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ESPACIALIDADES CÓSMICAS E HISTERIAS CRONOLÓGICAS: caminhos de gerações e utopias em Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão. Por Sheila de Almeida Machado Dissertação de mestrado em Literatura Comparada apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-graduação. Departamento de Ciência da Literatura. Realizada sob a orientação do Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho. Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras Rio de Janeiro, 2º semestre de 2006.

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ESPACIALIDADES CÓSMICAS E HISTERIAS CRONOLÓGICAS: caminhos de gerações e utopias em Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão.

Por

Sheila de Almeida Machado

Dissertação de mestrado em Literatura

Comparada apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-graduação. Departamento de Ciência da Literatura. Realizada sob a orientação do Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho.

Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras Rio de Janeiro, 2º semestre de 2006.

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Para meu pai, engenheiro apaixonado

por literatura, que emprestava sentido novo às tardes em que me trazia um livro. Sem ele, nada teria sido possível.

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AGRADECIMENTOS: Ao Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho, mestre de generosidade e gentileza permanentes, pela orientação cuidadosa e fina. Ao escritor João Ubaldo Ribeiro, pela extrema amabilidade com que me recebeu em sua casa, pela disponibilidade anunciada para novos encontros. E por ter me feito entender a existência e o significado de uma Sexta-Feira Santa. Ao Professor Doutor Ary Pimentel, pelas sugestões e pelo desprendimento terno com que se dispõe a ajudar e a dividir seu conhecimento vasto. À Marina, Sílvia, Suzana, Pedro e Beatriz, meus lugares simultâneos de sangue e alma. Aos amigos Fernanda Lopes, Hélio Almeida, Luiz Amorim, Adilson Paulo, Michel Diniz, Graziela Catarina, Cyro Martinelli, Cristiane Nunes, Cecília Wellisch e André Cordeiro, por terem compreendido ausências, e partilhado, solidários, os prazeres e as dores desta escrita.

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SUMÁRIO

Introdução 5

1. Espacialidades cósmicas: breves rotas para Macondo e Itaparica 9

2. Histerias cronológicas: sobre fim e princípio de um tempo distinto 29

3. Presságios mágicos de revelação: pergaminhos e canastra a serviço das gerações 50

4. O coronel e a guerrilheira: caminhos avessos de revolução e utopia 77

Conclusão 100

Bibliografia 103

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INTRODUÇÃO

Ao longo de suas trajetórias evolutivas, as chamadas literaturas nacionais, na América

Latina, têm-se valido de variados recursos, na tentativa de exprimir sua nacionalidade. Algumas

dessas literaturas revelaram-se tão singulares no modo de realizar tal expressão, que

transcenderam o limite meramente restrito ao nacional, e assumiram comprometimento com um

discurso gradativamente deslocado, em uma espécie de irradiação, às esferas continental e

universal.

Convém ressaltar que quando nos referimos à América Latina, estamos considerando

este conceito uma construção discursiva plural e capaz de mobilidade; a América latina é vista

aqui como um conjunto de países portadores de especificidades inquestionáveis, porém

irmanados por uma gama de aspectos em comum.

Livre histórica e politicamente de um longo processo de colonização, a América

Latina revela ainda séria dependência nos níveis econômico e cultural, em relação aos países

europeus e, mais recentemente, aos norte-americanos. Desde o momento em que os europeus

aportaram em território latino-americano, por conseqüência de uma ousada política expansionista

(imperialista), verificou-se um choque cultural que permanece, problematizado, até a

contemporaneidade. É então compreensível que o discurso acerca da América Latina tenha sido

marcado, desde as suas primeiras manifestações, por uma tensão entre elementos que, se não

podem assumir, a princípio, a qualidade de opostos, relacionam-se inevitavelmente diante da

diferença.

A história de povos e nações latino-americanas, desde antes da conquista por parte

dos europeus, é vastíssima, e muitos são os referenciais temáticos tradicionais do continente. A

inquestionável vocação política e revolucionária já foi objeto da abordagem de ensaístas, poetas,

romancistas, cineastas. Em meio à série de adaptações e revisões da história através da arte, e

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mesmo havendo desde as origens problemas que vieram causar a atual e complexa problemática

sócio-econômica que envolve o continente, a questão da luta pela permanência dos sonhos

recebeu sempre atento e diferencial enfoque.

João Ubaldo Ribeiro e Gabriel García Márquez são escritores inseridos no espaço

contemporâneo de produção literária latino-americana. Os romances aqui tratados tiveram entre

suas primeiras publicações um intervalo de dezessete anos, e são definidores singulares da

potência expressiva dos autores.

Em 1967, quando leitores do mundo inteiro rendem-se a Cem anos de solidão, a

América Latina experimenta uma turbulência política sem precedentes, motivada pelo

estabelecimento maciço de governos ditatoriais. A Revolução cubana, possível maior ícone de

utopia latino-americana do século XX, demonstra os primeiros sintomas de fracasso, em termos

de ideologia e prática. Impera nos países ao sul do paralelo zero uma ambiência caracterizada

pelo descontentamento popular, conseqüência da repressão sistemática às liberdades individuais.

Gabriel García Márquez, um inquestionável gênio visionário, já vinha germinando

seu romance de gerações há algum tempo, inquieto com o presente e o futuro da América. Cem

anos de solidão expressa a continentalidade latino-americana, como talvez nenhum outro

romance tenha sido capaz. Mas o flagrante é de uma América enfraquecida, abandonada, sob

ameaça de esquecimento e fim.

Na ficção de João Ubaldo Ribeiro é permanente a inquietação relativa aos

significados e caminhos assumidos pela nação. O romance Sargento Getúlio e a reunião de

contos Livro de histórias são claras demonstrações da intenção de mobilizar discussões e

questionamentos em torno da noção de brasilidade e de sua dimensão plural.

No Brasil de 1984, quando é publicado Viva o povo brasileiro, predomina uma

ambiência política de euforia e esperança extremas. O romance, cujo próprio título já é uma

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confissão de homenagem grandiosa, não poderia, portanto, surgir de maneira mais

contextualizada e em maior sintonia com a realidade da época. Passados vinte traumáticos anos

de pesada ditadura militar, com governos criminosamente violentos e repressores, respirávamos

aliviados ante um aceno de abertura política. A reconstrução democrática, emblematizada pelo

movimento “Diretas já”, é a expressão premente de ordem nacional, uma vontade coletiva em

iminência de realização. Dos pertinentes contextos políticos mencionados surgem os romances

que nos serão fundamento.

Constitui objetivo do presente trabalho verificar o vínculo entre o discurso literário

latino-americano e a construção das identidades no continente, estabelecendo uma proposta

dialógica entre os romances Cem anos de solidão e Viva o povo brasileiro, de Gabriel García

Márquez e João Ubaldo Ribeiro, respectivamente.

A primeira parte desta dissertação pretende examinar as escolhas relativas à

configuração estrutural das narrativas, em termos das disposições e tratamentos conferidos a

tempo e espaço, além da forma como tais elementos relacionam-se às soluções semânticas dos

romances.

No decorrer da segunda parte, será dado enfoque especial ao instrumental temático

predominante nos romances – as idéias de gerações e utopias –, bem como sua vinculação com os

significados assumidos por Brasil, enquanto nação, e América, enquanto continente, dentro das

realidades cronológica e historiográfica em que se inscrevem.

Também constituiu nosso objetivo estender, sempre que possível, o diálogo a que se

refere este trabalho para o nível de confrontamento entre textos críticos e teóricos e,

naturalmente, o corpus literário selecionado. Sob esta orientação, adotando metodologia de base

comparatista, e buscando, sobretudo, a elaboração crítica de nossas considerações,

desenvolvemos nosso trabalho.

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O mundo, em geral, é sempre o mesmo.

MAQUIAVEL

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1. Espacialidades cósmicas: breves rotas para Macondo e Itaparica

Vestindo imaginariamente um escafandro, supor e cumprir uma rota precisa e

submersa entre Brasil e Colômbia. Atravessar a fronteira entre as duas nações e surpreender algo

do que sobeja e se anuncia quanto a culturas, histórias e processos comuns a dois povos,

simultaneamente distintos e irmanados. Detectar o que há de privativo e complementar: provocar

o estabelecimento de uma proposta dialógica, a princípio por um viés puro e físico de geografia.

Pensar país e continente. Povo, memória, descrição, relato. Destino, política, palavra e ato.

Antes de enfocar o caráter restrito de Brasil e Colômbia em seus pretensos e iniciais

gênios de nação, admitir tais paisagens como fragmentos contíguos, implicados, conseqüentes e

comprometidos, enredados numa mesma massa terrestre comum, porque estilhaços de um

mosaico mesmo. Abaixo do trópico de câncer, cortados em diferentes alturas pelo paralelo do

Equador. Traçar uma linha, também imaginária, diagonal, partida do extremo oeste colombiano,

paralelo zero, com inferência no ponto precisamente representativo do Nordeste brasileiro, em

torno do meridiano que aponta 40º: bordas oceânicas de Pacífico e Atlântico.

Dois olhos contemplativos – nem os primeiros, nem os últimos – apontados na

direção destes oceanos, deste azul e suas variações cromáticas, a desconfiar, alheados (ilhados),

da precariedade, da insuficiência do olhar. Não basta contemplação; há de haver náutica e

impulso através do ar, formas exclusivas de acesso ao universo insular. Supondo a emersão de

duas ilhas, e na intenção de desbravá-las, emergir, também, pensamento e engenho; entender a

aderência do mito à ilha.

Toda a ação narrativa em Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão parte de

representações espaciais insulares e germinais. Macondo e Itaparica, ilhas embrionárias grávidas

de todos os processos, históricos ou não, a serem desvelados pelo discurso literário. É válido

sublinhar a significação simbólica da ilha, como espaço propenso à ocorrência mítica e utópica.

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Para se chegar a qualquer ilha – o centro, o meio de qualquer espaço, o ponto em torno do qual se

juntam e giram corpos, matérias, assuntos, propósitos, desígnios, fins, seres e idéias, o núcleo, o

ponto onde ações se movimentam com maior intensidade, lugar cosmogônico por excelência –

requerem-se navegação ou vôo, partidos de uma periferia ávida de preenchimento. Toda ilha é

princípio, origem, começo de qualquer coisa. Germe, essência, sede, força centrífuga, presságio.

De ventura ou cataclismo; êxito ou o seu revés. A ilha, para olhos primeiros, é uma forma de

elevação geográfica, um espaço eleito, isento, de sobrevida. Cumpre indagar se tal elevação

abandona o caráter puramente físico para avocar dimensão transcendental.

Macondo nos é apresentado como uma representação de “mundo recente”,

virginal, de coisas ainda desnomeadas. Surpreendemos no discurso seu momento inaugural, de

fundação, por pioneiros desbravadores, cujo líder é o patriarca José Arcádio Buendía, primeiro da

estirpe destinada a viver no lugar. Fundada por comodismo, numa região pantanosa e remota, de

reduzidas possibilidades de comunicação com o resto do mundo – apenas o norte – o cenário dos

Cem anos de solidão evolui, nos primeiros momentos da narrativa, de localidade inóspita a

espaço ideal.

Uma inicial natureza primitiva e pouco propensa à fixação humana passa por um

processo de “polimento”, até assumir certa condição provisória de lugar aprazível, estável,

ordenado e feliz. A marca original da Macondo sugerida pelo empreendedor Buendía é o extremo

senso de coletividade, igualdade e partilha, estabelecido por mérito de suas investidas

administrativas. Em Macondo – com uma incipiente agricultura comunitária, de subsistência, e

por meio de uma economia doméstica de comunhão – temos uma natureza essencialmente

partilhada, conforme atestamos pelo próprio discurso literário:

José Arcádio Buendía, o homem mais empreendedor que se poderia ver na aldeia, determinara de tal modo a posição das casas que a partir de cada uma se podia chegar ao

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rio e se abastecer de água com o mesmo esforço; e traçara as ruas com tanta habilidade que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor.1

Ainda que sob condições precárias, em meio a uma “serra impenetrável”2 e ao

“marasmo do pântano”3, a fundação de Macondo vence um estágio inicial desfavorável e

representa o esforço bem sucedido de um empreendimento. Apresentada como espaço remoto e

avesso à hospitalidade, a aldeia incorpora o aparente paradoxo de, não tendo sido “a ninguém

prometida”, configurar-se nos moldes de um “paraíso terrestre”, conforme concepção proposta

por Robert Nisbet, em História da idéia de progresso4. O discurso literário refere um Macondo

efetivo, consistente e harmônico, nos primeiros tempos subseqüentes a sua fundação:

Dentro de poucos anos, Macondo se tornou uma aldeia mais organizada e laboriosa que qualquer das conhecidas até então pelos seus trezentos habitantes. Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém ainda havia morrido.5

Verificada uma primeira estabilidade, não se passa muito tempo até que seja

urgência, para as pretensões expansivas do patriarca Buendía, a transcrição de Macondo, depois

de já surgidas as primeiras frustrações do isolamento e os conflitos de incomunicabilidade e

solidão.

É justamente no confinamento de seu laboratório alquímico, perdido na

precariedade dos instrumentos vários, entre os quais avulta não por acaso o “ovo filosófico” –

elemento simbólico cosmogônico por excelência – que o Buendía inaugural de Macondo

concebe, num trânsito confuso entre possibilidade e fantasia, rotas, cálculos, mapas e planos, em

prol de uma integração espacial com o mundo. O laboratório é – novo paradoxo – o próprio

1 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 14. 2 Ibidem. p. 15. 3 Ibid. 4 Cf. NISBET, Robert. História da idéia de progresso. 5 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 14.

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cosmos, um espaço de criação, aparentemente suspenso sobre o próprio tempo, onde se

desenvolve o “projeto de trasladar Macondo para um lugar mais propício”6

A partir de tal projeto, inicia-se o que consideramos a primeira investida utópica em

relação ao espaço, em Cem anos de solidão. Mais do que isso, e anterior a isso, surpreendemos a

primeira desconstrução utópica, uma vez que a mencionada felicidade da aldeia circunscrita

revela-se provisória, precária, insustentável.

Com fundamento nesta revelação, ocorre a aventura expedicionária em busca de

contato. É quando, pela primeira vez, o discurso literário descreve uma ambiência natural

confessadamente encantada, a propósito de situar o paradeiro intermediário da viagem

esperançosa e desbravadora, promovida pelo diligente Buendía:

... durante mais de dez dias não voltaram a ver o sol. O solo tornou-se mole e úmido, como cinza vulcânica, e a vegetação fez-se cada vez mais insidiosa, ficaram cada vez mais longínquos os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição se sentiram angustiados pelas lembranças mais antigas, naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas se afundavam em poças de óleos fumegantes e os facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. 7

É notável a inversão proposta pelo discurso a esta altura: trata-se de um “paraíso” às

avessas; um paraíso caótico, cujas marcas são a angústia, a depressão e a suspensão espaço-

temporal. Motivada pela busca de abertura, contato, luminosidade e diálogo, a empreitada oferece

os presságios de nova ruptura utópica: escuridão, isolamento e uma natureza esquecida. Em lugar

de abertura, um ainda maior fechamento.

É fundamental considerar que a referida desconstrução da utopia – a desconstrução de

qualquer utopia – é parcela previsível do próprio conceito de utopia. O que parece haver é um

jogo dialético entre surgimento e declínio utópicos, um pressupondo necessariamente o outro,

6 Ibid. p. 18. 7 Ibid. p. 16.

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uma vez que a utopia é, por definição, em âmbito absoluto ou relativo, pertencente à esfera do

irrealizável, conforme postula Adolfo Sánchez Vásquez, em Entre a realidade e a utopia:

Há uma incongruência (...) entre o possível e o real, que se tenta superar transcendendo o real, transformando-o, para que o possível encontre seu lugar na realidade. O que significa que uma utopia concreta, determinada, deixe de ser tal para dar passagem a uma nova utopia. Portanto, a utopia que se mantém como tal, (...) distanciada do real, é indicativa de que a tentativa de realizá-la redunda em fracasso.8

O fim da aventura desbravadora é definido pela consciência de “um Macondo

peninsular”9. Cristaliza-se, assim, a ruptura utópica de que falamos. O Buendía engenhoso, ainda

que provisoriamente, declina de suas entusiastas intenções difusoras, adotando a resolução

resignada de assentar em Macondo, e dedicar-se à criação dos filhos.

Pirajá, Cachoeira, Salvador, Porto Santo. Engenho do Jaburu, Nazaré das Farinhas,

Arraial do Baiacu, São João do Manguinho, Fonte do Porrãozinho, Ponta das Baleias, Corrientes,

São Paulo, Lisboa, Rio de Janeiro. É amplo o alcance geográfico da ação narrativa em Viva o

povo brasileiro. Ela distribui-se, em distintas datas, entre as mais variadas localidades, sendo

notável a escolha de Itaparica sempre como eixo central, irradiador.

Dentro dessa complexa estrutura de pluridimensionalidade espacial, o lugar

identificado como essencialmente cosmogônico é Amoreiras, eixo de irradiação e síntese

formadora de um sem-número de representantes do povo brasileiro. Suspenso sobre o lugar

concreto do Recôncavo é o “Poleiro das almas”10, espaço abstrato, mítico e místico,

desencadeador dos processos encarnatórios de “alminhas inopinadamente desencarnadas”11.

João Ubaldo Ribeiro parte de uma concepção espacial transcendental, apresentando o

ponto onde se verificou:

8 SÁNCHEZ VÁSQUEZ, A. (2001) p. 317. 9 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 17. 10 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 15. 11 Ibidem. p. 14.

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a conjunção especial dos pontos cardeais, dos equinócios, das linhas magnéticas, dos meridianos mentais, das alfridárias mais potentes, dos pólos esotéricos, das correntes alquímico-filosofais, das atrações da lua e dos astros fixos e errantes e de mais centenas de forças arcanas... 12

Esta espécie de dimensão paralela, onde teriam habitado tupinambás, portugueses,

espanhóis, holandeses, franceses e negros africanos, desde os primevos tempos da civilização

brasileira e ao longo de seu percurso evolutivo, teria a incrível capacidade de reter em si mesma

“uma memória infinita e a presença de tudo o que já existiu”13

É importante ressaltar que na primeira descrição detalhada do espaço, no romance,

que parece pretender uma síntese primeira de brasilidade, esta é definida pelo discurso como

tendo se originado não tanto pela presença, mas, predominantemente, pela ausência de marcas,

traços, características:

As alminhas são como certas partículas de matéria, também descritas pela moderníssima ciência, que têm cor, sabor e preferências, mas não têm corpo nem carga. Tanto as alminhas não obstante existem, tudo dependendo da inquantidade de nada que não entra em sua incomposição e, com quase toda certeza, de outras condições científicas, tais como pressão, temperatura e a presença de bons catalisadores para reações de nada com nada. Então, nas amplitudes siderais, imensuráveis e copiosas não-massas de nada escorrem, obviamente sem qualquer velocidade que lhes seja inerente, para juntar-se nas proximidades de algum poleiro d`almas. (...) o que ocorre é nada, nada por todos os lados, uma infinitude de nada inimaginável em toda a sua inextensão. Nada e mais nada e mais nada e mais nada ali se vai aglomerando, até o ponto em que se acumula tanto nada que ele se transmuta num nada crítico e desta maneira surge algo deste nada.14

O discurso literário, mesclando o pensamento filosófico e um pseudo respaldo

científico, apresenta o surgimento de uma “almazinha nova”15 como resultado fatal dos referidos

processos de acúmulo e transmutação.

Ambiência também relevante na estrutura do romance é a Capoeira do Tuntum, lugar

místico e transcendental por excelência, freqüentado por mandingueiros e feiticeiros, e onde

correm ritos religiosos, incorporações, encontros epifânicos e revelações de caráter 12 Ibid. 13 Ibidem. p. 14-15. 14 Ibid. p. 16. 15 Ibid.

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inquestionavelmente espiritual. É notável a atmosfera de espaço encantado, em que se

surpreendem formas indistintas e “visagens”16:

... uma encruzilhada em que, quando fazia lua a pino, a luz descia como uma tocha de cabeça para baixo, porque as árvores grandes que em torno se juntavam espessamente abriam sobre essa cruz do chão um buraco em suas copas. E lá o capim amassado pela passagem de muitos pés exibia cicatrizes pretas, pontos esturricados onde sempre se acendiam velas e se esfregavam as mãos.17

Dá-se justamente na Capoeira do Tuntum certo reencontro de importância

desveladora no romance. Em meio a uma espécie de orgia espiritual, Patrício Macário e Maria da

Fé descobrem-se reencarnações dos espíritos de Vu e Capiroba, respectivamente, e, por isso,

almas afins. Emergem do texto literário, a esta altura, toda uma trama de gerações e

conseqüentes soluções genealógicas para o relacionamento dos personagens. Assim, encantada,

mítica e propensa à ilusão dos sentidos, nos é apresentada a Capoeira, no momento em que

Macário chega ao lugar:

E foi com uma espécie de nostalgia, uma espécie de saudade indefinida, a sensação de que já tinha estado ali nas mesmas circunstâncias, só que mais feliz e inocente, que começou a andar distraído por uma trilha antiga, afundada no meio do capinzal grosso que defrontava a quinta por aquele lado. À luz da lua, as folhas ainda molhadas assumiam feições diversas a cada instante e ele caminhou entre elas se entretendo em sacudi-las para ver as gotinhas d’água se esfacelando nos raios que varavam as copas das árvores mais sobranceiras. Não notou que a trilha fazia muitas curvas e que já não sabia direito onde estava, quando chegou à beira de uma clareira ampla e, do outro lado, avistou um grupo numeroso de negros.18

Em Cem anos de solidão, o espaço natural de Macondo, inicialmente marcado pela

virgindade e pela condição de lugar incivilizado, sofre, gradativamente, sucessivas intervenções

da cultura. Esta transforma (transtorna) a natureza de forma sistemática e crescente até que se

chegue inevitavelmente ao momento estertor. Uma aparente evolução do lugar, vinculada à

promessa de progresso e civilização, acaba por gerar um movimento contrário, involutivo,

16 Ibidem. p. 129. 17 Ibidem. p. 135. 18 Ibidem. p. 427.

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caracterizado pela ocorrência de uma série de catástrofes naturais, que impulsionam o seu

declínio fatal.

A aparente evolução referida tem seu primeiro sinal na ruptura de um estágio

preliminar de economia agrícola, por meio da chegada do comércio. Úrsula Iguarán, a matriarca

Buendía, cumpre a funcionalidade de inaugurar uma nova etapa na vida sócio-econômica de

Macondo. É ela quem traz ao lugarejo os homens e mulheres provindos “do outro lado do

pântano”19, conhecedores de benefícios e formas culturais até então ausentes em Macondo, e que

o povoariam ativamente. Além disso, empreende um venturoso negócio de venda de caramelos,

que mais tarde seria a base do sustento e do enriquecimento da família.

Eis o relato discursivo referente à primeira grande transformação do povoado,

motivada pelos fatores mencionados:

Macondo estava transformado. As pessoas que tinham vindo com Úrsula divulgaram a boa qualidade do solo e a sua posição privilegiada em relação ao pântano, de modo que a reduzida aldeia de outros tempos transformou-se logo num povoado ativo, com lojas e oficinas de artesanato, e uma rota de comércio permanente por onde chegaram os primeiros árabes de pantufas e argolas nas orelhas, trocando colares de vidro por papagaios20

A instauração de instituições ligadas à política e à religião anunciam igualmente a

passagem de Macondo a uma nova etapa civilizatória e, portanto, pretensamente evolutiva.

Coincide com um primeiro momento de estabelecimento da ordem a reforma da casa dos

Buendía, representação a um só tempo particularizada e coletiva de espaço no romance:

... foi surgindo das entranhas da terra não só a maior casa que jamais haveria no povoado, como também a mais hospitaleira e fresca que jamais houvera no âmbito do pantanal (...) A nova casa estava quase terminada quando Úrsula o tirou do seu mundo quimérico para informá-lo de que havia uma ordem para pintar a fachada de azul e não de branco como eles queriam.21

19 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 38. 20 Ibidem. p. 39. 21 Ibidem. p. 55.

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A chegada do delegado Apolinar Moscote provoca a imediata reação de José Arcádio

Buendía, que resiste à formalidade da instituição, demonstrando sua concepção de Macondo

como lugar em que qualquer forma de controle ou governo é dispensável:

... fez um pormenorizado relato de como haviam fundado a aldeia, de como tinham repartido a terra, aberto o caminho e introduzido as melhoras que lhes fora exigindo a necessidade, sem ter incomodado governo nenhum e sem que ninguém os incomodasse. ‘Somos tão pacíficos que nem sequer morremos de morte natural’, disse.22

A auto-suficiência ou neutralidade de Macondo em relação a comandos externos,

instituídos, aparece como fundamento central nos argumentos do visionário patriarca Buendía.

Contrariando a expectativa corrente de que o estabelecimento da ordem implica crescimento e

progresso, a idéia é de que a permanência em certo estado independente de leis garantiria também

a continuidade da paz. Mais do que isso, sugere certa revisão ou inversão do conceito de ordem:

aos olhos do Buendía inaugural, o delegado Moscote chega para “implantar a desordem”23

Mesmo ao desagrado dos fundadores de Macondo – que iniciam, sem sucesso, um

movimento de expulsão dos invasores – e sob a ameaça de uso da força, ocorre a fixação da

polícia no povoado. É o primeiro fator que mais tarde desencadearia a guerra civil, componente

lembrado por Úrsula como uma das causas da desgraça da família Buendía. A família Buendía é

Macondo. Em distintos momentos e de diferentes maneiras, José Arcádio Buendía e Úrsula

Iguarán, ascendentes diretos do primeiro ser humano nascido em Macondo, anunciam presságios

sobre o fim do lugar.

Do ponto de vista econômico, o último estágio do percurso evolutivo por que passa

Macondo é marcado pela chegada do transporte ferroviário e da companhia bananeira. É o nível

máximo da ilusão do progresso no romance, em que a intervenção no espaço natural revela-se

invasiva, devastadora, tumultuada, caótica:

22 Ibidem. p. 56. 23 Ibidem. p. 57.

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... os desconfiados habitantes de Macondo mal começavam a se perguntar que diabo era o que estava acontecendo, quando já a aldeia se tinha transformado num acampamento de casas de madeira com tetos de zinco, povoado por forasteiros que chegavam de meio mundo no trem, não só nos bancos e nos estribos mas até no teto dos vagões. (...) Dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro extremo da povoação.24

A modificação da paisagem sócio-econômica do lugar evidencia a dialética progresso

versus providência, já repetidamente abordada por filósofos e sociólogos, desde a Idade moderna,

conforme atesta o pensamento de Karl Löwith, em O sentido da história:

A crença num progresso imanente e indefinido substitui cada vez mais a crença na providência transcendente de Deus. (...) A própria doutrina do progresso acabou por ter de assumir a função de providência, ou seja, a de prever e prover o futuro.25

Em Macondo, a evolução industrial e tecnológica, forjada sob a justificativa da

modernização e do progresso, mas realizada com fundamento na exploração do espaço natural e

de seus habitantes, faz lembrar o pensamento antiteísta de Proudhon, ao afirmar que o homem

precisa substituir Deus.

A partir da instalação da companhia, os processos de desgaste e declínio do espaço

natural são visivelmente acelerados. Úrsula, que quanto mais velha, mais lúcida e atenta ao

mundo mostrava-se, evidencia uma vez mais a sua apurada sabedoria intuitiva e premonitória,

então agravada pela circunstância da cegueira. Ela nota alterações espaço-temporais sem

precedentes:

Mas naquele dia começou a se dar conta de alguma coisa que ninguém havia descoberto e era que no transcurso do ano o sol ia mudando imperceptivelmente de posição e quem se sentava na varanda tinha que ir mudando de lugar pouco a pouco e sem o perceber. A partir de então, Úrsula tinha apenas que se lembrar da data para saber o lugar exato em que Amaranta estava sentada.26

24 Ibidem. p. 210. 25 LÖWITH, C. (1977) p. 67-68. 26 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 229-230.

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Mas o real e derradeiro transtorno da natureza em Macondo, que conduziria o

povoado a um destino de fatalidade, é sinalizado de maneira hiperbólica e o discurso confere

ênfase aos acontecimentos de ordem avessa à naturalidade:

Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz os últimos talos das plantações. (...) A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos.27

Em meio ao “garimpo” de José Arcádio Segundo no quintal da casa de Úrsula,

motivado pela perda de seus animais, no dilúvio, e em busca do tesouro enterrado pela avó,

constata-se um espaço em ruínas, tanto em sua dimensão individual, restrita, quanto do ponto de

vista amplo, coletivo. Quando cessa o dilúvio no lugarejo, é possível avaliar suas conseqüências

calamitosas:

Nas valas das ruas estavam móveis espedaçados, esqueletos de animais cobertos de lírios vermelhos, últimas lembranças das hordas de imigrantes que tinham fugido de Macondo tão atabalhoadamente como tinham chegado. As casas erguidas com tanta urgência durante a febre da banana tinham sido abandonadas. A companhia bananeira desmantelara as suas instalações. Da antiga cidade cercada só restavam os escombros. As casas de madeira, os frescos terraços onde transcorriam as serenas tarde de jogo de cartas pareciam arrasados por uma antecipação do vento profético que anos depois haveria de apagar Macondo da face da terra28

Dentro de uma organização estrutural marcadamente polifônica, cumpre ressaltar a

presença de mais uma “voz” premonitória quanto ao futuro de Macondo. Não apenas José

Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán advertem sobre o desfecho catastrófico do lugar, mas o próprio

discurso literário o faz.

27 Ibidem. p. 289-290. 28 Ibidem. p. 303.

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Também é de se notar o extremo compasso em que o discurso nos apresenta o

declínio de um espaço eminentemente interno e, a princípio, particular – a casa dos Buendía – e

um espaço externo – ruas, praças e locais públicos de Macondo:

A casa também se precipitou da noite para o dia numa crise de senilidade. Um musgo tenro trepou nas paredes. Quando já não havia mais um lugar vazio no quintal, as ervas daninhas quebraram o cimento da varanda por baixo, estilhaçaram-no como um cristal... 29

As ruas desertas e as casas desoladas eram iguais às que imaginara num tempo em que teria vendido a alma para conhecê-las. (...) Mais que uma livraria, parecia uma lixeira de livros usados, colocados em desordem nas estantes esburacadas pelo cupim, nos cantos cheios de teias de aranhas e até nos espaços que deveriam ser destinados à passagem.30

Uma ausência de passagem, de saída. Em certo estado aporético parece viver

Macondo, quando Aureliano Babilônia, último descendente da estirpe, experimenta a solidão e o

cárcere forçado na casa dos Buendía. O espaço, a esta altura, em momento agônico, próximo ao

esgotamento, poderia ser definido por um paroxismo contundente de García Márquez: “paraíso

decadente”31 Os prazeres incestuosos entre Aureliano Babilônia e Amaranta Úrsula lhes impede

vigilância e cautela:

Naquele Macondo esquecido até pelos pássaros, onde a poeira e o calor se fizeram tão tenazes que dava trabalho respirar, enclausurados pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor numa casa onde era quase impossível dormir por causa do barulho das formigas ruivas, Aureliano e Amaranta Úrsula eram os únicos seres felizes, e os mais felizes sobre a terra.32

A destruição total da casa e do povoado acontece em meio à leitura dos pergaminhos

enfim decifrados, depois de cinco gerações, por Aureliano Babilônia. A esta altura, a genialidade

de García Márquez propõe uma neutralidade entre futuro e presente; o futuro é o presente,

quando o último Aureliano, o último Buendía, toma consciência da impossibilidade de sobrevida

29 Ibidem. p. 330. 30 Ibidem. p. 336-337. 31 Ibidem. p. 341. 32 Ibidem. p. 372.

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para si mesmo e, conseqüentemente – ele é o último – para a estirpe. Em compasso com a leitura

dos pergaminhos, tornando todo o seu instrumental teórico prática e movimento, numa espécie de

tradução simultânea, o espaço de Macondo sucumbe, sem mais resistências:

Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes (...) Estava tão absorto que também não sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e desprendeu os cimentos. (...) Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas (...) Estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens... 33

Macondo descreve, então, uma trajetória que poderia assumir o formato gráfico de

parábola, com uma inicial situação de adversidade, posteriormente superada pela promessa não

cumprida de superar o atraso e atingir o status de civilização cuja marca fundamental seria o

progresso. Ao invés disso, o lugarejo retorna à inicial circunstância adversa e sucumbe,

finalmente, em caráter irrevogável.

De acordo com a procedência e a intencionalidade da “voz” discursiva em evidência,

a natureza brasileira sofrerá distintas apreciações em Viva o povo brasileiro. Nos diálogos entre o

Cônego Visitador e o Barão de Pirapuama, por exemplo, amplamente comprometidos com certa

lógica de colonização, o espaço natural será mencionado sobretudo como propenso à exploração

e ao espólio. Como fator agravante, o discurso literário arrola criticamente as causas e facilidades

de domínio, pertencentes não privativamente à paisagem natural, mas à política e à sócio-

econômica:

A decadência da autoridade pública, a flacidez do espírito de honra e de decência, o pactuar com a insolência das classes servis, o abandono dos mais elementares princípios da hierarquia social, a confusão de valores e critérios, até mesmo a falta de uma verdadeira guerra, que eduque a grande massa do povo e lhe tempere a fibra, tudo isto, (...) é-me causa de grande receio e pena por terra como esta, que, em mãos firmes e

33 Ibidem. p. 382-383.

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cônscias das verdades fundamentais, muito teria a dar à civilização européia que aqui os bons mourejam por plantar e os maus por deitar abaixo.34

Tais verdades fundamentais a que se refere o Cônego – João Ubaldo Ribeiro já

insinuara com a epígrafe escolhida para o romance – são, admitindo um paroxismo,

absolutamente relativas. Mas, sob o olhar adventício do colonizador, que transforma a realidade

sob a forma do exótico, a terra brasileira é apresentada em consonância com a idéia de país

subdesenvolvido proposta por Antonio Candido no ensaio intitulado “Literatura e

subdesenvolvimento”.

A propósito das noções de subdesenvolvimento e atraso, em voga nos anos de 1950 e

1960, e cujos princípios foram certamente objeto de leitura da geração de escritores que João

Ubaldo Ribeiro integra, convém ressaltar a ênfase conferida pelo romance à base de nossa

primitiva arquitetura de produção, com fundamento na grande propriedade agro-exportadora e no

trabalho escravo. Esta forma organizacional conduz aos perfis assumidos pela sociedade de

então, pioneiras marcas associáveis ao povo brasileiro, e atualizadas por diversas gerações que as

vieram reproduzindo ao longo da história: é a tradição das desigualdades, para utilizar

terminologia aplicada por Ângela Mendes de Almeida, no ensaio “A atualidade de três clássicos

brasileiros: Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre”:

Determinada, no princípio, pela necessidade econômica, a escravidão fincou raízes para além da sua institucionalidade. A convivência com ela tornou-se como que uma segunda natureza dos brasileiros, que incorporaram até o fundo de seu subconsciente a desigualdade social como elemento tão justo e tão natural como era, ao tempo de Aristóteles, a desigualdade de todas as coisas.35

Diante desta construção discursiva acerca do país e dos sentimentos por ele

despertados, vislumbram-se, a princípio, dois posicionamentos críticos possíveis: a aceitação

passiva e resignada, de forte inspiração individualista, por apenas buscar soluções pontuais, e a

34 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 61-62. 35 ALMEIDA, A. M. (2001) p. 16.

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contestação revolucionária, de comprometimento coletivo, que pode ocasionar, a um só tempo,

construção e desconstrução de mitos. Em Viva o povo brasileiro, em meio a muitas vozes

discursivas, criou-se espaço para estas duas posturas destoantes: Ubaldo desmitifica certas

verdades institucionalizadas e tornadas naturais, mas, simultaneamente, instaura o mito através de

personagens, situações e realidades expostas em sua narrativa. O confronto é inevitável e

possivelmente proposital.

Se por um lado surpreendemos um extenso, preconceituoso e arrogante discurso

sobre a terra e o povo brasileiro, por parte do Cônego Visitador, cuja retórica moralista e barroca

exige cerca de cinco páginas do romance, o dia em que se dá a concepção de Maria da Fé,

grande símbolo utópico da narrativa, é descrito pelo discurso literário de maneira visivelmente

apreciativa, quanto à natureza pátria. A fala do Cônego, imagem opressora da colonização, atinge

tal nível de absurdo, que conduz ao riso:

... sabemos que aqui não há bosques, nem pode haver paz bucólica entre bichos venenosos, cobras, plantas que causam todos os males, chuvas desmesuradas, calores insofríveis, insalubridade perpétua (...) Onde estão as cerejas do outono, os pêssegos perfumados, a salubérrima maçã, as delicadas peras, as suavíssimas ameixas? Onde está a alegria luminosa da primavera? (...) vem pra cá uma tal Missão Francesa a divulgar impropriamente as belas-artes, como se aqui tivéssemos um povo igual ao francês e não uma súcia de frascalhos, pirangueiros, servos rudíssimos, um povo feiíssimo, malcheiroso, mal-educado, ruidoso, estólido, preguiçoso, indolente e mentiroso, como sabeis muito bem todos...36

O pronunciamento do Cônego parece funcionar propositalmente como uma forma de

brincar com montagens discursivas que, embora tenham em algum momento sido elevadas à

categoria de consenso, foram completamente postas em xeque. O espanto causado pela

comicidade cumpre a funcionalidade de romper com velhos conceitos naturalizados e

mecanizados pelo uso, porém não mais aplicáveis. O leitor, pelo riso, descobre-se consciente de

36 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 108-109-111

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que se está realizando a desmontagem de um discurso. A propósito deste processo, são válidas as

afirmações de Henri Bergson, em O riso – ensaio sobre a significação do cômico:

O riso deve ser algo deste gênero: uma espécie de gesto social. Pelo temor que o riso inspira, reprime as excentricidades, mantém constantemente despertas e em contato mútuo certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e adormecer; suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez mecânica na superfície do corpo social (...) Essa rigidez é o cômico, e a correção dela é o riso.37

Processo similar ao verificado no discurso do cônego, ocorre na ocasião em que

Bonifácio Odulfo e sua mulher, Henriqueta Vianna, viajam a Lisboa. A viagem é sugestivamente

datada do século XIX. O olhar lançado pelos personagens ao espaço da então distante pátria

estabelece o viés comparativo, e atualiza um discurso oitocentista, fundamentado na hoje gasta

filosofia determinista e na também combalida dialética civilização versus barbárie, de Sarmiento.

É certo que os personagens em questão representam as primeiras gerações de uma

hipócrita burguesia financeira no Brasil, enriquecida por meios ilícitos, compradora de títulos de

nobreza, preconceituosa, descrente no país e deslumbrada com qualquer referência adventícia. A

voz discursiva que os representa também se aproxima do absurdo e do risível, além de revelar

uma cristalização irreversível da sua condição de colonizados: Odulfo e Henriqueta acreditaram

em sua inferioridade, e lutam para superá-la, sob pena de aproximarem-se do ridículo, ao menos

aos olhos de um leitor do século XXI. Mais uma vez, o cômico aponta para a fragilidade das

construções referentes à nacionalidade, veiculadas pelo discurso literário:

A verdade é que a clara definição do ano em quatro estações distintas é civilizada e civilizadora. As nações como o Brasil, em que praticamente só existe inverno e verão, imperando a mesmice de janeiro a dezembro, parecem fadadas ao atraso e são abundantes os exemplos históricos e contemporâneos. (...) o frio estimula a atividade intelectual e obvia a inércia própria dos habitantes das zonas tórridas e tropicais. Não se vê a preguiça na Europa. (...) Que palacete! Palacete não, um verdadeiro palácio, uma residência digna de um rei. Que diferença em relação à pobreza das casas brasileiras, onde a ausência de conforto, requinte e luxo era apelidada, com indisfarçável vergonha, de austeridade38

37 BERGSON, H. (s/d) p. 19. 38 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 409-410.

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A já mencionada “tradição das desigualdades” revela-se em seu aspecto mais

tenebroso, no romance, através de uma natureza brasileira intencionalmente vitimizada. A crítica

política de Ubaldo tem amplo alcance e vem de longa data. Revela a utilização das catástrofes

naturais em prol do enriquecimento. Na fala de Amleto, nos surpreendemos com a conveniência

da miséria e da desgraça brasileiras:

As secas, como se chamam essas estiagens, não são tão más assim. Antes, pode-se talvez ver nelas a garantia da ordem social e da economia estabelecida. Por exemplo, somente através da penúria engendrada pelas estiagens é que o pequeno proprietário se rende à evidência de que sua atividade será sempre de minguada e insignificante produção, assim possibilitando que os grandes proprietários – os únicos que podem levar para aqueles ermos o progresso, já lhes direi por quê – possam comprar-lhes as terras, e a preços convenientemente baixos, pois do contrário seria uma inversão de recursos desmesurada, quiçá insuportável. (...) Portanto, a seca cumpre um papel importantíssimo, efetuando algo que, para ser realizado artificialmente, requereria, estou seguro, até mais que a força das armas.39

Em contrapartida, a natureza ilustrada pelo discurso como prenúncio do nascimento

de Maria da Fé, mesmo tendo ele resultado de um estupro, é das mais hospitaleiras e aprazíveis:

E esta ilha, já diziam os antigos, é verdadeiramente o bispote do céu, por assim falar, um ponto que as nuvens escolhem para arrebanhar-se antes de seguir viagem (...) Logo depois o tempo clareia de repente, o céu aparece com um azul muito levinho, o sol vai esquentando sem ficar tão quente como em fevereiro e o dia nasce desse jeito lavado que todo mundo conhece, a terra e a areia assentadas, as folhas com lustro, o ar limpíssimo, muitas novidades em cada canto, grande movimentação de bichos e uma certa alegria despropositada, uma certa crença em que, lavado assim, luminoso assim, o universo não é indiferente, mas propício.40

O tom fatalista do texto é uma sinalização muito clara: fiel à tônica místico-

transcendental de sua narrativa, Ubaldo nos insinua os presságios de uma construção mítica.

Dafé, personagem representativa da maior projeção utópica do romance, é concebida num dia

claro, límpido, “lavado”, em que o universo é benéfico, adequado, oportuno.

39 Ibidem. p. 214-215. 40 Ibidem. p. 122.

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Entre as ambiências descritas no romance, a Armação do Bom Jesus é o espaço de

produção, por excelência. É lá onde mais acentuadamente se verifica a paisagem transtornada

pela história de exploração em que se inscreve o Brasil. As dinâmicas dialéticas entre natureza e

cultura, progresso e atraso, evidenciam-se pela configuração do espaço produtivo, onde se

realizava o corte das baleias, a preparação de sua carne e banha, bem como todos os demais

procedimentos com vista a abastecer o mercado europeu de produtos coloniais:

Logo defrontaram o barracão sem paredes vomitando fumaça por todos os seus buracos, onde alguns meninos e duas ou três meninas entravam e saíam, no trabalho da fundição. Mais adiante, abrolhando por trás do telheiro como obeliscos entortados, as costelas da baleia em meio às levas de urubus. Do lado oposto ao mar, ondulando por cima dos morrotes suaves que socalcam as costas da ilha, o canavial dobrado na viração, empenando e desempenando alternadamente, não se sabendo se o cicio que modulava o ar vinha do vento peneirado pelos colmos ainda fininhos ou se vinha das asas jamais detidas dos urubus e das moscas.41

O espaço degradado pela urgência de satisfazer interesses externos, a submissão do

país ao doar mão-de-obra, engajando-se compulsoriamente num projeto de cujos benefícios não

desfrutará, com os risco de perda de autonomia e desintegração de sua identidade, fazem ecoar as

palavras de Darcy Ribeiro acerca do desenvolvimento de culturas no contexto de povos

atrasados, em O processo civilizatório – etapas da evolução socio-cultural:

Os processos civilizatórios singulares são (...) movimentos históricos concretos de expansão, que vitalizam amplas áreas, cristalizando-se em diversas civilizações, cada uma das quais vive sua existência histórica, alcançando o clímax de auto-expressão, para depois mergulhar em longos períodos de atraso.42

Viva o povo brasileiro termina com a exposição de uma paisagem. Com a abertura da

canastra, e a conseqüente revelação de segredos e verdades acerca de nosso destino de brasileiros,

o espaço natural volta ao território do encantado e sofre interferências cataclísmicas:

No céu de Amoreiras nada se via a não ser as constelações de janeiro em seu passeio inexorável. Mais acima desse céu de Amoreiras, onde tudo existe e nada é inacreditável,

41 Ibidem. p. 102-103. 42 RIBEIRO, D. (1998) p. 66.

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o Poleiro das Almas, vibrando de tantas asas agitadas e tantos sonhos brandidos ao vento indiferente do Universo, quase despenca da agitação que o avassalou, enquanto a terra latejava lá embaixo e as alminhas faziam força para descer, descer, descer (...) O sudeste bateu, juntou as nuvens, começou a chover em bagas grossas e ritmadas, todos os que ainda estavam acordados levantaram-se para fechar suas janelas e aparar a água que viria das calhas.43

Nas duas representações espaciais insulares aqui contempladas, habitadas ao longo de

gerações, sejam elas motivadas por critérios de ordem biológica ou espiritual, natureza e cultura

realizam trajetos de velocidades descompassadas. As duas ilhas guardam a similaridade

pressuposta de serem espaços a que o mito adere. Macondo e Itaparica, superfícies naturais

eleitas, naturalmente aderentes ao mito, oferecem-se como vias a serem percorridas por um motor

utópico. Ele desloca-se em sentidos ora coincidentes, ora controversos, mas é perceptível a

qualquer instante.

Em Cem anos de solidão a construção da utopia, depois de breve oscilação inicial,

cumpre trajetória em declive, até desconfigurar-se pontualmente, inverter-se em desconstrução:

Macondo não terá uma nova oportunidade. A Itaparica ilustrada em Viva o povo brasileiro,

distintamente, nos é mostrada ao fim do romance como sede de toda a utopia: é um espaço

proeminente, propenso à esperança e às oportunidades.

Olhos mais alerta do que os anteriores – um outro tempo – surpreendem agora duas

ilhas – não as mesmas – em distintas etapas de suas experiências geológicas. Eis uma imagem

translúcida, simultânea a qualquer tempo, projetada verticalmente, de olhos a meia altura de um

oceano e seus processos sondáveis, porém portadores do que define qualquer processo: Macondo

imerge agônica em sua desgraça prenunciada; Itaparica respira o alívio esperançoso da emersão.

Desfeito o peso molhado de um escafandro, há que se olhar para o tempo.

43 UBALDO, J. U. (1984) p. 592-593.

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Prossiga até chegar ao final; então pare. LEWIS CARROLL

O tempo é uma quantidade inventada. HERMANN BONDI

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2. Histerias cronológicas: sobre fim e princípio de um tempo distinto

São muitos os tempos e igualmente múltiplas as versões sobre ele. Das ampulhetas e

clepsidras aos relógios providos de escape, apenas uma parcela intermediária e ínfima, no

caminho e na suposta história do tempo: discretização, fragmentação e metrificação temporais

cada vez mais acentuadas. E toda a atividade humana, atravessada pelo tempo, paga o preço do

trajeto promovido pela ciência entre o contínuo e o descontínuo: controle e regulação. O século

XX imprimiu certa histeria ou certo desamparo às certezas da física, com o advento da noção de

relatividade. O século presente, espaçotempo da contemporaneidade, é marcado pelos maiores

níveis de sofisticação tecnológica e por uma impiedosa aceleração de ritmos: nossos relógios

ficaram também histéricos. O tempo está subordinado ao movimento e à gravidade, e são

distintas as velocidades com que a Terra gira em torno do Sol e com que o Sol orbita a galáxia.

Impulsionados pela extensão do cosmo, também os conjuntos galácticos determinam distâncias

entre si, constituindo um movimento complexo e onipresente.

Já se verificou ser possível que corpos astronômicos, com seus campos de

gravitação, deformem o tempo. Pensar, então, o absurdo comprovado de ser o interior de um

buraco negro uma porção de espaço e tempo jamais observável de fora. Nem mesmo as teorias

quânticas souberam se ele guarda em si um suposto fim do tempo. Existe o fim do tempo? Existe

o seu início? Quantos e de que natureza são os tempos ? Eis perguntas que constituem problemas

permanentes da física, da filosofia, e do universo particular e subjetivo de cada humano investido

na própria existência.

João Ubaldo Ribeiro e Gabriel García Márquez exercitam em suas narrativas o

rompimento com uma concepção temporal clássica, linear-progressista, segundo a qual forças

causais e determinantes conduziriam a um estado final e pleno da História.

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Assumindo o posicionamento de um enfoque flexível do tempo, incorporam a noção

de simultaneidade, sem, no entanto, abolir a idéia de seqüência: ela pode até existir, mas sem

apontar para qualquer plenitude, de acordo com a concepção histórica definida por Alfredo Bosi,

em O tempo e os tempos:

As potências latentes nos acontecimentos, ao se desencadearem, se anulariam umas às outras assim como os vencedores que dominam os adversários menos fortes, podem com o tempo, ser superados por outros, mais fortes; mas, ao fim, e ao cabo da linha, a todos os espera a morte. Uma seqüência também, mas sem plenitude e sem telos.44

O tom pressagioso que abre Viva o povo brasileiro evidencia, a princípio, a escolha

de uma abordagem temporal notoriamente marcada pela simultaneidade, e em que se ausenta a

idéia de terminalidade, de duração temporal finita:

Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. (...) E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na baía de Todos os Santos...45

Dentro da perspectiva mística escolhida para compor sua narrativa de gerações,

Ubaldo providencia uma voz narrante que poderia ser a de um Deus, tal qual nos apresenta o

cristianismo clássico: existente fora do tempo, conhecedor de presente, passado e futuro. Há um

solene descomprometimento com o princípio de tempo finalista, cumulativo, divisível em partes

delineáveis, e provido, necessariamente, de início ou fim supostos. Não se trata aqui de um tempo

universal, fluindo em curso uniforme, tal como queria Newton. O tempo configurado, a princípio,

no romance de Ubaldo, aproxima-se mais do descrito por Einstein, em inícios do século XX,

através dos postulados sobre relatividade. Qual o início da existência da alminha encarnada no

alferes, em tempos da independência brasileira? Note-se a escolha sugestiva do conectivo que 44 NOVAES, A. (1992) P. 20 45 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 9.

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inicia o texto: a primeira palavra do romance, cujo valor semântico é opositivo, obriga a

percepção do leitor de que, no território literário a que se lança, certa previsibilidade está rompida

de imediato: não existe, ou não se conhece um “antes”. Quando se impulsiona o processo de

contagem daquela vida? O próprio discurso literário aponta para a impossibilidade ou

desconhecimento da resposta. Antes, admite ou sugere a inexistência do tempo em si mesmo,

absoluto: há necessariamente um início e um fim para as coisas? Ou mesmo: havendo início, é

possível determiná-lo? Eis outras recorrentes interrogações da física e da filosofia.

Além da abolição de um exame temporal fundamentado nos critérios de linearidade e

progressão, também é perceptível a suspensão da instância narrante, em relação a qualquer

tempo. Passado, presente e futuro confirmam-se como solução ultrapassada, superficial e

meramente paliativa, para organizar o tempo em setores. A fronteira e a seqüência entre eles

revela-se fragilizada, nebulosa, indistinta. A mistura de tempos verbais no discurso, a onisciência

premonitória do narrador, a sugestão de uma contagem regressiva, colaboram para o

estabelecimento da coexistência simultânea e da interpenetração mútua de tempos.

A imagem agonizante do alferes e suposto herói do Brasil atravessa a dimensão

temporal, e se materializa em objeto de arte de valor histórico e documental, transmitido ao longo

de gerações: o quadro, datado do ano de nossa independência política, reatualiza o momento

inaugural do romance. Prova que a arte sobrevive ao tempo, o contrário do que ocorre com as

versões da história oficial do país: Maria da Fé, então aprendiz em 1840, lança à tela olhos que

deformam a imagem, dessacralizam-na, desconstroem-na:

Depois de muito contemplado, o alferes parece que se move (...) Dafé, porém, não prestava atenção às palavras, que até já sabia de cor, como, aliás, quase todo o discurso, de tanto ouvi-lo repetido pela professora, a qual, entre os muitos e muitos heróis ostentados pela História do Brasil, tinha por esse seu grande conterrâneo estima especial. Dafé gostava era de fixar a vista naquela cena e logo começar a esfumar-se em pensamentos exóticos, sem ver ou ouvir qualquer outra coisa.46

46 Ibidem. p. 249-250.

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A propósito desse fragmento do romance, em que verificamos uma importante

articulação entre diferentes esferas temporais, são pertinentes as considerações de Marcio

Tavares d’Amaral, em seu ensaio “Sobre o tempo: considerações intempestivas”:

O passado fica à disposição, como um estoque de sentidos, de atos que podem ser convertidos em fatos para legitimar sistemas e disposições contemporâneas. Hoje o passado pode estar servindo apenas para legitimar uma determinada estrutura de poder e de relações entre presente e futuro. E, assim, o bloco futuro-presente está permanentemente produzindo passado.47

À parte o primeiro fragmento textual de Viva o povo brasileiro, todos os outros são

devidamente datados, especificamente, em dia, mês e ano. O primeiro fragmento, protagonizado

na abertura pelo alferes em agonia, funciona mesmo como uma unidade estrutural destacável,

avessa à precisão de uma data, por tratar-se de uma cosmogonia. É como uma narrativa dentro da

narrativa, concêntrica, à parte, ou como um livro de gêneses de Ubaldo; uma fábula, não da

criação do mundo, mas da criação de um mundo. Um certo mundo e sua representação específica.

Neste intercurso do texto, surpreendemos um paroxismo latente: trata-se da criação, de um

momento inaugural, pioneiro, mas vazio de tempo:

Quando, fortuitamente, o Poleiro das Almas está repleto de almazinhas recém-nascidas, a agitação febril de tantos jovens ansiosos pelo aprendizado e pelo cumprimento de suas sinas chega a fazer fibrilar o cosmo e a perturbar um pouco o perfeito funcionamento dos relógios astrais e demais mecanismos celestes. Nesses casos, é comum que, em revoadas nervosas e espasmódicas, como lavandeiras que estejam a mariscar e sejam espantadas por uma pedra, as almas novas desçam iguais a flechas em direção ao planeta, chispando de um ponto a outro com a velocidade de relâmpagos, até acharem um ovo, um útero, uma semente, algo vivo para animar.48

À exceção do fragmento preambular do romance, todos os outros são introduzidos

por uma espécie de cabeçalho, informando as localidades e datas precisas em que ocorre a ação

narrativa. A primeira data referida tem forte conotação de ponto de partida, pois corresponde a

47 DOCTORS (org.) (2003) p. 23 48 RIBEIRO, J. U. (1984). p. 17.

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1822, ano da independência brasileira. A data imediatamente apresentada no romance é 1826, e a

ação já é desenvolvida em um Brasil marcadamente imperial. Até então, embora tenha sido

manifesto um salto cronológico de quatro anos, manteve-se a orientação progressiva do tempo.

Na terceira indicação datal no romance, porém, o que se verifica é a inversão da rota

temporal, de seu sentido: voltamos a um Brasil barroco, seiscentista e antropofágico. Notamos a

esta altura a construção discursiva de um tempo histórico, empírico, cuja cena brasileira é

protagonizada pelo caboclo Capiroba e sua deglutição carnavalizante de holandeses, em 1647.

Em meio às práticas coloniais de catequese do gentio, empreendidas através de uma

pedagogia impositiva por parte dos religiosos colonizadores, surge a descrição de uma concepção

temporal que dialoga com a noção de reversibilidade, em franco e irônico desacordo com o

discurso tradicional católico acerca de um tempo eminentemente progressivo e irreversível e,

portanto, duramente reativo ao princípio de tempo cíclico:

Quando os padres chegaram, declarou-se grande surto de milagres, portentos e ressurreições. Construíram a capela, fizeram a consagração e, no dia seguinte, o chão se abriu para engolir, um por um, todos os que consideraram aquela edificação uma atividade absurda e se recusaram a trabalhar nela. Levantaram as imagens nos altares e por muito tempo ninguém mais morria definitivamente (...) Deitava-se um velho morto ao pé da imagem e, depois de ela suar, sangrar ou demonstrar esforço igualmente estrênuo, o defunto, para grande aborrecimento seu e da família, principiava por ficar inquieto e terminava por voltar para casa vivo outra vez, muitíssimo desapontado.49

A superação da morte, via ressurreição, vai de encontro à expectativa de morte como

processo irreversível e, por conseqüência, à ordem e direção temporais e ao processo de duração

ou fluxo contínuo, sobre o qual Hans Meyerhoff postula em O tempo na literatura: “Processos

irreversíveis (...) definem uma ordem causal unidirecional. Em outras palavras, adicionam ao

49 Ibidem. p. 34.

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conceito de ordem a noção de que a seqüência de ‘anterior’ e ‘posterior’, ‘passado’ e ‘futuro’,

avança apenas numa só direção”50

Assim, todos os demais apontamentos de data permanecem totalmente desvinculados

de ordenação, linearidade ou seqüência. O próprio João Ubaldo Ribeiro, em entrevista concedida

para o presente trabalho, comenta a estrutura de fluxo e refluxo temporais e datas embaralhadas:

... E as pessoas pensam, e não adianta explicar o contrário, que eu escrevi o livro na ordem linear certinha e depois desarrumei. Não. Ele saiu. (...) Fica fazendo o tempo todo, vai e volta, aquilo foi como saiu. Eu não planejei fazer assim (...) O livro está praticamente como saiu da máquina de escrever.51

No processo de mesclagem de datas que subverte qualquer lógica entre anterioridade

e posterioridade, fatalmente ocorrerá o retorno. 1827, por exemplo, é um ano constantemente

revisitado no romance, o que sugere a noção de circularidade. A propósito desta recorrência, são

sugestivas as considerações de Paul Davies, em O enigma do tempo – a revolução iniciada por

Einstein:

Os ciclos (...) não são exatamente periódicos, mas uma mera recorrência estatística. A situação pode ser imaginada em termos do baralhamento de cartas. Se um baralho de cartas em ordem de naipes e números for embaralhado, quase certamente seu estado será menos ordenado após o processo de baralhamento. Contudo, como o baralho só tem um número finito de estados, o baralhamento aleatório contínuo deve fazer com que qualquer dado estado apareça e reapareça com freqüência infinita. Por mero acaso, a ordem inicial de naipes e números acabará sendo restaurada.52

As datas estipuladas por Ubaldo são marcos aleatórios e metonímicos de épocas

históricas brasileiras, cuja importância é fundamental para a investigação e o possível

entendimento do que nos define enquanto pertencentes à nação a que o título do romance corteja.

Aproximam-se, em sua condição de casualidade, do significado de “pontas de icebergs”, proposto

por Bosi, em obra já mencionada:

50 MEYERHOFF, H. ( 1976) p. 19 51 Entrevista concedida a Sheila de Almeida Machado, em 14/04/2006. 52 DAVIES, P. ( 1999) p. 46-47.

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Datas são pontos de luz sem os quais a densidade acumulada dos eventos pelos séculos dos séculos causariam um tal negrume que seria impossível sequer vislumbrar no opaco dos tempos os vultos das personagens e as órbitas desenhadas pelas suas ações. A memória carece de nomes e de números.53

Pelos séculos dos séculos. Parece esta a proposta de orientação narrativa de João

Ubaldo Ribeiro. Do século XVI ao XX, uma espécie de viagem que ilumina, resgata e relê os

acontecimentos definidores da nação, com um elaborado e paralelo deciframento de tramas

genealógicas espirituais, referentes a uma suposta “alma brasileira”. Historicidade e

literariedadade, experiência e metafísica, tudo é passível de cruzamento, tudo se converte a um

estado de hibridismo latente.

Pelos séculos dos séculos. Colonização, Independência, Império, República.

Catequese, mestiçagem, escravidão, milagre econômico, sujeição ao capital americano. “Datas

são pontas de icebergs”, dizia Alfredo Bosi, em texto já mencionado. Como se manipulasse um

tambor de luz, sempre ágil, mas com velocidade variada, Ubaldo traz à vista cenas e processos de

uma história brasileira aberta a leituras novas. Entre tais cenas e processos, o tempo; entre a

leitura oficial e uma nova, o tempo.

A releitura histórica de que falamos acontece, de antemão, em pelo menos dois

níveis: no âmbito externo ao texto literário, via leitura; e dentro dele próprio, através de sua

estrutura discursiva polifônica. É preciso insistir em mencionar a multiplicidade vocal do

romance. Inúmeros personagens, em diferentes tempos e espaços, com distintas procedências

sociais, repercutem e testemunham sua própria história biográfica na obra e sua visão particular

da pátria, sua origem e formação. Dadinha exemplifica a afirmação. Escrava centenária e espécie

de mentora espiritual dos escravos da Armação, prevê a própria morte no dia em que comemoram

seu centenário. Antes de morrer, no entanto, realiza um extenso discurso que compila toda sorte

53 NOVAES, A. (1992) p. 19.

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de lições, recados, simpatias e avisos, inspirados não apenas por sua sabedoria secular, mas por

sua conhecida e respeitada mediunidade. A voz sempre marginal do escravo na história brasileira

oficial adquire eco e retumbância, ao ser emblematizada por Dadinha, que reconta a história com

subjetividade e irreverência:

Premeiro morreu dão João, cravejado de prata e pedraria, comendo queijo de ouro em pó e se refastelando na riqueza e do povo sentindo muito dó. Depois desse reis dão João, se seguiu o reis Zuzé, havendo em toda a nação uma grande alteração, porém cá não havendo nada, ou pra não dizer que nada, havendo cana e mulé soreana. Assim não é que adispois o que vem é a rainha, a qual chamada de dona Maria trouxe pra todos grande alegria e aqui mandava grandes caravanas pra buscar cana e trazer moça soreana, e cada reis e rainha que vai nachendo é uma grande esperança de quem veve padecendo, he-he-he-he, Caboco Capiroba – rrreis! Come reis, caboquinho, hum, come rainha? Hum, cruz, nojeira, ti-ti-ti, ti-ti-ti!54

O caboclo Capiroba, mencionado no discurso de Dadinha, e seu bisavô, dentro da

complexa estrutura genealógica montada por Ubaldo, é também personagem ilustrador do

potencial de releitura histórica contido no romance. Ilustrando o choque entre culturas no tempo

colonial, fundamentado na tradição antropofágica, segundo Oswald de Andrade, e no

procedimento de carnavalização, segundo Bakthin, Ubaldo proporciona o contraste entre o

elemento nacional por excelência, na figura do caboclo, e o elemento adventício, representado

pelos holandeses.

O que resulta do encontro é uma postura desconstrucionista do discurso, ao inverter a

perspectiva histórica hegemônica, segundo a qual o componente estrangeiro teria

necessariamente subjugado o local, revelando-se a ele superior. Na verdade, o que ocorre é uma

deslegitimação do elemento adventício que, nos limites da elaboração literária, revela-se inferior

e subjugado, com nova implicação cômica. Mais uma vez, surpreendemos no texto usos

dicotômicos ultrapassados, superficiais, estereotipados, caricaturais que, invertidos, conduzem ao

riso. Na releitura histórica proporcionada pelo tempo e pela crítica por ele apurada, enfatiza-se a

54 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 71-72.

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postura elevada, dominadora e até pedagógica do caboclo, em relação a seus oponentes

holandeses:

... o caboco Capiroba foi obrigado, bem a contragosto porque tinha fumado erva de cabeça e queria ficar quieto espiando as árvores, a quebrar um dedo de cada mão dele. Evitava também assim que Sinique, cujos modos agitados e algaravia incessante já começavam a irritá-lo, cavasse um buraco para desalojar os mourões, como chegara a tentar. Podia deixá-lo amarrado, mas sabia não ser bom para a criação mantê-la atada, era definhamento certo. Tentou convencê-lo com bons modos, não gostava de maltratar o bicho sem necessidade. Mas ele se comportava como um caititu demente, insistindo em mostrar os dentes e coinchar seus sons incompreensíveis, e o caboco não teve jeito senão tresapassar-lhe um arganel pelo focinho para melhor movimentação e aplicar-lhe umas bordoadas (...) Ficou sério e disse ‘quietaí, vai deitchá’ ao preso, embora sem muita convicção, porque sabia que, como os outros de sua espécie, era um bicho bronco, que não entendia as ordens mais simples. (...) pôs-lhe o pé na cara com firmeza mas sem brutalidade e o sangrou pelo pescoço numa cuia de cabaceira com caldinho de limão da terra dentro, havendo preferido isto a achatar a cabeça, para não estragar muito a mioleira.55

Em Cem anos de solidão, há uma multiplicidade de tempos. Simultâneos ou

sobrepostos, referentes ao corpo, à cultura ou à sociedade, apresentam-se de modo

predominantemente subjetivo, sendo raros os detalhamentos datais. Tamanha é a complexidade e

a elaboração da estrutura temporal do romance, que poderíamos mesmo supor o entendimento

dos “cem anos” avocados no título como um recorte cronológico, uma espécie de condensação ou

metonímia temporal, relativa a um tempo muito mais estendido ou expandido. Na cronologia

metafórica dos cem anos, vislumbramos a genialidade de García Márquez construir e apresentar

uma história da humanidade.56

Em meio a essa abordagem múltipla da experiência temporal no romance, duas

dimensões de tempo fazem-se destacáveis: a histórica, projetada pela sucessão de etapas do

processo civilizatório ou pela exposição de eras sócio-econômicas facilmente delineáveis; e a

mítica, fundamentada nas concepções de circularidade e retorno, recorrentemente disseminadas

55 Ibidem. p. 44-45-46. 56 Cf. JOZEF, Bella. História da literatura hispano-americana.

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na trama. Esta última dimensão temporal, inclusive, reforça outros elementos estruturais e

temáticos da narrativa que remetem à noção de ciclo.

Na ocasião em que Macondo incorpora um estado de reforma, com base na ordem e

no trabalho, a substituição dos pássaros por relógios musicais insinua a passagem a uma nova

etapa civilizatória em que vemos, simultânea e paradoxalmente, a racionalização do tempo e a

sua superação pelo estabelecimento do conceito de eternidade:

Eram maravilhosos relógios de madeira trabalhada que os árabes trocavam por papagaios e que José Arcádio Buendía sincronizou com tanta precisão que, de meia em meia hora, o povoado se alegrava com os acordes progressivos de uma mesma peça, até culminar o meio-dia exato e unânime com a valsa completa. Foi também José Arcádio Buendía quem decidiu por essa época que nas ruas do povoado se plantassem amendoeiras em vez de acácias, e quem descobriu, sem revelá-los nunca, os métodos de fazê-las eternas. Muitos anos depois, quando Macondo chegou a ser um acampamento de casas de madeira e tetos de zinco, ainda perduravam nas ruas mais antigas as amendoeiras quebradas e empoeiradas, sem que ninguém soubesse mais quem as havia plantado.57

“O domínio quântico é um país das maravilhas de enigmas temporais estranhos e

desconcertantes. (...) Os relógios são objetos físicos afetados pela imprecisão quântica”, postula

Paul Davies, em O enigma do tempo – a revolução iniciada por Einstein. Ora, sendo o romance

de García Márquez expressão máxima do realismo maravilhoso, território propício para a

desintegração da lógica linear e para a constante interferência entre o mítico e o histórico, torna-

se previsível uma tensão entre o temporal e o eterno. Diante da vocação do real maravilhoso

americano em conciliar elementos díspares, provenientes do realismo e da fantasia, naturalizando

o elemento insólito e fazendo com que ele modifique ou redimensione o real, a imagem

contrastiva de relógios sincronizados e amendoeiras eternas é de extrema pertinência.

Corrobora-se, então, a coexistência de experiências temporais distintas no romance: o

tempo é relativo, instável – a própria ciência atesta, desde os inícios do século XX, a partir da

57 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 40-41.

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contribuição de Einstein. Paul Davies traz à tona importantes afirmativas e interrogações em seu

O enigma do tempo:

Em um universo desordenado, cheio de movimento caótico e de concentrações casuais de matéria, realmente inexistiria uma história cósmica bem definida, pois não haveria tempo universal. (...) Sabemos que o tempo pode variar de lugar para lugar. Por que não de tempo em tempo? (...) Se o tempo é algo medido por relógios e se os relógios variam com o tempo, como podemos chegar a saber em que período de tempo realmente estamos?58

Em Cem anos de solidão, chegamos a saber ou a supor em que tempo realmente a

narrativa está, por meio de fatos, imagens e processos como a chegada dos imigrantes, a

instituição da ordem jurídica, o surgimento da companhia bananeira, a linha férrea, a ocorrência

de greves. No tempo dilatado dos cem anos não há dissociação precisa entre história e mito.

Embora a narrativa aparente desenrolar-se cronologicamente entre os meados dos séculos XIX e

XX, o texto coloca em perspectiva distintos tempos históricos.

A ciência afirmou que a expansão do universo é diretamente proporcional à contração

do tempo. Talvez pudéssemos indagar se, na circunstância de uma expansão temporal, o universo

seria contraído. Na narrativa de García Márquez, alguns personagens parecem desprender-se do

tempo, reforçando argumentos sobre a subjetividade temporal, a sua desvinculação de padrões

uniformes de mensuração, que já determinaram considerar um tempo solar, lunar, sideral. Paul

Davies tece afirmações válidas acerca da relatividade subjetiva na medida pessoal do tempo: “O

tempo enquanto experimentado mostra a qualidade da relatividade subjetiva, ou é caracterizado

por uma espécie de irregularidade, não-uniformidade e distribuição desigual na medida pessoal

do tempo.”59

José Arcádio Buendía é um personagem que demonstra repetidamente a

desvinculação de que falamos. Ao contemplar os filhos crescidos, brincando na horta, depois de

58 DAVIES, P. (1999) p. 167-185. 59 Ibidem. p. 13.

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muito tempo confinado no laboratório de alquimia, experiencia uma percepção nova: “Alguma

coisa aconteceu então no seu íntimo; alguma coisa misteriosa e definitiva que o desprendeu do

tempo atual e o levou à deriva por uma inexplorada região de lembranças.”60

Também na ocasião em que inicia sua ruptura com a realidade comum, instaurando a

sua própria, paralela, sob pena de mais tarde ser excluído do convívio familiar e social, no

cárcere solitário junto à amendoeira, constata a permanência do tempo na segunda-feira. Perdido

em suas ilusões e próximo do derradeiro surto delirante, parece questionar utopicamente o

postulado científico de que as máquinas de movimento perpétuo são idealizações impossíveis,

conectando a bailarina de corda ao mecanismo do relógio. Muito tempo mais tarde, o suposto

José Arcádio Segundo descobre, junto ao neto Aureliano, terem fundamento e pertinência as

constatações de José Arcádio Buendía:

Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda-feira, e então compreenderam que José Arcádio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada.61

Úrsula, personagem que ultrapassa os cem anos, no romance, funciona como uma

espécie de guardiã e desbravadora do tempo. Ela o contempla, decifra e questiona a todo instante,

afirmando e reafirmando ao longo da narrativa a sua tese de circularidade: “... confirmou sua

impressão de que o tempo estava dando voltas num círculo vicioso”62

Em diálogo com o bisneto José Arcádio Segundo, chega a concordar que o tempo

passa, para logo em seguida acrescentar: “mas nem tanto.” Talvez por sua intimidade com o

tempo, Úrsula lhe resiste, ultrapassando o centenário, preservando quase até o fim a lucidez e a

alta potencialidade de suas reflexões filosóficas. Antes da morte coincidente com o fim do

60 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 19. 61 Ibidem. p. 321. 62 Ibidem. p. 205.

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dilúvio, como ela própria decidira e anunciara, Úrsula experimenta a dificuldade em distinguir o

tempo: “Chegou a misturar de tal modo o passado com a atualidade que nos dois ou três clarões

de lucidez que teve antes de morrer ninguém soube ao certo se falava do que sentia ou do que

recordava”63

Justamente depois de sua morte, antecedida por uma espécie de oração de dois dias,

em que deixou conselhos e ensinamentos aos descendentes, tal como Dadinha, em Viva o povo

brasileiro, iniciam-se os transtornos naturais que levariam Macondo a seu destino apocalíptico. A

morte de Úrsula, entre 115 e 120 anos – não se soube precisar – cumpre um ciclo e dá início a

outro.

São diversas as imagens de circularidade em Cem anos de solidão. Melquíades é

também um retrato representativo de despreendimento e reversibilidade em relação ao tempo. O

discurso demonstra repetidas vezes a neutralidade ou insubordinação de sua corporalidade à lei

do tempo:

Por essa época, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Nas suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcádio Buendía. Mas enquanto este conservava a sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia estragado por um mal tenaz.64

O cigano alquimista, cujo escape à morte é sinalizado diversas vezes no romance,

retorna dela, inclusive, ao constatar a sua natureza tediosa. Quando, numa segunda ocorrência, a

ela sucumbe, é somente em instância corporal, pois sua imagem, com o chapéu negro de corvo e

o casaco sugestivamente anacrônico, permanece viva, via memória hereditária, ao longo de várias

gerações da família Buendía.

Outros mortos retornam ao espaço da narrativa, como Prudêncio Aguillar,

confirmando o pensamento de Paul Davies, segundo o qual “o tempo ontológico dos espíritos 63 Ibidem. p. 314. 64 Ibidem. p. 11.

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está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de

epifania.”65

Antes de alcançar a imortalidade, conforme ele próprio atesta, Melquíades cumpre a

funcionalidade de livrar Macondo da peste da insônia, outra imagem nítida de circularidade na

estrutura da narrativa. Depois de cinqüenta horas insones, os habitantes de Macondo realizam

uma exaustiva e aporética brincadeira de repetição, para, permanentemente acordados,

preencherem o tempo:

Reuniam-se para conversar sem trégua, repetindo durante horas e horas as mesmas piadas, complicando até os limites da exasperação a história do galo capão, que era um jogo infinito em que o narrador perguntava se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e quando respondiam que sim, o narrador dizia que não tinha pedido que dissessem que sim, mas se queria que lhes contasse a história do galo capão, e quando respondiam que não, o narrador dizia que não lhes tinha pedido que dissessem que não, mas se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e quando ficavam calados o narrador dizia que não lhes tinha pedido que ficassem calados, mas se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e ninguém podia ir embora porque o narrador dizia que não lhes tinha pedido que fossem embora, mas se queriam que lhes contasse a história do galo capão, e assim sucessivamente, num círculo vicioso que se prolongava por noites inteiras.66

O próprio discurso literário, a essa altura, nos oferece a chave para a compreensão do

tratamento temporal em Cem anos de solidão: a sucessão ocorre, mas dentro da circularidade. Há

uma tensão permanente entre o tempo cronológico, histórico e o cíclico, mítico, tensão somente

solucionada ao fim da narrativa.

O enfraquecimento do tempo histórico é anunciado pela condição de decadência,

abandono e esquecimento em que Macondo se inscreve, principalmente a partir da desintegração

da companhia bananeira, cujos líderes, segundo o senso comum do lugar, teriam providenciado o

dilúvio, marco visível de regressão, retorno ao princípio, se considerarmos o diálogo do romance

65 DAVIES, P. (1999) p. 29 66 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 46-47.

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com as tradicionais cosmologias aquáticas e com a própria cosmologia bíblica, com a qual, aliás,

rompe, em termos de ordem cronológica.

Na representação de mundo de Gabriel García Márquez há uma inversão na chamada

seta do tempo, numa demonstração de embate ao discurso clássico do Cristianismo,

implacavelmente reativo à idéia de tempo cíclico, reversível. Para os fins do Cristianismo foi de

grande relevância a disseminação da idéia de progresso da humanidade, dentro do tempo,

conforme Robert Nisbet teoriza e critica, em História da idéia de progresso:

O mesmo espírito que concebeu a unidade do gênero humano também concebeu o fluir de tempo unificado, linear, único, abrangendo tudo o que aconteceu com a humanidade no passado e tudo o que continuaria a ocorrer no futuro. (...) A dimensão de um tempo irreversível tem também grande e estratégica importância em toda a concepção da raça humana, avançando em direção a uma perfeição cada vez maior. (...) Esse comprimir da pluralidade da história e do tempo em uma série unitária é impossível.67

O discurso histórico é reforçado pelo científico. Paul Davies adverte que, em meados

do século XIX , com a descoberta das leis da termodinâmica, descobriu-se a implicação de um

princípio universal de degeneração, visto que a segunda de tais leis postulava sofrer todo sistema

fechado tendência a um estado de total desordem ou caos: estaria o cosmo fadado a uma queda

unidirecional. Em contrapartida, nos relata que o físico matemático Henri Poincaré, ao estudar o

estado do gás e suas recorrências, formula um teorema que se apropria do conceito de “eterno

retorno”, e a partir do qual é possível afirmar:

Durante quase todo o tempo, o estado do universo estaria muito próximo do equilíbrio – ou seja, do estado de morte térmica. O que essas idéias sugerem é que a morte térmica cósmica não é para sempre e que a ressurreição é possível, dado um período longo o suficiente.68

Na última seqüência de Cem anos de solidão, com o deciframento do pergaminho de

Melquíades, por Aureliano Babilônia, a narrativa assume no mais elevado nível a concepção de

67 NISBET, R. (1985) p. 73-75-76. 68 DAVIES, P. (1999) P. 46.

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simultaneidade temporal. É um encontro com o tempo, quando Aureliano chega mesmo a

surpreender na leitura “o instante da sua própria concepção”69 . Ele desvenda o texto em

sânscrito, predito há cem anos, avançando-o conforme sua ansiedade em chegar ao fim. A

utilização da chamada “estrutura em abismo”, em que o leitor dá-se conta da coexistência de duas

narrativas concêntricas, uma inserida na outra, colabora para que se evidencie o sincronismo

entre a revelação da sina e dos desígnios relativos à família Buendía e o seu cumprimento

irrevogável:

... começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada (...) no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.70

Embora em momentos anteriores do romance tenhamos constatado a prevalência de

uma concepção temporal circular sobre as noções de tempo histórico e linear-progressivo, em

Macondo, território emblemático do real-maravilhoso, o tempo é levado a um estado de

esgotamento definitivo.

Dentro da já mencionada dialética dinâmica entre tempo e espaço, em Macondo o

tempo parece ter se expandido de forma tal, que tenha acabado por determinar o encolhimento do

espaço e, mais do que isso, uma espécie de irrupção catastrófica, cuja possibilidade de ocorrência

já foi prevista pelo discurso científico, conforme Paul Davies:

Em 1960, os astrônomos tinham uma boa idéia de quão catastrófico um colapso estelar poderia ser. Uma estrela pesada devora seu combustível a uma velocidade prodigiosa e, esgotando o suprimento, não se limita a encolher. Pelo contrário, o núcleo da estrela implode subitamente. O choque resultante libera um pulso de energia enorme o

69 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 382-383. 70 Ibidem. p. 383.

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suficiente para fazer voar pelos ares as camadas externas da estrela. Uma explosão titânica se segue.71

Em Viva o povo brasileiro o desfecho contém um apontamento para o futuro. Através

de uma imagem de esperança, lançam-se expectativas sobre um país mais justo e feliz. As últimas

seqüências da narrativa ocorrem em Itaparica, já no século XX, ano de 1939, e um dos

acontecimentos centrais é a morte de Patrício Macário, na ocasião em que completava cem anos.

Também no romance de João Ubaldo, como no de García Márquez, os personagens

centenários parecem guardar o tempo em si mesmos, para, por meio da filtragem crítica por ele

proporcionada, cumprirem a funcionalidade de serem testemunhas e construtores da história em

representação. O pensamento de Macário, nos últimos instantes de sua vida, nos é exposto por

um longo fragmento textual, em discurso indireto livre. É questionador e otimista quanto ao

futuro o pensamento de Macário, ao fim da narrativa ubaldiana, já tendo o personagem

experimentado um longo processo de transformação ideológica, depois do qual o então general

modifica completamente sua impressão sobre o militarismo no Brasil:

Chegaria o dia em que os soldados estariam tão distantes do povo que teriam de viver desmentindo essa distância, sem convencer ninguém? O dia em que teriam medo de sair à rua fardados, a não ser a serviço? (...) Não pretendia que acontecesse nada, não previa nada, apenas testemunhava e era um testemunho. (...) Não podia morrer sem contar que sabia com certeza de uma coisa, a qual, por sua vez, lhe dava certeza de uma segunda coisa – que o povo pensa, que o povo pulsa, que o povo tem uma cabeça que transcende as cabeças dos indivíduos, que não poderá ser exterminado, mesmo que façam tudo para isso...72

Se o General Macário nada prevê, há no fim do romance a leitura de uma espécie de

oráculo, cujos personagens responsáveis são Leucino Batata, Nonô do Candeal e Virgílio

Sororoca, que assaltam, por acaso, a canastra da Irmandade da Casa da Farinha. Ironicamente,

71 DAVIES, P. (1999) p. 160. 72 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 582-583.

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Ubaldo promove a abertura da canastra pelas mãos de infratores, indivíduos localizados à

margem da sociedade brasileira, mas também representantes do povo a que o título faz referência.

A partilha dos objetos roubados, entre eles a canastra, é feita sugestivamente na sede

da Irmandade da Casa da Farinha, que, embora uma “ruína há tanto tempo abandonada”73,

preservara-se firme; resistira. Nonô do Candeal, guiado por seu apurado senso intuitivo, propõe

abrir mão dos outros objetos, para ficar apenas com a canastra, cujo valor pressentia. Ele

experimenta um arrebatamento epifânico, ao olhar além da fechadura do baú, e é quase cegado

pela imagem que contempla: “Menino! Virsantíssima! Nossa Senhora do Perpessocorro! Tudo

alumiado! Menino! (...) Mas que coisa, ai meu olhinho, Santa Mãe de Deus!”74

Diante da descrença dos parceiros, que duvidavam de que ele pudesse estar tendo

qualquer revelação, Nonô sinaliza a sua percepção do tempo: “Eu estou vendo o futuro!”75. A

partir de então, por meio de uma longa passagem textual em discurso direto, Nonô vai revelando

gradativamente, aos seus companheiros e ao leitor do romance, em nova demonstração do recurso

de “estrutura em abismo” , tal como ocorre em Cem anos de solidão, os rumos políticos e sociais

do país. É a emersão derradeira no romance de toda a permanente e apaixonada crítica ubaldiana

sobre o país e suas mazelas. São tantas as visões tenebrosas de ladrões fardados, mandos e

desmandos, pais de família mortos, mentiras, injustiça social, exploração da miséria, domínio

estrangeiro e outros males, que o próprio infrator Nonô do Candeal não suporta e se abre em

sensibilidade e arrependimento extremos: “Ai meus olhinhos, não posso crer, minha Nossa

Senhora, minha Virgem Santíssima, perdoe os meus pecados, meu Deus do céu, ai meus

olhinhos, ai meus olhinho! Quanta desgraça!”76

73 Ibidem. p. 587. 74 Ibidem. p. 589. 75 Ibid. 76 Ibidem. p. 591.

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É enorme a maestria de Ubaldo em nos providenciar a abertura da canastra pelas

mãos (ou pelos olhos) do ladrão Nonô do Candeal, cujo próprio nome já insinua a capacidade

iluminadora. Ele é um representante do povo, um desqualificado, resultado presente de tudo o

que o futuro ainda trará. A sua distinção em relação aos ladrões de “terno de gabardine, gravata

de seda, alfinetes de brilhantes”77 resulta do simples fato de que a sua inserção na criminalidade

não é conseqüência da falta de sensibilidade, mas de oportunidade e acesso.

A abertura da canastra para Nonô do Candeal lhe cai como uma espécie de redenção.

Depois da revelação da verdade, ou das verdades, presume-se uma mudança em torno do destino.

A presentificação do futuro no presente, a neutralidade entre tais tempos, confirmam-

se nos últimos dizeres de Nonô do Candeal, antes de a casa da farinha “entrar em compasso com

a terra por baixo dela”78 e de serem visíveis no céu de Amoreiras “as constelações de janeiro em

seu passeio inexorável”79: “Está tudo vivo!”80, afirma o desbravador da canastra, antes de

sucumbir e nada mais enxergar.

Viva o povo brasileiro propõe imaginar o passado e o futuro. Este se consuma no

presente, que também reconstrói o tempo pretérito. O subversivo jogo temporal evidenciado no

romance, e que, estruturalmente, segundo o próprio autor, contou com o acaso, promove uma

reflexão permanente acerca da identidade nacional, tema por excelência da narrativa, e talvez de

toda a obra de João Ubaldo Ribeiro. A abordagem de Marcio Tavares d’Amaral acerca da

dinâmica entre tempos, em ensaio já mencionado neste trabalho, faz ressumbrar o diálogo com a

narrativa ubaldiana:

... o bloco futuro-presente está permanentemente produzindo passado, e não no regime cronológico, porque ... o passado não dura: ele está lá virtualmente. Se precisarmos dele, chamamos. O passado não é mais aquela estrutura real e causal que determina o presente

77 Ibidem. p. 589. 78 Ibidem. p. 592. 79 Ibid. 80 Ibid.4

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a se encaminhar para o futuro. O futuro, que não era, agora determina o presente; o passado, que era, agora se torna virtual. Está lá, mas como quem fica entre duas dimensões (...) É como se agora começássemos a fazer ficção científica para o passado. Antes ela era feita para o futuro, mas o futuro deixou de ser ficção, ele é o real do presente, e a ficção está em imaginar o passado, em vez de representá-lo como verdadeiro.81

As posturas subversivas de João Ubaldo Ribeiro e Gabriel García Márquez, com

relação às abordagens temporais de seus romances, representam escolhas decisivas para

consolidar os discursos motivados que constroem ao longo de suas narrativas, cujo foco são as

gerações.

Entre os múltiplos e diferenciados tempos, a qualquer momento passíveis de

coexistência, deparamo-nos, em Viva o povo brasileiro, de algum modo, com uma apreciação do

país, a partir, dentro ou fora do tempo. O fator de que depende a perspectiva do olhar é a

quantidade de luz e o foco que se estabelece para a incidência em cada um dos eventos

contemplados pela narrativa, sejam eles procedentes da experiência brasileira concreta, de seu

instrumental mítico, fantasioso, ou mesmo de um universo que concilie as duas naturezas.

Em Cem anos de solidão, surpreendemos disposições e resoluções temporais

francamente propulsoras de uma reflexão cuidadosa sobre a América Latina com o tempo, ao

longo dele e, simultaneamente, como sua origem e produto.

A trajetória temporal nos romances pode conduzir à constatação de um processo

predominantemente evolutivo ou involutivo das representações de mundo que abrangem. A

chamada seta do tempo, subvertida, manifesta-se não dentro de qualquer constância, mas de

modo variado. Assim, motivada por fatores de ordens diversas, assume, abandona e retoma

sentidos, direções, intentos.

81 DOCTORS (org.) p. 23-24.

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E aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio. CAETANO VELOSO

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3. Presságios mágicos de revelação: pergaminhos e canastra a serviço das

gerações

Enquanto a tradição do romance hispano-americano assume uma recorrente

incorporação do universo real maravilhoso, gênero híbrido e conciliador que sintetiza a sua

própria distinção e expressão singular, a literatura brasileira parece ter feito uma opção pelo

realismo. Não obstante, tratamos aqui de mais uma convergência: tanto em Cem anos de solidão

quanto em Viva o povo brasileiro, anunciam-se, desde o princípio, dois elementos

inquestionavelmente pertencentes à dimensão maravilhosa. Dois objetos mágicos, pressagiosos,

que, tal como oráculos, significam a existência de enigmas a serem decifrados ao longo do

discurso literário, exigindo destaque e contemplação.

Os pergaminhos de Melquíades e a canastra da Irmandade da Casa da Farinha

colaboram para conservar suspensos, nos romances, o destino de personagens importantes e o

próprio destino das narrativas. Os pergaminhos e a canastra encerram, em mais de um sentido, a

justificativa das obras, promovendo o embate entre realidade e ficção, existência concreta e

projeção fantasiosa, imaginária. Ligam-se e perpassam as gerações dos romances, assemelhando-

se à concepção de “cofre” que Gaston Bachelard veicula em A poética do espaço: “No cofre

estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também para aqueles a quem daremos

os nossos tesouros. O passado, o presente e o futuro nele se condensam. E assim o cofre é a

memória do imemorial.”82

Tempo, memória e geração. São estes os conceitos vitais de Viva o povo brasileiro e

Cem anos de solidão a dialogar permanentemente com a presença ora sabida, ora presumida dos

pergaminhos e da canastra.

82 BACHELARD, G. (1993) p. 97.

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No romance de Gabriel García Márquez, os pergaminhos cujos segredos referem-se

ao destino da família Buendía, ao longo de todas as suas gerações, são introduzidos por

Melquíades, cigano alquimista que chega a Macondo nos primeiros tempos do povoado e cuja

imagem é tão forte e decisiva para os Buendía, que também se propaga no tempo, geração a

geração, por um inusitado legado genealógico:

Aquele ser prodigioso que dizia possuir as chaves de Nostradamus era um homem lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, como as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos. (...) No sufocante meio-dia em que revelou os seus segredos, José Arcádio Buendía teve certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. (...) Aureliano, que naquele tempo não tinha mais de cinco anos, havia de recordar pelo resto da vida como o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, iluminando com a sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto esguichava pelas têmporas a gordura derretida de calor. José Arcádio, seu irmão mais velho, havia de transmitir aquela imagem maravilhosa, como uma recordação hereditária, a toda a sua descendência.83

Depois de muitas horas passadas no laboratório alquímico, construído no fundo da

casa dos Buendía, em meio a experiências com ácidos e brometos, Melquíades apresenta os

primeiros indícios de sua síntese pressagiosa: “Certa noite, acreditou encontrar uma predição

sobre o futuro de Macondo. Seria uma cidade luminosa, com grandes casas de vidro, onde não

restava nem rastro da estirpe dos Buendía”84

Os pergaminhos assumem a condição de herança, tanto no sentido de serem o

manancial dos rumos da existência da família, quanto no sentido propriamente material, já que

perduram ao longo de cem anos, ora como alvo de interesse e curiosidade de um ou outro

descendente da estirpe, ora esquecidos, abandonados, mas resistentes em sua sobrevida.

83 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 11-12. 84 Ibidem. p. 54.

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Melquíades, ainda que já decrépito e próximo do derradeiro encontro com a morte, não cessa a

produção de seus “signos indecifráveis”85:

... passava horas e horas garranchando a sua literatura enigmática nos pergaminhos que trouxera consigo e que pareciam fabricados de uma matéria árida que se esfarelava como uma empada. (...) Anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, Arcadio haveria de se lembrar do tremor com que Melquíades o fez escutar várias páginas da sua escrita impenetrável, que evidentemente não entendeu, mas que ao serem lidas em voz alta pareciam encíclicas cantadas.86

O suposto Aureliano Segundo, pertencente à quarta linha sucessiva da estirpe,

demonstra um breve interesse pelo desvendamento dos códigos de Melquíades, com quem, aliás,

tem um encontro simultaneamente previsto e revelador:

Aureliano Segundo se deu o trabalho de decifrar os manuscritos. Foi impossível. As letras pareciam roupas postas para secar num arame e se assemelhavam mais à escrita musical que à literária. Um meio-dia ardente, enquanto perscrutava os manuscritos, sentiu que não estava sozinho no quarto. Contra a reverberação da janela, sentado com as mãos nos joelhos, estava Melquíades. (...) Aureliano Segundo reconheceu-o imediatamente, porque aquela lembrança hereditária se havia transmitido de geração em geração e tinha chegado a ele partindo da memória do seu avô. (...) A partir de então, durante vários anos, viram-se quase todas as tardes. Melquíades lhe falava do mundo, tentava infundir-lhe a sua velha sabedoria, mas se negou a traduzir os manuscritos. ‘Ninguém deve conhecer a sua mensagem enquanto não se passarem cem anos.’87

A resistência material dos manuscritos de Melquíades é testemunhada por vários

personagens, em variadas passagens do romance. O Coronel Aureliano Buendía, então desiludido

com os rumos da guerra e com o massacre de dezesseis de seus filhos, atesta a permanência dos

pergaminhos, ainda que negligenciados pelo descaso dos membros da família a que eles diziam

respeito:

Uma vez abriu o quarto de Melquíades, procurando os rastros de um passado anterior à guerra e só encontrou os escombros, o lixo, os montes de porcaria acumulados por tantos anos de abandono. Nas capas dos livros que ninguém voltara a ler, nos velhos pergaminhos macerados pela umidade, prosperara uma flora lívida, e no ar que havia sido o mais puro e luminoso da casa flutuava um insuportável cheiro de lembranças podres.88

85 Ibidem. p. 69. 86 Ibidem. p. 70. 87 Ibidem. p. 171-172. 88 Ibidem. p. 223.

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Quem consegue os primeiros avanços na leitura e interpretação dos pergaminhos é o

suposto José Arcadio Segundo, que se dedica a exaustivos e cíclicos exercícios de leitura e

releitura, chegando mesmo a um estado de abstração da realidade externa ao quarto de

Melquíades:

José Arcadio Segundo se dedicou então a reler muitas vezes os pergaminhos de Melquíades, tanto mais satisfeito quanto menos os entendia. (...) devorado pela careca, indiferente ao ar rarefeito pelos vapores nauseabundos, continuava lendo e relendo os pergaminhos ininteligíveis. Estava iluminado por um brilho seráfico.89

A obstinada e familiar atividade cíclica conduziu aos primeiros resultados. José

Arcadio Segundo iniciou nos estudos do pergaminho o então pequeno Aureliano Babilonia,

aquele que seria o seu real desbravador e tradutor:

José Arcadio Segundo conseguira, além disso, classificar as letras criptográficas dos pergaminhos. Estava certo de que correspondiam a um alfabeto de quarenta e sete a cinqüenta e três caracteres que, separados, pareciam aranhazinhas e carrapatos e que, na primorosa caligrafia de Melquíades, pareciam peças de roupas postas para secar num varal. Aureliano se lembrava de haver visto uma tabela semelhante na enciclopédia inglesa, de modo que a levou ao quarto para compará-la com a de José Arcadio Segundo. Eram iguais, realmente.90

Aureliano Babilonia herda de José Arcadio Segundo, depois de sua morte, a

responsabilidade de decifrar o código deixado por Melquíades. Com a condição de cárcere

imposta por Fernanda del Carpio, desde que ele ainda era um menino, por considerá-lo um

bastardo, e com orientações e instruções iniciais do próprio Melquíades, que lhe faz aparições

pedagógicas, Aureliano cresce solitário e empenhado em seu trabalho um tanto missionário de

decodificação:

Por muito tempo Aureliano não abandonou o quarto de Melquíades. (...) Na realidade, conversava com Melquíades. Num meio-dia ardente, pouco depois da morte dos gêmeos, viu contra a reverberação da janela o ancião lúgubre com o chapéu de asas de corvo, como a materialização de uma lembrança que estava na sua memória desde muito antes de nascer. Aureliano tinha acabado de classificar o alfabeto dos pergaminhos. De modo que quando Melquíades lhe perguntou se descobrira em que língua estavam escritos, ele não vacilou em responder:

89 Ibidem. p. 287. 90 Ibidem. p. 321.

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- Em sânscrito – disse. Melquíades revelou que as suas oportunidades de voltar ao quarto estavam

contadas. Mas ia tranqüilo aos prados da morte definitiva, porque Aureliano tinha tempo para aprender o sânscrito nos anos que faltavam para que os pergaminhos completassem um século e pudessem ser decifrados. (...) Aureliano avançava nos estudos de sânscrito, enquanto Melquíades ia-se fazendo cada vez menos assíduo e mais longínquo...91

O menino rejeitado e só dedica-se, então, exclusiva e exaustivamente a patentear a

sina da estirpe dos Buendía. Ainda assim, mesmo depois da tradução da primeira página, que lhe

custou três anos de esforço abnegado, surgem novas dificuldades e obstáculos para o seu pleno

entendimento, o que vai adiando o total e concreto conhecimento dos segredos anunciados nos

manuscritos:

Não foi um trabalho inútil, mas constituía apenas um primeiro passo de um caminho cujo comprimento era impossível prever, porque o texto em castelhano não significava nada: eram versos cifrados. Aureliano carecia de elementos para estabelecer as chaves que lhe permitissem decifrá-los, mas como Melquíades dissera que na loja do sábio catalão estavam os livros de que ele precisaria para chegar ao fundo dos pergaminhos, decidiu falar com Fernanda para que lhe permitisse ir buscá-los.92

Tamanha é a relevância do desvelamento das predições de Melquíades e tão

acentuado é o caráter de fatalidade que envolve os pergaminhos, que, na iminência de qualquer

risco de destruição, acontecimentos sobrenaturais proporcionam o seu pronto salvamento:

Divertidos pela impunidade de suas travessuras, quatro meninos entraram noutra manhã no quarto, enquanto Aureliano estava na cozinha, dispostos a destruir os pergaminhos. Mas imediatamente após se terem apoderado das folhas amareladas, uma força angélica levantou-os do solo e os manteve suspensos no ar até que Aureliano voltou a lhes tomar os pergaminhos.93

O único acontecimento capaz de desviar Aureliano de seu empenhado ofício de

desvendamento é a chegada de Amaranta Úrsula, por quem se apaixona e a quem se entrega, num

alienado amor incestuoso: “Aureliano abandonou os pergaminhos, não tornou a sair de casa, e

91 Ibidem. 327-328. 92 Ibidem. p. 333. 93 Ibidem. p. 340.

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respondia de qualquer maneira às cartas do sábio catalão. Perderam o sentido da realidade, a

noção do tempo, o ritmo dos hábitos cotidianos”94

Somente depois de ver o nascimento do filho com Amaranta Úrsula, cujo parto lhe

foi fatal, surpreender-se com a estranheza anatômica do descendente – finalmente se cumpre a

profecia do rabo de porco – e se terrificar com a morte tenebrosa do recém-nascido, devorado

pelas formigas que há muito tomavam a casa, Aureliano depara-se, num átimo, com a tradução

exata da incrição preambular dos pergaminhos:

Aureliano não conseguiu se mover. Não porque estivesse paralisado com o horror, mas porque naquele instante prodigioso revelaram-se as chaves definitivas de Melquíades e viu a epígrafe dos pergaminhos perfeitamente ordenada no tempo e no espaço dos homens: O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas. (...) agora sabia que nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu destino. Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade para levá-los para a luz, mas ali mesmo, de pé, sem a menor dificuldade, como se estivessem escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação.95

A estrutura em abismo engendrada pelo romance Cem anos de solidão providencia a

constatação, nos segmentos derradeiros da narrativa, de que ela era dual; partia-se em duas. Além

do meta-narrador onisciente até então manifesto, havia ao longo de todo o tempo, e pronto para a

final e oportuna emersão ao texto literário, uma espécie de narrador surpresa, representado pela

figura mágica e secular de Melquíades.

Os segredos que ultrapassaram todas as gerações da estirpe Buendía eram o seu

destino de extinção ultimada. Muitos dos integrantes da família souberam da existência de tais

segredos e até lançaram-se, ainda que provisoriamente, às aventuras da decifração. Mas fazia

parte da própria predição, que apenas Aureliano Babilonia, o ascendente direto do Buendía

94 Ibidem. p. 373. 95 Ibidem. p. 381-382.

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finalmente acometido da anomalia do rabo de porco, alcançasse a consciência e o instante preciso

do significado dos manuscritos. Ele não apenas lê, mas vive os pergaminhos, atingindo a lucidez

triste de que encerra a história dos cem anos de solidão.

O desfecho do romance de Gabriel García Márquez, com a solução de todas as tramas

envolvendo tempo, geração e destino, é uma confissão de agonia. O estertorante Aureliano

Babilonia das últimas páginas, ávido do conhecimento da própria identidade e do próprio destino,

é a última centelha da família Buendía. A família Buendía é Macondo e Macondo é a América.

América singular, híbrida, confusa diante das próprias e primárias contradições; poética, mas

solitária e triste. Em Cem anos de solidão, temos a predição de uma certa América, abandonada,

esquecida, triste, fadada ao fim. Saindo dos limites da metáfora magistral de García Márquez, há,

na melhor das hipóteses, uma sinalização de alerta. Uma consciência crítica apurada pela história

e pela experiência, o apontamento de problemas e um imperativo de ação. Toda e qualquer

reflexão impulsionada pela leitura chega a um mesmo lugar, a uma mesma consciência de limite.

Todo o romance ressumbra uma elaboração distópica. E, de fato, no espaço extra-literário,

empírico, histórico, o continente americano vive, no final dos anos de 1960, quando escreve

García Márquez seu romance supremo, a consciência de um fim de utopias. A ambiência

esperançosa das revoluções foi substituída pela dureza dos governos ditatoriais, e predomina uma

sensação de fracasso político e social. Uma pergunta gelada, de repente, surge, imperativa, sem

urgência, porque até amedrontada da resposta: como estará a América em 2067, ano em que se

completarão cem anos da publicação do romance sensível, pressagioso e visionário de Gabriel

García Márquez?

Em Viva o povo brasileiro, os escravos da Armação do Bom Jesus, no ano de 1827,

irmanados pela dor, pela frustração e pela ausência do bem que mais desejam e em que mais

acreditam, a liberdade, propõem a invenção de uma Irmandade e de uma canastra com os seus

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segredos, cuja provisoriedade e o caráter inacabado constituem a base de sua definição. É o

escravo Júlio Dandão quem apresenta, em primeira mão, aos companheiros Zé Pinto e Budião o

objeto mágico e sintetizador de suas identidades revolucionárias:

... pegou um surrão de pano pardo que ninguém antes tinha visto ali no cantinho, puxou-o pela boca, afrouxou o cadarço, abriu-o, olhou para dentro um instante, arrancou com as duas mãos uma canastra de madeira e metal, prendeu o surrão com o pé para que ela pudesse sair desimpedida e levantou-a diante dos outros. Parecia ser pesada, pois mesmo seu braço, da grossura de um mamoeiro na primeira fruteação, tremia ao erguê-la. Depositou-a à frente, tirou o chapéu, tenteou com os dedos por dentro dele, sacou um pedaço de ferro de contorno ziguezagueado e passou a enfiá-lo, em movimentos nervosos, nas oito ranhuras laterais da canastra, até que, murmurando um canto abafado e uns sons como os de quem faz contas entre dentes, bateu três ou quatro vezes nas quinas e a tampa se levantou como a cabeça de um peixe vagaroso saindo fora d’água, o rangido leve das dobradiças soando muito alto naquele silêncio. Dandão olhou para dentro da canastra, pôs-lhe a mão na tampa, quase fechando-a de volta.96

O discurso de Dandão, no momento de uma primeira abertura da canastra, em que

seus segredos não aparecem completamente desvelados, mas ainda imprecisos e incompletos,

ressalta a importância do empenho das gerações futuras, na continuidade no tempo, em fazer dos

conhecimentos ali guardados uma construção permanente:

- Estes segredos – disse sem tirar a mão da tampa – são parte de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele que sempre se queira que ele fique completo. E faz parte dele também, por ser segredo e somente para certas pessoas, que cada um que saiba dele trabalhe para que ele fique completo. Se todos trabalharem, geração por geração, este é o conhecimento que vai vencer.97

Em seguida, quando Dandão providencia a exteriorização do que a canastra encerra,

abre-se um diálogo com a epígrafe do romance – “O segredo da Verdade é o seguinte: não

existem fatos, só existem histórias” – num entrelaçamento íntimo de história e ficção,

engendrados pelo gênio poético de João Ubaldo Ribeiro:

Foi também tudo muito sonoroso, tão melódico que nada mais se escutou dentro da casa da farinha, dizendo uns que ali, naquela hora, se fundou uma irmandade clandestina, a qual irmandade ficou sendo a do Povo Brasileiro, outros dizendo que não houve nada, nunca houve nada, nunca houve nem essa casa dessa farinha desse engenho desse barão

96 RIBEIRO, J. U. (1984) P. 187. 97 Ibidem.

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dessa armação, tudo se afigurando mais labiríntico a cada perquirição. Enquanto Júlio Dandão vai aos poucos catando na canastra o que mostrar vai exibindo alguma coisa e explicando outra, essa Irmandade talvez esteja se fundando, talvez não esteja, talvez tenha sido fundada para sempre e para sempre persista, talvez seja tudo mentira, talvez seja a verdade mais patente e por isso mesmo invisível, porém não se sabendo, porque essa Irmandade, se bem que mate e morra, não fala.98

Oportunamente, Ubaldo desloca o foco de irradiação do discurso, relatando as várias

e anônimas versões sobre a existência e a veracidade da canastra, da irmandade e do episódio que

acaba de ser narrado, numa proposta de confrontamento entre experiência e imaginação.

Mantendo o suspense em torno da canastra latente no romance, a um modo que faz lembrar

Cervantes, no prólogo do Quixote, brinca com o leitor, assumindo a narrativa como obra de

ficção, para, imediatamente em seguida, reafirmá-la como pertencente ao universo da verdade.

Não só da verdade, mas do tempo presente, já que a Irmandade está, “talvez”, em processo

permanente de fundação.

Ela acreditava na justiça, acreditava que um dia se faria justiça, que havia um povo e não um bando de gente sem alma, gente rebotalho, acreditava que o povo devia também acreditar nisso e que eles deviam fazer alguma coisa para que isso acontecesse. (...) E os segredos da canastra, ele lembrasse, eram mais segredos do como que segredos do porquê – estava nos segredos – é descoberto com a prática de cada um, e eles estavam praticando. (...) Que pensava ele que ela tinha feito, no dia em que fora à casa do finado Zé Pinto, no Manguinho, disfarçada com a ajuda de Merinha e de Martina, para buscar a canastra, que só ela sabia onde fora escondida? Todos em que se podia confiar, até mesmo alguns dos que mais tarde se tinham juntado a eles, estavam lá, pois era como uma cerimônia e Maria da Fé havia falado que, sim, ela iria abrir a canastra um instante. (...) Diante da admiração e até do medo de todos, ela se afastara do grupo com a canastra na mão, abrira-a, olhara para seu interior um instante e, em vez de tirar, pusera alguma coisa lá dentro.99

A canastra aparece, então, como um receptáculo de princípios e aspirações de

justiça, liberdade e outros valores disseminados pelos integrantes da Irmandade do Povo

Brasileiro. Um depositário de expectativas, sonhos, desejos e esperanças, providencialmente

lacrado, até o derradeiro instante de abertura. Nas conversas com Patrício Macário, que no futuro

também seria um guardião da canastra – o último, até que ela fosse aberta – Maria da Fé lhe

98 Ibidem. p. 188. 99 Ibidem. p. 349-350.

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infunde sua doutrina libertária, seus ideais de luta política e comprometimento social,

transmitindo a ele uma visão do país da qual mais tarde ele compartilharia. Em tais diálogos, em

que a revolucionária miliciana define a luta da irmandade como sua escolha prioritária, em

detrimento mesmo da vida ao lado de Macário, surge nova referência à canastra, desta vez

apresentada como solução futura, resultado a ser colhido por sua luta:

Ela sentia como se houvesse uma espécie de canastra, uma arca, onde as respostas, pela obra de gente como ela, da qual existia mais do que se pensava, se acumulariam, até que alguém as pudesse entreter num todo único. A única coisa que ela sabia era da força do povo, força de que ele precisava ter consciência, força não só dos números mas daquilo que produzia com suas mãos, cabeças e vozes, pois o povo era o verdadeiro dono do país, não aqueles que o subjugavam para a consecução dos próprios interesses.100

Depois do rompimento com Dafé, que desaparece em prol da luta ao lado dos

milicianos do povo, Patrício Macário sofre um processo solitário de amadurecimento e revisão de

seus ideais, transformados a essa altura, pelo tempo convivido com a revolucionária da

Irmandade. Ele demonstra uma necessidade crescente de auto-conhecimento, quando procura

Rita Popó, herdeira da sabedoria transcendental da médium Dadinha, e sua sucessora na liderança

espiritual em Amoreiras. Por aconselhamento da feiticeira, e através de sua pronta orientação, o

general, ávido de respostas sobre Maria da Fé, sobre a Irmandade e sobre a própria identidade,

submete-se a uma espécie de ritual iniciático, enclausurando-se em uma camarinha escura e

dedicando-se a um paciente aprendizado da fé. Rita Popó recusa-se a fornecer soluções acabadas

e finalistas para as dúvidas de Macário, ensinando-lhe a cultivar a paciência e uma visão de

mundo liberta de arbitrariedades:

... e lhe explicou, com a voz paciente e monótona, que, ao contrário do que se pensa, a magia não é feita de fora, mas de dentro. Por isso é que se fala tanto na necessidade de ter fé para que as coisas aconteçam, pois a fé, afinal, não passa de uma maneira de ver o mundo que torna possíveis aquelas coisas que se deseja que aconteçam. A fé, portanto, é um conhecimento, conhecimento que ele não tinha e ninguém lhe poderia dar, só ele mesmo, embora pudesse ser ajudado. Estava disposta a ajudá-lo, se ele quisesse e desde que compreendesse que o mundo pode ser visto de muitas formas. (...) A primeira instrução foi de que não tinha de concordar com nada, tinha de seguir. Como seguir?

100 Ibidem. p. 447.

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Seguindo. Sim, mas como? Vá seguindo. Mas vá seguindo como? Vá seguindo, sabe o que é seguir? Então, pois vá seguindo. A segunda instrução foi de que se sentisse livre, nada era obrigado. Se não quisesse a porta fechada, abrisse a porta; se não quisesse ficar sozinho, saísse para conversar; se não quisesse ficar quieto, não ficasse quieto. Porém quisesse alguma coisa. Sim, como por exemplo? Por exemplo, que tipo de coisa se podia querer? Ah, sabe-se lá, qualquer coisa! Vá querendo qualquer coisa.101

Depois de querer, então, Macário descobre-se aprendendo. Já em etapa avançada do

processo de recolhimento na camarinha de Rita Popó, depois de experimentar a iguaria mística do

escaldado de baiacu, peixe que “só se dá a quem pede”102, o general experiencia uma espécie de

transe no tempo e no espaço. É Rita Popó quem anuncia a revelação que faria de Patrício Macário

um homem novo, de identidade e visão transformadas:

... Rita Popó entrou, acompanhada de um homem moreno e alto, cujos traços o fizeram estremecer. - Neste último dia – falou Rita Popó, a voz como um rebôo dentro de um pote vazio - , vosmecê está recebendo uma visita. Este aqui é Lourenço, seu filho, filho único de Maria da Fé. Patrício Macário ouviu o coração bater como se tivesse subido para a cabeça...103

Lourenço surge como um sonho, num momento de suspensão. Vinte e sete anos

depois da despedida, Macário tem notícias sobre Maria da Fé, que teria não morrido, mas

desaparecido, depois de ter saído só em um barco, nas proximidades da Ponta de Nossa Senhora.

Lourenço, herdeiro do espírito revolucionário da mãe, avaliza a existência da Irmandade e

funciona como um mensageiro a Macário, transmitindo ao pai, inclusive, sua nova

responsabilidade:

Lourenço lhe respondeu que existe a Irmandade do Povo Brasileiro e a Irmandade do Homem, que não há como acreditar que não existam. (...) Há esperança, sempre houve esperança. Então há a Irmandade, pois, se ela não existisse, não podia haver esperança. Sua mãe explicava sempre que se sabia quando se pertencia à Irmandade. Não se sabia? Como podia o pai ignorar que pertencia a ela, sempre pertenceu, agora mais do que nunca? Bastava ver com seus novos olhos (...) Contou sobre a canastra de Júlio Dandão e disse que o pai seria guardião dela e que não se preocupasse com o que faria, porque isto também saberia naturalmente, sem que ninguém lhe explicasse.104

101 Ibidem. p. 524-525-526. 102 Ibidem. p.522. 103 Ibidem. p. 533. 104 Ibidem. p. 535-536.

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Assim, num diálogo entre gerações, o descendente direto de Patrício Macário, fruto

até então ignorado do amor por Maria da Fé, aparece ao pai, para acalmar suas inquietações,

apresentar respostas aos seus questionamentos, atualizar a memória e os ideais maternos, de que

o pai compartilhava agora inteiramente.

A tensão constante entre realidade e ficção, em Viva o povo brasileiro, anunciada na

própria epígrafe do romance, tem expressão máxima no encontro entre Macário e Lourenço.

Datado de 1898, ele é textualmente antecipado por uma longa descrição dos efeitos possíveis do

baiacu em organismos despreparados e em circunstâncias inadequadas.

De acordo com o instrumental lendário de Amoreiras, o peixe poderia mesmo

matar, caso não fosse tratado da maneira apropriada, ou consumido em noite de lua cheia. Ainda

assim, o general Patrício Macário insiste para provar a iguaria, no que Rita Popó o acompanha.

Finalizado o almoço, Macário relata suas impressões físicas e psicológicas:

Sinto uma espécie de cócega nos lábios, a pimenta dá isso? Não, não só sinto formigamento nos lábios como uma espécie de torpor e as pernas dormentes. Mas não é uma sensação desagradável, antes pelo contrário. Sente a mesma coisa também, sá Rita? Crê então que o baiacu estava envenenado? Pode ser então que estejamos morrendo? Não devíamos estar com medo? Isto é tudo? (...) Estamos mortos? (...) Noto que estou boiando, estamos ambos flutuando. (...) Estamos sonhando juntos?105

O que se evidencia é uma espécie de suspensão espaço-temporal, através da qual o

discurso literário deixa em aberto: trata-se de uma experiência concreta na biografia do

personagem, ou simplesmente um transe alucinatório, um sonho, uma ilusão de sentidos? Ou

seria ainda uma experiência conciliadora das duas dimensões?

Depois do diálogo com Lourenço, a narrativa filosófica ubaldiana parece apontar

para a terceira das possibilidades referidas, ou, melhor ainda, para a desimportância em tornar o

possível provável. Desfeito o encontro com o filho, depois do qual “alçou-se no ar em direção ao

105 Ibidem. p. 532.

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Infinito, onde se achou num lugar escuro em que todas as coisas tinham cores”106, Macário

prepara-se para ir embora:

Voltou para a camarinha, procurou sinais da visita de seu filho, não encontrou nenhum. E os objetos que lhe dera, onde estavam? Também tinham desaparecido. Sorriu. Estava feliz de qualquer forma e agora desconfiava do hábito, que já perdia, de querer fazer distinções muito claras entre o ilusório e o real, parecia-lhe uma atitude até simplória.107

Na volta para casa, no entanto, toda a materialização dos objetos levados por

Lourenço a Macário, antes sumidos, e o ressurgimento da canastra, voltam a atestar a

legitimidade do encontro relatado pelo discurso:

Na praia, tomou a direção de Itaparica em marcha andadeira (...) Poderia haver felicidade mais plena do que a sua? (...) Claro que não sabia ainda que, ao chegar em casa daí a alguns minutos, acordaria Adalícia com o barulho e ela, depois de bendizer nervosamente o seu regresso, lhe mostraria uma canastra, um baú de estranha aparência, que na ausência dele tinham deixado sem que ela visse como e que ela não acertara a abrir.108

Contrariando a lógica linear das gerações, Macário é herdeiro do próprio filho. E a

partir da vivência intransmissível, que o faria olhar “tudo o que já conhecia como se fosse a

primeira vez”109, o general revela-se um homem completamente transformado, que guardaria a

canastra e seus segredos até os últimos momentos antes de sua abertura.

Morto, Macário tem seus bens administrados pela sobrinha e admiradora Isabel

Regina, que, em meio aos muitos objetos a serem organizados, pensa em formas de homenagem

ao valoroso e ilustre tio, e se lembra da canastra. Mas a lembrança é intempestiva, pois descobre

que, a esta altura, ela já havia sido roubada:

... por que não transformavam a casa num museu, o Museu Patrício Macário, reunindo tudo o que foi dele e mais outros objetos relacionados com a participação de Itaparica na guerra? Não era uma boa idéia? o general tivera uma vida muito rica, reunira muita coisa ao longo de tantos anos, até escrevera suas memórias. As memórias! Sim, até parecia que ele estava adivinhando, contara-lhe que tinha guardado as memórias numa canastra

106 Ibidem. p. 536. 107 Ibidem. p. 537. 108 Ibidem. p. 538. 109 Ibidem. p. 529.

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que só poderia ser aberta depois de sua morte. (...) devia ser uma esquisita, que ficava no gabinete, sempre coberta por um pano. Raramente a vira, porque o general mantinha o gabinete trancado e só consentia que o arrumassem na sua presença. (...) Pegaram a penca de chaves, correram ao gabinete, abriram a porta, encontraram, para surpresa de dona Dalva, o janelão escancarado e as cortinas esvoaçando. E, no lugar onde devia estar a canastra, não acharam nada, ela tinha desaparecido.110

A canastra com os segredos da Irmandade da Casa da Farinha, a Irmandade do Povo

Brasileiro, é ironicamente aberta ao acaso, pelas mãos de meliantes que assaltaram a casa do

general. Houve, no entanto, hesitação para levá-la:

Tinha rádio elétrico, baixela de prata, colar de pérolas, volta de ouro, vestimenta de luxo, tinha tudo, bastante para encher os seis caçuás e ainda sobrar coisas para carregar nas costas. Tinha também o bauzinho que Nonô apanhara na casa do general e que preocupava Sororoca, que votou contra roubarem o general. Mas Nonô era descuidista de nascimento, ficava doente se via um artigo dando sopa sem ele levar. Chegou a dizer que também lhe cortava o coração furtar do grande general a quem todo mundo queria bem, mas não podiam ter deixado aquela janelona aberta, é uma coisa que não se faz. E, depois, não devia ter nada mesmo naquele baú, era mais bem uma recordação. Já tinha até tentado abri-lo para provar que dentro dele só devia haver uns papéis velhos e outros bagulhos desse tipo, mas não conseguira, mesmo porque não tinham tempo a perder, precisavam juntar tudo e dar no pé. Depois, chegados a lugar seguro, ele o abriria, não havia de ser tão difícil assim.111

Assim, perdida entre elementos do universo material, cento e doze anos depois de ter

sido aberta pela primeira vez por Júlio Dandão, a canastra tem seu ressurgimento derradeiro em

Viva o povo brasileiro, e é aberta justamente no seu lugar de origem – a Irmandade da Casa da

Farinha, Irmandade do Povo Brasileiro – em cujas ruínas os ladrões resolvem parar, para fazer a

divisão dos objetos furtados.

Surpreendendo as expectativas dos assaltantes, a canastra não encerrava nenhuma

espécie de riqueza material, mas constituía um tesouro de valor moral, muito antes insinuado pelo

discurso literário:

... espíritos de coisas, maneiras de ser, sopros trabalhadores, papéis que não se podia ver com os dois olhos para não cegar, influências aéreas, as verdades por trás do que se ouve, sugestões inarredáveis, , realidades tão claras quanto o imperativo de viver e criar filhos.112

110 Ibidem. p. 585-586. 111 Ibidem. p. 586. 112 Ibidem. p. 188.

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A abertura da canastra é um encontro com o futuro presentificado, e representa o

cumprimento de presságios insinuados muito tempo atrás, mais de cem anos, no tempo do

advento da casa da farinha e de seus conspiradores. Tal como os pergaminhos de Cem anos de

solidão, a canastra cumpre, ao longo da narrativa, uma trajetória de representação misteriosa e

oracular. Também de modo similar ao que acontece no romance de Gabriel García Márquez, por

ocasião do deciframento dos pergaminhos, em Viva o povo brasileiro a abertura da canastra

impulsiona um certo movimento de destruição e desintegração.

Depois de Nonô do Candeal revelar aos parceiros a sua visão do futuro, e

experimentar a sensação redentora de arrependimento por seus pecados, sensibilizado pelos

segredos da canastra, e pelo conhecimento de muitas das mazelas por que o país passava e ainda

passaria, o desprendimento dos segredos parece causar uma espécie de abalo sísmico:

Mas Nonô não pôde continuar a olhar para dentro da canastra, porque um ronco surdo, como se um animal imenso estivesse soterrado ali e quisesse levantar o chão para sair, começou a agitar tudo em torno, um ronco de elefante, de baleia, de onça, um arfar penoso que de repente tomou conta do mundo, não era mais um bicho embaixo da terra, era a própria terra como se estivesse em dor de parir, como se fosse morder, como se fosse revirar-se sobre si mesma. (...) Os outros, mesmo que quisessem responder, não poderiam, porque, com um grito que jamais pensara poder dar, Batata puxou a mão da parede em que encostara, ao sentir escorrer sobre ela um caldo espesso e quente, um caldo vermelho e ardente, um caldo semelhante a sangue, sangue porejando lentamente das paredes das ruínas da casa da farinha, derramando-se em borbotões vagarosos sobre os blocos de argamassa, saindo de todos os pontos da parede, uma cachoeira viscosa e silenciosa, sangue brotando de cada rachadura, cada ponto escuro do cimento antigo, cada esconderijo de aranhas e lacraias, cada grão de areia ali juntado, cada pedrinha. (...) lá embaixo três ladrões correram da velha canastra, a qual foi soterrada pelo sangue, pelo sangue, pelo sangue, pela argamassa que é a mesma coisa, pelo suor que é a mesma coisa, pelas lágrimas que são a mesma coisa, pelo leite do peito que é a mesma coisa. Isso lá em cima, Deus sorrindo ou não, porque embaixo, muito embaixo sob os ares de Amoreiras, tudo acontecia ou estava sempre podendo acontecer.113

Apesar da descrição de estranhos e tenebrosos fenômenos destrutivos, o que

prepondera, é uma imagem de possibilidade. E por que não supor que se trata de uma eterna

possibilidade? O discurso literário afirma que tudo sempre pode acontecer. O que se desprende e

113 Ibidem. p. 592-593.

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se liberta da canastra com os segredos da Irmandade é o espírito humano, que contempla a

paisagem ubaldiana pleno de esperança.

Conforme já dissemos, o fim do romance de João Ubaldo Ribeiro é um apontamento

para o futuro. E é um apontamento para a esperança. A altura do fim da narrativa, embora já

sejamos conhecedores de todos os males que ainda viriam a assolar o Povo Brasileiro, sabemos

igualmente que ele não sucumbiria sem luta, sem crítica e, principalmente, sem esperança.

Muitos de tais males, aliás, são herança negativa transmitida por algumas gerações

representativas do povo brasileiro, que Ubaldo configurou com maestria, já que a brasilidade não

é só bem ou mal, mas uma síntese elaborada e complexa das mais variadas propriedades. O Brasil

foi, no senso metonímico e metafórico de Ubaldo, e é, nos espaços externos à literatura, feito por

uma miscelânea de Amletos, Almérios, Perilos, Odulfos, Lavínios. Macários, Marias, Lourenços,

Leléus. Nonôs, Flausinos, Venâncias, Benignos.

Viva o povo brasileiro é um chamado de esperança. Não mais uma esperança

romântica ou infundada, mas absolutamente crítica e conhecedora dos entraves a um futuro justo,

e à altura do merecimento do povo cujas principais cenas de formação Ubaldo nos narra. Trata-se

de uma esperança de sobrevida, uma esperança de emersão. Algo cuja nobreza é tamanha, a

ponto de brotar de escombros, de ruínas, conforme a imagem final da narrativa, quando o Espírito

do Homem sobrepõe-se, aéreo, à baía, liberto da canastra, revelado em suas muitas faces.

O romance de João Ubaldo Ribeiro, massagem providencial no ego do Povo

Brasileiro, a quem reverencia imperativamente, foi publicado em 1984. O ano não poderia ser

mais pertinente ao teor da obra. Vinte anos depois do golpe que daria cabo de nossa liberdade,

que instituiria o cerceamento e a violência aos indivíduos brasileiros, numa longa e repressiva

ditadura militar, experimentávamos os primeiros presságios, os primeiros deslumbramentos

diante da possibilidade de uma abertura política.

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O movimento pelas “Diretas já”, disseminado pelas ruas das principais cidades do

país, era uma espécie de renascimento utópico, de crença sincera nos rumos do Brasil. Os

brasileiros permitiam-se priorizar um olhar para o futuro, promissor e passível de realizações, ao

invés de fomentar ressentimentos quanto a um passado tão recente, quanto frustrante e aterrador.

Em 1984, o povo brasileiro é uma imagem de sobrevida, em meio a variadas mazelas, e das mais

altas expectativas quanto ao seu próprio porvir, lógica e imediatamente vinculado ao porvir do

país.

Em entrevista concedida para o presente trabalho, lança-se a João Ubaldo Ribeiro a

pergunta sobre o que teria acontecido com estas expectativas, com o país e com o próprio

romance, certamente subjetivado pela experiência dos leitores, no tempo e em sua

individualidade, ao longo dos anos decorrentes desde a publicação da obra. O escritor, então,

estabelece uma comparação entre as duas cenas:

Essa pergunta é muito difícil. (...) Eu queria escrever um livro grande. Aí eu comecei já com a embocadura de livro grande. (...) A gente sente, com a abertura do livro, que ele vai ser um livro grande. (...) Eu certamente estava contaminado pelo clima, já que você aludiu, de esperança da época, esperança de abertura democrática. E hoje realmente há (...) um clima de desilusão, de descrença.114

De fato, trata-se mesmo de duas épocas bastante diversas, na história política

brasileira, sobretudo no que diz respeito à relação entre os termos do binômio referido por

Ubaldo, esperança e desilusão. A inquietação em torno do conceito de nacionalidade é marca

permanente da obra de João Ubaldo Ribeiro. Viva o povo brasileiro pode ser lembrado como

máxima expressão do tema, porque mostra uma brasilidade singular, porque plural..

Seja diante de momentos propensos ao mais elevado otimismo, ou à mais radical das

desilusões, o que permanece é a crítica sempre apaixonada de Ubaldo, veemente e firme, ainda na

contemporaneidade, ao propor pensar o país, sua história, seus processos. Nos limites internos ou 114 RIBEIRO, J. U. Entrevista concedida a Sheila de Almeida Machado, em 14/04/2006.

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externos à literatura, lá está o texto de Ubaldo, a traduzir e atualizar a síntese, a essência, o

espírito que nos define brasileiros.

Talvez o componente comum mais destacável entre Viva o povo brasileiro e Cem

anos de solidão seja o fato de serem, ambas, histórias sobre gerações. As narrativas de João

Ubaldo Ribeiro e Gabriel García Márquez demonstram como as gerações engendram, no tempo,

a história, construindo, respectivamente, os conceitos de nacionalidade e continentalidade.

Seja por meio de laços sangüíneos, biológicos, ou através de vínculos espirituais,

metafísicos, ou mesmo por uma mesclagem das duas naturezas, as gerações – substituições no

tempo – cumprem um sentido de singularidade nos romances, permeando-os, como um de seus

eixos temáticos centrais.

Em Cem anos de solidão é notório um presente senso de hereditariedade. O romance

propõe e efetiva a narração da vida de seis gerações de uma mesma estirpe, os Buendía, ao longo

de um século que poderia representar, simultaneamente, seis, tamanho o volume de

acontecimentos referentes às histórias individuais e coletiva, na representação de mundo

pertinente ao romance.

Tal representação de mundo, Macondo, sustenta surgimento, evolução, apogeu e

queda da família Buendía, tanto do ponto de vista mais genérico, quanto do essencialmente

individual: o destino particular dos membros da estirpe pouco ou em nada difere do traçado para

a família como um todo. Macondo tem sua existência precisamente definida e delineada, pelo

intervalo entre o nascimento do primeiro Aureliano – o coronel – , que coincide com o seu

momento de fundação, e a morte do último – o Babilonia, imagem da desintegração final e

completa.

A maldição familiar acerca do rabo de porco, anterior à fundação de Macondo e, de

certo modo, por ela responsável, reafirma o senso de hereditariedade de que falamos, e atesta a

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importância do trabalho das gerações, de seu auto-cumprimento no tempo, ainda que em franca

contrariedade com normas morais. Além disso, funciona como pretexto para a apresentação de

uma intrincada, mas sintética e explicativa genealogia:

Na escondida encosta vivia há muito tempo um nativo plantador de tabaco, o Sr. José Arcadio Buendía, com quem o bisavô de Úrsula fez uma sociedade tão produtiva que em poucos anos os dois juntaram fortuna. Vários séculos depois, o tataraneto do nativo se casou com a tataraneta do aragonês. Por isso, cada vez que Úrsula subia pelas paredes com as loucuras do marido, pulava por cima de trezentos anos de coincidências e maldizia a hora em que Francis Drake assaltou Riohacha. Era um mero recurso de desabafo, porque na verdade estava, ligados até a morte por um vínculo mais sólido que o amor: uma dor comum de consciência. Eram primos entre si.115

A perspectiva fatalista de cumprimento das gerações estabelece diálogo claro com a

idéia de predestinação que circunda a linhagem dos Buendía, ao longo da obra. A cada

descendente da estirpe nascido anatomicamente perfeito, Úrsula, a grande matriarca, sempre

atemorizada pela culpa de ter contrariado ordem e tradição impostas por ancestrais, experimenta

um alívio provisório. E a temida maldição, que seria motivada pela ocorrência de incesto entre os

Buendía, fica constantemente suspensa no romance, já que diversas ocorrências incestuosas ao

menos insinuam-se, ou cumprem-se parcialmente, numa tensão erótica contínua. A consumação

completa do fato dá-se, enfim, por Aureliano Babilonia e Amaranta Úrsula, que concebem o

amaldiçoado descendente, anunciado desde antes de Macondo existir.

Mássimo Canevacci faz importantes considerações acerca do fator da sexualidade,

com relação à dinâmica das gerações:

Não é certamente a sexualidade que está a serviço da geração, mas sim a geração progressiva ou regressiva que está a serviço da sexualidade como movimento cíclico, através do qual o inconsciente – conservando-se sempre como sujeito – reproduz a si mesmo.116

Uma relevante significação das gerações imanente ao contexto de Cem anos de

solidão é a de continuidade. Seja em termos de perfis psicológicos e biografias que se repetem,

115 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 23-24. 116 CANEVACCI, M. P. 55

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de acordo com nomes e outros critérios mais subjetivos; seja pelo simples revezamento em

algum trabalho de interesse familiar, coletivo – a leitura dos pergaminhos, por exemplo – o que

se verifica é a alternância de membros da ascendência construindo juntos a própria história. Eles

prosseguem, completam-se, integralizam-se sob as mais variadas formas: coincidências, missões,

destinos, crenças. Por ocasião da inusitada e precoce morte de Remedios, Úrsula funda uma

tradição:

... ordenou um luto de portas e janelas fechadas, sem entrada nem saída para ninguém a não ser para assuntos indispensáveis; proibiu falar em voz alta durante um ano, e pôs o daguerreótipo de Remedios no lugar em que se velou o cadáver, com uma fita negra em diagonal e uma lâmpada de azeite acesa para sempre. As gerações futuras, que nunca deixaram apagar a lâmpada, haveriam de se desconcertar diante daquela menina de saia pregueada, botinhas brancas e laço de organdi na cabeça, que não conseguiam fazer coincidir com a imagem de uma bisavó.117

A certa altura da narrativa de gerações de Gabriel García Márquez, propaga-se certo

mito de sobrepujança genética dos Buendía. A diligência arrojada, a alta potência física, a

paranormalidade e o senso comunicativo, tanto com a ciência quanto com a metafísica, são

apenas alguns dos muitos atributos vinculados à linhagem fundadora de Macondo. Na ocasião em

que o Coronel Aureliano Buendía, imagem singular de liderança belicosa, aguarda em cativeiro

sentença sobre seu futuro, recebe motivada visita:

... uma mulher muito bonita entrou no seu acampamento de Tucurinca e pediu aos sentinelas que lhe permitissem vê-lo. Deixaram-na passar, porque conheciam o fanatismo de algumas mães que enviavam as filhas ao quarto dos guerreiros mais notáveis, conforme elas mesmas diziam, para melhorar a raça.118

Mássimo Canevacci esclarece cautelosamente a relação entre fatores biológicos nos

indivíduos e a sua representatividade social:

A hereditariedade genética não é um status, mas um processo; ela tende a ser reafirmada num sentido reacionário, como substituto da irreversível decadência do conceito de predestinação, com a meta de se continuar a exercer o controle sobre os indivíduos e sobre as classes ‘subalternas’. (...) A genética e o ambiente ecológico são co-variantes no indivíduo. E as potencialidades genéticas – ou seja, o arquivo genético de cada indivíduo

117 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 85. 118 Ibidem. p. 118-119.

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– tendem a transcender, quebrar ou superar os limites de casta, de classe, de raça ou de sexo.119

A alta e suposta potencialidade reprodutiva do Coronel é atestada pelo discurso

literário, quando faz referência ao resultado hiperbólico de sua fama de guerreiro nobre e

valoroso. Já velho e decadente, ele experimenta surpresa, vaidade e orgulho, diante de uma vasta

prole, até então desconhecida:

... O Coronel Aureliano Buendía tirou a tranca e viu na porta dezessete homens dos mais variados aspectos, de todos os tipos e cores, mas todos com um ar solitário que teria bastado para identificá-los em qualquer lugar da terra. Eram os seus filhos. Sem combinar nada, sem se conhecerem, tinham chegado dos mais distantes lugares do litoral ... O Coronel Aureliano Buendía, que a princípio os recebeu com desconfiança, e até pôs em dúvida a filiação de alguns, divertiu-se com as suas loucuras e antes que fossem embora presenteou cada um com um peixinho de ouro. (...) Foram a galope, precedidos pela banda de música e soltando foguetes, e deixaram no povo a impressão de que a estirpe dos Buendía tinha sementes para muitos séculos.120

A ironia fina de García Márquez encontra expressão na sina da família Buendía, de

ser irrevogavelmente eliminada da face do planeta. Antes mesmo de tal destino se cumprir, no

tocante ao conjunto irrestrito de Buendías, uma pista nos é dada pelo discurso, através do

extermínio sistemático da prole de Aurelianos do Coronel. O último sobrevivente dos seus

dezessete descendentes, Aureliano Amador, tem o fim envolto em circunstâncias de ironia,

incomunicabilidade e esquecimento:

... vinha procurar uma trégua na sua longa e azarada existência de fugitivo. Identificou-se, suplicou que lhe dessem refúgio naquela casa que nas suas noites de pária evocara como o último reduto de segurança que lhe restava na vida. Mas José Arcadio e Aureliano não se lembravam dele. Pensando que era um vagabundo, lançaram-no à rua aos empurrões. Ambos viram então da porta o final de um drama que tinha começado antes que José Arcadio fizesse uso da razão. Dois agentes da polícia que tinham perseguido Aureliano Amador durante anos, que o haviam farejado como cães por meio mundo, surgiram dentre as amendoeiras da calçada em frente e lhe deram dois tiros de Mauser que penetraram certeiramente pela cruz de cinza.121

119 CANEVACCI, M. 120 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 200-201-202. 121 Ibidem. p. 344.

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A secular prostituta Pilar Ternera é testemunha de várias gerações da família

Buendía, e conhecedora íntima da existência circular de seus membros, bem como das frustrações

afetivas e desamparos sexuais de alguns deles. Quando o último dos Aurelianos a procura, aos

prantos, o discurso atesta a experiência avalizada da “mulher cujo riso explosivo espantava os

pombos”122:

Não havia nenhum mistério no coração de um Buendía que fosse impenetrável para ela, porque um século de cartas e de experiência lhe ensinara que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo.123

A experiência de Aureliano Babilonia, o último da estirpe, com a descoberta da

própria identidade, é uma história de obstinação. Depois de anos de clausura compulsória, em que

recebe tratamento negligente da família, pela condição de bastardo, o decifrador dos pergaminhos

de Melquíades e tradutor simultâneo da sina familiar é atemorizado pela dúvida a respeito de

estar vivendo uma relação incestuosa:

Atormentado pela certeza de que era irmão de sua mulher, Aureliano deu uma fugida até a casa paroquial para procurar nos arquivos sebentos e furados de traças alguma pista certa de sua filiação. A certidão de batismo mais antiga que encontrou foi a de Amaranta Buendía, batizada na adolescência pelo Padre Nicanor Reyna (...) Chegou a iludir-se com a possibilidade de ser um dos dezessete Aurelianos, cujas certidões de nascimento perseguiu através de cinco tomos, mas as datas de batismo eram remotas demais para a sua idade. Vendo-o perdido em labirintos de sangue, trêmulo de incerteza, o padre artrítico que o observava da rede perguntou-lhe compassivamente qual era o seu nome.124

Para Aureliano Babilonia, a descoberta decisiva sobre a própria identidade

somente é realizada em compasso com a descoberta da tradução dos pergaminhos de Melquíades,

instantes depois da morte de seu descendente anômalo, e antes de sua própria morte – a morte

derradeira e irreparável da estirpe Buendía:

Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado Riohacha só para que eles pudessem se perseguir pelos labirintos

122 Ibidem. p. 31. 123 Ibidem. p. 364-365. 124 Ibidem. p. 376.

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mais intrincados do sangue, até engendrar o animal mitológico que haveria de pôr fim à estirpe.125

Também por um trajeto labiríntico movimentam-se os personagens de Viva o povo

brasileiro. Mas os laços que os unem transcendem critérios meramente hereditários, sangüíneos,

para assumir representação metafísica, espiritual. No romance de Ubaldo, surpreendemos

gerações de almas; “alminhas brasileiras” afins. No longo discurso da médium de incorporação

Dadinha, antes de sua morte, em 1821, ela traça um esclarecedor apanhado genealógico de

personagens centrais da obra, a partir de sua própria biografia:

Nachi na senzala da Armação do Bom Jesus, neta de Vu mais o caboco alemão Sinique, Vu essa filha do caboco Capiroba. (...) Nachida no 21, começo do setechentos, meu pai eu não conheci, morreu no meu nachimento, minha mãe também não vi, mãe esta que foi vendida antes de me desmamar, partindo por Serigi para nunca mais voltar. Que quando eu fui nacher, naquela hora tinha dezoito almas doidas em Amoreiras e todas elas vieram para ne mim encarnar, tendo o cura porém dito que eu não ia me criar. Encarnou a minha alma por uma grande disputa, disputa que até hoje haja gente que discuta, fazendo com que visite, que nem a casa da puta, meu corpo mais de cem almas, por vezes em grande luta.126

Em outra passagem do romance, datada de 1809, narra-se o nascimento de Vevé,

filha de Roxinha e Turíbio Cafubá. Vevé, mais tarde, seria violentada por Perilo Ambrósio, o

Barão de Pirapuama, e viria a ser mãe de Maria da Fé. Dadinha, a mentora da Armação e mãe de

Turíbio, tem relevante participação no parto da neta, e as idéias de assinalamento e permanência

são evidenciadas pelo discurso:

Dadinha chegou logo depois e ainda ajudou as outras a amarrar o umbigo (...) Em primeiro lugar a menina tinha nascido num domingo como ela, era uma coisa ótima. Em segundo lugar apresentava um sinal igual ao do pai, era o primeiro dos filhos de seu filho Turíbio que nascera com aquele sinal. (...) A mancha na testa, um pouco mais clara do que a pele, já se podia ver bem na criança, assim mais ou menos em riba do olho direito, quase como no pai. Sinal esse, contou Dadinha mais uma vez, que vinha da caboca Vu e que era um sinal que nela muitas vezes se acendia, quando ela lutava. (...) Mas sim, mas sim, continuou misteriosamente, essa minha neta vai dar coisa, hum-hum. Com esse sinal: quer dizer, tudo continua e é por ela que vai continuar.127

125 Ibidem. p. 383. 126 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 64-65. 127 Ibidem. p. 84.

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É na Capoeira do Tuntum que se manifestam as principais chaves e soluções

genealógicas de Viva o povo brasileiro. Lugar de incorporações, orgias espirituais e rituais

ligados à anscestralidade, é lá o espaço propenso ao encontro de almas afins. É lá que o espírito

de Sinique contempla e refere o próprio histórico existencial:

... contou em língua de caboclo holandês a longa história da família, netos, bisnetos e a tataraneta filho de Turíbio Cafubá (...) Sinique ... desapareceu na escuridão (...) Talvez fosse porque, atraída para ali havia horas, a almazinha tenha chegado perto demais e então, de modo tão instantâneo que nem as almazinhas saberiam descrevê-lo, entrou num torvelinho e se viu, agora com as lembranças apagadas e a consciência adormecida, dentro do ovinho que nem ainda começara a rolar pelas entranhas de Naê em direção a seu ninho. E, se a alminha quase não sentiu nada além do medo impotente que traz a encarnação e agora nem mesmo se lembra de que não mais ficará na brisa da ilha a sonhar, muito menos sentiu Naê, que naquele instante apenas inspirou um pouco mais fortemente, como faz toda fêmea fecundada no momento em que um espírito ocupa seu ovinho.128

O Tuntum funciona como um centro de convergência, um receptáculo de existências

encarnadas ou não, cujo hibridismo singular foi produzido pelo tempo. Na ocasião em que Zé

Popó guia Patrício Macário em visita ao local, saciando ao agnóstico militar as dúvidas sobre

espiritualidade, o discurso atesta a representatividade mística e epifânica do local:

Ali estavam sendo recebidas entidades, cabocos, espíritos, almas de ancestrais, parentes e amigos (...) aquela gente não desejava fazer nada de mais, apenas entregar-se a uma prática que vinha de muitos e muitos anos, passada de geração em geração. (...) - Minha mãe – disse Zé Popó – é herdeira de uma grande tradição. Tudo o que ela sabe, aprendeu com a falecida mãe Inácia, de quem o senhor nunca deve ter ouvido falar, mas pertencia a uma espécie de linhagem, uma linhagem que tem sua nobreza, que vem de mãe Dadinha, de mãe Inácia e de outras, muito raras e prezadas por esse povo todo.129

O ápice do ritual místico presenciado e vivenciado por Patrício Macário, no Tuntum,

sob receptibilidade e acolhimento de Zé Popó, ocorre por ocasião da abordagem que,

incorporada, a sacerdotisa Rita Popó faz ao então major Macário: “Movendo-se com rapidez, ela

o abraçou, encostou o rosto no dele e começou a alisar-lhe as costas, mas ele, assustado, a

128 Ibidem. p. 139. 129 Ibidem. p. 430-431.

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empurrou...”130 Guiado depois à conselheira espiritual Rufina, Macário experimenta o

conhecimento genealógico da própria alma:

... ouviu uma história que ao mesmo tempo entendeu e não entendeu, mas que de qualquer forma o maravilhou, a ponto de às vezes achar que estava vivendo os episódios, num mundo de luz difusa e contornos imprecisos. Contou-lhe Rufina que ele tinha a mesma alma que Vu, filha do caboco Capiroba e, portanto, num certo sentido, ele era Vu. Essa Vu tinha sido mulher do caboco Sinique e por isso Sinique, agora que a alma de Vu se encarnara num homem, baixara numa mulher para poder beijá-lo (...) contara Sinique que ele, Patrício Macário, logo encontraria uma mulher que antes era o caboco Capiroba e essa mulher e ele se amariam. Mostrou-lhe, então, narrando tudo em pormenores, como essa mulher, cuja identidade ela conhecia mas não podia revelar, era também descendente carnal do caboco Capiroba, pai de Vu, bisavô de Dadinha, trisavô de Turíbio Cafubá, tetravô de Daê, também chamada de Vevé, avô no quinto grau dessa dita mulher, a qual, portanto, considerando as almas, era ancestral de si mesma. (...) Visse também que essa mulher e ele, por ter ele a alma de Vu, eram sob um aspecto almas parentas, tendo sido Vu a filha que mais saiu ao grande caboco Capiroba – e isso seguramente queria dizer alguma coisa, que o major descobriria no devido tempo. Algo era certo, certíssimo: aquilo tudo era coisa armada, coisa-feita, coisa orquestrada, que ele não se enganasse e procurasse aprender. Ele podia não acreditar, mas era parte daquele povo, talvez não pela carne, mas muito mais fundo, pela alma.131

Vislumbramos, então, uma das grandes saídas para o labirinto de almas engendrado

pelo romance: Maria da Fé é a nova encarnação da alma que habitou o corpo do caboco

Capiroba. No labirinto de sangue, ela é sua neta em quinto grau e, portanto, segundo o próprio

discurso, “ancestral de si mesma”132.

Providencialmente, ao encontro de Macário, que experimentava o deslumbramento da

descoberta de ter a alma de Vu, surge Maria da Fé, a mulher que já provocava ao militar um

incompreendido fascínio, agora claramente explicável. Numa conciliação de corporalidade e

alma, afirmando a legitimidade de seu amor antigo, de seu vínculo quase imemorial, Macário e

Dafé celebram o encontro. E assistem no Tuntum a um desfile de outras almas afins, a eles

ligados por parentesco sangüíneo ou místico, a bendizê-los:

Não falaram nada a princípio, permaneceram de mãos dadas, em pé junto à encruzilhada, enquanto, pulando aqui e ali, entrando em todas as cabeças disponíveis, os cabocos e as almas faziam seu entremez de falas arrevesadas e saudades, uma algazarra alegre e festiva. Ali passaram, com Patrício Macário mergulhando cada vez mais fundo em seu

130 Ibidem. p. 430. 131 Ibidem. p. 436-437. 132 Ibidem. p. 437.

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encantamento, todos os amigos e parentes, passou Nego Leléu, que abençoou a neta, passou Dadinha, que abençoou a ambos, passou Aquimã, todo tortinho, que saudou os dois misturando holandês com castelhano, passou Sinique, que beliscou Patrício Macário e mostrou a língua a Maria da Fé, passou até a negra Esmeralda, toda sorridente e dançando com a saia arrepanhada.133

Lourenço é o resultado direto do encontro amoroso das duas almas afins, engendrado

pelos caminhos discursivos de resolução do romance. O efeito último do amor entre Dafé e

Macário é a síntese de seus espíritos revolucionários e combativos, numa continuada e

permanente construção do país e de seus ideais. A última linha de sucessão da complexa

genealogia biológico-espiritual de Viva o povo brasileiro de que se tem notícia no romance é

Lourenço. Ele é o herdeiro dos prevalecentes princípios de justiça e igualdade proclamados por

seus ascendentes diretos e ao longo de toda a narrativa. Em meio aos múltiplos e ideologicamente

contraditórios discursos produzidos no romance de Ubaldo, o que predomina é aquele do qual

Lourenço é depositário. A proeminente liderança dos milicianos do povo, representada na figura

de Lourenço, é uma nova, incipiente geração, conhecedora crítica do passado, detentora do

legado construído e deixado pelas anteriores, a valorizar a lucidez do presente e construir um

futuro de maior consistência e solidez.

133 Ibidem. p. 437-438.

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É preciso que justamente o homem derrotado volte a tentar o lado de fora.

ERNST BLOCH

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4. O coronel e a guerrilheira: caminhos avessos de revolução

Um caminho possível e eficaz para a compreensão da proposta dialógica entre Viva o

povo brasileiro e Cem anos de solidão é a associação produtiva entre os personagens Maria da Fé

e Coronel Aureliano Buendía, das respectivas obras.

Tanto do ponto de vista dos percursos evolutivos que cumprem ao longo das

narrativas, quanto no tocante à representação literária, e mesmo histórica, que assumem nos

romances, os personagens podem ser abordados de modo a, em determinados aspectos,

revelarem-se análogos dentro do discurso literário a que se vinculam, guardadas as naturais

distinções.

A um só tempo, e paradoxalmente, tomam para si dimensão mítica e histórica,

lendária e empírica. Representantes da coletividade e defensores, cada um a seu modo, das idéias

de revolução, Maria Dafé e Coronel Aureliano Buendía inserem-se, já no contexto de suas

origens, em uma intensa ambiência mítica e mística, simultaneamente.

Dafé, nascida do estupro praticado pelo Barão de Pirapuama contra a negra Venância,

é personificação metafórica da miscigenação em terra brasileira, e produto da violência

impositiva do colonizador português. Seu nascimento é contornado por uma idéia de evento raro,

cuja significação revela caráter transcendental: “Ela nascera antes do esperado, dia 29 de

fevereiro, dia mais do que doido para se nascer, vez que assim só se tem dia de anos de quatro em

quatro anos (...) vinda ao mundo numa sexta-feira bissexta (...)”134

Para uma análise genealógica ainda anterior, o nascimento de Venância, mãe de Dafé,

também é situado pelo discurso literário tal como um presságio, um anúncio oracular, quando

aborda as impressões de Dadinha, médium e sensitiva de Itaparica, avó de Maria da Fé:

134 RIBEIRO, J. U. (1984) p.224-225

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Em primeiro lugar, a menina tinha nascido num domingo como ela, era uma coisa ótima. Em segundo lugar, apresentava um sinal igual ao do pai, era o primeiro dos filhos de seu Turíbio que nascera com aquele sinal. E num Domingo, bom, muito bom, muito bom. A mancha na testa, um pouco mais clara do que a pele, já se podia ver bem na criança, assim mais ou menos em riba do olho direito, quase como no pai. Sinal esse, contou Dadinha mais uma vez, que vinha da cabocla Vu e que era um sinal que nela muitas vezes se acendia quando ela lutava (...) Mas sim, mas sim, continuou misteriosamente, essa minha neta vai dar coisa, hum-hum. Com esse sinal: quer dizer, tudo continua e é por ela que vai continuar. 135

Em consonância com a heroína de Ubaldo, o primeiro Aureliano da estirpe dos

Buendía tem seu nascimento igualmente ligado a acontecimentos extraordinários:

Aureliano, o primeiro ser humano que nasceu em Macondo (...) Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre da mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto lhe cortavam o umbigo movia a cabeça de um lado para o outro, reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro 136

Já na primeira infância, Aureliano evidencia uma personalidade cheia de

significações místicas, além de certa vocação premonitória:

Úrsula não tornaria a se lembrar da intensidade desse olhar até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de caldo fervente. O garoto, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava posta bem no centro da mesa, mas, logo que o menino deu o aviso, iniciou um movimento irrevogável para a borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espedaçou no chão.137

É pertinente lembrar que, a certa altura da narrativa, quando o coronel Aureliano

revela-se, diante dos decepcionados olhos de Úrsula, um incapacitado para o amor, ela atribui o

fato a uma estranha e sobrenatural profecia, evocada pela memória e ainda anterior ao nascimento

do filho, segundo a qual ele teria chorado em seu ventre.

Aureliano, pioneiro, inaugural, envolto em presságios; Maria Dafé, sob o signo da

continuidade e da luta. Assim, os personagens revolucionários de Gabriel García Márquez e João

Ubaldo Ribeiro, respectivamente, têm seus nomes inscritos a princípio pelo discurso literário.

135 Ibidem. P. 84. 136 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 19. 137 Ibidem. p. 19-20.

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É interessante notar que as duas personalidades podem facilmente sugerir, logo de

início, uma convergência para o status heróico, uma vez que são configurados como indivíduos

eleitos, assinalados. E, de fato, como veremos, o heroísmo de cada um deles, em diferentes níveis

e acepções, é confirmado em cada um dos romances.

Ensimesmados, rebeldes, adeptos de “esquisitices” e alheamentos, já muito antes de

se tornarem adultos nas tramas, Maria da Fé e Aureliano são apresentados como individualidades

absolutamente privativas:

(...) Dafé, porém, não prestava atenção às palavras, que até já sabia de cor, como, aliás, quase todo o discurso, de tanto ouvi-lo repetido pela professora (...) Gostava era de esfumar-se em pensamentos exóticos, sem ver ou ouvir qualquer coisa. (...) Nunca aprendera a gostar daquele quarto em que dormira tantos anos e em que tanto se trancara, apesar da proibição, para ler até mesmo livros estranhos dos quais não entendia nada.138

Aureliano vivia horas intermináveis no laboratório abandonado, aprendendo por pura pesquisa a arte da ourivessaria. (...) Estava tão concentrado nas suas experiências (...) que mal abandonava o laboratório, e só para comer.139

Em repetidos momentos das narrativas, Dafé e Aureliano cumprem a funcionalidade

de testemunhar fundamentais acontecimentos de âmbito político e social dentro das

representações de mundo a que se integram, Itaparica e Macondo, respectivamente. Por ocasião

do posicionamento crítico que demonstram e pelo conseqüente poder de representatividade

coletiva adquirido por ambos, Maria da Fé e Aureliano Buendía são, simultaneamente, sujeitos

ativos e testemunhas da história posta em representação pelo discurso.

A propósito dessa afirmação, e sabendo tratar-se de dois romances de extremo

comprometimento com a construção da nacionalidade de suas literaturas, e que, portanto,

fatalmente realizarão certa releitura da história oficial, podemos supor o vínculo entre os

138 RIBEIRO, J.U (1984) p. 249-250. 139 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 41.

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procedimentos do discurso literário e determinada concepção da história, segundo a qual a

própria eficácia implica o necessário reconhecimento do componente simbólico. Jaques Le Goff

postula em História e memória:

A história começou com um relato, a narração daquele que pode dizer “Eu vi, senti”. Este aspecto da história-relato, história-testemunho, jamais deixou de estar presente na ciência histórica. Hoje se assiste à crítica deste tipo de história pela vontade de colocar a explicação no lugar da narração. (...) O caráter único dos eventos históricos, a necessidade do historiador de misturar relato e explicação fizeram da história um gênero literário, uma arte ao mesmo tempo que uma ciência.140

Com fundamento em tais idéias, é possível restabelecer a frágil fronteira entre os

discursos literário e histórico, com a previsibilidade de que o primeiro atualize, refaça,

desconstrua, e mesmo inverta o segundo. Segundo Nicolau Sevcenko, a procedência de uma

literatura criativa revela sempre um ato de inconformismo e releitura:

Todo discurso criativo assinala um ato fundador, na medida em que nomeia situações e elementos imprevistos, conferindo-lhes existência e lançando-os na luta por um espaço e uma posição, no interior das hierarquias que encerram as palavras encarregadas de dizer o mundo conhecido e compreendido. 141

Além de presenciarem e atuarem junto aos referidos fatos, cuja projeção e relevância

são de natureza sócio-política, e mesmo histórica, portanto coletiva, as experiências individuais

de Dafé e Aureliano também comportam similaridades que os irmanam ainda mais. Os dois

poderiam ter suas trajetórias interceptadas e divididas, nos romances, por uma ocorrência

traumática, a partir da qual, operam uma ampla transformação pessoal. Trata-se de duas perdas

sofridas pelos personagens: Venância, por Maria da Fé; Remédios, por Aureliano.

São visíveis as alterações de postura, humor, atitude e valores, assumidas por Dafé,

depois que presencia, ainda menina, o assassinato brutal da própria mãe. Nas palavras do avô

Leléu, tornam-se explícitas as conseqüências traumáticas experimentadas pela personagem:

140 LE GOFF, J. (1996) p. 9-12. 141 SEVCENKO, N. (2003) p. 300.

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O corpo ainda estava lá, mesmo que o deixasse triste e ás vezes sem dormir com medo de que ela ficasse doente, mesmo sem o viço que era a primeira coisa sentida na presença dela. Mas o espírito fora furtado, levado embora, desterrado para algum lugar de onde não havia meio de recuperá-lo (...) Nunca mais ouvira o riso dela, nunca mais a vira correr por ali de pés descalços (...) nunca mais notara qualquer brilho nos olhos dela.142

Mesmo quando a menina reconhece os assassinos da mãe, e Leléu põe em execução

uma ardilosa vingança, ela permanece reflexiva e melancólica. Gradativamente, no entanto,

acentua as cores de seu espírito questionador.

Aureliano experimenta efeitos diversos, depois da perda de Remédios, a mulher por

quem escreveu versos de amor, e enfrentou noites febris de uma espera angustiada, agravada pelo

fato de ser ela ainda impúbere, quando ele se entrega a uma paixão tenaz.. Viúvo, o ainda futuro

coronel inicia um processo de intransponível endurecimento, ainda que conserve, por algum

tempo, uma afeição sincera pelo sogro, Apolinar Moscote, espécie de “autoridade decorativa” de

Macondo:

A morte de Remédios não lhe produzira a comoção que temia. Foi mais um surdo sentimento de raiva que paulatinamente se dissolveu numa frustração solitária e passiva, semelhante á que experimentara na época em que estava resignado a viver sem mulher. Voltou a afundar-se no trabalho, mas conservou o costume de jogar dominó com o sogro.143

Embora demonstrem diferentes modos de sobrevida aos eventos traumáticos por que

passam, o fato notável é que ambos os personagens encontram a mesma solução para tais

eventos: ocupam-se em abraçar uma causa revolucionária. Maria da Fé engaja-se junto aos

conspiradores da casa da farinha, movimento libertário cuja motivação basilar é a luta por justiça

social. Aureliano, ainda que confuso e oscilante entre os princípios liberais e conservadores,

integra-se à causa liberal, e chefia a revolução que determina os primeiros desígnios da guerra

civil, da qual seria um dos principais ícones representativos, ao longo de anos de contenda. 142 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 300. 143 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 91.

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Torna-se evidente a constatação de que os ingressos de Dafé e Aureliano nos

referidos movimentos revolucionários são diferenciados, e mesmo avessos, pela inicial percepção

de que, enquanto ela vivencia um anterior e intenso processo de amadurecimento da própria

consciência, ele se lança ao acaso de uma luta sobre a qual praticamente desconhece os

fundamentos.

Outro fator notável quanto à diferença de que tratamos é o caráter pacifista e anti-

militarista da luta dos conspiradores, em Viva o povo brasileiro, em visível contraste com o

aspecto violento e repressor das revoluções liberais, em Cem anos de solidão. As linhas

combativas percorridas por Dafé e Aureliano, portanto, não comportam afinidade em seus

princípios.

Embora ambos os personagens relacionem-se ao conceito de utopia, tais relações

poderiam mesmo ser apontadas como invertidas. Maria da Fé representa a construção utópica e o

coronel Aureliano, a desconstrução da mesma noção. Seus desfechos, nas tramas, sugerem,

respectivamente, a sobrevida e o fracasso da utopia, de que falaremos mais detalhadamente, no

desenvolvimento do presente capítulo.

No curso das ações narrativas, tais marcas diferenciais se fazem presentes. Enquanto

a guerrilheira de Ubaldo reafirma suas crenças político-filosóficas ao longo da série de pelejas

nas quais se envolve, o coronel de García Márquez torna-se progressivamente desiludido em

relação à guerra, a ponto de considerá-la, a certa altura da narrativa, vã e infundada. Tendo

ouvido de Gerineldo Márquez, seu companheiro de batalhas, o motivo pelo qual brigava – o

partido liberal – o então ímpio e cansado coronel Aureliano Buendía explicita uma desorientação

íntima:

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- Feliz é você que sabe disso. Eu, de minha parte, só agora percebo que estou brigando por orgulho. (...) Mas em todo caso, é melhor isso que não saber por que se briga. (...) Ou brigar como você, por alguma coisa que não significa nada para ninguém.144

Em latente contrapartida, localiza-se o discurso articulado e absolutamente sóbrio no

que diz respeito ao sentido da guerra, proferido por Maria da Fé, ao desvelar os meandros de sua

causa:

Isto é a única coisa que faz sentido (...) Mas esta guerra civil não terminará aqui, com a derrota nesta batalha, esta guerra civil continuará pelos tempos afora, assumirá muitas caras e nunca deixará de assombrar vocês, até que cesse de existir um país que em vez de governantes tem donos, em vez de povo tem escravos, em vez de orgulho tem vergonha. O poder do povo existe, ele persistirá.145

É válido notar que há uma espécie de consternação em ambos os discursos. O fator

diferencial é que na fala de Aureliano tal consternação apresenta-se inconsistente, infrutífera, ao

passo que na exposição de Dafé evidencia-se a esperança de que os fins da guerra sejam

atingidos, ainda que num longo prazo e às custas de padecimento.

Assim, permitindo o enfoque simultâneo de incontroversas semelhanças e distinções

aspectuais, Maria da Fé e o coronel Aureliano Buendía realizam seus trajetos nos romances,

revelando como propriedade comum um deslocamento peculiar: transitam de uma inicial

categoria individualizada, para o exercício da representação de um imaginário coletivo.

Uma vez que os personagens aqui tratados pertencem a literaturas situadas

esteticamente dentro do paradigma nomeado Pós-modernismo, e inseridas na contextura de

produção latino-americana, é válido notar uma possível e recorrente conexão entre aquele

conceito e o de neo-barroco. Como quer Serge Gruzinski, as raízes dos imaginários patenteados

na pós-modernidade remetem ao encontro histórico entre o velho mundo europeu e o novo

144 Ibidem. p.128. 145 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 495-496.

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mundo americano. A partir de tal encontro, seria justificada a natureza híbrida (neo-barroca) das

representações de imaginário de que falamos:

O embaralhamento das referências, a confusão dos registros étnicos e culturais, o entrecruzamento do vivido e da ficção são traços que aproximam sem os confundir – pois a história não se repete -, os imaginários de ontem e de hoje. Todos incontestavelmente saíram do universo fractal nascido do contato dos dois mundos e perpetuam em toda a América Latina as situações de fronteira. 146

De fato, o embaralhamento a que Gruzinski faz referência presentifica-se em Maria

da Fé e Aureliano, e implica uma série de dualidades nos personagens, das quais a mais

importante, para efeito da significação maior que assumem nas obras, é a que contrasta o

“vivido” e o ficcional. É precisamente na sombra desta intercecção que se produz a construção do

mito.

Durante todo o percurso narrativo dos romances Viva o povo brasileiro e Cem anos

de solidão, as identidades de Maria da Fé e Aureliano Buendía são perpassadas pela instância

mítica. As biografias dos personagens, nas obras, compreendem fatos estranhos, ocorrências

fantásticas, acontecimentos inexplicáveis, que a todo momento lançam a dúvida sobre a resolução

dos personagens dentro dos enredos em que atuam: estariam eles situados num plano de realidade

ou de ficcionalidade? A partir da instalação de tal dúvida, Dafé e Aureliano são facilmente

alçados à condição de mitos.

Eis uma síntese biográfica do coronel Aureliano Buendía:

O Coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito que lhe outorgou o Presidente da República. Chegou a ser comandante geral das forças revolucionárias, com jurisdição e mando de uma fronteira à outra, e o homem mais temido pelo governo, mas nunca permitiu que lhe tirassem uma fotografia (...) Desfechou um tiro de pistola no peito e o projétil saiu-lhe

146 GRUZINSKI, S. (2001) p. 88.

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pelas costas sem ofender nenhum centro vital. A única coisa que ficou de tudo isso foi uma rua com o seu nome em Macondo.147

É inevitável extrair do discurso a contraposição entre a dimensão histórica e a

imaginária. E a suspeita sobre os limites entre experiência concreta e fantasia construída. Em

outras passagens da narrativa, novamente o discurso literário aponta para uma indistinção entre

ficção e realidade, no tocante à polêmica e empática figura do coronel, sobre quem, inclusive, foi

criada certa “lenda de ubiqüidade”:

Informações simultâneas e contraditórias declaravam-no vitorioso em Villanueva, derrotado em Guacamayal, devorado pelos índios Motilones, morto numa aldeia do pantanal e outra vez sublevado em Urumita. (...) O governo nacional assimilou-o à categoria de bandoleiro e pôs a sua cabeça a um prêmio de cinco mil pesos.148

É relevante observar que o próprio Coronel Aureliano, à medida que endurece com os

anos de guerra, em meio a posturas de extrema arbitrariedade e violência, por meio das quais

chega mesmo a revelar-se um ditador inflexível, assume-se enquanto mito: “... distribuiu ordens

de uma severidade extrema, e que ninguém se aproximasse a menos de três metros de sua pessoa,

nem sequer Úrsula.”149

Maria da Fé, igualmente envolvida em eventualidades duvidosas, também é acusada

de “bandoleira” pelo governo, e sua cabeça, como a de Aureliano, é posta a prêmio, com o

agravante de que, em certa passagem, é enviada uma expedição militar ao sertão, com o único e

específico objetivo de capturá-la. Notemos uma passagem do discurso literário em que se verifica

a notoriedade enfática da personagem, além de sua contigüidade ao universo fabuloso:

Uma só pergunta corre de boca em boca, uma só indagação freqüenta os corações pressurosos, só uma dúvida é sussurrada na ilha (...) Será que ela virá? Mais uma vez se provará sua tremenda ousadia, que os poderosos consideram desfaçatez, mas o povinho admira? Mais uma vez enfrentará, com a prosápia que nunca a abandona, tropas e armas das autoridades? Ou deixará, desmentindo as lendas de grandes feitos que todo o povo

147 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p.99. 148 Ibidem. p. 123. 149 Ibid. p. 146.

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conta, de prestar homenagem a seu avô? Ou será até que ela não existe, apesar dos testemunhos de diversos, os quais contudo podem ser simples boateiros, dos muitos que abundam entre o populacho?150

Se Aureliano sugere a sua assunção como mito meramente pela egocêntrica

determinação sobre a fronteira espacial que o separaria das pessoas, Maria da Fé declara

explicitamente e mais de uma vez a sua natureza mítica. Em determinada passagem, separa-se de

Patrício Macário com a seguinte afirmativa: “ ... eu mesma às vezes penso que não existo, penso

que sou uma lenda, como dizem que sou. E tu, no futuro, talvez venhas a pensar assim

também.”151

Já observamos que os personagens aqui tratados atuam ao longo das narrativas junto

a acontecimentos de alcance coletivo e histórico. Participam, portanto, da construção de uma

historicidade literária em franco e constante diálogo com a chamada história oficial, exterior ao

texto, seja para questioná-la, reconstruí-la ou invertê-la.

É natural propor, então, que o formato mítico incorporado por ambos contribua para

que, nos limites internos do discurso literário, eles sejam personagens propulsores e

incentivadores de uma memória coletiva a ser construída e preservada. Nos limites externos,

“modelos arquetípicos”, a serviço da releitura e do desvelamento histórico, tal como quer o

antropólogo Mircea Eliade: “Seja qual for a sua importância, o acontecimento histórico em si só

perdura na memória popular e a sua recordação só inspira a imaginação poética na medida em

que esse acontecimento histórico se aproxima de um modelo mítico.”152

Quanto à procedência social, os personagens revolucionários de João Ubaldo Ribeiro

e Gabriel García Márquez comportam uma diferença relevante. Enquanto o Coronel Aureliano

Buendía pertence a uma família de alto prestígio social em Macondo, a quem o povoado deve, 150 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 323. 151 Ibidem. p. 449. 152 ELIADE, M. (1969) p. 57.

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inclusive, sua fundação, Maria Dafé emerge de precárias condições da senzala grande da

Armação do Bom Jesus. Supera, portanto, os previsíveis entraves socialmente impostos, pela

situação duplamente desfavorável: mulher e negra, inserida em uma representação de mundo cuja

estrutura é marcadamente patriarcal e escravista.

Apesar das distintas origens e dos diferentes caminhos traçados, o fato irrefutável é

que, nas obras, os personagens são emblemáticos, ostentam insígnias e alcançam reputação de

cunho nacional.

A guerrilheira Maria da Fé realiza, em Viva o povo brasileiro, uma órbita épica e

reticente. Depois de atuar em vários levantes em prol de justiça social, engajar-se em causas

nacionais de importância histórica, tal como Canudos, erigir repetidamente um discurso de amplo

compromisso sócio-político, contribuir para um processo de conscientização popular,

“converter”, pela palavra, um militar em companheiro de causa, e com ele viver um romance de

alcance místico-transcendental, a personagem desaparece. As circunstâncias incertas em que se

dá o fato concorrem para a cristalização de sua aura de irrealidade.

Sendo o romance de Ubaldo dividido em segmentos datados e devidamente

localizados no espaço, verificamos que a sucessão estrutural de muitos episódios constrói o

significado da obra em sua integralidade. Dois deles, sugestivamente justapostos, confirmam a

intencionalidade de que falamos. O primeiro circunscreve-se em Ponta de Nossa Senhora, a 30 de

junho de 1871.

Maria da Fé e Patrício Macário, então apaixonados e felizes, discutem sobre seu

futuro e há um abalo, quando Dafé conclui a impossibilidade de permanecerem juntos. Depois de

questionarem os limites entre suas identidades e diferenças, e as chances de aprofundarem

convívio e romance, a heroína de Ubaldo sentencia a separação, apesar de afirmar seu amor

eterno. É a ruptura da união entre o capitão e a guerrilheira:

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... fizeram tudo o que todos os amantes apaixonados já fizeram e o tempo deixou de existir. Só voltou a existir cinco dias depois, quando Patrício Macário (...) acordou sozinho numa casinha em Bom Despacho onde tampouco havia vivalma, nem se sabia, na rala vizinhança, a quem pertencia. Acordou impregnado do cheiro dela e com uma carta na mão, que nunca mostrou a ninguém.153

De fato, como o próprio texto anuncia, há uma suspensão do tempo, até que haja nova

referência a Maria da Fé no romance. O episódio imediatamente posterior é datado de 29 de

fevereiro de 1896, vinte e cinco anos depois, exatamente no dia do aniversário da personagem.

Em arraial de Santo Inácio, o cego Flausino, espécie de contador de histórias do local, narra os

feitos heróicos de Maria da Fé. Incorporando ao seu discurso informações até então

desconhecidas do leitor, sobre o que teria se passado nos últimos vinte e cinco anos, Flausino

realiza uma espécie de síntese retrospectiva dos acontecimentos, e finaliza sua fala, incorrendo

em mais uma lacuna de imprecisão e incerteza:

Não se sabe por onde anda Maria da Fé, nem o que está fazendo agora. Mas se sabe que, como vem escrito no seu nome, ela continua acreditando que um dia vai vencer, nem que não seja ela em pessoa, mas quem herde as idéias e a valentia dela, que ela acha que serão muitos. Como nasceu por perto da Independência, já deve estar velha, porque ninguém conseguiu nunca cortar a cabeça dela. E talvez nem velha nem esteja, porque sabe o povo que ela só faz aniversário de quatro em quatro anos, tendo nascido num 29 de fevereiro.154

Mais uma vez asseverada a potência mítica de Dafé, a narrativa prossegue e, num

evento situado no ano subseqüente ao relato do cego Flausino, há uma nova e derradeira

aparição de Dafé. Ela surge para fazer justiça ao sertanejo Filomeno Cabrito, libertando-o de

uma tropa de malfeitores. Cabrito, que coincidentemente havia escutado a narração de Flausino,

experimenta um deslumbramento diante do mito: “... achou que estava assistindo a um milagre,

uma aparição de santa, quis cair de joelhos, mas o homem a seu lado o segurou pelo ombro.”155

153 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 450. 154 Ibidem. p. 456. 155 Ibid. p.494.

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O mesmo discurso que apresenta e narra a última aparição ativa de Dafé a põe em

suspeita, logo em seguida, ao questionar o ocorrido com Filomeno Cabrito, testemunha da ação:

Filomeno Cabrito, antes de dormir, imaginou que estava sonhando, beliscou-se e demorou a cair no sono. E continuou a imaginar que sonhava, quando acordou no dia seguinte na companhia de suas mulas, no acampamento absolutamente deserto, como se nunca tivesse estado pessoa alguma ali.156

São extremamente tênues no espaço-tempo narrativo os limites entre sonho e

realidade, ficção e história, utopia e verdade. Justifica-se, portanto, a classificação da trajetória

de Maria da Fé como épica e reticente. Épica, pela nobreza e êxito de seus feitos; reticente, pelo

constante ceticismo que envolve suas aparições, seu paradeiro, seu destino, seu fim.

Distinto é o movimento descrito pelo Coronel Aureliano Buendía, em Cem anos de

solidão. O próprio tempo recebe tratamento a-histórico, circular e mítico, no romance de

Gabriel García Márquez, características extensivas ao personagem de que tratamos. Aureliano é

visivelmente dado ao ciclo. O coronel, antes de adotar atitudes que se organizam na linearidade,

oscila, hesita e circula, no decorrer de todo o romance.

Depois de abraçar a causa liberal, transformar-se em conservador, descobrir a

inconsistência da guerra, trair os companheiros de partido, negociar rendição e armistício,

realizar tentativa frustrada de suicídio, recusar homenagens do governo, negar a condição de

prócer da nação e incidir em novo, derradeiro e malogrado impulso de guerra, o coronel retorna

ao tempo inicial de reclusão no laboratório de alquimia.

Imerso numa ambiência claustrofóbica de nostalgia, solidão e desengano, o coronel

Aureliano Buendía, tal como o mito Penélope, retoma certo “círculo vicioso exasperante” 157. A

produção de peixinhos de ouro, trocados por moedas do mesmo metal, e a posterior conversão

156 Ibid. p. 497. 157 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 185.

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das moedas em novos peixinhos são as atividades responsáveis pelo preenchimento do vazio

que assola o coronel em seus últimos e alienados anos:

Se havia alguém inofensivo naquele tempo era o envelhecido e desiludido Coronel Aureliano Buendía, que pouco a pouco fora perdendo todo o contato com a realidade da nação. Fechado na sua oficina, a sua única relação com o resto do mundo era o comércio de peixinhos de ouro. 158

O tempo mítico exercitado em Cem anos de solidão recusa precisões quanto ao

calendário, processo avesso ao que se verifica em Viva o povo brasileiro. A narrativa de Gabriel

García Márquez inicia-se através de um flashback, pelo qual Aureliano relembra o dia em que

seu pai o levou a conhecer o gelo. Confirmando estar o personagem impregnado de uma

significação cíclica, na circunstância de sua morte a mesma memória é retomada.

As “mortes” de Maria da Fé e Aureliano Buendía concorrem para a solidificação das

histórias que viveram, contaram e construíram nos romances. Tendo ocupado o lugar

paradigmático de mitos emblemáticos de suas nações, seus feitos valorosos são ainda mais

fortalecidos e idealizados post mortem, já que, na condição de mártires, acentuam a

possibilidade de se evocar um passado nacional de conquistas e glória. Parece harmônico e

concernente com nossa convicção certa postulação de Walter Benjamin: “Somente a

humanidade redimida poderá apropriar-se de seu passado. Isso quer dizer: somente para a

humanidade redimida o passado é citável”159

Os discursos produzidos por Maria da Fé e Coronel Aureliano Buendía, em Viva o

povo brasileiro e Cem anos de solidão, respectivamente, bem como suas falas nos diálogos

travados ao longo das narrativas, muitas vezes com interlocutores representativos de

posicionamentos ideológicos avessos aos que assumem, colaboram para entender os significados

últimos dos romances de João Ubaldo Ribeiro e Gabriel García Márquez. 158 Ibidem. p. 184. 159 BENJAMIN, W. (1994) p. 223.

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Embora tenhamos verificado variadas semelhanças entre os personagens, eles guardam

uma fundamental distinção, no que diz respeito a conceitos e ideologias centrais nas obras a que

pertencem. Ao passo que Maria da Fé e o Coronel representam, respectivamente, sobrevida e

morte da utopia, como já foi dito, os romances de que são metonímias veiculam, mais do que

qualquer outra significação, as noções respectivas de construção e desconstrução utópicas.

Se houvesse um desenho gráfico capaz de representar um movimento de desconstrução

utópica, ele poderia ilustrar Cem anos de solidão. A saga de Macondo e da família Buendía – a

saga da América – é uma história de desilusão. Em meio à série de artifícios e construções

paródicas utilizados por Gabriel García Márquez no romance, a leitura pode mesmo surpreender

um desenho avesso, de instalação utópica. Mas estas breves ocorrências discursivas servem

apenas como fundamento para a elaboração cuidadosa da marcante significação distópica da

obra.

Macondo, os Buendía, a América, consoante Cem anos de solidão, poderiam ter, na

verdade, um percurso graficamente expresso por uma parábola emborcada para baixo. Todos os

momentos apreciativos, felizes e ironicamente promissores – fundação, desenvolvimento, glória,

vigor, robustez – são gradativamente sobrepostos, substituídos, no tempo e na história, pelo seu

contraste: decadência, fracasso, debilidade, prostração e fim. A ênfase da narrativa recai sobre as

imagens de esgotamento e morte da utopia. No espaço fantasioso e lúdico da criação literária de

García Márquez, muitas vezes propenso às mais elaboradas hipérboles, a morte utópica de que

falamos revela-se irremediável: não há mais revolução, não há sonho, luta, ou esperança. Sequer

há tempo, sequer há espaço, conforme a própria metáfora romanesca nos revela.

Somam-se aos discursos desiludidos e melancólicos do frustrado Coronel Buendía, a já

abordada degradação física e fatal de Macondo, a evasão populacional do povoado, o seu

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esgotamento temporal, o desaparecimento da estirpe fundadora, entre outros tantos recursos a

simbolizar o fracasso utópico.

Em meio a tantas sinalizações no romance, cabe fazer a abordagem de uma última e

bastante significativa: o massacre promovido pela companhia bananeira. Este episódio, de

acentuadas cores políticas, cumpre como nenhum outro a funcionalidade de exprimir a forma

como o romance relaciona-se à desintegração de utopias. José Arcádio Segundo, personagem a

testemunhar o ocorrido, inaugura em sua existência, a partir de então, uma fase nova de trauma e

descrença.

A ambiência é de agitação social e movimentações sindicais, em torno da greve da

companhia, através da qual os operários reivindicavam maior salubridade, serviços médicos de

maior credibilidade, o fim do pagamento em vales e melhores condições de trabalho. Parecia

emergir, a essa altura, mesmo da imensa miséria em que viviam os trabalhadores, o sonho de

mudança, representado pelo discurso e pela luta, quando chegam a levar suas queixas ao

conhecimento dos tribunais de Macondo. O desfecho da contenda é uma metáfora hiperbólica do

tratamento dispensado pelos poderes às massas operárias, confessadamente desimportantes:

... os ilusionistas do direito demonstraram que as reclamações careciam de toda validade, simplesmente porque a companhia bananeira não tinha, nem tinha tido nunca nem teria jamais, trabalhadores a seu serviço, mas sim que os recrutava ocasionalmente em caráter temporário. (...) e se estabeleceu por sentença do tribunal, e se proclamou em decretos solenes, a inexistência dos trabalhadores.160

Como desagravo a tamanha ausência de suporte e reconhecimento, estoura a greve.

Rapidamente o exército é incumbido de zelar pela ordem pública e os primeiros confrontos

acontecem, com uma inicial ação revolucionária dos operários. Para conter as movimentações

que poderiam conduzir a uma guerra civil, as autoridades convocam os trabalhadores a se

concentrarem em Macondo. Sob a expectativa de uma conciliação de interesses, eles 160 GARCÍA MÁRQUEZ, G. (2003) p. 276-277.

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comparecem ao que seria uma emboscada fatal, na qual se leu um decreto autorizando o

extermínio dos grevistas em praça pública, quando se dá o massacre:

... aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. (...) De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento...161

Desde o momento de ápice de tensão no episódio, até o seu desfecho, o discurso

literário situa a ocorrência dos fatos em um território limítrofe entre história e ficção, experiência

concreta e projeção fantasiosa. À voz solitária e traumática de José Arcádio Segundo cabe a

disseminação do incidente, via narrativa oral e detalhada, para os membros de sua geração e para

alguns das subseqüentes, que a reproduziriam também, eventualmente. É ele quem experimenta o

terror da chacina e suas conseqüências:

Quando José Arcádio Segundo acordou, estava de peito para cima nas trevas. Percebeu que ia num trem interminável e silencioso, e que tinha o cabelo empastado pelo sangue seco e que lhe doíam todos os ossos. Sentiu um sono insuportável. (...) acomodou-se do lado que lhe doía menos e só então descobriu que estava deitado sobre os mortos.162

A reação das pessoas ao que o personagem conta depois de escapar vivo da matança,

bem como as notícias oficiais disseminadas em Macondo, parecem questionar a veracidade da

experiência do dirigente sindical, produzindo no espaço intermediário entre realidade e ilusão, a

construção do mito:

Em três cozinhas onde se deteve José Arcádio Segundo antes de chegar em casa lhe disseram a mesma coisa: ‘Não houve mortos’. Passou pela praça da estação (...) e tampouco ali encontrou algum rastro do massacre. (...) A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o governo encontrou ao seu alcance, terminou, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades (...) os militares negavam aos próprios parentes das suas vítimas, que atulhavam os escritórios dos comandantes em busca de notícias. ‘Claro que foi um sonho’, insistiam os oficiais. ‘Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo nem acontecerá nunca. É um povoado feliz’163

161 Ibidem. p. 280. 162 Ibidem. p. 281. 163 Ibidem. p. 282-284.

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De fato, parece mesmo o último estágio de um processo de desconstrução utópica

quando se nega a um indivíduo o direito de existir. Os sonhos dos operários foram calados,

conduzidos a uma impiedosa e covarde derrocada, depois da qual impera o cinismo das

autoridades oficiais, ao afirmar a felicidade de Macondo, e desaparecer do povoado, depois de

espoliá-lo ao nível máximo.

A voz de José Arcádio Segundo, o eco sintético do produto do atentado, “Eram mais

de três mil”164, em franca dissonância com a versão do poder, é desacreditada e confundida com a

voz de um alucinado, um desvairado, sem fundamentação na verdade.

Duas gerações distintas da esquerda latino-americana, uma representada pelos

revolucionários adeptos da luta armada, seguidores do Coronel Aureliano Buendía, e outra pelo

movimento operário sindical, fracassam e vêem ruir suas projeções utópicas, elaboradas em

distintos contextos cronológicos. No primeiro caso, até por uma crise de identidade da própria

esquerda, que passou a confundir-se com o oponente, em termos de ações e princípios. E no

segundo, por conta do triunfo nítido e mordaz do capitalismo norte-americano na América Latina,

que teria colaborado, segundo Jorge Castañeda, para a produção de mais uma realidade

contrastiva no continente:

Estranho paradoxo: A América Latina já se modernizou e se ‘ocidentalizou’ o suficiente para que ‘transformação social’ e ‘reforma política’ sejam expressões destituídas de sentido em face da complexidade dos problemas que enfrenta e da indefinição das soluções possíveis. Todavia o hemisfério é demasiado pobre e diferente do Ocidente para incorporar-se ao mundo pós-moderno e ‘pós-esquerda-direita’ : um abismo o separa da ‘modernidade do Primeiro Mundo’.165

Nos anos de 1950, diante da retração da esquerda latino-americana, e com os golpes

sofridos pelo comunismo, não foram poucos os ensaístas, sociólogos e cientistas políticos a

164 Ibidem. p. 287. 165 CASTAÑEDA, J. G. (1994) p. 19-20.

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sentenciar a derrocada das utopias. Às vésperas da década seguinte, no entanto, ocorrem eventos

de alta relevância política para a esquerda do continente, reacendendo seus ânimos utópicos. O

mais significativo e emblemático da geração foi a triunfal entrada de Fidel Castro em Havana,

consagrando os êxitos da revolução cubana. A ambiência de sonho e esperanças é novamente

desfeita, no fim dos anos de 1960 e início dos de 1970, com a constatação que a vitória em Cuba

não neutralizou frustrações, ou providenciou um bem estar geral no país. O desenvolvimento do

governo castrista foi revelando gradativamente o que Adolfo Sánchez Vásquez chamou “veia

autoritária da esquerda latino-americana”166, e provando a validade de suas idéias a respeito de

certo vínculo visceral entre violência e poder.

As mortes de Che Guevara, em 1967, e de Salvador Allende, em 1973, cumprem a

funcionalidade de representar o esgotamento de uma época, e inaugurar uma nova configuração

social e funcional da esquerda na América Latina, cujo processo de transformação diacrônica é

abordado por Jorge Castañeda, inclusive até os dias atuais:

A esquerda armada latino-americana dos anos 60 e começo dos 70 nunca foi o ator principal na zona do espectro político que desejava ocupar; e praticamente todos os seus membros ativos desse período foram eliminados. Mas a geração de latino-americanos afetada pela luta armada e que não morreu nem desapareceu nas selvas, serras ou câmaras de tortura, abriu caminho aos atuais ativistas, jornalistas, dirigentes sindicais e ecologistas de meia idade...167

Parece ter havido e haver sempre, ao longo da história, uma dinâmica dialética entre

utopia e distopia. Em consonância com variadas motivações de caráter político, social,

econômico ou ideológico, surgem discursos ora contaminados pelo vigor de uma legítima

elaboração utópica, ora demonstrativos de uma melancólica consciência de esgotamento dos

sonhos, em um instante de desintegração utópica. O romance de Gabriel García Márquez é um

flagrante desse instante. Surpreendemos em Cem anos de solidão a predominância de discursos,

166 SÁNCHEZ VÁSQUEZ, A. (2001) p. 86. 167 CASTAÑEDA, J. G. (1994) p. 30.

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imagens e emblemas distópicos. E no espaço singular da criação literária original, floreada pelos

usos metafórico e hiperbólico – insistimos – trata-se de um fim utópico irremediável.

Olhares orientados pela perspectiva extra-literária, no entanto, já atestaram que o fim

da utopia somente poderia representar nova utopia. Embora seja a utopia por definição

pertencente à dimensão do irrealizável, o seu fim seria também o fim da história, conforme

esclarece Adolfo Sánchez Vásquez, em Entre a realidade e a utopia, pontuando que o destino das

utopias é de se substituírem e continuarem no tempo:

Não existe ‘fim da utopia’, como não existe ‘fim da história’, já que esta é inconcebível sem um horizonte utópico, enquanto seja necessária e desejável uma alternativa para a sociedade existente. Seu fracasso torna patente a precariedade, inadequação ou inoportunidade das tentativas de realizá-la, mas não da necessidade e desejabilidade de sua realização.168

O fracasso de uma utopia, portanto, não significa necessariamente o seu fim. Ela pode

ser reassumida com novo esforço, novos fins, meios, e mesmo em outro contexto social, mais

favorável. Gabriel García Márquez, gênio visionário comprometido com seu espaço e com seu

tempo, nos revela, fora do romance, ser plenamente consciente desta impossibilidade de

esgotamento utópico, ao referir, no discurso pelo Nobel de literatura, a sua esperança de uma

“segunda oportunidade para estirpes condenadas.”

A atmosfera de construção utópica é predominante em Viva o povo brasileiro. As

investidas revolucionárias da heroína Maria da Fé, em prol do povo, bem como seu discurso

apaixonado, fundamentado na crença nos rumos da nação, são exemplos centrais da vinculação

do romance a um ideário marcado pela fé e pela esperança. As referências a eventos históricos

nacionalmente relevantes e polêmicos, como as guerras com o Paraguai e de Canudos, embora

criticamente conscientes, são seguidas de reflexões confiantes na força do povo, na justiça e no

168 SÁNCHEZ VÁSQUEZ, A. (2001) p. 317.

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país. Existe um bem estar iminente, uma ambiência de superação de entraves e possibilidades

latentes, uma perspectiva entusiasmada de futuro.

A ocorrência episódica da captura do sertanejo Filomeno Cabrito, pelas tropas

republicanas do governo, quando ele tentava levar armamento a Canudos, em 1897, ilustra a

potencialidade revolucionária de reverter situações desfavoráveis e a imponência da causa

popular diante do militarismo autoritário e violento de então, confirmado pela fala do oficial a

Cabrito:

- Não admito insolência! – gritou. – Ralé! Fanático ignorante! Haveremos de ensinar a toda a sua gentalha degenerada como se trata um oficial do Exército da República! Ou ensinaremos ou os eliminaremos, gente como você são a vergonha da nação!169

Antes de cumprir sua promessa, no entanto, o oficial fardado e seus companheiros são

surpreendidos por uma fatal investida de Dafé e seus milicianos do povo, que livram o sertanejo

da truculência hostil dos militares, subjugando todos os membros da expedição do governo.

Estabelece-se então um longo diálogo entre o comandante da tropa militar e a

guerrilheira Maria da Fé, em que ela explicita os princípios de sua luta, desmascara os ultrajes da

República e questiona o princípio da autoridade, subvertendo-o. É evidente a consciência crítica e

o poder de problematização do discurso da heroína. Mas ele sempre se encerra reafirmando a

convicção em seus ideais, a fé firme e cega na pátria, contida, inclusive, no próprio nome:

O martírio desse povo poderá ser esquecido, poderá não ser entendido, poderá ser soterrado debaixo das mentiras que vocês inventam para o proveito próprio, mas esse martírio um dia mostrará que não foi em vão. Terão de matar um por um, destruir casa por casa, não deixar pedra sobre pedra. E mesmo assim não ganharão a guerra. Só o povo brasileiro ganhará a guerra. Viva o povo brasileiro! Viva nós!170

Nada supera, contém, ou encerra a força e o valor do povo da nação. É o que atesta a

voz predominante e sobrepujante do romance de João Ubaldo Ribeiro. Houve e há problemas

169 RIBEIRO, J. U. (1984) p. 485. 170 Ibidem. p. 496.

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graves, na formação e no percurso histórico do país, referenciados e criticados a todo instante

pelo discurso literário. Voltar o olhar para tais problemas é exigência permanente da narrativa,

mas a atitude principal, além da crítica, é sobrelevar-se a eles.

Viva o povo brasileiro é um afago no ego coletivo da nação. Vivíamos, à época da

publicação do romance, situados à intersecção de duas ambiências políticas avessas: o trauma

estertorante da longa ditadura militar, instalada no país vinte anos antes, e a esperança na abertura

política, as altas expectativas da iminente reconstrução democrática. Segundo Ernst Bloch, em O

princípio esperança, existe geralmente certa dualidade na origem da elaboração de uma utopia:

“A função utópica muitas vezes tem um abismo duplo, o da submersão em meio ao da esperança.

(...) O que submerge contém o que ascende, pode contê-lo”171

O leitor do romance de fundação de João Ubaldo Ribeiro surpreende o momento de uma

instalação utópica. O clima é oportuno e altamente propenso a essa instalação, quando Ubaldo

elabora a sua espécie de ode épica à nação, em que revela, na verdade, serem muitas as nações

dentro dela.

A disposição reticente do romance, a subordinação de seu significado à noção de

continuidade, por intermédio da temática sobre gerações perpetuadas no tempo, impõe reflexão

sobre a validade de estender permanentemente uma luta cujos maiores pilares são a libertação e a

justiça. A heroína de Ubaldo já anunciara a longevidade do combate, bem como a necessidade

diária e o caráter incompleto que o definem. O movimento dialético motivado pelo conceito de

utopia é confirmado por Ernst Bloch, em O princípio esperança:

O ser em movimento, que vai se modificando, que pode ser modificado, assim como se apresenta em termos dialético-materiais, tem esse poder-vir-a-ser inconcluso, esse ainda-não-estar-concluído tanto na sua base quanto no seu horizonte. (...) Enquanto a realidade não for completamente determinada, enquanto ela contiver possibilidades inconclusas

171 BLOCH, E. (2005) p. 157-158-163

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em novas germinações e novos espaços de conformação, enquanto for assim, não poderá proceder da realidade meramente fática, qualquer objeção absoluta contra a utopia.172

Assim configuram-se os significados últimos de Viva o povo brasileiro: sonho,

projeção, possibilidade. Os caminhos trilhados para chegar a esses “lugares” foram avessos a

eles, e não são raras as vezes em que os trajetos para a esperança são preparados justamente em

meio à falta dela. Ubaldo prepara, elabora e cumpre, então, certo itinerário para a esperança. E

nos intercursos e lacunas verificados entre o apontamento crítico e a crença sincera no que virá,

sobreleva-se um tom discursivo apaixonado, comprometido e inquebrantável.

172 Ibidem. p. 195.

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CONCLUSÃO

Idéias, lutas e destinos compõem a síntese e o trajeto evolutivo de uma nação, de um

continente, do próprio universo. Quanto às idéias, muitas se consagram, e mesmo atravessam

fronteiras no tempo e no espaço. Nada impede, no entanto, e é inclusive mais provável, que sejam

elas desintegradas, substituídas, reformuladas, retomadas sob viés e abordagem novos, de acordo

com a interação harmônica de motivações políticas, sociais, econômicas, ideológicas. Sob a égide

das mesmas motivações, definem-se causas, travam-se lutas, constroem-se destinos.

Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão são confissões de amor ao Brasil e à

América, respectivamente. Um amor que não perdeu a potencialidade crítica, amadurecido e

fundamentado nas histórias do país e do continente, e cuja forma com que se anuncia e precipita

relaciona-se inevitavelmente ao vislumbramento de perspectivas de futuro, ou a à sua ausência.

Gabriel García Márquez faz surpreender em seu romance um instante crítico de

América, e providencia que a leitura e o enredo sejam conduzidos fatalmente para esse instante.

Por meio de uma expressão estética singular e de originalidade sem precedentes – uma estética de

fundação –, marcada pelo nível máximo e mais bem elaborado do realismo-maravilhoso, gênero

emblemático do caráter sintético e contrastivo da própria América Latina, a narrativa de García

Márquez nos apresenta uma trama em declive.

A vocação regressiva do romance proporciona, com o auxílio de um aparato

estrutural diferenciado em termos das disposições espaço-temporais, uma espécie de viagem de

submersão aos primórdios, ao centro, ao que há de mais primário, interno e nuclear no tocante à

concepção do continente latino-americano, e à matéria que o torna também universal. Processos,

causas e efeitos de uma América que, ao tempo do escritor, parece em agonia e alerta.

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O alerta, aliás, é um imperativo. A saga de Macondo, o seu destino trágico de

incomunicabilidade, isolamento, solidão e morte, a sua significação profundamente distópica,

obrigam um paralelismo com a identidade da América.

Em Viva o povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro nos apresenta uma narrativa de

orientação avessa, porque progressiva: trata-se de um despontar de Brasil – uma rota em

ascensão. O romance é uma espécie de investida consciente e crítica no país, constantemente

abordado em seu caráter de multiplicidade. Embora se pressuponha certo ímpeto inicial de

explicar a formação do que se concebe como povo brasileiro, o discurso literário desconstrói a

idéia de unicidade desse povo, revelando-o em seu aspecto heterogêneo, variado, multívoco.

Sob o inquestionável senso poético de Ubaldo, e sob as naturais influências de uma

época de utopias, partem da perspectiva regional de Itaparica, e irradiam-se, de modo a

assumirem significação nacional, as brasilidades predominantes de então: a sina de ultrapassar os

obstáculos da injustiça, a história de superação e sobrevida, a persistência em exercitar o sonho e

a esperança.

Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão partem de perspectivas espaciais

localistas, para em seguida transcendê-las, abrangendo estruturas mais complexas de coletividade

e contribuindo para a construção permanente dos conceitos das identidades nacional e continental

Distanciados no espaço pela fronteira delimitadora entre Brasil e Colômbia, mas aproximados

pela condição comum de latino-americanos, Gabriel García Márquez e João Ubaldo Ribeiro

publicam as obras aqui referidas com um intervalo de dezessete anos.

E tais obras capturam num flagrante pontas de um mesmo processo universal, cíclico,

dialético, entre fim e princípio utópicos. Com base em suas escolhas estruturais e temáticas, os

romances patenteiam o vínculo entre o discurso literário e a construção das identidades latino-

americanas, produzindo um diálogo com requintes de espelhos que, confrontados, multiplicam

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projeções de luzes, brilhos, reflexos, matizes, reverberações e espectros, interseccionados num

jogo de objetos imagens partilhadas.

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RESUMO Partindo de um diálogo entre os romances Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, e Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, esta dissertação se propõe estudar a relação entre o discurso literário e a construção de identidades na América Latina. Para isso, tomou-se como eixo a organização estrutural do tempo e do espaço em ambas as narrativas e a maneira como esses elementos se combinam para expressar a visão de mundo do autor. Examinaram-se também os principais eixos temáticos dos romances – as noções de geração e utopia --, bem como as suas relações com a questão da construção da nação, no caso da obra brasileira, e do continente latino-americano como um todo, no caso do livro de García Márquez. Embora não haja dúvida de que ambas as obras apresentam fortes denominadores comuns, verificou-se uma diferença significativa no que diz respeito à proposta do autor: enquanto em Cem anos de solidão, predomina um discurso anti-utópico, por meio do qual se vislumbra uma América Latina cuja identidade é marcadamente agônica e solitária, em Viva o povo brasileiro há um certo movimento utópico em que transparece a idéia de um Brasil em plena ascensão e regido pela esperança.

In: MACHADO, Sheila de Almeida. Espacialidades cósmicas e histerias cronológicas: caminhos de gerações e utopias em Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: UFRJ-Faculdade de Letras,2006. 109 fls. mimeo. Dissertação de mestrado em Literatura Comparada.

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ABSTRACT

This is a study of the relationship between literary discourse and the construction of identities in Latin America, based on Gabriel García Márquez’ Cien años de soledad and João Ubaldo Ribeiro’s Viva o povo brasileiro. The main focus of our analysis fell upon the structural organization of time and space in both novels and on the way these elements are combined to express the author’s worldview. We also discussed the main thematic axles of the novels—the notions of generation and utopia—, as well as their relationship with the construction of the nation, in the case of the Brazilian novel, and of the Latin American continent as a whole, in the case of García Márquez’. In spite of the fact that both works have many common denominators, we came across a significant difference between them: whereas in Cien años de soledad, there is a predominance of an anti-utopian discourse, based on a solitary and agonistic search for identity, in Viva o povo brasileiro, there can be found a certain utopian movement, turned to the idea of a country in a clear process of development.

In: MACHADO, Sheila de Almeida. Espacialidades cósmicas e histerias cronológicas: caminhos de gerações e utopias em Viva o povo brasileiro e Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: UFRJ-Faculdade de Letras,2006. 109 fls. mimeo. Dissertação de mestrado em Literatura Comparada.