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Magda Soares através de textos Foto: Ronaldo Guimarães o jornal do alfabetizador Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - Ano 8 EDIÇÃO ESPECIAL

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  • Magda Soares atravs de textos

    Foto: Ronaldo Guimares

    o jornal do alfabetizadorBelo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - Ano 8

    edioespecial

  • Magda Soares atravs de textosEste nmero especial do Jornal Letra A presta uma justa homenagem

    Profa. Magda Soares que, ao completar 80 anos, evidencia uma grande vitalidade que inspira o trabalho e as aes do Ceale. O efeito positivo da empreitada no est sob controle, j que a homenageada algum que est em evidncia, mas que preserva a discrio. No entanto, justifica essa ao de quebrar a discrio o sincero desejo de reconhecer uma caminhada, de valorizar um trabalho, de agradecer uma histria vivida, de compartilhar algumas trajetrias, de projetar muitos outros captulos.

    Em um dos eventos realizados no Ceale, com o intuito de introduzir a conferencista Magda Soares, o responsvel pela apresentao fez uma longa lista de suas realizaes que, ao final, gerou a seguinte reao da biografada: "como podem comprovar, trabalhei muito". De fato, no ser muito difcil compartilhar essa avaliao. Nas vrias sees que organizam este jornal, so apresentados exemplos que realam essa disposio e essa disponibilidade para o trabalho, em diferentes frentes e em diferentes espaos. Os resultados esto presentes no apenas na dimenso quantitativa. A qualidade que, na verdade, deixa as marcas que perpassam todos os relatos e depoimentos que ilustram o percurso das realizaes. Nesse aspecto, ressalta a fora agregadora de Magda Soares, que sabe to bem partilhar e compartilhar experincias, o que certamente a habilita para o exerccio de uma saudvel liderana que promove o debate, a reflexo e possibilita os deslocamentos e as aes que resultam em prticas verdadeiramente educativas, j que so inspi-radoras. Apenas esse trao j seria suficiente para exaltar a alegria do convvio com Magda Soares, j que o trabalho tambm pode ser momento

    de confraternizao. Essa herana uma marca dos vrios grupos de trabalho que se formaram e se formam sob sua inspirao.

    Surge, ento, um outro dilema que envolve essa iniciativa de home-nagear: em funo desse trao agregador, no faltam vozes para realizar a ao. Assim, o contedo aqui apresentado apenas uma amostra de um sentimento de gratido seguramente referendado por muitos outros que tiveram e tm o privilgio de interagir com a Magda Soares, atravs dos seus textos e nas suas mltiplas facetas. As palavras produzidas por Aparecida Paiva sintetizam uma avaliao partilhada:

    "Magda Soares, mineira de Belo Horizonte, rene em sua trajetria, tal como o prprio Estado natal, uma multiplicidade de facetas difceis de serem abordadas isoladamente: uma das nossas maiores reservas intelectuais e ticas; uma professora mpar, uma pesquisadora incansvel, uma referncia nacional reconhecida internacionalmente; uma pedra preciosa, lapidada ao longo de mais de cinco dcadas de dedicao Educao. Seu comprometimento com o ensino da Lngua Portuguesa, desde o incio de sua carreira profissional, sua atuao na rea peda-ggica, vem encontrando sustentao na sua produo acadmica, que, ao caminhar, se reconstri, se refaz, luz de novas indagaes e novas pesquisas. Desse modo, inevitvel que sua obra no se limite ao efeito de um trabalho ou uma ao pontual, porque sua marca o constante movimento, a ao cotidiana transformadora da prtica, o respeito e a sintonia com as demandas sociais".

    Magda, parabns nesta e em outras datas queridas...

    Isabel Frade, GIlcIneI carvalho e ZlIa versIanI

    A Professora Magda Soares uma acadmica (re)co-nhecida entre professores em exerccio. uma pesquisadora e uma pensadora da educao que tem trabalhado com rigor em torno de conceitos voltados educao na rea da lin-guagem e que, ainda assim, produz discursos que dialogam com professores, a ponto de serem por eles apropriados.

    Parece-me que isso se deve a uma virtude fundamental do trabalho intelectual da Professora Magda: produz-se na reflexo rigorosa, mas no tira a legitimidade da escola como inter-locutora; dentro de um enquadramento de valorizao da escola, produz suas perguntas. Dois bons exemplos: a discusso sobre o tema da "esco-larizao" e os caminhos que tomaram suas discusses sobre letramento e alfabetizao. Quanto ao primeiro, no meio acadmico, produziu-se historicamente uma conotao negativa do adjetivo escolarizado. Ora, vem a Profa. Magda e declara com a maior naturalidade que o que se faz na escola escolarizado, o que no necessariamente ruim. E prope que se pense: o que uma boa e o que uma m escolarizao?

    Quanto ao tema da alfabetizao e do letramento, ela uma das grandes difusoras do debate sobre letramento. Mas isso no a leva a trivializar a alfabetizao. Mais importante, nota-se em seus escritos uma observao constante dos efeitos da leitura desses termos pelos atores na escola, de tal modo que ela mesma trata de recuperar a importncia de se falar em alfabetizao e de se refletir sobre como alfabetizar letrando.

    Isso, a ponto de ter escrito, em 2008, um texto cujo ttulo pergunta: "O que funciona na alfabetizao?". No est a uma bela pergunta de professora? A resposta e a complexidade da reflexo tm fortes conotaes acadmicas, mas a formulao do problema legitima uma pergunta de professor; quem est na sala de aula com estudantes quer saber o que funciona na sala de aula!

    Outra razo para sua importncia est em no se ter furtado a algumas tarefas importantssimas no cenrio da educao bsica, como a participao no debate pblico, at mesmo oficial, sobre os investimentos em educao. A Professora Magda esteve envolvida na gesto e criao de alguns dos nossos mais importantes programas pblicos de investimento em Educao, como no PNBE e no PNBE do Professor; j se fez ouvir at mesmo na UNESCO.

    Quanto aos livros didticos, as colees de autoria dela configuram um discurso positivo, que pode ser compreendido em suas relaes com prticas emancipatrias e produtivas de ensino-aprendizagem de maneira muito mais direta e concreta do que nossos discursos conceitu-ais. Trabalho nos estgios de docncia em Lngua Portuguesa, e faz uma enorme diferena mostrar aos estagirios uma coleo como Portugus: uma proposta para o letramento e com eles discutir uma materializao coerente do que acreditamos ser uma boa pedagogia da lngua.

    Enfim, acho que Magda Soares tem importncia no cenrio da educao bsica porque se construiu como uma professora-pensadora; essas identidades no se dissociam na sua produo e nas suas aes. Essencialmente por isso, professores do presente e do futuro reconhecem e reconhecero seu legado.

    Qual a importncia de Magda Soares......no cenrio acadmico da educao brasileira?

    ...no cenrio da educao bsica brasileira?

    Na ltima Reunio Anual da ANPEd, a professora Magda Becker Soares foi agraciada com a "Estatueta Paulo Freire", uma homenagem que reconhece sua im-portncia no desenvolvimento da educao brasileira.

    Na dcada de 70, li uma pequena entrevista de Magda em uma revista semanal. Cruzava a noo de classe social com a de apropriao da norma culta. Desde l, punha na agenda de suas reflexes e estudos a dupla necessidade:

    uma interdisciplinaridade (no caso, Educao, Sociologia e Letras) e uma intencionalidade que no encarcerasse a teoria nos limites da academia. Agora, j nesta segunda dcada do sculo XXI, uma entrevista dada pela professora Magda a outra revista da rea evidencia essa coerncia recheada de uma maturidade e clareza impressionantes quanto a vrios desafios da educao.

    Eu a conheci pessoalmente como diretora da Faculdade de Educao, convidado que fora como professor colaborador da mesma instituio, inclusive para reforar o Programa de Ps-graduao. Logo nos infor-mou que estava deixando a direo da Faculdade para se dedicar a uma reformulao do Programa de Ps-graduao, tendo em vista a democratizao da escola. A vontade de dar um perfil ps-graduao que articulasse a teoria e a prtica ganharia um espao institucional para que no s se interpretasse a educao: era preciso transform-la. Aos poucos, a professora Magda foi fazendo escola em torno da escola. Foi fazendo escola em torno da alfabetizao e do letramento. E ns fomos aprendendo com ela que o futuro da ps-graduao poderia combinar pro-jetos autnomos dos estudantes com a capacidade intelectual instalada.

    A ideia de Magda de um centro que articulasse uma radiografia da reali-dade escolar com uma rigorosa leitura terica das experincias auscultadas necessitava de um polo institucional mais gil e focalizado. Hoje, o Ceale, cuja criao se deve ao protagonismo da professora Magda, se impe no cenrio acadmico nacional como referncia obrigatria para novos estudos e pesquisas. Mas essa referncia no parou por a. Saiu, virtuosamente, do crculo acadmico. Aos poucos, a pesquisa e a docncia se fizeram extenso.

    No toa que a UFMG reconheceu o protagonismo universitrio da professora por uma atuao que soube associar ensino/pesquisa/extenso. Foi ela agraciada com o prmio FUNDEP. A Faculdade de Educao tambm reconheceu sua atuao na seara acadmico-edu-cacional, conferindo-lhe o ttulo de professora emrita.

    Pessoa sria e rigorosa na academia, afvel e aberta ao dilogo, foi convidada nos idos dos anos de 1980 a ser presidente de rea com a rdua tarefa de conduzir a avaliao dos programas, avaliar pedidos de bolsas para o exterior e visitar programas em processo de consolidao. Convidada para vrios Conselhos, para consultorias, para bancas, no descuidou da produo bibliogrfica voltada para o professor atuante na escola e carente de apoios slidos. Teoria e prtica continuaram a ser trabalhados junto aos prprios docentes em uma ao em que o para com se fez junto com.

    Editorial

    Isabel C

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    - Professores da Faculdade de

    educao da UFM

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    o - Professora da Faculdade

    de educao da UFM

    G, pesquisadora e diretora do C

    eale

    Reitor da UFMG: Cllio Campolina Diniz| Vice-reitora da UFMG: Rocksane de Carvalho Norton|Pr-reitora de Extenso: Efignia Ferreira e Ferreira |Pr-reitora adjunta de Extenso: Maria das Dores Pimentel Nogueira

    Diretora da FaE: Samira Zaidan|Vice-diretora da FaE: Maria Cristina Soares Gouva|Diretora do Ceale: Maria Zlia Versiani Machado | Vice-diretora do Ceale: Isabel Cristina Frade

    Editores Pedaggicos: Gilcinei Carvalho e Isabel Cristina Frade |Editora de Jornalismo: Ceclia Lana (13409/MG)|Projeto Grfico: Marco Severo|Diagramao: Daniella Salles

    Reportagem: Ana Carolina Martins, Bianca de Andrade Martimiano, Ceclia Lana, Jlia Pelinson, Laura Ribeiro Arajo e Lorena Calonge| Reviso: Lcia Helena Junqueira

    Expediente

    O Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita (Ceale) um rgo complementar da Faculdade de Educao (FaE) da

    Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antnio Carlos, 6627 - Campus Pampulha - CEP 31 270 901 Belo Horizonte - MG Telefones (31) 3409 6211/ 3409 5334

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    EnviE suas crticas E comEntrios EquipE do LEtra a. EscrEva para [email protected] ou LiguE (31) 3409-5334.

    CaRlos Ro

    beRto JaM

    Il CURy - Professor

    emrito da Faculdade de educao da UFM

    G

    Troca de Ideias

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    es - Professora e pesquisadora ligada ao Program

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    Ps-Graduao em

    letras na rea de lingustica aplicada da U

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    Foto: acervo pessoal

    Foto: acervo pessoal

    Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - ano 8 - Edio Especial 3 Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita - Faculdade de Educao/UFMG 2

  • Eterna MestraMarcas na formao e na trajetria de duas professoras

    Falar de Magda falar da fora de seu trabalho em nosso processo de formao. Ela entrou em nossa vida por caminhos diferentes.

    Eu, Maria Angela, a conhecia de nome, e a vi, pela primeira vez, no ptio do Colgio de Aplicao, final dos anos 60. A convite de Alade Lisboa de Oliveira, professora de Metodologia da Alfabetizao, Magda iria falar para nossa turma de normalistas. Os olhos esverdeados, o cabelo puxado por um leno ou uma tiara de tecido, muito jovem e bonita, Magda discorria de modo suave, porm incisivo, sobre leitura e escrita. Nos anos seguintes, cursando Letras na FALE/UFMG, ainda no teria o privilgio de t-la como professora, mas bebia cada uma das orientaes da sua "apostila" Didtica de Portugus. Como professora de portugus, nutria-me com as propostas contidas na sua coleo de didticos, Portugus atravs de textos, obra muito adotada em escolas de BH e que mudaria os rumos do trabalho com o texto. Nos anos 1970, morando no Rio de Janeiro e lecionando na rede pblica, fui testemunha mais uma vez da competncia da nossa mestra, discorrendo a respeito de seu novo trabalho, Comunicao em Lngua Portuguesa, para um auditrio repleto de professores. Todos queriam conhecer a autora de uma obra cuja proposta fomentava as discusses nas salas de professores e nas reunies de coordenao de lnguas, nas escolas. De volta a BH, inserida no Programa de Ps-graduao da FaE/UFMG, tive, finalmente, a oportunidade de conviver mais de perto com Magda, de quem me tornaria no s amiga, mas aluna e orientanda.

    J eu, Graa, no tive o privilgio de ser aluna da Magda. Eu fui/sou a aluna virtual, no presencial. Formei-me trabalhando com os livros didticos dela, lendo a produo acadmica, sendo aluna dos alunos dela, como o professor Edson Nascimento Campos, e convivendo com alunos dela, como Maria Angela. Nesse sentido, ela foi minha "Mestra distncia".

    De fato, a admirao por Magda crescia medida que tambm viven-civamos, pela prxis, o trabalho com a lngua, a linguagem e os textos. Professoras da rede municipal de Belo Horizonte, trabalhamos durante alguns anos com o Novo portugus atravs de textos, coleo de didticos que inaugurava uma perspectiva discursiva da lngua, tendo a sociolingus-tica e a lingustica textual como vetores do trabalho com a diversidade de gneros e de usos da lngua. A opo por essa abordagem nos impulsionava para uma ao docente reflexiva, cujo fundamento levasse em conta o que mais nos impressionava em Magda: o dilogo e a interao entre saberes e agires. Quando veio a ideia de elaborar um material didtico, em parceria, dedicamos nosso trabalho a ela, como reconhecimento por tudo o que Magda significou para ns e que considervamos o seu maior legado: a capacidade de ler no somente o mundo, mas o tempo, as pessoas e suas possibilidades, na transversalidade das diferenas e no questionamento do estabelecido.

    Impossvel escrever sobre a Magda sem voltar a 1962, em Belo Horizonte. Rua Carangola, que abrigava o prdio grande e moderno da FAFICH e, pertinho, o pequeno e antigo, do Colgio de Aplicao.

    No prdio grande e moderno, no curso de Licenciatura, conheci e nunca mais esqueci a professora de Didtica Especial de Portugus, primeira vista simptica, culta e competente. Somente primeira vista. Poucos, pou-qussimos dias de convvio bastaram para que ela se revelasse mais que isso. Muito mais.

    Seus olhos expressivos, sua voz clara e sua fisionomia iluminada enriqueciam nossas manhs universitrias de-monstrando, com imensa simplicidade, que o magistrio, mais que uma profisso, podia ser uma misso.

    Ao mesmo tempo, no prdio pequeno e antigo, conheci e nunca mais esqueci a professora que, rosto sereno, olhos atentos e encorajadores, acompanhava, pacientemen-te, do fundo da velha sala de aula, meus primeiros, indecisos e imprecisos passos de estagiria. Estagiria pretensiosa que sonhava, um dia quem sabe? - seduzir e emocionar os prprios alunos, imagem e semelhana da Mestra.

    O exerccio da paixo serenaPor causa dela, desisti de ser professora. O ano era 1969. Era o quarto e ltimo do curso de

    Letras da UFMG, quando faramos as chamadas "matrias pedaggicas" pra obter a licenciatura.

    Meu curso era de Portugus "puro" (sem uma lngua estran-geira), e minha turma tinha oito aulas por semana com a Magda, quatro de Didtica Geral, quatro de Didtica de Portugus (e logo isso viraria motivo de "inveja" das outras turmas...).

    Como tantas e tantas turmas anteriores, cumprimos o "roteiro-padro": samos da poesia e do encantamento das matrias literrias dos trs primeiros anos pra mergulhar na Geografia do subdesenvolvimento, livro de Yves Lacoste que foi nossa primeira leitura no curso. Na esteira dele e de tantos outros, toda uma conscientizao sobre o que significava ser professor numa escola como a nossa, num pas como o nosso, naquele nosso tempo.

    No havia poesia: pela mo da Magda, a realidade ia se tornando concreta, urgente. Ela avanava e nos levava junto, o olhar atento, amoroso: parecia enxergar alm de ns sem nos perder de vista. Sabia ver e extrair e respeitar o melhor de cada um. Era nossa cmplice, e sua entrega era inteira, intensa, apaixonada. E serena, porque olhava de Sirius, percebia a dimenso das coisas. Pela mo dela,

    snIa JUnqUeIRaeditora e escritora de livros para crianas

    GRaa sette e MaRIa anGela PaUlIno t. loPesescritoras; autoras de Para ler o mundo

    vIvIna de assIs vIanaescritora de livros para crianas

    as pessoas interagem, atravs da leitura e da escrita. No lugar dos antigos mtodos, que ensinavam apenas a "codificar" e a "decodificar" palavras, instigando os prin-cipiantes a uma desaprendizagem dos usos e das funes sociais da lngua escrita, temos lutado por reinventar nossas metodologias de alfabetizao.

    Depois da grande difuso de certos enfoques tericos, que priorizavam explicaes sobre como a criana aprende, sem se deter no exame do como ensinar, a atual reinveno da alfabetizao requer que, levando em conta a faceta lingustica do objeto (escrita alfabtica), busquemos so-lues didticas que auxiliem o aprendiz a, efetivamente, aprender a tecnologia-alfabeto, ao mesmo tempo em que a utiliza na leitura e na produo de textos.

    corresponde uma concepo de indivduo alfabetizado. Se, na dcada de 1950, o censo brasileiro passou a identificar como alfabetizada a pessoa que dizia saber ler e escrever um bilhete simples, no final daquele sculo, comeamos a conceber que alfabetizado o cidado que, por dominar a tecnologia que a escrita alfabtica, consegue ler e produzir gneros textuais escritos, nas prticas sociais nas quais so empregados, no dia a dia.

    No bojo de to grande mudana, fomos chamados a reconhecer as especificidades e a indissociabilidade dos conceitos de alfabetizao e letramento e, sob essa nova perspectiva, passamos a defender que o ideal que a escola alfabetize letrando, isto , que ensine o sistema de escrita alfabtica, no contexto das prticas em que

    como os novos princpios de seleo textual que ento utiliza. Esses princpios rompem com uma seleo que privilegiava escritores do sculo XIX e uma forte presena lusitana. Entre o jornalismo e a literatura, a crnica vai fazer sua entrada na sala de aula e tornar-se um dos gneros de maior apelo didtico das ltimas dcadas do sculo passado.

    Os manuais para o professor apresentam os fun-damentos da proposta, quadros com os objetivos dos distintos componentes. Cada atividade vem acompanhada da explicitao de sua finalidade e de sugestes de en-caminhamento didtico. Tudo isso permite ao docente exercer um controle sobre o livro, pois entende as razes e os pressupostos que o orientam e pode assim tomar decises fundamentadas.

    A leitura, desde a dcada de 1980, ganha autonomia do texto, sendo tratada como um conjunto de habilidades de compreenso. O mesmo ocorre com a produo de textos, que passa de modelos retricos e baseados em tipos a modelos discursivos. Desde os anos 1970, a oralidade est presente nas propostas didticas.

    Apesar das rupturas, porm, h um mesmo princpio em operao, presente desde a primeira coleo. Como o texto a base da organizao das unidades que compem os livros, sua temtica serve de fio condutor para o conjunto das atividades propostas, o que impede que elas se tornem excessivamente abstratas, sem referncia para o aluno.

    Eu gostaria de ter feito uma pesquisa sobre o ensi-no de Portugus no Brasil utilizando como fonte central as colees da Magda, mas minha proximidade com ela desaconselhava a empreitada. Aproveito a ocasio desta co-memorao para mostrar a possibilidade e convidar outros pesquisadores menos envolvidos com a autora a realiz-la.

    Eu no poderia perder a ocasio para dizer tambm que, recm-formado, tive a sorte de comear minha carreira como professor de Portugus usando uma das colees da Magda, a "Novo Portugus atravs de textos", da dcada de 1980. Como a escola era nova, eu tinha turmas de 5a a 8a

    e estava sem dormir e em pnico. Foram os livros que me ensinaram a ser professor, com suas grades de objetivos de leitura, redao, gramtica, vocabulrio. Nunca mais parei de fazer os mesmos quadros, que imitava em folhas de papel almao coladas com durex. Eu formei minha biblio-teca de professor com as sugestes de leitura do livro. Eu me lembro dos textos de leitura. Sei alguns quase de cor: "foi quando muda de perplexidade vi o presente entrar em casa j comendo banana e jogando a casca onde casse" (Clarice Lispector, 6a srie). s vezes tinha a sensao de que as atividades eram como de algum que fazia poesia: adiar, procrastinar, protelar, retardar (8a, srie sinonmica)

    O livro me formou. Ele controlou minha ansiedade e minha necessidade compulsiva de fazer planejamento. Eu co-mecei a dormir. As ilustraes monocromticas eram lindas. Guardo os livros comigo. Guardo sempre Magda comigo.

    As concepes que adotamos sobre alfabetizao quer como campo de investigao, quer como prtica de ensino-aprendizagem , so histricas e vm passando por profundas transformaes. No primeiro mbito, o da pesquisa acadmica, aprendemos, desde os anos 1980, a tratar a alfabetizao como um fenmeno complexo, que merece ter suas distintas facetas (lingustica, socio-lingustica, antropolgica, psicolgica, psicolingustica, didtica etc.) finamente tratadas por cada uma das reas especializadas de conhecimento sob as quais estudada. Tal olhar sobre nosso fenmeno multifacetado, por sua vez, tem se revelado essencial para avanarmos na outra dimenso do que designamos como alfabetizao: a prtica social de ensinar e aprender a escrita alfabtica, qual

    Na organizao das disciplinas e em sua histria, os livros didticos desempenham um papel central, especialmente em contextos educacionais em processo de estruturao ou transformao. Isto ocorre porque os manuais objetivam concretamente as diretrizes abstratas da legislao e do curr-culo, bem como realizam uma ponte entre os princpios gerais que podem sustentar a formao inicial de professores e o senso prtico que s se constri na atuao em sala de aula.

    Na histria recente do ensino de Portugus no Brasil, a conscincia desse papel central do livro didtico esteve quase sempre obscurecida. A exceo obra de Magda Soares. Poucos professores universitrios produziram co-lees didticas com to forte preocupao com a formao do docente e como forma deliberada de introduzir inovaes pedaggicas relevantes para o aprendizado da lngua.

    Uma anlise sistemtica das cinco colees (e um ma-nual de redao) revelaria um conjunto de permanncias e rupturas que permitem caracterizar o ensino de Portugus entre a dcada de 1960 e hoje . Revelaria tambm, ainda, solues que progressivamente so incorporadas por ou-tros manuais, tornando-se parte do ensino da disciplina.

    A ideia de que se ensina a lngua atravs de textos uma dessas solues que rapidamente se difundem. Rapidamente tambm se difunde o esquema de organizao de sequncias didticas planejado em torno do estudo do texto, da gramti-ca e da redao, apresentado por sua primeira coleo, bem

    Alfabetizao

    Ensino de Portugus

    a gente aprendia a pensar, a perguntar, a procurar. A ler o texto e o mundo. Ela nos ouvia, sempre. E acreditava, e insistia. E a gente tambm se procurava, se descobria. No havia poesia, mas havia beleza.

    Descobri: ser professor isso, essa entrega, essa paixo, essa inteireza. ter o ensino como misso e nunca, nunca mesmo, se afastar desse propsito. Percebi tambm que ser professora, pra mim, s valeria se fosse daquele jeito, do jeito dela.

    E eu soube, naquele ano, que no abraaria a profisso.Algum tempo depois, j morando em S. Paulo, foi por

    uma dica da Magda que acabei encontrando o objeto da minha paixo (nunca serena, mas paixo...): a edio, principalmente, e a escrita de livros pra crianas. E nunca, nunca mesmo, me afastei disso.

    Como no me afastei dela a mestra, o exemplo, a referncia. Acima de tudo, a amiga. Que at hoje, de vez em quando, me ensina, pra vida e pro texto, como no primeiro trabalho, 43 anos atrs, uma existncia inteira!: "o que voc escreveu depois do travesso no tem a ver com o que escreveu antes". E eu, agradecida, corro atrs de criar elos entre o antes e o depois dos meus travesses.

    Tanto tempo passado, recebo, aqui em So Paulo, um convite honroso: lembrar a Mestra.

    Nada mais fcil. Nada mais fcil que lembrar algum sinnimo de simplicidade, seduo, clareza, emoo, simpatia, cultura, competncia, serenidade, coerncia, alegria, coragem. Generosidade.

    H alguns anos, a convite de Snia Junqueira, Magda Soares escreveu e assinou, generosamente, o prefcio de um livro que Ronald Claver, outro ser privilegiado (tambm foi seu aluno) e eu acabramos de escrever.

    Ao ler aquele prefcio que afirmava - com conheci-mento de causa - que Ronald e eu havamos dado conta de nossa lio de casa, tive duas certezas.

    A primeira me dizia que, se tudo aquilo era verdade, no fazamos tanta vantagem assim: com uma Mestra daquelas, uma eterna Mestra, o esperado era que tivssemos aprendi-do a ler, a escrever, e sobretudo a pensar razoavelmente.

    Minha segunda certeza me dizia e me diz, a cada relei-tura daquele prefcio, que emoo no mata. Nem saudade.

    ClassificadosDicionrio da alfabetizao

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    Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - ano 8 - Edio Especial 5 Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita - Faculdade de Educao/UFMG 4

  • Dona de uma produo terica de peso, a professora Magda Soares nunca deixou de refletir sobre os desafios do ensino pblico brasileiroLegado acadmico

    por laura rIbeIro arajo

    O termo "letramento" passou a integrar o vocabulrio dos professores brasileiros a partir do fim do sculo XX, momento em que cresceram as taxas de escolarizao da populao. Uma vez que o ensino ampliou sua rea de influncia para outras ca-madas da sociedade, os cidados passaram a desejar algo mais do que apenas decifrar palavras: redigir documentos, interpretar recados, traduzir bilhetes e ofcios. Todas essas necessidades passaram a exigir a aplicao social do cdigo escrito.

    Como Magda Soares descreve em Letramento: Um Tema em Trs Gneros, dissociar a alfabetizao do letramento na prtica do ensino pode at formar alunos que sabem ler e escrever, mas eles provavelmente encontraro dificuldades para desenvolver hbitos de leitura de jornais, revistas e livros, bem como habilidades para interpretar textos e redi-gir diferentes gneros textuais. Para Magda, o ideal seria a prtica do alfabetizar letrando, que corresponde a ensinar a ler e a escrever sem perder de vista o contexto das prticas sociais de leitura e escrita e sua aplicao no dia a dia. "A ideia entender que alfabetizao e letramento andam juntos, e que esse caminhar comea na educao infantil", explica a professora da Universidade Federal de Pernambuco Ana Carolina Perrusi, que viu em Magda uma referncia para si.

    Em Alfabetizao e Letramento, publicado em 2003, Magda Soares faz uma releitura de seus artigos publicados ao longo de um perodo de 13 anos. No conjunto dos textos, destaca-se a concepo defendida por Magda de que o aprendiz, sujeito ativo no processo da alfabetizao, quem define seus proble-mas e, vido por respostas, descobre as possveis solues. Trata-se de uma crtica aos mtodos tradicionais de ensino, que consideram a criana como passiva no processo da aqui-sio da lngua escrita e que, alm disso, partem da premissa de que o aluno precisa atingir determinados estgios para a aprendizagem. como se, para que possa ser alfabetizada, a criana tenha que ter atingido certa "maturidade" cognitiva. Segundo Magda, a consequncia direta dessas teorias mais tradicionais que qualquer dificuldade que surge no processo de alfabetizao entendida como deficincia do aprendiz.

    O mais conhecido dos textos reunidos em Alfabetizao e Letramento , sem dvida alguma, o artigo As mltiplas facetas da alfabetizao, publicado originalmente em 1985. Para a especialista em Histria da Educao e vice-diretora do Ceale, Isabel Cristina Frade, o artigo pode ser considerado um clssico, tanto pela originalidade quanto pela inaugurao de um campo epistemolgico para a alfabetizao. "Nesse texto, a alfabetizao, tratada at ento como uma questo metodolgica e com forte nfase na psicologia, apresentada por Magda como fenmeno complexo, envolvendo vrias reas de conhecimento e dimenses lingusticas, antropol-gicas, sociolgicas, pedaggicas, dentre outras. A abordagem original do tema situa o campo de pesquisa sobre alfabetiza-o na fronteira multidisciplinar e integrada", explica Isabel.

    Com extensa produo terica e didtica, Magda Becker Soares uma referncia no campo dos estudos educacionais. Dentre seus livros publicados, h destaque especial para os ttulos Letramento: Um Tema em Trs Gneros (1998), Linguagem e Escola (1986) e Alfabetizao e Letramento (2003), que discutem temas como alfabetizao, letramento, fracasso escolar e bidialetalismo. Ao que tudo indica, as principais ideias defendidas pela pesquisadora nessas obras ainda permanecero atuais por muito tempo.

    alfabetizar letrando

    Crianas aprendem ativamente

    Clssico

    Perspectiva social

    Colees didticas de Magda Soares inauguraram, no Brasil, a concepo de ensino da lngua a partir de seus usos sociais

    Um outro tipo de aula de Portuguspor bIanca de andrade MartIMIano

    Crnicas, histrias em quadrinhos, reportagens, entrevistas. Esses so alguns dos gneros textuais que Magda Becker Soares trouxe para o livro didtico nas dcadas de 1960 e 1970. H muitos anos, ela defende a importncia desse tipo de livro como ferramenta de ensino e discute as possibilidades didticas que ele oferece. Ao todo, Magda j publicou cinco colees de livros didticos: Portugus atravs de textos (1967), Comunicao em Lngua Portuguesa (1973), Novo Portugus atravs de textos (1982), Portugus atravs de textos coleo reformulada que foi publicada na dcada de 1980 com o mesmo ttulo da primeira edio e Portugus: uma proposta para o letramento (1999).

    Todas as colees tiveram boas crticas, mas a primeira continua sendo a de maior destaque e vendagem. Desde sua publicao, Portugus atravs de textos foi considerado um diferencial no mercado de livros didticos. Segundo Geraldo Uduvaldo Fernandes, editor de livros didticos da Editora Moderna entre os anos de 1980 e 2009, "esse livro rompeu com a tendncia de se ensinar apenas a norma culta".

    Apesar de as primeiras colees terem sido publicadas h algumas dcadas, elas so utilizadas por professores ainda hoje. "Durante o ano letivo, gosto de adotar diferentes livros e as colees da Magda so uma referncia para mim. Fao questo de retornar sempre a esses livros para trabalhar algum texto ou unidade", conta o professor do Centro Pedaggico da UFMG, Luiz Antnio Prazeres.

    A professora do primeiro ciclo Cristiane Nri Horta costuma adotar colees de livros didticos da professora Magda Soares para guiar suas aulas e est bastante satisfeita com os resultados. Ao realizar o trabalho de leitura e compreenso de um texto que tinha como ilustrao a tela de um pintor famoso, Cristiane resol-veu seguir o conselho que Magda dava no manual do professor: buscar informaes sobre a vida do artista e sobre o museu onde a obra estava exposta. "A pesquisa de informaes sobre o pintor me deu a oportunidade de trabalhar um novo gnero textual com os alunos: a biografia". Alm disso, Cristiane organizou uma visita virtual ao museu que abrigava a pintura. "O quadro foi o ponto de partida para o trabalho de produo de texto. Inspirados por essa atividade, os alunos comearam a buscar informaes sobre outros pintores e suas obras. Todos ficaram muito interessados nas aulas", conta a educadora.

    Nas dcadas de 1940 e 1950, a legislao pontuava regras especficas para o programa didtico de Lngua Portuguesa. "A maior parte das colees de livros didticos partia da hiptese de que ensinar a lngua seria ensinar a norma culta, sem levar em conta dialetos, emprstimos lingusticos e variaes", conta Geraldo Fernandes. Segundo ele, naquela poca, a compreenso leitora era centrada na aprendizagem do vocabulrio e da gramtica, e a produo de texto era realizada a partir de temas descontextualizados: "A maioria das colees adotava textos fragmentados de autores literrios, escolha que no privilegiava uma compre-enso profunda por parte do aluno. A finalidade do ensino no era comunicativa, mas voltada para o desempenho no registro da norma culta aprendida".

    Tendo-se em mente esse cenrio, pode-se compreender a revoluo que a chegada dos livros de Magda Soares representou para o mercado editorial. Quando lanou seu primeiro livro, na dcada de 1960, Magda inaugurou uma nova concepo de ensino da lngua. Suas produes ofe-reciam ensinamentos sobre lingustica, semntica, estilos e registros de poca e funes comunicativas dos diferentes textos em circulao na sociedade. A compreenso era trabalhada de maneira mais reflexiva e a gramtica e as produes de texto, de forma contextualizada.

    Segundo a doutora em Educao Maria Paula Parisi Lauria, que pesquisou a produo de livros didticos de Portugus ente 1940 e 2000, uma tendncia importante trazida por

    nova concepo de ensino

    Inspirao

    Magda Soares foi a elaborao de manuais para o profes-sor, ferramenta pouco adotada pelas colees da poca: "Certamente, os manuais tornaram a coleo mais completa. Eles eram uma inovao ligada concepo de lngua que Magda inaugurou", analisa. O professor Luiz Prazeres conta que, ao folhear os manuais do professor criados por Magda, era possvel perceber a preocupao com a capacitao e a formao dos docentes: "Foram esses manuais que me en-sinaram metodologias de ensino, aprendizagem e avaliao".

    Quando lana a coleo Comunicao em Lngua Portuguesa, na dcada de 1970, Magda e o coautor do livro, Adilson Rodrigues Pereira, explicitam a adoo de uma concepo do ensino de Portugus orientada por uma perspectiva da comunicao, ou seja, com destaque para os usos sociais da lngua. "A linguagem passou a ser vista de uma maneira mais prxima da realidade, como comunicao. Alm disso, estvamos preocupados em formar um aluno que fosse dotado de esprito crtico", afirma Adilson Rodrigues.

    Profissionais que j trabalharam com as colees de Magda destacam a preocupao da educadora em estimu-lar o professor a no se limitar s ferramentas do livro didtico, mas a buscar outros recursos de ensino. "Muitas vezes, os professores ficam presos ao livro-texto, do pri-meiro ao ltimo dia de aula. A produo de Magda convida o professor a buscar outros materiais e atividades", conta o professor da PUC Mauro Passos, que j adotou esses livros didticos em suas aulas no Ensino Fundamental.

    pergunta "voc sabe ler e escrever?" e formulado algumas crticas: Responda "sim" e se juntar s fileiras dos chamados alfabetizados. Responda "no" e ser considerado analfabeto. As estatsticas obtidas no refletiro todo o espectro de habilidades envolvidas nas competncias de leitura e escrita.

    Novamente, Magda tem dado importantes contribuies para esse debate por meio de um projeto desenvolvido no municpio de Lagoa Santa. O objetivo do trabalho evitar a dicotomia entre alfabetizao e letramento e enfatizar prticas de linguagem dialgicas, como a produo de livros pelos prprios alunos, a reescrita de clssicos da literatura e o trabalho com diferentes gneros textuais.

    Um problema terico fundamental est na prpria definio de alfabetizao. Quando produzimos estatsticas sobre alfabetizao, uma pergunta central pede resposta: o que essa alfabetizao que vem sendo analisada e medida?

    Foi essa reflexo sobre a terminologia que levou, no Brasil, ao reconhecimento de que o termo "alfabetizao" no compreendia plenamente as complexidades necessrias para avaliar e medir "o que a alfabetizao". O termo "letramento" levava a uma viso mais sofisticada. Algumas instituies ligadas UNESCO tm apoiado essa viso. Por exemplo, o LAMP [sigla que, em portugus, significa Programa de Anlise e Monitoramento da Alfabetizao] tem feito a

    Devo a Magda muito de minhas reflexes em torno do termo "letramento", pois fao uso desse conceito para me concentrar mais nos processos que envolvem os usos da leitura e da escrita em situaes sociais do que nas limita-das habilidades do uso tradicional do termo "alfabetizao".

    No 33 encontro anual da ANPEd, participei de uma mesa com um companheiro que argumentou que o termo "al-fabetizao" poderia ser empregado em ambos os sentidos para designar habilidades especficas de leitura e escrita ou usos sociais mais amplos. Escolhi desafiar essa viso e acabei recorrendo ao trabalho de Magda Soares. Em 1992, em um encontro anterior da ANPEd, ela havia argumentado:

    Contribuio para o campo da alfabetizao bRIan stReet Professor titular de linguagem na educao do Kings College da Universidade de londres e pesquisador visitante do Ceale

    tRadUZIdo PoR laURa RIbeIRo aRaJo

    Os problemas da educao nas camadas populares brasileiras sempre motivaram os questionamentos de Magda Soares. Em 1986, ela publicou Linguagem e Escola Uma Perspectiva Social, livro no qual apresenta temas relativos ao fracasso escolar e s diferenas lingusticas e discute possveis solues para o problema.

    A teoria do fracasso escolar proposta por Magda encon-tra apoio em sua prpria afirmao de que "a escola existe antes contra o povo do que para o povo". O argumento for-talecido pelas altas taxas de repetncia e evaso na escola, o que revela que "os que conseguem entrar na escola, nela no conseguem aprender, ou no conseguem ficar". No centro dessa questo, Magda destaca com especial importncia o papel da linguagem: " a linguagem o principal produto da cultura, e o principal instrumento para sua transmisso". Segundo a autora, muito alm de uma tarefa tcnica, ensinar a lngua tambm uma questo poltica. Nas palavras de Magda, papel do educador ter o "compromisso com a luta contra as discriminaes e as desigualdades sociais". Ela acredita que a aceitao das vrias formas de linguagem dentro de sala de aula ajuda a diminuir as diferenas sociais.

    Artur Gomes de Morais, professor titular do Centro de Educao da Universidade Federal de Pernambuco, afir-ma que a teoria do bidialetalismo, bastante discutida por Magda, um norte para qualquer ensino de lngua materna que pretenda reduzir as desigualdades sociais e promover o respeito pela fala dos alunos das camadas populares. "Ainda nos dias de hoje, o ensino de anlise lingustica demanda o uso do conceito de bidialetalismo. Ele de suma impor-tncia para repensar a maneira como a norma lingustica de prestgio tratada ao lado das variedades populares usadas pelos alunos em sala de aula", diz o pesquisador.

    O Tema Livro na Roda

    Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - ano 8 - Edio Especial 7 Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita - Faculdade de Educao/UFMG 6

  • Ex-orientandos falam sobre personalidade engajada, paciente e atenciosa de Magda Soares

    Orientadora de caminhosTrs lies que aprendi com Magda Soares

    por jlIa pelInson

    De modo geral, Magda iniciava as orientaes com uma srie de encontros coletivos, dos quais participavam vrios orientandos. O objetivo das reunies era fazer com que os alunos, aos poucos, conseguissem delimitar o que iriam investigar em suas pesquisas. Um de seus alunos da ps-graduao entre os anos 1987 e 1996, o atual pesquisador Antnio Augusto Batista, lembra como Magda enfatizava a importncia de se definir bem o objeto de estudo: "Ela brincava dizendo que deveramos ser capazes de resumir o tema da nossa investigao rapidamente, em uma conversa de elevador, entre um andar e outro".

    Uma vez que os orientandos j sabiam exatamente o que iriam estudar, a professora lhes dava grande liberdade para desenvolver a pesquisa e escrever. Magda estava sem-pre disposta a ouvir perspectivas diferentes e a dialogar, como afirma a orientanda da dcada de 1990 e hoje pro-fessora da UFMG, Mnica Correia: "Ela no impunha nada, sentamos que a construo do pensamento era coletiva".

    Ao longo de sua trajetria profissional, Magda Soares orientou mais de 60 alunos em dissertaes de mestrado e teses de doutorado. Quando param para falar de Magda e relembrar os velhos tempos, os ex-orientandos destacam a generosidade da professora para ensinar e a liberdade que ela conferia a cada um, para que desenvolvessem suas pesquisas da maneira que preferissem.

    Mtodo

    Muitos ex-alunos ressaltam como, desde o incio de sua atuao como professora e pesquisadora da UFMG, Magda sempre se manteve atualizada com relao a pesquisas internacionais na rea da Educao, em uma poca em que ainda no existia internet para facilitar as comunicaes. A ex-aluna Maria Mello Garcia, hoje professora do Instituto Superior de Educao Ansio Teixeira, conta que o contato com teorias estrangeiras era um diferencial para os alunos: "Estudvamos textos que sequer haviam chegado ao Brasil".

    Outra marca do ensino de Magda Soares eram as dis-cusses sobre educao que sempre tocavam em questes relativas realidade socioeconmica do Brasil. Seus alunos eram estimulados a perceber como o uso da leitura estava presente de maneiras diferentes no cotidiano de crianas de classes sociais distintas e a intervir diretamente na realidade. Professora aposentada da FaE/UFMG, Maria Therezinha Bedran conta que, na poca em que Magda orientou sua pesquisa, ela ajudou-lhe a "entender a si-tuao das camadas populares e os problemas que as crianas dessas camadas enfrentavam quando chegavam escola sem o domnio da linguagem considerada culta".

    Um dos aspectos mais destacados pelos antigos alu-nos a generosidade com que Magda ensinava e ouvia opinies, alm da disponibilidade, apesar da agenda sem-pre cheia. A professora aposentada da UFMG Avani Avelar Lanza relata um dos gestos atenciosos da orientadora: "Quando passvamos por Magda no corredor, ela abria um caderno onde guardava vrios bilhetes e entregava um para cada aluno. Os bilhetes continham dicas de lei-tura e ideias para nossa pesquisa". Orientanda de Magda entre 1988 e 1991, a atual pesquisadora do Ceale Maria Lcia Castanheira conta que a mestra acompanhava a evoluo dos alunos de forma bastante tranquila, aguar-dando o tempo que cada um levava para compreender a situao educacional no Brasil e conseguir iniciar seus prprios estudos. "Magda estava sempre interessada em entender as questes que trazamos para as orientaes e em provocar nossa reflexo", completa.

    O depoimento de Maria Antonieta Cunha, uma das pri-meiras alunas que Magda orientou no campo da leitura literria, resume o sentimento dos orientandos quanto maneira de Magda de ser e de trabalhar: "Ela foi uma inspi-rao extraordinria para minha carreira e para minha vida".

    Mestre atualizada e engajada acolhimento

    Produzir uma dissertao de mes-trado no algo fcil. Voc tem um referencial terico, faz a pesquisa e o seu tema surge. Mas na hora de redigir, voc se sente perdido. Eu escrevia, es-crevia e pensava ainda no isso o que eu quero. Foram muitas idas e vindas, e a Magda teve uma pacincia de J!

    Maria Terezinha Saad Bedran, orientada por Magda durante o mestrado (1989).

    Inicivamos o mestrado que-rendo salvar a educao do pas, querendo que nossa pesquisa fosse um holofote para a resoluo dos problemas educacionais. Magda nos ensinava que no era possvel que nosso estudo fosse um holofote, que poderia ser apenas uma das velinhas de um bolo e que, somando-se vrias velas, teramos um holofote.

    Francisca Izabel Pereira Maciel, orientada por Magda durante o mestrado (1994) e o doutorado (2001).

    Pouco antes de terminar a gra-duao, passei em um concurso para trabalhar como professora dos anos ini-ciais. A Magda sugeriu que eu fizesse um registro dirio do trabalho nessa es-cola e disse que me orientaria para que eu apresentasse uma proposta de mes-trado baseada nessa experincia. Foi ela quem me ensinou a olhar para a prtica pedaggica e problematiz-la.

    Mnica Correia Baptista, orientada por Magda durante o mestrado (1996).

    At hoje a Magda nos desafia a ver, na pesquisa, uma funo social, para que o conhecimento adquirido seja usa-do para resolver os problemas sociais.Isabel Cristina Alves da Silva Frade, orientada por

    Magda durante o mestrado (1993) e o doutorado (2000).

    O que eu escrevi nos agradecimentos da minha dissertao de mestrado, vale ainda hoje: Magda por ter tido a oportunidade de com ela conviver nesses anos de trabalho, pela maneira especial com que ela se fez e se faz presente.

    Maria Lcia Castanheira, orientada por Magda durante o mestrado (1991).

    s vezes eu ficava admirada em ver como, estando na academia, Magda era capaz de compreender to bem nos-sa prtica de professor em sala de aula.

    Maria Mello Garcia, orientada por Magda durante o mestrado (1992).

    Com a Magda, aprendi a conci-liar o dever do engajamento com algo que, na verdade, eu j tinha, mas que ela reafirmou em mim, que o gran-de prazer de buscar o conhecimento. Essa a relao dela com o conheci-mento, e essa a relao que deveria ser, sempre, a da Universidade.

    Antnio Augusto Gomes Batista, orientado por Magda durante o mestrado (1990) e o doutorado (1996).

    Eu j tinha doutorado em Letras, mas ainda queria conciliar esse curso com Pedagogia para fazer um trabalho de qualidade na rea da Educao. Foi assim que a Magda, generosamen-te, aceitou orientar meu mestrado em Educao sobre leitura literria.

    Maria Antonieta Antunes Cunha, orientada por Magda durante o mestrado (1986)

    Um dia antes da minha apresen-tao de mestrado, eu liguei pra ela perguntando se no nos encontrar-amos para repassar o contedo. Ela respondeu: Pra qu? Voc a pessoa que mais sabe sobre o tema!. Mas disse que, se eu quisesse mesmo encontr--la, tudo bem. Fui casa dela e ela me tranquilizou, me deixou mais segura.

    Avani Avelar Xavier Lanza, orientada por Magda durante o mestrado (1988).

    DEPOIMENTOS

    A primeira vez que tomei o avio para ir ao Brasil foi nos tempos do Collor. 1991? 1992? Como eu no tinha certeza de voltar um dia "ao pas do cruzeiro", guardei uma cdula como lembrana. E eu tinha razo. Quando voltei, o Brasil era o pas do real. Conheci, ento, um pas que os jovens de hoje no podem nem imaginar. Por outro lado, quando se trata de educao, os temas que discutamos e que nos inquietavam nesse tempo to distante, em que no tnhamos nem PISA nem Internet, nem tablets, ainda so os mesmos. Viagem aps viagem, vi a situao das escolas e dos professores melhorar, mas (no Brasil como na Frana) a questo continuava sendo democratizar o ensino, melhorar as interaes entre alunos e professores, em resumo, lutar contra o fracasso escolar.

    O avio estava atrasado. No aeroporto Charles de Gaulle, enquanto aguardava o embarque, li, pela primeira vez na vida, um livro inteiro em portugus. Era um pequeno livro, Linguagem e escola: uma perspectiva social, publicado em 1986. Eu tinha sido convidada a vir ao CEALE por Magda Soares e me sentia muito intimidada por encontrar uma professora universitria to famosa. Comeando a ler esse livro, descobri, assustada, que eu entendia tudo: Magda me fez acreditar que eu compreendia o portugus. Vinte anos depois, essa lembrana continua a me parecer inacredit-vel. Ela escrevia com perfeita clareza, eu concordava com tudo que ela expunha e me sentia "em casa" nessa lngua desconhecida. Minhas surpresas se relacionavam apenas ao "rumor da lngua". Num dicionrio, eu havia encontrado as palavras desconhecidas que se repetiam em todas as pginas ("crianas", "fracasso"), to estranhas aos meus ouvidos franceses. Desde essa experincia inaugural, as crianas permaneceram para mim como sendo "aqueles que gritam", pois a palavra me remetia a "criant", particpio presente do verbo "crier", em francs, que significa "gritar". J a expresso "fracasso escolar" me levava a pensar em barulho de vidro quebrado ou acidente rodovirio, pois eu me lembrava da palavra francesa "fracas", que tem esse significado. Na Frana, a palavra que usamos para fracasso "chec" e ela faz pensar sobretudo no "jeu dchecs", o jogo de xadrez, esse jogo silencioso onde no h vencedor sem vencido. Assim, lendo Magda, descobri duas coisas: que as explicaes para o fracasso escolar, no Brasil, eram semelhantes s da Frana, o que era tranquilizador. Ao mesmo tempo, eu entendia que as anlises tericas dos livros no me ensinariam a respeito das diferenas entre as escolas da Frana e do Brasil. Para conhec-las, eu teria que ir at as escolas. E foi o que eu fiz.

    Quando Magda me recebeu em Belo Horizonte, levou-me a um restaurante que hoje j no existe mais, o Mala e Cuia,

    onde descobri que a cozinha de Minas se parecia com a dos meus Alpes natais. Comer carne de porco com polenta, logo depois de descer do avio, isso tambm era tranquilizador. Magda falava francs como se tivesse feito seus estudos em Genebra, de onde saram tantos pesquisadores da rea da psicologia da criana. Fiquei sabendo, com surpresa, que eu estava enganada, mas ela me surpreendeu ainda mais quando comeamos a falar sobre salas de aula e profes-sores. Seus artigos de pesquisa, seus relatrios em ingls para organizaes internacionais, tudo que pude ler dela, depois disso, me impressionaram menos do que seu inte-resse pela realidade cotidiana da escola. Nos discursos dos acadmicos daquele tempo, os maus resultados da escola eram atribudos ignorncia dos professores, ignorncia, na verdade, da pesquisa. Eu j era bastante ctica em relao a essa ideia, pois era difcil atribuir aos pesquisadores os enormes progressos da alfabetizao ao longo do sculo XX: tratava-se, antes de tudo, do resultado do trabalho dos professores, facilitado por medidas sociais e polticas. Como eu fazia pesquisas e trabalhava tambm com formao de professores, tinha aprendido, por prudncia, a manter separadas essas duas partes de minha vida profissional. Eu pensava que haveria sempre um abismo entre, de um lado, as questes colocadas pelos pesquisadores e, de outro, os problemas que os professores tinham que resolver todos os dias. Magda me fez pensar que eu poderia, talvez, estar errada. Foi a segunda coisa em que ela me fez acreditar: que h uma maneira de fazer pesquisa que poderia se aproximar das realidades da sala de aula.

    E por isso que sempre gostei tanto de voltar ao CEALE. Eu voltava por causa da hospitalidade brasileira. Voltava tambm pelas amizades estabelecidas ao longo dos dias e, principalmente, para me revigorar. O CEALE foi para mim um lugar mtico e frgil, onde se imbricavam de forma natural o trabalho de pesquisa, o conhecimento sobre a sala de aula e as questes a respeito da forma-o de professores. Em outros centros universitrios, em Paris como em So Paulo, a segmentao das pesquisas especializadas (em psicologia, em lingustica, em didtica, em literatura, em sociologia, em histria) probe uma tal convergncia de saberes em torno do que hoje se chama de "letramento". Eu senti que era a incrvel cultura de Magda que possibilitava manter essa abertura. Essa con-jugao era singular demais para poder ser reproduzida com facilidade. Mas Magda me fez acreditar que aquilo que existia em algum lugar poderia tambm existir em outros.

    Como eu no tinha o ttulo de "Professeur duniversit", mas apenas o de doutora, no tinha o direito, na Frana, de orientar teses de doutorado.

    Magda, entretanto, enviou-me doutorandas para est-gio sanduche em Paris. Eu nunca soube o que ela esperava exatamente de mim, mas a terceira coisa em que ela me fez acreditar foi que eu saberia co-orientar pesquisas, mesmo que no tivesse o direito a isso.

    De minha parte, eu tinha certeza de que os projetos de tese eram bons, j que tinham sido aceitos por ela. Mas eu no era psicloga, linguista ou especialista em didtica; eu trabalhava com a histria da leitura escolar. Eu conhecia apenas a escola francesa e ignorava tudo a respeito das pedagogias de alfabetizao no Brasil. Pensei ento que Magda me confiava "suas meninas" para que eu cuidasse de sua sade, como faz uma madrinha por suas afilhadas exiladas por um ano em Paris. Eu me preocupava, ento, em que elas pudessem comer bem sem pagar muito por isso. Em relao alimentao intelectual, eu encontrava seminrios, eu as inundava de livros, de revistas, de artigos. Eu encontrava salas de aula em que elas pudessem fazer observaes, assim eu poderia ver a escola francesa atra-vs de seus olhos. Tudo isso visava prevenir os riscos de depresso que ameaam todos os brasileiros que so con-frontados ao frio, ao cu cinza, s longas noites de inverno.

    Tomei conscincia, muito tempo depois, que o artifcio de Magda era outro: em Paris, como as doutorandas no podiam mais se lanar ao campo de pesquisa para juntar cada vez mais dados, elas deveriam voltar ao que j tinham coletado, reler, anotar, coloc-los em ordem para redigir a tese. Eu tinha prometido que leria seus textos, pois acre-ditava que entendia o portugus escrito. Mas o portugus das alunas no era o de Magda e eu era obrigada a pedir esclarecimentos sobre tudo: sobre o objeto de pesquisa, o campo, a coleta de dados, suas escolhas, as entrevistas com os atores, suas referncias tericas. Cada uma deveria conseguir me explicar, em francs e em voz alta, o que ela esperava daquele projeto. Magda me provou assim que, das turmas de alfabetizao at o final dos estudos univer-sitrios, os alunos podem progredir graas a professores que no sabem muita coisa e entendem menos ainda, se estes tm realmente vontade de se instruir "em campo".

    E depois, Magda se aposentou, e eu tambm. Ela continua a ir at as salas de aula e eu tambm. Espero a publicao do seu novo livro com impacincia. Lendo Magda, continuarei a acreditar que a pesquisa terica e o conhecimento prtico do ofcio podem caminhar no mesmo passo. E continuarei a acreditar que entendo perfeitamente o portugus. inacreditvel, mas verdade. isso que voc para mim, Magda, inacreditvel, mas verdadeira.

    anne-MaRIe ChaRtIeR - doutora em Cincias da educao pela Universidade

    Paris v e pesquisadora do Instituto nacional de Pesquisas Pedaggicas da Frana.

    tRadUZIdo PoR CeRes leIte PRado

    PerfilAula Extra

    Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - ano 8 - Edio Especial 9 Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita - Faculdade de Educao/UFMG 8

  • Logo no incio da carreira, Magda idealizou e colocou em prtica um projeto desafiador: a criao do primeiro Colgio Universitrio dentro da UFMG, que ofereceria o ltimo ano do antigo segundo grau. Inaugurado em 1965, o Colgio tinha como meta desenvolver prticas docentes inovadoras.

    "Na poca, foi uma experincia que modificou o modo de ensinar na educao bsica. No Colgio Universitrio, os alunos eram protagonistas de sua formao. O aprendi-zado era cientfico, com muitas aulas prticas, j no intuito de preparar o estudante para o ambiente acadmico da universidade", conta a professora aposentada da Faculdade de Educao da UFMG Maria Lisboa, que trabalhou ao lado de Magda na inaugurao do Colgio.

    A experincia mobilizou tanto os esforos de Magda que ficou registrada na memria de um de seus filhos, Paulo Srgio Soares, hoje professor do Departamento de Fsica da UFMG: "Eu me lembro do entusiasmo de minha me na poca da criao do Colgio Universitrio. Ela trabalhava nesse projeto com alegria, pois era algo novo, diferente".

    O esforo valeu a pena e, hoje, encontra reconhecimen-to nas palavras de ex-alunos, como a atual Secretria de Educao de Minas Gerais, Ana Lcia Gazzola, estudante da primeira turma do Colgio Universitrio: "L, eu vivi a melhor experincia educacional que algum poderia ter vivido. Era um colgio experimental, altamente inovador. Ali, eu entendi o que uma universidade".

    experincia inovadora

    Esse trecho parte do livro Metamemrias Memrias: Travessia de uma educadora, no qual Magda Soares conta as experincias vividas ao longo de sua trajetria acadmica, constituda de cer-tezas firmemente "plantadas", como diz a prpria educadora, que foram "arrancadas" e substitudas ao longo de sua vida. "Magda foi mudando suas perspectivas em funo do tempo vivido. Isso faz parte da flexibilidade mental dela, da capacidade de adaptar as ideias realidade que se est vivendo, de estar sempre aberta a novas teorias. Essa uma virtude rara", acredita o professor emrito da Faculdade de Educao (FaE) da UFMG, Oder Jos dos Santos.

    Em Metamemrias, livro que foi escrito por Magda em 1981 para atender a um requisito do concurso de professor titular da UFMG, a educadora afirma que somente na vida universitria pde viver suas contradies em relao ao "inconformismo com a realidade social, que busca expresso na crtica, e o compromisso com a prtica social, que obriga ao nessa mesma realidade que se critica".

    Magda graduou-se em Lnguas Neolatinas pela UFMG e, mais tarde, tornou-se doutora em Didtica. Comeou a lecionar na UFMG em 1959 e s se aposentou quarenta anos mais tarde, em 1999, mesmo ano em que recebeu o ttulo de professora emrita da Instituio. Durante todo esse perodo, ela se dedicou s aulas nos cursos de graduao em Letras e em Pedagogia.

    Mas a trajetria de Magda foi muito alm da atuao nas salas de aula. A educadora desenvolveu pesquisas que influenciaram (e ainda influenciam) as prticas de ensino em todo o pas e que contriburam para a formao de muitas geraes de professores brasileiros. A maneira de ensinar portugus que Magda introduziu por meio de suas colees didticas modificou profundamente as prticas pedaggi-cas desde a dcada de 1960. "Os livros didticos que ela produziu marcaram uma forma diferenciada de interagir com a lngua portuguesa", reconhece a professora emrita da FaE, Eliane Marta Teixeira.

    Magda tambm participou de projetos pioneiros, como a criao do Colgio Universitrio da UFMG, em 1965; do Programa de Ps-graduao em Educao da UFMG, em 1970; e da fundao do Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita (Ceale), em 1990.

    Em nvel nacional, ela foi pea chave para a consolidao da ANPEd (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao), tendo auxiliado na criao, em 1981, dos chamados GTs (Grupos de Trabalho) da Associao. Mais significativo ainda, Magda coordenou, nos anos de 1992 e 1993, o GT de Alfabetizao. "O surgimento desse GT marcou o aumento da visibilidade e da legitimidade da alfabetizao como campo de investigao e prtica", orgulha-se a pesquisadora do Ceale Aparecida Paiva.

    Em outubro deste ano, Magda recebeu o trofu Paulo Freire, durante uma cerimnia realizada na 35 Reunio Anual da ANPEd, em Porto de Galinhas (PE). "Um momento inesquecvel para todos ns, ali presentes, foi quando ela se levantou da plateia e tomou lugar mesa, participando ativamente das discusses sobre o estado da arte da alfabetizao", conta Aparecida Paiva.

    Longe de ser um traado harmonioso, as linhas que bordaram a trajetria profissional de Magda Soares sofreram cortes bruscos e tomaram direes inimaginadas. No entanto, quem para pra conferir o desenho atual tem a certeza de que um elemento comum orientou as escolhas da educadora, por mais variadas que elas tenham sido: o desejo de reduzir, ainda que minimamente, as angstias do professor brasileiro

    por ana carolIna MartIns e lorena calonGe

    Vamos bordando a nossa vida, sem conhecer por inteiro o risco. (...) De vez em quando, voltamos a olhar para o borda-do j feito e sob ele desvendamos o risco desconhecido. (...) E ento que se pode escrever como agora fao a histria.

    Quando menina, Magda pretendia fazer carreira na rea de cincias exatas. No entanto, ao cursar o terceiro ano do segundo grau, encantou-se com as aulas de portugus ministradas pela professora ngela Vaz Leo e decidiu concorrer a uma vaga no curso de Letras. "Na poca, eu nem sabia que existia um curso de Letras, mas eu via ngela Leo e pensava: isso que eu quero ser!. ngela me fascinou com a literatura, com a lngua, me explicou o que era o curso e depois me preparou para o vestibular", relembra Magda.

    Magda fez Letras Neolatinas e se formou na turma de 1954. "No meu primeiro perodo de faculdade, o curso fun-cionava numa sala emprestada do Instituto de Educao. Depois, fomos para o Edifcio Acaiaca, onde funcionavam todos os cursos da Faculdade de Filosofia e Cincias. Era muito bom, porque a gente convivia com o pessoal da Histria, da Filosofia, da Geografia, da Biologia, da Fsica", conta a professora.

    Ainda antes de terminar a graduao, Magda comeou a dar aulas no Colgio Metodista Izabela Hendrix, mesma instituio onde havia concludo sua educao bsica: "Eu tinha uma verdadeira paixo por aquele colgio", revela. "Mas tambm fui professora do Colgio Municipal So Cristvo e do Colgio Estadual Central. At que, um dia, a professora de portugus do Colgio de Aplicao da UFMG pediu afastamento e a catedrtica diretora da instituio, dona Alade Lisboa de Oliveira, me chamou para substitu--la". Foi assim que Magda comeou a lecionar na UFMG.

    Depois de anos na Universidade, Magda voltou a vi-venciar de perto o dia a dia da alfabetizao. Em 2007, foi convidada pela Secretaria Municipal de Lagoa Santa a desenvolver um projeto para melhorar o ensino da lei-tura e da escrita nas escolas municipais. O projeto foi aperfeioado e culminou na formao do que hoje o Ncleo de Alfabetizao e Letramento de Lagoa Santa. Semanalmente, Magda orienta professores da rede na busca por metodologias de ensino mais adequadas e na criao de um currculo unificado, com metas e prazos comuns a todas as escolas.

    O retorno s salas de aula foi estimulado pelo mesmo esprito de socializao de conhecimento que guiou o trabalho da pesquisadora durante toda a sua vida. Em Lagoa Santa, ela tenta fazer com que os professores se apropriem dos fundamentos sobre a aprendizagem da lngua escrita para poderem introduzir, testar e adaptar em sala de aula o que h de novo no meio acadmico. "Magda nos mostrou como atuar unindo teoria e prtica", define a professora Gilmara Guimares, que participa das reunies do Ncleo desde o incio.

    A pedagoga Joaquina Duarte, da Secretaria da Educao de Lagoa Santa, confessa que o fato de ter participado do Ncleo mudou completamente sua maneira de alfabeti-zar. "Antes, eu apenas seguia o material didtico, sem question-lo ou entender seu propsito. Magda conseguiu me fazer compreender o processo pelo qual a criana se alfabetiza e o que preciso fazer para estimul-la", explica.

    Para Juliana Storino, membro da Secretaria de Educao de Lagoa Santa e do Ncleo, o principal impacto da ao de Magda para a rede escolar de Lagoa Santa foi uma mu-dana na mentalidade dos profissionais de educao: "Ela conseguiu transmitir para os professores o sentimento de pertencimento rede. Os ndices da rede nas avaliaes ex-ternas e internas aumentaram no em razo do rendimento superior de determinada escola, mas pelo bom rendimento de todas elas, que subiram de nvel em bloco".

    Primeiros riscos

    Retorno sala de aula

    A partir de uma reforma que promoveu a reestruturao da Universidade, a Faculdade de Educao da UFMG ganhou nova sede, inaugurada em fevereiro de 1968. Antes disso, ela era parte da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, juntamente com outros cursos.

    Magda fez parte da comisso responsvel por elaborar o anteprojeto da estrutura administrativa e pedaggica da Faculdade de Educao. "O reitor poca, Alusio Pimenta, nos ajudou muito: trouxe uma comisso dos Estados Unidos, onde j existia uma Faculdade de Educao, para nos orientar. A parte mais difcil foi construir a Faculdade. Ns ramos um Departamento de Pedagogia e, de repente, viramos Faculdade de Educao", relembra a educadora.

    Ainda que Magda tenha participado da esfera administrativa da Faculdade, exercendo funes de gesto, essas atividades nunca se sobrepuseram a suas aes de docncia. o que conta o professor Oder Jos dos Santos: "A trajetria de vida de Magda s pode ser compreendida por meio de sua prtica docente. Para ela, ser professora no era uma vocao, mas uma responsabilidade e um compromisso social". Segundo Oder, Magda se projetava como uma referncia no campo da Educao j no incio dos anos 1970.

    Depois de ajudar a criar a Faculdade de Educao da UFMG, ela colaborou para a estruturao do Programa de Ps-Graduao da unidade, institudo em 1970.

    Em 1989, quando recebeu o Prmio da Fundao de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP), foi homenageada no discurso da diretora da Faculdade de Educao, Glaura Vasques de Miranda: "Temos sido pioneiros na divulgao de novas teorias e abordagens para perceber as relaes da sociedade. Magda uma das grandes responsveis por esse trabalho, sempre atuante na Universidade, de onde nunca se afastou".

    Pea chave na Faculdade de educao

    A estruturao do ensino superior e da ps-graduao em Educao na UFMG compe apenas parte dos esforos de Magda Soares em prol da melhoria da situao do ensino brasileiro. Em 1980, o quadro era desanimador: o pas pos-sua altssimas taxas de evaso e repetncia escolar. Magda sabia que o caminho para se obter mudanas efetivas seria longo. Para ela, a nica maneira de compreender a realidade e intervir sobre ela era conhecendo o passado. Por isso, em 1986, deu incio pesquisa Alfabetizao no Brasil: o estado do conhecimento, um levantamento das produes acad-micas brasileiras sobre alfabetizao, desde os anos 1950.

    O que a educadora ainda no imaginava era que sua busca por conhecimento resultaria no surgimento de um centro de pesquisa em alfabetizao, leitura e escrita que viria a se tornar reconhecido no cenrio brasileiro: o Ceale. Magda foi diretora do Centro desde sua criao, em 1990, at 1995 e continuou a auxiliar nas pesquisas at o final dos anos 2000. A pesquisadora do Ceale Sara Mouro Monteiro, confessa que, mesmo depois da aposentadoria, a professora continua tendo forte influncia sobre o grupo. "Ela no deixou de nos guiar e de ser nossa orientadora. Magda gosta de se definir como nossa aspite efetiva. Esse termo, criado pelo Ziraldo, significa assessora de palpite", brinca Sara.

    Em 1990, ano nomeado pela Unesco como o Ano Internacional da Alfabetizao, a diretora da Faculdade de Educao, Glaura Vasques de Miranda, decidiu buscar apoio para o grupo: "Falei com a Magda que, partindo do trabalho que ela j desenvolvia, ns poderamos fazer um centro de alfabetizao na UFMG que seria referncia nacional. Elaboramos um plano de trabalho, conseguimos o apoio do reitor e fui Braslia atrs dos recursos".

    Hoje, muitos pesquisadores do Centro participam do Programa Nacional do Livro Didtico como parte da ban-ca avaliadora dos livros didticos e dos dicionrios que so distribudos gratuitamente para as escolas pblicas de Ensino Fundamental. Desde 2004, o Centro promove cursos para a formao de professores alfabetizadores. O grupo assumiu tambm a avaliao dos livros literrios que chegam s bibliotecas das escolas pblicas brasileiras pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola.

    Apesar das aes educacionais, as pesquisas acadmi-cas continuam sendo a base que orienta o trabalho, como explica a atual vice-diretora do Ceale, Isabel Frade: "Esta a lio que Magda nos deixou, depois de todos esses anos: necessrio interferir na realidade da educao de forma sistemtica, orgnica e intencional, sempre se baseando em um aguado senso de pesquisa".

    surge um centro de pesquisa

    Em Destaque

    Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - ano 8 - Edio Especial 11 Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita - Faculdade de Educao/UFMG 10

  • Nesta edio comemorativa, o Letra A resgatou entrevistas realizadas com Magda Soares em diferentes momentos de sua vida: 1993, 2005, 2011 e 2012. semelhana de um espelho, os trechos das conversas podem refletir um pouco do pensamento e das ideias de Magda em cada uma dessas fases, dando ao leitor uma noo de quais eram as problemticas com as quais a educadora estava s voltas no momento em que concedeu as entrevistas.

    Se interessante notar as permanncias em seu discurso, como a preocupao com a melhoria da qualidade do ensino e o compromisso com a democratizao do acesso leitura e escrita mais curioso ainda perceber que, aps 40 anos como pesquisadora e professora universitria, tendo se tornado referncia nacional nas discusses sobre alfabetizao, Magda decide fazer o caminho inverso: retornar origem e ver o que se passa nas salas de aula de alfabetizao.

    Quando o professor est na sala, diante de 40 meninos que ele tem que botar pra ler e escrever at o fim do ano, ele quer saber: "o que que eu fao?" Ele quer, na maioria das vezes, "receitas". Alis, esse um vcio das pedagogias, das didticas. No tem nada que se parea mais com um livro de receitas culinrias do que um livro de didtica desses tradicionais que dizem: "faa isso", "faa aquilo". Essa tradio de "receiturio" explica porque to difcil para alguns professores compreender que o importante entender o processo, como que o aluno aprende a ler e a escrever nas suas vrias facetas. A busca ansiosa de solues faz com que muitas vezes o professor transforme (e reduza) em receita tudo o que lhe proposto como reflexo, como compreenso do processo. E, como ele tem as receitas antigas, a sada traduzir tudo para os velhos esquemas, apenas com uma roupagem nova, um nome, um rtulo novo. o que est acontecendo com o construtivismo e outros "ismos".

    A questo fundamental em Educao reverter essa expectativa de que a resposta para tudo est numa receita. romper com essa tradio, de dcadas, de que a formao do professor isto: dizer como fazer. interessar-se em saber por que e como as coisas acontecem. convencer-se de que, sabendo isso, vamos saber como agir. Precisamos, sobretudo, abandonar a ansiedade que nos leva expectativa de que vamos encontrar uma frmula mgica que vai resolver todos os problemas de sala de aula, da escola, da educao... As solues so tambm "construdas" na interao com os objetos de conhecimento; a teoria e a prtica.

    A histria das cincias se faz por mudanas de paradigmas. Ns j vivemos outras mudanas e sabemos que daqui a algum tempo vamos mudar de novo. Sabemos tambm que essas mudanas vo ter uma marca imediata na atuao do professor na sala de aula. No incio dos anos 1970, o behaviorismo chegou com o mesmo status, a mesma fora, o mesmo prestgio do construtivismo hoje. Os professores tinham que abandonar a Escola Nova e tornar-se behavioristas. A mesma crena que a gente tem no poder mgico do construtivismo hoje, a gente j teve no behaviorismo.

    A diferena entre as duas concepes o fato de o paradigma anterior (behaviorista) ter vindo amarrado em propostas didticas. Ele se criou ligado ao processo de aprendizagem e, junto, vinha a receita, muito miudamente especificada. Agora acontece o contrrio: o construtivismo rejeita as receitas, pois se voc diz que a criana que constri o conhecimento, em interao com os objetos de conhecimento, no d para se dar receitas prontas. Tudo aquilo que era planejadinho, arrumadinho, e que dava segurana e garantia est sendo feito de forma desorganizada. Isso porque muitos acham que o construtivismo apenas uma receita nova, e no uma outra maneira de se compreender a aprendizagem. O construtivismo uma teoria de como as pessoas aprendem: a criana, o adulto, o velho, o jovem, de como aprendem a lngua escrita, a histria, a geografia, a viver a vida, a curtir um amor novo, uma decepo.

    A maioria dos professores da educao bsica esto sempre preocupados com solues prticas para os problemas da alfabetizao. Isso pode ser prejudicial para sua formao? Quais so as conseqncias disso?

    Existe sada para esse problema da busca ansiosa do professor pelas receitas?

    Ento o construtivismo no uma teoria completamente nova, um novo paradigma?

    Circulao de ideias

    1993

    trecho de entrevista originalmente publicada no Jornal Carpe diem, publicao bimestral

    do Centro de aperfeioamento dos Profissionais de educao da secretaria Municipal de

    educao da Prefeitura de belo horizonte (sMed/Pbh).

    por GIlcIneI teodoro carvalho e ceres leIte prado

    Fotografias originalmente publicadas na Revista

    dois Pontos de dezembro/86 - vol. 1, n7

    Foto: dois Pontos

    Foto: dois Pontos

    A exemplo da me, Paulo Srgio Soares Guimares, o filho mais velho de Magda Soares, tambm acabou se tornando professor da UFMG. Doutor em Fsica pela Universidade de Nottingham desde 1986, Paulo Srgio j foi coordenador do Programa de Ps-graduao em Fsica da UFMG, alm de estar frente de mais de vinte projetos de pesquisa na rea. No se sabe se o gosto pelas aulas e pela investigao cientfica vem do sangue ou se fruto da convivncia. Seja como for, a influncia inegvel. "Inspirado pela experincia da minha me, acabei participando muito da vida da Universidade e achando-a bastante atrativa", conta Paulo Srgio.

    Rupturas necessriasSe um velho colega, amigo ou aluno de Magda Soares

    se debruar sobre os escritos mais recentes da educadora, ou mesmo tiver a oportunidade de assistir a uma de suas palestras, bem provvel que note diferenas entre os ensinamentos antigos e as concepes atuais. Isso por-que, ao longo dos anos, Magda no hesitou em assumir mudanas na maneira de enxergar o fenmeno do ensino. Para o pesquisador Antnio Augusto Gomes Batista, que foi orientado por Magda durante o doutorado e esteve frente da direo do Ceale por alguns anos, essa vontade de estar sempre buscando novas respostas para as perguntas sobre a educao uma das maiores qualidades de Magda: "Se voc parar para analisar a obra dela, vai notar que ela no tem compromisso com o que escreveu antes, mas com a busca de respostas a perguntas. Mesmo que as respostas que ela encontre hoje contradigam o que ela j respondeu. A Magda sempre soube fazer as rupturas necessrias".

    Como definiu a prpria Magda em seu memorial, ao longo de sua trajetria, ela mudou da rea da Letras para a rea da Educao; trocou a viso psicolgica do ensino pela sociolgica; e substituiu a concepo da escola como instrumento de correo das desigualdades sociais por uma que entendia a escola como instrumento de dissi-mulao dessas desigualdades.

    Em suas primeiras experincias como professora, na dcada de 1950, Magda procurava incentivar a partici-pao ativa dos alunos no ensino, com a formao de associaes, de grmios e de clubes, com a realizao de trabalhos comunitrios e extraclasse. As estratgias eram tpicas do escola-novismo, movimento que pregava que o ensino deveria ter a funo de "preparar os alunos para a vida", o que implicava, de certa forma, adapt-los sociedade. Em Metamemrias, Magda afirmou que essa linha de pensamento a que aderiu nos primeiros anos de sua vida profissional no foi uma escolha consciente: por no conhecer outra prtica pedaggica seno aquela que lhe fora apresentada como ideal durante sua formao no Instituto Metodista Izabela Hendrix, a Escola Nova se mostrou como o nico caminho possvel para o ensino.

    No ano de 1964, um livro ainda pouco conhecido no Brasil chamou a ateno de Magda. A obra Cultural Foundations of Education (As razes culturais da educao, em portugus), do filsofo e educador americano Theodore Brameld, foi o impulso para a educadora mudar sua linha de pensamento. "Brameld me fez criticar e abandonar a orientao liberal-pragmtica, que propunha, como obje-tivo da educao, a adaptao do indivduo sociedade, afirmando que o objetivo , ao contrrio, transformar a sociedade e que o papel da escola promover a mudana social", explicou Magda. Ao se aprofundar no estudo dessa ideologia pedaggica, a educadora se deu conta de que o sistema de ensino funcionava como meio de seleo, em que os alunos das classes privilegiadas tinham maiores oportunidades que os demais.

    Em 1974, Magda se identificou com uma linha de pen-samento na qual acredita at hoje: a Sociolingustica da Educao, viso sociolgica que entende o ensino como fenmeno profundamente inserido na sociedade capita-lista. A partir de ento, para Magda, a escola passava a ser vista como um meio de legitimao da estratificao social, posio que substituiu a imagem tradicional da escola como ambiente neutro e igualitrio. Ela descobria que o capital lingustico das classes dominantes era o mesmo utilizado no material didtico e exigido nas ava-liaes escolares. A partir desse novo ponto de vista, os alunos das classes sociais mais baixas poderiam ter seu fracasso escolar explicado, em grande parte, pela variante lingustica de seu meio social. Desde esse perodo, Magda passou a buscar, em todas as suas aes educacionais e formulaes tericas, maneiras de tornar a escola um ambiente livre dos preconceitos lingusticos e sociais.

    No ano de 1968, o Brasil retomou sua expanso eco-nmica e o planejamento educacional passou a integrar o Plano Nacional de Desenvolvimento. Isso significava que o ensino passava a ser considerado um bem a servio do crescimento econmico e da integrao nacional. Como a prpria Magda j explicou, muitas vezes, um pas atravessa um momento social que traz consigo uma ideologia domi-nante to bem adequada s necessidades do perodo que se torna impossvel no tom-la como ideal. Foi assim que ela se viu, juntamente com os demais professores brasileiros, ensinando os alunos a obter maior eficincia e melhores resultados a menores custos: "Nos vimos, inesperadamente, transformados em agncia adestradora de mo de obra".

    Fase liberal-pragmtica

    Fase do nacionalismo-desenvolvimentista

    sociolingustica aplicada educao

    viso operacional

    Garoto atento, assimilou bem um dos maiores ensinamentos da me: encarar o trabalho com responsabilidade e disposio. "Ela carrega con-sigo um lema muito forte, que veio da filosofia do colgio onde estudou: conhece o dever e cumpre-o. Ela realmente no tem preguia de enca-rar o servio, mesmo que precise trabalhar at tarde. Procuro seguir o exemplo", conta. E reconhece que reproduz alguns hbitos da me, cenas que assistiu repetidas vezes na infncia: "Quando as coisas apertam na faculdade, gosto de acordar um pouco mais cedo, ir para o escritrio ainda de madrugada e terminar o que preciso fazer. Isso uma coisa que ela tambm fazia. Acho que por isso que, desde que sa de casa, em todas as casas em que morei, sempre fiz questo de ter um escritrio".

    HERANA

    Entrevista: Magda Becker SoaresEm Destaque

    Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2012 - ano 8 - Edio Especial 13 Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita - Faculdade de Educao/UFMG 12

  • At os anos 1980, as pesquisas na rea da alfabetizao eram, de certa forma, restritas, porque voltavam-se apenas para a questo metodolgica. Toda a discusso se limitava eficcia ou no de mtodos: os analticos, os sintticos, o mtodo global, o da palavrao, o da silabao...

    As pesquisas aumentaram a partir dos anos 1980, como decorrncia do construtivismo, sobretudo pela influncia dos estudos e pesquisas de Emilia Ferreiro e de Ana Teberosky sobre o processo de aprendizagem da lngua escrita pela criana. Passamos, ento, a contar com um nmero grande de pesquisas, tomando como tema no mais o mtodo de aprendizagem da lngua escrita, mas o processo da criana na construo de conceitos sobre a lngua escrita. O foco muda do "como ensinar" para o "como a criana aprende". Depois, mais no fim dos anos 1980, surgem as pesquisas lingusticas: foi o momento em que os lingistas finalmente se deram conta de que alfabetizao era problema deles tambm.

    Cada uma das facetas da aprendizagem da lngua escrita supe um processo cognitivo especfico. No se aprende uma conveno (a relao fonema/grafema) da mesma forma que se aprende a construir sentido de um texto, a interpretar, a compreender. Aprender os diferentes usos e funes da escrita e os diferentes gneros de textos tambm demanda processos cognitivos diferenciados.

    A conseqncia que, no estado atual dos conhecimentos sobre a lngua escrita e sua aprendizagem, no se pode falar em um mtodo de

    O construtivismo no props mtodos, nem tinha que propor, porque sempre se afirmou como uma teoria psicolgica e no como uma teoria pedaggica. Mostra como a criana aprende, no se volta explicitamente para a questo de como o professor deve ensinar.

    Foi um fenmeno o chamado construtivismo na alfabetizao que, sob um ponto de vista sociolgico, mereceria ser estudado. Foi um movimento que invadiu as escolas de todo o pas, e se multiplicarem os cursos para ensinar aos professores o construtivismo. Mas o que se ensinava a eles no era como alfabetizar a criana, era como a criana aprendia. Os mtodos de alfabetizao at ento usados passaram a ser negados, com o argumento de que eles ignoravam o processo como a criana aprende. O que uma verdade apenas parcial.

    Costumo dizer que, antes do construtivismo, os professores alfabetizadores tinham um mtodo e nenhuma teoria. Eles ensinavam pelo global, pelo silbico, pelo fnico, mas as teorias que fundamentam esses mtodos no eram discutidas. Eu mesma, quando formava professoras no ento chamado Curso Normal, no que dizia respeito alfabetizao, discutia os mtodos existentes e como que se aplicava cada um. O construtivismo veio negar esses mtodos, mas no props outro mtodo que os substitusse, trouxe uma teoria sobre a aprendizagem da lngua escrita. Assim, antes se tinha um mtodo e nenhuma teoria; depois passou-se a ter uma teoria e nenhum mtodo. Passou-se at a considerar que adotar um mtodo para alfabetizar era pecado mortal. Como se fosse possvel ensinar qualquer coisa sem ter mtodo...

    O que as pesquisas atuais tm revelado sobre o apren-dizado da escrita?

    Qual o mtodo de alfabetizao adequado no momento atual?

    Hoje parece que h uma crise do construtivismo, como se a crtica o considerasse uma teoria que no deu certo...

    2005

    trecho de entrevista originalmente publicada no letra a de abril/maio de 2005

    ano 01 n 01.

    por aparecIda paIva, MarIldes MarInho e slvIa aMlIa de arajo

    alfabetizao, mas em mtodos de alfabetizao, no plural. Assim: ler histrias ou poemas ou textos informativos para as crianas, lev-las a interpretar esses diferentes textos supe determinados procedimentos didticos, enquanto que tomar palavras-chave de um texto lido e trabalh-las para, com base nelas, desenvolver a aprendizagem, das relaes entre fonema/grafema supe outros procedimentos. So diferentes mtodos, diferentes procedimentos, porque so diferentes objetos de conhecimento e, portanto, diferentes processos de aprendizagem. Por isso, hoje preciso ter mtodos de alfabetizao, no um nico mtodo de alfabetizao.

    2011por ceclIa lana

    Fotografia originalmente publicada no letra a

    de abril/maio de 2005 ano 01 n 01.

    Foto: Marcos alves

    A cincia nunca suficiente. Ela est sempre avanando e, quanto mais avana, mais se aperfeioa, se amplia e, s vezes, at nega o que vinha sendo feito. Assim, em termos da transposio de pesquisas e teorias para a prtica, h sempre uma defasagem. De um lado, esto os cientistas que se preocupam em investigar o processo de alfabetizao e que, em geral, no tm pressa. De outro, esto os professores que se preocupam em orientar esse processo no cotidiano da sala de aula, e eles tm pressa.

    De um modo geral, as pesquisas nas reas de cincias lingsticas e da psicologia cognitiva no tm chegado ao ensino, porque os pesquisadores esto preocupados em investigar o processo cognitivo e o objeto dele, e raramente se voltam para as implicaes que os resultados das pesquisas tm para o ensino. Quem tem de fazer a ponte entre a pesquisa e a prtica pedaggica somos ns, que estamos formando professores.

    Pesquisas sobre "a ponte" seriam ou so investigaes sobre o que ocorre nas salas de aula em que se alfabetiza, sobre a relao que essas ocorrncias tm, ou no, com resultados de pesquisas psicolgicas ou lingusticas, em que medida fatores do contexto escolar e familiar interferem no processo etc. E considero que necessrio formar alfabetizadores que conheam as pesquisas sobre o processo, no para que sejam pesquisadores em sala de aula, mas para que sejam professores reflexivos, que dominam os fundamentos cientficos, para entender o processo de alfabetizao da criana e intervir nele de forma adequada.

    Acho que uma luta permanente na educao manter a continuidade de projetos. Os professores terminam seu curso de graduao e vo para a sala de aula. A vem a rotina de sempre, e a tendncia continuar no mais cmodo, porque o tempo pouco e preciso dar conta das tarefas. Para que, ento, mudar? Mudanas, quando ocorrem, so pontuais e passageiras. preciso um esforo permanente para manter o projeto sempre em andamento, em aperfeioamento, em atualizao.

    Outro fator importante a sistematicidade, que, na rea da aprendizagem da lngua escrita, no tem existido. A alfabetizao desenvolvida neste pas por meio de atividades sem relao umas com as outras, que se sucedem de acordo com a convenincia da professora: porque os alunos gostaram muito, porque outra deu uma ideia que deu certo com os alunos dela etc. Mas o que foi feito antes da atividade e o que ser feito depois dela? Como a atividade se relaciona com o processo de aprendizagem na etapa em que o aluno est? A sistematicidade e a continuidade so fundamentais.

    Na minha vida acadmica inteira (que no foi curta), nunca consegui me desligar da escola, das professoras, dos meninos que tm que aprender a ler e a escrever. A minha pesquisa sempre foi voltada para isso, e a minha angustia tentar resolver, um pouquinho que seja, o problema da escola, da aprendizagem dos alunos, da professora que no sabe o que fazer para alfabetizar... No sei se felizmente ou infelizmente, eu herdei uma marca familiar religiosa: fui criada como protestante metodista, doutrina que deixa uma preocupao muito forte com o compromisso social, a responsabilidade social. No consigo me desligar disso. O problema social no caso educacional me chama tanto e me impressiona tanto que eu fico querendo trabalhar nas escolas. A minha produo acadmica toda dessa natureza, ligada ao problema da escola pblica, da educao pblica na rea de linguagem, particularmente.

    Agora mesmo estou escrevendo um livro sobre mtodos de alfabetizao. Acho que precisa clarear um pouco essa rea... um livro sobre os fundamentos psicolingusticos, lingusticos, cognitivos e psicolgicos da aprendizagem da lngua escrita. So as teorias que formam o substrato sobre o qual se constroem os mtodos. Estou trabalhando esses fundamentos para deles tirar a questo dos mtodos de alfabetizao.

    A importncia do trabalho com redes de ensino. Trabalhei a vida inteira com formao de professores e sempre me incomodou muito que eu estivesse dando aula para uma turminha de pedagogia que depois sumiria nesse mundo afora. Nesses cursos de extenso, voc d quarenta horas aula para um grupo de professoras vindas dos mais diversos lugares e, depois, elas voltam para os mais diversos lugares. Voc no v consistncia no trabalho, no uma ao que tem um efeito mais substantivo para as crianas e para as escolas. Como que uma professora sozinha vai mudar o processo? Na melhor das hipteses, ela muda o trabalho na sala de aula dela, mas o resto da escola continua funcionando como antes. Se voc trabalha com uma rede, d para ir a todas as escolas, conhecer todas as diretoras, conversar com elas. Isso mais significativo do que mudar a sala de aula da fulana aqui, da ciclana ali...

    Defendo aquilo que tenho chamado de formao de rede: articular a universidade com os municpios para criar uma rede que vai formar os professores. O importante voc pegar uma rede de ensino inteira e melhor-la. A um trabalho que tem substncia. No adianta nada o MEC divulgar o resultado surpreendente do IDEB [ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica] da escola tal, no interior do Cear. Temos que nos preocupar com o pas inteiro, e o pas feito de Estados e, sobretudo, de municpios. Trabalhar em nvel de rede que pode dar futuro, mas, infelizmente, uma coisa que esse pas nunca teve coragem de fazer, que veio fazendo sempre muito lentamente.

    A alfabetizao na educao infantil (sobretudo na rede pblica) uma questo sria, que precisa ser mais discutida. Estamos vivendo uma mudana de paradigmas na educao infantil, que sempre foi vista como lugar para criana brincar. A ideia antiga era de que era preciso abrir escola de educao infantil porque as mes precisavam trabalhar e ter onde deixar as crianas. Ora, no isso que educao infantil, e a gente est exatamente nessa fase de mudana, de definir a educao infantil como uma fase da escolarizao da criana. Alm disso, os professores esto precisando saber mais sobre esse assunto: como que voc trabalha com o livro