estudogeral.sib.uc.pt · ÍNDICE Editorial 5-8 Dossiê – Francesco Petrarca, 1304-2004 9-138...

Post on 01-Dec-2018

222 views 0 download

Transcript of estudogeral.sib.uc.pt · ÍNDICE Editorial 5-8 Dossiê – Francesco Petrarca, 1304-2004 9-138...

ÍNDICE

Editorial 5-8

Dossiê–FrancescoPetrarca,1304-2004 9-138

EnsaiosMarcoSantagata,Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 13MaurizioPerugi,As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor”: um exercício de crítica das variantes 41

PoemasLuísQuintais,Laura 91VeraLúciadeOliveira,Há uns que são engenheiros 92VascoGraçaMoura,exercício em vaucluse 93

DiáriosDavidMourão-Ferreira,Em Arezzo a 25 de Abril 97

NotasXoséManuelDasilva,Petrarca na voz portuguesade Vasco Graça Moura 103RobertoGigliucci,Perspectivas e sucessos dos estudossobre o petrarquismo 113RitaMarnoto,O sétimo centenário de Petrarca entre Portugale a Itália 129

ArtigosManuelCadafazdeMatos,Das relações quinhentistasentre Ioannes e Olavus Magnus e Damião de Góis 141GianlucaMiraglia,Estudos camonianos em Itália 169LeniraMarquesCovizzi,LuciaWataghin,Ungarettitradutor discreto e a analogia entre os poetas árcadesTomás António Gonzaga e Giovanni Meli 181ValeriaGiontella,L’opera di Giovanni Antinori. Biografiadi un architetto operante a Roma e a Lisbona nel sec. XVIII 203MassimoMazzeo,Uma viagem musical pelo século XVIIIportuguês e as influências italianas 213AldoColonna,Cesare Pavese e il cinema 223MiclaPetrelli,“I was a poet animated by philosophy”.Fernando Pessoa, ambiguità della poetica 233SebastianaFadda,A dramaturgia de Luiz Francisco Rebello: do Teatro Estúdio do Salitre às significações do palco 261

Temas e DebatesLingue,unitàeuropeaeglobalizzazione 293RobertodeMattei,O papel da latinidade no século XXI 295MassimoVedovelli, Nuove motivazioni e pubblici della linguaitaliana nel mondo 309

EntrevistaAToninoGuerraraccoltadaGiovanniBiagioni 337

Obra abertaAgustinaBessa-Luís,Sobre Manoel de Oliveira 347DaciaMaraini,Pascoli 353DavidMourão-Ferreira,Diários de viagem.Uma semana em Roma 363

RecensõesBarbaraSpaggiarieMaurizioPerugi,Fundamentos da CríticaTextual(LinoMioni) 387

ValeriaTocco,A Lira Destemperada. Estudos sobre a tradiçãomanuscrita de “Os Lusíadas”(IsabelAlmeida) 389Caminhos da Italianística em Portugal(IsabelMorujão) 393Ceserani,Vattimo,Gnisci,DalCo,Leonardo express(AnaVazMilheiro) 397DinoBuzzati,O Deserto dos Tártaros(ErnestoRodrigues) 400ValerioMassimoManfredi,Quimera (ManuelG.Simões) 404EduardoPitta,Os dias de Veneza(ManuelG.Simões) 407MárioCláudio,Os sonetos italianos de Tiago Veiga(ErnestoRodrigues) 410

ActualidadeEditou-se...(Paolad’Agostino) 415PortugalemTurim(Paolad’Agostino) 423Unaguitarra portuguesanellemanidiunitaliano(RiccardoIanello) 427TerceiroEncontrodeItalianística.LuigiPirandelloearecepçãodasuaobraemPortugal(RitaMarnoto) 435IstitutoItalianodiCulturadiLisbona:2005,unannodiattività(FabrizioCampoli) 439

GiulianoMacchiin memoriam(AnielloAngeloAvella) 459

Notasbiográficas 465

Vi è un detto che pressappoco recita“Lecosebuone,sebrevi,duevoltebuone”……Confessoche facciounpo’faticaadapplicarloallamiacorta,seppurintensa,rela-zioneconEstudos Italianos em Portugal.Sonomoltoorgo-glioso(perchétacerlo?)diavercontribuitoallasuarivitaliz-zazione,masonoaltrettantodispiaciutodidoverchiudere,dopo appena due numeri, questo rapporto. Pochi mesidopol’uscitadiquestaedizioneraggiungeròinfattilafinedelmiomandatoe,dopocinque annipiuttosto intensi,dovròinterromperelamiaesperienzaportogheseperrien-trareinItalia.Rimpiantidivariogenereverrannosicura-menteconme;nonpotrebbeesserealtrimentiancheperunolacuivita,findai14annid’età,sièsrotolatasempretrarealtàgeografichediverse.Siacomunquequestaancheun’occasioneperrivolgereuncaldoringraziamentoeunaltrettantocaldosalutodiarrivederciatutticolorocheinPortogallocome in Italiamihannoonoratocon la loropreziosacollaborazione,pazienza,comprensioneedami-cizia.Tuttociò,incorniciatodallagentilezza,disponibilità,ricchezzadivalori,bellezzadelPaesechehaospitatoquestamiabrevemaintensafettadivita,verràconmeeresterànellamiamemoria,allaqualechiunquepotràsempreri-volgersi per qualsiasi necessità che sia alla mia portataesaudire.

Tornandocomunqueallarivista,ilfattochelasualinfavitale sia comunque garantita dalla Prof.ssa Marnoto,dall’InstitutodeEstudosItalianosdell’UniversitàdiCoimbraeda tutti gli altri illustri amici che integrano il comitatoscientificoediredazione,mitranquillizzanonpocoemispingearinnovareatuttiloroisensidellamiagratitudineedituttalamiastima.Sonosicuroanchedelfattochechi,dopodime,verràdesignatoafarsicaricodelladirezionediquestoIstitutoItalianodiCulturasapràaccompagnarequestanostra creatura verso sfide e traguardi ancor più elevati.Questoènonsoloilmioauspicio,maancheunasortadi“ereditàirrinunciabile”chemisentodilasciare,mossodalpiacereegoisticodicontinuareaseguirealmenosullesuepagine l’evoluzione dei rapporti tra le nostre due realtà,destinate sempre di più e più profondamente a diveniresfaccettaturearricchentidiunarealtàeuropeachesperopossadiveniresemprepiùomogenea,dall’ArticoalMediterraneo,dalCabodaRocaa……(beh,questolasciamolodecidereaipolitici!).

Ancoraunavolta,atutti:obrigadoeatésempre!

Giovanni Biagioni

Há um ditado que diz mais ou menos isto,“Ascoisasboas,quandobreves,sãoduasvezesboas”…Confessoquemecustaaplicá-loàminhacurta,masintensa,relaçãocomEstudos Italianos em Portugal. Orgulho-me muito (porquenão dizê-lo?) de ter contribuído para a sua revitalização,tantoquantomeentristece terdedarpor terminadaessarelação,depoisdeteremsaídoapenasdoisnúmeros.Poucosmesesdepoisdapublicaçãodestevolume,chegareiaofimdomeumandatoe,depoisdecincoanosbastanteintensos,tereideinterromperaminhaexperiênciaportuguesapararegressaraItália.Saudosasrecordaçõesdeváriosgénerosirãoseguramentecomigo.Nempodiaserdeoutraforma,mesmoparaalguémcujavida,desdeos14anosdeidade,sempresedesenrolouporentrerealidadesgeográficasmuitodiferentes.Queestasejatambémocasiãoparadirigirumcalorosoagra-decimentoeumarrivederciigualmentecalorosoatodosaque-lesque,tantoemPortugal,comoemItália,mehonraramcomasuapreciosacolaboração,paciência,compreensãoeamizade.Tudo isso, enquadrado pela gentileza, pela dis-ponibilidade,pelariquezadevaloresepelabelezadoPaísqueacolheuestaminhabrevemasintensafatiadevida,irácomigoeficarágravadonaminhamemória,àqualquemquerquesejasepoderásempredirigirparaoqueestiveraoalcancedasminhaspossibilidades.

Regressando,porém,àrevista,ofactodeasualinfavitalficargarantidapelaProf.RitaMarnoto,peloInstitutodeEstudosItalianosdaUniversidadedeCoimbraeportodososoutrosilustresamigosqueintegramosconselhoscientí-ficoederedacçãotranquiliza-mebastante, levando-mearenovar-lhesosmeussentimentosdegratidãoedetodaaminhaestima.Tenhotambémacertezadequequem,ase-guiramim,fordesignadoparaassumiradirecçãodesteIns-titutoItalianodeCulturasaberáacompanharestanossacria-turaatédesafiosemetasaindamaiselevados.Sãoessesnãosóosmeusauspícios,bemcomoumaespéciede“herançairrenunciável”quequeriadeixar,levadopeloprazeregoís-ticodecontinuaraseguir,pelomenosatravésdassuaspá-ginas,aevoluçãodasrelaçõesentreasnossasduasrealidades,destinadas,cadavezmaisecadavezmaisprofundamente,atornarem-seenriquecedorasfacetasdeumarealidadeeuro-peiaqueesperosepossatornar,tambémela,cadavezmaishomogénea,doÁrticoaoMediterrâneo,doCabodaRocaa…(bem,issoécomospolíticos!).

Umavezmais,atodos:obrigadoeatésempre!

Giovanni Biagioni

DOSSIê

FRANCESCOPETRARCA.1304-2004

No passado ano de 2004, comemorou-se o sétimo centenário do nascimento de Francesco Petrarca, ocorrido a 20 de Julho de 1304 na cidade de Arezzo. Em Itália, em Portugal e um pouco por todo o mundo, a efeméride foi recordada com iniciativas culturais da mais diversa índole. Volvidos que são dois anos sobre as celebrações, a revistaEstudosItalianosemPortugaldedica ao poeta um dossiê temático no qual se apresentam ensaios emblemáticos dos novos caminhos que entretanto se abriram aos estudos críticos, se faz um balanço informativo das actividades promovidas e se mostra como, para as literaturas de expressão portuguesa, Petrarca continua a ser uma presença viva, na charneira do novo milénio.

Uma reflexão em torno do lugar ocupado por Francesco Petrarca noiterdas letras italianas e em torno dos elos que o ligam ao fenó-meno do petrarquismo cortesão, com ecos que se estendem até mo-mentos bem mais adiantados no tempo, levou Marco Santagata a reequacionar os grandes pontos de referência da estrutura historio-gráfica da literatura italiana. Apoiando-se nos resultados das pes-quisas textuais e filológicas realizadas nos últimos anos, esse crítico apresenta-nos um novo desenho da sua topografia. Tem por contra-ponto a história e antologia da literatura italiana, intitulada Ilfilorosso, cujos oito volumes (aos quais se acrescentam os guias de uti-lizador) sairão até ao final de 2006, sob coordenação do próprio Marco Santagata e de Laura Carotti, Alberto Casadei e Mirko Tavoni. Por sua vez, Maurizio Perugi retoma as grandes lições da

escola filológica italiana, em particular da crítica de variantes, para as aplicar a uma canção de Luís de Camões. As conclusões da sua análise mostram bem como, quer os estudos camonianos, quer os estudos petrarquistas em geral podem ser enriquecidos por uma me-todologia comparatista que saiba potenciar sinergias. A estes dois ensaios de fundo, juntam-se, na secção final, três intervenções que traçam uma perspectiva das actividades e das iniciativas levadas a cabo por ocasião do sétimo centenário. As confluências que vão sendo construídas no âmbito da tradução do Petrarca em vulgar para por-tuguês são avaliadas por Xosé Manuel Dasilva. Roberto Gigliucci delineia um panorama global dos estudos acerca do petrarquismo com informações relativas não só às grandes linhas de pesquisa des-bravadas, como também às edições críticas da obra dos petrarquistas italianos que de alguns anos a esta parte têm vindo a ser realizadas, sem deixar de assinalar as grandes sendas em perspectiva. Por úl-timo, Rita Marnoto apresenta algumas informações gerais acerca das actividades desenvolvidas por ocasião do centenário, em parti-cular no âmbito luso-italiano.

É mais que patente o facto de as celebrações de Francesco Petrarca de modo algum se terem resumido a uma recordação de circunstân-cia. Aliás, da presença continuada e vital de Petrarca na cultura e na literatura de hoje diz-nos a palavra dos poetas ou o diário que por David Mourão-Ferreira foi registado a 25 de Abril de 1974 em Arezzo. A Marco Santagata, Maurizio Perugi, Xosé Manuel Dasilva, Roberto Gigliucci e Teresa Martins Marques, bem como aos poetas Luís Quintais, Vera Lúcia de Oliveira e Vasco Graça Moura, são dirigidos públicos agradecimentos pela sua colaboração e pela oportunidade que deram à revistaEstudosItalianosemPortugalde oferecer ao seu público um panorama vivo dos setecen-tos anos do poeta.

RitaMarnoto

ENSAIOS

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:13-39

NASCERDUASVEzES.VICISSITUDESDALÍRICAITALIANADOSPRIMEIROSSéCULOS*

Marco Santagata

1. As obras de grande divulgação,emesmodeclarada-mente‘científicas’,desenhamfrequentementeumahistóriada lírica italianados séculosXIIIeXIVmuito,paranãodizer demasiado, simplificada.No fundo, delineiamumacadeia principal constituída por poucos elos (Sicilianos,StilnovocomGuinizzelli,DanteePetrarca), ladeada,emcontracanto,pelofiodosjocososourealistas.

Tomemoscomopontodereferênciaduasobrassignifi-cativas, publicadas a quarenta anos de distância uma daoutra:osclássicosPoeti del Duecento deContini,editadosem1960,eaAntologia della poesia italianaorganizadaporSegreeOssola,cujoprimeirovolume,dedicadoaoséculoXIII,remontaa19971.

AantologiadeContini,maisdoqueumcânone,fixouumaimagemdapoesiadoséculoXIII,aquelaquecadaumdenóstemaindahojeàfrentedosolhos,quandopensanapoesiadessacentúria,tomadanoseuconjunto.OséculoXIIIdeContini,longedeseesgotarnasabstractasfinezasdocó-digocortêsounasparalelasabstrusidadesretóricasdotrobar

* TraduçãodeRitaMarnoto.1 Poeti del Duecento,ac.diGianfrancoContini,Milano-Napoli,Ricciardi

1960,2vol.;Antologia della poesia italiana,direttadaCesareSegreeCarloOssola,Duecento,Torino,Einaudi1997(1999).

14 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 15

clus, afinal produtos fortemente codificados, é percorridoportensõesexpressionísticas,pordesígniosexperimentalis-tas,porumapluralidadedepropostasliteráriasquepressupõeumapluralidadedeutentes.Masdessaimagemdeconjuntoalíricaétãosóumaparte.

Tambémemâmbito líricoContini introduz inovaçõesorientadasnosentidodavariedade.Se,dezanosantes,Sali-naritinhaarticuladoasuaantologiadePoesia lirica del Due-cento2apenasemtrêspartes,“ISiciliani”,“Guittoneeiguit-toniani”,“GliStilnovisti”(semDante),Contini(queafirma,contudo,nanotadeapresentação,teradoptadooesquemahistoriográfico“piùaccettato,frustoepacifico”)subdividealíricaprofanaemnumerososcapítulos:“Scuolasiciliana”,“Poesiacortesetoscanaesettentrionale”,“Poesia‘popolare’e giullaresca” (“popolare” entre aspas, “al perentomodoromantico”), “Poesia ‘realistica’ toscana” (também entreaspas),“DolceStilNovo”(semDante,mascomGuinizzelli),“Vicinideglistilnovisti”.Contudo,ficaaimpressãodeque,paraalírica,Continiestámenosdeterminadoemseafas-tar dos códigos aceites. Se considerarmos a percentagemde textosantologizados (calculadacombasenoconjuntodoslíricos,cercade500),asuaprogressão(Sicilianos12%,Corteses 25%, Stilnovistas 33%) não se afasta muito dadeSalinari(Sicilianos17%,Guittoneeguittonianos37%,Stilnovistas45%).

Maisalgunsnúmeros.NosPoetideContini,osSicilianoseosSilnovistas(semDante)juntosvalem46%;comoacres-centodos“Vicinidegli stilnovisti”,chegama60%.Umapresençaestávelnocânoneéadospoetas“realistas”: so-mando-osaosprecedentes,apercentagemglobalchegaa73%.Quarentaanosvolvidos,aantologiadeSegreeOssolamantém,substancialmente,amesmaplanificação:nestecaso,a“Scuolasiciliana”vale19%,os“Siculo-toscani”21%,o

2 La poesia lirica del Duecento,ac.diCarloSalinari,Torino,Utet1951.

“Stilnovo”28%.Crescemos“realistas”(etiquetadoscomo“Poetigiocosi”),com28%.Comosevê,aparelhaSicilianos-Stilnovistas(semDante),porsisó,atesta47%(eram46%emContini).Comoacrescentodosjocosos,apercentagemsobepara71%,muitopróxima,pois,dos73%deContini.JáobserveiquedestasantologiasandaausenteoDantelírico.éevidentequecomasuapresençasefariaaindamaisnítidaalinhaqueidentificaoeixodesuportedalíricadoséculoXIIInasucessãoSicilianos-Stilnovo,comumparêntesescortêseoapêndicecómico-realista.

ForadeItália,estarepresentaçãofaz-seaindamaisacen-tuada,paranãodizeresquemática.EsquemáticaéadasEpo-chen der italienische Lyrik(1964)deHugoFriedrich3:aumprimeirocapítulosomatório(trovadoresprovençais,sicilia-nos,poesiareligiosaeburlesca),seguem-seoscapítulosdedi-cadosao“Dolcestilnovo”,aDantee,semsoluçãodecon-tinuidade(factoaterpresente),aPetrarca.MaisarticuladoéoquadrooferecidopelaAnthologie bilingue de la poésie ita-lienne publicada pela Pléiade em 19944. Articulado, masconsiderandoàparteadilataçãodonúmerodetextosjo-cososerealistas,nalinhadequantojáobservámos:23%detextossicilianos,12%desículo-toscanos,35%dejocosos,29%destilnovistas(semDante).ComoemFriedrich,tam-bémnestecasoocapítulodantescoéimediatamenteseguidopelopetrarquesco.

Opercursodelineadoédiscutível,nãoporsacrificarsabe--seláqueobra-prima,oupormortificarsabe-seláquegrandepoeta,masporinsinuarumaideiaevolutivadanossalíricadasorigensqueacabaporseprojectarbemparaalémdos

3 Trad.it.:HugoFriedrich,Epoche della lirica italiana,Milano,Mursia1974--76,3vol.

4 Anthologie bilingue de la poésie italienne,PréfaceparDanielleBoilletetMar-zianoGuglielminetti,EditionétabliesousladirectiondeDanielleBoillet,aveclacollaborationdeGiovanniClerico,JoséGuidi,MauriceJavion,FrançoisLivi,LauraNay,ClaudePerrusetAndréRochon,Paris,Gallimard1994.

16 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 17

confinsdoséculoXIII.éaideiadeumcursolinearepací-fico,deumahomogeneidadequeunificaséculosdepoesialíricaitaliana.EraoqueescreviaFriedrichem1964:alíricaitaliana“ha,rispettoaquella francese, spagnola, ingleseetedesca, ilvantaggiodiunamaggiorecoerenza.Essanonpresentabruschefrattureditradizione.Apartealcunimu-tamentitematici,restapersecolivivoquelpatrimoniofon-damentaledivocaboli,diformelinguistiche,disignificati,dimezzistilistici,digenerichefufondatodaisicilianiedaifiorentinidelXIIIsecoloeratificatodalPetrarca”5.Repete-oSegreem1997:“Sipuòdirechelanostrapoesialirica,com-presoilsuobifrontismo,segueunpercorsomoltolineare,cosìcheperl’ethos,nonmenocheperlessemiesintagmi,pertopoiecc.,sipuòtracciarefacilmenteunastoria,checul-mineràconPetrarcaperpoiseguireilsuomodellosinoalSeicento”6.

Parece-me,pelocontrário,queessahistóriafoibemmaisfracturadaedramática,maisricadepotencialidadesnãoex-pressasedemotivaçõessilenciadas,emenossujeitaàdita-duradeunspoucosou,melhordizendo,sujeitaàditaduradepoucosemvirtudederazõesa seremprocuradasmaisforadainstituiçãoliterária,doquenaaparentecontinuidadedetopoielinguagens.Eparece-mequeosfiosseembaraçamlogoapartirdoséculoXIII.

2. ébemcertoque,seprivilegiarmososextremos,ouseja,porumlado,aquelaestranhaexperiênciadelíricacor-têssemcortequefoiapoesiaimperialdaSicília,poroutrolado,aquelaestranhatentativadelíricaaristocrático-burguesaquefoioStilnovo,esepusermosemrelevoosfactoresdecontinuidade,entãooemaranhadodefiosqueenredaosé-culoXIIIdesfaz-sedeformasimpleselinear.Nãoé,pelocontrário,assim,setivermosemlinhadecontaosimpulsos

5 Epoche della lirica italiana,pp.V-VI.6 Antologia della poesia italiana,p.XVIII.

centrífugoseastensõesquepercorremalíricadesseséculo.Nessecaso,emergirãofracturasprofundas,bemmaispro-fundasdoqueobifrontismoaqueacenavaSegrecomoconvívio,noúltimoquartodeséculo,deumalíricaáulicaedeoutracómico-realista.Deresto,observoàparte,otermobifrontismo,jáusadoporContini,talveznemsequerconfiraplenarazãodeseraessadualidadeespecífica.Naverdade,designaduas facesdeumarealidadequedeve ser lidadeformaunitária.Hoje,contrariandoatendênciadeorigemidealistaquelevaaverosjocososcomoumfenómenopre-valentementemetaliterário,deconscienteparódiadocon-temporâneoregistotrágico,começaadespontaratendência,emparteantecipadapelospositivistas,paraconsideraressefilãopoéticonasuaautonomia,desvinculando-odaideiadecontracantoparódico,pararestituirdignidadedevividoaosconteúdosqueexprime7.

Asfracturasaqueanteriormentealudiasão,porém,outras.Primeiradetodas,alinguística.Ofactode,emItália,a

lírica serbilingue–toscana(comoosSicilianosadquiremverdadeira importância depois de “traduzidos”, acabam,tambémeles,porfazerempartedopanoramalíricoemtos-cano)eprovençal–nãotemmerecido,nasreconstruçõeshistoriográficas,todoorelevoquemerece.Adiversidadedaespecializaçãodefilólogosromânicosedefilólogosita-lianosparece-meterconstituídoobstáculoaumacompreen-sãoglobaldalíricaemvulgar.Apesardenãofaltarempoetasqueescrevememambasaslínguas,maisdoquedebilin-guismodever-se-áfalardeduplocircuito:provençal,anortedosApeninos;toscano,naItáliacentral(comosseusanexosbolonheses).Oduplocircuitodiferencia-seclaramente,peloquedizrespeitoàspessoasfísicas,ospoetas,masmuitome-nospeloquedizrespeitoàcirculaçãodelivros.Querodizer

7 Cf.ocap.“Latradizionecomico-realistica”deClaudioGiunta,Versi a un destinatario. Saggio sulla poesia italiana del Medioevo,Bologna, IlMulino2002.

18 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 19

que,seostrovadoresviveramsobretudonasgrandescortesfeudais,oscancioneirosprovençaisdevemtertidoleitoresnãosónacortedeFredericoII,mastambémnascidadestoscanas.Dacoexistênciaentreseparaçãoeintersecção,ashistóriasdaliteratura,easantologiasaindamais,nãoofere-cemuma representação adequada.Quemquiser ter umaprimeiraideia,mesmosónoplanovisual,dopanoramalíricoitalianodemeadosdoséculo,devefolhearaspáginasdoscancioneirosantigoseditadosporAvalle8etambémasdoúltimovolumedeLos trovadores deMartindeRiquer9,ondesãoantologizadosostrovadoresitalianosactivosemItálianoséculoXIII.

Oduplocircuitolinguísticodevesercolocadoemrela-ção,pelomenos,comdoisoutrosfenómenos:comoatrasodalíricanumvulgaritalianoemrelaçãoaorestodaEuropaecomaconcentraçãodalíricaemtoscanonumaáreageo-gráficarestrita.Bilinguismo,atrasoeconcentraçãogeográficadenunciamofactodeemItáliaaproduçãolíricaandarimis-cuídanograndeconfrontopolítico-socialeconotam,comosendodeclasse,nãosóaproduçãoemprovençaldascortesfeudais,mastambémaproduçãoemtoscanodascomunascentro-italianas.Seriadifícil,paraalémdeimpróprio,tentardarumadefiniçãodessaclasseemtermosmodernos,apesardenosentendermossedissermosqueoslíricosqueescre-vememtoscano sãoexpoentescultosdomundourbanoligadoaocomércio,àsmanufacturaseàfinança.Anovidadeeapeculiaridadedasituaçãoitalianaresidemnofactode,nestecaso,alíricanumvulgarlocalseterquasederepentelibertadodomundodascortesfeudais.Oquesignificaque,paraalíricatoscana,tendoemlinhadecontaainstituição

8 Concordanze della lingua poetica italiana delle Origini (CLPIO),ac.diD’ArcoSilvioAvalleeconilconcorsodell’AccademiadellaCrusca,Milano-Napoli,Ricciardi1992.

9 MartíndeRiquer,Los trovadores. Historia literaria y textos,TomoIII,Bar-celona,Ariel1983(1975).

literária,podemosfalardeumatradiçãocortês,mas,consi-derandoopapelqueessatradiçãodesempenhavanasocie-dadefeudal,nãopodemosfalardeumalíricafuncionalmentecortês. Inútil sublinhar quanto uma “cortesia” citadina emercantilpossaserdiferente,nassuasfinalidadesessenciais,daquelaque,duranteséculos,foifundamentoebaseideoló-gicadasociedadenobiliária10.Digamos,compalavrasbreves,queseavelhacortesiaerainstrumentodeintegraçãoecoesãodeumaclassedirigenteestabelecida,anovacortesiaéumdoscanaisparaaformaçãodeumaclassedirigentein fieri.

Omundocomunalévário,comdivisõesequerelas,ésocialeculturalmenteestratificado,estáabertoaonovoe,aomesmotempo,estádisponívelparaabsorverestilosdevidae tiposdeconsumoculturaldemarcanobiliárquica.Alíricaexprimetudoisso:éváriaquantoaoconteúdoeàforma, encontra-se dividida em escolas e correntes, andaenvolvidaemdiatribesideológicasepolíticas,sempreprontaparaabsorveratradiçãoe,damesmafeita,paraacontestar,éconservadoraeexperimentalatéàprovocação,tantosepodedirigircomumalinguagemcrípticaagruposdeini-ciados,comodarvozaexperiênciasdavidaquotidianaoufalarànovaaristocraciacomalinguagemdavelhaeàscama-das populares com linguagens destruturadas. Em suma, alíricada“geraçãodomeio”nãopodesercircunscritaaosconfinsdasmaneirasformalizadas,dasescolasedoscódigosfechados.écomoseahomogeneidadeumpoucoartificialdosSicilianos,depoisdeoterrenotoscanotersidofertili-zado,sedesfizesseempedaços.Dasuaexplosão,apardopersistenteedominantefilãoamoroso,nascerampoesiapolí-tica,poesiapartidária,poesiamoral,poesiadoutrinal,cientí-fica,didáctica,poesiagoliardaejocosa.Atépoesiapré-artís-

10 AludoàinterpretaçãogeraldalíricatrovadorescadeErichKöler,Sociologia della Fin’amor. Saggi trovadorici,TraduzioneeintroduzionediMarioMancini,Padova,Liviana1976.

20 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 21

tica nasceu. Dos cancioneiros Laurenziano, Palatino eVaticano,Avalleextraiuumasériedetextospredantescosnosquais(sãopalavrassuas)“siaffollanopersonaggiincre-dibili[…],carceratieusurai,indoviniecartomanti,alchi-mistieteologirissosi,buffoniefalliti”.“L’interessante(con-tinuaAvalle)èchenonsitrattadipoesiemanieristiche,maditestimonianze[…]diesperienzevissuteinproprio”;“lapiùparte[diquestipoeti]sembra[…]gentevenutadalnulla(letterario)”11.Emconclusão,éorestodossobreviventesdeumuniversodepoesiapré-artísticaquefoivarridopelocursodahistória12.

Nãosepensequenosectorqueé,delonge,omaisim-portante,olírico-amoroso,reinepazeconcórdia.Ecomopoderiareinarse,porexemplo,adicotomiaentretrobarleuetrobar clus tantasvezessuperaoplanodaretórica,chegandoatéadeixarentreveroscontornosdeumadivisãopolítica:guibelinosefilo-imperiais,os‘corteses’doestilochão;guel-fos,osguitonianosdoestiloobscuro?Deresto,aoposiçãoentrecorteseseanticortesesficamuitoparaalémdadisputateóricade amoreoudapuraaltercaçãopoética:entreosquerepisamosvelhostemasdafin’amor easguinadascontraoamoradúlterodosGuittone,dosMonteAndrea,dosChiaroDavanzati,vaiumadiferençaideológicaprofunda,umalinhadedemarcaçãoquedistinguedoismodosdeconceberafamí-liaeaestruturasocialcitadina13.

11 Concordanze della lingua poetica italiana delle Origini,p.840.12 Outrasimportantesconsideraçõessobreo“realismo”,entreaspas,dalírica

doséculoXIII,encontram-senolivrodeClaudioGiunta,Versi a un destinatario.13 AntecipeialgumaslinhasdaminhainterpretaçãodalíricadoséculoXIII

nacomunicação,La fondazione del canone e della biblioteca volgare,apresentadaaocongressoda“Associazionedegli Italianisti Italiani” realizadoemRomaem2001(Il Canone e la Biblioteca. Costruzioni e decostruzioni della tradizione letteraria italiana, ac.diAmedeoQuondam,Roma,Bulzoni2002,pp.3-21),tambémpublicada,comvariantes,na“NuovaRivistadiLetteraturaitaliana”,IV(2001),pp.9-39.

Estassumáriasobservaçõesqueriamsugeriraideiadequealíricatoscanada“geraçãodomeio”,quenóshojelemoscomogéneroliterárioespecializadoeparaespecialistas,en-tão,nopontomáximodocrescimentoeconómicoesocialdosnovosestratoscitadinoseantesdeaCommedia deDanteterdescompaginadotudo,seapresentoucomosendooins-trumentoliterário,senãoexclusivo,certamentemaisdúctilepotente,quefoielaboradoparafalardarealidade:amo-rosa, política, ideológica, existencial, criatural. é este oquadrosobreoqualsedevemprojectarasrecusas,aspolé-micas,aorgulhosadiversidadedaquelepunhadodelíricosflorentinosqueDantehá-deetiquetar comocultoresdo“dolcestilnovo”.

Sãopoucos,defacto,masagressivos.Sobretudo,sãolúci-dos e determinados quando avançam com um programapoéticoque,semqueopareça,setingedefortestonsideo-lógicos.Arriscoumaafirmaçãoquepoderáparecerumpoucoparadoxal:asua,éaúnicaverdadeiratentativadecriarumalíricafuncionalmentecortês.OqueaexperiênciatemdeextraordinárioresidenofactodetersidofeitanocoraçãodeumaFlorençaguelfa,mercantilefinanceira.Asuacorteéidealemetafórica,talcomodecertaformaoseráa“aula”imperialdantesca:olugarvirtualondearistocraciasocialearistocraciadeculturasepodemencontraratécoincidirem.ParaGuido,Danteeosseusamigos,pareceserclaroqueumapoesiarigorosamenteamorosapelostemastratados,leuna formae lógico-filosóficanos seus fundamentos,nãoéumregressoaopassado,masomododeenlaçar,aumatra-dição‘alta’,umajovemaristocraciaintelectualquesepropõecomovanguardadosnovosestratossociais.Quantomaisoseucódigopoéticoseafastadecompromissoscomareali-dade,tantomaisosseustextosseenchemdereaisvalênciasideológicas.Poucasvezes,emmeuentender,umatãopa-tenteabstracçãoderesultadosseradicounoprópriodina-mismodastransformaçõessociais.

22 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 23

3.Aquelaestação,comasualíricamultiforme,experi-mental,envolvidanumarealidadeeemlutaspolíticas,sociaiseideológicas,quetinhapodidomarcardemododuradouroocursodanossapoesia,revelou-seumapotencialidadenãoexpressa.Alíricaitalianaseguiuoutrasestradas,privilegiouo temaamorosoeaestabilidadedosestatutos formaisdematrizstilnovista-petrarquesca.

Foi,naverdade,achamadaàordem14,primeiro,dosStilno-vistas,depois,dePetrarca,asufocarospossíveisdesenvol-vimentosheterodoxosdalíricadoséculoXIII?Seobservar-mos a história literária de cima, não podemos deixar deresponderafirmativamente.Mas,paraseapresentarassim,opontodeobservaçãodevesercolocadosuficientementealto,demodoaanularolapsocronológicodemaisdeumséculo:tantoéotempoquepassa,naverdade,atéqueemItáliaseforme e se consolideuma tradição lírica dotadadaquelascaracterísticasderepetibilidade,ordemedelimitaçãotemá-ticaquesepodemresumircomonomedepetrarquismo.é,pois,evidentequealinhahistoriográficaescolar,enãosóescolar,Stilnovismo–Petrarca–petrarquismo,introduzsimplificaçõesedistorçõesquenãotêmcorrespondentenahistóriadeoutrosgénerosliterários.

OsStilnovistastiveramsucesso,sobretudoemFlorença,efoisobretudoemFlorençaqueocontinuaramaternasdécadassubsequentes.Honestamente,nãosepodeafirmarquetenhammodeladoalíricadoséculoXIV.TambémPe-trarcatevesucesso,masparapoucos.Tambémnoseucaso,nãosepodepropriamentedizerquetenhatidopesonalíricadoseuséculo.Deresto(etiveocasiãodeonotarmuitasvezes15),vinhadeumoutromundo,deumoutromundo

14 SegundoacélebredefiniçãodeGianfrancoFolena,Cultura e poesia dei Siciliani, in Storia della Letteratura Italiana, I. Le origini e il Duecento, Milano,Garzanti1965,p.290.

15 RemetoparaMarcoSantagata,I frammenti dell’anima. Storia e racconto nel Canzoniere di Petrarca,Bologna,IlMulino2004(IIed.)eparaaIntroduzione a

geográficoecultural,ealémdissonassuasrimafalavaparapessoasbemdiferentesdospobres(culturalmentepobres)ver-sejadoresdasuaépoca.éumdadodefactoquenasrecolhasmiscelâneasdoséculoXIVedeiníciosdoséculoXV,ouseja,manuscritosquefotografamoquadrodoqueefectiva-menteselia,aparecemosnomesdeCavalcanti,Guinizzelli,Dante,masaparecemmenosdoqueosdeoutrosrimadoresdoséculoXIVquehojesão,paranós,semidesconhecidos.Alémdisso,onomedovelhoGuittoneaindanãotinhasidoesquecido.UmoutrodadodefactoéodequeatéonomedePetrarcatambémsóesporadicamenteseencontra.Maisdoquedenomes, trata-sedetextos.Namaiorpartedoscasos,ascomposiçõessãoanónimaseoanonimatoatingedomesmomodograndesepequenos16.Paraumleitormé-diodepoesia,nasprimeirasdécadasdoséculoXV,osgran-desautoresnãocoincidemcomosdehoje:sãoosAntoniodaFerrara,osFaziodegliUberti,osFrancescodaVannozzo,osSimoniSerdini.Setivéssemosdeindicarobig,aescolhanãopoderiaincidirsenãosobreum:SimoneSerdinidaSiena,chamado“ilSaviozzo”.

Nenhumdosrimadoresqueacabaramdesernomeadossedistinguepelassuasqualidadespoéticas.Oslíricosdosé-culoXIV,noseuconjunto, sãopobresdevalor,masemgrandenúmero.Relativamenteaoséculoprecedente,deu--seumsaltoquantitativo.SerianecessáriomuitotempoparatraçarumdesenhofidedignodapoesiadoséculoXIV:éde-masiadovária (nos temas, nos géneros e nas formas) parapoderserarrumadacommeiadúziadepalavras.Contudo,

FrancescoPetrarca,Canzoniere,ed.commentataac.diMarcoSantagata,Nuovaedizioneaggiornata,Milano,Mondadori2004.

16 Umcódigorepresentativodessarealidadeéoms.daLaurenziana,“Con-ventisoppressi122”,acercadoqualsepodeconsideraratesededoutoramento,discutidanaUniversidadedePisaem2004,deMariaClotildeCamboni(Un manoscritto miscellaneo di rime e prose volgari: Firenze, Biblioteca Medicea Laurenziana, Conventi soppressi 122).

24 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 25

paranossasorte,aimpossibilidadedeareduziraumpunhadodecategoriasbemdefinidaséfactoporsimuitosignificativo:aresistênciaàsclassificaçõeséíndicedeumasubstancialcon-tinuidadeentreavariedadeprestilnovistaeaqueleengarra-famentotipológicodoséculoXIV.Aspotencialidadespoli-fónicas da poesia lírica da “geração do meio” não sósuperaramasbarreirasqueosStilnovistastinhampretendidoerigir,masacentuaram-nasaindamais,paranãodizerquelevaramaumadeflagração.Bastará,porém,umasimpleslei-tura,paracolherumadiferençasubstancialentreapolifoniadoséculoXIIIeaanarquiadoséculosucessivo.Seumtextoamoroso,político,moralourealistadoséculoXIIItransmiteaoleitorumasensaçãode‘veracidade’ede‘autenticidade’,um texto amoroso,moral,políticoou realistadeumdostantosrimadoresdoséculoXIV(nãosendoPetrarca,bementendido) não consegue ser levado mesmo a sério. Ouseja,nãoconseguedissiparasensaçãodequesetratadeumobjectoafinalsecundário,quenãotemincidêncianemaquerter.Entenda-sequenemtodasascomposiçõespodemseretiquetadascomojogosliterários,massópoucassepodemadornarcomotítulodetextosdeconhecimento.OslíricosdoséculoXIVandamporumaespéciedeterradeninguém:nãoaspiramàquelecultodaformaqueserácensuradoaosseuscolegasdoséculoXVI,masnemtãopoucoseaproxi-mamdaqueleempenhamentoéticoqueosdetractoresdospetrarquistasdeQuinhentoshão-dereclamar.Relativamenteaopassadoimediato,acontecequealírica,deinstrumentomaiordacomunicação literária, se tornouumgénero,oumelhor,umapráticaespecífica,umdoscomponentes,enemsequeromaisimportante,dosistemaliterário.Passamaseroutrasastipologiasdeescritaqueveiculamconteúdosqueinteressam.Alíricacontinuaafalardarealidade,individualesocial,massobumaangulaçãoparcial,desprovidadeumamarcaideológicacredívelecomumtomque,nofinaldecontas, não aspira a uma audição particularmente atenta.

Ascausasdessedeclíniosãoconhecidas:crisedainstitui-çãocomunal,nascimentodas“tiranias”erespectivaevo-luçãopara“senhorias”,crescentepapeldesempenhadopelasnovascortesenquantocentrosdeproduçãodepoesiadeentretenimentoepropaganda,transformaçãodopoetalírico,de“intelectual”,emdiletante17.NãoforamosStilnovistas,pois,quehomologaramaricavariedadedepropostaslíricasda“geraçãodomeio”: as formasdessa lírica sobrevivemdurante muito tempo. é o seu espírito que se vai apa-gando,poucoapouco,equesevaidegradando,àmedidaqueoséculoavança,emvirtudedoenfraquecimentoda-quelespressupostossociais,políticoseinstitucionaisquelhedavamvida.

Nesselongoeconfusoprocesso,demodoalgumlinear,dá-seumoutrofenómenobemconhecido,eque,porém,valeapenasublinhar,ouseja,arupturada“linhagótica”porpartedalíricaemtoscano.Obaricentrodesloca-sedaItáliacentralparaaItáliasetentrional,atravésdeumarcogeográficocompreendidoentreMilãoeRimini:completa--se,assim,aquelemovimentoascendentedeSulparaNortequecaracterizouahistóriadoprimeiroséculodapoesiaemvulgar.Apartirdesseperíodo,oslancesverdadeiramentedecisivos,paraahistóriadogénero,serãosetentrionais.Sequisermosvoltaraolharascoisasdecima,parafazeromapadoDNAdanossalírica,nãonospodemoscontentarcomaapostanaduplaStilnovo–Petrarca:temosderecordar,pelomenos,osnomesdeGiustode’ContidiValmontonee de Pietro Bembo. Inútil determo-nos sobre Bembo.QuantoaGiusto,éumdoselosimprescindíveis,nãoporserromano,masportermorridoemRimini.Acrescento,

17 ParaumquadrodeconjuntodapoesiadoséculoXIV,continuaa serinsubstituível,ArmandoBalduino,Premesse ad una storia della poesia trecentesca, “Lettere italiane”, XXV (1973), pp. 3-36, depois editado no vol. Boccaccio, Petrarca e altri poeti del Trecento,Firenze,Olschki1984,pp.13-55.

26 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 27

umpoucoprovocatoriamente,que talveznão seja total-mentedescabidoconsideraropróprioPetrarcaumastrodagaláxiasetentrional.

4. NãoachoquePetrarcaalgumaveztenhaimaginadoquealíricaitalianadepelomenosdoisséculosviesseaserdesignadaapartirdoseunome:nada,duranteasuavida,lhopodiafazercrer.Seter-setornadomentordaquelatra-diçãoéculpadealguém,Petrarcaestáseguramenteinocente.Mas,ditoisto,nãoéquenãodesempenheumpapelimpor-tanteparaofuturodesenvolvimentodapoesia–e,poder--se-áacrescentar,detodaaliteraturaemvulgar–,mesmoemtemposquelhesãopróximos,sóqueéumpapelmuitodiferentedodepaifundadorquelheélegitimamentere-conhecido.Umpoucoabrincar,umpoucoasério,podía-mos até dizer que Francesco Petrarca correu o risco depassaràhistórianãocomopaidalírica,mascomoaquelequeasufocouaindanoberço.Teriatidocúmplices,comcerteza,masseuteriasidooplanodocrime.Petrarca,defacto,éosupremoresponsávelporaquelerelançamentodalíngualatinaedomundoclássicoquefoioHumanismo,eoHumanismoproduziuumaradicalredistribuiçãodaspar-tesnosistemaliterárioecultural.Oséculoquetinhacome-çado com aCommedia, que ameio tinha visto nascer oDecameron eoCancioneiro,istoé,quetinhasancionadoaplenamaturidadedovulgar, terminavacomumagrandecrisedaliteraturaemvulgar.ApartirdasúltimasdécadasdoséculoXIV,instaura-se,emItália,umnovoregimedebilinguismo,oumelhor,deduplocircuito:semserrestrito,porém,aumgénero,comootinhasidonoséculoXIV,masextensivoaqualquermanifestaçãodaculturaescrita.Acultura‘alta’éperfeitamentelatina,razãopelaqualalite-raturaemvulgardecai,automaticamente,paraumplanobaixo.A lírica, então, que já tinha sofrido umprocessodedeclínionoquadrodosgénerosemvulgar,resvalaparaníveisbaixíssimos.

Asvicissitudeseofalhançodo“Certamecoronario”de144118sãoumbomtesteparaavaliarquãoprofundaeraacrisedovulgar.Paraevitaraderrota,Albertitinhatomadotodasasprecauções:umassuntotipicamenteclássico,a‘ami-zade’, aobrigação,paraosparticipantes,de introduziremnascomposiçõesapresentadasaconcursosentençastiradasdosclássicos.Porsuavez,tinhaseleccionadocomposiçõesquesediferenciavamdasrimazitascorrentes.Apesardisso,perdeuclamorosamente.

Nãoquerissodizerque,nolongolapsodetempoquecorreuentreamortedePetrarcaeaconsolidação,emplenoséculoXV,dosestadosregionais,aproduçãolíricativessedesaparecido;podemosdizer,bempelocontrário,quefoimesmonaqueleperíodo,naáreavénetaenascortesdosEste,dosMalatesta eda áreadeFeltre, que se lançaramas sementesparao seurenascimento sobnovas formas19.é,todavia,umdadodefactoqueessasdécadas,considera-dasglobalmente,assinalamumafracturanahistóriadalírica.Naquevirádepois,oselementosdenovidadeirãopreva-lecersobreosdecontinuidade.“Nascerduasvezes”,escrevinotítulodesteestudo,precisamenteparasublinharqueahistóriadanossatradiçãolírica,aparentementeunitáriaelinear,é,narealidade,bipartida.Umaduplicidadequeaténotipodecompetênciasdosestudiososquedelaseocupamencontracorrespondente:aosespecialistasdelíricadossé-culoXIIIeXIV,pelomenosatéPetrarca,sãorequeridascompetênciasnoâmbitodaromanística,aosdelíricados

18 ReconstruídosemDe vera amicizia. I testi del primo Certame coronario,ed.criticaecommentoac.diLuciaBertolini,Modena,Panini1993.

19 Peloquerespeitaaesteperíodohistórico,remetoparaomeucap.,“FraRiminieUrbino:iprodromidelpetrarchismocortigiano”,inMarcoSantagata,Stefano Carrai, La lirica di corte nell’Italia del Quattrocento, Milano, Angeli1993,pp.43-95,eparaolivrodeItaloPantani,“La fonte d’ogni eloquenzia”. Il canzoniere petrarchesco nella cultura poetica del Quattrocento ferrarese, Roma,Bulzoni2002.

28 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 29

séculosXVeXVI,competênciasnoâmbitodapoesiaita-lianaedapoesiaclássica.

AderrotadeAlbertimostraqueoresgatedapoesiavulgarnãosepodiafazerapartirdedentro:nãoeradedentrodaliteratura,emuitomenosdedentrodalírica,quepodiambrotarosestímulosaumnovoequilíbriodoquadroglobaldosgéneros.Acontraprovaédadapelacircunstânciadeorelançamento,emgrandeestiloecomnovasformas,dalíricavulgarocorrernasegundametadedoséculo.écomodizerquesóumnovoquadrosocialeinstitucionalpodiabaralharascartasereporoequilíbriodasduasculturas.

Jádelineei,noutraocasião,osprocessoshistóricosque,domeumododever, levaramaoextraordinárioflores-cimentodalíricaquedesabrochanasegundametadedoséculoXV,bemcomoosmotivospelosquaisdespontacomascoresdePetrarca20.Empoucaspalavras:trata-sedaconsolidaçãodosistemadascortes,comasubstituição,aosestados“tirânicos”ousenhorisdaépocaprecedente,nãorarocomumadimensãomunicipal,deestadosouestado-zinhos regionais, eda formação,dentroeem tornodascortes,deumanovaagregaçãosocial‘mista’,aristocrática,masnãofeudal,heterogéneaetodaviacoesa,homóloganasuarealidade,decorteparacorteederegiãopararegião,e,comotal,tendencialmenteindiferenteaosconfinslin-guísticosedetradição.Emsuma,éesseconjuntodefenó-menospolíticos,institucionaisesociaisafecundaroterrenoparaumnovoflorescimentolírico.Alírica,aoretomaradominante amorosa, reencontra uma função social quetranscendeoentretenimentoeapropaganda,erigindo-sedenovoem instrumentodeagregaçãoeemveículodemensagensideológicas.Comefeito,nasnovascortesita-

20 Remetoparaocap.,“Dallalirica‘cortese’allalirica‘cortigiana’:appuntiperunastoria”,nocitado,Santagata,Carrai,La lirica di corte nell’Italia del Quat-trocento,pp.11-30.

lianasacontecealgoqueseparece,aolonge,esublinhoaolonge,comoquetinhaacontecidonascortesfeudaisdaProvençadostrovadores.

Agrandepeculiaridadedalíricaitalianaéprecisamenteessa,adetertidoumahistóriaquaseaoinvésdadasoutrastradiçõesromânicas.Aquiloque,noutraszonasdaEuropa,fica no início do processo, para nós verifica-se no fim.AItálianãoconheceuumaverdadeiratradiçãolíricadecariz‘cortês’:anobrezafeudalnãoteveforça,nemvontade,paraexperimentarnovasformasliterárias,ficandocoladaàlínguaeàsformasdaProvença.A“burguesia”toscanaprocuroudarvidaaumaproduçãolíricaprópriaerecognoscível,numatentativaoriginal,porémdeescassaduração.Foientão,emplenoséculoXV,quealíricasetornouumdosingredientesmaisimportantesdaculturadecorte:não‘cortês’,portanto,mas‘cortesão’.Umanovafigurasocialque,volvidasalgu-masdécadas,assumiráonomede‘gentil-homem’,apropria--sedesseingrediente,elegendo-ocomoumdosseustraçosdistintivos.éassimqueaItália,queoriginariamentetinhavividosobretudodeimportação,setransformaempotênciaexportadoradelírica,apontodedeteromonopólioeuro-peudogénero.

5. Géneroqueassumealinguagem,asformaseoimaginá-riodePetrarca.SabemosqueopetrarquismodoséculoXVprescindedeumateoriadaimitatio equeconsegueinstau-rarumcódigocomumatravésdapráticadaimitaçãoespon-tânea.Creioqueestaconceptualizaçãodesignaumfenó-menoanálogoaodadifusãodasmodas,nanossa época.Imitarummodeloporqueovizinhotambémoimitasigni-ficalevaracaboumactodeimitaçãoparaimitarumoutroactodeimitação.Numprocessoemqueimitaçãogeraimi-tação,maisdoqueomodeloemsicontamasmodalidadesdasuafruição.Asuasoma,porentresemelhançasedife-renças,conferesubstânciaaumatradiçãoquenãoéalimen-tadadoexterior,namedidaemquesenutreasiprópria.

30 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 31

Deoutraforma,pode-seafirmarquenãoéomodeloadar--lhevalor,sendoantesosactosdeimitaçãoqueseseguememcadeiaaconferiremvaloraomodelo.Comestasesque-máticas observações, pretendo sublinhar que, apesar deseremmuitosebemconhecidososmotivosquetornavamapoesiadePetrarcaparticularmenteadequadaparadesem-penharaquelepapeldereferência,asverdadeirasrazõesemvirtudedasquaisoCancioneiro seelevouamodelo sãoexternasaolivro.Tantoassiméqueoreconhecimentoofi-cialdasuaautoridademodelizantehá-dechegarmaistarde,quandojáhámuitosanosexisteumatradiçãopetrarquistaoupetrarquizante.

Parasepoderdifundirevingar,aimitaçãoporcontágiodeveencontrarumambientefavorável,ouseja,umambientequeinduzacadapessoaaimitarocomportamentodosvizi-nhos.Sãovizinhosdospoetaslíricos,nãosóenãotantosobopontodevistaespacialegeográfico,quantoporanalogiadecondiçãosocialeporhomogeneidadeambiental,aquelesqueestãosujeitosaosmesmosestímulosesãodestinatáriosdas mesmas solicitações. Estamos a falar do ambiente decorte.Nãoécomcertezaporacasoqueadistribuiçãogeo-gráficadospoetasquepetrarquizam,nosúltimosquarentaanosdoséculo,coincidequaseperfeitamentecomadascor-tes.BastarálançarumolharsobreacartapolíticadaPenín-sulaparavercomo,nodeclíniodoséculo,depoisdoregressoemforçadapoesiaàItáliameridional,foilevadaàperfeiçãoumaespéciedecercoàquelaToscananãocortêse,porisso,petrarquísticademodoanómalo.

NosanoscinquentaesessentadoséculoXX,quandofoiretomadoessegénerodeestudosdepoisdoeclipseidealista,paraindividuarapeculiaridadedopetrarquismoquatrocen-tistaelaborou-seacategoriadepetrarquismoapetrarquescooudepetrarquismosemPetrarca.Eraumaformadesubli-nhar,conformeescreviaMariaCorti,que“nelQuattro-centoilPetrarcanonècheunadellecomponentidelpetrar-

chismo”21. Essa ideia, bastante útil para livrar a poesiapetrarquistadoséculoXVdahipotecaquinhentista,porsuavezetiquetadacomoexpressãodeumpetrarquismo“hor-todoxo”ou“integral”22,apesardecontinuarasobreviveremhistóriasdaliteraturaemanuais,parece-mequejáteveosseusdias.Germinadanoseiodaspesquisasdoshistoria-dores da língua, que por aquelas décadas detinhamumaespéciedemonopóliodoestudodaliteraturaemvulgardoséculoXV,exprimiaumpontodevistaparcial.Hoje,po-rém,onossoconhecimentodopetrarquismoquatrocentistanãoécomparávelcomoqueentãosedetinha.Oqueémais,elaborámosumavisãopanorâmicadopetrarquismoqueenglobapetrarquismosindividualizados,tendoapossibi-lidadedevalorizar,comotal,aquelesaspectospropriamenteliterários, esmagados pelas interpretações centradas sobrealíngua.

DiziaanteriormentequealíricacortesãdoséculoXVseparece,aolonge,comalíricacortêstrovadoresca.Pensavanadimensãosocialdeambososfenómenos,nasuafunçãomodelizantedecomportamentosecostumes,nasuacapa-cidadedecriarumvocabuláriocomumatodoumestratosocial.Nãopretendia,porém,minimizarasubstancialdife-rençaentreasduastradições.

Àprimeiravista,alíricacortesãpodiaparecercomprome-tidacomavidasocialederelação,maisaindadoquealíricacortês.Acontecimentosdoquotidiano,pequenasougrandesocasiõesdahistória,festaseencontrosmundanos,testemu-nhosegarantiasdaautenticidadedonarradopovoamascom-posiçõesdoslíricoscortesãos.Noentanto,eéestaanítida

21 PietroJacopoDeJennaro,Rime e lettere,ac.diMariaCorti,Bologna,Commissioneperitestidilingua1956;cit.p.XLVI.Quemescreveutilizouamplamenteconceitoscomoessesnaobra,La lirica aragonese. Studi sulla poesia napoletana del secondo Quattrocento,Padova,Antenore1979.

22 SãodefiniçõesdeEmilioBigi,Lorenzo lirico, inDal Petrarca a Leopardi,Milano-Napoli,Ricciardi1954,pp.23-45.

32 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 33

diferençaentrecortesesecortesãos,ostextoslíricosdosé-culoXVnãosãoparteintegrantedosrituaisdecorteoudesociedade:nãosãoconcebidosnemapensarnumaperformance,nemcomaquelas intençõespragmáticas (pedidos, favores,relaçõesprivilegiadas)própriasdemuitascomposiçõestro-vadorescas.Oslíricosquepetrarquizam‘espelham’umam-bientesocial,delefazendoparte,porém,enquantocortesãosegentis-homens,nãoenquantopoetas.Entreasociedadedequefalameasuapoesia,umdiafragmapermanece.Odes-fasamentoentrerepresentadoerepresentaçãodefineasuaoperaçãocomoactoeminentementeliterário.

Aprincipalcaracterísticadopetrarquismocortesão,queéaqueodistinguedaprecedentetradiçãolíricae,pelomenosemparte,comoveremos,daquinhentista,éofactodesemanifestaratravésdelivrosderimasdeautoresindividuali-zados.Apoesialírico-amorosademarcapetrarquistaconfi-gura-se,aolongodesseperíodo,comoumsistemadehomensedelivrose,portanto,deindividualidades.Mesmoempre-sença de umvocabulário comum, de práticas largamentepartilhadasedeumuniversodiscursivotendenteàhomolo-gação,permaneceminalteradasafunção-autoreafunção--obra.Talvezsepudessesermaisclaroedizerqueafunção--autoreafunção-obraseafirmam,apartirdomomentoemque,senãoporoutrasrazões,emtermosquantitativos,corres-pondemaumanovidaderelativamenteàépocapassada,naqualanonimatoedispersãoeramcaracterísticasimportantesdogénerolírico.Tantomaisassimé,andandoobraseauto-resestreitamenteligados:muitasvezesopoetacortesãopra-ticasomenteogénerolírico,sendoquasesempreautordeumúnicolivroderimas,olivrodeumavida.

Eviteideliberadamenteutilizarapalavracancioneiro.Nemsempre,poder-se-iaatédizer,raramente,oslivrosderimasdoséculoXVsãomodeladosapartirdePetrarca.Bordejamsóassuasmargensmaisevidenteseexternas.Todavia,nãosãorecolhasorganizadasporgénerosmétricosouportemas,

segundo critérios extrínsecos. Tendem a estruturar-se aolongodeumfiológico,narrativoousentimental.Afinaldecontas,oqueinteressaéquesetratade“livrosdeautor”:umlivroderimas,quaisquerquesejamassuaspremissas,reenviaautomaticamenteparaPetrarca,porqueolivrofoiagrandeinovação(desprovidadesequazes,contudo,durantemuito tempo)que introduziunahistóriadogénero.Sobestepontodevista,oslíricoscortesãos,quesoboutrosaspec-tos se mostram muito livres em relação ao modelo, sãoconsiderados petrarquistas a pleno título. À sua maneira,naturalmente: um modo arriscado porquanto, no fundo,contraditório.Pretendemcomprimirdentrodasestruturasfechadasdeumlivro,podendoatéconferir-lheumanda-mentonarrativo,umaproduçãoaberta,vária,descontínua,socializada,eportantodemarcanãopetrarquesca.Todavia,opredomíniodainstâncialiteráriaimpedequeestalíricaseacomodeàfunçãodemeramodalidadecomunicativa,deactoefémeroeextemporâneo.TambémaconsciênciadeestarafazerliteraturaremeteparaPetrarca.

6.NasegundametadedoséculoXV,aimitaçãoporcontá-giodeuvidaaumatradiçãoamplae,sobretudo,recognos-cível.Senãotivessehavidoessepetrarquismodefacto,teriasidoimpensávelaexistênciadoprópriopetrarquismoregu-lar,teorizadoesustido,noséculoXVI,porinstrumentosdetrabalhoapropriados.

Amais relevanteherançaqueos líricos do séculoXVdeixamaonascentemercadoeditorialé,muitoprovavel-mente,olivroderimas.Nãoéfácildesbravar,commeiadúziadefrases,ograndemardaproduçãoderimasimpressas:vouavançar,comosecostumadizer,acorta-mato.

Naidadedosincunábulos,oscancioneiros,oumelhor,oslivrosdeautorsãoumaminoria23.ésignificativo,porém,

23 Fundamento-menaspesquisasdeNadiaCannata,Il canzoniere a stampa (1470-1530). Tradizione e fortuna di un genere fra storia del libro e letteratura,Roma,

34 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 35

quequase todosprovenhamdecírculosdecorte:Milão,Mântua,Ferrara,Urbino,Nápoles.Nasprimeirastrêsdé-cadasdoséculoXVI,onúmerodelivrosimpressosdeumsóautorconheceumforteincremento,tantoqueultrapassa,àvontade,odascolectâneasdeváriosautores.Aconfirmaracentralidadedolivrodeautor,paraalémdosmerosdadosquantitativos,hátambémaconsiderarumanítidatendência,porpartedastipografias,paraconferiremumaformaunitá-riaaoprodutolíricodefinaisdoséculoXV,oqualdelaeraoriginariamentedesprovido.NopontoculminantedeumprocessoinauguradocomaediçãodePetrarcafeitaporAldoManuzioem1501,coloca-seapublicação,em1530,dasrimasdeBemboedeSannazaro.Poressadata,ocaminhorasgadocomafixaçãoqueManuziofizeradomodelotipo-gráficodo livroderimasparecia teratingidoa suameta:opetrarquismoencontrouumateoriaqueregulavaoplanolinguístico-expressivoeumaformaprivilegiada,olivrouni-tário,meiodetransmissãoestabilizado.Assimnasce,comonosensinouDionisotti24,opetrarquismodo séculoXVI.Econtudo,sedeumpontodevistacentradonaobservaçãodolivroimpressolançarmosumolharparaoquesucederánasdécadassucessivas,aquiloquefoiindicadocomosendouminíciopodemesmoparecerumfim.

NoséculoXVI,anoçãodecancioneiroébastantepro-blemática25,tãoproblemáticaqueoprópriomodelopetrar-quescopodesersubmetidoaleiturasdrásticas,ouatéres-

BagattoLibri2000;degrandevaloréorepertóriodelivrosdepoesiareunidopor ItaloPantani:Biblia. Biblioteca del libro italiano antico, diretta daAmedeoQuondam;La biblioteca volgare,1Libri di poesia,ac.diItaloPantani,Milano,Editricebibliografica1996.

24 CarloDionisotti,Appunti sulle rime del Sannazaro,“Giornalestoricodellaletteraturaitaliana”,140(1963),pp.161-211.

25 TambémonotouGuglielmoGorni,Le forme primarie del testo poetico, inLetteratura italiana,direttadaAlbertoAsorRosa,IIILe forme del testo, 1,Teoria e poesia,Torino,Einaudi1984,pp.439-518(paraocancioneiro,cf.pp.504-18).

truturado (como o fez Vellutello na edição de 1525, omesmoano,note-sebem,dasProse deBembo),apontodeaniquilarasuaconfiguraçãooriginária26.Noplanodaprá-ticapoética,abundamsinaisdacrisedaquelaforma:desdeograndenúmerodeinéditosoudeediçõespóstumasquepareceserumacaracterísticadoslivrosdeautormaisestru-turados,atéàgrandeliberdadetidanaconstruçãodoscan-cioneiros,namedidaemqueaspreocupaçõesdeadesãoaumarquétiposãomuitomenoresdequantoohaviamsido,ejácombastanteliberdade,noséculoanterior.Oquemaisinteressa,numaperspectivadehistóriadaliteratura,équenumséculoXVImaduro,problemáticanãosejaapenasanoçãode cancioneiro,mas tambémade livrode autor,apesarde terumaestrutura.Nadifusãode textos líricosatravésda imprensa,asantologiasdeváriosautoresassu-mem,de facto,umpapelquetendeaaumentardepesocomapassagemdotempo,equesevaifazendomaisrele-vante, semdúvida,doqueodos livrosdeautor.Nãoéexcessivoafirmarqueessa tipologia se tornaconstitutivadaprópriapráticalírica,apontodedefinirasuanaturezaeasuafunção27.Querodizerque,sealíricadecortedoséculoXVseapresentacomoumasociedadedeindivíduosedelivros,adeumséculoXVImadurosurgecomoumagaláxiademicrotextos.

Aprimeiraimpressãoéadequeestenossopercursonostenhaconduzidoatravésdeumapaisagembemconhecida:adifusãodetextossoltosoudemiscelâneasdeváriosauto-

26 QuantoaAlessandroVellutello,pode-severocapítuloquelhefoidedi-cadoporGinoBelloni,Laura tra Petrarca e Bembo. Studi sul commento umanistico- -rinascimentale al “Canzoniere”,Padova,Antenore1992.

27 PrecursordestetipodeestudosfoiAmedeoQuondam,Petrarchismo mediato. Per una critica della forma “antologia”,Roma,Bulzoni1974.SobreoséculoXVI,veja-setambémovolume,“I più vaghi e i più soavi fiori”. Studi sulle antologie di lirica del Cinquecento,ac.diMonicaBiancoedElenaStrada,Alessandria,Edizionidell’Orso2001.

36 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 37

resnãoterásido,talvez,omodooriginárioe,sobretudo,duradouro e prevalecente, através do qual a poesia líricachegouaoseupúblico?Seassimfosse,operíododoslivrosderimas,ouseja,ossessentaanosaproximadamentecom-preendidosentre1470e1530,nãoseriasenãoumparênte-ses,ouatéumdesvio,numpercursosubstancialmentehomo-géneo.Masaprimeiraimpressãoéenganadora.Nãoqueoslíricos‘cortesãos’,queumconsolidadotoposhistoriográficovêsubstancialmentecomoumgrupodepoetasbizarroseextravagantes,devamserdesprovidosdaauraquasepreclas-sicistaquemeesforçoemlhesconferir(issonão),permane-cendocontudoosúnicosquetentaramimporumgéneroliteráriosemelhanteaoinventadoporPetrarcanoCancio-neiro:équeoslíricosquinhentistasnãopodemserassimi-ladosaoscolegasdosséculosprecedentes.Aimprensa,naverdade,modificouprofundamenteafunçãoe,comotal,ascaracterísticasdosseusprodutos.Alírica,queaolongodostemposveiculouinstânciaserepresentoumodosdeserdenobresfeudais,deburguesesdecomunasecidades,degentis--homensdecorte,emplenoséculoXVIparecenãopossuirumreferentesocialdefinido:nãofalaumalinguagemcomumdeclasse,exprimindoantesexperiênciasepensamentosdepessoassingularesou,nomáximo,depequenosgrupos.Emcompensação,porém,aodirigir-seaopúblicoanónimoeindiferenciadodomercado,temumauditóriocomonuncaotiveraaanteriorlírica,sejapeloquedizrespeitoàcom-posiçãosocialdosleitores,sejapeloquedizrespeitoàquan-tidadedoseunúmero.Ditoemtermosextremamentesin-téticos, talvez seja a primeira vez (à parte Petrarca, bementendido)queo“eu” líriconãosedeixa tão facilmentetraduzirporum“nós”e,sobretudo,queàquele“eu”nãocorrespondamum“tu”ouum“vós”comumafisionomiareconhecível.Apesardeseroprimeirofenómenodelitera-turademassasdanossahistória,opetrarquismoquinhentistaresisteàanálisesociológica.

Tambémemvirtudedeoutrosmotivosdefundoaimpres-sãodedéjà vuéerrada.écertoqueafragmentação,avarie-dade,amultiplicaçãodeangulaçõesepontosdevistaeafunção difusamente comunicativa assumida pelos textoslíricos,quenãoémenosimportante(ouseja,ofactodese-rem, emmuitos casos, referenciais, andando associados apráticasdesociedade,podendoterporfulcroasmaisvariadasfinalidadespragmáticas),écertoquetudoissonãoproduzumasensaçãodedesordem,emuitomenosdecaos.Pelocontrário,essecomplexodotadodeinúmerasfacetasapre-senta-secomoumconjuntocompacto,homogéneo,siste-mático.Agarantiraresistênciadeumgéneroquecontinhaemsitodasascondiçõesparasedesagregaraindamaisdesas-trosamentedequantosetinhadesagregadonoséculoXIV,estáaforçamodelizantedoclassicismonassuasváriasdecli-nações:forma mentis,teoriadaimitatio, práticapoéticafun-dadaemmecanismosderéplicaerepetição28.Apráticaeateoria classicistas erigemPetrarcanaprópria condiçãodeexistênciadeumaproduçãolíricaque,naconcepçãoenaprática,éoquemaislongedelesepossaimaginar.

Afirmei anteriormentequeé tempode remeterpara ahistóriadosnossosestudosacategoriade“petrarquismosemPetrarca”.Entendoqueháumaoutracategoriainterpreta-tivaquecontinuaagozar,porsinal,deumcertocrédito,quetambémdeveserabandonada:refiro-meàideia,quesubjazànoçãodepetrarquismointegral,segundoaqualoslíricosdoséculoXVIteriamassociadouma imitatio stilieumaimitatio vitae:Petrarcamestredeestiloedevida29.Nãomeparece,defacto,quenostextos(nostextoslíricos,quero

28 Acercadestestemas,nãopodedeixardeserfeitaremissãoparaostrabalhosdeAmedeoQuondam,comrelevoparaolivro,Il naso di Laura. Lingua e poesia lirica nella tradizione del Classicismo,Modena,Panini1991.

29 AideiafoisobretudodifundidaatravésdotãoconhecidolivrodeLuigiBaldacci,Il petrarchismo italiano nel Cinquecento,Padova,Liviana1974(2ed.;aprimeiraremontaa1957).

38 Marco Santagata Nascer duas vezes. Vicissitudes da lírica italiana dos primeiros séculos 39

dizer, e não em tratados ou comentários) se encontremexemplossignificativosdeumatalabordagem.Aideiadequeospoetaspetrarquistasoseguemcomomodelodassuasvicissitudesespirituais,naparábolaentreamorearrependi-mento,nãoencontracorrespondentenosseusversos.NãoéesseoPetrarcaqueencontramosnoscancioneirosqui-nhentistas,neméissooquecaracteriza,primordialmente,ograndefenómenopetrarquistadesseséculo.

7. Umaúltimaobservação.Umuniversolíricoimitativoerepetitivocomoeste,tantomaisqueseestendeassimpelotempo,comumatamanhariquezadetextos,anós,leitoresposromânticos, pode provocar, como ensina De Sanctis,uma sensação de artificiosidade e de inutilidadeou, piorainda,deaborrecimentoeasfixia.Masanós,historiadoresdofenómenoliterário,oferecevaliosaeabundantematériadereflexão.Sobriscodepoderparecerparadoxal,convidoaconsiderarofactodeoclassicismoquinhentista,precisa-menteemvirtudedasregrasquelhepermitiamconservarunidos,sobaégidedeumúnicocódigo,actossingularesváriosediferenciados,tersidotambém,alongoprazo,umfactordelibertação.Bemopodemosverificar,seacompa-nharmosaevoluçãodoslivrosderimasnoManeirismoe,depois,noséculoXVII.Aformadaantologiadeváriosauto-reseadarecolhaderimasdeumúnicoautor,internamentearticuladaemsubgénerostemáticos,foram,sobopontodevistahistórico, as incubadorasdeumprocessoque levoua líricaa libertar-se,primeiro,dahipotecapetrarquescaedepoisdasprópriasregrasdegéneroaqueobedecia.Atravésdesseslivros,alíricacomeçou,defacto,adiferenciar-senoseuespaçointerno,aespecializar-se,aenveredarporviascentrífugas.Àforçadetantoacumularrecolhasespecializa-daseparciais,desublinharpeculiaridadesdiscursivaseagre-gaçõestemáticas,alíricaacabaráporperderasuaunidadedesuperfíciee,porfim,aprópriaconsciênciadegéneroemsi.Degéneroliterárioquedesdeasorigenssetinhacarac-

terizadocomogéneroqueenglobavaereduziaàunidadeodiverso,noséculoXVIIe,sobretudo,noXVIII,transfor-mar-se-áemgénerodoqualseseparam,gradualmente,diver-sasmodalidadespoéticasqueacabarãodepoisporencontrarumacodificaçãoautónoma.Quandoumgrandepoetasen-tir denovo a exigência deorganizar os seus poemas emformadelivro,deixarádeterummodeloouumatradiçãoa que se deverá adequar ou de que se deverá distanciar:há-deencontrarnointeriordesseespaçoasrazõesquefazemdeumarecolhadepoesiasumlivro.Assimhão-senascerosCanti deLeopardique,paradoxalmente,atésepoderãoapresentarcomoumaderradeirahomenagemàqueleCan-cioneiroentãolongínquo,finalmenterestituídoàsuauni-cidadeirrepetível.

ASTRêSVERSõESDACANçãOCAMONIANA“MANDA-MEAMOR”:UMEXERCÍCIODECRÍTICADASVARIANTES

Maurizio Perugi

Posição do problema.–AstrêsversõesdacançãoManda--me Amor,VInaediçãocríticadeLAFpublicadaem19951,estãolongedeconfiguraremumcasoúniconatradiçãodalíricacamoniana,tãoricaemproblemasdeduplas,eàsvezesatémúltiplas,redacções.Estatríada,noentanto,proporcionaumaocasiãoexemplardopontodevistadométodoque,elaboradoemItália,apartirdosanos30,sobonomedecríticadasvariantes,aindanãoteveconvenienteaplicaçãonestedomíniodafilologialusitana.

DentrodavastabibliografiaconsagradaaManda-me Amor,oestudodeJorgedeSenadestaca-secomoomaissérioeexaustivo,pormuitoqueosprincípiosrigorososdacríticatextualpermanecessemfundamentalmenteestranhosàsuaabordagem.Afastando-sedasconclusõesdeSena,LAFresol-veupublicar“astrêsversõesdotexto,dandonaturalprefe-rênciaàprimeira”,queelejulga“linguísticaepoeticamentesuperioràsdemais”(pp.278-9).Estaintuiçãoestácorrecta,comotentaremosdemonstrarcombasenumcertonúmerodeelementosobjectivos.Emconformidadecomonosso

1 LeodegárioA.deAzevedoFilho,Lírica de Camões,3,t.I:Canções,Lisboa,IN-CM, 1995, pp.269-384. Desta mesma edição decorrem todos os dadosrelativosàtradiçãomanuscritadeManda-me Amor,emquesebaseiaopresentecontributo.

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:41-87

42 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 43

modelo,quejátivemosoportunidadedeilustrar2,Camõesparecetersubmetidoarevisãonumerosostextoslíricos,nointuitodeosactualizarnoquerespeitaqueràsestruturasmétricaseprosódicas,queraoléxicoeaoestilo.

Apersistência,dentrodatradiçãocamoniana,detraçosmétricos e linguísticosque remontamaum sistemamaisantigo,originouumaquantidadedefactoresdinâmicos,amaioriadosquaissemanifestanatradiçãoimpressa,porém,semdeixardeafectar,emcertamedida,asversõesmanus-critas.Notocanteaostextosemduplaoutriplaredacção,comoéocasodeManda-me Amor,serápreciso,decadavez,distinguir,semprequeforpossível,entrevariantesdeautorevariantesdetradição.

DeacordocomumadicotomiaestabelecidaporEmma-nuelPereiraFilho,estes‘aperfeiçoamentos’,sejamelesdaresponsabilidadedoautoroudoscopistas,foramintroduzi-dosnointuitodeatingirumamaiorconformidadecomres-peitoaumanormaoraformal(istoé,métricaelinguística),ora ideológica, ou seja, motivada pela censura religiosa.Oautordaúnicaediçãocríticaexistentedalíricacamonianalevantamuitasvezesestedelicadoproblema,mantendonogeralumaatitudedejudiciosacautela.Nesseâmbito,acrí-ticadasvariantesé,àsvezes,susceptíveldedarumarespostamaisprecisa,namedidaemquesepodeapoiarnaconside-raçãolinguísticadasleisquepresidemàtransmissãoerecodi-ficaçãodotexto.

IndicamosrespectivamentecomM1,M2eM3astrêsver-sõesdonossopoema3;figuramdistribuídaspelosseguintestestemunhos4:

2 Cf.BarbaraSpaggiarieMaurizioPerugi,Fundamentos da crítica textual,RiodeJaneiro,Lucerna,2004.

3 Advirta-se que, na edição de LAF, o nosso M1 corresponde à segunda versão,eonossoM2àprimeira versão.

4 Siglasdostestemunhosmanuscritos(quantoàbibliografiarelativa,reme-temosparaaediçãodeLAF):C=CancioneirodeDonaCecíliadePortugal

M1=LF2,TT,Visc3.M2=LF1,C,aqueremontamtantoRh[=Rythmas,1595],quelevaocomiatoalterado,comoRi[=Rimas,1598]eFS[=FariaeSousa,CanciónVII,pp.50-61],nosquaisocomiatofoi restaurado. Além disso, M2 encontra-se nas edições deDomingosFernandesem16165;deJoãoFrancoBarretoem16696;naprimeiraversãodeFS;naprimeiraversãodoViscondedeJuromenha.7

M3: publicada pela primeira vez por Domingos Fernandes(1616),depoisporFS,segundaversão(CanciónVII,pp.61-63),àqualremontaasegundaversãodoViscondedeJuromenha8.

Justificação da família M1.–AidentidadedafamíliaconstituídaporLF2,TT,Visc3ficademonstradaporgosto(emlugardegesto),errocomumeespecíficonov.289.

(séc.XVII);FS=FariaeSousa;MJ=ms.Juromenha(entre1590e1594),BibliotecadoCongresso(II-Port.Collection-D87270);LF=LuísFrancoCorreia;TT=TorredoTombo,ms.2209.O‘incipit’Manda-me Amor que cante docemente também figura no Índice do Cancioneiro do Padre PedroRibeiro.

5 Segunda parte (após a primeira de 1614), oficina de Paulo Craesbeeck,Lisboa;nelasereproduzoprólogode1595,comaindicaçãodeSurrupitacomoautor.

6 Primeira [1666], Segunda [1669] e Terceira Partes [1668, preparada porD.AntónioAlvaresdaCunha],nestanovaimpressãoemendadaseacrescentadaspelolicenciadoJ.F.Barreto,A.Craesbeeck,Lisboa:asduasprimeirasreprodu-zemostextosdeDomingosFernandes;paraaterceira,Cunhavaleu-sedemss.deixadosporFS,entreoutrasfontes.

7 AediçãodoViscondedeJuromenhaemseisvolumes,Obras de L. de C.,1860-1869,aumentadadenumerosascomposiçõesinéditaseapócrifas,contémtambémasredondilhasqueFSnãochegouaeditar.

8 Oqualpublica,portanto,astrêsversõesdeManda-me Amor (equivocando--seemrelaçãoàfontedaterceira,queprovém,narealidade,viasegundaversãodeFS).

9 A corrupçãode gesto para gosto é bemconhecida, p.ex.na tradiçãodeGregóriodeMatos.

44 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 45

Nointeriordatríada(ondeVisc3omiteov.67)10,TTse-para-sedosdemaistestemunhosporinovaçõesquersubs-tantivas, quer formais. Além de alguns erros evidentes11,citaremosumconjuntoderecodificaçõesdevidasàpresençade factores dinâmicos; eis aqui os casos mais relevantes:

8porque vejo que se a escrever o venho,cominserçãodeque,comvistaadesfazerohiatoapósse;25Os cabelos por onde fui enredado,comvistaaremediarohiatoapósfui;51meus spiritos(esp-Visc3)serem de mi saídos]meus spiritos de mi serem saídosTT:trata-sedeumtípicoversodegaitagalega,queTTresolveupor simplesdeslocaçãodo inf. serem.Umcasoanálogonov.32uns devinos spíritos saíamLF2]espíritos divinosVisc3:vivos sospirosTT.Destavez,oacentona5asílabaoca-sionoucomutaçãosinonímicaemTT12,ficandooverso,con-sequentemente,hipométrico,porselimitarVisc3ainverteracolocaçãodoepítetocomrespeitoaosubstantivo.Alémdisso,TTapresentacertonúmerode‘lectionessingula-res’queterão,porconseguinte,desereliminadas:2o queela em minha alma tem empresso,ondeosdemaismss.apresentamacrasejá em;4fora contente;11que outro Orpheo;19Manam as fontes dágoa, o vb. manar sendo empregado absolutamente;21seu dano, ali Progne e Filomela(pormuitoaceitávelquepossaparecerohiatoapósdano,decertoantigo é liçãopreferível);22Minha vontade;47vi que dava cuidei em mi que faria,comsina-

10 Outros erros específicos deVisc3: 13 poderei; 15Senhor’ajuda; 20 anda chorando;23om.mostrar;33piedade;38a sua ágoa;47Vi que o dava;48carnes;53-54Que mudava a humana natureza/Nos montes, e a dureza(contaminação?);57dureza;61-63sendo: dando.Veja-setambéma‘singularis’63divina causa(emlugardedevina cousa).

11 5belo olhos;41abaixava-se(+1);62perdida(quedesfazarima);37da beldade(cf.85da memória);77sentimento(contraarima);87e com(+1).Acrescente-se12que se ele com canto as árvores moveo,hipermétrico,comacentona5a.

12 Spiritoétermotécnico,queremontaàlinguagemdosstilnovistas.

lefanacesura(cf.cuidei que em mi fariaLF2:cuidai o que em mim fariaVisc3);63com apetite,cf.64mas c’o mudo|atónito sentido;70cada um com seu contrário|em um geito;88que foi causa de tão longa História; 90 eu não a escrevi d’alma a tresladei (provávelacentoem5a).

Em11dinaLF2:dinoVisc3:dignoTT,oacordodeTTcomVisc3apontariaparaumainovaçãointroduzidaporLF2;omesmovale,atécommaiorrazão,para6abastaria,faceabastariaque,alhures,aparececonstante13.

Adispersãográficadostestemunhospodeserexemplifi-cadapor34=36luxLF2:lusTT:luzVisc3;40peisLF2:peesTT:pésVisc3;69paxLF2:paesTT:pazVisc314.

Justificação da família M2.–Nadifracçãodov.8,osmss.LF1eC15coincidemnatransformaçãotomara→tomaria,comvistaadesfazerohiato;ooriginaltomara | eu conserva--seemRh,enquantoosuplementosilábicosópassoudeRiparaFSeVisc1.

Inversamente,osimpressosRh,Ri,FS,Visc1reagemdemaneiraconcordanteaohiatonov.12,recorrendoàtrans-formaçãoque eu escrevo→de qu(e) escrevo.Outroscasosdeinovaçõescomunsaostestemunhosdestegrupo:25em fios d’ouro→os fios d’ouro; 42 tocavam→pisavam; 64 o fino pensamento→o fim do pensamento;67onde cuidava→quando

13 Nov.3 com o presuposto, a convergência comRhnãoé, comcerteza,significativa.Avarianteconserto,que,nov.71,TTpartilhacomC,situa-senolimiteentreformalesubstantiva(cf.45assentos TTemlugardeaccentos).

14 Neste caso e doravante, renunciamos propor a listagem completa dasvariantesformaisegráficasprópriasdecadaumtestemunho.

15 Nov.52deLF1,de si está,comcerteza,errado.Cfaltaapartirdov.73. ‘Singulares’provavelmenteerróneasdeC:omiteaconj.e nov.17,oart.o nov.24,ospronomestudonov.43,eu nov.45.Tambémerróneos51me(emvezdemo);58nenhum(hipermétrico,emvezdenum).

46 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 47

a via.Em53Que me mudava,osimpressosomitemopro-nomeporhaplografia16.

AsolidariedadeentreRheRificaalémdissoconfirmadapelaausência,nov.36,dopron.eu,oqueocasionouapas-sagemdecomo em meu desejo Rhparacomo no meu desejo Ri.Juntocoms(e) encendiam,avariante no meu desejoatestaqueFS,Visc1remontamaRi,tendo,porém,recuperadoeunasequênciadumaprovávelcontaminação17.

FSeVisc1coincidemem7Este excelente modo d(e) enganar-me;19Um amor;32admirável;34ali;35não ordinárias;38d(e) inflamadas na linda vista e pura;41=43se ba(i)xava(m) (comVisc2);51para ver;55por troco;58por o qu(e) em um juízo18.

A lição esquivo e suas variantes.–1.Comcerteza,oproblemaecdóticomaissériodointeiropoemasitua-senosvv.24-28:

1) M1=TT,LF2,Visc3

soltava por linda arteos cabelos em que fui enredado19

16 Aoregimedasvariantesadiáforaspertencem29o riso : com risoRh,co risoRi,co’o risoFS,Visc1;36se a(s)cendiam : s(e) encendiam;57d(e) um monte : do monte;65cousa : causa;69em mansa : e em mansa.Abifurcaçãoprincipalconfirma-se,noplanográfico,em22tauro:touro;65dizia:dezia(porém,diziaVisc1);67asi(m) :assi;69pax/pas :paz.Nov.15,os impressosexplicitamporem meu defeito agrafiae meu defeito dosmss.Finalmente,dopontodevistagráficoeformal,atríadaRh,Ri,FSdefine-secombaseem3prosuposto.

17 édifíciljulgarse42Tendo inveja éinovaçãodeRh;casocontrário,RiteriarecuperadoOu d’inveja porcontaminação.

18 Visc1concordacomLF1,Cnavariante‘facilior’cantá-lo(v.6).19 Este motivo remonta a Rvf 181,1-2 “Amor fra l’erbe una leggiadra

rete/d’oroetdiperletesesott’un ramo”(cf.vv.9-10“E’lchiarolumechesparirfa’lsole/folgoravad’intorno”).Ametáfora,quedesapareceemM2nasequênciadamudançaderima,tambémseencontraemGarcilaso de la Vega, Obra poética y textos en prosa, Ed.deBenvenidoMorros,EstudiopreliminardeRafaelLapesa,Barcelona,Crítica,1995,canciónIV,p.81,vv.101-3“Delos

ao doce vento esquivoos olhos rotilando em lume vivo20

o rostro airoso e gosto delicado(cf.e o gosto Visc3)

2a) (M2)LF1,Cquando o Amor soltavaem fios d’ouro as tranças encrespadasao doce vento estivoc(om)’uns olhos rutilando em lume vivoe as rosas entre a neve semeadas (cf.Os olhosVisc1;As rosasDF2)

2b) (M2)RhQuando o amor soltavaOs fios d’ouro, as tranças encrespadas,Ao doce vento esquivas,Dos olhos rutilando o lume vivasE as rosas antre a neve semeadas

cabellosdeoro fue tejida/la redque fabricómi sentimiento,/domi razón,revueltayenredada(...)”,combaseemRvf59,4-5“Tralechiomedel’òrnascoseil laccio,/alqualmistrinse,Amore”:cf.Lus.III,56“SintraondeasNaiades escondidas/Nas fontes, vão fugindo ao doce laço/Onde Amor asenredabrandamente”.

20 vivolumeésintagmapetrarquiano,cf.Rvf154,3;162,11;270,16;321,7.Tantonapoesia stilnovistacomonadePetrarca,o retrato físicodoobjectoamadotendealimitar-seaosolhoseaoscabelos,ostraçosquesempreseapre-sentamcomouma irradiação luminosa;osolhos, aliás,“sãoassociados à luzeaofogonumdosdiálogosdePlatãomais lidoduranteoperíodo,Timeo”:cf.VandaAnastácio,Visões de glória (Uma introdução à poesia de Pêro de Andrade Caminha), Fundação Calouste Gulbenkian, Junta Nacional de InvestigaçãoCientíficaeTecnológica,1998,I,p.474n.126.Umpenetranteestudosobreoidealdebelezapetrarquistaencontra-seemRitaMarnoto,O petrarquismo por-tuguês do Renascimento e do Maneirismo,Coimbra,porordemdaUniversidade,1997,pp.109ss.

48 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 49

ã

ã

Ri,FS,Visc1

Quand’o amor soltavaOs fios d’ouro, as tranças encrespadas,Ao doce vent(o) esquivas,Os olhos rutilando chamas vivasE as rosas entr(e)’a neve semeadas(cf.Os olhosVisc1;as nevesVisc1)

3a) M3=MJ+DF2,Visc2

quando amor me mostravaem fios d’ouro as tranças desatadasao doce vento estivo (esquivo MJ) os olhos rutilando em lume vivoas rosas entre a neve semeadas(cf.o AmorVisc2;De fiosVisc2;uas trançasDF2;emom.Visc2)

AversãodeM1,quejulgamosseramaisantiga,propõeodísticoao doce vento esquivo/os olhos rutilando em lume vivo.Aestritarelação,dentrodocódigopetrarquiano,entreca-belos/tranças21edoce ventopodeserexemplificadacombaseemmuitospassos,p.ex.159,6“Qualnimphainfonti,inselvemaiqualdea,/chiomed’orosìfinoal’aurasciolse?”ou246,1-2“L’aurache’lverdelauroetl’aureocrine/soa-vementesospirandomove”.Entretanto,comoovb.soltavatambémsugere,omodelomaispróximocorrespondeaocelebérrimo‘incipit’deRvf90,1-3:

Eranoicapeid’oroal’aurasparsiche’nmilledolcinodigliavolgea,22

e’lvagolumeoltramisuraardea

21 Ouseja,“biondetreccie”,“trecciebionde”,“treccied’òr”,“trecciesparte”.22 Sabe-sequeosarquétiposdestaimagemremontamàpoesialatina,cf.Virg.

Aen.I,319“dederatquecomamdiffundereventis”(opasso,queserefereaVénus,écitadoporPetrarcaduasvezesnasepístolaslatinas,cf.Fam.I,11,4eSen.IV5),bemcomoOv.Met.I,529“etlevisimpulsosretrodabatauracapillos”(Dafne).

ondedoce vento estivo (=aura),sparsi(=soltava)edolci nodi(=fios d’ouro)23vêmassociadosaovago lume(=lume vivo),oqualoltra misura ardea(=rutilando)24.

Aversãomaisantigarevela-se,aliás,comoamaiscon-formeao‘usus’camoniano.Ossintagmaslume vivo evento esquivoencontram-seemriman’OsLus.V,18:“Vi,clara-mentevisto,olumevivo/Queamarítimagentetemporsanto,/Emtempodetormentaeventoesquivo,/Detem-pestadeescuraetristepranto”.Claroqueesquivotemaquiaacepçãomedieval,comumaoespanhol,de‘siniestro,hor-rible,malo,dañoso’25;enãoaquelade‘variável,incerto’,que lheatribuioDicionáriodeManueldosSantosAlves.

Nopassodanossacançãoéoolhardamulherque,comoseubrilhoexcessivo,iluminaorostodumaluzvivíssima,atravessada,decertaforma,porrelâmpagosfulgurantes,ou“relampadosqueoaremfogoacendem”(Lus.V,16):comefeito,lume vivonãosótraduzovivo lumedePetrarca,comotambémremeteparaofogo-de-santelmo,oucorposanto,isto é, o fenómeno descrito em Lus. V,18 e, antes, por

23 AlémdeLus.IX,71“Deuaoscabelosdeorooventoleva,/Correndo”,cf.outracançãocamoniana,VII19-21“eosdouradoscabelos/emtrançasd’ourofinas/aquemosolseusraiosabaixou”(variantedeMJ:“osondadoscabelos/louroslongosfermosos/agoraaoventosoltosoraatados”).NãoédeautoriacamonianacertaaodaNaquele tempo brando (n.ºXInaed.CostaPimpão),onde“soltandoastrançasd’ouro”serefereFebo;estetexto,aliás,apresentaoutrossintagmascomunsaonosso(“Opeitodiamantino”,“osfiosespalhados/d’Amor”,“ondeAmorenredados/oscoraçõeshumanostrazeatiça”,emesmo“comadorqueoseupeiton’almasente”,presenteno‘incipit’deM3).

24 Entretanto,rutilaréaquitr.,tendoporobjectoo rostro airoso e g[e]sto delicado.25 AlémdeDCECHs.v.,veja-seDECLCs.v.:“d’origengermànic,provi-

nentd’unaformaemparentadaambl’ags.scêoh(angl.shy),il’a.-al.mj.schiech(al.scheu)‘tímid’,‘espantadís,ques’esporugueix’,‘desbocat’”;“Encastellà(...)hadesermoltantigal’acc.‘sinistre,horrible,dolent,nociu’quetrobementantsautorsmedievalscomBerceo,l’Arx.deHitaolaDança de la muerte”.Acrescente--seDCVBs.v.queregista,entreoutrosexs.,estedeSerra,Gèn.56:“Ventmoltfortemoltesquiu”.

50 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 51

ã

D.JoãodeCastro,comreferênciaànoitede12para13deJulhode154526:

EstaaparenciaaquechamãoCorpoSantoerahuaclaridadetamanhacomoaquecostumafazerumacandeaouvella,masasualuznãoeravermelhacomofogo,masprateadaaseme-lhançadaquesevênalua;equandodavaalgumrelampagonãoapareciaestesinal.

Evidentemente,aalusãoaeste“misterioesegredodana-tureza”pareceuaCamõesadequadaparaevocarabelezamisteriosaeperturbadoradoolharfeminino,tantomaisqueaoaparecimentodofogo-de-santelmo,tambémconhecidopeladesignaçãoclássicadeCastorePollux,irmãosdeHe-lena27,eraatribuídonoséc.XVIumfortesignificadosim-bólicodeportadordebonançanomeiodatempestade28.Maisemgeral,recorde-seatendênciacamonianaparatecermetáforasacercadosolhosdamulheramada:“todasessasfigurastêmmarcadamenteacaracterísticadehipérbole,porenfatizaremobrilhodosolhos,relacionando-oscombrilhosmaisintensos”29.

Oadj.aindaapareceemLus.IX,48Porque mais que ne-nhuma lhe era esquiva(alude-seàninfaThétis),destaveznosentidomaiscomum(‘rebelde,arisco,fugidio’),omesmo,aliás,previstopelasocorrênciasnalíricacamoniana30.Opatri-

26 Cf.VascoGraçaMoura,“Vi claramente visto”, ou Camões e D. João de Castro,“Prelo”,n°1,Outubro/Dezembro1983,pp.35-50,naspp.37-38.

27 Cf.asrelativasdescriçõesdePlínio,Horácio,Ovídio.28 GraçaMoura,art.cit.,p.44.29 MauríliaGalatiGottlob,Os olhos nos sonetos de Camões,“Alfa”[Faculdade

deFilosofia,CiênciaseLetrasdeMarília,EstadodeSãoPaulo–DepartamentodeLetras],15(1969),pp.219-240,nap.222.

30 Cf.ManueldosSantosAlves,Dicionário de Camões,Lisboa,EditorialImpé-rio,1994,pp.111e255.

mónio semântico moderno, substancialmente unitário31,remontaaesteempregoconsagradonalinguagemdapoesialírica,ondeabundamsintagmascomomulher esquiva, istoé, ‘arisca,arredia,áspera;querejeitaafectosecarinhos’32;ouamor esquivonumpassodeDiogoBernardes(O Lima,Écl. II, p.20, v.12) que, aliás, apresenta, com respeito aonosso,umanotávelsemelhança:

Porquequandodeixeideverosverdesolhos,porquemmouro,rosasemvivaneve,trançasd’ouro,logometransformouamoresquivoempedranão,nemlouro,emfonted’agoapura,emfogovivo.

Camõeschamacondição cruel e esquiva àqueladoamornãocorrespondido(son.IX)33;cf.Écl.VII,p.170:“Ah!Ninfasfugitivas,/que,sópornãousarhumanidade,/paraquesoisesquivas?”34.

31 OdicionárioHouaiss,quedataaprimeiraabonaçãodeesquivodoséc.XIII(combasenosdadosrecolhidosporA.G.Cunha),prevêosseguintesmatizesdesignificação:1)‘queevitaocontactoeaconvivênciadeoutrem;arredio,exquisitão’;2)‘queseintimidanafrentedeestranhos;arisco,chucro’;3)‘quedemonstradesdémoufaltadeinteresseporoutrem;insociável’;4)‘cujocon-vívioéárido,difícil,áspero,ruide;intratável’.

32 Cf.MoraisSilva,comosexs.modernos“Omeioerafazer-seardentementedesejada,tornar-sedifícileesquiva”(JosédeAlencar,A Pata da Gazela);“posessàbiamentedescuidadas, a fazerempensar emesquivasdivindadesmarinhas” (BritoCamacho,Por Cerros e Vales).

33 Cf.cruéis males esquivos,v.23daodepseudo-camonianaSe de meu pen-samento, além de Garcilaso, canción I,14 “Vuestra soberbia y condiciónesquiva”.

34 ODicionário deManueldosSantosAlvestambémregistaMas esta bela fera, tão esquiva,/que o prazer me roubou,vv.15-16dopoemapseudo-camonianoem‘coblasunissonans’Tão crua ninfa, nem tam fugitiva.

52 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 53

Sagazmenteilustradapelolemaesquivo‘fastidiosus’dodicio-nário de Bluteau (“moça esquiva ‘Puella amantis blanditiadedignans,officiarespuens’.Tambémsepodedizer, ‘Puellaamatorisuofera’”)35,estasignificaçãoremonta,claroestá,aPetrarca. Laura parece só gostar do seu próprio belo rosto,tendo desdém por tudo omais (et di tutt’altro è schiva,Rvf125,48).Alhures,opoetaexplicaamortedeLaurapelodesdémquesempremostrara(ella è sì schiva,Rvf184,7)emrelaçãoàscoisasmortais36.Finalmente,conformeoautorimaginanoutropoema,orochedoquedominaorioSorga,aoqualatribuiumsentimentonãomenosdelicadodoquealtivo(natura schiva,Rvf117,3),teriadevoltarascostasaAvinhão,sededopapadocorrupto.

Ora bem, nem o sentido de ‘sinistro’, nem aquele de‘arisco’parecemcondizercomosintagmadoce vento,como,aliás,demonstramasreacçõesdasdiferentesfamíliasdetes-temunhos.Acorrecçãomais‘económica’,dopontodevistatransformacional,éamudançadeesquivoparaestivo,cultismobastanteraroemportuguês37,realizadanãosóporLF1eC,mss.dafamíliaM2,mastambémpelafamíliaM3,comaim-portanteexcepçãodoms.Juromenha,queconservaesquivo.Note-sequeestamudançaandaassociadaaoutra,ouseja,

35 Alémdisso,Bluteaucitaesquiva dôr‘Aquenãoadmittealivio,nemcon-solaçãoalguma.Inconsolabile vulnus’,ex.tiradodaUlyssea, ou Lisboa edificadaIV,6(poema heróico de Gabriel Pereira de Castro, dedicado ao Príncipe DomTheodosio,1571-1632).Cf.‘desagradável,aborrecido’emMoraisSilva,comumex.deHerculano:À sua esquiva sorte não poderão fugir(Poesias,II,250).

36 Avarianteschifoencontra,comoadj.,umaúnicaabonaçãoemRvf225,10-11Laurëa mia con suoi santi atti schifi/sedersi in parte (a esquivezdeLauraaparecenasuaatitudedesentar-seàparte),sóaparecendo,alémdisso,nalocuçãoaver a schifo,‘mostrardesdémporalgo’.

37 Cf.Rvf212,2=279,2“l’auraestiva”.UmsóexemploemBluteau,deGalhegos,Templo da Memória,III,117:“Enãoquizera,/Queosolasluzesescon-desseestivas”(“Emoutrolugardiz,Rayo estivo,porRayodoEstio”).ODicio-nárioHouaissdata-ojustamenteapartirdalíricacamoniana.

à introduçãodapartícula com, que tanto se refere aolhoscomoarosas,fazendocomquerutilando setorne,detransi-tivo,intransitivo38.

Acorrecçãomaiscomplexaencontra-senafamíliaM2,combasenadivaricação sintáctica dos olhos...o lume vivas(donde,sucessivamente,chamas vivas)39,numquadrotrans-formacionalgovernadopelamudançaderimasenredado: deli-cado→encrespadas40:semeadas.Nasequênciadatransformação,osemantismoexpressoporenredadopassaparaoutrametá-fora:osfios d’ouro41.

NaliçãodeRh:ao doce vento esquivas,/dos olhos rutilando o lume vivas,oduploepítetonarimarefere-seàstranças encres-padas do v.25, enquanto rutilando passa a desempenhar afunçãodegerúndioabsoluto:emsuma,astrançasaparecemvivasgraçasaobrilhointensíssimodoolhar.Relativamenteaos testemunhos damesma família, esta liçãonão apenaspareceseramaisdifícil,mastambémamaisadequadaparaexplicar as soluções adoptadas pelos demais testemunhosimpressos.Comefeito,atransformaçãoatestadaporRh,pormuitohábilquesejulgueser,nãoconseguiuresolvertodasasdificuldades,dandolugaraumaconstruçãoalgoilógica,ondenãosóas tranças,mastambémasrosas42 seriamobjectodesoltava.Porisso,apartirdeRi,orestodatradiçãoim-pressaprocurousimplificarasintaxe,comvistaatorná-la

38 Emperfeitaconformidade,aliás,comosdoisexemplosatestadosn’Os Lus. (I,58eVI,61).

39 Cf.Rvf258,1-2“Vivefavilleusciande’duobeilumi/ver’me”;habitual-mente,PetrarcachamaoolhardeLauravivo soleou,comodissemos,vivo lume.

40 Cf.Rvf160,14“l’orotersoetcrespo”;197,9-11“e’lcrespolaccio,/chesìsoavementelegaetstringe/l’alma”;292,5“lecrespechiomed’òrpurolucente”;270,56-57“ituoilaccinascondi/fraicapeicrespietbiondi”.

41 Cf.Rvf198,2“l’auroch’Amordisuamanfilaettesse”.42 Cf.146,6-7“ofiamma,orosesparseindolcefalda/divivaneve”;e,ainda

maissignificativo,131,9“etlerosevermiglieinfralaneve”(sonetoIo canterei d’amor sì novamente).

54 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 55

maisinteligível(os olhos rutilando chamas vivasRi,FS,Visc1,ondeovb.tomaaterceirasignificaçãoquelhepertence,ade‘lançardesi;emitir,despedir’)43.

Seanossaanáliseécorrecta,ogrupoformadoporLF1,C+DF2,Visc1representa,nointeriordafamíliaM2,umafasemaisarcaica,conformeatestaaconservaçãodarimaem–ivo.Outraconclusãoderelevoéocarácter‘difficilior’doadj.es-quivo,quefuncionacomofactordinâmiconainteiratradição.

Qualseria,exactamente,osentidoatribuídopeloautoraosintagmavento esquivo?Efectivamente,nopassodeM1asignificaçãomaisnatural44seriaprecisamenteaquela,regis-tadaporMoraisSilva,de‘fugidio,rápido,passageiro’,muitoemboraesteempregosóencontreabonaçãonapoesiamo-derna45.Comrespeitoaosintagmaestereótipovento esquivo(Lus.V,18)46,Camões teriacriadoumavariantepositiva,maisadequadaaozéfiro,ouvento estivo emváriosmss.,que

43 Deresto,jáRhdesfizeraarelaçãosintácticaem fios d’ouro...encrespadas,obj.desoltava,optandopelahendíadisos fios d’ouro, as tranças encrespadas.Queestarelaçãofuncionecomoumfactordinâmico,ficaconfirmadopelafamíliaM3,queoptouporconservarosintagmaem fios d’ouro àcustadasubstituiçãodeencrespadascomdesatadas.Amudançaaditíciadesoltavaparamostrava,emrelaçãoevidentecomonovoparticípionarima,temavantagemderesolver,damesmafeita,oproblemarelativoàconstruçãode rutilando:comefeito,agoratemosumasimplesenumeração,as tranças...os olhos...as rosas, todosdependentesdemostrava.

44 Nãosendorazoávelpensarnumzéfiro‘arisco’peranteamulheramada.45 MoraisSilva tiraos seusdoisexemplosdasPoesiasdeGonçalvesDias,

I,199:“umolharhonesto,esquivo”,edaAldeiadeAquilinoRibeiro,cap.12,256:“gotas iriadas e esquivas”.Acrescente-seCastilho,Amor e Melancolia, p.140:“Tornariaaacharainfância,/quadraalegre,masesquiva”;e,p.ex.,CarlosdeOliveira,Vento:“ágileesquivo/comoovento”.

46 Que, graças àoitava camoniana, conseguiu sobreviver atéhoje: “OurcommitmenttotheUnitedNationsandtomultilateralismwillnotwaver‘intimesofstormandblusterywinds’(‘emtempodetormentaeventoesquivo’),toquoteCamões,thegreatpoetofthePortugueselanguage”,comoselênumaalocução à assembleia dasNaçõesUnidas, feita peloDr.CelsoLafer, entãoministrobrasileirodosnegóciosestrangeiros(N.Y.,12deSetembrode2002).

pornaturezaédoce(=lat.levis aura)47.éprovávelquevento esquivoseja,nestecaso,umdecalquedoit.vago vento,expres-sãohojefamiliarnapoesiadelínguaportuguesa48,masentãotípicadalinguagempoéticaemusical49.

Ocarácter‘difficilior’doadj.esquivoocasiona,comovimos,duasrecodificaçõesimportantes,dasquaisamaissimpleséamudançaparaestivo,correcçãoatribuível,porventura,aopró-prioautor50:este,naversãodefinitiva,acabariaporresolveroproblemalexicalrecorrendoaumamudançadegénero,istoé,referindoesquivasàstranças encrespadas,sintagmaque,aliás,encontraabonaçãon’Os Lus. V,11,istoé,seteoitavasantesdamençãoaovento esquivo.Aatribuiçãodumcarácteresquivoaocabeloloiro,eportanto,porsinédoque,àprópriamulher,

47 Recorde-seque,emPetrarca,aauraédevezemvezsoave, dolce, dolce et pura, amorosa, gentil(e), serena, celeste, anticha, sacra.Enote-seque,emrelaçãoaesquivo, uma polarização semântica análoga caracteriza, emPetrarca, as duasocorrênciasdoadj.estivo:cf.BarbaraSpaggiari,Le origini di ‘estivo’ e un luogo del Petrarca,“Linguanostra”,52(1991),pp.44-52.

48 ébematestada,p.ex.,emFernandoPessoa.Cf.tambémvento fugitivo,numpoemadeVicentedeCarvalho(Santos1866–SãoPaulo1924),bemcomooleve sopro de aura,querecordao‘incipit’deummadrigaldorenascentistaGiovanBattistaStrozzi:“Orlieveapefoss’io,/Senontrepid’aurettafuggitiva”.

49 Cf.Michelangelo,Il Velo (Rappresentazione),v.3193“ecolvagoscherzard’un lievevento”;PietroAretino,Orlandino, 36“mille ferite alvagoventodando”;alémdeumacelebérrimapassagemdaÉcl.VIIIdeSannazaro:“e’lvagovento spera in rete accogliere” (as citações resultamdumapesquisa feitano‘site’<www.nuovorinascimento.org>).Acrescente-seummadrigaldeGiraldiCintio:“Qualunqueuomsperaforseessercontento/inquestavitabreve,/fermalaspemesuasulvagovento”.Umavariantedevagoépellegrino,cf.BernardoTasso,II,7,105-110“Talorviveggioiltersoecrespocrine/Spiegaralvento(...)/E l’aure lievi fresche e pellegrine,/Vaghe d’accor la bionda treccia ingrembo,/Venirconunspirarsoaveegrato”;ibid.I,140“Uditemi,auredolciepellegrine”.

50 Como já opinou Jorge de Sena (op. cit., p.400: “Parece, pois, queopoeta,nosseustextosautógrafosouapógrafos,teráosciladoentreumeoutrodosadjectivos”),sem,aliás,discutirosentidodovocábulo,tantoelecomoosdemaiscomentadores.

56 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 57

condizperfeitamente,comosesabe,comacaracterizaçãoeste-rereótipadamulherpetrarquiana51,aqual,nestecaso,ésus-ceptíveldeseintimidaratéfaceaumaleverajadadozéfiro.

Outrahipóteseanãodescartar,seriavermosnamudançadarimapara-iva umainovaçãoestranhaàresponsabilidadeautoral.Preocupadocomanecessidadedeeliminaradificul-dade semântica ocasionada por esquivo, o editor teria, aomesmo tempo, aproveitado aocasiãopara introduzir umametáforaextremamenterequintadanoplanosintáctico.Comefeito,seasubstituiçãocomestivointroduzumlemararo,desaborclássico,apassagemde-ivopara-ivassabeaexercícioescolástico,resultando,aomesmotempo,algoalambicada52.

Justificação da família M3.–Conformeosresultadosdanossaanálisedosvv.24-28,afamíliaM3descendedeummodelopróximodosmss.deM253.Emparticular,aoposi-ção,nov.26,entreesquivodomanuscritoJuromenhaeestivocett.,apontaparaaexistênciadumaglosamarginalouinter-linear,queremontariaaosníveismaisaltosdoestema:comefeito,aintroduçãodeesquivoporiniciativadoresponsáveldeMJparecebastanteimprovável;quantoaestivo,osdemais

51 Cf.emparticularRvf227,1-3“Aurachequellechiomebiondeetcrespe/cercondietmovi,etse’mossadaloro,/soavemente,etspargiqueldolceoro”.

52 Claroque, seonossomodelonão fossegenético,mas simpuramenteecdótico,oacordodeM1comoscomponentesmanuscritosdeM2seriaargu-mentodecisivoafavordaautenticidadedarima–ivo,oqueautomaticamentelevaria a considerar –ivas como uma inovação inautêntica. Outro exemploflagrantedeacordoentreosmss.dasduasfamílias,emoposiçãoaosimpressos(incluindoVisc.3),encontra-senov.54 rudeza : dureza.De formaanáloga,aconcordâncianov.6deM1+Rh,Ri,FSdemonstraria,emregra,aautenticidadedecontá-lo faceàvariantecantá-lodeLF1,C,Visc1.

53 ComojáficaevidenteapartirdasrimastiradasdeM2:alémdaduplarimaem-ura,aecoaroquiasmorimáticoverdura:pura:/pura:verduraemM2,vejam-se-inha(IV),-ado(IV),esobretudo-ela(VI),sendohonesta e bela:...:nelaumaclarareminiscênciadebela:...:delaebela:...:vê-la,parelhasqueseencontramnasduasprimeirasestânciasdeM2.

mss.puderam,empurateoria,operarasubstituição,queratítulopróprio,querporcontaminação.Tomandoemlinhadeconta,contudo,aelevadacompactidadedatradição,estahipóteseapresenta-se-noscomomenoseconómica.

NointeriordeM3,oconjuntodosimpressos(=cett.)54distingue-sedeMJporumnúmerobastanteelevadodeino-vações,confirmandoabifurcaçãoestemáticaquejáfoire-conhecidaporJorgedeSena55.Estaspodem-seagruparemduascategorias,conformedependamderazõeslinguísticas,ouresultemdacensuramoraloureligiosa.

Aprimeiralistagemabrangeospassosseguintes:

1-2 docemente56/um caso nunque em verso celebradoMJ57 →o que a alma sente,/caso que nunca em verso foicantadocett.58

54 Deixaremosde ladooserrosespecíficosdecadaumdos testemunhos,limitando-nosaassinalarasubstituição,notextodeDF2,v.95,decontinoadivino(s);e,notextodeVisc2,v.58,deconheceramaconhecerem,talvez‘difficilior’.

55 Cf.ocotejodeSena,op.cit.,pp.398-403,entreotextode1616easvariantesdeMJpublicadasporCarolinaMichaëlis,“zeitschriftfürromanischePhilologie”,VIII(1884),p.21;nestalistahá,porém,cincovariantesqueterãodesersuprimidas,poisreferem-seaotextodaediçãoJuromenhaqueStorckusara(“umtãomauexemplo,tãodevotamenteseguidopelosseusdiscípulos”).Nofimdoseucotejo,Senaconclui (p.403)que“emrelaçãoaumpossívelautógrafotranscritocomerrosevariantesnoCancioneiroJuromenha,otextoimpressoem1616nãoémelhor,emboratenhasido‘melhorado’emalgunspassos;eque,porvezes,sesenteainfluência,nasvariantesqueconstituíramotextoimpresso,dostextosquejáanteriormenteohaviamsido”.

56 SegundoJorgedeSena,docementeécontaminaçãocomo que alma sente,liçãodivergentedeDF2.Diferentes,emaiscorrectas,asconclusõesdeLAF:“ComoDF2descendedomesmotextoqueseencontranoMs.Jur.,ficapatenteaalteraçãodo‘incipit’dacanção,certamenteparadistinguirotextoinéditodaversãojáimpressaemRheemRi”.

57 Versodemarcacamoniana,cf.Lus.I,4“Sesempreemversohumilde,celebrado”;quantoaov.6,cf.Lus.IV,53“quemaisaliberdadeverperdida”.

58 Tambéminovaçãodeestilocamoniano,cf.Lus.VI,6“MasomaodeTioneo,quenaalmasente”(e,peloversoseguinte,Lus.I,32;X,155):cf.Pero

58 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 59

22tornavaoanodesuaprimaidade/arevestir-seMJ:tornavadoanojá(a)primeiraidade:/arevestidaterrasealegravacett.34emseucantoMJ:entretantocett.59

49viquemedesatouahumanaleiMJ]daminhaleicett.51etransformadanoutraavidaminhaMJ:enoutras(→emoutra)transformandoavidaminhacett.56asárvoresemontesMJ:asárvores,aosmontescett.59fiqueieusótorvado/ecomoumrudetronco,deadmiradoMJ:fiqueieusótornado/quasinumrudotronco,deadmiradocett.64mebradavaMJ:mebradaraDF2:m’afirmavaVisc2

67perdidoavia[=aavia]MJ:perdidaaviacett.71-72poraltocertamenteegrandeoprovo/ascausasMJ:poraltacertamente,egrandeaprovo/acausacett.60

74 fazem um coração/e um desejo sem freio e sem rezãoMJ:quefaznumcoração/queumdesejosemser,sejarazãocett.76DipoisdejáenguanadomeudesejoMJ:Depoisdejáentre-gueameudesejocett.78silváticoinumanoMJ:silvestre,|einumanocett.(silváticoseria,aliás,estranhoao‘usus’camoniano)88-90eporquebemnãocabedentronela/(...)/pelabocamesaiu[corr.sai]emrudecantoMJ:eporquenãocabiadentronela/(...)/saipolabocaconvertidoemcantocett.92quandoMJ:quantocett.

deAndradeCaminha,ed.cit.,son.I,40(‘incipit’:Eu cantarei d’Amor tão nova-mente),v.8“doqu’est’Almasente”;vilanceteI,32“Emtudooqueest’Almasente/A dor me manda que fale”, podendo-se remontar até ao son.115 deBoscán,cujo‘incipit’“Antesternéquecanteblandamente”rimacom“sólo’scriviraquelquedolorsiente”.

59 “Seráumerrotipográficooudeleituradooriginalmanuscrito”(Sena,op.cit.,p.401).

60 ParecedesnecessáriaahipótesedeLAFqueDF2teriacontaminadootextocomaleituraencontradaemRi.

93peloqueemtiseescondeMJ:poloqueemsilheesconde/poroqueselheescondecett.94queosMJ:oscett.96senãosóopensamentoMJ:senãoumpensamentocett.

Asegundalistagemnãoémenosabundante61:

21aescuramocidadeMJ:ainsanamocidadecett.30quejuntamentemoveamoremedoMJ:quejuntosmoveemmimdesejo,emedocett.38castaepuraMJ:claraepuracett.45debenignosspritosenchiaMJ:d’espíritoscontinosinfluíacett.53dosentidoMJ:dossentidoscett.89dovivoraiotantoMJ62:debenstamanhostanto(s)cett.

MJtambémapresentaumasériedeerrosouinovações,acomeçar pelo erro na rima dos vv. 42-43 com inveja das (h)ervas que pisava/porque todos[anteeles,riscado:cf.ant’eles Visc2]à terra se abaixavamMJ63,aoqualcabeacrescentaras‘lectionessingulares’dosvv.46,48,97,bemcomooerrodov.5064.

61 ComoJorgedeSenaotinhaapontado(op.cit.,p.403),“umaououtradasvariantesparecedenunciarodedodeumcensorempenhadoemeliminartranscendênciasousubtilezasimprópriasdafrivolidadeemque–malmenor–deviacontinuar-seapoesia...”.

62 Cf.Rvf176,4“’l solch’àd’amorvivoiraggi”; 227,12“colbelvivoraggio”.

63 EstácompletamenteequivocadoLAF,p.320:“DF,forçadopelaconta-minaçãodoversoanterior,restabeleceuoerrodomanuscrito”.Comefeito,otextodeLAFreproduzerroneamenteatrocaderimasporMJfeita.Maisemgeral,LAFtendearespeitar,aqualquerpreço,oms.emcadacasoescolhidocomo base da sua edição, reproduzindo mesmo, por vezes, as incorrecçõesmétricasesintácticas.

64 Pelo contrário, na difracção do v.4 em parte satisfas-me meu cuidadoMJ :paga-me assi | em parte o meu cuidadoDF2 :assi me paga em parte o meu

60 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 61

Entreasvariantesgráficas,JorgedeSenachamouaaten-çãoparaov.36se acendiam LF1,se ascendiamC,se asendiamMJ,se ascendiamDF2,s’encendiamVisc1+265.

A relação entre as três versões: breve história da crítica.–“EstacançãoduasvezesfezoAutorcomosmes-mosconceitos,mastermostãodiferentesquetotalmenteéoutra(...);estaétãoboaquenãosedeixaverqualéaqueeleaceitou,eassimambassãomerecedorasdeseimprimir”(DomingosFernandes).

FariaeSousa,queteveocuidadodetransmitirM3emanexoaotextodeM2,tambéméoprimeirocamonistaquesoubelevantaroproblemagenético,julgandoM3aversão,aseuver,maisantiga:“FinalmenteesadmirableestePoema;ybienparecequeleobróelP.contantocuydado,comefueeldeescrivirledosvezes,porquenolesatisfizolapri-mera,siendoellabastanteadarfamaaunhombre”.Comefeito,“diziendoumamismacosaestasdosCanciones,ysiendoestamuybuena66,eslaotramuysoberana”.

OViscondedeJuromenha,queteve,em1861,oméritoderevelarotextodeM1(“TrêsvezestentouCamõesestacanção”),consideroutantoM2comoM3variantesdeM167,contandocomaaprovaçãodeHernaniCidade.Aindamaisflutuanteéa terminologiaempregadaporCostaPimpão,que,daterceiraversão,apenasdizser“umtextodiferente”daquelequeseencontraemRh.RodriguesLapa,aoselec-cionaraterceiraversão,limita-seaecoar,muitodiscreta-

cuidadoVisc2,épossívelqueDF2tenhaguardado,comadialefa,aboalição.65 Sena,op.cit.,p.401,observandoqueencender(pelomenos20vezes)e

acender(trêsvezes)coexistememCamões.66 “EnotromanuscritohalloestamismaCanciónconvariedaddeleciones;

mascomonoeslaelegidadelP.,noayparaquecansarenello”.67 “Oqueé,porcerto,levarmuitolongeaelasticidadedanoçãodevariante”

(Jorge de Sena, Uma Canção de Camões, Lisboa, Edições 70, 1966, 19842,p.367).

mente,aspalavrasde Juromenha (Camões“retocoupelomenostrêsvezesacanção”).

OcotejoentreasvariantesdeM1eM2levadoacaboporJorgedeSena68estáirremediavelmenteviciado(como,aliás,écostumenesteautor)pelaradicalinadequaçãodosinstru-mentosdeanálise69.Alémdisso,adificuldadedaquestãogenética70fazcomqueaformaexpressivaseja,maisquedecostume,sumamenteobscura,sendoárduodestrinçarentreoquerelevadainsuficiênciametodológicadaabordagemeoque,pelocontrario,sedeveaumacompreensívelcautelanomomentodasconclusões71.Dequalquerforma,oleitoracabaporvislumbrarummodelodotadodealgumaclareza,consistindooresultadomaisconcretonoreconhecimentodaautonomiadaterceiraversão72:“Poderíamosmesmo,aestepropósito,sublinharqueapurificaçãosedáprogressi-vamentedaversãode1616[=M3]paraotextoJuromenha(quelheéartisticamenteinferior[=M1])”,e“dotextoJuro-

68 Op.cit.,pp.382-4.OPrólogodeste livro levaadatadeAbrilde1962(Araraquara,S.Paulo,Brasil).Trata-se,comoésabido,dateseapresentadapeloautoremAbrilde1962,paraconcursodelivre-docência,naFaculdadedeFilo-sofiadaUniversidadedeMinasGerais.

69 Paraumacríticadesteensaio,veja-seVítorAguiareSilva,Jorge de Sena camonista,“Colóquio/Letras”,67(1982),pp.45-52.

70 JorgedeSenaabordaoproblemagenéticoaodiscutir,nestacanção,apresençaeimportânciadaherançabembiana. Nasuaopinião,ascançõesdolivroIIIdosAsolaniseriamoesquemaidealdequeCamõespartiuparaumasuperação audaciosa do “pseudo-misticismo” neoplatonista. A evolução dasversõesdeManda-me Amor,ou,sequisermos,asuadiversidade,mostrariaqueessasuperaçãofoiexpressamentebuscada,atécomumrefinamentoargutoemvirtudedoqualapoesiaexcede,demuitolonge,amissãoilustrativaqueBembolheatribuiu(p.216).

71 “Seria,porém,concluirprecipitadamentedizermosqueCamõesanotavaumprimeiroborrãoque,depois,usandoalimadeHoráciorecomendadapelapoética,afeiçoaracuidadosamente...”.

72 Veja-seocotejodasvariantesàspp.382-386.

62 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 63

menhaparaamajestadequeFariaeSousamuitojustamentevianaversãodefinitiva[=M2]”73.

Estasconclusões,aliás,jáseencontramexpostas,deformaalgomaislúcida,noapanhadodotrabalhodeinvestigaçãoqueoautortinha,entretanto,publicado74:otextodeRh[=M2]“éaampliaçãoefixaçãoadmirável”dotextoreve-lado por Juromenha, no volume de 1861 [= M1]”. “Ascoincidênciassãotantas,e(...)aexpressãoétãotentativaeincipiente,quepodemosterotextoJuromenhacomopri-meiraversãodotextode1595”.

Emépocamaisrecente,MariadoCéuAmaralconsagrouaestacançãoumcapítulodasuatesededoutoramento75,ondeseconcluique“asduasversõesmaisimportantesdestepoema[M2eM3](...)progridememsentidosdiferentes,manifestandotambéminfluênciadepoetasepoemasdife-rentes”76;e“adiferençadeatitudespatentelogonapri-meiraestânciaparececonfirmaraanterioridadedotextode1616[=M3]”77.

73 Sena,op.cit.,pp.386-8.74 Ouseja,Trinta anos de Camões, 1948-1978 (Estudos camonianos e correlatos),

Lisboa,Edições70,1980,t.II,pp.222,234-5.Estecapítulo,intituladoCamões e um método crítico,defactoreúneseteartigossucessivamentepublicados,em1963,noSuplementod’O Estado de São Paulo (cf.aadvertênciarelativa,p.265).

75 MariadoCéuAmaralFortesdeFraga,Os géneros maiores na poesia lírica de Camões,DissertaçãoapresentadaàUniversidadedosAçoresparaobtençãodograudedoutoremLiteraturaPortuguesaClássica,PontaDelgada,Univer-sidadedosAçores,1997,pp.121-147(depoispublicadaemCoimbra,Univer-sidade,2003).

76 SendoM2maispróximadopoemadeBoscánYo voy siguiendo mis procesos largos,aopassoqueM3estámaisligadaaomodelopetrarquianoNel dolce tempo(Amaral,op.cit.,p.129).“Alémdestasduas,éconhecidaumaterceiraversão,dadaaconhecerpeloViscondedeJuromenha”(ib.,p.129,n.102),aqual“pareceserumprimeiroesboço,menosartificiosomastambémmenoshábil,daversãoda1595”(ib.,p.145,remetendoparaaediçãodeLAF).

77 Amaral,op.cit.,p.145,combaseemobservaçõesbastantegenéricas,oudecaráctereminentementeestético.

Emconclusão,quatrosãooscríticosqueousaramtomarposiçãofaceaodelicadoproblemagenético.EnquantoMariadoCéuAmaralretomaopontodevistadeFariaeSousa(passagemdeM3paraM2),tambémnadecisãodedeixardeladoaversãoM1,JorgedeSenapropõeaseguintecadeia:deM3,viaM1,atéM2.Àdiferençadestescríticos,quecon-cordam,todoseles,emconsiderarM3aversãoprimitiva78,asoluçãoapresentadaporLAFparece-nos,comojáfoidito,seramaisplausível.

Os factores dinâmicos em M1 e M2.–Omodelogené-ticopressentidoporLAFé,aliás,susceptíveldedemonstra-çãocombasenateoriadosfactoresdinâmicos.Apresentamosdeseguidaumlevantamento,tãocompletocomopossível,dosversosespecíficosdeM1queapresentam,querfigurasdehiatointer-ouintravocabularoudecrase,querfigurasmétricasarcaicasou,dequalquerforma,anómalasdopontodevistadaescansão.Eisaquiaprimeiradasduaslistagens:

v.6contá-lo abastarïa contentar-me,diéreseaparentementeresol-vidaemM2mediantediesinalefa(bastaria a contentar-me)79;v.17torna |aos campos;v.31Do |aspeito süave80 e |excelente;

78 JoséV.dePinaMartins,Camões et la pensée platonicienne de la Renaissance,ExtraitdeVisages de Luís de Camões,Sériehistóricae literária,vol.X,Paris,Gulbenkian,1972,pp.55-94,consideraigualmentequeemM3“lepoèteréus-situnchef-d’oeuvreexemplaire,enunissantàl’inquiétudepétrarquiennetouslesingrédientsrhétoriquesduDolce stil nuovo,etriennemanqueàlaperfectionformelledel’ensemble:l’Amourn’estpluscetenfantterrible‘aveuglearcheretnu’d’unsonnetfameuxdeL’Olive,maisuneprésencehumaniséequicom-mandeàl’âmedupoèteetàlaquelleilobéit”(p.85).

79 Outroexemplodediesinalefaencontra-seemM28tomaria eu d’Amor por interesse (LF1,C),emfacedavariantedeRhtomara | eu susceptívelderepre-sentaraliçãooriginal,namedidaemquetambémpermiteexplicarainovaçãocomumaRi,FS,Jur(tomara eu só).

80 AdiéresepermaneceemM2,vejam-seaindavv.33,45.

64 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 65

v.36é esta,comcrase,conformev.2jáempresenteemambasversões81;v.38süa |ágoa;v.46Quando, |ao |insensível, sentimento;v.58 que em mi quietamente repousava (hiato ou, mais antes,diérese)82.

Comosevê,amaioriadestesfactoresprosódicosdesa-pareceuemM2,que,porsuaconta,sóintroduzumhiatoapóse (v.34e |as gárrulas)83,sendo,emoutroscasos,acrasesoluçãocaracterísticadeM284.Estaversãoapresenta,aliás,outrosexemplosdehiatoapósoartigomasculino(vv.19=24o |Amor,o |engenho escurecendo)85ouapóscom(v.10com a pena)86.Todosestesexemplosvêmjuntar-seaosdov.71concerto | esteedov.77o |insensível,quejáseencontramnaprimeiraversão.

Emgeral,versoscomo13E se é mais o que canto do que entendo,ou 43ou porque tudo ante ela se abaixava, ilustramcommuitaclarezaanovatendênciaparaumritmosinalé-fico,característicadasegundaversão,queatéprevêexem-

81 Este tipode fusão entre tónica e átona (p.ex.Está o) remonta à líricatrovadoresca.Noentanto,ambasasversõesoferecemumhiatosó | o nov.50.

82 Aestasériedeexemplos,cabeacrescentarocasoduvidosodov.45ao som dos süaves seus acentos.

83 Respeitadonatradiçãoimpressa,estehiatofoicorrigidotantoemJur.(porque as garrulas aves)comoemFS(Ali as gárrulas aves).

84 Cf.vv.7,28,54,etambém,porventura,ov.45.85 A autonomia prosódica do artigo, tanto masculino como feminino,

encontracopiosaabonaçãono‘corpus’camoniano,cf.p.ex.acançãoIV36o | orvalho(queemFSsetornaplural),ouentão,o‘incipit’dacançãoA ins-tabilidade da fortuna,ondeLFeasediçõesimpressasestãodeacordoemres-peitarohiato,enquantoPR+Jur.odesfazemaointroduziremoplural(As instabilidades).

86 NãoobstanteoavisodeLAF,teremosquereconheceroutrohiatoapóspena:veja-seaindav.63vê-la | a um appetite sometida,alémdov.12que eu escrevo, tambémambíguo.

plosdecrasemúltipla,comonov.32causaria um admirado e novo espanto.

AsegundalistagemabrangeosdecassílabosespecíficosdeM1,cujaescansãoseafastadopadrãoheróico:

degaitagalega:16Era no tempo que a fresca verdura;34os passa-rinhos, com a luz presente (hiatoapós com)87;57 trocar por dura aspereza o sentido;sáfico:18Zéfiro vem, com a primavera bela;‘aminori’:33que o ar enchiam de süavidade (apresentandooca-sionalrimainternacomoversoprecedenteem-iam);‘de artemaior’88 combaseno subst. spírito, emausênciadee-prostético:32uns divinos spíritos saíam;51meus spíritos serem de mi saídos;acentossobre3ae7asílabas:25os cabelos, en que fui enredado;acentossobre3ae8asílabas:8porque vejo, se a escrever o venho89.

87 Encontra-se,noentanto,acraseemcontextosparecidosnosvv.12,18,40,bemcomoapósnasal-amnosvv.19,53(umexemploemM2nov.47).Pelocontrário,julgamosprovávelacraseapósa nov.90não a escrevo,comumàsduasversões (mesmocontandocomessapossibilidade,LAF,p.375, resolveu-seaaceitar,combaseemLus.VII,38,a“contagem,numasílabamétricaapenas,denão+a”).Dumpontodevistameramentegráfico,note-senov.70oarranjoem um →num.Nogeral,M1empreganormalmenteohiatoapósvogalnasal,cf.vv.7não ouso, 10tão alto, 68e93-ão a(oprimeiromantém-seemM2,quetambémapresenta44Não houve).M2introduz,aliás,novosexemplosdecrase,asaber,com uns, v.27ecom as, v.85 (cf.v.96),permanecendo,noentanto,ohiatoquem o nov.21.

88 Cf.osoneto,deautoriacamonianacerta,VIII3-4Mas foi por fazer de Amor experiência,/por ver se podia tirar-me a vida(textodoms.únicoCrB,modi-ficadopelatradiçãoimpressa),sendoambososversosjustificadosporLAFcombaseemLus. V,77Dizem que, por naus, que em grandeza igualam.

89 éprovávelqueohiatoapósse,emboranãoatestadon’OsLus.,seja,no‘corpus’lírico,muitomaisfrequentedoqueresultacombasenaediçãodeLAF.Comefeito,oeditorseguealiçãodosmss.tantonosonetoX14se a Roma,“porreminiscênciadamétricaarcaica”,comonacançãoIII36porque se emfim resisto:noentanto,nesteúltimocasoaliçãoque sedeRh,Riparecepreferível,tambémàluzdeFS,quemodificaoversoemPorém como resisto.

66 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 67

Estestiposdedecassílabotornam-seextremamenterarosemM2onde,pelocontrário,dominaumaestruturabaseadanodecassílaboheróico,oresíduodeversosanómaloscomumàs duas versões ficando limitado aos exemplos seguintes:3com pressuposto de desabafar-me, decassílabo‘aminori’;66que era rezão ser a Rezão vencida,87-88com o lindo gesto jun-tamente impresso,/que foi a causa de tão longa história, decassí-labossáficos;78e ver-me a mi, de mi mesmo, perder-me, decas-sílabodegaitagalega.

Finalmente,M1apresentaumcertonúmerodeencaval-gamentosoutransportesbemevidentes,cf.vv.20-21,24-25,34-35,46-47.Todosforameliminadosnaversãodefinitiva,ondesócabeassinalarotransportedosvv.54-55.

Os esquemas rímicos. –OutrotraçocaracterísticodeM1

éaabundânciaderimasidênticas90,queatéaparecememestrofesconsecutivas:vv.10da vista bela e18com a primavera bela;57trocar por dura aspereza o sentido e64Mas o mudado atónito sentido;62e83perdia.Emparticular,arepetiçãodesentidodaquartaestânciaparaaquintaassocia-se,nestaúl-tima,aopolíptotoperdido:...:perdida(realçado,ademais,porperdia), no quadro da importante sequência formada por-idos e-idonaquartaestrofe,epor-idoe-idanaquinta.

Naversãodefinitiva,tantosentido comoperdiasóapare-cemumavez,aopassoquenãorestaqualquervestígiodaduplaocorrênciadebela.

MaisumindíciodatendênciadeM1paraarimarepetidaconsistenoparderimasverdura:...:pura,utilizadonafrontedasegundaestância(vv.16e19),eretomadoemquiasmopura:verdura, nosvv.38-39daestânciaseguinte,comfunçãodeversodeenlace(‘chiavedivolta’).Orabem,sóestaúltima

90 SobreapresençaderimasidênticasemDanteePetrarca,cf.GugliemoGorni,Rime ripetute in canzoni di Dante e in uno stesso canto della “Commedia”,“Filologiaecritica”,20(1995),pp.191-200.

parelhapermanecenaestânciacorrespondentedeM2.Emparticular,ov.19manam as fontes ágoa clara e puraeov.38detinham sua ágoa, doce e purapodem,naversãomaisantiga,serconsideradoscomovariantescombinatóriascombasenomesmoestereótipolexical:nãoadmira,portanto,ofactodeasegundadestasvariantesdesapareceremM2,ondesóresta,nov.38,acláusulana linda vista pura.

Noâmbitodomesmoprocessodetransformação,ase-quênciaorigináriaderimaspisava:abaixar-se:tornar-se:abalava,situadanocentrodasirima(M1,vv.40-43),muda-se,nosversoscorrespondentesdeM2,paratocava:abaixavam:tocavam:abaixava,figuraaomesmotempoquiástica(pelasrimas)ealternada(pelasbasesverbais).

Conformeresultadoconjuntodestasduastransformações,nãosóparalelas,mascomplementares,oautor,napassagemdeM1paraM2,nãoquisdetodoabdicardarimaidêntica,queconstituiumdostraçosdistintivosdaversãooriginária.Comefeito,arimaidênticanaturezapermaneceemambasasversões,nosvv.53e79,respectivamente.Alémdisso,asequên-ciacomplexa-ava:-avam:-avam:-avafuncionacomocentrodeirradiaçãomorfo-estilísticaparaasestânciaslimítrofes,con-formeatestaarima–ava,inovaçãodeM2nasegundaestância,comfunçãodeversodeenlace(vv.23-24),assimcomoaduplapresençadeestava nosvv.58e69daquartaestância.

Comrespeitoàsduassequênciasem-avapresentesemM1(apartirdeestavanov.69),-avaresulta,naversãodefinitiva,aúnicarimaque, retomadadaversãoantecedente, tambéméobjectodeduplicação.M2caracteriza-se,deresto,pelaelimina-çãosistemáticadumnúmeroimportantederimasidênticas(seisnototal,dasquais,repetimo-lo,sórestamtrês,asaber,estava, sentimento enatureza,resíduo,todaselas,daversãoprimitiva91.

91 Parece-nosprovávelque,paraalémdasuafunçãodemarcaestilística,aduplicaçãodeestavadependaemúltimaanálisedaintroduçãodosintagmajuízo humanonov.58.

68 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 69

Tantoaspalavras-rima,comoasprópriasrimasseen-quadram num esquema bastante complexo de relaçõesfono-simbólicas: também foram submetidas a um con-juntode transformaçõesmúltiplasnapassagemdeumaparaaoutraversão.Paraalémdasrimas idênticas senti-mento (queproduzanáforaentre as estâncias IVeV)enatureza (presentenasestânciasIVeVI),aestruturari-máticacomumàsduasversõesapresentaosseguintestra-çosdistintivos:

1) ligaçãoentreaprimeiraestância(-e(s)so e-arme92)easexta(-ermee-esso);2) váriasrimascomunsaestânciasdiferentes,asaber:-avanasirimadaterceiraedaquinta;-ezana‘chiavedivolta’daquartaenasirimadasexta;-iacomumàquarta,quintaesexta.M2,porsuavez,estabeleceumanovaligaçãoentreaspartesfinais,respectivamente,dasextaestância(-esso:...:-ei)edaprimeira(-eo:...:-osso);3) -ent-adesempenharoduplopapeldemarcaanafórica(-enteno começo das estâncias primeira e terceira em M1, -entonocomeçodasestânciasquartaequintaemM2)edenúcleogeradordeassonânciase/ouconsonâncias:-ente [est.IeIII], -entos [est. III], -ento [est. IV] em M1; -ente [est. I], -ante [est.II], -anto[est.III], -ento[est.IVeV]emM2.

Conformevimosacima,oimportantenúmeroderimasrepetidascomporta,emM1,umtriploesquemaderelaçõesestróficasentreIeII(-ela),IIeIII(-ura),IVeV(-ido),aoqual se juntamoutras ligaçõesmeramente consonânticas:alémdasestânciasIVeV,cf.-ado:-ade(IIeIII),-ente (IeIII),-entos(III),-ento(IV).

92 Note-sequeasextaeúltimaestrofecontêmduasrimasproparoxítonas,asaber,-ível e-ória.

Nasuamaioria,estasrelaçõesdesaparecememM2,sendo,porém,substituídasporoutrasequivalentes.Emparticularaperda,na sequência -id-, do terceiro elemento, resultacompensada pela criação, graças à presença de -ento nosvv.61e64,dumaligaçãoanafóricaentreoscomeçosdasestrofesIVeV(encabeçadas,aliás,pelamesmapalavra-rimasentimento).

Jávimosque,naversãodefinitiva,arima-ava seencon-tranasegundametadedecadaestrofe,comexcepçãodaprimeiraedaúltima.Análogacapacidadedeirradiação,comrespeitoàversãooriginária,caracterizaarima-ia,que,alémdeseencontrarnasestânciasquarta,quintaesextadeam-basasversões, tambémsepropaganasegundaestrofedaversãodefinitiva,ondeimportanotar,alémdisso,adifu-sãodoelemento-nt-(-ente[I], -ante [II], -anto[III], -ento[IVeV]).

Outrasnovasligaçõesdizemrespeito,naversãodefini-tiva,a-ando,rimacomumàfrontedeIIedeIII(jáante-cipada,emI,por–endo);-evodeI,aantecipar-ivodaes-tânciaseguinte;-eitodeI,desdobramentodarimajápresenteemV.

Alémdemultiplicarasligaçõesinterestróficas,querpro-longandoasquejáexistiam,querintroduzindonovas,oautorprocura,naversãodefinitiva,incrementaroíndicedecompactidadeespecíficodecadaestrofe:a-ido(s)deIVe-ida deV,jápresentesemM1,acrescentam-seagora-esso e-esse(I),-iam e -im(III).Demaneiraproporcional,oín-dicedevariaçãorimáticadecrescedeM1paraM2,fazendocomqueasestrofesprimeiraesextaacabemporresultar,nasduasversões,asmaisricasnotocanteaonúmeroderimasutilizadas.

Os principais modelos métricos.–Conformeindica-çãodeFariaeSousa,oesquemautilizadoporCamõesemManda-me Amor foi tomado directamente da canção de

70 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 71

BemboPerché ’l piacere a ragionar m’invoglia,que,comove-remos,constituiomodeloprincipaldeM1limitadamenteàsestânciasII-III93:

ABC,ABC,CDdeEFFgG

Este esquema pode, aliás, ser considerado como umavariante algo reduzida da canção petrarquiana das meta-morfoses(Rvf23),cujoesquemaéoseguinte:ABC,BAC,CDEeDFGHHGFFII,comcomiatode9versos94.

EstacançãopetrarquianainfluenciapraticamenteotextointeirodeCamões, a partir donúcleo comumaM1 eM2, cf. v.3eRvf23,4“perchécantando ilduol sidisacerba”95;v.82eRvf23,116“com’iosentì’metuttovenirmeno”;vv.84-85eRvf23,92“ondepiùcosenelamentescritte”.Alusõeses-pecíficasdeM2sãov.17eRvf23,6“mentreAmornelmioalbergoasdegnos’ebbe”;v.30eRvf23,25“factoaveanquasiadamantinosmalto”;v.21eRvf23,28-29“etquelcheinmenonera,/miparevaunmiracoloinaltrui”;v.82eRvf23,116“com’iosentì’metuttovenirmeno”.

93 ConformeobservaSena,pp.209-210,háemCamõesumaconexãofirmeentreoiníciodecassilábicoeaextensãodascanções:asmaisextensasnãosóseiniciamcomversode10sílabas,comosãoasdemaisbaixapercentagemdohexassílabo.Cf.agoraasobservaçõesdeVandaAnastácio,op.cit., I,p.309.

94 Acançãodasmetamorfoses, citada emLasso me (=Rvf70), apresenta8estâncias(medidaapenasrepetidaemRvf29)denadamenosde20versoscadauma, tendoapenasumheptassílabonodécimoverso:aextensãodaestância,únicaemRvf,correspondeàdeLe dolci rime deDante(cf.Doglia mi reca,com21versos).AdesproporçãoentrefronteesirimarelevadoestilodeGuittone.

95 Mesmotendoemlinhadecontaofiltrobembiano(“Tantoch’iodicaetpossacontentarme”,v.6,cf.infra).Cf.tambémacançãoIII56-58Que maior bem deseja quem vos ama/que estar desabafando seus tormentos,/chorando, imaginando docemente? (:descontente);alémdisso,Boscán,ed.cit.,pp.226-7,son.115(‘incipit’:Antes terné que cante blandamente),v.5“Desabáfasequienestádoliente”.

Entretanto, alguns dos passos mais marcados da canção dasmetamorfosesecoamexclusivamenteemM3,cf.1-5“Neldolcetempodelaprimaetade:(...):canteròcom’iovissiinlibertade” evv.22-23Tornava o ano de sua prima idade96/a revestir-se+v.18que me dava desgosto a liberdade;42“delatrasfiguratamiaper-sona”ev.51e transformada noutra a vida minha;80“d’unquasivivoetsbigottitosasso” evv.59-60Fiquei eu só torvado/e como um rudo tronco, de admirado!97

Depoisdechamarrepetidamenteaatençãoparaotemaparadoxalqueconstituiocentrodacanção,istoé,animar--setodaanaturezagraçasàpresençamilagrosadamulheramada98,FariaeSousanotaque,comrespeitoaotextodeCamões, “dos differencias ay: una, que la Canción deBemboesdecincoestancias;yestadeseys:otra,queelremateaquiesdesieteversos99,yalládetres”.Defacto,ocomiatonasegundaredacção,quecabeconsiderarcomoadefinitiva,acaba,quantoàextensão,porseconformaraomodelobembiano100.

96 Patente marca lexical petrarquiana (a origem do sintagma, conformenotouCastelvetro,remontaaPropércio,II8,17“Sicigiturprimamoriereaetate,Properti?”;II10,7“AetasprimacanatVeneres”).

97 ébomrecordarmaisdoisversosdesteimportantíssimotextopetrarquiano,queforamutilizadosporCamõesnoutrospoemas:69“deladolceetacerbamianemica”;100“Nonsonmio,no.S’iomoro,ildannoèvostro”.

98 “AquelmilagroquesuQueridasaliendoalcampohizoenlascosasdél,comefuedarnuevamúsica,ovozalasaves,hazerpararlosrios,produzirflores,ymoverselosárboles;yaéldehombrequeera,dexarlehechoinsensiblecomoalgúnárbol”.

99 EsquemaaBcCBdD,acompararcomaBCcBDD,esquemadocomiatodacançãopetrarquianaDi pensier in pensier (Rvf129).

100 Deformaanáloga,acançãodeCamõesVão as serenas águas,apesardeadoptaroesquemadeChiare, fresche e dolci acque (Rvf126),distingue-sedestapelaorganizaçãodocomiato,queapresentaoitoversosemvezdostrêsoriginais,alémdeumafórmulaestróficavinculadaaummodelocriadoporGarcilaso(cf.V.Anastácio,op.cit.,I,pp.306-7).

72 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 73

Nesteesquema,afrontesimétricaABC,ABCafasta-sedotipométricomaiscomumdacançãorenascentista,cujafronte,mesmoemCamões,énormalmenteABC,BAC;easirimaresultadeumprocessodeextensão(acrescentando--se,nofim,a‘combinatio’gG)comrespeitoaotipoABC,BAC,cDdEeFF,esquemadeRvf207.Noresto,hácoin-cidênciatotalentreasirimadeManda-me Amor(CDdeEFF)eadeRvf360101.Ressalvandoamodificaçãodafronte,re-alizadanointuitodeseconformaraomodelomaiscomum,o esquemadeManda-me Amor foi retomado (na fórmulaABC,BAC,CddEeFfGG)porJorgedeMontemoreGasparGilPolo102.

NaopiniãodeSena,acançãoManda-me Amor éaquemaisclaramenterepresentaotipoidealemédiodeformaexternarelativoàcançãocamoniana103.Jáfalámosdainflu-ência,nestecelebérrimotexto,deNel dolce tempo de la prima etade,primeiracançãodeRvf,cujov.102“d’indegnofarcosìdimercédegno”podeconsiderar-seexemplardaten-dência,notextodaCamões,paraodesenvolvimentodeantítesesoximóricaseparonomásticas,amais importantedas quais está no v.66 que era rezão ser a Rezão vencida,comumaM1eM2,enquantoM3levacom rezão, a rezão se me perdia.

101 Esquema:ABbC,BAaC,CDdeEFF.102 JorgedeMontemor,Obras de Amores, canciónFuerça de sentimiento,e

Cancionero de Montemayor,zaragoza1562,canciónYa no faltaba;GasparGilPolo,La Diana enamorada,canciónMadruga un poco (estânciasI-III).Cf.E.SeguraCovarsi,La canción petrarquista en la lírica española del siglo de oro,Madrid,ConsejoSuperiordeInvestigacionesCientíficas,1949,pp.255-6,258.

103 é“acançãoquecontémamaisrefinadadescriçãodetransmutaçãodia-lécticaquejamaissefezempoesia”;“éacançãoporexcelência,eencerraadefiniçãomaiscompleta,maisdensa,emaisimportante,dopensamentocamo-niano(...).Sabemosjácomoessacentralidade,queobjectivamentedemonstra-mos,correspondeàfixaçãoestéticadadialécticaessencialdoespíritohumano”(Uma Canção de Camões cit.,p.222ep.234).

Rvf23nãoé,porém,omodeloúnicodonossotexto.Paraadescriçãodavitóriadoapetitesobrearazão,enleadanumarededecabelosdeouro104,Camõesinspirou-sesemdúvidanacançãoIVdeGarcilaso,daqualtambémimportamosvv.38“pensareneldolordeservencida”e45-46“estavadeseando/queallíquedasemirazónvencida”105,tantomaisque nos vv.60-64 temos uma alusão à metamorfose doamante:Los ojos(...)/me convirtieron luego en otra cosa106.Veja--setambémacorrespondênciaentrev.105“sujetaalapetidoysometida”eM2,v.63“vê-laaumappetitesometida”107.Maisemgeral,estacançãodeGarcilasotambémpôdeserviraCamõesdemodelopelacomplexatexturaderimas-chave,cadaumadasquaisaparecerepetidaacurtadistância108.

Deixandodeladoosarquétiposqueacabamosdemen-cionar,écertoquea segundaestânciadeM1 repousanacorrespondenteestância(vv.16-30)dePerché ’l piacer a ragio-nar m’invoglia dePietroBembo (Asolani III,8) conforme,aliás,apontualindicaçãodeFariaeSousa109:

104 Cf.supra,nota19.105 OesquemamétricodestacançãodeGarcilasotambémédecalcado,o

quenãosurpreende,deRvf23(cf.V.Anastácio,op.cit.,I,p.293).ECamõesretomouoesquemadacançãodasmetamorfosesnaoutracançãoVinde cá, meu tão certo secretário.

106 Cf.Rvf23,38“eiduomitrasformaroinquelch’i’sono”.107 Veja-se adistinçãoentre entendimiento, razón, apetito emFernandode

Herrera,Anotaciones a la poesía de Garcilaso,EdicióndeInoriaPepeyJoséMaríaReyes,Madrid,Cátedra,2001,pp.515-6.A identificaçãoalegóricada razãocoma senhora, edo apetite como servo, remonta aCic.Tusc. II,21, logosetendotornadolugar-comumnaliteraturapeninsular(cf.Garcilaso de la Vega, ed.cit.,p.78,notaaosvv.44-52,ep.4239).

108 Entreasnumerosascorrespondências,valeapenaassinalararepetiçãoemrima,apartirdaantepenúltimaestância,de“tormento”(vv.127,141,164)e“perdido”(vv.134,152,158;cf.tambémv.118“perdida”).

109 Cf.PietroBembo,Gli Asolani,ed.criticaacuradiGiorgioDilemmi,Firenze, Accademia della Crusca, 1991, pp.190-1 (primeira edição), 323-5(segundaedição).Variantesdeformanaprimeiraedição:23trezza,27peregrin.

74 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 75

Eranelastagionche’lghiaccioperdeDaleviole,e’lsolcangiandostileLafacciaoscuraalecampagnehatolta,Quandotra’lbelcristalloe’ldolceverdeMicorsealcorlamiadonnagentile,Checorrervidoveasolunavolta.MiaventurainquelpuntohaveadiscioltaLatrecciad’or,etquelsoavesguardo,Lieto,cortese,etardo,Armavansìfelicietcarilumi,Chequant’iovidipoi,Vagoamorosoetpellegrinfranoi,Rimembrandodilor,tenniombreetfumi;Etdiceaframestesso:‘Amorsenz’alcundubbioèquidapresso’.

Vejam-se,emparticular,ascorrespondênciasentreEra ne la stagion eEra no tempo,edeseguidaentrela ventura eminha ventura.

Aomodelobembianosedeve,maisumavez,aimagemque, sempre em M1, ocupa o centro da terceira estrofe(vv.37-45)110:

Correadaparteunabellafontana,Chevidel’acquesuequeldìpiùviveAvanzarperlerive,E’ncontroiraggidellelucisanteOgniramoinchinarsiDelboscointornoetpiùfrondosofarsi,Etfiorirl’herbesottolesuepiante,EtquetartuttiiventiAlsuonde’primisuoibeatiaccenti.111

110 Variantesnaprimeiraedição, substantivas:37 chiara; formais:40de le.111 Observe-se,porém,queCamõesnesteversoremontaaRvf5,4“ilsuon

de’primidolciaccentisuoi”; 283,6-7“post’àisilentioa’piùsoaviaccenti/chemais’udiro”.

Nadescriçãobembianadomilagrequeocorreunanaturezaemvirtudedapresençadamulher112,primeiroosramosincli-nam-se,depoisaservasflorescem,finalmenteosventossosse-gam.Emborainvertendoaordemdosdoisprimeiroselemen-tos,Camõesproduz,deresto,menosumaimitação,doqueumaautênticatradução,cadafrasereflectindofielmenteaquenomodeloitalianolhecorresponde113.Alémdisso,Camõesantecipa,comrespeitoaBembo,osversos“Scesequagiusointerra,/Perdaralmondopaceettorliguerra”,queemM1acabamporocupara‘combinatio’finaldasegundaestância(que Deos só fez na terra/por dar paz aos nacidos, e a mi guerra).

Àinfluênciadominantedomodelobembianojunta-seofiltrodeGarcilaso,Écl.I,199-201:“Losárbolespareceques’inclinan;/lasavesquemeescuchan,quandocantan,/condiferentevozsecondolecen”,versosemquesereconhecemalguns ecos do canto deOrfeo emVirg.,Ecl.VI,27-30.

PoresmagadoraquepareçaainfluênciadeBemboeGar-cilasonestapartedacançãocamoniana,teremosnorestoquesalientar,maisumavez,aconstantepresençadePe-trarca.Assim,asentençaqueencerraaquartaestrofefunda--seemRvf118,5“L’amarm’èdolce,etutililmiodanno”114.

112 Oprodígiodanaturezaqueseinclinaperanteabelezadamulheramadaencontra-se,decertaforma,antecipadoemRvf165,1-4:“Come’lcandidopie’perl’erbafresca/idolcipassihonestamentemove,/vertùche’ntornoifioriapraetrinove,/deletenerepiantesueparch’esca”(omotivoremontaaPérsioII,38eClaudiano,Carm. min. 30,89-91).

113 Cf.“ogniramoinchinarsi/delboscointorno,epiùfrondosofarsi”etodo ramo abaixar-se/senti no bosque, e mais verde tornar-se;“etfiorirl’erbesottolesuepiante”eflorecia a verdura/que, andando, com os divinos péis pisava;“etquetartuttiiventi/alsuonde’primisuoibeatiaccenti”eamansavam-se os ventos/ao som dos suaves seus acentos.

114 “TrasladóloFrayLuísdeLeónenlaOdaintitulada,al mundo, y su vani-dad,afolio37feneciendotambiénunaestancia,assí:Porque, si no me engaño,/naciera gran provecho de mi daño”(FariaeSousa).Entreospetrarquismosespecí-ficosdeM1,cabeaindaassinalarv.45,cf.Rvf283,6“post’àisilentioa’piùsoaviaccenti”;v.48,cf.Rvf37,120“ospirtoignudooduomdicarneetd’ossa”.

76 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 77

Outra imagem fundamental desta canção encontra-senaúltimaestância:cf.v.87(jápresente,aliás,apartirdapri-meiraversão) com o claro gesto juntamente impresso115.Maisumavez,omodeloremontaaRvf93,1-2“PiùvolteAmorm’aveagiàdetto:Scrivi,/scriviquelchevedesti in lettred’oro”116, lugar que pontualmente ecoa nos textos deBemboedeGarcilasoqueacabamosdemencionar.EisaquiopassorelativonacançãodeBembo(vv.67-75):

Cosìpensava,e’nquantoocchiosigira,Vidiunche’ldolcevoltodipingeaParte,etpartescriveaNel’almadentroleparole,e’lsuono

(......).TallamiadonnabellaM’eranelpettoinvisoetinfavella.EmM2,estemotivoresultapresentejánaprimeiraestân-

cia,nomeadamentenov.12em vertude do gesto que eu escrevo,àmargemdoqualFariaeSousaapontaparaoutrosonetoatribuídoaCamões,Amor, que o gesto humano n’alma escreve,claraimitação,porsuavez,dosonetodeGarcilasoEscrito está en mi alma vuestro gesto117.Aexortaçãoovidianaepetrar-quianaencontra-se,aliás,noprópriocomeçodumacanção

115 “Jáem1948relevámosabelezadestetraslado. Comoo‘DitadodoAmor’,ésemdúvidatambémumvelhotópico(...). JánaelegiaAquela que de amor descometido (...),presumivelmenteescritamuitoantes,Camõesdissera:a saudade escreve, e eu traslado.édenotarcomo,daelegiaparaacanção,otrasladosesubti-lizou”;“équeametamorfosedescritanaversãode1595(...)assumiuumataltranscendênciaqueoescritonofundodaalmanãoéapenasesubjectivamentepelasaudade,masalgoqueopróprioactodeconhecerescrevenãoseconhe-cendo”(Sena,Uma Canção de Camões cit.,p.390).

116 PorsuavezdecalcadoemOv.Her.IV,13-14Ille [Amor] mihi primo dubi-tanti scribere dixit:/Scribe.

117 Apartirdosvv.2e12:“LoqueelAmorteníaimpressoensualmaeralahermosuradesuQuerida,ylaspenasqueporellapadecía”(FariaeSousa).

deBoscán:“Grantiempohaqueamormedize‘scrive,/es-criveloque’ntiyotengo’scrito/deletraquejamásseráborrada”118.

A tendência para a compactidade.–Como muitosindícios,pertencentes ao âmbitoestilístico, confirmam, aanterioridadedeM1constitui,nareconstruçãodasvicissi-tudesgenéticasdeManda-me Amor,ahipótesedelongemaiseconómica.Eis aquiumresumodasprincipaisdiferençasentreasduasversões:nasuamaioria,situam-senastrêspri-meirasestâncias.

Naprimeiraestância,oautorestimanãoseraprópriaartepoéticaadequadaadescreverasublimidadedamulheramada.Estelugar-comum,queconstituioassuntoprincipaldacan-ção,exprime-se,emM1,numafórmulaestereótipa,emqueseapontaparaomitodeOrfeu(mais dina de outro Orfeo,v.11)119.Emseulugar,aversãodefinitivaapresentanume-rosostraçoscomunsaoutrotextocamoniano,osonetoXV(Em quanto quis Fortuna que tivesse)120.

Amaisimportantecorrespondênciatextualprende-secomov.10dacanção,com a pena o engenho escurecendo,comrespeitoaov.7dosoneto, escureceo-me o engenho.Emtornodestemotivo

118 Juan Boscán, Obra completa,edicióndeCarlosClavería,Madrid,Cátedra,1999,n°103,pp.210-4.Cf. tambémo ‘incipit’dumaCarta en redondillas deDiegoHurtadodeMendoza(Poesía,EdicióndeLuisF.DíazLariosyOlgaGeteCarpio,Madrid,Cátedra,1990,n.º77,pp.351-3):“Amormemandaescribir,/temormefuerzaacallar”.

119 Pela“preferênciaquaseobsessiva”queCamõespareceternutridopelomitodeOrfeu,cf.MariaHelenadaRochaPereira,O mito de Orfeu e Eurídice em Camões[1984],in:Ead.,Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa,Lisboa,IN-CM,1988,pp.69-81.

120 Estesoneto,comoésabido(cf.The Cancioneiro de Cristovão Borges,EditionandNotesbyArthurLee-FrancisAskins,Paris,JeanTouzotlibraire-éditeur,1979,p.23), teria provavelmente desempenhadoumpapel introdutivo, no quadrodaquele‘Canzoniere’queCamões,aliás,talveznuncativessechegadoareunir.

78 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 79

épossívelidentificarumconjuntodeoutrostraçoscomunsaambostextos,asaber:1) a rima emparelhada do soneto contentamento:pensamento reflecte-senasrimascontente:...:contentar-me,presentesnapri-meiraestânciadeambasasversões,enquantopensamentosóseencontranov.64deM2121;2) arimaremotasujeitos:...:defeitosdomesmosoneto,alémdecorresponderasogeitonov.70deambasasversões,reflecte-seemparticularemdefeito,palavra-rimanov.15deM2122;3) finalmente, o motivo dos enganos de Amor encontra-seamplamentedesenvolvidoemM2:alémdeenganar-me narimado v.7, veja-se a repetição enganos...enganoso...enganando nafrontedasegundaestância,ondeaexpressãomil vontades alheias(v.20)remeteemparticularparaasdiversas vontadesmencionadasnosoneto.

Outrainovaçãoimportante,introduzidaemM2,dizres-peito,comovimos,aov.12em vertude do gesto que eu escrevo.Finalmente,cabeassinalarasubstituiçãoemM2,noúltimoversodaprimeiraestância,dovocativoestereótipoSenhoracomamençãodeAmor,deformaacriarumaligação(‘coblascapfinidas’)comoversoinicialdaestrofeseguinte123,ondeAmorsetornaprotagonista,substituindo-seàminha ventura deorigembembiana.

Os dois motivos de maior relevo nas estâncias II-IIIcorrespondemàimagemdoscabelos(emM2,tranças encres-padas) soltos ao vento, traço característico do arquétipofeminino tantopetrarquianocomobembiano,eaoexórdioprimaveril, que anda regularmente associado, desdePe-

121 Acrescente-se-esse,segundarimanasquadrasdosonetoXV,quesófiguranaestânciainicialdeM2.

122 Atradiçãoimpressalêem meu defeito,emdependênciadepode.123 Noplanolexical,oautorreduzemM2asocorrênciasdoadj.belo,presente,

naredacçãooriginária,comumafrequênciaquepôdeparecerexcessiva,cf.vv.5belos olhos, 10vista bela, 18primavera bela.

trarca,aodiadoenamoramento.Alémdisso,nomodelobembianoCamõesquisenxertarasquadrasdosonetopetrar-quianoZephiro torna.

Apassagemdaprimeiraparaasegundaversãocomporta,portanto,umnotávelafastamentodotextobembiano,de-calcadoquaseàletraemM1,enquantonaversãodefinitivaCamõesseaproximamaisdosmodelosoferecidospelosclás-sicos.Destaforma,oexórdio,alémdemaisintegradonocódigolinguísticodoautor,ganhatantoemdensidade,comrespeitoàtexturamitológica(graçasàevocaçãodafábulaovidianadeAqueloo),comoemprecisãocronológica,tendo,aliás,emcontaqueoquadroastronómicoNo Tauro entrava Febocorrespondeaumvenerávelchavãoliterário124.

Aimitaçãodeoutrosonetocamoniano,Eu cantarei do Amor tão docemente (XIX)125,evidentenopróprio‘incipit’dacanção,continua,emM1,nov.28o rostro airoso e g[e]sto delicado, ecobastantefieldeairoso gesto, e olhos graciosos, v.13dosonetonasuaredacçãomaisantiga(oquepropor-ciona um indício muito interessante no que respeita àcronologiarelativa).AinfluênciadestemodelodesapareceemM2126emproldeoutrosonetopetrarquiano,que,além

124 Cf. Rvf 9,1-2 “Quando ’l pianeta che distingue l’ore/ad albergarcolTaurosiritorna”(=Virg.Georg.I217-8,cf.tambémRvf135,88“quandocolTauroilsols’aduna”);Lus.II,72“Eranotempoalegrequandoentrava,/NoroubadordeEuropaa luzFebeia,/Quandoumeooutrocorno lheaquen-tava/EFloraderramavaodeAmalteia”.Sobreo‘topos’petrarquistadadataedolugardoenamoramento,cf.VítorManueldeAguiareSilva,Aspectos petrar-quistas da lírica de Camões, in:AlonsozamoraVicenteetalii,Cuatro lecciones sobre Camoens, Fundación Juan March, Madrid, Cátedra, 1981, pp.99-116.

125 Cf.Rvf112,9Qui cantò dolcemente, et qui s’assise;143,1Quand’io v’odo parlar sì dolcemente; 225,11sedersi in parte, et cantar dolcemente.

126 Umecodov.4deste soneto (ao peito que não sente) talvez sepudessereconhecernaexpressãopeito...de diamantedov.30,exclusivodeM2:defacto,esteversoremonta,comoveremos,aRvf171,10(enquantoaversãoprimi-tiva, aindanoquadrodaprodigiosa irradiaçãodosolhosdadama, reproduzRvf220,13“l’almalucealtera/dique’belliocchiond’ioòguerraetpace”).

80 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 81

dedesenvolveracorrelaçãoentrerosaseneve127,começajustamentecomoversoIo canterei d’amor sì novamente,noqualteremosquereconheceropróprionegativododuplo‘incipit’camoniano.

Ojogodos‘incipit’similarescontinuanaterceiraes-tânciadaredacçãodefinitiva,ondecomo eu em meu desejo, se acendiam (v.36) remonta a “l’acceso mio desir tuttosfavilla”,v.3dosonetoRvf143Quand’io v’odo parlar sì dolcemente.

Finalmente,ocomiatodaredacçãodefinitivafoiclara-menteinspiradoemRvf119,106-9:

Canzon,chituaragionchiamasseobscura,di’:Nonòcura,–perchétostosperoch’altromessaggioilverofaràinpiùchiaravocemanifesto.128

Em conclusão, pode-se afirmar que a passagem dumaredacçãoparaoutraandaassociadaaumaprogressivarecupe-raçãodasraízespetrarquianas,retomadasnasualiçãoautên-tica,paraalémdoprocessodeesclerosequenormalmentecaracteriza,nalinguagemdalírica,oaparatodosestereótiposmaiscorrentes.

Arecuperaçãodaherançapetrarquianaacaba,defacto,porincrementarataxadecompactidadeintrínsecaaoque,nocasodeCamões,poderiachamar-se‘Canzoniere’vir-tual.Comefeito,oprimeiro‘incipit’destaestrofe,Era no

127 Cf.Rvf131,9-10“et le rosevermiglie infra laneve/moverda l’òra” (FSacrescenta“porentrevivasrosasealvaneve”,v.4dosonetoAmor, que o gesto humano na alma escreve).

128 Acresceque,nestesversos,àpresençadePetrarcaseajuntaadeBoscán,ed.cit.,n°3(Coplas),pp.47-49,vv.79-80“sobrarme lavoluntad,/dofaltaelentendimiento”.ParaamediaçãodeBoscáneGarcilasonaformaçãodopetrar-quismoportuguês,veja-seAníbalPintodeCastro,Boscán e Garcilaso no lirismo português do Renascimento e do Maneirismo,“Península”,1(2004),65-95.

tempo que a fresca verdura,comasuaaparênciaabsolutamentegenérica,cedelogoopassoaSem conhecer Amor viver soía,cujamatrizécomumao‘incipit’dosonetoVII:No tempo que de Amor viver soía.Eamultiplicaçãodeligaçõesinternasconfirma-senosversosseguintes,queresultambempró-ximosdacançãoI81-83“Devontadesalheias,querou-bava,/equeenganosamenterecolhia,/emmeufingidopeitomemantinha”.

Cotejo entre M2 e M3.–Conformeoprocessoacimaadoptado, apontamos as oposições principais relativas aonúcleocomumàsduasversões (estânciasII-IV,limitando--nosaosvv.24-45,50):

1) resolução de factores dinâmicos: 24 quando | o Amor soltava → quando Amor me mostrava;2) introduçãodeoutrasfigurasmétricasdeacordocomumgostomaismoderno,comoacrase(com uns olhos, v.27),asina-lefa(vv.28,32),otransporte(vv.34-35);3) substituições sinonímicas: 25 encrespadas → desatadas; 32admirado → desusado; 42 tocavam → pisavam (a desfazer a se-quênciasimétricaemrima,quecaracterizaaversãoprecedente);71Assi, que indo perdendo o sentimento → privandome do todo o sentimento;4) inversãodaspalavras-rimanosvv.34-35,decanto:levantando paralevantando:canto.

Dopontodevistaprosódico,estaversãoparecemuitomaisregulardoqueasprecedentes:LAFrelevaapenasumhiatoapósque (v.14),outroapósoartigoo (v.44),umversoacentuadona4ae8a(v.22,comsua sinerético).Pelocon-trário,comrespeitoaM1,umhiatoapóseinicial(v.34)foidesfeito:(e → porque) as gárrulas aves.

AnovidadeprincipaldeM3consistenumcertonúmerode mudanças lexicais, manifestamente devidas à censura

82 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 83

religiosa129.Jánotámoscomo,napassagemdaprimeiraparaasegundaversão,desapareceramostermosdoutrinaisda-nado; o mais da vida; divina130; eatésentidosetransformouemalmaefino pensamento131.Estatendênciatorna-semaismarcadaemM3,ondedivinospésfoicorrigidoemditosos pés (v.40),eaténa linda vista purasemudouparana vista casta e pura (v.38),acentuando-seapudicíciadamulher,etornando-se,aomesmotempo,menoshiperbólicoopoderdasuabeleza:ascoisas,agora,jánãoseabaixamanteela,massim,edeformamuitomaisnatural,anteseuspés(v.43).Emparticular,todaaquintaestânciafoiremodeladacon-formeesseintuitocensório:veja-seemparticularasirima,onde importaaeliminaçãodeappetite, e, aindamais,doepítetoceleste.

AlgumasdasmaisimportantesinovaçõesdeM3situam-senosdísticosqueencerram(‘combinatio’)asestânciasIIeIII:assim,nosvv.29-30,o riso tão galante,/que um peito desfizera de diamante mudou-separao gesto grave e ledo,/que juntamente move amor e medo;deformaanáloga,nosvv.44-45,Não houve coisa, emfim,/que não pasmasse dela, e eu de mim mudou-separao ar, o vento, o dia/de benignos espíritos enchia.Estasalte-raçõestambémpoderãoencontrarexplicaçãonoquadrodamudançaestrutural acimadelineada:em lugardeo riso...galante, e do hiperbólico peito...de diamante (vv.29-30)132,

129 Apropósito,na terceiraversão,LAF“pressupõea clara existênciadevariantesdetradição,enãodevariantesdopróprioAutor”(p.290).

130 Quetinhapermanecido,comocasoexcepcional,nov.32daprimeiraversão.

131 Namesmasequênciademodificaçõesterá,talvez,queseincluirapassa-gemvi → crinov.80.é,portanto,possívelqueosmss.conservem,dasegundaversão,umaredacçãojáparcialmentepurgada.

132 Cf.Rvf171,10“delbeldiamante,ond’ell’àilcorsìduro”,queremontaaumalongatradição(cf.Il Mare Amoroso,acuradiEmilioVuolo,UniversitàdiRoma,IstitutodiFilologiamoderna,1962,pp.202-3).FariaeSousareúneoutraspassagensemqueCamõesfaladumpeito de diamante.

tantoo gesto grave e ledo133,comoobinómioamor e medo, acabampordarmaiorênfaseaorecatodadama.NotocanteaoutrodísticoqueremontaaM1,combasenaimagem,tambémalgoparadoxal,detodasascoisaspasmando-se nela,é provável que a nova cláusula de benignos espíritos enchia (vv.44-45),introduzidaemM3,resulte,emúltimaanálise,damanipulaçãodosvv.32-33daprimeiraversão:uns divinos spíritos saíam,/que o ar enchiam de suavidade.Oresponsáveldaoperaçãocensória,sejaeleopróprioautorou,menospro-vavelmente,oeditor,noactodelevaracabootrabalhoderevisão, teriaportantoaproveitado,devezemquando,epor via de contaminação, algumas passagens da redacçãomaisantiga134.

Cabe,aliás,observarqueanovaparelhaderimasdia:en-chiatemoefeitodeincrementartantoacompactidadedaterceiraestância(onde-iam:...:-iasubstitui,claroestá,are-laçãoprecedente-iam:...-im),comotambémaextensãodarima-ia;trata-se,nãoporacaso,damesmarimaqueesta-belece,naestruturacomum,umaforteligaçãoentreaquintaestânciaeasexta:

M1 M2 M3

V perdia entristecia perdia dizia dizia avia

VI perdia perdia perdia escrevia escrevia esculpia

Note-sequearimaidênticaperdiafoirecuperada,outravez,daversãomais antiga,enquantonaversão sucessiva,

133 ProvavelmenteretomadoapartirdadescriçãodeBembo(“lieto,corteseetardo”).

134 Natransformação,nov.42,detocavam para pisavam,esteúltimoprovémdepisava,v.40deM1.Recorde-seque26esquivotambémrecuperaumaliçãodaversãomaisantiga.

84 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 85

queéprovavelmenteamaisautorizada,oautortinhaelimi-nadoestamácularetórica.

Outrotraçoimportante,quepassadaprimeiraparaater-ceiraversão,dizrespeitoàrimaem-ura:

M1II Eranotempoqueafrescaverdura:ágoaclaraepura III ágoadoceepura:floreciaaverdura

M2III inflamadasnalindavistapura:floreciaaverdura

M3 III inflamadasnavistacastaepura:floreciaaverdura IV Natura:avistapura

Tomandoaprimeiraversãocomopontodepartida,apre-sentam-senoprocessogenéticoduastransformaçõessuces-sivas:comoexplicámosacima,M2neutralizounumaestrofeúnicaarepetiçãoquerdeverdura,querdepura,assimcon-firmandoatendênciadestaversãoparaumempregomaiscastiçodasinstituiçõesmétrico-retóricas;emM3,pelocon-trário, a duplicaçãomanteve-se em ambos casos, porémcomduasmodificaçõesimportantes.Porumlado,Natura,substituindo-seà humana naturezapresentenasduasversõesprecedentes,anulaarimaidênticaverdura.Poroutrolado,apóssimplificação,emM2,daduplacláusulaágoa (doce/clara) e puranosintagmaúnicona linda vista pura, recupera-se,maisumavez,oprocessodedesdobramento,pormuitoquesemantenha(aocontráriodoqueacontecenocasodeverdura)aidentidadedosintagmaedarima:comefeitooprocesso,nasuaetapafinal,produzumasequênciadeduascláusulassimilares,asaber,a vista casta e puraea vista pura;orestabelecimentodumasituaçãoparecidaàdeM1associa--se,contudo,àintegraçãopréviadeumelementocaracte-rísticodaversãointermédia,istoé,vistaemlugardeágoa,cujarepetiçãopretendereforçarosintagmacentraldater-ceiraversão.

Arima-avacontinuaacaracterizarassirimasdetodasasestrofes,menosaprimeiraeaúltima;emM3-avarepercute--se,ademais,nafrontedaquintaestância:

II alegrava:mostrava III tocava:(...):abaixava IV tirava:dava V ficava:(...):bradava+ganhava:estava

Outraligaçãoentreastrêsversõeséarima-arme, compassagem de desabafar-me:contentar-me:alçar-me (enganar-me M1),na frontedaestânciainicialdeM1eM2,paralouvar-me:manifestar-me,nasirimadaestânciainicialdeM3.

Jáchamámosaatençãopara,naquintaestância,asequên-cia-ava:-eito:...:-ão,quepermanececomumàstrêsversões (rimasconstantes:sogeito:efeito ecoração:rezão).

Cingindo-nosàanálisedeM3,cabeassinalarasdemaisrimasrepetidasàdistância:-idodaestânciaIparaaVI(rimaidêntica:serperdido);-antodeI(canto:espanto)paraIII(espanto:canto,comfiguradequiasmo)atéVI(tanto:canto),ocasio-nandoduplaetriplarimaidêntica;-ento,comligaçãoana-fóricadasestânciasIIeIV-V135.Alémdisso,amesmarima-ento enquadra-senumatexturadeelementosretomadosdaestrofeprecedente,apartirdeI-II-ento(‘capfinida’),III-IV-ura (nasirima)136.EstatendênciadeM3paraamultiplicaçãodeligaçõesinterestróficasé,decertaforma,simbolizadapelapalavra-chavedesejoque,introduzidanaestânciaV,v.62137,

135 DerivadeM2asérierimáticaentendimento:...:conhecimento, sentimento:...:pensamento,emcujamodificação(entendimento:...:sentimento, sentimento:...:pen-samento) transpareceointuitodeatenuarosentidopagãodametamorfose;M1sóapresentasentimento:conhecimento.

136 Aosquais cabe acrescentar -ente, -anto (I) : -ento (II): -anto (III): -ento(IV-V):-anto(VI);-ado(I):-ade, -adas(II);-ido(I):-edo(II);-oso(I):-eso(II).

137 “DosmaisrecentesestudiososdeCamões,H.Cidade,CostaPimpãoeRodriguesLapa,todosescrevem:Depois de ter perdido o sentimento,/De humano

86 Maurizio Perugi As três versões da canção camoniana “Manda-me Amor” 87

produzumarelaçãode‘coblascapfinidas’entreasestânciasV(v.75)eVI(v.76).

Ataxadecompactidadeinternaacadaumadasestânciasresultadasrelaçõesseguintes(teremos,nestecálculo,deex-cluirasestânciasIVeaVI):I-ente(fronte),-ento:-anto(si-rima),-ado:-ido(fronte);II-ade(fronte),-adas, -edo(sirima),-ava, -ivo(sirima);III-iam(fronte),-ia(sirima),-ava:-avam(sirima, cf. a variante pisava com respeito a M1); V -ava (fronte),-ava, -ovo(sirima).

Emconclusão:nestaversãonãoapenaspermanecem,mastambémse reforçamasestruturas rimáticas comuns,bemcomoasrimastoanteseconsoantes,confirmandoumaten-dência já evidentenas etapasprecedentes; releva-se,pelocontrário,umadesvalorizaçãodaúltimaestâncianoquesereferequeràs rimasmarcadas (ausênciadequalquer rimaproparoxítona),queràsligaçõescomaestânciaincipitária.

Deformamaisgeral,amaiorpartedestaterceiraversão138funda-senoequívocodumadamaque,apesardenuncaserespecificamente mencionada, acaba por se confundir, noplanogramatical,comumavisãoceleste,conforme,aliás,sugereousodotermomilagre (v.48).Observe-se,alémdisso,asupressãodapalavraconhecimento;asuavizaçãodoparadoxoalicerçadonoconceitoderezão(v.66);aprofusão,maisevi-dentedoquenasversões anteriores,de sintagmasque seinspiramnumvocabuláriogenericamentepetrarquiano,quaisperegrino, suave e deleitoso(v.13),suave e doce engano(v.82),

só um desejo me ficava...Atransposiçãodavírgulanãoéesclarecimentogramati-calelógico;implicaumaalteraçãodosentidodotexto.Porque,muitologica-mente,oqueédito(enumbeloenjambement)em1616équeaopoeta,depoisdeterperdidoo sentimento de humano,sóficavaumdesejo,etc.”(Sena,op.cit.,p.390).NoaparatodeLAF,p.339,sóaparecevírgulaapóssentimentoemVisc2,eapóshumanoemDF2;quantoaotextocrítico,opassocarecedequalquerpontuação.

138 Ondepredomina,apartirdaprimeiraestância,umaatitudeentrecausí-dicaesilogística.

enfimarimaidênticade algum ditoso e doce pensamento (v.20)=que por tão alto e doce pensamento(v.65)139,numquadroqueainda apresenta os petrarquismos particulares ditosos pés(v.40),a rudeza das ervas e das fontes (v.57), um rudo tronco (v.60), em rude canto (v.90).

Tambémparecesignificativaadeslocaçãodoestereótiponão sei quê(quem)dasestânciasIII (v.31)eVI(v.84)emM2,paraasestânciasIII(v.31)eV(v.64)emM3,enquantoov.84ficareservadoàmençãodopróprioAmor.140

Apesardapresençamaciçadeinovaçõesclaramenteatri-buíveisaumintuitocensório,estaterceiraversãotambémmanifestaindíciosinconfundíveisqueremetemparaaauto-riacamoniana.Aestritaconformidadecomo‘usus’camo-nianoseria,sim,compatívelcomaintervençãodocensor;omesmo,porém,nãosepoderádizerapropósitodeoutrascaracterísticas,quaisaimitaçãopetrarquiana,queapresenta,comrespeitoàsoutrasversões,algunstraçosdeoriginalidade;etantoamultiplicaçãodeligaçõesinterestróficas,comooacréscimoda taxade compactidade interna revelamumacoerentevontadedelevaratéaofim,emboradentrodeumespíritodiferente,asgrandeslinhasdumprojectojáconce-bidonaalturadaversãomaisantiga.

139 Conformeumatendênciaquejáapontámosváriasvezes,ofenómenoderimaidênticanãoexistenasegundaversão,comaúnicaexcepção,nov.64,deo fino pensamento;quantoàprimeiraversão,sóencontramosumaparelhadequadrissílabosem–ento,todos,porém,entresidiferenciados.

140 Apropósito,eisaquiatábuadasocorrênciasdapalavraAmorpornúmerodeestrofeemcadaumadastrêsversões:M1:I(1),VI(1);M2:I(3),II(2),IV(2),VI(1);M3:I(1),II(2),IV(1),VI(1).

POEMAS

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:91-93

LUÍSQUINTAISLAURA

Nome,tão-só.

Singularidademaiorquelhearrebatariaamemóriametrificadanoofíciodeumaesperaconsagradaàimprováveleternidade.

Oamoréumapatologiadalinguagemoualinguagemumarederota,leitoemqueaexperiênciasegueoseucursoferoz?

Oqueardenanegraintensidadedosséculosardeemversos,dominacorposparamelhordominarmedidasdeváriatradiçãoeforma.

Serásporventuraonomedelaquandotereencontroencapsuladanaminhamorte.

Oteusanguefluinessenomequedevoroagora.

92 Estudos Italianos em Portugal Poemas 93

VERA LúCiA DE OLiVEiRA Há UNS QUE SãO ENGENHEIROS

háunsquesãoengenheirosecalculamtempoedimensãodoarcabouçoháunsquesãocarpinteirosemedemângulosexatosinterjeiçõesdamatériaháunsquevagamnoarcanosãomedidosetocadosatéperceberemaproporçãocorretadecadasignoquerevelaomistério

VASCO GRAçA MOuRA EXERCíCIO EM VAUCLUSE

souenãosou,seescrevoounãoescrevo,semefaçooudesfaçopelaescrita.talvezmeatrevaassim(enãomeatrevoamaisdoqueescreverditaedesdita

destaerráticavida)averquedevoqualquercoisaapetrarca.eressuscitaentãoalgodemimporessetrevodequatrofolhasquecoleicomfita

gomadaetransparentenospapéis,demodoaver-seatintaeacitaçãodosséculosXIVeXVI.

sim,há-deperguntar-secomonãomepetrarquizeimaissobessasleisdogeloaarderemalmaecoração.

DIÁRIOS

DAViD MOuRãO-FERREiRA EM AREZZO A 25 DE ABRIL*

5ª feira, 25 de Abril de 197413h. AREzzO. Chegámos há meia-hora, em “pul-

mann”,oqueequivaleuasairdeRomaàs9h.,alevantar--meàs7h.30m.

14.45m. AcabodetelefonarparaaCarmo,emBolonha.VemoFrancoaotelefone–edá-mevivaseparabénsemaltosgritos.Sódepoisanotícia:quehouveestamadrugadaumgolpedeEstadoemPortugal.Aoqueparece,SpínolaeCostaGomessenhoresdasituação;MarceloeTomazrefu-giadosemMonsanto;vinteenoveregimentosrevoltados;ocupadososestúdiosdoRádioClubedaTelevisão.

15h.50m. JátelefoneiparaLisboa.EfaleicomomeuPaique,exultante,meconfirmou,noessencial,asnotíciasdaCarmo.

Vimdepoisapé,desdeoHotel;estouagoranoDuomo–masincapaz,absolutamenteincapaz,deapreciaristocomodeveser.

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:97-100

* Vd.infra,pp.363-383.

98 Estudos Italianos em Portugal Diários 99

16h. 15m. Na casa ondenasceuPetrarca.Oparaleloimpõe-se…:eleestava longedeRomaquando sedeuomovimentodeColadiRienzo.Enãofoiprecipitadamentequeoapoiou?Deresto“comesichiamaveramenteilColadiRienzodiPortogallo?”

Mastornemosaolocalpresente:diantedavarandaondemeencontroerguem-seas árvoresdoPrato, lindíssimoterreiro com uma estátua de Petrarca e praticamenteaberto,emtrêsdosseuslados,sobreopanoramadascoli-nas toscanas. Pela varanda ciranda agora uma rapariga,bonitinhaecomarsentimental:aLaura?Eacabadeche-garobispo,echegamentidadesoficiais(tãosemelhantesàsdelá!)paraassistiràsessãodoConvegnoquevaiagoraaquirealizar-se.

A(des)propósito:hojeédiadeferiadoemItália.Come-mora-seoDiadaLibertação.Podereicomemorá-lo?

16h.35m. Jáestoudentrodasala,quelentamentesevaienchendo.Entreassenhoraspresentes,háumaquepa-receaHelenaTrigueiros,outraaTita,outraaOlgaGon-çalves.OuentãosoueuqueestouconstantementeapensaremLisboa.

19h.20m. NoHotelMinerva(ondealmocei,jantareiedormireiestanoite).Sóassistiapartedasessão.Às18h10m.abandoneiacasadePetrarcaeandeiaoacasopelasruas.Aoacasoentreinumabelíssimaegrandeigrejadeaspecto“déla-brée”:eraaBasilicadiSanFrancesco;e,dentro,portrásdoaltar-mor,amaravilhadosfrescosdePierodellaFrancesca(“LeStoriedellaCroce”).DepoisdosGiottodePadova,dosSimoneMartinideSiena,dosdacapeladegliSpagnoliemFirenze,depoisdetantosoutros.–faltava-me,semdú-vida,maisestarevelação.

22h. NaChiesadiSantaMariadellaPieve,assistindoaumconcertodemúsicadaépocadePetrarcaedemúsicasobreaspoesiasdePetrarca.Às20h.vi(ouvi)natelevisãoasnotíciasreferentesaPortugal.Segundoparece,MarceloCaetanoter-se-árendidoaoGeneralSpínola–easforçasarmadas, assegurandomanterocontroloem todoopaís,prometemeleiçõeslivresparabreve.

22h.50m. AcaboderetornaraquiàChiesadiS.MariadellaPieve(queé,aliás,umaigrejaabsolutamentemaravi-lhosaeatéfantasmagórica),depoisdeumarápidadeambu-laçãopelasruasdeArezzo.Oh!Quantomeapeteciaencon-traruma“aretina”complacente!Mastudoistoparecemuitocastoporfora.Pelomenosporfora.TalcomooPetrarca.

QuantoaoqueseestáapassaremPortugal:serácasoparadizer,utilizandoumversodePetrarca,“benedettosia‘lgiornoe‘lmeseel’anno”?Entretanto–outroversodePetrarca–aHistóriapodeseguramenteirdizendo:“Passalanavemiacolmad’oblio”…

23h.50m. JánoquartodoHotel.PedioutrachamadaparaLisboa–destavezparaaPilar–masdizem-mequeestámuitodemorada.Dequalquermodomantiveopedido;evenhaotelefonemaaquehorasfor!

Verificonesteinstantequefoiem1347(tinhaoPetrarcaquarentaetrêsanos, jáidadeparaterjuízo)queoColadiRienzoseapoderoudopoderemRoma;eoPetrarca,queestavaemVaucluse,tratoulogodesepôracaminho.Maspa-rouameiodopercursoaoreceberanotíciadaquedadode-magogo.(Masagoraperguntoamimmesmo:eraoColadiRienzorealmenteumdemagogo?Confessoquenãotenhomuitopresenteahistóriadesteindivíduo.AssimquechegaraLisboa–quando?como?–tratareiderefrescaramemória).

100 Estudos Italianos em Portugal

QuesepassaefectivamenteemPortugal?Comoéqueascoisasseencontramnestemomento?Será,terásido,aquedadoregime?Seassimé,seassimfor,longeestavaeudepre-verqueaItália,ArezzoePetrarcameficassemtãointima-menteligadosaesteacontecimentohistórico.

éclaroquemetenholembrado,constantemente,deoutro“acontecimento”(anotíciadamortedeSalazar,emSetem-brode1968)quetambémmecolheuaquiemItáliadessavezemRoma;enãopossodeixardepensar,comumpoucodeironiaecadavezmaiordescrença,nas“grandesesperan-ças”quedaíderivaram.Masnãovaleapenafalaragoranisso.Oquepareceéqueestoucondenado,comooFabricedelDongo,apassarinvariavelmenteaoladodeWaterloo…Oumelhor: longeesempreimersoemsugestõesdenaturezacultural.

00h.40m. Tocouagoraotelefone.Avozdoporteiro“…Lisbonastainterroto.Nonsipuoparlare”.

Aliásadmiradofiqueieudeterpodidofalaraseguiraoalmoço.Mascustabastanteirassimdeitar-mesemaomenosaesperançadetermaisnotíciasaindaestanoite.

NOTAS

PETRARCANAVOzPORTUGUESADEVASCOGRAçAMOURA*

Xosé Manuel Dasilva

No passado ano de 2004, as comemorações do sétimocentenário do nascimento de Petrarca serviram, alémdomais, para preencher uma lacuna no património culturalportuguês.Comefeito,alínguadeCamõesnãotinhaatéagoraumaediçãocompletadaobrapetrarquescaescritaemitaliano,composta,designadamente,peloCanzoniereepelosTriumphi.Emplena fasederecuperaçãode textos funda-mentaisdasletrasclássicas,atravésdediversastraduçõesparaportuguês,VascoGraçaMouraachouporbemacabarcomessasituaçãodepenúrianoatinenteaopoetatoscano,enobreveprazodeapenasunsmesesdeuaopreloduasversõesdasmencionadasobras1.

Primeiroquetudo,éinteressantechamaraatenção,demodoespecial,paraadedicaçãodeGraçaMouraaoexer-cíciodevertertextosdeoutraslínguas,jáquenãorepresenta,noconjuntodasuaproduçãotãoplural,umaactividadedecategoria inferioroude transcendênciaacessória.HáquelembrarqueumdosreconhecimentosmaisimportantesqueoautordeA Sombra das Figurasrecebeu,oPrémioPessoa,foiatribuídoaoseuesforçocomotradutordeDante.Este

* AgradeçoarevisãodotextoaRúbenC.NunesDuarte.1 VascoGraçaMoura,As Rimas de Petrarca,Lisboa,Bertrand,2003;Vasco

GraçaMoura,Os Triunfos de Petrarca,Lisboa,Bertrand,2004.

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:103-111

104 Xosé Manuel Dasilva Petrarca na Voz Portuguesa de Vasco Graça Moura 105

factonãodevedeixardeserfrisado,poispodeexistiraten-taçãodepensarnanaturezasecundáriadafacetadeGraçaMouracomotradutor,sobretudotendoemvistaasuavas-tíssimaprodutividadenestecampo,bemilustrada,aliás,nocasodePetrarca.émerecedoradeelogio,realmente,umatarefacomoaqueconsistiuemtrasladar,combonsresulta-dos,aobradoescritordeArezzo,tendoemcontaoperíodocronológicomuitoreduzidonecessárioparataltarefa.

Achavedosucessofoi,noinício,aquiloqueopróprioGraçaMouraqualificoucomoumaquestãodemétodo,istoé,dedestrezaparaseorganizar.QuantoàsRimas,essacapa-cidaderesumiu-se,porexemplo,natraduçãooudecincosonetos,oudeumacançãopornoite,e,paraosTriunfos,adiligênciaterásidosensivelmenteamesma.Nulla dies sine linea,portanto,foiumprincípiobasilarnolabortranslatóriodeGraçaMoura.Apenasaconstância,todavia,nãoexplicaadecisãodeteradoptadoumritmodetrabalhotãodiscipli-nadoe,alémdisso,tãovertiginoso.Houve,comcerteza,umaoutramotivaçãomaispoderosaemenostrivialnapre-ferênciaporumtalmétodo.Otradutorcompreendeuqueovalordométodoseapoiava,mormente,emmanterumlequedemecanismosemtensãoquelhepermitissemtrans-portar,semdissonâncias–numaentrega,porconseguinte,dotadadeunidade–,ocantooriginaldePetrarca,defeitiomagnificenteemtantosplanosdaexpressãoverbal2.Fixadodeantemãooprogramadetradução,edeacordocomométododescrito,GraçaMourapôsemportuguêsoCan-zoniere.Emseguida,sobomesmo“impulso”3–oucom a mão na massa,segundooutraspalavrasmaiscoloquiaisdoprópriotradutor–viu-se culminado o empreendimento com osTriumphi.

2 MárioSantos,“PetrarcasegundoGraçaMoura”,Público,1-11-2003.3 VascoGraçaMoura,“OsTriunfidePetrarca”,emOs Triunfos de Petrarca,

Lisboa,Bertrand,2004,p.11.

ParaconfirmarmosopesodapráticatradutoraemGraçaMoura,cumprerepararqueforamobjectodoseuapreço,comointuitodeosverterparaalínguaportuguesa,Ron-sard,Villon,Rilke,ShakespeareeDante,entreoutrosmais.MasporquêagoraPetrarca,quandoatrajectória literáriadoautordeAntologia dos Sessenta Anoséjámaiscompridadoquecurta?Houvequemopinasse,edeformacriteriosa,quePetrarcaconstitui,atécertoponto,umaagradávelno-vidadenomosaicocanónicoqueGraçaMouratemcons-truído comos autores que traduziu, levando em conta,nomeadamente,umaalusãodisplicenteaocantordeLauracomoaqueaparecenopoema“ODesgastedasImagens”,deA Furiosa Paixão pelo Tangível (1987)4.Esclareça-se,apropósitodisso,queastraduçõespetrarquescasdeGraçaMouranão tiveramorigememqualquerencomendadetipo editorial, demodoque a influência da data come-moradaporocasiãodocentenáriodograndeescritorterásido,nestaescolha,derealcelimitado.Qual,então,amo-tivaçãoparaasversõesdoCanzoniereedosTriumphi?Por-venturaaaceitaçãodefinitiva,porpartedeGraçaMoura,dainfluênciamarcantequePetrarcafoicapazdeexerceremtodaaculturaocidentale,emparticular,nahistórialiteráriaportuguesa.

épertinenterecordarqueGraçaMouracostumaconce-beroactodetransporumdadoautorcomoumaoportuni-dadefavorávelparaaprofundaraobradessemesmocriador.Poder-se-iadizerqueatraduçãoécontempladacomoviade percepção intelectual, e, assim sendo, também comoacçãodedimensõesmetaliterárias.IstoevidenciaquePe-trarcaé,hojeemdia,comdireitonatural,maisumapeça

4 FernandoJ.B.Martinho,“PetrarcanaPoesiaPortuguesaContemporâ-nea”,Petrarca 700 anos,coordenaçãodeRitaMarnoto,Coimbra, InstitutodeEstudos Italianos da Faculdade deLetras daUniversidade deCoimbra,2005,p.77.

106 Xosé Manuel Dasilva Petrarca na Voz Portuguesa de Vasco Graça Moura 107

nomosaicodenomespredilectosdeGraçaMoura.Comadecisãodeotraduzir,oescritorportuguêsestariamostrando,aomesmotempo,umaresolutavontadedeconheceropoetaitalianodemaneiramaisarraigada.ésabidoque,atravésdaobradeGraçaMoura,apresençadoalheioadquire,nãoraro,carácteressencialnaqualidadederecursoartístico,maisaindaquandoestãoem jogoreferênciasde teorclássico5.

ParaládessemotivoqueteriaconduzidoGraçaMouraatraduzirPetrarca,háumaoutracausanãomenosimportante,porém,queestánabasedassuasversões.Comoantesficoudito,PortugalcareciadeumatraduçãointegraldoCanzo-niereedosTriumphi,oqueeraumaanomaliasósurpreen-denteemalgumamedida.Deumpercursosuperficialatra-vésdarecepçãoibéricadaobraemvulgardePetrarcalogoresultaaemergênciadetalideia6.

Emlínguaespanhola,aprimeiratraduçãoconhecidadosTriumphi,feitaporAntoniodeObregón,foipublicadaem1512,eéumaadaptaçãoemquintilhasheptassilábicas,deacordocomosmodelosentãoimperantesemsolopenin-sular7.Emmetroidênticosurgiriaatraduçãoseguinte,deÁlvarGómezdeCiudadReal8,asituaremdataanteriora

5 IsabelPiresdeLima,“Entredoismundos:referênciasclássicasnapoesiadeGraçaMoura”,Camões,2,1998,pp.109-116.

6 Vd.JoséMaríaMicó,“LaépocadelRenacimientoydelBarroco”,emFranciscoLafarga&LuisPegenaute,eds.,Historia de la Traducción en España,Salamanca,EditorialAmbosMundos,2004,pp.175-208;JoséFranciscoRuizCasanova,Aproximación a una historia de la traducción en España,Madrid,Cátedra,2000,pp.173-175;EsperanzaSeco,“HistoriadelastraduccionesliterariasdelitalianoalespañolduranteelSiglodeOro(Influencias)”,Cuadernos para la Inves-tigación de la Literatura Hispánica,13,1990,pp.41-97.

7 Vd.A.J.Cruz,“LosTrionfienEspaña:lapoéticapetrarquista,lateoríadelatraducciónylalenguavernáculaenelsigloXVI”,Anuario de Estudios Medie-vales, 25, 1995,pp.307-324;RoxanaRecio, “Traductor y traducción:LosTriunfos de la MuertedeObregónyColoma”,Livius,3,1993,pp.229-240.

8 El “Triunpho de amor” de Petrarca traduzido por álvar Gómez de Ciudad Real,Barcelona,PPU,1998.Edición crítica, introducción y notas de Roxana Recio.Vd.

1538.ParaalémdeumaoutraversãodeJuandeColoma9,somenteatraduçãodeHernandodeHozes,emmeadosdoséculo,respeitariaaformamétricaoriginal,utilizandooversodacassilábico.EstetradutorestavajáconscientedarevoluçãoqueasnovidadesintroduzidasporBoscáneGarcilasotinhamsignificadoparaapoesiaibérica,comosepodeverificarcomclarezanoprólogodestaversão.

RitaMarnotoindicou,commuitapertinência,queoele-vadonúmerode exemplaresde traduções espanholas embibliotecaslusasrevelaque,naaltura,muitosleitorespor-tuguesesasutilizavamparaseaproximaremdosTriumphi10.Contudo,ecomindependênciadealgumasnotíciasavulsassobreoutraspossíveis traduções, torna-se factível registar,comoamesmaestudiosaaponta11,aexistênciadeumaver-sãoemlínguaportuguesadestaobrapetrarquesca.Elaapa-rece num manuscrito guardado na Biblioteca e Arquivo

CarlosAlvar,“ÁlvarGómezdeGuadalajaraylatraduccióndelTrionfo d’amore”,emJuanParedes,ed.,Medioevo y literatura. Actas del IV Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, Granada, Universidad de Granada, 1995,pp.261-267;J.MaríaAzaceta,“PetrarcatraducidoporÁlvarGómez.Nuevosdatosparaelestudiodelinflujodelpoetaitalianoennuestralíricarenacentista”,emEl Cancionero de Gallardo,Madrid,CSIC,1962,pp.42-48;RoxanaRecio,La traducción del “Triunfo de amor” de Petrarca por Alvar Gómez de Ciudad Real: un estudio sobre la poesía de cancionero y sobre las teorías medievales y renacentistas de la traducción,AnnArbor,1993;RoxanaRecio,Petrarca y Alvar Gómez: la traducción del “Triunfo de amor”,NewYork,PeterLang,1996;RoxanaRecio,“Lascan-cionesintercaladasenlatraduccióndelTriunfo de AmordePetrarcaporÁlvarGómezdeCiudadReal”,Hispanic Journal,12,1991,pp.247-265;GiuseppeCarloRossi,“UnatraduzionecinquecentaspagnoladelTrionfo d’Amore”,Con-vivium,V,1959,pp.40-50.

9 MaríadelPilarManeroSorolla,“Triunfo de la muertedePetrarcatraducidoporJuandeColoma”,Anuario de Estudios Medievales,23,1993,pp.563-578.

10 RitaMarnoto,O Petrarquismo Português do Renascimento e do Maneirismo,Coimbra,UniversidadedeCoimbra,1997,p.27.

11 Marnoto,O Petrarquismo Português,pp.345-347.

108 Xosé Manuel Dasilva Petrarca na Voz Portuguesa de Vasco Graça Moura 109

Distritaldeévora12,etrata-sedeumatraduçãoincompletarecuperadanoséculoXIXpeloViscondede Juromenha,queaincluiu,semfundamentológico,nasuaediçãodaobralíricadeCamões.

QuantoaoCanzoniere,asversõespeninsularesmaispri-mitivasforamfeitasemespanhol,tambémnoséculoXVI,porElBrocense,quetrasladou11sonetos,eporSalomónUsque,hebreudeorigemportuguesa,quepublicou,noanode1567,emVeneza,atraduçãodaPrimeira Parte13.Apri-meira tradução completa do Canzoniere para uma línguaibéricapertenceaHenriqueGarcês,nascido tambémemPortugal, terceiro tradutor espanhol de Os Lusíadas apósBentoCaldeiraeLuisGómezdeTapia,quedáàluzemMadrid,no anode1591,Los sonetos y canciones del Poeta Francisco Petrarcha14.Naverdade,nãosetemnotíciadequal-quertraduçãodoCanzoniererealizadaemPortugal.

12 Vd.GiacintoManupella,Uma anónima versão quinhentista dos Triunfos de Petrarca e o seu comentário,Coimbra,1974.

13 Vd.MaríadelPilarManeroSorolla,“LaprimeratraduccióndelasRimedePetrarcaenlenguacastellana:Los sonetos, canciones, mandriales y sextinas del gran poeta y orador Francisco Petrarca de SalomonUsque”, emAdolfo Sotelo,coord.,&MaríaCristinaCarbonell,ed.,Homenaje al profesor Antonio Vilanova,I,Barcelona,UniversidaddeBarcelona,1989,pp.377-391;FrancoMeregalli,“SulleprimetraduzionispagnoledisonettidelPetrarca”,emTraduzione e tra-dizione europea del Petrarca. Atti del III Convegno sui problemi della traduzione lette-raria,Padova,Antenore,1975,pp.55-63;VíctorEduardoKrebsBermúdez,“LastraduccionesdeunsonetodePetrarcaenelRenacimientoespañol”,emRoxanaRecio,ed.,La traducción en España. Siglos XIV-XVI,León,UniversidaddeLeón,1995,pp.191-220.

14 Vd.DámasoAlonso,“LarecepcióndeOs LusíadasenEspaña”,Obras Completas,vol. III,Madrid,EditorialGredos,1974,pp.9-40;umaprimeiraversão,sobomesmotítulo,foipublicadaemBoletín de la Real Academia Española,LIII,1973,pp.33-61;EugenioAsensio,La fortuna de OsLusíadas en España (1572-1672),Madrid,FundaciónUniversitariaEspañola,1973;depoispublicadoemEstudios portugueses,Paris,FundaçãoCalousteGulbenkian,CentroCulturalPortuguês,1973,pp.303-324;SousaViterbo,“HenriqueGarcês,tradutord’Os LusíadasemEspanhol”,Círculo Camoniano,1,1891,pp.316-323.

EstepanoramadasversõesibéricasdaobraitalianadePe-trarca,desenhadoaquisóatraçoslargos,levaaconfirmarqueatentativadeGraçaMourapossui,mesmonoséculoXXI,umasignificaçãohistóricaincontestável.Foinecessá-rioesperarsetecentosanos,oquenãoépoucotempo,paratermosemidiomaportuguêsumatraduçãototaldoCanzo-niereedosTriumphi.

édeinteresseanalisar,ainda,oscritériosquenortearamastraduçõespetrarquescasdeGraçaMoura.Emborafrag-mentárias,háalgumasreflexõessuasquantoaofenómenotradutorquepodemserúteis.Porexemplo,GraçaMouraopinouqueatranslaçãodetextospoéticosé,maisdoqueumaoperaçãomaquinal,umreptoalicianteemqueprevaleceanecessidadedetransplantaraquiloquedeterminaadiferençaestética–osemelhantedependesempredoóbvio–entreotextooriginaleotextotraduzido.Oobjectivonãoéobterumareproduçãosemsubstânciaprópria,masumprodutoquesejaefectivo,emtermosestéticos,paraonovoreceptor.Torna-se oportuno trazer à baila aquela consideração deGraçaMouraarespeitodeainfidelidadeser,amiúde,ome-lhorcaminhoparaatingir,natransferênciadogéneropoé-tico,afidelidademaisrigorosa15.

EstapercepçãodoqueéatraduçãopoéticalembraoqueOctávioPaz, para quem, por sinal, traduzir e criar eramoperações gémeas, expunha a propósito das composiçõesadmiráveis–etãoalheiasquantopróprias–doseuvolumeVersiones y diversiones.Opoetamexicanodiziaque,apartirdepoemasnoutraslínguas,tinhaprocuradofazerpoemasnasualíngua.Nãoéomomentodenosinternarmosnocon-flituosodebatesobreaconveniênciadeestarnacondiçãodemestredaescritaparatrasladarpoesia.Semespaçoparaargumentaçõeseréplicasacercadeumassuntotãoespinhoso,

15 VascoGraçaMoura,“JoãoBarrentoeopoçodeBabel”,Os Meus Livros,9,2003,pp.66-67.

110 Xosé Manuel Dasilva Petrarca na Voz Portuguesa de Vasco Graça Moura 111

diga-seaquiapenasqueéaconselhável,aotraduzirliteraturapoética,exibirofícioartístico.Equemcostuma,demaneiraconsensual,estarnapossedaartedeescreveré–aomenospordefinição–oescritor.

NoqueconcerneàestratégiaquepresidiuaestasversõespetrarquescasdeGraçaMoura,háquefazersobressair,prin-cipalmente, a supremaciada formados textosdepartida.Preponderou,comefeito,aconservaçãodascaracterísticasmétricasdospoemas, comoamedida, a rimaeo ritmo.éumaopçãobemlegítimaafimdealcançar,nalínguaparaquesetraduz,umfielreflexodooriginalcorrespondente,sem incorrer,por isso,namera literalidade.Talpremissacumpriu-senocasodetodososgénerosquefazempartedoCanzoniere,dosonetoàsextina,incluindoascanções,asbala-daseosmadrigais,eestátambémpatentenocasodaterza rimadosTriumphi.

Ouseja,pode-sedizerque,tantoquantopossível,GraçaMouradecalcou–naacepçãomaisconscienciosadovocá-bulo–aaparênciadascomposiçõesdePetrarca,oqueim-plicaumaaltadosedehabilidadeartesanalporpartedotra-dutor.Umatalatitudenãotevecomocontrapartida,porém,amarginalizaçãodosingredientesconceptuaisqueoapri-moradodiscursodosversospetrarquescosdesvenda,oquedenota,porsuavez,umaelevadacapacidadecriadora.

Oméritoprimordialfoiatingirumpontodeequilíbrioentreconfiguraçãoexternaeelementossignificativos,semqueumdessesdoisaspectosfosseprivilegiadomaisdoqueoutro.Esseméritosóseconseguegraçasaumtrabalhopa-cientedenegociaçãopoética,renunciandocáeganhandolá, umas vezes sacrificando matizes e outras vezes com-pensandoessasperdas.Háqueevitaroriscodeconverteropoematraduzidoapenasnumaglosavulgardopoemaori-ginal, comoresultadodeaversão se submeter,demodoabsoluto,à tiraniadosconstituintesmétricosemprejuízodoscomponentessemânticos.

Emconclusão,aobradePetrarcaemitalianofica,apar-tir destas versõesdoCanzoniere edosTriumphi deGraçaMoura, aodispordos leitoresportuguesesna suapróprialíngua.Obalançoédignodeserdestacadoe,falandoemtextospetrarquescos,talveznadahajamaisadequadodoqueevocaraquelelouvorquedizrespeitoadoisilustrespetrar-quistas,GarcilasodelaVegaeJuandeBoscán.Nadedica-tóriado tratado aD.GerónimaPalovadeAlmogávar,oprimeiroexaltavaassimomerecimentodosegundo,comotradutordeIl CortigianodeBaltasardeCastiglione:

Y supovuestramercedmuybienescogerpersonaporcuyomediohiciésedesestebienatodos,quesiendoamiparecer tan dificultosa cosa traducir bien un libro comohacerledenuevo,dióseBoscánenestotanbuenamaña,quecadavezquemepongoaleerestesulibroo(pormejorde-cir)vuestro,nomeparecequelehayescritoenotralengua.Ysialgunavezmeacuerdadelquehevistoyleído,luegoelpensamientosemevuelvealquetengoentrelasmanos.

PERSPECTIVASESUCESSOSDOSESTUDOSSOBREOPETRARQUISMO*

Roberto Gigliucci

Em torno da ocasião oferecidapelosétimocentenáriodonascimentodeFrancescoPetrarca,multiplicaram-seasreflexões sobre o fenómeno do petrarquismo: simpósios,ensaios, seminários, encontroseuropeuseextra-europeusfizeramopontodasituação.EmItália,umgrupodetraba-lho coordenado por Amedeo Quondam organizou umasériedecolóquios,começandopelodedicadoaPetrarca nel Novecento italiano1,que,cronologicamente,pelasuamatériasepoderiaconsiderarumaúltimaetapa.Oséculoqueaca-boudeseconcluirfoidefinidocomo“omaisdantescodahistória”,omaisplurilinguista e“infernal”, “catabático”,corpóreoepurulento,dizimadoporguerrasnuncavistase,maisdoqueisso,porumaviolênciasistematicamenteexal-tada.Contudo,avozdePetrarca,asualinguagememble-máticaeabsoluta,depoisdaexperiênciadeMallarméedeValéry,desfrutaramumrelevoessencialnaItáliadoherme-tismoquesepropagouatéaocomplexopetrarquismodezanzotto.Sabe-se,pois,queopetrarquismodoséculoXXéumpetrarquismohíbrido,embutidonumamatériaoutra,apontodepoderconvivercomheresiashistóricasquelhesãointernas,quandonãocomformasdeantipetrarquismo.

* TraduçãodeRitaMarnoto.1 Un’altra storia. Petrarca nel Novecento italiano,acuradiAndreaCortellessa,

Roma,Bulzoni,2005.

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:113-127

114 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 115

Significativa,nessesentido,éaposiçãodoMontaleque,pelomenosemalgumassequênciasdasuaobra(emFinisterre,masjáanteriormentenosMottetti)declarateractivadoumseu‘petrarquismo’2.EmMontale,podemosreconhecerumdan-tismodepalavraseumpetrarquismodeemblemas.ComonaquelatradiçãometafísicaquedoManeirismo-BarrocovaiatéBaudelaireedaíatéElioteRilke,arecuperaçãodoreal,domatério-objectualeatédoprosaico‘moderno’,éfeitaàcusta da reintegração daqueles dados empíricos e opacosnuma dimensão de lampejo metafísico com significaçãometa-empírica.Oregressoaoplanofísicocomporta,pois,umaassunçãometafísicaa posteriori.Assimseidentificaumaheresiamaisoumenos interna aopetrarquismode longaduração.énoséculoXXqueessasquestõesvêmàliça.Porumlado,opetrarquismodapureza,daspalavrassemcorpode referentes,dosemblemaspuros (flores, frondes,ervas,sombras,antros,ondas,etc.),linguagemdeeleiçãonãosóporviadeumseumonolinguismo,como,esobretudo,porviadeumaabstracçãoideal.Esseéomodopoéticopetrar-quistaquelevaaMallarméedaíatéValéryeGuillénede-poisatéumcertohermetismoitaliano.Poroutrolado,omodopoéticodo“petrarquismometafísico”,oupoesiameta-físicatout court,apesardeterorigemnumacosteladoCan-zoniere,talvezmarginal,comoaprópriacelebraçãometafísicadedadosobjectuaismenores,por exemplo,uma luvadeLaura.Poderiamesmodizerque,daluvadeLauradescen-dem,quemsabe,osamuletosdeClizia,mastambémosle-quesdeMallarmé.éassimquedoscabelosdeLauradecor-remascheveluresdeBaudelaireedeMallarmé,doismodelosantitéticosdapoesiamoderna.Emsuma,noparadigmapetrar-quescoestá tudo, comono livrooriginário, comonuma

2 RobertoGigliucci,Petrarchismo metafisico e Montale,“Sincronie”,8,2004,15,pp.77-92,posteriormentedesenvolvidonovolume,Realismo metafisico e Montale,Roma,NuovaCultura,2005.

bíblia.Comoseopetrarquismo,sobretudoodoséculoXX,fossetãoforte(edesfigurado),apontodepoderconteremsitambémodantismo.E,contudo,estamosafalardeumpetrarquismoquepassou através dametamorfosebarroca(nasorigensdomoderno).AssiméparaUngaretti,apaixo-nadoleitordePetrarca,aquemconsagramagníficosensaios,massobretudoextraordinárioprotagonistadeumacomplexasimbiosecomaspoéticasbarrocas.Opetrarquismoungare-tianovaidapurezadassuasorigensàsmaisdeslumbrantesincrustaçõesgongóricasemetafísicas,atravessandoalíricadeShakespeare,paracomelascomporumopusverdadeira-mentealquímiconoqualvive,maisdoqueohistoriadordasformas,opoeta.Tudoistonosdevelevar,comoéóbvio,aprecavermo-nosdadivisão,talhadacomdemasiadasecuramilitar,deduasfacçõesnãocomunicantes,umapura,outrafísico-metafísica.Trata-sededoismodospoéticos,jáodis-semos,quecomotalpodemconhecerinfinitosconluioseinfinitoscambiantes.

Falou-sedoBarroco.Asegundaetapadoscongressosidea-dos por Quondam intitulou-se, precisamente, Petrarca in Barocco3.Oprefácioaovolumedasactas,poreleassinado,contémumaricaintroduçãoàsmaisrecentespesquisassobreopetrarquismo,consideradocomofenómenopenetrantedelongue duréequeacompanhatodaaculturadoclassicismonoAntigoRegime,continuandoamodelar a línguapoéticapelomenosatéLeopardi.Opetrarquismoé,sobretudonoséculoXVI,formadecomunicaçãodasclasseselevadas,lín-guadogentil-homemquetemdemostrarqueadominaparaparticiparnaculturacomum.Resumindo,éumpe-trarquismodekoine,destinadonãosóasancionaratãone-cessáriareformalinguística,naidadedaimprensa,mastam-bémaproporcionara fruiçãoda sua langueporpartedas

3 Petrarca in Barocco. Cantieri petrarchistici. Due seminari romani,acuradiAme-deoQuondam,Roma,Bulzoni,2004.

116 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 117

pessoas‘civilizadas’,porpartedohomemedamulherdecorte,porpartedequemnãorenunciaàcivil conversazione.Nãoporacasosofreutãosignificativoincremento,nosúlti-mostempos,oestudodopanoramadasantologiaspoéticaspetrarquistasdoséculoXVI4,umverdadeiroboomeditorialiniciadocomaexperiênciapioneiradasRime diverseorga-nizadasporLodovicoDomenichiem1545paraoeditorGiolito.Essasantologiaseramautênticosespelhosdasocie-dademundano-literária do tempo, verdadeiros jardins daconversaçãodenível elevado entrepoetas deprofissão epoetasdiletantes.Todavia, sãoprecisamenteospoetasdeocasiãoquerepresentam,sociologicamente,afatiamaisinte-ressante,documentodanecessidadedodever estar lá,do‘pre-sencialismo’, por assim dizer, da sociedade renascentista.Além disso, também poetas ultraprofissionais, como umBemboouumDellaCasa,eramprotagonistasdavidasócio--literáriadotempo.

Aterceiraetapadopercursodoscongressosfoiassinaladapelaindagaçãoacercadopetrarquismoaquémdosespaçosdalírica,nosoutrosgénerosliterários.UmaexploraçãopelosTerritori del petrarchismo5,dacomédiaàtragédia,daépicaàfábulapastoril, etc.Reflexosdeummomentocrucialdahistóriadapoesiadeamoreuropeiaencontram-se,empar-ticular,napastoralquinhentista6.Aoembutirnumafabulaa

4 Rime diverse di molti eccellentissimi autori (Giolito 1545), acuradiFrancoTomasiePaolozaja,Torino,RES,2001;“I più vaghi e i più soavi fiori”. Studi sulle antologie di lirica del Cinquecento,acuradiMonicaBiancoedElenaStrada,Alessandria,dell’Orso,2001;M.L.CerrónPuga,Materiales para la construcción del canon petrarquista: las antologías de “Rime” (libri I-IX),“Criticadeltesto”,2,1999, 1 (n. monogr. L’Antologia poetica), pp. 249-290; Amedeo Quondam,Il naso di Laura. Lingua e poesia lirica nella tradizione del Classicismo,Ferrara-Mo-dena,ISR-Panini,1991,etc.

5 I territori del petrarchismo. Frontiere e sconfinamenti,acuradiCristinaMon-tagnani,Roma,Bulzoni,2005.

6 Remetoparaomeu,Giù verso l’alto. Luoghi e dintorni tassiani,Manziana,Vecchiarelli,2004.

‘cena’lírica,queapartirdePetrarcaédolorosa,trágica,desas-trosa,apastoralinverte-lheosentido,alterandooseudes-fecho,oqual,detriste,sefazalegre(excepçãofeitaaGiraldiCinzio),aomesmotempoquelevaacaboumacríticacor-rosivaaomodelodoamorinfeliz.Essa‘cenaprimária’dapoesiadeamor,quesedesenrolanosconfinsdoteatropsí-quicodopoeta,quandosefazcenateatralnaArcádiacon-firmaocaráctertrágicodafaltadecorrespondênciaamorosa,condenandoaqueladispersãoautodestrutivaqueparadoxal-mente se auto-exalta através da dor. Verdadeiro amor éaquelequerevertesobreumaalteridadequeretribui,nãooqueficaconfinadoàvoluptas dolendi infinitaecirculardosujeito.Emsuma,afábulapastorilrespondeaopetrarquismoreforçandooseucarácterinsubstituívelnoplanolinguístico,masdestruindo,comohappy ending,odesesperoqueonutredemortificaçãoerevivificação,ocircuitodenevrose de cortedondequersair.Eiscomoessafundamental‘descoberta’dotragicómicoassinala,apartirdeGuarini,umoutropassoemdirecçãoàmodernidadeatravésdaintersecçãodegéneroseestilos,ouseja,aumnívelmaisprofundo,atravésdeumaaproximaçãoàsubstancialambiguidadedoreal,numper-cursoqueconduz,viaBarroco,porMetastasio,DaPonte,Mozart,pelaóperasemi-séria,peloromance,pelodramaburguêse,finalmente,porPirandelloepelacomplexidadedohumorismo.

UmulteriorencontrofoiodedicadoaoPetrarchismo nel Settecento e nell’Ottocento,cujasactasaindaseencontramnoprelo7.Opetrarquismoarcádicoerige-seemfenómenoderegressoaopassado,ultrapassandoopretéritomaisrecente,ouseja,oséculoXVII.Todavia,aexperiêncialíricadosé-culoXVIIInãopodedeixardesercompreendidaàluzdasnovidadesedasinvençõesdoséculoprecedente.Encontrar

7 TambémeditadoemRoma,Bulzoni,acuradiSandroGentilieLuigiTrenti.

118 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 119

oBarroconaArcádia,seguindoaspisadasdeCalcaterra,signi-ficatambémdescobrirnopetrarquismoarcádicoasformasda‘modernidade’quearticulameactualizamumprocessojásecular.AexperiênciacomplexaquevaideRolliaParini,comtodasassuasarticulaçõesinternas,continuaaterporpressupostofundadoroestetismodomoderno,abelezadorealnasuatransfiguraçãomítico-simbólica.Aassunçãodedadosda realidade (umcoche,umapaisagemurbana,umteatro,oritualdocafé,dogeladooudochocolate,aquedadocavalodeumasenhoranobre,etc.),nocosmosmíticoemetafísicodabelezasignificante,éummododeconceberapoesia,eportantoopetrarquismo,comassuascodificaçõeseassuasheresiasinternas,queaproximadosmaisvariadosmodosumPariniaumFoscoloeassimpordiante,atéCar-duccieD’Annunzio.Verdadeiranovadescontinuidade,nessesentido,éarepresentadaporumPascolimasodiscursosobreoseupetrarquismoétãosubtiledelicadoquemereciaserverdadeiramenteaprofundadoemestudoespecífico.

AsériedecongressoscoordenadaporQuondamculmi-noucomograndecongressode2004,emBolonha,Il petrar-chismo: un modello di poesia per l’Europa,cujasactasseencon-tramempreparação8.Umagrande empresa, dividida emsessõesplenáriaseparalelas,emcujoâmbitoamultiplicaçãodehorizontesdepesquisa foi,programaticamente,riquís-sima.Algumaslinhasdeinvestigaçãomantiveram-seinaba-láveis.Umadelaséaperspectivaeuropeia,frutodaqualsósepodelerahistóriadopetrarquismoanalisandoasuacom-plexidadeeassuascapacidadesdeinclusão,comtransplan-tesemterrasfrancesas,ibéricas,inglesas,etc.Aimagemfal-samentehomogéneadonossopetrarquismodoséculoXVIficarámelhorilustrada,nasuaefectivapluralidade,comoconhecimento,alémdomais,dadiversidadedasuarecepção

8 AcuradiAmedeoQuondam,GianMarioAnselmi,FlorianaCalitti,Lo-redanaChines,RobertoGigliucci,PaolaVecchiGalli,Roma,Bulzoni.

no estrangeiro, com a complexidade do classicismo, dosdiversosmaneirismos,dahibridaçãodosmodelos,dasde-clinaçõesmetafísicas,conceptistas,erótico-canoras,madri-galescas,etc.Umaoutralinhademétodoquedominouocongressofoiainterdisciplinaridadee,sobretudo,opropó-sitodeestabelecerrelaçõesdecolaboraçãoeconfrontoen-treliteratosemusicólogos.AdifusãodomadrigaledapoesiaparamúsicaentreosséculosXVIeXVII,atéaoboomedi-torialdetipologiasantológicasespecíficas,comooGareggia-mento poeticode16119,deveserperscrutadoporliteratosquenãorenunciemasinergiascommusicólogos.Opetrarquismomusicaléumdadosócio-antropológicoperfeitamentecom-plementardopuramenteliterário.

Naturalmente que, por ocasião do centenário, toda aEuropafoiteatrodesimpósiossobrePetrarcaeopetrar-quismo,desdeoseuextremoocidente,onde,emCoimbra,tevelugarumrequintadoencontrodeestudocoordenadopor Rita Marnoto10, até à oriental Varsóvia, onde PiotrSalwadirigiuumfervilhantecongressomultilingue11.Comefeito,aEuropa,aolongodasuahistória,sempreencon-trounopetrarquismoumalinguagempoéticacomum,umacepaidentitáriaapartirdaqualforamgerminandoindivi-dualidadesnacionais,cujosprodutos,aocircularem,reno-varamehibridaramtambémaprópriapoesiaitaliana.Aliás,aforçadopetrarquismonãofoitirânica,seseconfiguroucomoumsistemalinguístico-ideológicotãotoleranteque

9 Acercadoqual,AlessandroMartini,Ritratto del madrigale poetico fra Cinque e Seicento,“Lettereitaliane”,4,1981,pp.529-548.

10 Cujas actas foram publicadas: Petrarca 700 anos, coordenação de RitaMarnoto,Coimbra, InstitutodeEstudosItalianosdaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeCoimbra,2005.Nãosedeixedever,tambémdeRitaMarnoto,O petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo,UniversidadedeCoim-bra,1997.

11 La tradizione del Petrarca e l’unità della cultura europea,Varsóvia,27-30deMaiode2004,comactasnoprelo.

120 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 121

conseguiuincluirasmaisproblemáticasdiferenças.OêxitodoséculoXX,comodissemos,érepresentativodessahis-tória:nocaldeirãooficinaldoNovecento,opetrarquismomanteveumaidentidadepluralque,porquantodesfigurada,sefazaindamaislancinante.Apontodesepoderdizerqueapoesia,naEuropa,éopetrarquismo.

Tambémaactividadeeditorial,peloquedizrespeitoatextospetrarquistas,assinalounotáveisincrementosnosanosmaisrecentes.Limitando-nosaodomíniodacasa-mãedaitalianística,eisumelenco(obviamentenãoexaustivo!)dealguns títulosde relevopublicadosnosúltimosdezanos:

–Bernardo Tasso, Rime, 2 vol., a cura di DomenicoChiodoeVercingetorigeMartignone,Torino,Res,1995.

–DragonettoBonifacio,Rime,acuradiRaffaeleGirardi,Fasano,Schena,1995.

–VeronicaGambara,Le rime,acuradiAlanBullock,Fi-renze,Olschki,1995.

–Rime de gli Academici Eterei, acuradiGinettaAuzzaseManlioPastoreStocchi, introduz. diAntonioDaniele,Padova,CEDAM,1995.

–Veronica Franco, Rime, a cura di Stefano Bianchi,Milano,Mursia,1995.

–Rimatori politici ed erotici del Cinquecento genovese,acuradiStefanoVerdino,Genova,Costa&Nolan,1996.

–Versi et regole della nuova poesia toscana. In Roma per Anto-nio Blado d’Asola. 1539, acuradiMassimilianoMancini,Roma,Vecchiarelli,1996.

–Luigi Tansillo, Canzoniere edito ed inedito, a cura diErasmoPèrcopo,[1926],n.ed.,acuradiTobiaR.Toscano,Napoli,Liguori,1996(comrecursoamanuscritosautógra-fospertençadoeditor).

–BaldassarreOlimpoda Sassoferrato, Gloria, a cura diClitoBruschi,Sassoferrato,CentroCulturale“BaldassarreOlimpo”,1996(omesmoeditoreomesmocríticopubli-caram,em1993,oLinguaccio).

–AscanioPignatelli,Rime,acuradiMaurizioSlawinski,Torino,Res,1996.

–Diego Sandoval Di Castro, Rime, a cura di TobiaR.Toscano,Roma,Salerno,1997.

–RemigioNannini,Rime,acuradiDomenicoChiodo,Torino,Res,1997.

–Giacomozane, Rime,acuradiGiovannaRabitti,Pa-dova,Antenore,1997.

–VittoriaColonna,Sonetti. In morte di Francesco Ferrante d’Avalos Marchese di Pescara (Edizione del ms. XIII,G,43 della Biblioteca Nazionale di Napoli),acuradiTobiaToscano,Mi-lano,EditorialeGiorgioMondadori,1998.

–OrsattoGiustinian,Rime,acuradiRanieriMercatanti,Firenze,Olschki1998.

–MichelangeloBuonarroti,Rime,acuradiM.Residori,Milano,Mondadori,1998.

–GiuseppinaLaFaceBianconi,AntonioRossi,Le rime di Serafino Aquilano in musica,Firenze,Olschki,1999.

–BerardinoRota,Rime,acuradiLucaMilite,Parma,Guanda,2000.

–La lirica rinascimentale,acuradiRobertoGigliucci,In-troduz. di Jacqueline Risset, Roma, Poligrafico e zeccadelloStato,2000.

–Isabella diMorra,Rime, a cura diMariaAntoniettaGrignani,Roma,Salerno,2000(ampliaereelaboraoseuprecedente contributo, Per Isabella di Morra, “Rivista diletteraturaitaliana”,2,1984,3,pp.519-554).

–Laura Battiferri Ammannati, Il primo libro delle opere toscane,acuradiEnricoMariaGuidi,Urbino,AccademiaRaffaello,2000.

–Benvenuto Cellini, Rime, a cura di Vittorio Gatto,Roma,ArchivioGuidoIzzi,2001.

–Rime diverse (Giolito 1545),acuradiFrancoTomasiePaolozaja,Torino,Res,2001.

–GiovanniDellaCasa,Rime,acuradiGiulianoTanturli,Parma,Guanda(Fondaz.Bembo),2001.

122 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 123

–Poeti del Cinquecento,acuradiGuglielmoGorni,SilviaLonghi,MassimoDanzi,Milano,Napoli,Ricciardi,2001.

–SerafinoAquilano,Strambotti,acuradiAntonioRossi,Parma,Guanda,2002.

–LuigiCassola,Il canzoniere del codice Vaticano Capponiano 74,acuradiGiulianoBellorini,Piacenza,Tip.Le.Co.,2002(“Bibliotecastoricapiacentina”14).

–GiovanniDellaCasa,Rime,acuradiStefanoCarrai,Torino,Einaudi,2003.

–PietroBembo,Stanze,acuradiAlessandroGnocchi,Firenze,SocietàEditriceFiorentina,2003.

–Poetesse italiane del Cinquecento,acuradiStefanoBian-chi,Milano,Mondadori,2003.

–Il “canzoniere” inedito del Domenichi ‘mantovanizzatosi’. British Library, Add. 16557,acuradiFilippoMinetti,Pisa,ETS,2003.

–Lodovico Domenichi, Rime, a cura di Roberto Gi-gliucci,Torino,Res,2004.

–AntonFrancescoRaineri,Cento sonetti,Torino,Res,2004.

–ParideCeresara,Rime,acuradiAndreaComboni,Fi-renze,Olschki,2004.

–Lirici europei del Cinquecento. Ripensando la poesia del Pe-trarca,acuradiGianMarioAnselmi,KeirElam,GiorgioForni,DavideMonda,Milano,Rizzoli,2004.

–Fausto Sozzini, Rime, a cura di Emanuela Scribano,Roma,EdizionidiStoriaeLetteratura,2004.

–Torquato Tasso, Rime. Prima parte – Tomo I. Rime d’amore (secondo il codice Chigiano L VIII 302),acuradiFrancoGavazzenieVercingetorigeMartignone,Alessandria,Edi-zionidell’Orso,2004.

–Ludovico Martelli, Rime, a cura di Laura Amaddeo,Torino,Res,2005.

–Berardino Rota, Egloghe pescatorie, a cura di StefanoBianchi,Roma,Carocci,2005.

Note-se,emparticular,queforamtrêsasantologiasdelíricadoséculoXVIasucederem-seumasàsoutras,emquatroanos,desdeade2000,organizadaporquemescreve(La lirica rinascimentale);passandopelapublicaçãodopri-meirovolume,quecontinuaaseroúnico,daantologiadaRicciardiem2001(Poeti del Cinquecento);atéàágilcolec-tânea,masrica,daRizzoli(Lirici europei del Cinquecento),editadaporocasiãodocongressodeBolonha.Umanotá-velfibrilhação,sesepensarque,anteriormente,aúltimaoperação antológica tinha sido a deGiulioFerroni, em1978,sendonecessárioremontar,retrocedendonotempo,a1958paraadeDanielePonchiroli;a1957paraarecolhabásicadeLuigiBaldacci;ea1941paraadeCarloBo12.Ovolumedo ‘PoligraficodelloStato’dedicado àLirica rinascimentale éoúnicodostrêsorganizadosobaégidedeumúnicocrítico,queédizer,decorrentedepropósitosdeselecçãoeconstruçãohistoriográficaarquitectonicamenteestabelecidos,nãoseicomqueresultados,esperoprofícuos.Alémdisso,ocritériodeordenaçãonãoégeo-histórico,baseando-seantesemgerações.Pelocontrário,omonu-mentaltomodaRicciardi,quesaiuexactamenteumanodepois,frutodotrabalhoquehádécadaseralevadoacaboporváriosestudiosos,possuiindubitáveisqualidadesfilo-lógicas, que dele fazem um texto indispensável (peloBembodeGorniepeloBernideSilviaLonghi,masnãosó),apesardemostrar,porvezes,limitesdeactualização

12 Vd.,Lirici del Cinquecento,acuradiCarloBo,Milano,Garzanti,1941;Lirici del Cinquecento,acuradiLuigiBaldacci,Milano-Napoli,Ricciardi,1957,posteriormente,Milano,Longanesi,1975;Lirici del Cinquecento,acuradiDanielePonchiroli,Torino,UTET,1958,n.ed.acuradiGuidoDavicoBonino,1968;Poesia italiana del Cinquecento,acuradiGiulioFerroni,Milano,Garzanti,1978.(evd.tambémaAntologia della poesia italiana,dir.daCesareSegreeCarloOssola,2,Quattrocento-Settecento,Torino,Einaudi,1998,organizadacomacolaboraçãodevárioscríticos;especificamente,asecção,“Petrarchistiemanieristi”,éfrutodotrabalhodeMarcoAriani).

124 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 125

bem patentes, sem que possa aspirar a uma interpreta-çãoglobaldofenómeno-petrarquismo.Objectivoessevi-sado,noutraperspectiva,pelosorganizadoresdovolumedaRizzolide2004,emcujaspáginasospoetasescolhidosse encontramdispostos segundoumadistribuiçãoqueétantogeográfica, como formal,demodoa criar,na suaorganização, um inquestionável efeito de riqueza, mas,alémdisso,umecletismoqueporvezesdesorienta.Emtodoocaso,trata-sedeuminstrumentomuitointeligenteeactualizado.

Emconclusão,faceatãosignificativaproliferaçãodeedi-ções,antologiaseestudossobreopetrarquismo,nestesúlti-mosanos,opanoramageo-históricoehistórico-formalmo-dificou-se?Tentemosproporumasintéticapontualização:

1. Omodelobembianodoclassicismovulgarmono-imi-tativodesfrutoudepredominanteimportâncianaformaçãodalínguacomumqueéoitalianoliterário,numaépocaemque a imprensa como medium ganhava crescente relevo.

2. Omodelobembianonãotransformou,porém,alíricadoséculoXVInumanoiteemquetodososgatossãopre-tos.Opetrarquismoéplural13,compósito,porvezesfeitodecontrastes,sendo-ojánocorpusdasrimasdeBembo.

3. Entreosnumerososcomponenteseasnumerosasins-tânciasquediversificamopetrarquismoapartirdedentro,háumaqueémuitosignificativaequeestáaserobjectodenovosestudos:ahibridaçãoentreimitaçãopetrarquescaeimitaçãodosclássicos.

4. Nessalinha,háqueinserirumrenovadointeressepelaformaepigramática14,comassuasrecaídasconceptuais,oso-

13 Háalgunsanosquetenhovindoainsistirsobreoassunto.éamesmaaposiçãodeStefanoJossanolúcidoensaiocontidoem,Nel libro di Laura,acuradiLuigiCollarileeDanieleMaira,Basel,Schwabe,2004,pp.91ss.

14 GiorgioForni,Forme brevi della poesia. Tra Umanesimo e Rinascimento,Pisa,Pacini,2001.

netoeomadrigal,e,portanto,pelodeterminantepapelquedesempenhaenquantopontonodalconducenteaoconcep-tismomaneirístico-barroco.

5. AcategoriadeManeirismolírico,cujadiscussãotam-bémfoiretomadanocongressode2004emBolonha(comintervençõesdeEzioRaimondi,AmedeoQuondam,GiulioFerroni,AndreaGareffieoutros),nãoperdeupréstimo,nomínimopeloquedizrespeitoàpoesiadasegundametadedoséculoXVI.Trata-sedecompreenderofenómenonasua significaçãohistórica,enquantochavegenealógicadomoderno,perspectivando-oàluzdaforterelaçãoqueman-témcomoBarroco,noquadrodagrandecharneiraeuropeiaconstituídapelosséculosXVIeXVII.

6. Asmaisrecentespesquisasemtornodagravitas15con-sentemumadescriçãohistoriográficacadavezmaisdefinidaeanalíticadavertentelíricaquevaidapoesia‘cortesã’aomarinismo:ofenómenodeelevaçãodonívelestilísticoqueseverificaemmeadosdoséculoXVIenasegundametadedacentúria(doúltimoBemboaDellaCasaeTasso)mis-tura-secomarecuperaçãodemotivoseimagensqueeramprópriosdalíricadotempodeSerafinoAquilano,mascomumnovoníveldesublimaçãoeelatio,factonãosóformal,comoideológico,tambémporsesituarapósoaristocráticoarranjolinguísticobembiano.

7. Opetrarquismoseráigualmente,ecadavezmais,mo-tivodeobservância,enquantofenómenosócio-antropoló-gicodelinguagem-espelhodacomunidadedoscultosedoscivilizados.Aíresideaimportânciadosestudossobreope-trarquismodecorrespondência,queédizer,sobreorelevodequedesfrutacomocircuitocomunicativo,emsentidoquerencomiástico,querderelaçãointer pares.

15 Vd.,porexemplo,AndreaAfribo,Teoria e prassi della “gravitas” nel Cin-quecento,Firenze,FrancoCesati,2001.

126 Roberto Gigliucci Perspectivas e sucessos dos estudos sobre o petrarquismo 127

8. Opetrarquismofeminino,quedesdesemprefoiobjectodepesquisasespecíficas16,comportaumainteressantefoca-lizaçãonãosósobreosujeitodaescrita,comotambémsobreoobjectodedesejolírico-amoroso,quesão,pois,variantesinternasnoâmbitodosistemapetrarquístico.Quenãoseesqueça,nessaeconomia,alíricadeamorhomófilo,mas-culinaefeminina,comassuasimplicaçõesclassicísticas(mode-losovidianos,virgilianos,epigramáticos,etc.)ecomocunhotransgressivoquelheépróprio.

9. Adistribuiçãogeográficadopetrarquismocomocri-térioordenadoreclassificatórioésempreimportante,masdevesertemperadaporelementosdecompensaçãodesinalcontrário, tais como:a ‘comunhão’ linguísticadopetrar-quismo,sancionada,emtermosgerais,pelasantologiascoe-vas;anaturezanómadeou,pelomenos,asdeslocaçõesdealguns dos protagonistas (DellaCasa veneziano, romano,toscano; Bernardo Tasso modelo para meridionais, tantoquantoparaopúblicodaplaníciedoPó,etc.).

10. Daquidecorrequeopetrarquismoéfenómenoaserestudado,cadavezmais,numquadroeuropeu:asinvestiga-çõesemtornodasmodalidadesderecepçãoetransformaçãodosmodelositalianosnoestrangeiroensinam-nostambémmuitoacercadasdiversaspotencialidadesedosdiferentesânimosquefazempartedonossopetrarquismo.

Naturalmentequeestessãoapenasalgunspontosderefe-rênciaqueseencontramnaordemdodia,porentreasnovasrotasdosestudossobreopetrarquismo.Aaberturadehori-zontes,comoemparteseviu,progrediumuitonosúltimosanos.Nosventuros,mesmoquenosafastemosdoocasionalumbigodocentenário,outrashipótesesnãodeixarãodeserconfirmadaserenovadase,sobretudo,ostextos,emedições

16 Vd.,recentemente,“L’una et l’altra chiave”. Figure e movimenti del petrarchismo femminile europeo,acuradiTatianaCrivelli,GiovanniNicoli,MaraSanti,Roma,Salerno,2005.

críticas,emediçõescomentadas,continuarãoaserpublica-dos.Faltamàchamada,naverdade,muitosbig:faltamedi-çõesdeDomenicoVenier, deGiovanniGuidiccioni, deIacopoMarmitta,deLodovicoPaterno,deCelioMagno,deLuigiGroto,etc.Algunsdestesautoreseoutrosaindaestãoaseralvodepesquisasfilológicasquepassarãoaoprelodentrodetempossupostamentebreves.Otrabalhointer-pretativoemtornodacomplexidadedopetrarquismo,quedeixoudeserredutívelaumaetiquetasimplificadorausadanosmanuais,serácadavezmaisrobusto.17

17 Paraumabibliografiaentre1989e2000,vd.:GiorgioForni,Rassegna di studi sulla lirica del Cinquecento (1989-1999). Dal Bembo al Casa,“Lettereitaliane”,52,2000,pp.100-140;Rassegna di studi sulla lirica del Cinquecento (1989-2000). II. Dal Tansillo al Tasso,“Lettereitaliane”,52,2000,pp.422-461.

OSéTIMOCENTENÁRIODEPETRARCAENTREPORTUGALEAITÁLIA

Rita Marnoto

Petrarca é um marco miliárionahistóriadacultura:“Nãoé,demodoalgum,umaformaritualizada,aquefazdePe-trarcaumautênticomestredosabereuropeu,paidaqueleHumanismoquetemnocruzamentoentresaberes,humanae litteraeeempenhamentocívicodefundoético,umadassuasmaisoriginaisparticularidades”,sublinhaGianMarioAn-selmiao iniciar aconferênciaqueproferiuaoCongressoInternacional, Petrarca 700 anos. O petrarquismo português,organizadopeloInstitutoInternacionaldaCasadeMateus1.Naverdade,remontaaoseumagistériooimpulsoàrefun-daçãodeumaRoma,deumaItáliaedeummundoàluzdeumaperspectivadegrandealcance,pedrabasilardaqueleprojectoinclusivoquehojedizemoseuropeu.

NascidoemArezzo,mantém,atémeadosdoséculo,umacasaemVaucluse,naProvença.Aíseretiraparasededicaràescrita.Contudo,assuasrelaçõescomacúriadeAvinhãoecomapoderosafamíliadosColonnasãomuitopróximas.VisitaoNortedaEuropaeaEuropacentral.MasaviagemquemaisoimpressionaéaquefazaRoma,em1336.AsruínasdoImpério,queentãoseencontravamaoabandono,

1 Petrarca 700 anos,coordenaçãodeRitaMarnoto,Coimbra,InstitutodeEstudosItalianosdaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeCoimbra,2005,p.103.

Est.Ital.Port.,n.s.,1,2006:129-138

130 Rita Marnoto O sétimo centenário de Petrarca entre Portugal e a Itália 131

comovem-noprofundamente.Quatroanosdepois,láhá-deregressarparasercoroadocomlouros,comoospoetasdaAntiguidade.TinharecusadooconvitequelheforafeitopelaUniversidadedeParisparareceberessadistinção.équeaUniversidadedePariseraograndebaluartedaescolástica,essemesmométodoquePetrarcacombatia.Apartirde1352,eatéàsuamorte,em1374,deambularáporváriascidadesdoNortedaItália.Bocácio,maisnovodoqueelecercadedezanos,censura-oporaceitaraprotecçãodosVisconti,queeramconsideradostiranos.Responde-lhecomumacartaondelhedizqueaúnicaliberdadeéadoespíritoequeoseuespíritoéverdadeiramentelivre.Comoautordeculto,nãotardoutambématerosseuslugaresdeculto.Vaucluselogosetornoumetadeperegrinação.FranciscodeHolanda,quandoregressadeItália,em1540,fazumdesvionarotadosAlpesparairaVaucluse.Fixouasuaimagemnumdese-nhoaguareladoqueconstituiaprimeirarepresentaçãopaisa-gísticadolugar.

Aamigos,funcionáriosdaschancelarias,ou,até,apessoasquesómuitovagamenteconhecia,solicitavacominsistên-cianotíciasdemanuscritosdaAntiguidadequeeventual-menteseencontrassemadormecidospelasprateleirasdassuasbibliotecas.Nãosetratava,demodoalgum,defazeruma mera colagem de um passado sobre um presente.éfascinante,consideradoàluzdateoriahermenêuticacon-temporânea,osentidoquePetrarcaconfereàtemporali-dade.Lerosclássicos,lerosautoresmedievais,temsentidoemfunçãodeumaactualizaçãoqueseofereceaofuturo,atravésdoprojectohumanista.OsobjectivoscivilizacionaisdaAntigaRomasãotranspostosparaacerimóniadoCapi-tólio,ondeécoroadoporumSenador romano,mas sódepoisdetersidoexaminadopeloreiRobertodeNápo-les,queconsideravaafiguramaiscultadoseutempo.OsideaispolíticosdaurbssãotraduzidosatravésdoapoioquedáaColadiRienzo,oquelhecustaodistanciamentoda

famíliadosColonna,seusprotectores.Damesmaforma,eacadamomento,sujeitaessepassadoaumaeloquenteanálisecrítica,particularmenteseveraparacomaescolás-tica.Afórmulaquefazdeleoprimeiromodernotemumvaloremblemático.

Emlatim,escreveutratados,cartas,umguiadeviagematéàTerraSanta,comentáriosàmargemdoslivrosquelia,eatéasapostilhasàssuasduasúnicasobrasemvulgar.Fez--noscrerqueasualínguaeraadosautoresáureosdoImpé-rioromano.Escreveuduasobrasemvulgaritaliano,oCan-cioneiro e os Triunfos, às quais, mesmo assim, deu títuloslatinos,TriumphieRerum vulgarium fragmenta.OsTriumphinão foramacabados.Por suavez, trabalhouno livrodosFragmentaatéaofimdosseusdiasedeixouaindapáginasembrancointercaladasparacopiarmaispoemas.Quandolheschamanugae,deixa-nosperplexos.Sinceridadepura?Gostodeerudito,aorepetiromesmoqueCatulodiziadosseusversos?Atitudedeumhumanistadivididoentreodeverprogramáticodeusarsóolatim,easemoçõesdalínguaquecriou?Ocertoéque,paraosensocomum,PetrarcaficoucélebrecomoamantedeLaura.Asuapoesiatemtamanhaexcelênciaefoi-lheconcedidaumatalautoridadeliteráriaqueficouconsagradaporumatradiçãoqueseestendeatéaosnossosdias.

OCancioneiro,porantonomásia,foiopilarsobreoqualsefirmoua líricamoderna.Resultadeuma intersecção,extremamenterefinada,entreapoesiadaAntiguidade,dolce stil novoeherançatrovadoresca.Ocruzamentodecomponen-testãováriossóépossívelemfunçãodeumaplataformacomummuitoforte:aintimidadecomqueoamanteousadesdobrartodososacordesdeumaalmaquevivedivididaentre o anseio de alcançar a felicidade à face da Terra,amandoLauracomomulher,eaconsciênciapecaminosadequemsabequeLauraéumanjo,ecomotalsópodeseradoradaàdistância.Poressavia,Petrarcarasgaaqueledes-

132 Rita Marnoto O sétimo centenário de Petrarca entre Portugal e a Itália 133

centramentoqueécondiçãodoserquesepensa.Foiumcriadordeficções.Selhechamamoprimeiromoderno,étambémporquecriouinterrogando,descentrando,tirandopartidodaambiguidade.Colocouaosseusleitoresdúvidasqueaindahojecontinuamasuscitarvivascontrovérsias,ehão-de continuar a suscitá-las. Reinventou o seu nomequandofoialunodaUniversidadedeMontpellier.Nãotinhanomedefamília.Oseupaichamava-sePetracco,diminu-tivodePetro,e,apartirdaí,construiuonomedePetrarca,maissoante.Dedicouoseuamoraumacriaturacujaexis-tênciadeixouenvoltanumhalodeambiguidades.GiovanniColonnater-lhe-iaescritoumacartaadizerqueesseamorerafingimento.Responde-lhedeformaenfática,queixando--sedequantosofreporLaura.MasatalcartadeGiovanniColonnanuncafoiencontrada.Expedienteparacriarumefeitoderealidade?Noseumaisqueridomanuscrito,Vir-gílio,anotaamortedeLaura,napestede1348.Mascon-tinuaadedicar-lheversoscomoseestivesseviva.Aperso-nagemdeAugustinus,nodiálogoSecretum,dizqueLauraeraumamulhercasadaquetevemuitosfilhos.AdverteFran-ciscusporamaronomedeumamulher,umnomecujosomésemelhanteaodapalavraquedesignaolourocomquesãocoroadosospoetaslaureados.Nosseusversos,tudovolteiaemtornodeumcentro,o“eu”dopoeta.Océlebresenti-mentodanatureza,omaisraramentereferidosentimentodotempo,afigurafeminina,tudoissoganhaformaliteráriaemfunçãodasuasubjectividade.Lauraéocentroaparentedapoesia,oobjectodapalavra,dodesejodapalavra.Over-dadeirocentroéopoeta.Porestavia,Petrarcaconsagraolirismocomoespaçodedescentramento.Dopoeta,fazumeternoperegrinoporentreasfendasdalinguagem.Dafigurafeminina,fazcentroaparenteedescentrado.Falardealguémqueéobjectodedesejoeobjectodepalavra,peregrinandopeloeternovazioda linguagem.NolimiardoModerno,paraládoModerno,éaessênciadolirismo.

édessanesgadeinquietudequebrotamosfundamentosdeumcódigopoéticodeincidênciasecularqueserviude“auto-estrada”atodoolirismo,parausarumafelizexpres-sãodeAmedeoQuondam,atéaoadventodoRomantismo2.Naliteraturaportuguesa,aimitaçãodePetrarcaficoutra-duzidaatravésdeumfenómenoextraordinariamenterico,o petrarquismo português. A distância, no espaço e notempo,quecorriaentreapontaocidentaldaEuropa,eessecentroirradiadordemodelosdotadosdeumaenormecapa-cidadepropulsora,queeraaItália,favoreceufenómenosdehibridismoquesómuitoparcelarmenteencontraramcor-respondentenoutras literaturaseuropeias.Avitalidadedopetrarquismoportuguêsdecorre,emboaparte,dafacilidadecomqueoantigoeonovoentramemdiálogofranco,numpanoramaabertomas,aomesmotempo,caracterizadoporpermanências de substratomuito activas.Essa articulaçãoencontrouemCamões,semdúvida,oseugenialintérprete,pelomodocomosouberepresentarodissídioentreaTerraeoCéu,entreobichotãopequenoeadesmesuradosseusanseios.Masestábempatentenaactualidade,quernoplanodacriaçãoliterária,queremâmbitocrítico,esemserestrin-giràculturaerudita.Laura:foionomeescolhidoparaare-vistadearquitecturadaUniversidadedoMinho.

AvastidãodosterritóriospostosemmovimentopelafiguradeFrancescoPetrarcaepelatradiçãoquedoseumagistérioirradiaerigiu-se,pois,comascelebraçõesdosétimocentená-riodoseunascimento,emmotivoparticularmentepropíciopara a dinamização do intercâmbio cultural luso-italiano.

Recorde-se,antesdemais,queparaprepararascomemora-çõesoGovernoitalianocriouumaComissãoNacional,pre-sididaporMicheleFeo.Napágina<http://www.franciscus.unifi.it/>, encontram-se disponíveis muitas informações

2 Il naso di Laura. Lingua e poesia lirica nella tradizione del Classicismo,Ferrara,Modena,IstitutodiStudiRinascimentali,Panini,1991.

134 Rita Marnoto O sétimo centenário de Petrarca entre Portugal e a Itália 135

acercadeeventos,projectosepublicaçõesassociadosàefe-méride.Opontodasituação,comrespeitoàediçãonacionaldaobradopoetaeaoutrosprojectosdeinvestigaçãoemcurso,ficacontidononutridocatálogodaexposiçãoqueemfinaisde2003foiinauguradaemArezzo,paradepoisservistaemoutrascidadesitalianas3.Actualmente,estáemcursoarealizaçãodeumdicionáriotemáticoedeumaoutraexposi-ção,destafeitadedicadaàbibliotecadePetrarca.Subjaz-lhe,tambémnestecaso,umtrabalhodeinvestigaçãocujascon-clusõesirãosersintetizadas,damesmaforma,nocatálogodamostra.Sobaégidedessa comissão, forampublicadosalgunstextosdoPetrarcalatino4.

PeloquedizrespeitoaoPetrarcaemvulgar,temopúblico--leitoràsuadisposiçãoguiasindispensáveisparaumaabor-dagememprofundidadedosRerum vulgarium fragmentaedosTriumphi.Em1996,nacolecçãoIMeridiani,forameditadosdoisportentososcomentários,umaoCancioneiro,feitoporMarcoSantagata,outroaosTriumphi,comasrimasextrava-ganteseocodice degli abbozzi,porVinicioPaccaeLauraPao-lino5.Docomentárioàprimeiradessasobras,foifeitauma

3 Petrarca nel Tempo. Tradizione, lettori e immagini delle opere, a cura diMichele Feo,ComitatoNazionale per ilVIICentenario dellaNascita diF.Petrarca,2003.

4 ForameditadospelaComissãodoCentenáriooucomoseuapoio:F.Pe-trarca,Senile V 2,acuradiM.Berté,Firenze,LeLettere,1998;E.Rauner,Petrarca-Handschriften in Tscechien und in der slowakischen Republik,Padova,Ante-nore,1999;FedericaSantirosi,Le postille del Petrarca ad Ambrogio (codice parigino Lat. 1757),Firenze,LeLettere,2004;LauraRefe,Le postille del Petrarca a Giu-seppe Flavio (codice parigino Lat. 5054), Firenze, Le Lettere, 2004; FrancescoPetrarca,Contra eum qui maledixit Italie,acuradiMonicaBerté,Firenze,LeLettere,2005;FrancescoPetrarca,Invective contra medicum. Invectiva contra quen-dam magni status hominem sed nullius scientie aut virtutis,acuradiFrancescoBausi,Firenze,LeLettere,2005.

5 FrancescoPetrarca,Trionfi, rime estravaganti, codice degli abbozzi,acuradiVinicio Pacca e Laura Paolino, introduzione di Marco Santagata, Milano,Mondadori,1996,comsucessivasreimpressões.

novaediçãoactualizadaem20046.Entretanto,aumpano-rama jápor si tãorico,veio-seaacrescentar,mais recen-temente, omonumental comentário aoCancioneiro queRosanna Bettarini há longos anos tinha em preparação7.

Noquadrodointercâmbioluso-italiano,econtinuandoafixaranossaatençãosobreoquesetemvindoafazeremItália,nãoescassearamfocosdedinamização.ApresençadePetrarcaemPortugalfoiobjectodeensaiosespecializados,deintervençõesemcongressos8edeapresentaçõespanorâ-micas.Osestudiososdopetrarquismoforampresenteadoscom anotícia da posse, por parte daFundaçãoCalousteGulbenkian,deumimportantemanuscritocomoCancio-neiroeosTriumphi,decoradocomdelicadasiluminuras,quefoiexecutadopelabottegaflorentinadeFrancescod’AntoniodelChierico.AdquiridopelopróprioGulbenkian,sofreudepoisdanosqueimplicaramumaturadoedelicadotraba-lhoderestauro,peloquepermaneceuinacessívelduranteumcertoperíodode tempo.Oseuestudoespecífico foilevadoacaboporAiresA.Nascimento,numensaioque

6 Francesco Petrarca, Canzoniere, edizione commentata a cura di MarcoSantagata, nuova edizione aggiornata, Milano, Mondadori, 2004. A mesmaeditoraprojectalançá-lo,brevemente,numamodalidadeeconómicadegrandetiragem.Foitambémeditado,nopresenteanode2006,emtraduçãopolaca.

7 Canzoniere. Rerum vulgarium fragmenta,acuradiRosannaBettarini,Torino,Einaudi,2005,2v.

8 A saber, “Petrarca inPortogallo. ‘Ad eorum littus irem’ ”, conferênciaapresentadaaoConvegno Internazionale di Studi Petrarca nel Mondo,realizadoemIncisainVald’ArnoemJulhode2004;e“Laurabianca,Bárboranera.LeletturediCamõescomericonversionealcanone”,conferênciaapresentadaaocongressorealizadonaUniversidadedeBolonha,Il Petrarchismo: un Modello di Poesia per l’Europa. Convegno Internazionale di Studi,emOutubrodomesmoano.Asactasdessescongressosencontram-seempreparação.Recorde-setambém“RiscoprirePetrarca.Petrarca,Camões,ManuelAlegre,AlexandreO’Neill”,conferênciarealizadanoDepartamentodeLínguaseCulturasNeolatinasdaUniversidadedeFlorença.ProferidasporRitaMarnoto.

136 Rita Marnoto O sétimo centenário de Petrarca entre Portugal e a Itália 137

publicouemItália,narevistaCultura Neolatina9.Essaspági-naserigem-seemoportunidade,alémdomais,paraarevi-sãodequestõesqueseprendemcomapresençademanus-critosdePetrarcanasbibliotecasportuguesas.Porsuavez,numartigoeditadonarevistaCritica del Testo,RitaMarnotodesenhaopercursodopetrarquismoportuguêsquinhentista,acompanhandoomodocomoéelaboradaatranslaçãore-criativadosonetodeaberturadoCancioneiro10.Noquadrodas visões de conjuntodo fenómenodopetrarquismo, aespecificidadeda situaçãoportuguesa é contempladapelaantologiaLirici europei del Cinquecento. Ripensando la poesia del Petrarca,organizadaporGianMarioAnselmi,KeirElam,GiorgioFornieDavideMonda,bemcomopelosnúmerostemáticoscomqueasrevistasIn Forma di ParoleeL’Erasmorecordaramaefeméride.NaantologiadeAnselmi,anotade apresentação do petrarquismoportuguês, assinada porRobertoMulinacci,éacompanhadaporumaantologiapoé-tica bilingue11. Também a introdução crítica de ValeriaToccopublicadaemIn Forma di Paroletemporsequênciaumflorilégiobilingue12.Por suavez, emL’Erasmo,RitaMarnotofazumainterpretaçãodopetrarquismoportuguês,focandoassuasrelocaçõesaLesteeaOeste13.

Se,deItália,passarmosparaPortugaleparaasactividadespromovidasnomesmoâmbito,destacam-sedoiscongressos,

9 “ManuscritoquatrocentistadePetrarcanaColecçãoCalousteGulbenkian,emLisboa:CanzoniereeTriumphi”:Cultura Neolatina,64,3-4,2004,pp.325-410.

10 “Spero trovar pietà, nonché perdono.TraduçãoeimitaçãonolirismoportuguêsdoséculoXVI”:Critica del Testo,6,2,2003,pp.837-851.

11 “Un’immagine del petrarchismo portoghese”, de Roberto Mulinacci,pp.1073-1129dacitadaantologia,Milano,Rizzoli,2004.

12 “PetrarcainPortogallo”,acuradiValeriaTocco:In Forma di Parole,2,1[Petrarca in Europa],4ªs.,24,4,1,2004,pp.110-196.

13 RitaMarnoto,“Dove Petrarca scrisi. Loco beato.Petrarchismotransculturale:il Portogallo del Cinquecento nelle rotte oceaniche”: L’Erasmo, 22, 2004,pp.54-60.

oSegundo Encontro de Italianística. Petrarca 700 Anos. Instituto de Estudos Italianos 75 anos,organizadoa4e5deMaiode2004pelo InstitutodeEstudos ItalianosdaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeCoimbra,eoCongressoInter-nacional,Petrarca 700 anos. O Petrarquismo Português,orga-nizadopeloInstitutoInternacionaldaCasadeMateusde11a13deJunhoemMateus,ecujasconclusõesforamapre-sentadasàUniversidadedeCoimbraa14deJunho.Asactasdosdois simpósios forampublicadas conjuntamentenumvolumequesereparteporquatrosecções14:Petrarca na actua-lidade(LucianaStegagnoPicchio,JoãoR.Figueiredo,XoséManuelDasilva,VascoGraçaMoura,FernandoJ.B.Mar-tinhoeGiulioFerroni);A afirmação do cânone na Itália do “Cinquecento” (Gian Mario Anselmi, Roberto Gigliucci,ManuelCadafazdeMatoseAmedeoQuondam);Percursos do petrarquismo na Península Ibérica (Rita Marnoto, MariaManuelaToscano,SylvieDeswarte-Rosa,SoledadPérez--AbadínBarro,MariaManuelBaptista,HélioJ.AlveseGiu-liaPoggi); eO tempo de Petrarca (LeonelRibeirodosSantoseGionaTuccini).Porsuavez,naFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa,ErnestoRodrigueseIsabelAlmeidaintegraramnocicloDo Renascimento ao Barrocoaconferência“Petrarca,entrePortugal,aItáliaeasrotasoceânicas”,pro-feridaporRitaMarnotoa22deMarçode2004.

Quantoàactividadeeditoriallevadaacaboporrevistaspor-tuguesasespecializadas,dedicaramnúmerosmonográficosaPetrarcaeaopetrarquismoaRevista Portuguesa de História do Livro,com umconjuntodeestudos,repartidopordoisnúme-ros,quehomenageiaEugenioGarin15,eEuphrosyne. Revista de Filologia Clássica16.NaprimeiracolaboramJoséV.dePina

14 Petrarca 700 anos,coordenaçãodeRitaMarnoto,Coimbra,InstitutodeEstudosItalianosdaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeCoimbra,2005.

15 Ano8,n.15e16de2004.16 N.s.,33,2005.

138 Rita Marnoto

Martins,RitaMarnoto,JeanLacroix,EnricTormoBallester,ManuelCadafazdeMatos,VandaAnastácio,FrancescoSoave,LuísAndréNepomucenoeMariaValentinaMendes.Ase-gundapublicaumasériedeestudosqueprivilegiaavertentelatina,deAlainMichel,FrancescoTateo,SilviaRizzo,RodneyLokaj,AlejandroCoroleu,FabioStok,GuillermoSerés,Ma-riaElisaLageCotos,IdaMastrorosa,CarloSantini,JandenBoefteAnaMaríaSánchezTarrío.Nasecçãoderecensões,éincluídaumanota,redigidaporAiresA.Nascimento,sobreasediçõesdaobradeFrancescoPetrarcaquetêmvindoaserdadasaopreloemFrança17.TambémemPortugalseespe-ramavançosnosentidodadisponibilizaçãodasuaobralatinaem tradução portuguesa. O texto das epístolas FamiliaresestáasertraduzidoparaImprensaNacional-CasadaMoeda.

PeloquedizrespeitoaoPetrarcaemvulgar,ocentenáriodonascimentocoincidiucomaediçãodaprimeiratraduçãocompleta18,publicadaemPortugal,doCancioneiroedosTriumphi,elaboradaporVascoGraçaMoura.Emambososvolumes,originalitalianoeversãoportuguesasãocolocadosfaceaface,precedidosporumaintroduçãoeacompanhadosporalgumasnotasexplicativas.OCancioneirofoigalardoadocomoprémiointernacionalDiegoValeri2004,noâmbitodoprémioMonseliceparaatradução.Aatribuiçãoàmesmaobra,pelaUniversidadedeCoimbra,nopresenteanode2006,doprémiodetraduçãoparapoesiaPauloQuintela,mostracomooscaminhosquepassamporPetrarcaepeladifusão e recriaçãodo seumagistério, entrePortugal e aItália,corremporviasconvergentes.

17 Pp.484-486.18 Acercada identidadedoprimeirotradutordoCancioneiroparacaste-

lhano,ojudeudeorigemportuguesaSalomãoUsque,escreveuAntónioAndrade,“AfiguradeSalomãoUsque:afaceocultadohumanismojudaico-português”:Gramática e Humanismo. Actas do Colóquio de homenagem a Amadeu Torres,MiguelGonçalvesetalii(org.),Braga,FaculdadedeFilosofia,UniversidadeCatólicaPortuguesa,2005,vol.2,pp.15-25.