Picos Nas Sombras Do Tempo Espacialidades

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PICOS NAS SOMBRAS DO TEMPO: A CIDADE PRÉ-REFORMA URBANÍSTICA COMO ESPAÇO DA SAUDADE* José Elierson de Sousa Moura 1 Larice Íris Marinho Moura 2 Ada Raquel Teixeira Mourão 3 Artigo recebido em: NÃO PREENCHA. Artigo aceito em: NÃO PREENCHA. RESUMO: Este trabalho analisa o estranhamento identificado em alguns moradores com relação à cidade de Picos da contemporaneidade, evocado através do sentimento de saudade da cidade associado à década de 1950, período de destaque da economia agrícola às margens do Rio Guaribas, e da década de 1960, quando a cidade oferecia uma variedade de espaços de lazer e convivência para os citadinos. Para retratar a 1 * Artigo desenvolvido a partir do projeto Rio Guaribas: história oral e identidade, no Programa de Educação Tutorial – PET: Cidade, Saúde e Justiça, no ano de 2012. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil – PPGHB, da Universidade Federal do Piauí-UFPI e bolsista CAPES. http://lattes.cnpq.br/9300414701534014. 2 Licenciada em História, pela Universidade Federal do Piauí- UFPI. http://lattes.cnpq.br/3060773059215574. 3 Doutora em Espacio Público y Regeneracion Urbana, pela Universidade Barcelona - Espanha e docente da Universidade Federal do Piauí, Campus Senador Helvídio Nunes de Barros-CSHNB. http://lattes.cnpq.br/8753514615371475.

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PICOS NAS SOMBRAS DO TEMPO: A CIDADE PR-REFORMA URBANSTICA COMO ESPAO DA SAUDADE*

Jos Elierson de Sousa Moura[footnoteRef:1] [1: * Artigo desenvolvido a partir do projeto Rio Guaribas: histria oral e identidade, no Programa de Educao Tutorial PET: Cidade, Sade e Justia, no ano de 2012. Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Histria do Brasil PPGHB, da Universidade Federal do Piau-UFPI e bolsista CAPES. http://lattes.cnpq.br/9300414701534014.]

Larice ris Marinho Moura[footnoteRef:2] [2: Licenciada em Histria, pela Universidade Federal do Piau-UFPI. http://lattes.cnpq.br/3060773059215574.]

Ada Raquel Teixeira Mouro[footnoteRef:3] [3: Doutora em Espacio Pblico y Regeneracion Urbana, pela Universidade Barcelona - Espanha e docente da Universidade Federal do Piau, Campus Senador Helvdio Nunes de Barros-CSHNB. http://lattes.cnpq.br/8753514615371475.]

Artigo recebido em: NO PREENCHA.Artigo aceito em: NO PREENCHA.

RESUMO:Este trabalho analisa o estranhamento identificado em alguns moradores com relao cidade de Picos da contemporaneidade, evocado atravs do sentimento de saudade da cidade associado dcada de 1950, perodo de destaque da economia agrcola s margens do Rio Guaribas, e da dcada de 1960, quando a cidade oferecia uma variedade de espaos de lazer e convivncia para os citadinos. Para retratar a presena desses espaos tem-se como referncia o presente, que o tempo da falta, sendo que a angstia, pela falta, em face do tempo, assume um refgio no passado. Nosso objetivo foi conhecer as cidades projetadas no imaginrio dos citadinos como lembranas, tendo em vista que os usos dos espaos eram moderados por filtros culturais e normas sociais. Os picoenses sentem saudade da cidade de Picos de outrora, porque uma das formas de terem no presente, o tempo que j passou.PALAVRAS-CHAVE:Picos. Espao da saudade. Histria e memria. Histria e cidades.

ABSTRACT: Refazer por que mudei. Voc conhece algum que faa?Escreva aqui o seu resumo em ingls ou em outra lngua estrangeira. Lembre-se de substituir a palavra Abstract caso o seu resumo no esteja escrito em ingls.KEYWORDS:Abstract Espacialidades Example

* * *Picos, minha amada!O tempo muda os homensE os homens mudam as cidades.Mas enquanto eu no morro, tu dormirs em minhas retinas. Eu sou tua fotografia, eternizada e renovada a cada instante.O velho e o novo nos meus olhos-poesia[...]Minha amada!Uma anttese em meu peito;Uma glria e uma chaga; um sorriso e uma lgrima[...]

Elegia para Picos - Vilebaldo Nogueira RochaNos fragmentos acima, o poeta fotografou com seus olhos-poesia uma angustia que atravessa diversos picoenses: o estranhamento com relao cidade de Picos da contemporaneidade. Estranhamento que provoca em alguns moradores um sentimento de saudade da cidade das dcadas de 1950 e 1960. Nas palavras do poeta, a maneira de viver, na atualidade, constitui uma anttese no seu peito, j que sorriso e lgrima, ao mesmo tempo. Anttese que sentida no somente de forma individual. Semelhante ao historiador que para desempenhar o seu ofcio, parte de uma inquietao que no somente sua, o poeta observa atores e espaos para compor a sua trama. Feito o historiador, que ao escrever est povoado de presenas do presente e do passado (ALBUQUERQUE JNIOR, 2009, p. 6), o poeta no est sozinho. Em Elegia para Picos, Vilebaldo Rocha partiu da sua saudade de uma cidade de outrora, para dar visibilidade cidade de Picos da dcada de 1950, que Renato Duarte cognominou de Picos: os verdes anos cinquenta (DUARTE, 1991, p. 17); e da dcada de 1960, perodo em que esta oferecia uma variedade de espaos coletivos que eram vivenciados e apropriados, e que agora so lembrados em forma de saudade. Os usos dos espaos coletivos na Picos de outrora, apesar de comuns a todos, eram regulados culturalmente[footnoteRef:4] e nem todos os frequentavam do mesmo modo. Os vnculos e sentidos de consumo dos espaos obedeciam a acordos implcitos e convenes sociais. As prostitutas, por exemplo, no podiam frequent-los nos mesmos horrios e dias que as moas de famlia (OLIVEIRA, 2011, p. 4). Comment by Madreprola: S necessrio colocar a pgina qd for citao literal. A seria necessrio colocar entre aspas o trecho citado.Comment by Madreprola: Esse no o ttulo? Porque coloca p.17?Comment by Madreprola: [4: O termo cultura utilizado aqui para se pensar as convenes sociais que distinguiram os espaos da cidade disponveis para consumo. Rioux (1998) conceitua cultura a partir de duas linhas: a primeira, como a distino entre a existncia humana e o estado natural; e a segunda, como o conjunto de representaes mentais e hbitos de um dado grupo em um determinado tempo.]

Elierson, acho que essa parte acima pode ser aproveitada em outro ponto do texto. Acho muito especfica para uma introduo e ainda mais bem no comeo do texto. Veja se consegue encaixar em outro espao. Ainda no li o texto todo, portanto no sei, mas se quiser deixar em verde mesmo que verei isso quando estiver lendo.Semelhante a Isidora, cidade pensada por talo Calvino, em As cidades invisveis, com os seus velhos sentados na praa vendo a juventude passar, recordando a Isidora sonhada de tempos atrs (CALVINO, 2011, p. 12), a cidade de Picos tambm a cidade das recordaes. Picos uma cidade-memria. Algum que no a visitou mais desde as dcadas de 1950 ou 1960, ao visit-la atualmente, perceber que as sociabilidades e parte da sua materialidade daquele perodo esfacelaram-se no tempo. A materialidade, a estrutura do espao urbano influencia as vivncias e sociabilidades, assim a cidade da memria no est mais representada na cidade real.Comment by Madreprola: Citao direta? Se sim coloque aspasDurante a dcada de 1970, Picos recebeu a implantao de dois projetos de impacto urbanstico: a construo da BR-230, conhecida tambm por Rodovia Transamaznica (ATAS da Cmara dos Vereadores, 1973, p. 182); e um Plano Diretor de Organizao do Espao Urbano (ATAS da Cmara dos Vereadores, 1974, p. 15). Os dois projetos fizeram parte do pretenso surto modernizador planejado para algumas cidades brasileiras durante a Ditadura civil-militar[footnoteRef:5]. Entendia-se que a cidade de Picos era o marco zero da Rodovia Transamaznica e que merecia um Plano Diretor que propiciasse o ordenamento econmico e social do seu espao. Foi uma forma de prometer, mediante o milagre econmico, o combate pobreza, que ao final da dcada de 1970, assolava o Piau (MOURA, 2014). Os dois projetos provocaram alteraes no traado urbanstico da cidade, entretanto no foram os nicos. A Praa Flix Pacheco, principal praa central, sofreu diversas alteraes, diminuiu de tamanho e perdeu atrativos culturais como o Coreto e o Bar Abrigo[footnoteRef:6], espaos dinmicos de vivncia social. A Avenida Getlio Vargas, principal via de acesso ao centro da cidade, trocou a sua calmaria pelo trnsito confuso, sendo hoje a principal via comercial da cidade. O Rio Guaribas, perdeu seu protagonismo econmico e agoniza no desprezo de parecer ausente[footnoteRef:7]. As mudanas foram tantas e tamanhas, a ponto de deixarem os sujeitos, que viveram aqueles perodos, desejosos de um retorno ao passado. [5: Desejava-se transformar algumas cidades brasileiras em smbolos de avano e desenvolvimento. E a cidade de Picos, no interior do Estado do Piau, na dcada de 1970 foi planejada dessa maneira. (FONTINELES, 2007, p.17) citao direta? Aspas. Seno retire o nmero da pgina.] [6: De acordo com Karla Oliveira (2011), o Bar Abrigo foi um dos catalisadores de sociabilidades na cidade de Picos durante a dcada de 1960. Vrios jovens buscavam o bar como forma de se divertirem, de acordo com as regras culturais da poca. ] [7: A Praa Flix Pacheco, a Avenida Getlio Vargas e o Rio Guaribas so alguns dos espaos urbanos mais evocados nas memrias dos citadinos, tendo em vista que se constituram como de espaos de relaes sociais que preenchem o vazio da saudade. ]

Com todas as transformaes ocorridas, vrias cidades foram projetadas no imaginrio dos picoenses. As cidades reais correspondem a vrias outras cidades produzidas pelos citadinos atravs do pensamento e da ao (PESAVENTO, 2007, p. 11). Buscamos conhecer a interseo das narrativas dos moradores com a cidade de Picos das dcadas de 1950 e 1960. Comment by Madreprola: As aspas no comeam na palavra cidades?As motivaes dessa pesquisa esto relacionadas ao desejo de conhecer essa cidade do passado, essa cidade da memria que ainda hoje mobiliza sentimentos de ausncia. Como no desejar conhecer as cidades, posto que so vrias as representaes projetadas no imaginrio dos citadinos, se dentro dos aprendizes de historiadores (ALBUQUERQUE JNIOR, 2012, p. 8) que teceram estas linhas, existem crianas que aprenderam a sentir saudade do Rio Guaribas, sem o terem mergulhado uma nica vez? Do desejo de ouvir a banda de seu Raelson tocando na Praa Flix Pacheco, enquanto as crianas brincavam, mesmo no tendo pisado aquele cho rodeado pelos belos jardins que existiam na poca? De poder enxergar o cu estrelado depois que a energia era desligada s onze horas da noite? (DUARTE, 1991, p. 50). De sentir-se na pele das prostitutas, quando as mulheres de famlia imprimiam olhares de desprezo que perfuravam a dignidade, fazendo-as sentirem-se marginalizadas, principalmente em ambientes festivos? (OLIVEIRA, 2011, p. 56).A partir de tais inquietaes, analisaremos as lembranas de citadinos que viveram na cidade de Picos na segunda metade do sculo passado. Seja por meio das memrias escritas do picoense Renato Duarte, em seu livro Picos: os verdes anos 50, forjado na dcada de 1990; ou por meio do processo de fermentao das lembranas que nos foram narradas na segunda dcada do sculo XXI. Lembranas que passaram por diversas transformaes, enxergando mltiplos-passados. Lembranas que contornaram o presente em que viviam, como o se constituindo no (?) tempo da falta. Os narradores afirmam sentir falta das sociabilidades na Praa Flix Pacheco, das plantaes s margens do Rio Guaribas e da no existncia de violncia. O texto constitui-se em uma cartografia da saudade ligada temporalidade especfica dos anos 1950 e 1960, na cidade de Picos. Sentir o tempo passado: paisagem, memria e sociabilidades em Picos.Um rio e as lembranas. Mltiplas-lembranas. Seu nome: Tmisa. Rio que crescera dentro de Simon Schama. Ouvira falar muito do rio durante a sua infncia. Os poetas disseram-lhe: um rio a montante; as suas guas borbulham; as suas margens so cobertas de musgo; ou, uma estrada verde-oliva que divide Londres ao meio. Os poetas criaram uma camada de lembranas. Com o encontro, Schama criara a sua prpria camada. O Tmisa agora era: o rio com esturio baixo, com a visita de gaivotas; com o seu leito nupcial de sal e gua doce; e com o vento que levava consigo o cheiro de um vasto fungo subfluvial (SCHAMA, 1996, p. 13). Um segundo rio e as lembranas. Infinitas lembranas. Seu nome: Guaribas. Em Picos, soa melhor de outro modo: Rio Guaribas. sinnimo de uma dcada. Falar da dcada de 1950 falar tambm daquele rio. Existe um direcionamento nesse sentido. Existe uma saudade. Para sermos mais precisos, existe um discurso saudosista.Voltemos ao Tmisa. que ele, antes de ser natureza cultura. A natureza e a percepo humana, no se separam. A paisagem, do mesmo modo, no se separa da mente. uma criao da mente (SCHAMA, 1996, p. 16-17). Na outra face, o Rio Guaribas enquanto o rio que marcou a dcada de 1950 em Picos, tambm uma criao da mente.Em 1950, a cidade possua uma populao de 4.568 habitantes na rea urbana. Em 1960, tinha 8.080, e em 1970 j era de 18.092 (MARTINS, 2003, p. 175). Sobre a dcada, Renato Duarte apropriou-se do lugar de fala e comeou a construir a sua paisagem, utilizando-se das suas reas alagadas. Para ele, no incio dos anos 50, do sculo passado, a cidade era formada por um ncleo urbano integrado ao meio rural. Nos meses secos, a urbe era envolvida por um cinturo verde e por uma faixa mida que margeavam o Rio Guaribas. Eram como duas veias. Veias que definiam as estratgias de sobrevivncia da cidade. Veias que faziam pulsar esperana. Veias que conduziam o combustvel para pulsar vidas: a gua (DUARTE, 1991, p. 17). Maria das Graas, do mesmo modo que Renato Duarte, tambm foi uma das citadinas que guardou o passado como refgio. Ao falar sobre a vida na cidade que parece ter ficado em outro tempo, sem lhe pertencer mais, disse: No tinha tudo como hoje, mas pelo menos no tinha necessidade. Era at melhor pra viver do que hoje. Porque hoje a gente tem tudo, mas a gente no tem nada porque no tem segurana para ir rua, no tem segurana pra estar dentro de casa [...] (RODRIGUES, 2012). Ao falar do tempo que viveu, trouxe para a discusso o tempo em que vivia no presente de sua fala. Um tempo que trouxe mudanas na forma de enxergar a cidade de Picos. Era um tempo egosta. Consumia os traos e rastros de outra temporalidade, dificultando o trabalho do historiador. Era um tempo amigo. No se curvava s quebras lineares que alguns tentavam lhe impor, de presente, passado e futuro, fazendo amizade com o desejo de retorno a outra poca, primando pela continuidade. Era o tempo e algumas de suas faces. Com as anlises, uma questo surge e o nosso ofcio precisa lanar luz em sua direo, para que esta, feito um linho, entrelace-se a outros linhos, fazendo parte da tessitura que est sendo bordada (ALBUQUERQUE JNIOR, 2012, p. 4): ser que as tantas cidades que se formaram no imaginrio dos moradores que viveram os anos 1950 e 1960 em Picos (entrevistados por ns) foram evocadas da mesma forma? Ser que existe algo em comum quando a memria evocada? Para respondermos tais indagaes preciso apoiar-nos em estudos urbanos. At a dcada de 1990, os estudos sobre o urbano buscavam entender a materialidade da cidade como locus privilegiado de acumulao do capital. Todavia, nos anos 1970 (PESAVENTO, 2008, p. 8), comeou-se a pensar tambm as representaes sociais que emergem das prticas e vivncias, como fundamentais para a compreenso da cidade apropriada. Neste sentido, se buscamos conhecer as cidades subjetivadas, diversas e individualizadas, podemos entender que as pessoas que viveram em um mesmo perodo no so necessariamente contemporneas. Elas no sentem a cidade da mesma forma (CORBIN, 2005, p. 16). Vrias so as maneiras dos picoenses evocarem os anos 1950 e 1960. A busca pelo mltiplo uma das faces possveis, lanando feixes de luz nas ferramentas do historiador. uma busca pelos mltiplos fragmentos do passado. Fragmentos que se encaixam, ou no, formando o quebra-cabea que chamamos de memria. Assim, o ato de lembrar no uniforme, pois as experincias de vida so mltiplas. Maria das Graas, ao falar de sua rotina diria na parte urbana da cidade, descreveu o dia-a-dia dos citadinos a partir da necessidade de abastecimento de gua a partir do Rio Guaribas. [...] At sete horas tinha que pegar gua no rio, por que depois de sete horas o pessoal comeava lavar roupa e no tinha mais gua, no dava mais pra pegar gua no rio. Ento comeava de madrugada e quatro horas ns comeava a pegar gua do rio porque tinha que beber, lavar, cozinhar, tudo do rio [...] (RODRIGUES, 2012).

Entretanto, nem todos sentiam o tempo dessa forma na parte urbana. Nem todas as pessoas precisavam deixar as suas moradias em direo ao Rio Guaribas em busca da gua com que iriam matar a sede durante o dia. Se Maria das Graas lembrou-se da sua rotina diria a partir da necessidade de buscar gua no rio, certamente, foi porque a sua famlia dependia das guas do Rio Guaribas. No entanto, nem todos os citadinos contemporneos seus, lembrar-se-o da rotina a partir daquele. Nem todos dependiam daquelas guas para matar a sua sede. Havia em Picos a venda de gua dos olhos dgua, com que as pessoas de mais posses econmicas se abasteciam. Sabendo que a atividade do lembrar possui mltiplas faces, como podemos ter acesso a suas multiplicidades? Mediante o contato com as memrias daqueles que viveram e consumiram a cidade de Picos do perodo analisado, percebendo que a memria permite a relao do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representaes (BOSI, 1994, p. 46-47). Apesar de termos acesso ao passado, mediante a utilizao da memria, no o teremos tal qual ocorrera. A memria no fixa. Ela sujeita a transformaes. Nunca pura porque para as lembranas reais, sempre existem lembranas fictcias. Ns as adquirimos mediante a convivncia com os grupos sociais dos quais fazemos parte. O grupo familiar um exemplo disso. As primeiras lembranas da infncia, normalmente, no foram formadas por ns, mas por familiares que de tanto evocarem-nas, acabaram fazendo parte da nossa memria (HALBWACHS, 1990, p. 28). Levando-se em considerao as possveis transformaes da memria, a nossa busca menos pela verdade dos narradores, do que pela maneira como lembraram. O que interessa o que os narradores escolheram como histria para a vida. saber qual a cidade de Picos que cada um dos narradores lembrou, guardando como sua.E se o passado no pode ser mudado (mas somente a maneira de lembr-lo), dependendo da temporalidade em que estamos inseridos, o presente se torna o ponto de partida. Ele o detentor do nosso olhar. Para Elizabeth Jelin, seguindo a linha de que a maneira de lembrar o passado pode ser mudada, El pasado ya pas, es algo determinado, no puede ser cambiado. El futuro, por el contrario, es abierto, incierto, indeterminado. Lo que puede cambiar es el sentido de ese pasado, sujeto a reinterpretaciones (JELIN, 2002, p. 39). O resgate do passado, tal e qual, uma barreira intransponvel. Resta ao historiador ter em mente que o seu trabalho uma possibilidade, dentre vrias. Uma possibilidade de conhecer o que um dia fora promessa de futuro. Promessa que j passou. Ao tratar desse limite, Ecla Bosi diz que a releitura um exemplo da impossibilidade de reviver o passado, e que sendo o tempo um limite fatal, resta-nos reconstru-lo com o que nos foi possvel (BOSI, 1994, 53).Posto o limite do nosso ofcio, em que os traos passados passam pela barreira do tempo, seguimos na busca das memrias, considerando os afastamentos dos grupos em relao aos fatos passados como processos de seleo dos acontecimentos, j que o afastamento de um grupo e a perda de contato incita a descontinuidade (HALBWACHS, 1990, p. 30). Um exemplo disso a maneira como Patrcia Barros falou sobre os diferentes espaos do Rio Guaribas. Eu no sei. Porque assim... [tempo para pensar] eu morava vizinho Igreja Catedral e eu circulava por ali, Monsenhor Hiplito que era onde eu estudava. O rio naquele tempo parecia uma coisa to distante, sabe? Hoje perto at porque a cidade cresce e os espaos diminuem. Voc tem a sensao que h muito canto, aquilo no se torna mais distante, mas era outro mundo (BARROS, 2012).Nas palavras de Patrcia Barros, o Rio Guaribas parecia algo distante. Era distante porque ela no tinha contato com ele. No precisava das suas guas para beber. Podia pagar pela gua que era retirada dos olhos dgua. Sua famlia era de posse econmica na cidade. Seu pai (Jos Nunes de Barros) fora prefeito da cidade de Picos na dcada de 1970. Ento, a falta de contato incita a descontinuidade. Por isso ela iniciou falando: Eu no sei. Ela poderia tambm ter dito que no se lembrava, porque no trecho acima houve duas distncias. A primeira foi uma distncia fsica, j que a maneira como vivenciou a cidade, os locais que frequentava, determinaram a formao de suas lembranas acerca do Rio Guaribas, tendo em vista que no o frequentava. A segunda foi uma distncia na formao de suas memrias. Em determinado momento da vida, Patrcia Barros foi morar fora da cidade. O distanciamento dos grupos sociais que rememoravam as lembranas sobre o Rio Guaribas, incitou a descontinuidade de suas lembranas. Lembranas, sensibilidades e sua captura.Com um mergulho na memria do outro, no teremos como obter por completo o que este viveu. Muitas vezes as lembranas aparecem no momento do cafezinho, em que o narrador elucida detalhes que, na entrevista, no se lembrou (BOSI, 1994, p. 39), ou ainda, se fizssemos a mesma entrevista em outro momento, diversos fatos novos poderiam surgir, como tambm poderamos ter o decrscimo de muitos que tinham sido lembrados. Trabalhamos no com a palavra resgate, porque passa pela ideia de que um passado-pronto est na opacidade esperando que lancemos luz em sua direo. Utilizamos a palavra reconstruir. E feito uma bordadeira, recolhemos os fragmentos como se fizessem parte de um mesmo tecido, para tecer a trama, preenchendo lacunas (ALBUQUERQUE JNIOR, 2009, p. 8). Por causa desse processo, o nosso trabalho uma possibilidade dentre vrias.Se Kublai Khan no pde conhecer todo o seu territrio, destinando Marco Polo a explor-lo, no se sabe at que ponto o imperador dos Trtaros acreditava nas descries das cidades visitadas pelo jovem veneziano, mas continuou a ouvi-lo (CALVINO, 2001, p. 9). De alguma forma, a maneira de escutar de Kublai Khan se aproxima do historiador que trabalha com a histria oral. A funo de Marco Polo assemelha-se ao ofcio dos narradores, j que o historiador pode desejar capturar o que foi lembrado, utilizando-se da metodologia da histria oral[footnoteRef:8]. E se no teremos a verdade, o que desejamos capturar? Kublai Khan e Marco Polo dialogaram sobre, apontando-nos um caminho: [8: Para Alessandro Portelli, a histria oral uma narrao dialgica que tem o passado como assunto e que brota do encontro de um sujeito que chamarei de narrador e de outro sujeito que chamarei de pesquisador- encontro geralmente mediado por um gravador ou um bloco de anotaes. (PORTELLI, Alessandro. Ensaios de histria oral. So Paulo: Letras e Voz, 2010. p. 210.). ]

[...] cada notcia a respeito de um lugar trazia mente do imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo acrescentava um novo sentido ao emblema. O imprio, pensou Kublai, talvez no passe de um zodaco de fantasmas da mente. - Quando conhecer todos os emblemas, perguntou a Marco, conseguirei possuir o meu imprio, finalmente? E o veneziano: - No creio: nesse dia, Vossa Alteza ser um emblema entre os emblemas (CALVINO, 2011, p. 26).

O fragmento acima fruto de uma fico, mas no deixa de ser um regime de verdade (PESAVENTO, 2008, p. 51) que tal construo literria um belo retrato do fazer do historiador que lida com a histria oral. Afinal de contas, a nossa busca pelos emblemas que os narradores criaram sobre o passado. As vrias cidades de Picos que se projetaram no passado. Assim como os emblemas narrados por Marco Polo, as imagens de Picos (re)criadas pelos narradores no nos mostraram completamente as cidades das dcadas de 1950 e 1960, mas somente imagens dentre muitas outras que se formaram. Um emblema, dentre muitos que foram criados. E o que nos far ter acesso aos emblemas no so as vozes dos narradores. O que nos far ter acesso ser o nosso ouvir, porque, como diz Marco Polo, quem comanda a narrao no a voz, o ouvido (CALVINO, 2011, p. 123). O historiador precisa (re)educar o seu escutar. S assim respeitaremos o narrar e o silncio alheio. A partir de todos os sentimentos partilhados nas conversas sobre a cidade de Picos do passado, a nossa busca tambm pelas sensibilidades. Para se fazer um estudo das sensibilidades, preciso seguir os rastros que expressam-se em atos, ritos, palavras e imagens, dando conta de explicar o real e o no-real, o sabido e o desconhecido, o pressentido e o inventado (PESAVENTO, 2008, p. 58).Analisar as sensibilidades requer um olhar que nunca est pronto. Uma alteridade de outro tempo (PESAVENTO, 2005, p. 128). Um tempo que nem sempre descontnuo. A linha da continuidade no quebrada porque a saudade impede o corte e a ruptura. O passado reinserido no presente (ALBUQUERQUE JNIOR, 2006, p. 136). Hoje a saudade da cidade de Picos de anos passados evocada. A saudade evocada porque no houve a quebra entre passado e presente. Alguns picoenses, por terem vivido uma experincia citadina que ficou no tempo passado, e por estarem conhecendo esta cidade que se apresenta na contemporaneidade, preferem a primeira segunda. Em outra conversa sobre o passado, Marco Polo proferiu a seguinte frase: [...] o passado do viajante muda de acordo com o itinerrio realizado [...] (CALVINO, 2011, p. 28). O pensamento de Marco Polo se encaixa na cidade de Picos que se apresenta a alguns citadinos, tendo em vista que diversos viajantes picoenses percorreram a cidade durante as dcadas de 50 e 60, do sculo passado, e agora, com o trajeto feito, esto redescobrindo outros espaos construdos em forma de saudade. As lembranas, por no se esgotarem em si mesmas, vivem em constantes transformaes. Os sujeitos que lembram, por diversas formas e motivos, fazem seleo dos acontecimentos passados, tomando como base o tempo em que esto vivendo para construrem os eventos que faro parte do futuro. No caso dos narradores que emprestaram suas lembranas para compormos o rosto desta trama, as memrias giraram em torno do deslocamento que algumas famlias fizeram de outras localidades prximas cidade de Picos, desejando melhorar de vida, tendo em vista que na temporalidade analisada, a urbe serviu como um im (ROLNIK, 2004, p. 12), recepcionando muitas famlias. Im das prticas econmicas e de lazer, que tiveram como inspirao o Rio Guaribas, e das prticas de sociabilidades que, modeladas pelos filtros das construes culturais, ditaram o ritmo de consumo dos espaos citadinos. Maria das Graas, nasceu na Baixa do Curral, que hoje pertence cidade de Bocaina[footnoteRef:9] e era filha de agricultores. Veio morar em Picos com a av, a me e uma irm. Por parte da me eram dezesseis tios, mas todos j faleceram. E os tios, por parte de pai, que esto vivos moram no entorno da cidade de Picos. Nas suas lembranas, a sua famlia veio morar em Picos porque era a salvao da lavoura. Assim como outras famlias picoenses, na dcada de 1950, a sua famlia era dependente da agricultura no Rio Guaribas para viver, por isso ela tambm contribua nos trabalhos agrcolas. [9: Bocaina foi distrito da cidade de Picos, ficando a 18 km desta. Obteve sua emancipao poltica no ano de 1963. ]

[...] Eu ajudava, no no perodo da plantao que era no ms de maio e eu estava estudando, mas no ms de outubro ajudava a aguar. Quando tinha forr que eu ia pra l ajudava a comer o amendoim, ajudava a arrancar a batata, ajudava arrancar o alho, ajudava a tirar a raiz do alho, n, que tinha que tirar a raiz. Ajudava a separar o alho, a selecionar e ajudava a contar [...] (RODRIGUES, 2012).

Por ser professora, destacou a oportunidade que teve de estudar como fundamental para seu crescimento. Apontou que este aspecto pode ser considerado como a vantagem do presente em que se deu a sua narrativa, tendo sido o fator relevante do seu interesse em fixar moradia em Picos. Vantagem que, em sua opinio, os jovens no pareciam aproveitar. Conta que naquele perodo, dos anos 1950, os pais no estavam preocupados com a educao escolar dos filhos e afirmou: eu tiro por mim, eu estudei porque eu quis, mas minha me nunca mandou eu estudar. Francisca das Chagas tambm teve a sua famlia envolvida pela cidade de Picos. Veio morar aqui com a av, um tio e trs primos, porque naquele tempo l era atrasado, afirma, referindo-se currutela[footnoteRef:10] em que morava e que hoje faz parte da cidade de Bocaina. Outro narrador, Josino de Barros, tambm era filho de agricultor. A sua famlia, naquele perodo, era composta por seu pai, sua me e mais sete irmos, sendo que a posteriori nasceram mais dois irmos. Vieram de Bocaina para Picos em 1950, porque seu pai e sua me tinham a inteno tanto de plantar alho, porque aqui era perto do rio, como tambm pra botar ns pra estudar (NETO, 2012), expressou-se. [10: Variao da palavra corruptela, que tem o mesmo significado de povoado, utilizada por Francisca das Chagas e outros citadinos (ROCHA, Francisca das Chagas de Sousa. Entrevista cedida a Jos Elierson de Sousa Moura e Larice ris Marinho Moura. Picos (PI), 17 de fevereiro de 2012.).]

Nos trechos das trs entrevistas narradas, tanto de Maria das Graas e de Francisca das Chagas, como o de Josino de Barros, algumas informaes se cruzam. Os trs moravam em localidades que hoje pertencem cidade de Bocaina, a cerca de 30 km de Picos. No perodo em questo, a cidade de Picos funcionava como um polo agrcola, tendo grande dinamicidade por conta da feira, onde eram vendidos os diversos produtos cultivados s margens do Rio Guaribas. Assim, algumas famlias se deslocaram at Picos, aproveitando as condies naturais de rios e riachos perenes (DUARTE, 1991, p. 2011). Maria das Graas veio porque a famlia queria melhorar de vida com os trabalhos agrcolas, contudo, ela tambm encontrou a oportunidade de estudar, o que a fez permanecer na cidade. Josino de Barros veio pelo mesmo motivo, embora seus pais, ao contrrio dos pais de Maria das Graas, pensassem igualmente no acesso dos filhos formao escolar. Mesmo estudando no perodo da manh, pela tarde, Josino tinha que ajudar a famlia nas plantaes. Muitos citadinos trabalhavam pela manh e estudavam tarde. Era possvel, contou-nos Maria das Graas, porque as escolas funcionavam em trs expedientes: de sete s dez, de dez s duas e de duas s cinco, j que a cidade no possua energia eltrica. Podemos perceber que a cidade de Picos daquele perodo ofereceu, segundo as memrias dos narradores, motivos para que estas famlias se deslocassem e que, passados alguns anos, nas lembranas destes indivduos, Picos no mais a mesma que os atraiu. As sociabilidades e o lazer tambm marcaram presena nas lembranas dos narradores. Francisca das Chagas disse-nos que tomava banho pra debaixo da ponte, onde a gua era bem alvinha. Os banhos no Rio Guaribas eram divididos em duas reas, sendo conhecidas como poos. Os poos dos homens, que ficavam na roa de Dagoberto Rocha e prximo ao matadouro, e os poos das mulheres, que na verdade eram trechos rasos do rio que garantiam a privacidade das mulheres. Renato Duarte afirma que os poos dos homens possuam profundidade que encobria um homem em p. J os das mulheres, que preferiam banhar-se em reas de cultura de vazante, tinham profundidade bem menor[footnoteRef:11]. Maria das Graas informou que nunca se banhou nos poos dos homens, porque no sabia nadar, mas algumas amigas destinavam seus banhos quele local, quando no havia homens se banhando. Mesmo que de forma no intencional, se as mulheres se banhavam no poo dos homens, era simplesmente porque gostavam da profundidade, isso representou uma quebra sexista contra a determinao de locais de banho para homens e locais de banho para mulheres, j que os poos das mulheres no eram poos de fato. [11: DUARTE, Renato. Picos: os verdes anos cinquenta. Recife: Liber, 1991. p. 19.]

O lazer em Picos no ocorria somente no Rio Guaribas, mas tambm no entorno da Praa Flix Pacheco, local em que a mocidade se reunia para flertar, esperar o horrio dos filmes no Cine Spark ou, simplesmente, para conversar. Maria das Graas diz que a Praa Flix Pacheco, quando terminava a missa, pela manh e noite, ficava fervilhando de gente. Os rapazes iam paquerar, iam flertar, namorar, esse negcio todo. Porm, as moas tambm flertavam, namoravam e paqueravam. Maria das Graas relatou a presena da Banda de seu Raelson, que, aos domingos, tocava enquanto as crianas brincavam, alm dos reisados, que ela corria lguas para assistir quando sabia que estava acontecendo em alguma casa da cidade. A Praa Flix Pacheco era um local de agrupamento de pessoas porque possua o nico jardim pblico da cidade, o coreto, poo artesiano, tanques, arborizao, canteiros, gramados, bancos, alm da rea comercial (DUARTE, 1991, p. 31-32). O Cine Spark, outro local de lazer, apresentava sesses todos os dias, aos finais de semana, tarde e noite, tendo como gneros: romance, suspense, bang bang e os cristos (OLIVEIRA, 2011, p. 37). As lembranas dos trs narradores citados em pargrafos anteriores s foram possveis porque as lembranas so coletivas. Maria das Graas, Francisca das Chagas e Josino de Barros no trazem suas memrias ao presente trilhando o caminho da individualidade. Mesmo tendo sido situaes vivenciadas individualmente, o lembrar permanece coletivo. Os narradores so permeados de outras vozes que os ajudaram a construir os quadros de memrias recordados (HALBWACHS, 1990, p. 26). Muitas das lembranas dos narradores no so originais. So inspiradas em conversas que estes tiveram com outras pessoas. Tornaram-se histrias dentro deles (BOSI, 1994, p. 407) e, junto com a construo dos quadros de memrias e das histrias, formou-se tambm a no identificao com os valores e espaos de sociabilidades da cidade do tempo em que as narrativas foram formadas. Entenderam-na de forma estranha.

[...] As crianas de hoje disputam at o espao que respira, de to egosta que . Naquele tempo no. Naquele tempo a gente brincava muito. No tinha energia, mas em compensao no tinha violncia. A gente brincava a vontade. Ento a vida era boa. Tinha que pisar caf, tinha que pisar arroz, tinha que pisar sal, mas tinha tempo para brincar, tinha tempo para tudo. Hoje tudo compra, mas no tem tempo de nada (RODRIGUES, 2012).

Na maneira de retratar o passado, Maria das Graas referiu-se ao presente do ano de 2012. Ao falar do tempo em que ela viveu, definiu o tempo que estava vivendo. Acontece dessa forma porque os olhares nem sempre esto voltados para o novo. O tempo no descontnuo, h questes que se fazem presentes no importando a poca (REZENDE, 2010, p. 2). Para ela, o tempo passou, mas as brincadeiras de infncia so rememoradas como um momento vivo. Fizeram-se presentes, misturadas percepo de que vivia um perodo em que o tempo parecia se acelerar, j que as pessoas no possuam tempo de nada; elas eram egostas, disputando at o espao que respira. As dcadas de 1950 e 1960 tinham os seus defeitos, como a falta de energia eltrica, mas no havia violncia. A sensao do tempo que se volatiliza por entre a vida dos citadinos e o individualismo so caractersticas que acompanham o cotidiano das pessoas desde a dcada de 1960, com o boom ps-moderno.Com o advento da ps-modernidade, o comportamento do ser humano, a sua relao com os outros e com os espaos, sofreram profundas transformaes. A principal caracterstica desses tempos de mudanas rpidas e constantes que Tudo o que slido desmancha no ar (BERMAN, 1986). O tempo assume uma velocidade e parece se desmanchar. Um dos motivos de o tempo ser percebido assim a falta que sentimos do outro. As pessoas parecem ter tempo somente para individualizar as suas necessidades, assumindo caractersticas de um narciso dessubstancializado que prima pelo amor a sua imagem, acompanhado de um sentimento de vazio (SANTOS, 1998, p. 102). O individualismo pai da insegurana moderna, que o medo dos crimes e criminosos. A individualizao moderna substituiu as comunidades solidamente unidas e as corporaes, implantou o dever individual de cuidar de si prprio e de fazer por si mesmo, plantou o medo em toda parte (BAUMAN, 2009, p. 16). Esse sentimento, chamado por Zygmunt Bauman de mixofobia, que o medo de misturar-se, fez-se presente na fala de Francisca das Chagas e de Maria das Graas. A primeira, ao tratar da importncia do Rio Guaribas, deixa transparecer um sentimento de medo que lhe atormenta no presente. Lembrou que sua famlia acordava s quatro horas da manh para tomar banho, porque naquela poca, no fazia medo. Referiu-se ao passado como um tempo distante e que no lhe pertencia mais, contudo acabou trazendo-o para a cena do presente. A falta dos banhos no Rio Guaribas s se manifestou porque no presente da narrativa os banhos no aconteciam. Atravs da memria, o passado vem tona nas guas presentes, deslocando-as e ocupando seu espao (BOSI, 1994, p. 46-47). Se o passado, utilizando-se da memria, preencheu o presente, a maneira como este roubou a cena no presente de Maria das Graas com um sentimento de lamento pelo tempo que passou, apesar de o perodo narrado ser denominado de muito difcil para viver.

Rapaz eu acho que era melhor de que hoje. Sabe por qu? T certo que tinha menos gente n? A populao era pequena. Mais o pai de famlia que tinha dez filhos ele trabalhava s e sustentava a famlia. E a mulher ficava em casa criando os filhos, por isso que eram tudo educado. No aquela questo de t todo mundo... Como ? Como que se diz? Deixa eu ver aqui... Numa bolha de vidro no, sabe? Tudo brincava a vontade, agora tinha aquela vantagem, todo mundo era educado. A educao comeava de pequeno. Hoje em dia um casal tem um filho e no aguenta o filho. capaz de apanhar dele no ? Ento essa era a vantagem (RODRIGUES, 2012).

A vantagem, segundo Maria das Graas, estava presente nos valores. Na forma como os filhos eram criados pela me, que ficava em casa, mas que hoje tambm ganha as ruas, deixando posies sexistas, desempenhando outros papeis sociais. J a desvantagem que no tempo de formao do relato, os valores da instituio famlia no apareciam mais como consistentes. Na atualidade, a definio de famlia no nica, nem a mesma, mas complexa e diversa. Por esse motivo, Maria das Graas, por exemplo, que viveu em uma cidade onde os valores eram bem definidos, ao conviver com a nova forma de criar os filhos, acabou sentido um estranhamento, tendo em vista que o significado da famlia e o papel dos pais mudam na atualidade. Ao no se achar na realidade, passou por uma desreferencializao do real (SANTOS, 1998, p. 18). O medo aparece como um companheiro de quem perdeu a segurana em um referencial slido. E a cidade de Picos naquele ano de 2012, j tinha os componentes para que o medo de se misturar, por exemplo, fosse evidenciado. A cidade passava por um crescimento em parte do seu espao urbano, gerando espaos que nem todos os citadinos podiam ter acesso. A Avenida Severo Eullio, no sentido de quem est deixando a cidade rumo ao norte do estado do Piau, possua alguns condomnios que foram pensados e criados como forma a salvaguardar aqueles que podiam pagar pelo isolamento. Por outro lado, Maria das Graas e Francisca das Chagas moravam no bairro So Vicente, local onde predominavam moradias populares. Moradias que no possuam a segurana vendida pelos condomnios, que mais parecem fortalezas. Nem por isso, esses condomnios eram locais onde as pessoas se sentiam completamente seguras, livres da violncia que se encontrava fora do seu espao privado. O paradoxo que moramos nas sociedades consideradas as mais seguras que j existiram, mas, mesmo assim, o medo do outro nos apavora (BAUMAN, 2009, p. 13).Se o passado se apresentou a Maria das Graas e Francisca das Chagas dessa maneira, enquanto um refgio para o presente em que estavam vivendo, sinal de que a cidade de Picos das dcadas de 1950 e 1960 foi ressignificada na memria dos narradores, como uma cidade que no tinha violncia. O passado, por ter ganhado outros significados durante a vida, no tem o seu conceito pronto. E o futuro, por causa do medo da violncia, assume uma indefinio. O sujeito que se percebeu dentro das trs temporalidades foi nomeado por Martin Heidegger como o Dasein, que o ente que compreende o ser. Mediante o surgimento da indefinio de passado e futuro, surge a angustia do Dasein desabrigado. Ser angustiado significa no mais se sentir em casa e ter a subjetividade abalada, por no estar amparado por um cotidiano conhecido, permanente e seguro (NUNES, 2002, p. 19). O Dasein torna-se passado sem deixar de ser presente; e o passado antecipa-se ao futuro (NUNES, 2002, p. 25). Assim, Maria das Graas e Francisca das Chagas, sentiram-se desabrigadas na cidade na qual deveriam abrigar-se. Se os tempos ps-modernos contm um des[footnoteRef:12], a cidade que as atraiu a que as (des)atraiu. [12: SANTOS, Jair Ferreira dos. O que ps-moderno. 18 ed. So Paulo: Brasiliense, 1998. p. 102.]

CONSIDERAES FINAISAs lembranas de Francisca das Chagas, Maria das Graas, de Josino de Barros e de Patrcia Barros compartilharam a ideia de que a cidade de Picos a cidade do j teve, expresso que tambm foi analisada por Karla Oliveira[footnoteRef:13]. Existiu, a partir das falas dos narradores, uma orientao cultural, direcionando o sentir dos citadinos para o saudosismo de espaos urbanos que no existiam mais, ou que sofriam pelo desprezo de parecerem ausentes. Desejaram o retorno, por no se identificarem com a cidade que lhes era apresentada. A histria das sensibilidades busca identificar a produo dos sentidos na formao de imagens do outro[footnoteRef:14]. Portanto, entendemos que a imagem construda de Picos, foi representada pelo sentimento da ausncia, da saudade de lugares e vivncias que no mais existiam naquele presente de formao dos relatos. Esta saudade algumas vezes foi direcionada para espaos que nem todos frequentavam. O Cine Spark um exemplo possvel. Maria das Graas no podia pagar para assistir os filmes, ainda assim, sentiu saudades da sala de cinema. uma saudade da possibilidade, do ter por perto, para quem sabe um dia usufruir. O (re)memorar dos sujeitos tornou-se, assim, uma alegria que trouxe dor, uma tristeza que buscou a esperana perdida, um viver que falava de uma condio de seres mortais, um tempo por aproveitar que possua um fim[footnoteRef:15], um prazer de (re)lembrar a cidade de outrora, lembranas que foram passageiras, lembranas que escorregaram por entre os dedos daqueles que fizeram o esforo de lembrar. Com o passar do tempo, o prazer de relembrar afastou-se do horizonte imaginativo, permanecendo somente a angustia em forma de saudade. [13: Para Karla Oliveira, a expresso usada pelos habitantes da cidade para referir os diversos lazeres que Picos possua durante os anos 1960, considerados como o perodo ureo da cultura picoense pelos entrevistados, pois a cidade possua espaos sociais, como o cinema, que no existe mais. (OLIVEIRA, Karla ngrid Pinheiro de. A geografia dos desejos: cidade, lazer, gnero e sociabilidades em Picos na dcada de 1960. 2011. 80f. Monografia (Curso de Licenciatura em Histria) Universidade Federal do Piau, Picos, 2011. p. 12.).] [14: CORBIN, Alain. O prazer do historiador. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 25, n 49, p. 11- 31, 2005. p. 19. ] [15: ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. As sombras do tempo: a saudade como maneira de viver e pensar o tempo e a histria. In: Maria Haizenreder Ertzogue e Temis Gomes Parente. (Org.). Histria e Sensibilidade. Braslia: Paralelo 15, 2006, p. 117- 139. p. 117. Acesso em: 10 de agosto de 2012. ]

O ato de lembrar se transformou com o devir. O presente vivenciado selecionou as lembranas. Cada lembrana se tornou nica. Cada lembrana nos despediu de um pedao da cidade de Picos. Cada lembrana recebeu um ponto final.

REFERNCIASAs referncias bibliogrficas devero constituir uma lista nica no final do artigo, em ordem alfabtica.

REFERNCIASFontesATAS DAS SESSES DA CMARA. Livro n 5. Picos: 1974. p. 15. ATAS DAS SESSES DA CMARA. Livro n4. Picos: 1973. p. 182. BARROS NETO, Josino de. Entrevista concedida a Jos Elierson de Sousa Moura e Larice ris Marinho Moura. Picos (PI), 18 de fevereiro de 2012.BARROS, Patrcia de Lima. Entrevista concedida a Jos Elierson de Sousa Moura e Larice ris Marinho Moura. Picos (PI), 13 maro de 2012.DUARTE, Renato. Picos: os verdes anos cinquenta. Recife: Liber, 1991. p. 111. DUARTE, Renato. Picos: os verdes anos cinquenta. Recife: Liber, 1991. p. 19.DUARTE, Renato. Picos: os verdes anos cinquenta. Recife: Liber, 1991.p. 31- 32.DUARTE, Renato. Picos: os verdes anos cinquenta. Recife: Liber, 1991. p. 17.DUARTE, Renato. Picos: os verdes anos cinquenta. Recife: Liber, 1991. p. 50. ROCHA, Francisca das Chagas de Sousa. Entrevista cedida a Jos Elierson de Sousa Moura e Larice ris Marinho Moura. Picos (PI), 17 de fevereiro de 2012.

RODRIGUES, Maria das Graas. Entrevista cedida a Jos Elierson de Sousa Moura e Larice ris Marinho Moura. Picos (PI), 04 de maro de 2012.

BibliografiaALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz de. As sombras do tempo: a saudade como maneira de viver e pensar o tempo e a histria. In: ERTZOGUE, Maria Haizenreder e PARENTE, Temis Gomes. (Org.). Histria e Sensibilidade. Braslia: Paralelo 15, 2006, p. 117- 139. p. 136. Acesso em: 10 de agosto de 2012. _______. O Tecelo dos Tempos: o historiador como arteso das temporalidades. Revista Eletrnica Boletim do TEMPO, Ano 4, n. 19, Rio de Janeiro, 2009.BAUMAN, Zygmunt. Confiana e medo na cidade. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. BERMAN, Marshall. Tudo que slido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moiss, Ana Maria L. Ioriatti. So Paulo: Schwarcz, 1986.BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. 13. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. CALVINO, talo. As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras. 2011.CORBIN, Alain. O prazer do historiador. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 25, n 49, p. 11- 31, 2005.FONTINELES, Cludia Cristina da Silva. Entre Herclito e Parmnides: a modernizao em Teresina nas dcadas de 1960 e 1970. In: KENNEDY, Robert Gomes Franco. VASCONCELOS, Jos Geraldo. (Orgs.). Outras histrias do Piau. Fortaleza: Edies UFC, 2007.HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990. p. 28.JELIN, Elizabeth. Las luchas polticas por la memoria. In: JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de Espaa, 2002. MARTINS, Agenor de Sousa et. all. Estrutura social. In: Piau: evoluo, realidade e desenvolvimento. ed., rev. Teresina: Fundao CEPRO, 2003. p. 167- 206. MOURA, Jos Elierson de Sousa. Os mltiplos dizeres sobre a cidade: a inveno discursiva da pobreza em Picos (1970-1979). 2014. 180f. Monografia (Curso de Licenciatura em Histria). Universidade Federal do Piau, Picos, 2014.NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.OLIVEIRA, Karla Ingrid Pinheiro de. A geografia dos desejos: cidade, lazer, gnero e sociabilidades em Picos na dcada de 1960. 2011. 80f. Monografia (Curso de Licenciatura em Histria) Universidade Federal do Piau, Picos, 2011. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visveis, cidades sensveis, cidades imaginrias. Revista Brasileira de Histria, vol. 27, n 53, jun. 2007. p. 11. _______. Histria & Histria Cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autntica, 2008._______. Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Tempos Acadmicos, v. 1, p. 127-134, 2005.PORTELLI, Alessandro. Ensaios de histria oral. So Paulo: Letras e Voz, 2010.REZENDE, A. P. M. X Encontro Nacional de Histria Oral- testemunhos: histria e poltica. Recife. p. 1- 6. 26 a 30 de abril de 2010. (Anais eletrnicos).RIOUX, Jean-Pierre. Introduo: um domnio e um olhar. In: _____; SIRINELLI, Jean-Franois. Para uma histria cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 17.ROLNIK, Raquel. O que cidade. So Paulo: Brasiliense, 2004.SANTOS, Jair Ferreira dos. O que ps-moderno. 18. ed. So Paulo: Brasiliense, 1998. SCHAMA, Simon. Paisagem e memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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