quase todos muito altos, delgados e loiros, de ar enrgico e bastante altivo. A expresso do semblante diferia; mas era incontestvel que o mesmo typo se tinha perpetuado em muitos deles. Aqui est lord George Marcill, disse Amy. Um homem de hombros largos, com um trajo da corte do tempo de Henrique viII, encostava-se ao espaldar esculpido duma cadeira abacial. Era moreno, de belo aspecto e com ar marcial; mas um sorriso mau entreabria-lhe os lbios, e nos olhos luzia uma chama cruel. Foi ele que destruiu o convento dos Santos Mrtyres, accrescentou Amy, cuja voz tremia ligeiramente. Que convento , meu amor? O que est em frente daqui, na ilha. Eram monges que ali habitavam dantes. O rei deu os seus bens a lord George. Como os monges se defendiam, destruiu o mosteiro e... matou os religiosos. Desta vez a pequena estremeceu ainda mais. Jocelyne teve um calafrio de horror. Essa anglica pequena era, pois, a descendente dum pirata sacrlego, dum assassino! E a fortuna dos condes de Rudsay provinha dessa origem criminosa!

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Reprimiu a sua emoo, por causa da criana, que, visivelmente, estava impressionada por esta recordao. E para lhe desviar a atteno, disse: Bem, continue a mostrar-me os seus antepassados, Amy! A criana disse-lhe o nome doutros personagens, que mostravam trajes de sculos precedentes. Um deles prendeu mais demoradamente a atteno de Jocelyne. Amy tinha dito: o meu av. E a donzela murmurou comsigo mesma: Esta fisionomia recorda-me qualquer coisa. Este o irmo mais velho do pap, lord Edward, anunciou Amy. No o conheci, morreu anos antes do meu nascimento. O olhar de Jocelyne dirigiu-se para o retrato indicado. Percorreu-a um estremecimento da cabea aos ps, e fugiu-lhe dos lbios uma palavra: Gonzaga!... Sim: era Gonzaga que tinha diante dos olhos, nesse homem novo, delgado e de aparncia aristocrtica, de fisionomia fina, um tanto fria, mas no obstante simpthica, graas rectido e doura altiva do olhar. Os olhos eram cinzentos como os de Gonzaga, e cheios de deciso tambm como os dele. Jocelyne notava at a prgazinha dos lbios, ligeiramente desdenhosos, que ela s vezes censurava, a sorrir, a seu irmo adoptivo. E, para acentuar a semelhana, lord Edward usava os cabelos loiros cortados rentes como os

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de Gonzaga, e a mo apoiava-se numa mesa com o mesmo gesto familiar ao mancebo. exclamao da sua preceptora, Amy erguera para ela um olhar de surpresa. Jocelyne, dominando-se imediatamente com admirvel presena de esprito, disse a sorrir: Imagine, Amy, que primeira vista achei em seu tio parecenas com um dos meus irmos! Mas, olhando mais de perto, faz muita diferena... Tinha filhos, lord Edward? Tinha, sim: Francs filha dele. Tinha tambm um filho que morreu ha anos, quando eu ainda no era nascida. Olhe, aqui est o retrato de minha tia Ana, a me dele. Que encantador rosto feminino o desta mulher nova, fina e graciosa, cujos belos olhos escuros, to meigos, pareciam contemplar a donzela com ternura! Como devia ser boa e amvel! disse espontaneamente Jocelyne. Conheceu-a, Amy? No, minha senhora, morreu um pouco antes do filho. A pobre Francs muito infeliz, no ? Penso que naturalmente esse o motivo da sua tristeza. Jocelyne lanou um olhar para os retratos a seguir. Representavam o actual conde de Rudsay e uma senhora nova de aspecto altivo e um tanto duro, vestida com elegncia sumptuosa. a mam, disse Amy, sem manifestar nenhuma emoo.

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E... no ha retrato desse seu primo, o irmo de lady Frances? perguntou Jocelyne, tentando afectar indiferena. No, estragou-se, ao que parece, e o pap mandou-o pr nas aguas furtadas. Nunca o vi. Mas Francs tem uma fotografia dele. A visita ao castelo s suas partes principais, pelo menos estava agora terminada. Jocelyne e a sua alumna tornaram a subir e entraram na sala de estudo, no para trabalhar, pois que a manh ia muito adiantada, mas simplesmente para esperar a hora do lanche. Jocelyne aproximara-se da janela e contemplava com ar absorto o convento dos Santos-Mrtyres, cujo edifcio em runas se via distintamente dali. Agitava-a interiormente uma indescritvel emoo, desde o momento em que seus olhos se tinham poisado no retrato de lord Edward, desse homem com quem Gonzaga se parecia duma maneira to extraordinria. Deveria pensar que a Providncia a punha subitamente na pista ha tanto tempo procurada em vo? Surgia nela uma ardente esperana. Esta sombria casa occultava talvez o segredo do mistrio que pairava sobre Gonzaga. Era preciso que, pouco a pouco, se informasse, e com que habilidade! para no despertar a menor suspeita. Ah! l vem Frances! disse Amy. Jocelyne voltou-se e apertou a mo da jovem que tinha entrado sem rudo.

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Contemplava aquelas ruinas, aquelas tristes runas, minha senhora? um espectculo melanclico, principalmente para uma catlica. Fixava os olhos na ilha, e Jocelyne notou-lhe uma tremura nos lbios. Que estranha mania de destruio impele certos seres! continuou pensativamente a donzela. Destruio material, destruio moral... Amy contou-lhe sem dvida a histria daquelas ruinas? Sim, mylady, sucintamente, pelo menos. Oh! foi muito simples. Lord George Marcill imitou o que fizeram muitssimos senhores inglezes, o que fez o prprio rei, primeiro que ningum. E este sbdito, que to bem sabia seguir o exemplo do seu soberano, recebeu em recompensa o ttulo de conde de Rudsay. A voz tinha-se-lhe tornado breve e amarga. Estendeu o brao na direco da ilha. Ha uma lenda... Amy no lha contou? Diz-se que um monge muito novo, ao morrer sob os golpes dos soldados de lord George, teria exclamado: Vejo desabar grandes desgraas sobre esta raa! Mas uma pomba nascer dela, que libertar as geraes futuras do pesado fardo da expiao... Desgraas! Ah! sim, teem sofrido muitas os descendentes de lord George. E no acabaram ainda! Um estremecimento sbito quebrou-lhe a voz.

Acudiam perguntas aos lbios de Jocelyne. Mas no tinha chegado o momento. Era-lhe preciso ter

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pacincia, procurar primeiro conhecer melhor o carcter dos habitantes de Rudsay-Manor. Mas comprehendia j que lady Frances era uma alma elevada, a quem revoltava o crime sacrlego do seu antepassado. Comprehendia tambm que ela sofria. E, do fundo do corao, pediu a Deus que lhe permittisse fazer algum bem a essa estranha, para quem a arrastava, desde o primeiro momento, uma profunda sympathia.VI

Organizou-se rapidamente o programa dos estudos de Amy, que se reduziam a uma hora de trabalho de manh, e outra de tarde. A msica occupava uma hora suplementar, o desenho e o francez outra. E lord Rudsay, a quem Jocelyne tinha submettido o seu programa, declarara que era preciso consentir a sua filha a liberdade de tomar feriados completos, quando quizesse. A jovem preceptora, a quem semelhante latitude concedida a uma criana causara a princpio alguma surpresa, tranquilisou-se depressa ao observar que Amy tinha mais necessidade de ser contida do que incitada a trabalhar. Sob uma aparncia tranquila, era uma inteligenciazinha muito viva, admiravelmente perspicaz. Havia nela um encantador contraste entre o seu esprito j srio e reflectido, e uma candura extrema,

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que a sua existncia retirada em Rudsay-Manor contribura para conservar intacta. Mostrava-se muito afectuosa para com Jocelyne, mas pouco expansiva. No o parecia mais, afinal, para com qualquer dos membros da sua famlia, nem mesmo para com o pai, por quem tinha, no entanto, uma preferncia muito visvel e muito ardente. Quando o tempo o permittia, Jocelyne e a sua alumna passeavam no parque, muito vasto, infelizmente hmido e sombrio, ou, mais vezes ainda no campo, austero e rude, quase bravio. As vezes tambm desciam at praia estreita, situada entre o mar, que continuamente rolava as suas ondas, e a riba, que naquele stio formava uma reentrncia. Soprava nessa costa um vento quase contnuo, muitas vezes spero e muito frio. Jocelyne admirava-se por fazerem passar ali o inverno a essa frgil Amyzinha. Mas a criana contou-lhe um dia, occasionalmente, que dois invernos a seguir tinha experimentado o Egipto e o sul da Frana, e que ficara muito mais fatigada depois dessas duas estaes. aqui que estou melhor de sade, concluiu. Algumas vezes triste, mas gosto disto, gosto de Rudsay-Manor em qualquer poca do ano. Jocelyne pensou l para comsigo que a atmosfera dessa residncia selvagem e dessa regio rude e sombria no devia exercer uma influncia favorvel numa criana j melanclica e demasiado grave. Alem disso, desde o conde de Rudsay at ltima das criadas, parecia pesar sobre todos

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uma verdadeira tristeza. E Jocelyne sentia que essa tristeza pesada mas calma a envolvia tambm alguns dias logo aps a sua chegada.

Como era de carcter enrgico, tratou imediatamente de reagir o melhor possvel contra esta influncia que podia tornar-se deprimente. Quiz tambm actuar sobre Amy no mesmo sentido. E, embora sentisse ainda o corao oprimido pelo desgosto, procurou readquirir um pouco da sua alegria de outrora. Comeou a jogar com a criana partidas de bola e de crquet, e a brincar em corridas com Nero. Amy alegrava-se pouco a pouco, ganhava algum enthusiasmo, e Jocelyne via menos vezes nos seus belos olhos essa expresso sonhadora, um tanto errante, de que no gostava numa criana to pequena. A minha Amyzinha tem na verdade melhor aspecto desde que a senhora est aqui, declarou lord Rudsay, dez dias depois da chegada da jovem preceptora, vendo entrar hora do ch, no salo onde passava os seus dias, a pequenita um tanto animada, com a tez ligeiramente rosada e o olhar mais brilhante. Oh! pap: miss Orguin to gentil! exclamou Amy ao mesmo tempo que oferecia a fronte ao terno beijo do pai. Que diferena de miss Jameson! Tambm eu gosto muito dela, muito, asseguro-te, pap! Tanto melhor, querida. E onde foram passear hoje?

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A praia, pap. No havia muito vento. Hilson e o filho partiam para a pesca. Disseram-nos que trariam amanh belo peixe ao castelo. No gosto da cara de Hilson; mas Jhonny tem um aspecto agradvel, no verdade, minha senhora? Muito agradvel, Amy. Mas parece um tanto selvagem. L isso . Quando avista algum do castelo, d a impresso de que pretende fugir. E nunca ele que vem trazer o peixe. Jocelyne, cujos olhos naquele instante se tinham fixado maquinalmente na mo emagrecida que acariciava os cabelos de Amy, viu-a agitada por uma repentina e violenta tremura. um rapaz pobre de esprito, disse simplesmente lord Rudsay. Serve apenas para ajudar o pai na manobra do seu barco de pesca. Hilson um homem honrado e um pescador muito hbil. No digo o contrrio, pap, mas no gosto muito de olhar para ele, porque me parece que os seus olhos so falsos. Nero tambm no gosta dele..., e eu tenho grande confiana em Nero, acrescentou inclinando-se para dar um beijo nas orelhas do enorme animal, que a tinha seguido at ao salo. Lord Rudsay fez um leve movimento de impacincia. Nero um caprichoso, disse ele num tom bastante secco. Amima-lo demasiado, Amy. Merecia algumas boas correces.

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Amy protestou. Correces, porque no gosta de Hilson... e principalmente de Rarvri! Oh! pap!... No, no, o meu bom Nero no ser castigado... ou ento tambm eu o serei, porque tambm eu no gosto nada dele, nada! declarou num tom ao mesmo tempo enrgico e terno. Lord Rudsay mostrou uma espcie de sorriso, que aos olhos de Jocelyne, inconscientemente fitos nele, se afigurou forado. Vamos, menina mimalha, no tenha receio de coisa alguma, ningum tocar no seu favorito... e continuaro os dois a ter licena de detestar Hilson e Rarvri. Amy abanou a cabea. Miss Orguin diz-me que isso no bonito, que Deus no est contente comigo... mas eu no posso proceder doutra maneira. Lady Frances entrou neste momento. Jocelyne, fora das horas das refeies, tinha-a visto poucas vezes, durante os dias que acabavam de decorrer; Amy havia-lhe dito que sua prima passava os dias nos seus aposentos a ler ou a bordar, em companhia da antiga ama de seu irmo, que era agora a sua criada de quarto. Era uma vida estranha e singularmente austera para uma rapariga de dezoito anos, bonita e inteligente, como o demonstrava a sua conversa, quando, s refeies, sahia do seu mutismo habitual para dizer algumas palavras.

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Jocelyne pressentia um mistrio nessa existncia, e interessava-se cada vez mais por aquela estranha, de quem certos traos fisionmicos, certos gestos e inflexes de voz accordavam nela reminiscncias singulares. Frances mostrava-se amvel para com ela, como o tinha sido no dia da sua chegada. Mas no voltara a falar em tocarem juntas. Preferia, sem dvida, o seu habitual isolamento, que no devia ser favorvel para a jovem, a julgar pelo seu ar absorto e pela melancolia que exprimiam sempre os seus olhos cinzentos. Mas era principalmente nesses olhos que Jocelyne julgava encontrar os de Gonzaga! Nenhum indcio seguro tinha ainda. Por momentos, accusava a sua imaginao de extravagncia. Podia ser meramente fortuita a parecena de seu irmo adoptivo com lord Edward e a maior parte dos Marcill. E, antes de se perder em hiptheses, devia informar-se se acaso se teria dado na famlia o desaparecimento de qualquer criana. Mas junto de quem havia de fazer esse inqurito, que naturalmente deveria antolhar-se estranho? Era essa a grande dificuldade de Jocelyne. Quando escreveu a Gonzaga, no lhe disse palavra sobre a semelhana que descobrira. Conhecia o secreto sofrimento que para o altivo rapaz constitua a obscuridade que cercava a sua origem e a sua situao de criana encontrada. Uma esperana malograda seria para ele to penosa, que

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melhor era guardar silncio. Mas contara tudo a Goulven, pedindo-lhe que lhe indicasse o plano a seguir. Infelizmente, o jovem oficial andava num cruzeiro ao longo das costas da ndia, e a sua resposta devia demorar muito tempo. Nesse intervalo, teria, pois, de guiar-se pelas circunstncias, dado que porventura descobrisse uma pista plausvel. Do seu corao todos os dias se erguiam para o cu preces fervorosas. O seu maior desejo era que Gonzaga tornasse a encontrar a sua famiiia! Mas sentia muitas vezes que a invadia o terror, ao lembrar-se de que talvez se houvesse desenrolado um drama horroroso em volta da criana mysteriosamente colocada junto da Rocha do Gato. Quem poderia saber se essa criana, tornada homem, no continuava sob a secreta vigilncia dos que tiveram interesse em se desembaraarem dele? Meu Deus! A vs me entrego, confio vossa guarda o meu querido Gonzaga! dizia ela com fervor, quando essas inquietaes a assaltavam. E a tranquilidade voltava-lhe outra vez alma. Por uma tarde de sol e de temperatura agradvel, Amy anunciou sua preceptora que a ia levar sepultura da famlia. um stio que ainda no conhece, minha senhora. Tem muita tristeza, mas nem por isso deixa de ser belo! Talvez fosse melhor darmos um passeio,

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Amy. Por este lindo tempo, era prefervel irmos para o lado do mar. Mas precisamente quando est sol que se deve ver a sepultura, minha senhora. E tambm j ha muito tempo que l no vou. De vez em quando, gosto de pensar naqueles que l repousam. Meia hora depois, Jocelyne e a sua discpula atravessavam o parque. O sol penetrava a custo pela espessa folhagem das rvores seculares e o ar estava um tanto fresco debaixo daquelas abbodas de verdura. Nero precedia os passeantes, no se afastando nunca. Parecia desempenhar conscienciosamente o papel de guarda-avanado, como Jocelyne o observou a rir. De repente, o co estacou, rosnando surdamente. Amy pegou na mo de Jocelyne, murmurando: Sentiu Rarvri. naquele momento, desembocava dum atalho um homem vestido de branco. Era baixo, magro e bronzeado. Cobria-lhe a cabea um largo turbante branco. Sem se preoccupar com o animal ameaador, que rosnava sempre, continuou a avanar com o passo gil dum felino. Jocelyne sentia que a mozinha de Amy lhe apertava a sua com toda a fora. Quando o homem passou junto dela, cumprimentando oriental, olhou-o de frente, e, a despeito da sua coragem, estremeceu sob o fusilar estranho desses olhos pretos, fascinantes, perscrutadores.

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Ha mais dum ms que o no encontrava, murmurou Amy, abafada pela emoo, quando o ndio passou. Ha momentos em que ningum o v; fica na ilha, onde geralmente habita. Tambm lhe causa medo a si, minha senhora? Medo, no bem... mas certo que tem um olhar pouco agradvel. ndio, disse-me? , minha senhora. O pap, que foi oficial nas ndias, trouxe-o com ele.Estima-o muito, porque lhe salvou outrora a vida... E, por causa disso, eu deveria gostar tambm dele, accrescentou pensativamente Amy. Mas no posso. E porque habita ele na ilha, Amy? No sei, minha senhora. O pap diz que um original e um preguioso, que o que mais aprecia no fazer nada. Mas faz-lhe tudo que ele quer, pois no se esquece de que lhe deve a vida e de que esse homem lhe ardentemente dedicado, ao que parece. Ento no criado? Nada disso! No presta ao pap nenhuma espcie de servio, e vem apenas v-lo de longe a longe. E vive na ilha sozinho? Completamente s. um selvagem, diz o pap. Tem um barquito, que governa com muita habilidade para fazer a travessia duas vezes por semana; um criado leva-lhe provises, alis em pequena quantidade, porque muito sbrio... Ah! mas quando digo que est s, no bem...

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Tem junto dele um abutre domesticado... Oh! que horroroso animal, disse a tremer. Provavelmente aquele que j vi duas ou trez vezes a pairar por cima do castelo? Esse mesmo; no ha por aqui outro. No uma coisa horrvel, semelhante animal? Decerto. Tenho tambm por ele uma enorme repulso, Amy. Emquanto falavam, iam andando sempre. Sahiram do parque por uma grade estreita e encontraramse na charneca. Por um atalho pedregoso, penetraram num pinheiral extensssimo, que jocelyne ainda no conhecia. O ar na charneca era spero e cortante, apesar de estar de sol. Mas, ao penetrar no pinheiral, Jocelyne ficou surprehendida com a tepidez que ali se sentia. Perfumava a atmosphera um forte aroma resinoso. Do solo, coberto de herva espessa, cresciam grandes fetos, urzes soberbas. E, ao sahir da charneca banhada de sol, encontrava-se ali uma sombra intensa e apaziguante. Que diferena de temperatura! exclamou Jocelyne. A que ser isto devido, Amy? No sei, minha senhora. Rasgava-se entre os pinheiros um largo caminho invadido pela herva, e que ia por uma encosta suave. E, de repente, Jocelyne viu diante dela uma construo de granito negra, comprida e baixa, de aspecto estranhamente lgubre, principalmente

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no meio daquela vegetao densa, que projectava em roda uma sombra fnebre. ali que esto enterrados todos os Marcil, disse Amy, baixando instintivamente a voz. Ah! a porta est aberta! E porque est ali Frances. Dirigiram-se para a porta de carvalho, que ficara entreaberta. Amy empurrou-a, e entraram numa larga e ampla galeria, lageada de granito, iluminada por altas janelas guarnecidas de vidros brancos, embaciados pela poeira e cobertos de teias de aranha. De ambos os lados, alinhavam-se sarcfagos de granito, contendo o nome do occupante numa chapa de mrmore preto. Flutuava no ar hmido um cheiro desagradvel a bafio. De p, junto a um dos sarcfagos, a que apoiava as mos juntas, encontrava-se lady Frances. Voltou-se e disse a meia voz: Amy obrigou-a a fazer esta fnebre visita, minha senhora? Que triste lugar de sepultura escolheram os meus antepassados, no acha? Era precisamente a observao que eu fazia ao entrar. Que motivo os levaria a escolher este local? Pareceu-lhes, sem dvida, que o seu aspecto soturno se harmonizava com o destino que lhe queriam dar. Mas eu que no percebo porque f propositadamente se procuram lugares tristes para os jazigos. Vi um dia na Itlia um cemitrio banhado de sol, luminoso e coberto de flores. Desejaria dormir ali. Stios como esse recordam-nos

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melhor a misericrdia de Deus e as belezas do paraso. Aqui temos de pensar antes na justia e no eterno abismo da expiao. verdade, concordou Jocelyne, que naquele momento se lembrava do pequeno cemitrio de Kersanlie, situado sombra da velha igreja e perfumado, nos dias bonitos, pelo aroma dos goivos e das rosas, de mistura com os eflvios martimos. Que diferena entre aquela fria sepultura e a campa de seus queridos pais, coberta de flores e encimada pela cruz redemtora! Inclinou-se e leu na chapa do sarcfago diante do qual se encontrava Frances: Lord Edward Marcill, conde de Rudsay. Era meu pai, disse Frances, num tom levemente trmulo. Aqui est o jazigo de minha me, e, ao lado... o de meu irmo. Jocelyne deu alguns passos, curvou-se novamente e leu: Lord Brawley Marcill, conde de Rudsay. Voltou-se para lady Frances, cujo olhar poisava tambm na inscrio funerria. Era seu nico irmo, mylady? Sim, o nico. Pobre querido Brawley! Tinha apenas seis anos, mas lembro-me perfeitamente. Era muito grave, mas muito bom, e amava ternamente a sua irmzinha. Morreu duma forma to inesperada! Mas pode saber-se de qu? Duma doena de corao. No ano antecedente,

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morrera a minha boa mam, que ficara sempre a sofrer desde a morte de meu pai. Era ento muito pequeno ainda, no compreendeu a extenso da perda que sofria. Mas depois... Notava-se em seus lbios uma certa agitao. Se Brawley fosse vivo, seria ele hoje o conde de Rudsay, murmurou ela, como a falar para si mesmo. E tudo teria ento mudado.

Passou a mo pela fronte. Depois, fitando Jocelyne, disse-lhe a meia-voz: Sabe o que venho aqui fazer? Rezo pelos meus queridos mortos... porque acredito no purgatrio e na eficcia das preces pelos defuntos. uma crena to terna, to consoladora! Bastava s isso para eu me sentir attrahida pelo catholicismo. No corao de Jocelyne houve um sobressalto de alegria. E seu rosto exprimiu to nitidamente esse regosijo, que Frances sorriu meigamente. Gosta de me ouvir falar assim? perguntou, sempre em voz baixa. Um dia lhe contarei como me vieram estas ideias. Agora melhor sarmos, porque a humidade pode fazer mal a Amy. Foram ter com a pequena, que parara junto da sepultura de sua me, e transpuzeram a entrada, perto da qual as esperava Nero. Regressaram todos a casa, palestrando. Frances pediu a Jocelyne que fosse tocar com ela no dia seguinte. A menina muito simpthica, accrescentou com um sorriso raro nela, e que lhe

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transformavam em absoluto a expresso da fisionomia. O mesmo deverei dizer de si, mylady! Estimo muito! Tenho um carcter bastante sombrio, mas ver que em mim se pode encontrar tambm uma verdadeira amizade. Naquela tarde, quando Jocelyne estava s no quarto, comeou a recapitular os diferentes factos do dia. Nada a viera colocar numa pista. Bem pelo contrrio, sabia agora que Frances tivera apenas um irmo, e que esse irmo tinha morrido; e, pelo caminho, fora tambm informada de que a donzela tivera apenas um primo, lord Rubert Marcill, irmo de Amy, muito mais velho que ela, e que raras vezes habitava em Rudsay-Manor. Nesse caso, quem viria a ser Gonzaga?VII

Lady Frances occupava, na ala Oeste do castelo, os aposentos que tinham pertencido a sua me. Quando no dia seguinte, acompanhada de Amy, Jocelyne foi visitar a jovem, observou que a instalao era luxuosa e reveladora de muito bom gosto. O salo occupava todo o primeiro andar duma das grossas torres, chamada a Torre da Rainha, porque estivera ali antigamente vinte e quatro horas a rainha Isabel. Era nesse compartimento,

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vasto e claro, que geralmente se conservava Frances.

Emquanto as duas raparigas falavam de msica, antes de se sentarem ao piano de cauda que occupava um dos cantos do aposento, Amy instalou-se num canap, tendo aos ps o seu indispensvel Nero, que entrava em toda a parte, e pz-se a continuar um trabalho de croch que principiara sob a direco de Jocelyne. Esta conseguira j incutir-me a ideia de utilizar os seus momentos de cio, a trabalhar para os pobres. Gostava muito de msica, e apreciou, por isso, extraordinariamente a que sua prima e Jocelyne executaram durante grande parte da tarde. Frances era uma artista, e Jocelyne sentiu um delicado prazer em interpretar com ela os autores preferidos, que eram tambm, afinal, os seus. As 5 horas, levaram-lhes o ch. Jocelyne viu pela primeira vez Molly, criada de quarto de lord Frances. Era uma mulher alta e magra, de aspecto severo. Jocelyne sentia que ela a envolvia num olhar perscrutador, emquanto preparava o ch. Quer ver o retrato de meu irmo, menina? perguntou Frances, que se sentara no canap, junto de Amy, cuja cabea se lhe encostava carinhosamente ao hombro. E, a uma resposta afirmativa, pegou numa fotografia que estava atraz dela, em cima duma mesa, e estendeu-a a Jocelyn.

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a ltima, e foi tirada alguns meses antes da sua morte. Jocelyne teve que recorrer a toda a sua presena de esprito para no soltar uma exclamao. Tinha diante de seus olhos Gonzaga, tal como estava na fotografia que o comandante Orguin mandara fazer para os jornaes, depois do seu encontro. Uma diferena apenas: os cabelos neste retrato eram fartos e anelados, ao passo que os da criana encontrada haviam sido cortados rentes. Mas, apesar dos seus esforos, a sua emoo reflectiu-se-lhe na fisionomia, porque, ao levantar os olhos, viu que Frances a estava fitando com surpresa. Procurou sorrir, dizendo em tom de gracejo: - No outro dia, encontrei uma certa semelhana entre o conde de Rudsay, seu pai, e um de meus irmos. E curioso que a encontro hoje tambm entre lord Brawley e o meu querido Gonzaga. Brawley parecia-se em absoluto com seu pai... E acha ento que seu irmo?... Ha analogias muito frisantes, com efeito... Mas no raro encontrar singulares parecenas entre duas pessoas estranhas. Sim, e a prova est na aventura que aconteceu a minha tia Ellen, quando foi tomada uma vez, na Itlia, por uma escritora clebre, quando certo que ela detesta tudo que litteratura! A conversa continuou no mesmo gnero, com

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grande satisfao de Jocelyne, que receava ter dado a comprehender demasiadamente a sua emoo. Colocara a fotografia numa mesa junto dela, e, ao volver os olhos para esse lado, ao ver o fino rosto que dois olhos altivos iluminavam, dizia para si-mesma com o corao a pulsar-lhe: Mas Gonzaga!... Gonzaga, no ha dvida! A suposio era, comtudo, inadmissvel, porque lord Brawley tinha morrido. Como explicar ento o facto? Quando algumas horas depois se preparava para jantar, repetia ainda esta anciosa interrogao. To absoluta semelhana era extraordinria. Mas a quem deveria dirigir-se para aclarar aquele mistrio? aproximou-se da janela, por onde penetrava o ar do largo. O mar estava muito agitado. Encapelavase ao longe e vinha quebrar-se nos recifes em enormes flocos de espuma. O sol occultava-se num horizonte avermelhado, e Jocelyne viu que os edifcios do mosteiro pareciam tingidos de prpura. Para a ilha avanava um barco, vendo-se dentro apenas o ndio. Mas, pairando por cima dele, a uma distncia relativamente curta, Jocelyne descobriu o abutre. Teve um estremecimento. Tanto esse homem como o seu horroroso companheiro lhe eram desagradveis. Fechou a janela, porque o ar estava fresco, e,

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dirigindo-se escrivaninha, tirou duma gaveta a fotografia de Gonzaga. Abstivera-se de a pr em evidencia com as de seus pais e de Goulven, depois que observara a semelhana de seu irmo adoptivo com lord Edward. Ouviu nesse momento bater porta. Escondeu rapidamente a fotografia por baixo da pasta e disse: Entre! Era Molly., a criada do quarto de lady Frances, que vinha da parte de sua jovem ama buscar um modelo de bordados de que Jocelyne lhe tinha falado, e que desejava copiar. Tenho-o ali na escrivaninha. Queira esperar um momento... A sua vontade, minha senhora. Jocelyne inclinou-se para abrir a gaveta. Com esse movimento, arrastou a pasta, que cahiu no cho. Molly abaixou-se rapidamente para a apanhar, bem como fotografia que estava mettida entre as folhas. Poisou ambas as coisas em cima da mesa. Mas o seu olhar havia encontrado a fotografia. Teve um sobressalto, e contemplou Jocelyne com ar de espanto. A donzela corou de contrariedade. Uma indiscrio podia deitar tudo a perder. Mas ento a semelhana era to flagrante, que chegara a impressionar a antiga ama do pequeno lord? Quem sabe se no era a providncia que lhe enviava o auxlio pedido? Estes pensamentos sucederam-se durante alguns

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no esprito de jocelyne. Pegou na fotografia, dizendo com desprendimento:

o retrato dum de meus irmos. Parece-se muito com o irmo de lady Frances, tal como est na fotografia que me mostraram, no verdade? Molly juntou as mos. Se se parece! Mas ele!... E seu irmo, minha senhora? A donzela inclinou afirmativamente a cabea. extraordinrio! Uma semelhana, destas! Permitte-me que o observe mais de perto, minha senhora? Jocelyne estendeu-lhe a fotografia, que ela examinou attentamente, dando sinais de profunda emoo. exactamente lord Brawley, tal como era antes da sua morte, pobre queridinho!

Tinha-lhe muito afecto, Molly? Se tinha! Como se fosse meu filho. Era to lindo e to bom, o meu pequenino lord! Ah! Lady Arabella tinha razes para o detestar, porque o seu Cuthbert no passava dum verdadeiro urso junto do nosso Brawley. Lady Arabella? exclamou Jocelyne em tom interrogativo.

Sim, a me de lord Cuthbert e de lady Amy. Uma bela mulher, muito inteligente, mas ambiciosa e cheia de orgulho. Tinha cimes de sua cunhada, lady Rudsay, que era muito linda, e

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esposa do mais velho, me do herdeiro. Quando lord Edward morreu, lord Charles, seu irmo, que ento regressava das ndias muito doente, veio instalar-se com a mulher e seu filho Cuthbert, porque Amy ainda no era nascida, em RudsayManor, a pretexto de ajudar sua cunhada, que era muito fraca, a educar o pequeno lord Brawley. A verdade que vinha quase arruinado, em virtude das suas prodigalidades, e por querer satisfazer os caprichos de sua mulher, e desejava aproveitar-se da vida faustosa que se levava aqui, em MarcillHouse, ou em Nice, porque nessa poca os nossos patres passavam muitos meses em Londres e no continente. Como lady Rudsay estava muitas vezes doente, e era de gnio pacfico, mesmo tmido, no tardou que sua cunhada passasse a desempenhar o papel de dona da casa. Era ela que governava tudo, a comear pelo marido. E j morreu h muito? perguntou Jocelyne, vendo que a criada de quarto no continuava. H mais de quatro anos. Ainda teve uns poucos de anos de triumpho, depois da morte de lord Brawley, que a fez condessa de Rudsay. A voz de Molly tornara-se spera, e Jocelyne viu, com surpresa, que o seu rosto se contrahia. ... E seu filho ficara herdeiro. Era tudo que ela ambicionava, e muitas vezes me convenci de que ela devia detestar lord Brawley, por ser ele o nico obstculo aos seus desejos. Interrompeu-se subitamente, envergonhada.

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Perdo, no sei o que estou a dizer, murmurou. Encontrou o olhar da donzela, que exprimia um interesse ardente, e, como arrebatada por um sentimento mais forte que ela, disse-lhe a meia-voz:

Muitas vezes cometti a loucura de pensar... que ela seria capaz de o fazer desaparecer. Faz-lo desaparecer? Jocelyne aproximou-se e pegou na mo de Molly: Mas ento elemorreu, na verdade? Ai! infelizmente! E chegou a v-lo?... Tem a certeza disso? Fui eu que o metti no caixo. Jocelyne deixou cair a mo, com um gesto de desnimo.

Ento, no pode ser isso... Morreu duma doena do corao, segundo me disse lady Frances? Sim, minha senhora- Estava doente havia apenas trs meses; antes disso, a sua sade era boa. Certa manh, embora na vspera no tivesse estado pior, encontrei-o morto na cama. Os mdicos ficaram admirados, pois contavam que elemelhorasse. Trataram-no bem? Com os maiores cuidados. E essa morte sbita no despertou suspeitas? Olhando a donzela bem de frente, Molly disse devagar:

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Em mim, pelo menos, minha senhora. E ento? Que podia eu fazer, sozinha, sem nenhuma prova?

Jocelyne passou a mo pela fronte. Renascia nela novamente uma esperana, mas uma esperana louca, inverosmil. A aventura de Gonzaga no era comtudo, to extraordinria, e no permittia as piores suposies? Mas deveria confiar em absoluto naquela mulher? Seja o que Deus quizer! pensou. A verdade que s ela me pode ser til neste caso. E, poisando a mo no brao de Molly, disse-lhe resolutamente: Oua-me... -Vou dizer-lhe uma coisa, mas no contar absolutamente nada a ningum, nem mesmo a lady Frances, ao menos por emquanto. Pode confiar em mim, disse a criada de quarto, visivelmente surprehendida. Essa criana que ahi v, que hoje um mancebo, e usa o nome de Gonzaga Orguin, meu irmo adoptivo. Foi encontrado ha dezasseis anos, por meu pai, na praia de Kersanlic, na Bretanha. Foi no dia 6 de abril de 18... Molly soltou uma exclamao abafada: Seis de abril! Foi no dia 4 que metteram o meu querido lord no jazigo. Reprimindo a sua emoo, Jocelyne continuou: A criana estava adormecida. Nada a pde

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fazer despertar, e ficou oito dias nesse estado. Depois, sahiu subitamente daquele sono rnisterioso. Mas no se recordava de nada, e no sabia falar. Foi preciso ensin-lo, como se faz a um menino. Nunca lhe voltou a memria do passado. Molly segurou-se ao espaldar duma cadeira, como se estivesse prestes a desfalecer. Senhora! que que me conta? Ser possvel, miss Orguin?... Mas no, no, ele morreu! Vi levar o caixo, acompanhei-o e vi-o colocar no sarcfago, l adiante... Inclinando-se para ela, Jocelyne murmurou: E tem a certeza de que o corpo de lord Brawley se encontra ainda l? Molly estremeceu. Que quer dizer, miss Orguin? Que esse corpo poderia ter sido tirado... por exemplo na tarde da inumao, e transportado para longe, para fora de Inglaterra...

Mas nesse caso... no estava morto? No, apenas adormecido. E a doena de corao... os mdicos... Sim, extraordinrio... Mas os mdicos podem enganar-se... E, mesmo entre ns, o que examinou Gonzaga, antes e depois do sono, encontrou sintomas extravagantes, que foram desaparecendo pouco a pouco. Vou escrever-lhe, para saber se observou nele algumas perturbaes cardacas.

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Mas quem faria tudo isso?... Quem teria tirado a criana do jazigo e a teria levado? isso o que havemos de saber um dia, Molly... O mais importante, por agora, saber se a tumba est ou no vazia. Sim... Mas no lhe parece que os que fizeram isso poderiam substituir o cadver do pequeno lord pelo doutra criana? Jocelyne ainda no tinha pensado nessa eventualidade to plausvel. Podiam, certo, ter recorrido quele meio, mas oferecia perigos e arriscavam-se a attrahir as attenes. Era possvel, portanto, que o jazigo estivesse vazio... Tornava-se indispensvel sab-lo, antes de mais nada. E como abrir o sarcfago? muito pesado, e Ins no devemos fazer esta confidncia a ningum, disse Molly. Era esse, com efeito, um obstculo primeira vista insupervel. Havemos de pensar no caso, concluiu Molly, apoz um momento de reflexo. Se o permittir, miss Orguin, voltarei a v-la, visto ter-me dado essa esperana... Ah! se o meu querido lord estivesse vivo!... Mas no, seria felicidade demasiada!... No entanto!... Sim, isso no me parece impossvel... Era um meio de fazer desaparecer o obstculo, sem recorrer ao assassnio... Mas como arranjaria ela semelhante coisa... sim, porque naturalmente, se as coisas se passaram dessa forma, foi lady Arabella quem dirigiu tudo.

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Bateram porta, e a vozinha de Amy perguntou: Posso entrar, minha senhora? Venha outra vez ter comigo, murmurou Jocelyne ao ouvido da criada de quarto. Falaremos de tudo isto e havemos de encontrar um meio. Quanto ao modelo do bordado, diga a lady Frances que no consegui encontr-lo e que lho entregarei amanh. E fez desaparecer rapidamente a fotografia numa gaveta, emquanto Molly ia abrir a porta a Amy. VIII

Estava agora dado um grande passo. Jocelyne contava com uma aliada preciosa. Em primeiro lugar, porque havia consagrado uma grande afeio a lord Brawley, e depois porque era inteligente e activa. diante de Jocelyne, o caminho) tornava-se menos escuro. E foi com novo fervor que ela, no dia seguinte, um domingo, orou na capela de Stampton-Court. Dizia a missa um jovem sacerdote, filho dos casteles, sendo ouvida por seus pais, piedosament ajoelhados, e pelos criados da bela residncia, distante de Rudsay-Manor uns doze quilmetros. Jocelyne gostava da atmosfera de serena piedade que reinava no pequeno santurio, erguido em pas protestante pelos catlicos fervorosos que,

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cem anos antes, havia comprado Stampton-Court. Naquela manh, ajoelhada diante da imagem de Nossa Senhora de Lourdes, pediu com instncia Me celeste que advogasse a causa de Gonzaga, dizendo-lhe num transporte de confiana filial: Bem sabeis, boa Me, como o querido Gonzaga vos consagra uma afeio muito peculiar, e com que devoo ele traz a vossa sagrada medalha. preciso pois, Me querida, que o ajudeis a encontrar novamente o seu nome e a sua famlia. E prometto-vos que iremos todos, logo que Goulven regresse, em peregrinao de aco de graas ao vosso bemdito santurio de Lourdes. Depois dessa prece, Jocelyne sentiu que a invadia uma viva impresso de confiana. E pouco depois, quando voltava para Rudsay-Manor, a sua pequena alumna, que saa dos ofcios, exclamou ao v-la: Oh! como hoje est bonita, minha senhora!... e como os seus olhos brilham! Attrahiu para si a criana e disse-lhe com doura, acariciando-lhe os cabelos: que rezei muito na igreja, Any, e a prece faz muito bem! O rostozito de Amy tornou-se grave. Sim, tambm eu gosto muito de rezar. Deus to bom! Ainda esta manh lhe agradeci por a ter enviado para junto de mim, minha senhora. E, lanando-lhe os braos ao pescoo, deu-lhe um beijo na face.

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O corao de Jocelyn confrangeu-se, porque lhe acudiu subitamente ao esprito um pensamento doloroso: procurando a verdade sobre a morte de lord Brawlly, que iria descobrir contra os pais desta criana? E, se houvesse culpados, ela, a inocente, seria manchada com a vergonha que deveria cobrir os seus. Mas se assim for, pensou ela, Gonzaga proceder por forma que s venha a saber-se o indispensvel, visto que tem uma alma generosa. Quando, porm, pouco depois, acompanhava a pequena no seu passeio matinal, sentia ainda o corao oprimido. Precisamente nessa manh, a criana estava muito contente. Contou a Jocelyne que seu irmo anunciara a sua chegada para a semana seguinte, e promettera trazer-lhe periquitos cor de rosa.

Era o que eu mais desejava, dizia batendo as mos. Cuthbert diz que os pagou por um preo fabuloso. Mas ele gosta muito de me ver contente; muito meu amigo. Quem poderia deixar de ser bom para ti meu amorzinho! pensou Jocelyne comovidamente. Naquela manh a preceptora e a sua discpula dirigiam-se para o mar. Seguindo pela praia estreita, chegaram a uma espcie de enseada, em cujo rebordo se erguia uma pequena casa acaapada, sobre que os ventos do largo inutilmente se desencadeavam. Era a habitao de Dick Hilson, o pescador,

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que vivia alii com sua filha Esther e seu filho Jhonny. Todos guardavam, naquele dia, o descanso dominical. O barco de pesca, a Dora, e outro mais pequeno, balouavam-se na extremidade dos cadeados, e as redes estavam a seccar na areia. diante da porta, a Esther, uma rapariga alta, de fisionomia reservada, estava a escamar um peixe.

Sentado num recanto da rocha, a fumar o cachimbo, Hilson olhava dum modo vago Jhonny, que brincava despreocupadamente com um cozito. Os dois homens tiraram o barrete vista de Jocelyne e de Amy. Hilson tirou o cachimbo da boca e levantou-se. Bom dia, Hilson; bom dia, Jhonny, disse gentilmente Amy. Fizeram hontem boa pesca? -Nem por isso, milady, - respondeu o pai com a sua voz rouca habitual. E a de amanh deve ser pior ainda. Porque, Hilson? Porque haver uma tempestade, milady. Oh! como isso aborrecido! No gosto das tempestades por causa da forma como o vento sopra atravs de Rudsay-Manor! Dir-se-ia que so pessoas a gritar, a gemer... E ento penso nos infelizes que dizem ter sido torturados nas salas de baixo, no tempo de lord George! Sacudiu-lhe os dbeis hombros um estremecimento.

Ora, adeus! No h a certeza disso! atalhou

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Hilson. Lord George no era to mau como dizem; e, l pelo facto de matar alguns frades papistas... Amy interrompeu-o com vivacidade, franzindo as sobrancelhas doiradas: Miss Orguin catlica, Hilson! Um tanto desconcertado, o homem balbuciou: Ah! perdo... eu no sabia... E tambm eu no quero ouvi-lo falar assim, accrescentou Amy em tom firme, bem estranho nessa boca infantil. Lord George procedeu muito mal, cometteu grandes crimes... comprehende, Hilson? Comprehendo... Sim, milady, continuou Hilson, peo-lhe que me desculpe... eu no sabia...

Fica a saber agora, nesse caso... Que lindo cozinho! seu, Jhonny?

Voltava-se para o rapaz que se conservava a alguma distncia, tendo o barrete desageitadamente na mo e olhando para o cachorro, a tremer de susto diante do imponente Nero, que o examinava do alto da sua grandeza. , sim, milady. Pobrezito! Nero causa-lhe medo! Retira-te, meu grandalho! disse para o dinamarquez com um gesto imperativo, a que o grande animal obedeceu logo. Amy pegou no cozinho, e, sentando-se numa rocha, ps-se a acarici-lo.

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Veja como interessante, minha senhora! Que linda linguazinha cr-de-rosa! Como se chama, Jhonny? Clic, milady. Clic! um nome engraado! Muito bem, Clic, gosto imenso de ti... Ah! outra vez esse horrvel abutre! Ouvia-se um ruido de asas. O abutre passava por cima da penedia. E, por traz dos rochedos, apareceu a delgada figura do ndio. Amy, cuja fisionomia se ensombrou subitamente, deixou escorregar das mos o cozito e ergueu-se. Vamo-nos embora, minha senhora, suplicou. Voltou-se para dizer a todos adeus. Mas Esther tinha desaparecido no interior da casa. Jhonny via chegar o ndio de olhar carregado e lbios crispados. Na fronte tostada de Hilson abria-se uma larga ruga.

E Nero comeava a rosnar, com terror de Clic, o qual se refugiou entre as pernas do dono, que o repeliu com o p. Oh! Jhonny, o senhor mau! exclamou a pequena, que na sua compaixo pelo animalzito se esqueceu do horror que lhe inspirava Rarvri. O ndio caminhava depressa, no tardando a chegar junto do pequeno grupo. Amy voltou a cara, no se importando com o seu cumprimento e dizendo numa voz que, apesar do esforo empregado, tremia por maneira sensvel:

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quer que voltemos, miss Orguin? Jocelyne contemplava Rarvri nesse momento. Viu, com surpresa, o ndio estremecer levemente, encontrou as suas pupilas estranhas, que a envolveram num olhar em que ela julgou ler, por momentos, uma profunda inquietao. Mas foi apenas um relmpago. Os olhos pretos desviaram-se, e Rarvri disse para Hilson em tom secco: Prepare o barco. Amy pegou na mo da preceptora e arrastou-a para a praia. Que homem to mau! Mas amanh no o encontraremos, porque, no abandona a ilha dois dias a seguir. O encontro do ndio e o seu olhar estranho tinham produzido em Jocelyne uma impresso de malestar. Durante o lanche conservou-se distrahida, mas observou, ainda assim, que lady Frances estava preoccupada, mostrando-se mais fria, que de costume, com lord Rudsay. Jocelyne contava com a visita de Molly, e aguardava-a com impacincia. Viu-a aparecer como na vspera, com o pretexto de ir buscar o modelo de desenho que a donzela lhe no pudera entregar. Ento, j encontrou um meio? interrogou Jocelyne. Ainda no, miss Orguin. Ah! se eu soubesse dum homem robusto, ns ambos abriramos esse

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tmulo, por que sou forte. Mas a quem hei de confiar este segredo? Ha bons rapazes entre os criados de Rudsay-Manor, mas no posso fiar-me na sua discrio. Sim, isso seria arriscado! Mas no lhe parece que ns ambas... Molly no pode de