apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

download apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

of 16

Transcript of apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    1/16

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICHSCHLEIERMACHER

    Prof. André Constantino Yazbek (UFLA)1 

    Resumo:  a partir de uma caracterização sumária da história da hermenêutica, o artigopretende lançar luzes sobre aspectos elementares do pensamento de Schleiermacher, bem comode sua contribuição para a hermenêutica contemporânea.

    Palavras-chave: Hermenêutica, Compreensão, Alteridade.

    “ Pensamento e expressão são íntima eessencialmente a mesma coisa”

    (Friedrich Schleiermacher)

    hermenêutica se encontra entre as principais correntes da chamada filosofia

    contemporânea e, assim como a filosofia analítica, a fenomenologia e a semiótica, se

    constituí atualmente não como uma disciplina particular, com limites e temas

    determinados, mas sim enquanto uma “corrente” ou “tendência” que se ocupa de

    questões dos mais diferentes setores da existência. Neste sentido, ela representa hojeuma larga ampliação de sua função metódica original, posto que, nos séculos anteriores,

    se considerava a hermenêutica uma metodologia destinada ao tratamento de textos da

    tradição histórica clássica e sagrada2. Assim sendo, tratava-se de, metodologicamente,

    enfrentar questões relacionadas com o correto acesso aos textos, com o modo adequado

    de interpretá-los e, destarte, com a relação desses esforços de interpretação com outros

    métodos.

    Ora, se tais atividades, a começar pela exegese – uma disciplina que se propunha acompreender um texto a partir de sua intenção e sobre o fundamento daquilo que ele

    significa  –, suscitaram um problema hermenêutico, ou seja, um problema de

    interpretação, isto se deve ao fato de que toda a leitura de um texto se faz sempre no

    1 Professor Adjunto de Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras(UFLA) E-mail: [email protected]  Segundo a sumária introdução histórica de Karl-Otto Apel, “O termo ‘hermenêutica’ – assim como‘ontologia’, ‘sistema’, entre outros – é um vocábulo grecizado, do século XVII, que ingressou sobretudo na

    teologia protestante, em substituição à expressão humanístico-latina mais antiga ars interpretandi .” Cf. APEL,Karl-Otto. Transformações da Filosofia I: Filosofia Analítica, Semiótica e Hermenêutica. Tradução de PauloAstor Soethe. São Paulo: Ed. Loyola, 2000. p. 328.

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    2/16

    YAZBEK, André Constantino-2-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    interior de uma comunidade, sob o fundo de uma tradição ou de uma corrente de

    pensamento vivo que traz consigo – e desenvolve – pressuposições e exigências. Desse

    modo, a leitura dos mitos gregos na escola estóica implica uma hermenêutica que difere

    da interpretação rabínica da Tora; de mesmo modo, também a interpretação cristã à luzdo acontecimento maior da cristandade, efetuada por parte da geração apostólica,

    redundará em uma leitura distinta daquela dos rabinos.

    Dito isso, percebe-se claramente que a exegese implica uma teoria do signo e da

    significação, como se pode notar em A Doutrina Cristã de Santo Agostinho, por exemplo3.

    Se um texto pode comportar diversos sentidos – um sentido histórico e outro espiritual,

    por exemplo –, faz-se necessário recorrer a uma noção de significação mais complexa

    que aquela dos signos ditos unívocos, que requerem antes uma lógica da argumentação.

    Portanto, o trabalho da interpretação nos revela um intento fundamental: o de vencer um

    distanciamento cultural e histórico e, com isso, aplainar o leitor para um texto que se

    configura como estrangeiro, de modo que se possa incorporar o seu sentido à

    compreensão atual que um homem pode fazer de si mesmo4.

    Um estímulo análogo desenvolverá um outro caminho para a doutrina da “arte da

    compreensão” e da “interpretação”: a hermenêutica filológica aparecerá como um

    conjunto de instrumentos para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura

    clássica que, enquanto material de formação, estava sempre presente, mas havia sido

    amoldada por completo ao mundo cristão. Em ambas as esferas da tradição – da

    literatura dos clássicos à Bíblia –, trata-se de jogar luzes sobre o sentido original dos

    textos.

    Evidentemente, não se pode constituir nenhuma interpretação senão nos marcos dos

    modos de compreensão disponíveis em uma época dada: mito, alegoria, metáfora,

    analogia, etc. Donde se sucede a vinculação íntima entre a interpretação – no sentido

    preciso da exegese textual – e a compreensão – tomada em seu sentido amplo de

    “inteligência dos signos” –, já presente de certa forma em Aristóteles5. Ora, a

    3 A regra básica para a interpretação dos textos sagrados, mais aceita pelos intelectuais cristãos durante aIdade Média, era a de confrontar os textos de difícil compreensão com o todo da mensagem cristã; e se poracaso o sentido oculto não aparecesse, dever-se-ia confrontá-los com os ensinamentos dos grandespensadores do cristianismo. Como se sabe, esta forma de interpretação, fundada na doutrina patrística,sofrerá modificações diante da reabilitação da filologia clássica. Cf. AGOSTINHO, Santo.  A Doutrina cristã.Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1991.4

     RICOEUR, Paul. Hermenêutica y Estructuralismo. Traducion de Graziella Baravalle y Maria Teresa La Valle.Buenos Aires: Megápolis, 1975, p. 8.5  Idem ibidem, p. 8.

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    3/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 3 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    hermenêutica acabará por romper os limites de uma técnica destinada a especialistas,

    pois o que estará em jogo será precisamente o problema geral da compreensão.

    Á parte o estagirita, portanto, onde se pode divisar a primeira e mais originária relaçãoentre o conceito de interpretação e o de compreensão (que já vincula entre si os

    problemas técnicos da exegese textual com os problemas mais gerais da significação6), é

    com o desenvolvimento da filologia clássica e das ciências históricas, em fins do século

    XVIII e princípios do XIX, que se abrirá o caminho para uma hermenêutica geral. Assim, a

    partir do século XVIII, autores como John Semler e John Ernesti, por exemplo,

    reconheceram que, para se compreender adequadamente as Escrituras, seria preciso

    antes admitir a diversidade de seus autores e, por conseqüência, abandonar a unidade

    dogmática do cânon.

    Desse modo, segundo Gadamer, a hermenêutica principiou por se separar de todos os

    enquadramentos dogmáticos, se liberando para se elevar ao significado universal de um

    organon histórico: a compreensão a partir do contexto do todo – postulada já em Lutero,

    pois é o conjunto das Escrituras  que deve guiar a compreensão do individual – requer

    agora necessariamente a restauração histórica do contexto da vida a que pertencem os

    documentos. Sendo que já não há mais, desde então, diferença alguma entre a

    interpretação de escritos sagrados e profanos, estamos em face de uma só

    hermenêutica, que agora não se circunscreve nos limites de uma função propedêutica de

    toda historiografia, mas abarca, ela própria, toda a atividade historiográfica:

    “O contexto histórico universal, no qual mostram-se em seusignificado verdadeiramente relativo os objetos individuais dainvestigação histórica, tanto os grandes como os pequenos, é, elepróprio, um todo, a partir do qual pode-se compreenderplenamente cada elemento individual em seu sentido; e ele,inversamente, só pode ser plenamente compreendido a partirdesses elementos individuais: a história universal é, igualmente, ogrande livro obscuro, a obra completa do espírito humano,composta nas línguas do passado, cujo texto terá de serentendido. A investigação histórica se compreende a si mesmasegundo o modelo da filologia, de que se serve.”7 

    6 Idem ibidem, p. 9.7 GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução deEnio Paulo Giachini; revisão da tradução de Márcia de Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p.278. Grife-se ainda que Gadamer acaba por resvalar naquilo que será caracterizado por Schleiermachercomo círculo hermenêutico: toda compreensão do individual é condicionada pela compreensão do todo e,

    inversamente, toda compreensão do todo só pode se configurar a partir do individual. Não obstante,Schleiermacher aplicará o círculo  também à compreensão psicológica: deve-se compreender cadaformulação do pensamento como um momento vital   no contexto total de seu autor. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    4/16

    YAZBEK, André Constantino-4-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    Pois bem, ainda que se deva admitir que tal história da compreensão tem estado

    acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga, da perspectiva

    da contemporaneidade hermenêutica, seu ponto de clivagem se encontra em Friedrich

    Schleiermacher e Wilhelm Dilthey. Portanto, se as reflexões da tradição pretendem servirà “arte da compreensão” (do mesmo modo que a retórica serva à “arte de falar” ou a

    poética à “arte de compor”), agora é a compreensão  (Verstehen) enquanto tal que se

    converte em problema – um problema cuja generalidade advém da consideração de que

    a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido muito diverso do que até então

    lha era conferida: ela já não é mais uma “doutrina da arte” a serviço da práxis do filólogo

    ou do teólogo. Com Schleiermacher e Dilthey, o problema hermenêutico se converte

    enfim em problema fundamentalmente filosófico.

    Nesta medida, retomando parcialmente a situação da hermenêutica nos séculos XIX e

    XX, gostaria de partir sobretudo de alguns trechos selecionados dos Discursos

     Acadêmicos  pronunciados por Schleiermacher em 18298  para expor alguns

    apontamentos elementares de sua hermenêutica. Tais discursos se apresentam sob a

    designação geral de Discursos Acadêmicos [1829]: sobre o conceito de hermenêutica,

    com referências às indicações de F. A. Wolf e ao compêndio de Ast . Em seu conjunto,

    eles perfazem a tentativa de seu autor em fundar, diante de um público de intelectuais, a

    necessidade de um método hermenêutico geral. É neste sentido que se deve

    compreender o diálogo encetado com Friedrich August Wolf e Friedrich Ast: o primeiro

    não acreditava na possibilidade de uma hermenêutica geral, enquanto que o segundo

    oferecia já um exemplo de sua realização.

    II.

    No curso dos séculos XIX e XX, a partir do papel de uma disciplina auxiliar subordinada,

    a hermenêutica desenvolveu-se progressivamente, atingindo a dignidade de um tipo

    filosófico de questionamento. À parte a plêiade de nomes que se ligam ao

    desenvolvimento da hermenêutica contemporânea, pode-se seguramente conferir

    especial destaque a Schleiermacher, que foi quem primeiro promoveu – nas palavras de

    Paul Ricoeur – a desregionalização da visada hermenêutica:

    8 SCHLEIERMACHER, F. D. E. “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”. In: Hermenêutica:arte e técnica de interpretação. Tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes,1999. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    5/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 5 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    “Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duaspreocupações. A primeira tende a ampliar progressivamente a visada dahermenêutica, de tal modo que todas as hermenêuticas regionais sejamincluídas numa hermenêutica geral . Mas esse movimento dedesregionalização  não pode ser levado a bom termo sem que, ao

    mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemológicas  dahermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em saber dereputação científica, estejam subordinadas a preocupações ontológicas segundo as quais compreender   deixa de aparecer como um simplesmodo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-secom os seres e com o ser. /.../ O verdadeiro movimento dedesregionalização começa com o esforço para se extrair um problemageral da atividade de interpretação cada vez engajada em textosdiferentes. O discernimento desta problemática central e unitária deve-seà obra de F. Schleiermacher.”9 

    Antes da obra de Schleiermacher, com vimos, divisa-se duas esferas de aplicação da

    hermenêutica: de um lado, uma filologia dos textos clássicos; de outro, uma exegese dos

    textos sagrados (cada qual variando seu trabalho de interpretação conforme a

    diversidade dos textos). Os filólogos que foram os predecessores do hermeneuta alemão

    determinavam a hermenêutica pelo conteúdo do que se devia compreender: Ast, com

    quem o autor dos Discursos dialoga durante toda a exposição, propõe como objetivo de

    uma hermenêutica universal alcançar “a produção da unidade da vida grega e cristã”10 (o

    que não difere em absoluto daquilo que pensam os “humanistas cristãos”).

    Schleiermacher, ao contrário, já não buscará a unidade da hermenêutica na unidade de

    conteúdo da tradição, mas sim na unidade de um procedimento que nem sequer é

    diferenciado pelo modo como as idéias foram transmitidas – se por escrito ou oralmente,

    se numa língua estranha ou na própria. Em outros termos: Schleiermacher foi o primeiro

    a acentuar a genuína dimensão filosófica da hermenêutica na medida em que salientou o

    problema da correta compreensão e interpretação não somente para os textos da

    tradição escrita, mas, sobretudo, em direção à ampliação da tarefa hermenêutica para

    todas as formas de comunicação, em especial o diálogo vivo: “/.../ tenho que repetir outra

    vez que a hermenêutica não deve estar limitada meramente às produções literárias; pois

    9 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro:Francisco Alves Editora, 1990. p. 18-20. Note-se que Paul Ricoeur, ao vaticinar que o movimento dedesregionalização da hermenêutica  não pode ser levado a cabo sem que as suas preocupaçõespropriamente epistemológicas estejam subordinadas a preocupações ontológicas, já aponta para aquilo queserá o desenvolvimento ulterior da hermenêutica, realizado em especial na filosofia de Heidegger em Ser eTempo, que não é senão, grosso modo, a consideração do compreender   não como um simples modo deconhecer ,  mas sim como uma maneira de ser e de relacionar-se com os seres e com o ser. Assim,Heidegger dá um passo adiante em relação ao problema hermenêutico – passo preparado em parte porDilthey e sua escola, em parte pela fenomenologia de Husserl – quando faz recuar o problema da“compreensão” à dimensão existencial do ser-aí  (Dasein). Trata-se agora, com a filosofia de Ser e Tempo, deuma compreensão original  que antecede inclusive a dualidade entre o “explicar” e o “compreender”; e que,

    acima de tudo, é dada com o próprio “ser da existência”, uma vez que a existência (Dasein) é marcada pelacompreensão do ser .10 SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p.29. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    6/16

    YAZBEK, André Constantino-6-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    eu me surpreendo seguidamente no curso de uma conversação [familiar] realizando

    operações hermenêuticas”.11 

    É a partir deste esforço de Schleiermacher em ampliar progressivamente a “visada dahermenêutica” – para que então todas as “hermenêuticas regionais” sejam incluídas em

    uma “hermenêutica geral ” – que se pode ultrapassar efetivamente a “localidade” da

    linguagem escrita. Afinal, uma hermenêutica geral exige que nós possamos nos postar

    para além das aplicações particulares referentes aos dois grandes ramos já mencionados

    da hermenêutica dita tradicional, discernindo suas operações comuns. Por conseguinte,

    devemos nos elevar não somente acima da particularidade do texto, mas também da

    particularidade das regras textuais nas quais se dispersam sobremaneira a arte de

    compreender. O movimento de desregionalização, portanto, acaba por tornar-se um

    movimento de radicalização, no qual a hermenêutica se torna não somente geral, mas,

    sobretudo fundamental – donde a aquisição de seu próprio status filosófico.

    Destarte, e em paralelo com sua atividade de teólogo e tradutor, Schleiermacher

    consagra toda a sua maturidade à elaboração de uma teoria da hermenêutica que está

    na base da própria hermenêutica contemporânea, que se considera uma teoria da

    compreensão. Ainda que Schleiermacher dê à sua hermenêutica o nome de “doutrina da

    arte” – quiçá envolto pelo sopro da tradição –, deve-se entender o sentido sistemático

    completamente novo que ele confere ao termo: trata-se de buscar a fundamentação

    teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, para então, aquém de ambos os

    interesses, remontar a uma relação mais originária da compreensão do pensamento.12 

    Assim sendo, a hermenêutica da compreensão rompe com os limites da hermenêutica

    tradicional – quer dizer, com os estreitos limites da prática metodológica hermenêutica

    tradicional, que visa apenas estabelecer as regras de interpretação dos textos históricos

    e sagrados –, e pretende se constituir como uma teoria da compreensão intersubjetiva,

    isso é, dos “processos de leitura” que se desenrolam na esfera da comunicação entre

    sujeitos-consciências. Trata-se mesmo de ultrapassar o nível ordinário da compreensão;

    trata-se de afirmar que, no limite, indiscutível não é a compreensão, mas sim o mal-

    entendido: a dificuldade de compreensão, a esfera do mal-entendido, já não é tida como

    um momento ocasional, mas sim enquanto momento integrador e fundamental do

    11 Idem ibidem, p. 33.12 “Se esta arte [a hermenêutica] é uma coisa para a teologia cristã e é a mesma coisa para a ciência clássicada antigüidade, então, nenhuma nem outra constitui a sua essência, mas esta é qualquer coisa maior, da

    qual estas são apenas derivações /.../; cada uma configurada de maneira especial como Organon para umaesfera determinada, para as quais, porém, deveria haver qualquer coisa de comum e de mais elevado”. Cf. Idem ibidem, p. 29. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    7/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 7 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    problema geral da própria compreensão. Nos termos de Apel, neste ponto introduz-se

    uma espécie de “dúvida cartesiana” na doutrina da antiga ars interpretandi , isto é,

    introduz-se a dúvida onde antes subsistia o domínio da arte praticamente aplicada.13 

    Mas se assim o é, então a compreensão de um texto – razão de ser da antiga

    hermenêutica – é primeiramente a compreensão do produto expressivo de um sujeito; e

    isso de tal modo que Schleiermacher, em seus Discursos, afirma, peremptoriamente,

    fazer uso da “ prática da hermenêutica” não somente “no domínio da língua materna ou

    estrangeira”, não apenas no âmbito “de todo estudo filológico ou teológico”, mas ainda, e

    sobretudo, “no relacionamento imediato com os homens”.14 

    Portanto, não se trata mais aqui de uma prática circunscrita a um estudo filológico

    apenas, nem mesmo de qualquer questão concernente à teologia. Trata-se, isso sim, da

    consideração de que, enquanto compreensão de um texto, a hermenêutica é, acima de

    tudo, a compreensão de um fenômeno de linguagem objetivo – que se define menos por

    seu autor, ou pelo fato de se tratar da língua materna ou estrangeira, do que por sua

    situação na história da língua e da cultura. Em Schleiermacher, a hermenêutica está

    voltada para a compreensão de tudo o que é lingüístico: “o que se pressupõe e o que se

    encontra em hermenêutica é apenas linguagem”.15 

    Esta subordinação das regras particulares da exegese e da filologia à problemática geral

    do compreender, explicitada nos Discursos  de Schleiermacher – afinal, trata-se de

    discernir também o “como, em um amigo, pode se dar a passagem de uma idéia à outra”,

    ou então de se questionar “acerca das opiniões, juízos e tendências que fazem com que

    ele se expresse, sobre um assunto de discussão, deste modo e não de outro” 16  –,

    constituirá, para a história da hermenêutica, uma reviravolta análoga àquela que fora

    operada pela filosofia kantiana com referência às ciências da natureza: ao radicalizar o

    questionamento do compreender historicamente mediado da Bíblia e dos autores

    clássicos, Schleiermacher – juntamente com Dilthey, seu dileto discípulo – se vinculará à

    pergunta kantiana acerca das condições de possibilidades e validade do conhecimento

    objetivo, transladando-a, no entanto, para o nível de uma problemática geral da

    13 APEL, Transformações da Filosofia I, op. cit., p. 331.14  SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33 (grifonosso).15 Idem ibidem, p. 19. 16 Idem ibidem, p. 33.

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    8/16

    YAZBEK, André Constantino-8-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    compreensão. Assim, e mais uma vez segundo Apel17, o retroagir metódico em direção a

    um sujeito que ainda não compreende, sugerido em Schleiermacher, levará Dilthey ao

    discernimento de que, ao contrário do que ocorre com o sujeito do conhecimento objetivo

    nas ciências naturais, o sujeito de compreender não pode ser apreendido enquanto umaconsciência pura (que determinaria as “coisas-em-si” como elementos passíveis de

    afecção exterior, vale dizer, como se fossem fenômenos regulares), mas sim enquanto

    uma consciência que determina as “coisas-em-si” como a “vida” (Leben) que se entende

    a si mesma de dentro, na “vivência” (Erlebnis) e na “expressão” ( Ausdruck ) da vivência18.

    É exatamente por isso que Paul Ricoeur, desenvolvendo uma análise análoga a de Apel,

    pôde afirmar que a “hermenêutica vai aparecer como uma resposta global trazida à

    grande lacuna do kantismo”.19 

    Deve-se considerar ainda, como o faz Ricoeur, que se tratava também, e sobretudo, de

    revolucionar a concepção de sujeito do kantismo: ao ter se limitado à busca das

    condições universais da objetividade na física e na ética, a filosofia kantiana só conseguiu

    evidenciar o espírito impessoal, quer dizer, portador das condições de possibilidade dos

     juízos universais. Sob este diapasão, o programa hermenêutico de Schleiermacher será

    portador de uma dupla marca: 1) a marca romântica, devida ao seu apelo a uma relação

    viva com o processo de criação; 2) e a marca crítica, explicitada em seu desejo de

    elaborar regras universalmente válidas da compreensão.20  Seu propósito crítico, com

    efeito, estaria explicitado na seguinte divisa: “há hermenêutica onde houver não

    compreensão”21. Isto é: “existe para cada um o estranho nos pensamentos e expressões

    de um outro”.22 Desde então se pode aquilatar com clareza o peso conferido à prática

    hermenêutica: ao confessar a pratica hermenêutica no domínio da língua – “eu confesso

    que tenho essa prática da hermenêutica no domínio da língua /.../ no relacionamento

    17 APEL, Transformações da Filosofia I , op. cit., p. 331-332.18 Pode-se, aqui, divisar o peso da influência de Dilthey na filosofia heideggeriana de Ser e Tempo:“Heidegger em Ser e Tempo está ligado justamente a essa concepção de Dilthey: de acordo comela, a vida humana que é inteligível desde dentro, e na qual não se pode retroagir mais, já abrangedesde sempre a separação sujeito-objeto cartesiano-kantiana e pode, portanto, ser interpretada apartir de sua própria autocompreensão. Em sua hermenêutica existencial, Heidegger substitui avida que é inteligível no círculo hermenêutico de vivência e expressão pelo ‘ser-aí’ humano; neste,o ser em geral teria conquistado uma relação entre o Compreender e si mesmo. Essa abordagempermite-lhe renovar a pergunta platônico-aristotélica sobre o ser do ente /.../ enquanto perguntasobre o ‘sentido do ser’, e sob o pressuposto de que existe um horizonte de entendimento para talquestão, qual seja, o próprio ser-aí do ser humano, que ‘sabe-ser’ em seu ser, e que com issotambém entende desde sempre, e de maneira não-expressa (‘pré-ontológica’), o ser de todo enterestante”. Cf. Idem ibidem.19 RICOEUR, Interpretação e Ideologias, op. cit., p. 21.20 Idem ibidem.21 Schleiermacher apud Ricoeur, Idem ibidem.22 SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33.

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    9/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 9 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    imediato com os homens”23  –, Schleiermacher confessa aquilo que não precisaria de

    confissão alguma, pois se evidencia cotidianamente (ainda que de modo não

    tematizado); está-se em meio aos homens, em relação inter-subjetiva com eles; o que

    significa, a todo momento, fazer hermenêutica, quer dizer, esforçarmo-nos porcompreendê-los, pois em todos eles, para cada um de nós, divisa-se o estranho, o não-

    compreendido: justamente porque cada alma é “no seu ser único o não-ser dos outros, a

    incompreensão não se dissipará nunca inteiramente”24. Há hermenêutica pelo simples

    fato de haver um mundo de intersubjetividades, de haverem “vidas”. Destarte,

    Schleiermacher pretende compreender cada pensamento ou expressão a partir do

    conjunto de um contexto vital  do qual provêm:

    “Pois a presença imediata do falante, a expressão viva que manifesta aparticipação de todo o seu ser espiritual, a maneira como ali ospensamentos se desenvolvem a partir da vida em comum, tudo issoestimula, muito mais do que o exame solitário de um texto inteiramenteisolado, a compreender uma seqüência de pensamentossimultaneamente como um momento da vida  que irrompe e como umaação conectada com muitas outras, mesmo aquelas de gênerosdiferentes”25.

    Nesta medida, o trecho acima é bastante expressivo: a compreensão se move em todos

    os planos referentes à inter-expressividade dos sujeitos (em última instância, pode haver

    também uma compreensão dos gestos, dos atos, etc.), mas seu espaço de ação

    fundamental é a linguagem, que não é senão o médium  de explicitação da vida em

    comum, posto que a compreensão é em geral centrada nas expressões lingüísticas orais

    ou escritas. Em poucas palavras, isso significa que toda a cena de desdobramento da

    inter-expressividade dos sujeitos, donde emana seu sentido e contexto vital, é

    forçosamente a linguagem entendida como expressão da “individualização da vida

    universal”:

    “O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo a suaconcepção metafísica da individualização da vida universal. Dessemodo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superouradicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação dacompreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e doentendimento inter-humano significou no seu conjunto umaprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entantoacabou permitindo a edificação de um sistema científico com base

    23 Idem ibidem.24 Idem ibidem, p. 46.25 Idem ibidem, p. 34 (grifo nosso). 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    10/16

    YAZBEK, André Constantino-10-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    hermenêutica. A hermenêutica tornou-se base de todas as ciênciashistóricas do espírito e não só da teologia.”26 

    Portanto, o sentido normativo básico de um texto, quer dizer, o elemento que

    originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, encontra-se aqui em segundo

    plano: tendo-se em vista que um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a

    “fé” no diálogo como uma fonte de verdade não-dogmática, pode-se perfeitamente

    entender que a capacidade para o diálogo, isto é, para a comunicação em geral,

    ocupasse um posto privilegiado nas preocupações hermenêuticas de Schleiermacher – a

    experiência humana originária da capacidade para a amizade, para o diálogo e para a

    relação epistolar, constituirá o ponto de partida do hermeneuta. Destarte, ao indicar

    expressamente que a “arte da compreensão” não é necessária somente para o trato com

    os textos, mas sobretudo no trato da conversação, Schleiermacher acabará por

    expressar a convicção de que a hermenêutica é mais do que um método das ciências, ou

    de um grupo em particular de estudos eruditos. Ela designaria, antes de tudo, um

    elemento intrinsecamente ligado à esfera da realidade humana (considerada do ponto de

    vista primordial de sua expressividade inter-subjetiva). Quer dizer: a hermenêutica, em

    última instância, é a experiência de uma relação entre humanos  por intermédio da

    linguagem. O que implica – veremos a seguir – na pré-existência de “algo em comum” na

    relação lingüística entre interpretante e interpretado.27 

    III.

    De acordo com Gadamer, o método postulado por Schleiermacher – denominado de

    hermenêutica psicológica pelo autor de Verdade e método, uma vez que se fundamenta

    no postulado de que importa compreender um autor melhor do que ele próprio teria se

    compreendido –, não é senão uma fórmula que, desde então, tem sido repetida

    incessantemente, e em cujas interpretações cambiantes caracteriza-se parte substancialda história da hermenêutica contemporânea28. E o mesmo Gadamer também não deixará

    de notar – e em seus Discursos o hermeneuta não faz senão confirmá-lo – o fato de que

    Schleiermacher não considera a tarefa da filologia e da exegese bíblica, que consiste em

    compreender um texto composto em uma língua estrangeira e procedente de uma época

    26 GADAMER, H. G. Verdade e Método II . Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da traduçãode Márcia de Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 119-120.27 SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 64.28 Idem ibidem, p. 299.

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    11/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 11 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    passada, mais problemática do que qualquer outro compreender 29: como vimos, o

    esforço da compreensão tem lugar cada vez que não se dá uma compreensão imediata

    e, por conseqüência, a cada vez que se tem de contar com a possibilidade do mal-

    entendido – a experiência da alteridade e da possibilidade do mal-entendido sãouniversais. Desde o início das considerações de seus Discursos, portanto,

    Schleiermacher articula o exercício da hermenêutica ao surgimento (sempre presente) de

    uma esfera de estranheza em um momento qualquer dos discursos que o intérprete se

    propõe a compreender – a hermenêutica, deste modo, consiste em um trabalho de

    dissipação de estranhezas.30 

    No entanto, ainda há mais a ser observado: claro está que a hermenêutica não deve

    atuar apenas no domínio clássico – outrora sua seara específica –, não sendo, portanto,

    um mero órganon filológico deste domínio; claro está também que em “todo lugar” onde

    houver qualquer “coisa de estranho”, “na expressão do pensamento pelo discurso /.../, há

    ali um problema que apenas pode se resolver com a ajuda de nossa teoria

    [hermenêutica]”.31 Não obstante, se há algo estranho a ser compreendido, dialeticamente

    deve-se considerar que a condição de possibilidade de compreender este “algo” reside

     justamente no fato de haver também “pontos de contato para a compreensão”:

    “[quando tudo fosse algo absolutamente estranho], a hermenêutica nãosaberia entabular o seu trabalho. Do mesmo modo no caso oposto, asaber, quando nada fosse estranho entre aquele [que fala e aquele queouve], ela não precisaria ser entabulada, antes a compreensão seriadada simultaneamente com a leitura e audição /.../. Na verdade, /.../ se oque é para ser compreendido fosse completamente estranho àquele quedeve compreender, e não houvesse nada de comum entre ambos, então,não haveria ponto de contato com a compreensão”.32 

    Donde se segue, justamente, a dinâmica conferida à hermenêutica por Schleiermacher:

    compreender o outro – ao fim e ao cabo, é disso que se trata – implica de alguma forma

    em compreendê-lo já desde sempre, em partilhar com ele algum “ponto de contato”, algo

    em comum que torne possível a própria compreensão. Nesta medida, há desde sempre

    um nível ordinário da compreensão; e é precisamente com base neste “nível ordinário”

    que se deve promover a tarefa hermenêutica de elevar as questões da linguagem – cuja

    polissemia constituí o traço característico – até a exigência de um trabalho de

    interpretação que se posta primeiramente no nível mais banal da conversação. Assim, o

    29 Idem ibidem, p. 195.30 Idem ibidem, pp. 25 ss. 31 Idem ibidem, p.31.32 Idem ibidem. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    12/16

    YAZBEK, André Constantino-12-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    manejo do contexto, que é o complemento necessário e inelutável da polissemia da

    linguagem – seja ela materna ou estrangeira –, põe em jogo uma atividade de

    discernimento. Considerada deste modo, tal atividade será uma atividade de

    interpretação: trata-se de reconhecer a mensagem relativamente unívoca que o locutorconstruiu, sempre apoiado sobre a base polissêmica das línguas naturais. Segundo

    Ricoeur, o discernimento se dá a partir de uma “permuta concreta” de mensagens que,

    trocadas entre os interlocutores, têm por modelo o “jogo da questão e da resposta”; mas

    o que ocorre, observa ainda Ricoeur, é que no âmbito da hermenêutica contemporânea a

    escrita parece não mais preencher “as condições de interpretação direta mediante o jogo

    da questão e da resposta”, tal como se daria através do diálogo.  33 Neste momento,

    “São necessárias /.../ técnicas específicas para se elevar ao nível dodiscurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem atravésdas codificações superpostas, próprias à efetuação do discurso comotexto.”34 

    Tais técnicas específicas, nas palavras de Schleiermacher,

    “não dependem absolutamente de que o discurso esteja fixado para osolhos através da escrita, mas ocorre sempre onde nós temos queapreender pensamentos ou encadeamentos de pensamentos através depalavras”.35 

    Assim com elas tampouco se limitam “aos casos em que a língua é uma língua

    estrangeira”,

    “mas também na própria língua e, note-se, inteiramente independentedos diversos dialetos nos quais ela eventualmente se decompõe, ou departicularidades que se encontram em um e não em outro”.36 

    Portanto, se não se deve limitar o trabalho hermenêutico nem à linguagem materna e

    nem tampouco àquilo que está redigido em língua estrangeira, é porque à estreitezadestas posições – ambas identificadas pelo autor dos Discursos37  – deve-se opor um

    “conselho urgente” para que possamos precisar o verdadeiro alcance da tarefa

    hermenêutica: exercitar com zelo a interpretação das “conversações significativas”38.

    Com efeito, trata-se aqui de distinguir o procedimento do compreender para dotá-lo de

    33 RICOEUR, Interpretação e Ideologias, op. cit., p. 20.34 Idem ibidem.35 SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33.36 Idem ibidem, p. 33.37 Idem ibidem, p. 32.38 Idem ibidem, p. 34. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    13/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 13 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    autonomia suficiente: a hermenêutica deve elevar-se ao status de um método autônomo

    (“pois o mal-entendido se produz por si mesmo, e a compreensão é algo que temos de

    querer e de procurar em cada ponto”39); em um esforço que se coaduna perfeitamente

    com a exigência de libertar-se das proposições de tarefas redutoras, a partir das quais ospredecessores de Schleiermacher – Ast e Wolf – haviam fixado a essência da

    hermenêutica: sob a batuta do autor dos Discursos, mesmo no conhecido, quer dizer,

    naquilo que nós é familiar, “é de fato o estranho que se manifesta na língua, quando uma

    ligação de palavras [renega-se a tornar-se clara]”.40 

    Mas se ainda assim o “ponto de contato” para a compreensão é sempre possível, se a

    tarefa da compreensão já se vincula desde sempre à esfera inter-expressiva – caso

    contrário, não haveria mundo inter-subjetivo –, é porque está pressuposta a idéia de que

    cada individualidade é uma manifestação do viver total e que, por isso mesmo, cada qual

    traz em si um mínimo de cada um dos demais. Assim, ao pontuar a problemática da

    compreensão no âmbito da individualidade, surge para Schleiermacher a tarefa da

    hermenêutica enquanto hermenêutica universal: tanto o extremo da alteridade como o da

    familiaridade se dão com a diferença relativa de toda individualidade – presta-se contas,

    então, tanto do caráter provisório quanto da infinidade da tarefa da compreensão.41 

    Compreender é sempre mover-se em círculos.42 

    Enfim, a hermenêutica é geral na medida em que ela é co-extensiva ao ato de

    compreender , não sendo, portanto, redutível aos problemas de uma única não-

    compreensão específica: enquanto ato hermenêutico por excelência, a compreensão se

    aplica a todas as situações humanas nas quais se requer a explicitação das intenções

    manifestas de uma outra consciência. Postulada por Schleiermacher nesses termos, a

    extensão da tarefa hermenêutica ao “diálogo significativo” mostra o quanto se

    39 GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, op. cit., p.289.40 SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 45.41  “No que diz respeito à compreensão, duas máximas opostas. 1) Compreendo tudo até omomento em que me choco com uma contradição ou com um sem-sentido; 2) Não compreendonada se não o reconheço e não posso construí-lo como necessário. De acordo com essa últimamáxima, compreender é uma tarefa infinita”. Cf. SCHLEIERMACHER, F. D. E. “Les aphorismes de1805 et de 1809-1810”. In: Herméneutique. Genève: Editions Labor et Fides, 1987, p. 48.42 Tradicionalmente, a concepção de círculo hermenêutico entende que o conhecimento anteriorda obra é fundamental à compreensão de suas partes, assim como a compreensão adequada daspartes é fundamental para uma boa interpretação do todo. Nas palavras de Schleiermacher, “Cadaparticular apenas pode ser compreendido por meio do todo e, portanto, toda explicação doparticular pressupõe já a compreensão do todo”. Cf. SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos(13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 46-47. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    14/16

    YAZBEK, André Constantino-14-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    transformou o sentido da “estranheza” presente na relação entre quem discursa e quem

    interpreta – cuja superação a hermenêutica deveria ser capaz de alcançar – frente ao que

    até então se havia proposto na tradição: em um sentido novo e universal, a estranheza

    doravante estará ligada indissoluvelmente com a individualidade do tu  – esfera doreconhecimento efetivo da alteridade –, de sorte que os consensos fundamentados

    biblicamente, ou mesmo racionalmente, não formam mais o fio condutor dogmático de

    toda a compreensão do texto. Destarte, Schleiermacher se atêm a proporcionar à

    reflexão hermenêutica uma motivação fundamental, que situe o problema hermenêutico

    em um horizonte até então inaudito: a relação circular da tarefa hermenêutica extrapola

    os limites estritos do texto e, estendendo-se à linguagem em geral, concerne à expressão

    de vida  de seu autor. O que implica mais do que a mera transposição do problema

    hermenêutico da compreensão daquilo que foi fixado por escrito para a compreensão do

    discurso em geral. Implica, isto sim, um deslocamento fundamental: o que deve ser

    compreendido não é a literalidade das palavras e seu sentido objetivo, mas, ao fim e ao

    cabo, também a individualidade de quem fala, quer dizer, do próprio autor.43  E mais:

    deve-se conceber imediatamente a individualidade do autor transformando-se a si

    mesmo, concomitantemente, em outrem. Neste processo, cada qual evoca a alteridade

    de uma perspectiva alheia com a qual possa erguer-se em sua própria perspectiva.

    No universo hermenêutico de Schleiermacher, o verdadeiro problema da compreensão

    somente emerge quando, no esforço para se compreender um conteúdo, questiona-se

    “acerca das opiniões, juízos e tendências que fazem com que ele [outrem] se expresse,

    sobre um assunto de discussão, deste modo e não de outro.”44  Um questionamento

    hermenêutico desta envergadura anuncia uma forma de reconhecimento da alteridade

    em sua radicalidade eminente – com a conseqüente afirmação da possibilidade efetiva de

    formação de consenso a partir deste reconhecimento – e, em última instância, significa

    uma renúncia a um sentido comum. Aqui reside, de fato e de direito, a percepção da

    individualidade do tu, bem como a consideração de sua peculiaridade por parte do

    esforço da compreensão. Interpretante e interpretado, eu e outrem, se inter-relacionam a

    partir de uma comunidade compreensiva prévia e necessária à expressão inter-subjetiva:

    a hermenêutica postulada por Schleiermacher encontra sua garantia – e a justa medida

    43  “Assim, paralelamente à interpretação gramatical, ele [Schleiermacher] coloca a psicológica(técnica) – e nesta é que se encontra o que ele tem de mais próprio. /.../ A hermenêutica abrangea arte da interpretação gramatical e psicológica. É, em última análise, um comportamentodivinatório, um transferir-se para dentro da constituição completa do escritor, um conceber o‘decurso interno’ da feitura da obra, uma reformulação do ato criador”. Cf . GADAMER, Verdade eMétodo: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, op. cit., p. 291-292.44 SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33. 

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    15/16

    APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH SCHLEIERMACHER- 15 -

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    de sua tarefa – no fato de que cada espírito, em sua singularidade mesma, representa

    uma individuação da vida universal .45 

    45 STAROBINSKI, Jean. “Avant-propos: L’Art de Comprendre”. In: SCHLEIERMACHER, F. D. E.Herméneutique. Genève: Editions Labor et Fides, 1987, p. 09.

  • 8/17/2019 apontamentos_elementares_sobre_a_hermenutica_de_schleiermacher_andr_yazbek.pdf

    16/16

    YAZBEK, André Constantino-16-

     __________________________________________________________________________________________________ Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da

    Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano V - Número V – janeiro a dezembro de 2010

    Referências:

    AGOSTINHO, Santo.  A Doutrina cristã. Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo:Paulinas, 1991.

    APEL, Karl-Otto. Transformações da Filosofia I: Filosofia Analítica, Semiótica e Hermenêutica.  Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000.

    GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da tradução de Márcia de Sá Cavalcante-Schuback.Petrópolis: Vozes, 2002.

     __________. Verdade e Método II . Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da tradução deMárcia de Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.

    RICOEUR, Paul. Hermenêutica y Estructuralismo. Traducion de Graziella Baravalle y Maria TeresaLa Valle. Buenos Aires: Megápolis, 1975.

     __________. Interpretação e Ideologias. Tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio deJaneiro: Francisco Alves Editora, 1990. 

    SCHLEIERMACHER, F. D. E. “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”. In: Hermenêutica:arte e técnica de interpretação. Tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis:Vozes, 1999.

     __________. “Les aphorismes de 1805 et de 1809-1810”. In:  Herméneutique. Genève: EditionsLabor et Fides, 1987.

    STAROBINSKI, Jean. “Avant-propos: L’Art de Comprendre”. In:  SCHLEIERMACHER, F. D. E.Herméneutique. Genève: Editions Labor et Fides, 1987.