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ENTREATO
Para interpretação mímica dos dois personagens
por um único Ator
em cenário nu de qualquer elemento.
Ao mesmo tempo, um capítulo inédito do
Dom Quixote de la Mancha
que Cervantes não escreveu, pois, no fim do capítulo XXVIII, da parte II,
fez Dom Quixote e Sancho Pança adormecerem à noite
e, na frase seguinte, os despertou já na manhã seguinte
e os pos novamente em marcha
- sem revelar o que eles teriam sonhado.
O SONHO que eles tiveram é o ENTREATO
entre o PRÓLOGO e o EPÍLOGO da peça.
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PRÓLOGO
Gradualmente a cena se ilumina sobre a IMAGEM de Gustav Doré,
ao fundo, em grandes dimensões. VOZ, fora de cena, lê o texto
abaixo, primeiro a parte em espanhol, e, em seguida, a parte em
português. Ao fim da leitura, silêncio. Gradualmente e cena
novamente escurece.
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VOZ
y Don Quijote se acomodó al pie de un olmo y Sancho al de una haya, que
estos tales árboles y otros sus semejantes siempre tienen pies, y no manos. Sancho
pasó la noche penosamente, porque el varapalo se hacía más sentir con el sereno.
Don Quijote la pasó en sus continuas memorias, pero, con todo eso, dieron los ojos
al sueño
e eis que os Sonhos Mútuos vindo
se sonhando Pai e Filho,
houvessem eles, em Transe, despertado em Andara:
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ATO ÚNICO
Gradualmente a cena se ilumina sobre o ator.
ATOR
SONS INCIDENTAIS CONFORME SUA FALA.
me permites que fique aqui um pouquinho, ele disse, até que pare a chuva?
Mas que chuva, eu lhe disse, se não está chovendo, tu não estás ouvindo as pesadas
batidas das gotas caindo em toda a Terra, ele me perguntou, e eu parei um instante
de recordar as minhas pedras que havia esquecido em casa, se aquilo era uma casa, o
Fosso ou Nesga de vida onde eu morava, para prestar atenção nas tais gotas. Não
ouço nada, eu lhe disse. Nada? Ele me perguntou e, então, começou a tirar as roupas
com alívio, pois estava sentindo muito calor, me disse e me mostrou seu
corpo suado e
Vamos até o lago, me convidou, mas que lago, eu lhe perguntei, não vejo lago
algum, mas podes imaginar um lago, ele me disse, e então eu lhe disse que estava
sentindo falta das minhas pedras que havia esquecido naquele Destroço onde eu
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morava e que preferia voltar para buscar as pedras que nunca saía sem elas, do que ir
ao tal lago. Mas na margem do lago há muitas pedras, ele estava me dizendo, e não
vais te arrepender, de todos os tamanhos, cores, consistência, resistência, pesos,
formas. Há muitas redondas? Eu lhe perguntei. Redondas? Por que, ele me
perguntou, porque prefiro as redondas, eu lhe disse. Sim, sim, muitas redondas ele
me disse, e eu lhe perguntei essas redondas são grandes ou pequenas, e ele me disse
São do tamanho da tua cabeça e da minha. Isso não me garante nada, eu lhe disse,
porque tua cabeça é muito maior que a minha e certamente tu vais preferir as
maiores porque combinam mais contigo, eu, ele me disse espantado, eu? Não, estás
bem enganado a meu respeito, não me conheces. Ou me conheces de algum lugar, e
se me conheces de algum lugar exijo que tu me digas imediatamente, não tenho
muito tempo mais a perder. Cravou as unhas no meu rosto e isso fez com que
viessem à tona através da minha pele várias gotas de sangue, o que estás fazendo, eu
lhe perguntei, bastante zangado, não te bastam as gotas de chuva quando não há
chuva alguma caindo em toda parte e ainda me vens fazer gotejar o meu sangue, ora,
ele me disse, o lago é logo ali adiante, vamos logo e lá acabaremos com esta
diferença que se interpôs entre nós, como tu sabes, todo lago é feito de um número
infinito de gotas de água e lá nos poremos de acordo: eu encontro as gotas da chuva
que tanto procuro e tu poderás lavar o teu rosto e secar o teu sangue, mas, antes, eu
lhe disse, vou te fazer o mesmo que fizeste comigo, e lhe cravei também as minhas
unhas em seu rosto, pensei que fosse resistir firme como eu, que fosse um adulto,
mas começou logo a chorar e só então eu percebi que era apenas uma criança, não
me faças mal não me faças mal, eu lhe implorei, já agora também com os meus
olhos cheios de água: as Lágrimas, elas logo vêm jorrando em abundância ao menor
apelo que se faz a Elas, de onde tiraste o direito de me fazer chorar assim, eu lhe
disse, não te conheço de parte alguma, ainda agora estava aqui sozinho pensando nas
minhas pedras que ficaram lá em casa e tu me apareceste com essa tua conversa de
chuva, que chuva, que chuva, anda diz logo, eu lhe gritei. Mas como, ele me disse,
como não me reconheces se és o meu pai
ele me disse isso e foi logo correndo para mim com os braços abertos para me
abraçar, dizendo Papai, papai, finalmente te reencontrei desde que me perdi de ti por
haver nascido
pois como eu não o havia reconhecido logo? Era ele, sim, era o meu filho que
estava ali prestes a me abraçar,
mas não se pode confiar assim imediatamente em um estranho sem antes o
submeter às Provas, e então eu lhe disse, Pára onde estás.
Como posso ter certeza se és mesmo o meu filho ou não, ou se apenas te
pareces tão horrendamente com ele que o meu Medo já ia me fazendo te aceitar
como o meu filho perdido, sem te submeter a nenhuma prova? Isso, não. Tens que te
submeter às provas. Fui lhe dizendo isso enquanto ele se projetava todo para mim
com os braços abertos para me abraçar, mas sem deixar de manter as minhas unhas
enfiadas no seu rosto, no que estávamos na mesma situação, porque ele também não
retirara as suas unhas fincadas do meu rosto
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e assim ficamos um instante assim: ele com seu abraço suspenso no ar e eu
com a minha mão livre erguida diante de mim, para evitar a sua aproximação e o
desafogar de todo o seu desamparo de toda uma vida procurando pelo pai que havia
lhe dado origem, aquele abraço que mesmo que ele fizesse menção de me dar
somente com o seu braço livre me parecia que fosse me afundar sem remédio nas
minhas lágrimas que a essa altura já eram muito copiosas. Como vamos fazes agora?
Ele estava me perguntando. Não podemos ficar assim como estamos: tu com as tuas
unhas cravadas no meu rosto, eu com as minhas cravadas no teu, e o pior é que
estamos ambos chorando, eu lhe disse, e em vez de gotas da chuva que foram o
motivo de eu ter me aproximado de ti e parado um momento ao teu lado só recebo
de ti essas gotas de lágrimas, mas tu também estás chorando, eu lhe disse, e até
quando vais resistir a essa perda de sangue pois teu sangue goteja abundantemente
do teu rosto, é que não vês o teu próprio rosto, me disse ele, porque estás sangrando
tanto quanto eu, ora
eu disse, só vejo para nós dois uma saída: vamos juntos ao lago e lá
lavaremos os nossos rostos e depois nos despediremos um do outro como estranhos
que jamais tivessem se encontrado, concordas? Sim, ele disse, para mim está bem o
que propões, mas não volto atrás em nada de tudo que fiz até agora: mantenho
minhas garras no teu rosto e choro por ter te achado como se deve chorar ao se
recuperar um pai perdido, e eu, eu lhe perguntei, pensas que também não estou
quase começando a chorar pelas minhas pedras que esqueci lá em casa? E se nunca
mais achar o caminho da minha casa, e se quando eu voltar a ela, se um dia
conseguir voltar, já um Outro terá entrado furtivamente e levado com ele as minhas
pedras. Uma coisa eu te asseguro, eu lhe disse, te procurarei pela vida afora e te
darei uma surra brutalmente se por tua causa eu perder as minhas pedras, mas tu não
precisas me ameaçar com essa tal surra, ele me disse, pois sendo eu teu filho, não
devo reconhecer os direitos de um pai sobre um filho, sendo talvez o principal o
direito de me surrares até a morte, olha bem o que tu dizes, eu lhe disse, não é justo
que sendo tu um estranho que se chega a mim me pedindo que lhe revele a chuva
que perdeu por aí em suas peregrinações pela vida, por acaso és cego? não é justo,
como eu estava te dizendo, que ainda venhas me ameaçar de morte. Só podes ser
mesmo o meu Pai, ele me disse, porque consegues ler tão facilmente os meus
pensamentos, não há segredos em mim para ti, pois percebeste tão bem que quando
eu estava mencionando uma Morte de fato não me referia à minha, mas à tua: espero
que quando fores me surrar, me surres tanto que isso te custe a tua própria morte
pelo esforço gasto, não a minha. Maldito sejas, eu lhe disse, sem retirar as unhas do
seu rosto, no que continuávamos igualados, pois ele mantinha suas unhas em meu
rosto. E ficamos imóveis nos encarando: seu abraço continuava suspenso no ar e o
meu braço livre continuava erguido a minha frente para manter seu corpo afastado
do meu. Olha, eu disse, já quase nem posso mais ver o teu rosto, tal a quantidade de
gotas de lágrimas que saem dos meus olhos e esse véu de gotas de sangue que foi se
formando da mistura com as minhas lágrimas, se tudo isso não cessar rapidamente,
em breve irá te ocultar inteiramente de mim.
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Não, isso não, ele me disse, não quero justamente agora que te reencontrei
perder o meu pai novamente, já não sou tão jovem quanto pareço, e meus dias estão
quase se esgotando. Eu olhei bem firmemente para o rosto dele e por entre as gotas
de lágrimas e de sangue, as minhas lágrimas por ter me comovido tanto pelo fato do
meu filho perdido ter me reencontrado antes da nossa morte e as minhas gotas de
sangue por esse filho ter reaparecido assim tão subitamente me enfiando suas unhas
no rosto, mas nada puder comprovar sobre a sua idade, porque também as suas gotas
de lágrimas e do sangue que saia das feridas abertas pelas minhas unhas me
ocultavam inteiramente o seu rosto. Por que te ocultas assim de mim, eu lhe disse,
não sabes que eu sou o teu Pai e que entre pais e filhos não existem segredos? É bem
possível que assim seja, ele me disse, mas que garantias me dais de que és realmente
o meu Pai e não um estranho qualquer desses que de repente nos aparecem pela vida
se dizendo nossos pais, sem apresentar prova alguma disso?
Mas eu tenho as provas, eu lhe disse. Tu é que não tens provas alguma para
apresentar.
Enquanto assim discutíamos, íamos distraidamente nos movendo e quando
vimos já estávamos na margem do Lago. Comparemos, ele me propôs, comparemos,
se não tens confiança em mim, os nossos rostos nas águas do Lago. Sim, eu lhe
disse, com isso comprovarei que: ou ambos estamos errados, e não há a menor
semelhança entre nós, ou ambos estamos certos, e a semelhança dos nossos rostos
vai nos deixar lívidos de espanto, ou, embora tu te pareças comigo, eu não me
pareço em nada contigo, ou ainda que, embora eu me pareça contigo tu não
parecerás em nada comigo, e com isso ficará esclarecida essa ilusão e essa miserável
história para fazer crianças adormecerem, de que somos pai e filho, e poderíamos
seguir os nossos caminhos separadamente como sempre andamos pela vida, Papai,
ele me disse, como podes ser tão cruel assim comigo, fazendo com que o nosso
reencontro tantos anos esperado por mim possa ser desmentido pelo mero reflexo
dos nossos rostos num lago? Além do mais, eu lhe disse, se quiseres te aperceber
disso, vais ver que agora mesmo começou a soprar um vento dos mais violentos, e
as águas do Lago estão tão crispadas e agitadas que, misturando as imagens dos
nossos rostos,
não nos permitirão ver nada. E ficaremos órfãos, os dois, de uma Imensa
Dúvida.
Mesmo assim, ele me disse, eu insisto que ambos nos submetamos à Prova,
embora reconheça que nessas águas revoltas, e ainda por cima tendo, ambos,
os nossos rostos cobertos de gotas de sangue e lágrimas, as nossas chances de ver
claramente quais são as nossas relações estejam reduzidas à quase nada. Oh, eu lhe
disse, então queres tanto achar o teu Pai assim, que chegas ao ponto de desafiar a
própria Natureza, e expandir os seus limites impostos aos homens, só faltava agora
que me mandasses fazer parar o Vento.
Pois é exatamente o que te peço, ele me disse, porque se és o meu Pai tão
procurado, não podes me negar assim logo o meu primeiro pedido, e se não o fazes,
ficarei achando que não o fazes menos porque não queres, do que porque não podes
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atender ao meu primeiro pedido, que prova eu poderia obter mais definitiva que esta
de que me enganei achando que havia achado o meu Pai? Ah, ah, eu lhe disse, com
um sorriso de anjo decaído, um tanto sarcástico, então me negas, eu lhe gritei no
rosto, enquanto uma lufada mais violenta do Vento ia me atirando no Lago, onde eu
então submergiria para sempre e me livraria desse Filho que assim me nascera
repentinamente do Nada de quem todos somos filhos, perdidos, Vou fazer as minhas
últimas orações, eu lhe disse, e já estava prontamente preparado para imergir quando
ele me puxou de volta para a margem usando as unhas que não retirava do meu
rosto, aquelas garras, que força tu tens, meu Filho, eu lhe disse, e a minha admiração
por seu vigor crescia velozmente, pois logo notei que embora fosse ainda uma
criança, já tinhas músculos poderosos, que saltavam aos olhos de sob a pele que
cobria o seu corpo, és um filho bem forte, eu lhe disse. Nesse instante,
se alguém fosse passando por ali e nos visse assim: eu com a minha
expressão de admiração e orgulho, e ele exibindo toda a sua musculatura em favor
do seu Pai finalmente reencontrado,
quem passasse não poderia deixar de derramar também algumas lágrimas,
comovidas. Agora, ele me dizia, estou percebendo que vai começando a cair sobre
nós a noite, e isso me deixa bastante preocupado, porque deveria voltar para casa
antes do anoitecer: meu pai está lá me esperando, e se demoro além do que nós
combinamos antes que eu saísse, em busca do meu Pai, é quase certo de que ele irá
se vestir às pressas e sair atrás de mim, me procurando por toda parte. Sim, eu lhe
disse, vejo que és um bom filho, e por isso te quero para mim, embora não te
reconheça como filho, talvez porque manténs as tuas unhas no meu rosto e as
minhas lágrimas e as minhas gotas de sangue me impeçam de te ver nitidamente.
Ora, ele disse, se pensas que com esse argumento vais me fazer retirar as
minhas unhas do teu rosto, estás bem enganado. Além do mais, foste tu mesmo o
culpado: se tivesses me dado a devida atenção assim que te apareci e te dispusesses
a ouvir as batidas das gotas de chuva caindo por toda a Terra, como eu havia te
pedido que ouvisses, nada disso nos teria acontecido e a estas horas eu já estaria de
volta à minha casa e nos braços do meu pai: imagino seu desespero, por não me ver
de volta ainda, isso já está passando de todos os limites, tão velozmente quanto esta
Noite cai sobre este Lago. E quero te avisar, para que depois não te mostres
surpreendido, que tudo o que aconteceu entre nós será contado minuciosamente ao
meu pai que agora pobre homem corre nas Trevas procurando por mim, enquanto tu
te manténs insistentemente iluminado pelo luar desta Lua que agora vem se refletir
nas águas do Lago
como se quisesses me forçar a ver o teu rosto ao luar como não conseguiste
que eu o visse claramente à luz do sol, mas eu te asseguro que, mesmo à luz da Lua,
não te pareces em nada com o meu Pai. Ele ia dizendo isso
e já eu o estava puxando para nos ocultarmos atrás do tronco de uma Árvore,
pois ouvira passos precipitados, uma respiração arfante, um tropel de animal
correndo atravessando a Noite e de nós se aproximando - Pai, ele quis gritar,
chamando
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mas lhe tapei a boca enquanto o Homem desesperado passava e sumia
novamente na Noite da qual havia surgido, e, lhe disse suavemente, para que não se
assustasse com a minha Voz: por que me chamas, já me tens aqui contigo
- Pai, ele me disse, então tu és o meu Pai?
- Certamente, eu lhe disse.
O tropel foi se afastando e desaparecendo longe. Aqueles cascos
- Onde está tua irmã, minha filha? Eu lhe perguntei.
- Como posso saber, ele disse, irrompendo em prantos. Todos me asseguram
que sou filho único. Soluçou.
Mas logo já estava me espancando com um galho arrancado da Árvore, e me
gritava, Me contaram tudo, não podes mais fugir à tua culpa, não negues, pois sabes
bem que tu a mataste. Eu, eu lhe disse com espanto, eu? Como poderia, se nunca
tive uma filha, se nunca tive filho algum. Não terá sido aquele que acaba de passar
por nós, aquele animal desesperado, buscando nesta Noite por um filho que perdeu
para sempre? Ele não passou correndo ao luar inutilmente?
Deixa então que eu o chame, para comparar o meu rosto ao dele, ele me disse,
se não és o meu Pai, não tens nada a temer,
Sim, pode ser, eu lhe disse, chama por ele. Mas não será a sua Dor: a desse
que acaba de passar por nós, meu filho, meu Filho tão querido, enfim reencontrado,
pois quanto te procurei, minha criança, toda a minha vida e já estava perdendo a
esperança de te encontrar quando me apareceste assim de repente procurando abrigo
da chuva,
não será a Dor dele, te asseguro, prova suficiente de que é o teu Pai,
e para perceber a diferença entre nós bastará que compares a dele com a
minha própria dor, e vejas como ela é Imensa,
já que não tiras as tuas garras do meu rosto e parece que nunca mais irás tirar,
vê ao menos isso, que a minha é uma dor muito maior que a dele, eu te asseguro, e
como Pai que sou te advirto:
- Cuidado,
pois esse estranho poderá muito bem voltar, com seu tropel desesperado,
e do fundo do seu Desespero tentar te iludir, fingindo que está sentindo
profundamente a tua falta, e que sofre imensamente por não teres ainda voltado à tua
casa, pois, sem dúvida, ele poderá voltar, se for chamado, com a intenção de enganar
a nós dois
Mal acabava de dizer estas palavras, aconchegando a ele no meu peito
E já estava aquele Outro voltando, assustado, passando por nós sem nos ver
tanto lhe cegava o seu desespero de Animal buscando através da Noite não se saberá
o que
sim, agora eu lembro: um filho perdido,
temendo que algum outro se fizesse passar por seu pai
e o roubasse dele, seu legítimo pai, assim correndo na noite com os olhos
cheios de lágrimas, já sentindo e imaginando como seria grande e dolorosa a sua
perda,e então
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- Pai, ele gritou de novo
o Outro parou na margem do Lago
espreitou os Ares, na ausência ruidosa do seu Tropel, havia se instalado ao
redor de nós um Silêncio sem nem brisas que agitassem as águas do Lago, sem o
menor murmúrio da Noite
a Lua quieta sobre nós, e seu reflexo de outra Lua nas águas.
- Vê, eu lhe disse, assim como a lua pode se enganar achando que há outra
Lua na superfície do Lago, sem saber que é ela mesma que está aí refletida
como haverás de te iludir com esse Outro, aí, diante de nós, arfando,
ao ponto de achares que ele, e não eu, sou o teu Pai?
Sim, ele me disse, há tantos Encantamentos se lançando através da vida, os
outros nada sabem sobre nós, os outros, e nós nada sabemos sobre nós mesmos,
então, eu lhe disse, deixemos que esse Animal também vá embora, também passe,
como o outro que antes passou por nós nas agonias do seu desespero, se perdendo
nesta noite,
pois, afinal, que garantia poderemos ter de que ele é o mesmo, que é o teu
Pai, o que passou por nós antes, e que agora está de volta? São tão semelhantes esses
Animais Desesperados, tornados assim tão iguais pela Dor que sentem, que
facilmente nos enganam com falsas aparências. E, além do mais, se o teu Pai já
passou por nós sem nos ver, por que tu deverias procurar por ele,
se já me tens aqui contigo, ó meu Filho?
Sim, o que posso querer mais da vida, ele me disse.
Nesta Noite assim, tão escura que já vai devorando a Lua em suas dobras de
Trevas, já não tenho a ti, meu Pai, e já não estamos tão unidos quanto sempre
estivemos, eu com as minhas unhas cravadas no teu rosto, tu, com as tuas unhas
cravadas no meu, e já não tenho o consolo pela minha grande espera de um dia te
encontrar ao te ter aqui comigo, com os olhos cheios de Lágrimas, como os meus
estão cheios de Lágrimas por finalmente termos nos achado, e se não encontrei a
Chuva que buscava, se não ouviste como te pedi as batidas das suas gotas caindo
sobre toda esta Terra onde é tão comum isso de filhos que buscam por pais e pais
que buscam por filhos, ambos com tão reduzidas chances de se encontrarem,
enquanto aqui, agora, posso ouvir, como uma compensação, e tão
nitidamente,
as gotas de sangue que brotam de sob as nossas unhas cravadas em nossos
rostos, caindo, pesadas, no chão, na margem deste Lago onde talvez tenham caído
todas as chuvas, todas as suas gotas aqui se reunindo, e aqui é que ela, a Chuva, me
esperava, ó Pai?
Deixemos todas as nossas inquietações para amanhã, meu Filho, eu lhe disse.
Agora, a melhor coisa que faríamos seria nos deitarmos debaixo daquela árvore
e repousar. Adormecer. Um novo dia já irá nascer
- E a cada dia se renovam as nossas esperanças, não é, Pai? Ele me disse
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eu ainda podia ouvir, longe, desaparecendo, mergulhando cada vez mais na
distância, o tropel do pai daquela criança, que a procurava, atravessando a Noite
desesperado sob a Lua
Filho, eu disse, ouve
Mas ele já havia adormecido com a cabeça pousada no meu peito
Sentindo as suas unhas sempre cravadas no meu rosto, e sem retirar as
minhas unhas do seu
o que mais então eu poderia fazer, senão, apertando o seu corpo contra o
peito, adormecer, também, soluçando
Gradualmente a cena novamente escurece.
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EPÍLOGO
Gradualmente a cena novamente se ilumina sobre a segunda
IMAGEM de Gustav Doré, ao fundo, em grandes dimensões. VOZ,
fora de cena, lê o texto abaixo, em espanhol. Ao fim da leitura,
silêncio. E gradualmente e cena novamente escurece.
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IMAGENS:
Do PRÓLOGO
Gustav Doré: ‘dieron los ojos al sueño’
Do EPÍLOGO
Gustav Doré: ‘y al salir del alba’
Fragmentos dos originais de Cervantes:
Extraídos de ‘Cervantes/Obras completas’ (Aguilar, Madri, XVIII edição, 1975).
Tomo II. Novelas. Don Quijote de la Mancha, parte II, capítulo XXVIII, página 691.
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