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Inuir em polticas pblicas e provocar mudanas sociaisEXPERINCIAS A PARTIR DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRAElie Ghanemorganizador

Conselho Editorial

5 Elementos - Instituto de Educao e Pesquisa Ambiental Ao Educativa - Assessoria Pesquisa e Informao ANDI - Agncia de Notcias dos Direitos da Infncia Ashoka - Empreendedores Sociais Cedac - Centro de Educao e Documentao para Ao Comunitria CENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas em Educao, Cultura e Ao Comunitria Conectas - Direitos Humanos Fundao Abrinq pelos Direitos da Criana e do Adolescente Imprensa Ocial do Estado de So Paulo Instituto Kuanza ISA - Instituto Scio Ambiental Midiativa - Centro Brasileiro de Mdia para Crianas e Adolescentes

Comit Editorial

Antonio Eleilson Leite - Ao Educativa Cristina Murachco - Fundao Abrinq Denise Conselheiro - Conectas Franoise Otondo - Ashoka Hubert Alqures - Imprensa Ocial Liegen Clemmyl Rodrigues - Imprensa Ocial Luiz Alvaro Salles Aguiar de Menezes - Imprensa Ocial Maria Angela Leal Rudge - CENPEC Maria de Ftima Assumpo - Cedac Maria Ins Zanchetta - ISA Monica Pilz Borba - 5 Elementos Rosane da Silva Borges - Instituto Kuanza Vera Lucia Wey - Imprensa Ocial

Influir em Polticas Pblicas e Provocar Mudanas SociaisExperincias a partir da sociedade civil brasileira

Governador

Jos Serra

IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SO PAULO

Diretor-presidente Diretor Vice-presidente Diretor Industrial Diretor Financeiro Diretora de Gesto Corporativa Chefe-de-gabinete

Hubert Alqures Paulo Moreira Leite Teiji Tomioka Clodoaldo Pelissioni Lucia Maria Dal Medico Vera Lcia Wey

ASHOKA EMPREENDEDORES (AS) SOCIAIS

Co-presidente Ashoka Global Diretora

Anamaria Schindler Clia Cruz

FUNDAO AVINA

Presidente da Junta Diretiva Diretor Executivo Representante Regional - Brasil Representante Sudeste e Distrito Federal

Brizio Biondi-Morra Sean McKaughan Valdemar de Oliveira Neto Maneto Marcus Fuchs

Organizador: Elie Ghanem

Influir em Polticas Pblicas e Provocar Mudanas SociaisExperincias a partir da sociedade civil brasileira

So Paulo, 2007

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de So PauloInfluir em polticas pblicas e provocar mudanas sociais: experincias a partir da sociedade civil brasileira / Organizador Elie Ghanem. So Paulo : Ashoka : Avina : Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2007. 232p. Vrios autores ISBN 978-85-7060-530-6 1. Polticas pblicas Brasil 2. Sociedade civil Brasil 3. Mudanas sociais I. Ghanem, Elie. CDD 320.6 ndices para catlogo sistemtico: 1. Brasil : Formulao de polticas pblicas. 320.6 2. Brasil : Sociedade civil : administrao pblica. 352.081

Foi feito o depsito legal na Biblioteca Nacional (Lei n 10.994, de 14/12/2004) Impresso no Brasil 2007

Ashoka Empreendedores Sociais Seleo e Integrao de Empreendedores Sociais Rua Alves Guimares 715 Pinheiros 05410 001 So Paulo SP www.ashoka.org.br Fone/Fax 011 3085 9190

Centro de Competncia para Empreendedores Sociais Ashoka McKinsey Rua Alexandre Dumas, 1711 Ed. Birmann, 11 andar So Paulo SP www.ashoka.org.br Fone/Fax 011 5189 1461 | 1462

Fundao AVINA Avenida Brasil, 1438 Sala 1405 30140 003 Funcionrios BH www.avina.com [email protected] 031 3222 | 8806

Imprensa Oficial do Estado de So Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103 902 So Paulo SP www.imprensaoficial.com.br [email protected] SAC Grande So Paulo 011 5013 5108 | 5109 SAC Demais Localidades 0800 0123 401

A P R E S E N TA O

Liberdade, Igualdade e Solidariedade H muitas maneiras de se inuir na formulao, desenvolvimento e scalizao de polticas pblicas para, por meio delas, contribuir para a concretizao de mudanas progressistas na organizao poltica, econmica e cultural de nossa sociedade. A coletnea de depoimentos pessoais e relatos analticos, organizada pelo professor Elie Ghanem, aborda algumas dessas formas, praticadas principalmente por integrantes das redes parceiras da Ashoka e da Avina. As experincias foram conduzidas de acordo com trs princpios orientadores, que estruturam a coletnea: liberdade, contra todas as formas de absolutizao de poderes; igualdade, contra as diferenas extremadas de renda, cultura e oportunidades; e solidariedade, para garantir a coeso nacional e apoiar a incluso das pessoas e segmentos sociais mais atingidos pelas disparidades e pela marginalizao. A Imprensa Ocial do Estado de So Paulo, ao editar este livro baseado em experincias concretas e permeado por reexes inovadoras e instigantes, incluindo-o em sua coleo Imprensa Social, quer estimular o debate sobre a interao necessria entre o setor pblico, o setor privado e os empreendedores do assim chamado terceiro setor, para o aprimoramento de nosso regime democrtico, a reduo de nossas desigualdades sociais e a difuso de valores de respeito, tolerncia e apoio mtuos que melhorem nossos padres de convvio na sociedade. Hubert Alqures Diretor-presidente da Imprensa Ocial do Estado de So Paulo

SUMRIO

A PARCERIA ENTRE ASHOKA E AVINA: MOTIVOS E PERSPECTIVAS Empreendedorismo social, liderana e a inuncia em polticas pblicas. . . . . . . . .11 As organizaes realizadoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 A democracia como esforo: experincias brasileiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .23 Elie Ghanem PARTE 1 Democracia e Sociedade Civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 Estratgias da sociedade civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 Luciana Lanzoni e Clia Cruz Como inuenciar polticas pblicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37 Oded Grajew PARTE 2 Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Ouvidoria para o setor social: a gora possvel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .45 Gilberto de Palma Caminhos de inuncia no legislativo e no executivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .67 Normando Batista Santos O direito sade: sonho de liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77 Daniel Becker e Ktia Edmundo Inuir em polticas prestando servios a rgos pblicos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .99 Elie Ghanem PARTE 3 Igualdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 Homens, poltica e sade reprodutiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .111 Jorge Lyra Eqidade em poltica pblica: as escolhas trgicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .127 Mrian Assumpo e Lima

Por uma alfabetizao sem fracasso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143 Telma Weisz Educao pblica: o possvel e o necessrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .153 Slvia Pereira de Carvalho PARTE 4 Solidariedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Casa das Palmeiras: inovao em sade mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .171 Agilberto Calaa Associao Sade-Criana Renascer: uma mudana de paradigma . . . . . . . . . . . . .191 Vera Cordeiro, Luis Carlos Vieira Teixeira e lvaro Alberto Gomes Estima Reforma da Previdncia Social: uma perspectiva de gnero . . . . . . . . . . . . . . . . . . .203 Guacira Csar de Oliveira A cidadania e as redes sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .219 Fernando Alves

A PA R C E R I A E N T R E A SHOK A E AVINA: MOTIVOS E PERSPECTIVA S

Anamaria Schindler* e Geraldinho Vieira**

Empreendedorismo social, liderana e a inuncia em polticas pblicas Uma importante estratgia utilizada por empreendedores(as) e lderes sociais inuenciar polticas pblicas, ou seja, contribuir para a construo, implementao e scalizao de polticas pblicas para assim gerar mudanas sistmicas rumo a modelos de desenvolvimento humano sustentvel. Em geral, frente aos problemas sociais, lderes e empreendedores(as) buscam solues que alcancem impacto positivo em pequenas comunidades ou mesmo em grandes regies. Sendo assim, natural que sejam esperados resultados, a partir de tais experincias e estratgias, que representem benefcios em maior escala. So inmeros os exemplos de modelos inovadores e de sucesso que tratam da defesa efetiva dos direitos humanos, da promoo da equidade de gnero e etnias, do acesso a servios de sade e educao, do manejo sustentvel de recursos naturais ou da ampliao da participao cidad em decises que afetam a vida de cada um. A Ashoka e a Fundao Avina acreditam que o desenvolvimento de polticas pblicas em conjunto pelo Estado, sociedade civil e setor privado uma das formas mais democrticas e ecazes de promover a transformao social.

* Co-presidente Ashoka Global. ** Diretor de Comunicao da Fundao Avina.

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Essa convico deriva do momento histrico em que vivemos. Sabemos que impossvel obter impacto sem um trabalho de ponte entre os setores pblico, empresarial e social. Para tanto, necessrio criar tecnologias e espaos de dilogo para que agentes sociais possam dar contribuies concretas gesto pblica e criar mecanismos de articulao em rede que gerem impacto em todo o Brasil. Fica claro tambm que, para alcanar resultados positivos, a participao da sociedade civil na formulao de polticas pblicas precisa de maior planejamento estratgico e operacional. Inmeras so as questes que envolvem a relao entre poder pblico e sociedade civil. Incluem a denio de como deve ser a interlocuo entre setor privado, governos e sociedade civil. Querem estabelecer como ganhar escala sem perder a efetividade da proposta de interveno social. Porque os desaos so grandes, torna-se urgente aprofundar o dilogo e ampliar a discusso. A Ashoka Empreendedores(as) Sociais e a Fundao Avina vm aprofundando, nos ltimos dois anos, em conjunto com empreendedores(as) e lderes sociais, o debate crtico sobre a relao da sociedade civil com a formulao, implementao e scalizao de polticas pblicas, visando assim contribuir para a eccia do trabalho de integrantes de suas redes e tambm contribuir para a gerao de conhecimento na rea. H uma larga histria de parceria entre a Ashoka e a Avina, sempre num contexto de cooperao e alinhamento das propostas, mas esta a primeira vez que se realiza um processo amplo e profundo de estudo, anlise e discusso de uma temtica especca, hoje fundamental para o nosso pas. O mais singular desta experincia foi ter sido co-concebida e liderada por colaboradores (staff) das duas organizaes, alm de empreendedores(as) e lderes sociais associados. O presente livro fruto desse trabalho e visa apresentar algumas experincias brasileiras de relao entre sociedade civil (includas aqui empresas com ns de lucro) e Estado na formulao, implementao, scalizao e anlise de polticas pblicas. Tambm pretende trazer aprendizados e ree-

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xes sobre oportunidades e desaos da colaborao entre estes setores para a construo do espao pblico brasileiro na esperana de contribuir efetiva e ecazmente para a construo de uma sociedade melhor. Por m, gostaramos de ressaltar que os textos reunidos em Inuir em polticas pblicas e provocar mudanas sociais expressam a opinio dos(as) prprios(as) autores(as), com pontos de vista independentes e s vezes at mesmo antagnicos. As organizaes realizadoras Ashoka H 25 anos, ningum tinha ouvido falar em empreendedores(as) sociais. No se imaginava que, assim como um empresrio(a) empreende uma nova indstria, um(a) empreendedor(a) social muda a realidade social ou econmica de uma cidade ou de um pas. A Ashoka, uma associao global de empreendedores(as) sociais, fundada em 1980, na ndia, foi criada exatamente para apoiar o desenvolvimento do empreendedorismo social no mundo. uma organizao empreendedora servindo empreendedores(as) que esto se multiplicando a cada ano no Brasil e no mundo. A Ashoka uma organizao sem ns lucrativos totalmente sustentada por contribuies privadas. Atua para desenvolver um setor social empreendedor, eciente e globalmente integrado. Nos 25 anos em que a Ashoka promove a prosso de empreendedor(a) social, j foram selecionadas mais de 1.800 pessoas, em mais de 60 pases, formando uma rede com potencial de transformar a realidade social. A viso da Ashoka a de que possvel criar um setor social global e que a colaborao entre os empreendedores(as) sociais capaz de gerar rpida e ecazmente mudanas sociais em qualquer parte do mundo. Acredita tambm que cada membro da sociedade pode ser um agente que promove mudanas e assim contribui para alterar as necessidades sociais existentes. A comunidade de empreendedores(as) sociais promove a inovao e trabalha com o desejo de transformao, para que mais e mais indivduos descubram em si mesmos o po-

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tencial para provocar mudanas. Para apoiar um mundo de agentes de mudana em constante inovao, o setor cidado deve ser gil, eciente e globalizado. A viso da Ashoka de que todo mundo pode mudar o mundo realiza-se sobre trs pilares. Primeiramente, o de investimento em empreendedores(as) sociais, porque a Ashoka acredita que essas pessoas so a mais poderosa fora transformadora da sociedade. O segundo pilar o do empreendedorismo de grupo. A Ashoka rene grupos de empreendedores(as) sociais inovadores(as) para, em colaborao, identicar e disseminar idias fundamentais, que possam abrir novas perspectivas e inuenciar mudanas em toda uma rea de atuao. O grande desao est em estimular cada vez mais as colaboraes entre empreendedores(as), destes(as) com outras redes e, assim, contribuir com o setor cidado como todo. O terceiro pilar refere-se s prticas realizadas por empreendedores(as) sociais para apoiar a infra-estrutura do setor social. A Ashoka desenha e dissemina novos caminhos, tecnologias e programas para que empreendedores(as) sociais trabalhem dentro e fora da rede, com a necessria infra-estrutura de suporte. A busca de inovao e o fato de investir diretamente em indivduos com caractersticas bem denidas o que diferencia a Ashoka no contexto do setor cidado, no Brasil e no mundo. Desde 1986, quando passou a atuar no Brasil, a Ashoka j selecionou e investiu em mais de 244 empreendedores(as) sociais. Tambm desenvolveu cursos, concursos, treinamentos e projetos colaborativos, buscando transferir tecnologia e conhecimento para o terceiro setor. Para selecionar empreendedores(as) sociais, a Ashoka apia-se em um rigoroso processo, aprimorado ao longo de 25 anos. Alm de ter uma idia realmente inovadora, empreendedores(as) sociais que a Ashoka identica apresentam caractersticas pessoais em comum: esprito empreendedor e determinao, uma idia inovadora com potencial de impacto nacional e/ou internacional, criatividade na soluo de problemas, bra tica inquestionvel.

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A Ashoka recebe, no Brasil, cerca de 600 propostas e seleciona de 13 a 18 empreendedores(as) sociais por ano. Anualmente, tambm h um evento de anncio pblico das novas pessoas que passam a integrar esta associao global. Aps a seleo pela Ashoka, o indivduo passa a receber uma bolsa mensal por trs anos, para pagamento de custos pessoais e integra permanentemente a rede nacional e internacional de mais de 1800 membros. Os projetos sociais inovadores se do nas reas de participao cidad, desenvolvimento econmico, educao, meio ambiente, sade e direitos humanos. Alm deste pequeno investimento nanceiro, a Ashoka desenvolve diversos servios de suporte ao desenvolvimento de empreendedores(as) sociais, tais como: Fundos para projetos de colaborao: possibilitam fortalecer a troca de metodologias e ampliao do impacto social. Estas colaboraes podem inuenciar mudanas de paradigmas culturais, polticas pblicas, assim como atingir escala na transformao social. Encontros e seminrios temticos: desenvolvidos sobre temas transversais, que interessem a toda a rede da Ashoka. Projetos de consultoria: atravs da parceria estratgica com a McKinsey&Company, empreendedores(as) sociais tm acesso a consultoria de alto padro para expanso ou consolidao de seus projetos e para solues de problemas estratgicos. Capacitao em planos de negcios: empreendedores(as) sociais tambm so capacitados para elaborar planos de negcios, atravs de um concurso nacional, aberto a todas as organizaes da sociedade civil e realizado anualmente. Uma pesquisa de impacto realizada com 294 empreendedores(as) sociais de todo o mundo mostra que mais de 55% das pessoas pesquisadas inuenciaram polticas pblicas nacionais ou a legislao aps cinco e dez

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anos de sua seleo pela Ashoka. As mesmas pesquisadas esto atingindo, em mdia, 159.399 indivduos com seus projetos. Mais de 75% de todas que responderam pesquisa receberam cobertura de mdia e prmios, sugerindo que empreendedores(as) sociais esto tendo cada vez mais reconhecimento por suas solues inovadoras e de alto impacto para problemas sociais. Alguns fatos histricos relevantes sobre a Ashoka: ndia, 1981 Quatro homens viajam pela ndia percorrendo vilas e conversando com inmeras lideranas do pas, coletando informaes e registrando nomes, idias e fatos. Um destes homens Bill Drayton, fundador da Ashoka e pioneiro no lanamento de uma nova idia: a de que, assim como no setor privado temos a gura do(a) empresrio(a) que inova, tambm no setor social existem empreendedores(as) sociais que mudam sistemas sociais. ndia, 1982 Primeira empreendedora social identicada e selecionada pela Ashoka, Gloria de Souza, foi tambm a primeira empreendedora a tornar a educao atrativa aos professores, administradores e pais por meio de uma abordagem experimental, focada na soluo de problemas, no contexto do sul da sia. Atualmente, mais de 10 milhes de crianas esto sendo educadas com sua metodologia, que foi adotada pelo governo da ndia nas escolas pblicas. Gloria de Souza se tornou a primeira empreendedora social a integrar o conselho diretor internacional da Ashoka. Brasil, 1986 A Ashoka inicia suas atividades no Brasil. Em 1988, seleciona Chico Mendes. Devido sua atuao, foi assassinado por donos de seringais alguns meses depois, mas mudou denitivamente a abordagem mundial com relao ao extrativismo sustentvel por populaes tradicionais como estratgia de preservar orestas. Amrica Latina, 1994 Atravs de uma parceria histrica com o empresrio Stephan Schmidheyni, fundador da Avina, a Ashoka pode expandir suas atividades, durante a ltima dcada, para quase todos os pases latinoamericanos. Brasil, 1996 Um novo salto qualitativo acontece com o estabelecimento da parceria estratgica da Ashoka com a McKinsey&Company, que tem

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contribudo para acelerar o crescimento do empreendedorismo social em mais de oito pases. Brasil, 2005 Anncio e celebrao de 12 novos(as) empreendedores(as) sociais brasileiros(as) selecionados pela Ashoka. Anamaria Schindler, brasileira, assume a co-presidncia da Ashoka Global com a americana Diana Wells. Fundao Avina A Fundao Avina resultado da viso de transformao social de um empresrio suo. Desde 1994, Stephan Schmidheiny destina uma parte importante do seu tempo e de seu patrimnio (mais de 300 milhes de dlares at o momento), para apoiar o trabalho de lderes da sociedade civil e do empresariado e a promoo de parcerias entre ambos, em favor do desenvolvimento sustentvel na Amrica Latina. Em 1994, Stephan Schmidheiny fundou tambm o GrupoNueva, um conglomerado de empresas integrado por duas divises de negcios que funcionam em 17 pases, gerando 16.000 postos de trabalho. As duas divises, Amanco e Masisa, produzem sistemas e infra-estrutura para gua potvel, guas residuais, guas servidas e para irrigao; sistemas de construes leves para moradias; plantaes orestais de pinheiro e produtos de madeira. As companhias do GrupoNueva esto comprometidas com o crescimento da Amrica Latina, com a responsabilidade social corporativa e a eco-ecincia, contribuindo para o desenvolvimento social e econmico das sociedades onde trabalham. Desde seus primeiros passos, a Avina deniu-se como organizao dedicada promoo do desenvolvimento sustentvel na Amrica Latina, focalizando sua atuao de maneira estratgica no estabelecimento de relaes de parceria com lderes sociais aspecto ainda mais claramente percebido quando dos primeiros encontros entre seu fundador e Bill

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Drayton, da Ashoka. A Avina uma organizao de aprendizados: sempre busca incorporar inovaes e lies da prtica na sua atuao para ampliar seu impacto. Em 1997, buscando viso e estratgia adequada para cada cultura e realidade scio-poltica-ambiental, a Avina comeou a trabalhar com lideranas associadas em diferentes pases do continente. Em pouco tempo, algumas dessas pessoas tornaram-se formalmente representantes da Avina. Sua misso: prospectar outras lideranas com as quais a Avina iria aprofundar relaes de aliana, realizar investimentos nanceiros e oferecer acesso a servios e oportunidades de desenvolvimento pessoal e institucional. Hoje, so quase mil lderes-parceiros(as) da Avina. A organizao est estabelecida em praticamente todos os pases da Amrica do Sul, com 22 escritrios de Representaes e Centros de Servios. A partir de sua representao na Costa Rica, onde tambm est a sede da Fundao, procura agora aumentar sua atuao na regio. Em 2000, a Avina enfatizava a importncia de estimular parcerias entre o setor privado e a sociedade civil. Em 2002, como fruto do aprendizado dos anos anteriores, a oferta de servios e a nfase no papel catalizador dos processos sociais ganham maior espao. A Avina j no v mais sua misso centrada no investimento nanceiro como nica ou a maior forma de agregar valor s iniciativas das lideranas. Em 2003, Stephan Schmidheiny deixa a presidncia da Avina e cria a VIVA Trust, organizao que passa a orientar as aes tanto da Avina quanto do GrupoNueva, alm de nortear uma relao que equilibra autonomia e cooperao entre ambas as instituies. Brzio Biondi-Morra antes Representante de Avina para iniciativas de carter continental assumiu, ento, a presidncia da Avina e, em 2004, passou a reforar o estmulo s articulaes das redes sociais como prioridade. Em 2005, a Avina se organiza em torno de quatro eixos estratgicos que compem sua equao para desenvolvimento sustentvel: eqidade; governabilidade democrtica e Estado de direito; desenvolvimento econmico sustentvel; conservao e manejo de recursos naturais.

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Entre as ferramentas que se consolidam como essenciais promoo do capital social para o qual a Avina quer contribuir, esto a gesto do conhecimento, a comunicao como fator de promoo de novos valores, o fortalecimento das lideranas e organizaes, e a articulao de pontes intersetoriais e transnacionais entre as lideranas, tanto na Amrica Latina quanto em outros continentes ou regies. Avina no Brasil A Avina opera no Brasil com estrutura prpria desde 2001, mas, iniciou suas atividades neste pas em 1999. Atualmente, possui escritrios de representao em quatro capitais brasileiras e mantm um escritrio de coordenao operacional, o Centro de Servios, no Rio de Janeiro. So mais de 200 lderes-parceiros(as), presentes na quase totalidade dos Estados. A equipe da Avina no Brasil formada por 29 funcionrios(as) permanentes. O Brasil abriga ainda, em Braslia, a Direo de Comunicao da Avina como um todo. A instncia mais importante para decises relacionadas a polticas e estratgias nacionais na Avina Brasil o Comit Brasil, formado por um Representante Regional (Antonio Lobo, membro do Conselho Operativo da Avina), pelos Representantes de cada regio, o Gerente do Centro de Servios e o Diretor de Comunicao. So exemplos de servios para parceiros(as): fortalecimento institucional; capacitao em gesto e administrao nanceira; ferramentas para a gesto de projetos; consultoria em captao de recursos; desenvolvimento pessoal; desenvolvimento prossional e de carreira; planejamento estratgico; sistematizao de aprendizagem; promoo de intercmbios e articulao entre lderes-parceiros (presencial e virtual); incentivos para parcerias entre o setor privado e a sociedade civil; incubao, desenvolvimento e articulao de redes; capacitao em comunicao e dilogo com a mdia; co-nanciamento de iniciativas (geralmente cerca de 50%).

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Stephan Schmidheiny: em busca do crculo virtuoso Stephan Schmidheiny nasceu em St. Gallen, Sua, em 1947, onde se formou em direito. Iniciou sua carreira empresarial aos 25 anos, assumindo, quatro anos mais tarde, o cargo de CEO no grupo Empresas de Materiais de Construo, que era propriedade de sua famlia. Anos depois, diversicou seus investimentos, ampliando o leque de atividades, incorporando empresas vinculadas indstria orestal, ao sistema nanceiro e a equipamentos pticos e eletrnicos. Em meados da dcada de 1980, criou Fundes, uma organizao de apoio a pequenos e mdios empresrios na Amrica Latina. Em 1990, foi designado Conselheiro Principal para o Comrcio e a Indstria do Secretrio Geral da Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (UNCED), mais conhecida como a Cpula da Terra - Rio 1992. A fim de cumprir melhor o seu mandato, constituiu um frum que reuniu empresrios-lderes de todo o mundo para debater as propostas do empresariado frente aos problemas ambientais e de desenvolvimento. Este frum transformou-se, mais tarde, no Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentvel (WBCSD) e Stephan Schmidheiny foi nomeado Presidente Honorrio. A organizao agrupa atualmente as 160 empresas mais importantes do mundo. Em outubro de 2003, Stephan Schmidheiny retirou-se de todas as suas funes no GrupoNueva e na Avina. Para perpetuar seu legado empresarial e lantrpico na Amrica Latina, em 9 de outubro de 2003, doou todas as aes do GrupoNueva para o deicomisso VIVA Trust, seu conglomerado de empresas que operam na regio. A doao representou cerca de 800 milhes de dlares, que era o valor das aes do GrupoNueva, ao qual foi acrescentado um portfolio adicional de investimentos, alcanando um montante total de mais de um bilho de dlares.

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A transferncia do patrimnio do GrupoNueva para o VIVA Trust tem por objetivo alicerar a realizao de novas alianas entre o mundo empresarial e a sociedade civil, a m de dar maior impulso a um desenvolvimento mais sustentvel no planeta. VIVA Trust agora o proprietrio do GrupoNueva e a principal fonte nanceira da Fundao Avina. Este novo modelo pretende tornar-se um crculo virtuoso que fortalea o desenvolvimento sustentvel da sociedade, impulsando simultaneamente empresas e organizaes civis bem-sucedidas e socialmente responsveis, assim como um mercado mais amplo e estvel para o grupo empresarial. A parceria no Brasil A parceria da Ashoka com a Avina tem mais de uma dcada. Tudo comeou quando Stephan Schmidheiny, empresrio suo e fundador da Avina, encontrou-se com Bill Drayton, fundador da Ashoka, no comeo da dcada de 90. Quando visionrios(as) e empreendedores(as) se encontram, a conexo imediata. Este foi o caso entre Schmidheiny e Drayton que, desde ento, selaram uma parceria importante para o desenvolvimento das duas organizaes. Nesse momento, comeou o dilogo e a inuncia mtua que dura at hoje. Drayton inuenciou fortemente Schmidheiny, na medida em que mostrou a viabilidade e o valor concreto de apoiar indivduos empreendedores(as) que promovem mudanas sociais profundas na sociedade. Schmidheiny foi determinante na evoluo do crescimento da Ashoka, na medida em que apoiou e continua apoiando os programas da Ashoka na Amrica Latina e nos Estados Unidos. Ao longo dos ltimos anos, a parceria Avina-Ashoka contribuiu para o fortalecimento do setor cidado1 nas regies apontadas. Este fortalecimento se d, primeiro e essencialmente, com a identicao de empreendedores(as) (pela Ashoka) e lderes sociais (pela Avina) e suas inovaes. Outro aspecto tambm muito importante nesta parceria a atuao para o fortalecimento das pontes entre os setores privado e cidado.

1 A Ashoka utiliza a expresso setor cidado para definir positivamente o setor social formado por organizaes da sociedade civil e por grupos informais que promovem mudanas na sociedade. A expresso se contrape definio histrica negativa de outra como no governamental ou no lucrativo.

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Existe muita colaborao entre as duas organizaes e esta se intensica nos pases onde ambas constroem comunidades de empreendedores(as) e lderes sociais. Isto possibilita o conhecimento de ambas as redes de empreendedores(as) e lideranas, o intercmbio de informaes entre as equipes e o acompanhamento de metodologias no desenvolvimento de servios para as redes de cada uma. Alm disto, temos um pblico-alvo comum: mais de 65 pessoas que so ao mesmo tempo empreendedores(as) da Ashoka e lderes-parceiros(as) da Avina em toda Amrica Latina2. Mais recentemente, a Avina e a Ashoka iniciaram, no Brasil, um trabalho conjunto de colaborao para o desenvolvimento de atividades que fortaleam suas redes sociais. Isto signica que, alm de uma parceria institucional histrica na Amrica Latina e Estada Unidos, as duas organizaes so parceiras tambm no contexto especco de pases, como o caso no Brasil. A parceria em mbito nacional nos d a possibilidade de atuar mais diretamente nos temas relevantes para o pas ou nas prioridades especcas de empreendedores(as) e lderes sociais, como a questo da inuncia em polticas pblicas que se discute neste livro.

2 Essas pessoas so associadas tanto Ashoka quanto Avina, ainda que os critrios de seleo e os suportes que recebem de cada uma das organizaes sejam distintos.

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A democracia como esforo: experincias brasileiras

Elie Ghanem*

* Professor da Faculdade de Educao da USP

tema da inuncia em polticas pblicas se situa entre as preocupaes tanto de pessoas na posio de governantes quanto daquelas na condio de governadas. Para uma parte do grupo de governantes, trata-se de adequar seus propsitos s necessidades das populaes e conferir legitimidade aos programas implementados. Mas, para a maior parte do grupo de governantes, a grande preocupao restringir e selecionar quem e quantas pessoas inuiro. No Brasil, assim como em muitos outros pases, a inuncia em polticas tornou-se meta de numerosas organizaes da sociedade civil, aparentemente com mais freqncia do que se transformou em objetivo de organismos estatais. Dessa maneira, resultou tambm em tema especial das reas de atuao de integrantes da Ashoka e da Avina, considerando a recorrente vinculao dessas pessoas com organizaes no governamentais. A existncia de um sistema poltico aberto, a partir da segunda metade dos anos 1980, favoreceu a gradativa intensicao de iniciativas e de ferramentas visando redenir o espao pblico. Compatveis com esse contexto,

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os propsitos e aes de integrantes da Ashoka e da Avina deixam suposto que a sua busca pela oportunidade de co-conceber, implementar e/ou scalizar polticas pblicas se inscreve na perspectiva da democracia. Desde suas origens, tanto como colnia europia quanto, depois, como Estado nacional, o Brasil se estabeleceu sob o signo da dominao modernizadora e da desigualdade social. A conscincia dessas duas caractersticas da identidade brasileira tambm antiga. O que mais recente a assuno de um teor crtico nessa conscincia, que atravessa os diferentes estratos e grupos sociais, refaz as normas legais, altera formas de convvio e se expressa em programas e prticas governamentais. No entanto, tudo indica que, na maioria das vezes, essas novas prticas no conseguem gerar democracia e ir alm da mera ausncia de um regime autoritrio. O empenho em unir todas as foras possveis do campo governamental e da sociedade civil para romper com aparelhos tradicionais de poder mantenedores da injustia social o grande desao da inuncia em polticas pblicas, a traduo apropriada da idia de democracia como esforo permanente. certo que o conceito de democracia mais um dos importantes objetos do debate contemporneo e que muitas pessoas inconformadas com a realidade presente procuram adjetivar a democracia de modo a explicitar suas aspiraes, por exemplo, a uma sociedade mais justa, a uma democracia participativa, a uma sociedade mais igualitria e fraterna. Aspiraes como essas deixam perceber a insatisfao com vises formalistas, ainda que grandes pensadores liberais j tenham armado a luta democrtica como a defesa das regras do jogo. Embora indispensvel, a defesa das regras do jogo ser intil se se bastar a si mesma, mantendo-se alguns dos jogadores submetidos dominao extrema ou em condies de acesso a recursos excessivamente dspares, ou ainda, se no se interessarem pelo jogo. Por esses motivos, uma das principais idias que orientaram o formato proposto tanto para o Seminrio Inuncia em Polticas Pblicas,

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uma das atividades realizadas em novembro de 2004 a partir da aliana da Ashoka e Avina na temtica, quanto para este livro foi a de que a democracia se constitui de trs fatores indissociveis: liberdade, igualdade e solidariedade. A liberdade indica a luta contra poderes que tendem ao absoluto. Em alguns pases, trata-se principalmente do poder do Estado, embora, em outros, o processo de globalizao tenha arrefecido esse poder, colocando em contrapartida o crescente predomnio do poder do mercado e, pois, a necessidade de enfrent-lo. Tambm no se deve esquecer do poder de comunidades que se fecham e de sua correspondente homogeneidade e agressividade, bem como do poder exercido em ambientes privados, como o expressa a violncia contra a mulher ou o abuso sexual de crianas e adolescentes. Por sua vez, a igualdade outro aspecto candente da democracia que requer tambm vigorosos esforos para ser respeitada. Sobretudo no Brasil, por seus elevados ndices de concentrao de renda e pela severa limitao das prestaes do Estado em termos de servios e equipamentos que alcancem as pessoas universalmente. Alm de ser um desao distributivo, a igualdade tambm um clamor no que se refere ao convvio entre indivduos e grupos tomados em suas singularidades e preferncias peculiares. Trata-se do problema de alcanar formas de convivncia entre iguais e diferentes com justia. J a solidariedade remete no apenas coeso e unidade nacional, mas tambm ao problema de como compartilhar, em idias e aes, a ateno para com as pessoas mais afetadas negativamente pela dominao e pela desigualdade numa perspectiva mundial. O desao est em reconhecer indivduos e segmentos mais vulnerveis, promovendo a co-responsabilidade das coletividades e entendendo-as como conjuntos scio-polticos, ou seja, grupos com relaes e caractersticas prprias, inclusive de atuao na vida pblica. Com esse enfoque, o livro rene abordagens e aprendizados, de membros das redes Ashoka e Avina, correspondentes aos trs fatores constitu-

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tivos da democracia mencionados, ao mesmo tempo em que so contribuies relacionadas a formas de exerccio de inuncia em polticas, ou seja, contribuies para o desenvolvimento, implementao e scalizao de polticas pblicas ecazes e que atendam a real demanda de transformao social do pas. Na primeira parte, Luciana Lanzoni e Clia Cruz recuperam o processo de elaborao gradual que culminou nas diferentes atividades realizadas pela Ashoka e Avina ao longo dos ltimos dois anos. Sendo a proposta das atividades aprofundar o debate crtico em suas redes sobre a relao entre sociedade civil e Estado, desaos e oportunidades dessa relao, alm de promover a disseminao de estratgias de inuncia utilizadas por membros de suas redes para a formulao, implementao, scalizao e anlise de polticas pblicas. No texto seguinte, Oded Grajew descreve as ramicaes de sua trajetria pessoal, que compuseram tanto a campanha contra o trabalho infantil quanto a constituio do Frum Social Mundial, dois exemplos nos quais sobressai a tenso caracterstica do questionamento aos rgos do Estado e ao poder econmico. A segunda parte do livro se compe dos ensaios baseados em experincias que zeram frente a traos caracteristicamente autoritrios do poder poltico, sendo por isso relativas busca de polticas que promovam a liberdade. Gilberto de Palma caracteriza a transformao do espao pblico e expe crticas de diferentes orientaes quanto vida democrtica, lanando uma proposta de tecnologia para o controle ampliado do poder legislativo nos municpios. Sua perspectiva gerar leis adequadas pela atuao conjugada de organizaes da sociedade civil, maximizando os resultados da atuao de cada uma. Normando Batista mostra como, na Bahia, em torno dos direitos das crianas e adolescentes, enfrentou-se a tradio centralizadora e clientelista mudando a legislao e as formas de confeco de oramentos pblicos. Daniel Becker e Ktia Edmundo apontam maneiras de sensibilizao de autori-

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dades do executivo no Rio de Janeiro, tanto para que revissem suas agendas quanto para que levassem em conta prticas conduzidas por organizaes da sociedade civil. Elie Ghanem, por sua vez, ressalta que, em So Paulo, a prestao de servios a rgos pblicos, freqentemente subordinada tradio e a clculos eleitorais dos gestores, pode ser contrariada por prticas de formulao conjunta de programas de educao pblica. Os textos da terceira parte esto centrados nas obstinadas aes cujo alvo so polticas que promovam a igualdade. Jorge Lyra, a partir do trabalho em Pernambuco, apresenta modos de abordar direitos de homens e mulheres, assim como as estratgias conguradas em redes, fruns, articulaes e interlocues com rgos estatais. Mirian Assumpo, como prossional de servio pblico e como ativista de organizao no governamental em Minas Gerais, sublinha a lgica do processo de deciso interno aos organismos de Estado, adota uma compreenso de poltica social e destaca as escolhas difceis em torno de alternativas econmicas com jovens moradores de favelas. Os sucessos de programas governamentais em educao, sustentados por cuidadosa fundamentao, so indicados por Telma Weisz, bem como as torturantes descontinuidades daqueles programas, ligadas s perspectivas eleitorais de governantes. Slvia Carvalho, tambm a partir de So Paulo, desvenda algumas diculdades de fazer com que se leve em conta o saber especializado na denio de poltica nacional, mas tambm os efeitos que a incorporao desse saber produziu nas orientaes para a rea da educao infantil. A quarta e ltima parte do livro rene contribuies especialmente sugestivas nos aspectos da conquista de polticas que promovam a solidariedade. Agilberto Calaa e Vera Cordeiro, ambos do Rio de Janeiro e lidando com a problemtica da sade, ilustram dois estilos de exerccio de inuncia por meio do desenvolvimento de centros de referncia, o primeiro com doentes mentais e o outro com crianas de famlias de baixssima renda. Guacira de Oliveira expe como os movimentos de mulheres se organizaram para in-

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uir no debate sobre a reforma da previdncia social, no poder executivo e no legislativo federal, com vistas ao estabelecimento de um sistema de seguridade social solidrio, na perspectiva da autonomia econmica das mulheres. Fernando Alves, fecha esta publicao mostrando como se d, em Minas Gerais, o aproveitamento eciente de recursos das empresas com deliberada integrao no mercado de trabalho formal, ao mesmo tempo que as empresas se articulam com organizaes sem ns de lucro e rgos pblicos.

PA R T E 1

DEMOCRACIA E SOCIEDADE CIVIL

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Estratgias da sociedade civil

Luciana Lanzoni* e Clia Cruz**

V* Coordenadora da rea de Rede da Ashoka Empreendedores(as) Sociais Brasil e Paraguai. ** Diretora da Ashoka - Brasil e Paraguai.

ivemos em uma democracia formal h quase duas dcadas e, ao longo desse perodo, foi-se ampliando e tambm se sosticando o debate na sociedade brasileira sobre o conceito do que o espao pblico, que atores devem construir esse espao e como formular e implementar polticas pblicas que contribuam para tornar o pas efetivamente democrtico, diverso e socialmente justo. Nesse sentido, vemos a importncia de contribuir para o dilogo sobre o papel da sociedade civil organizada dentro desse novo contexto, pois ela configura o campo de uma grande variedade de atores sociais que traz de forma sistemtica para o debate mltiplas demandas, mas tambm alternativas relacionadas s diferentes temticas, tais como: direitos da criana e do adolescente, gnero, raa, orientao sexual, populaes historicamente excludas, entre outras. Muitas vezes, essa sociedade civil questiona com suas aes o monoplio do governo como gestor da atividade pblica e utiliza-se de diferentes mecanismos para reinventar

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o Estado, contribuindo para uma nova forma de se construir o espao pblico. Dentro desse contexto, por meio de uma pesquisa feita entre o final de 2003 e o incio de 2004, percebemos que empreendedores(as) sociais da Ashoka e lderes da Avina tambm vem como prioritria a necessidade de participar da reinveno de nosso Estado e de nosso pas. Essa participao se d por meio de diferentes estratgias para impactar polticas pblicas de forma consistente e, assim, promover amplas transformaes sociais. As diferentes estratgias de inuncia em polticas pblicas, ou de co-gesto pblica, utilizadas por membros das redes Ashoka e Avina e levantadas naquela pesquisa podem ser agrupadas em quatro categorias principais: Usar diferentes representaes, como os conselhos municipais, estaduais e federais ou fruns da articulao poltica da sociedade civil, para promover a participao ativa da sociedade civil em instncias decisrias ou em canais de dilogo com o governo, democratizando a tomada de deciso sobre a vida coletiva. Um exemplo o da participao em conselhos municipais de direitos de crianas e adolescentes; Fazer presso (lobby) sobre polticos ou agentes governamentais, mobilizando-os em torno de aes como mudanas de leis e de decises oramentrias que traduzam diferentes necessidades de comunidades, problemticas, ou de determinados pblicos-alvo, ampliando o conceito de justia social em nosso pas e garantindo direitos e deveres para todos(as). A rede Renove um exemplo deste tipo de estratgia e foi constituda para promover marcos legais e polticas pblicas relacionadas s energias renovveis. Desenvolver experincias exemplares no mbito da sociedade civil para que estas sejam assumidas e replicadas, mesmo que parcialmente, pelo poder pblico. Uma dessas estratgias a da As-

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sociao Renascer (detalhada a seguir neste livro), fundada para apoiar crianas e adolescentes em situao de risco a escapar do inflexvel percurso da misria-doena-internao-reinternaomorte que acompanha as famlias de baixa renda aps a alta hospitalar. So centros de referncia que possam inspirar e qualificar o trabalho do governo. Prestar servios especializados a governos, inuenciando o desenho das polticas pblicas em prticas dirias. Exemplo: a organizao Ao Educativa que presta servio a municpios, visando inuenciar a poltica pblica educacional. Vale ressaltar que muitos(as) empreendedores(as) e lderes sociais no atuam em apenas uma das estratgias, mas desenvolvem uma srie de trabalhos concomitantes visando a influncia em polticas pblicas e assim colaborando com a construo do espao pblico da sociedade brasileira. Outra reexo importante que a maioria de empreendedores(as) e lderes sociais no faz parte apenas da rede da Ashoka ou da Avina, mas sim de uma srie de redes diferentes, o que amplia o impacto de seu trabalho, j que muitas vezes so solicitadas pelo poder pblico a contribuir no desenho de suas estratgias. Aps aquela pesquisa e reconhecendo a experincia acumulada existente nas organizaes integrantes das redes Ashoka e Avina, realizamos, em novembro de 2004, um encontro de trs dias, em So Paulo que foi um marco importante para a posterior realizao de uma srie de atividades da Ashoka e Avina em diferentes regies do Brasil dentro da mesma temtica. Naquele seminrio participaram representantes de diferentes partes do Brasil, experientes na temtica, em busca de reexes e aprendizados quanto ao desao, sempre expresso pelas organizaes da sociedade civil: como inuir em polticas pblicas? Ou seja, foi discutida, ao longo do seminrio e tambm em atividades posteriores da Ashoka e da Avina, uma srie de

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pontos fundamentais que compe essa questo e que so o cerne para ultrapassarmos limites e para aproveitarmos oportunidades que possibilitem a ampliao da participao da sociedade civil brasileira na construo do espao pblico do pas. O encontro foi coordenado por um comit composto por empreendedores(as) sociais da Ashoka, lderes da Avina e integrantes das equipes dessas organizaes. Entre as principais contribuies do seminrio foi levantada a necessidade de capacitar organizaes sociais para transformar seus benecirios em sujeitos da ao e reiterada a necessidade de fortalecer tais grupos para que sejam atores sociais e polticos consistentes. Tambm foi lembrado que, quando se trata de aes de inuncia em polticas pblicas, deve-se levar em conta, entre muitas outras, questes como a temporalidade, a tica, os conitos de interesses, o poder e impacto da rede virtual, a legitimidade da causa, o conhecimento e entendimento da mquina pblica, as relaes e maturidade de lderes e empreendedores(as) sociais, a agenda poltica, a articulao temtica, a co-responsabilidade, dilogo e articulao. Mas, em ltima anlise, trata-se de saber como romper relaes de poder prejudiciais a uma democracia que busca a igualdade na tomada de deciso e a co-construo do espao pblico brasileiro. Muito signicativamente, Guacira de Oliveira, uma das coordenadoras do evento, expressou durante o seminrio, a necessidade de a sociedade civil organizada ter cada vez mais presente, em suas aes e em sua produo de conhecimento, a inuncia em poltica pblica. Para ela, o desenvolvimento de poltica pblica referenciada no marco dos direitos humanos requer a transformao da prpria sociedade, que tem de se comprometer com a luta por igualdade, liberdade, oportunidade e bem-estar social. Alm disso, a sociedade deveria assegurar solidariamente patamares diferenciados de acesso ao Estado e a suas instituies. Isso signicaria, no limite, assegurar vida digna. O seminrio Inuncia em Polticas Pblicas proporcionou a troca de experincias, reexo e articulao entre empreendedores(as) e lderes so-

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ciais j atuantes na rea, trazendo importantes insights para o debate, hoje instalado na sociedade brasileira. A ampliao desse trabalho iniciado pela Ashoka e Avina em 2003 se d pela publicao deste livro e pela realizao de trs seminrios ao longo de 2005, em Recife, Rio de Janeiro e Assuno (Paraguai), que visaram dar continuidade ao debate iniciado em 2004 e tambm inserir outras pessoas nessa importante troca. Esperamos, com este livro, compartilhar distintas abordagens que inspirem uma maior participao da sociedade civil na formulao, implementao, scalizao e avaliao de polticas pblicas no Brasil, para ampliar o impacto de nossas aes individuais, organizacionais e coletivas. Queremos construir um pas democrtico e socialmente justo, em que predomine a co-responsabilidade na construo do espao pblico. Esses so pequenos passos, mas, indispensveis no longo caminho a percorrer para a transformao efetiva de nossa sociedade.

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Como influenciar polticas pblicas

Oded Grajew*

* Presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Ethos.

uita gente consciente e engajada em movimentos sociais no est satisfeita com os rumos das polticas pblicas em nosso pas e quer saber como fazer para inuenciar aqueles que decidem. Tambm perguntam constantemente por que me decidi a trilhar o caminho da participao social. Vou, ento, tentar responder estas e outras questes que dizem respeito atuao social e inuncia poltica. Em primeiro lugar, eu no sei por que resolvi abraar causas sociais. S sei que no consigo entender as pessoas que no o fazem. No posso viver nesta situao de desigualdade e injustia como simples espectador. Preciso agir e, para agir (isto eu percebi ao longo da minha atuao social), necessrio ter tempo para deixar as idias urem. Tambm importante entrar em contato com realidades, culturas e experincias diferentes. Tudo isso ajuda a adquirir um outro olhar a respeito das coisas, um olhar que permite criar processos que realmente inuenciem. Ajuda muito tambm nos conhecermos melhor. Isto essencial porque, quando vamos fazer algo

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de grande impacto, temos de estar inteiros, com muita conscincia dos nossos objetivos para sermos capazes de suportar a responsabilidade e as conseqncias dos nossos atos. Outro aspecto relevante que a causa ou projeto precisa ter legitimidade, ser importante para o conjunto da sociedade. S assim ganhamos a credibilidade e a fora necessrias para promover impacto na sociedade. Falando especicamente da minha experincia na Fundao Abrinq, penso que a causa em torno da qual a entidade foi construda a defesa dos direitos das crianas e adolescentes ganhou fora e legitimidade porque quase ningum pode ser contra os direitos das crianas e jovens. Em 1990, no entanto, esta causa era indita e as empresas no se interessavam em contribuir porque no sabiam ao certo o que signicava. No entanto, eu apresentei a idia para um grupo de empresrios do setor de brinquedos, pois, na poca, eu era presidente da Abrinq Associao Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos. Em seguida, fomos procurar o Unicef para me ajudar a torn-la realidade. No estava em busca de apoio nanceiro necessariamente. A entidade aceitou conversar conosco e, na reunio, apresentou os dados a respeito da situao da infncia e da juventude no Brasil, comparando-os, inclusive, com pases mais pobres que o Brasil. Ao nal, eu perguntei queles empresrios se poderamos car sentados e no fazer nada diante daquele quadro. Em seguida, indaguei aos representantes do Unicef se a entidade poderia nos ajudar a fazer alguma coisa. Os recursos nanceiros eram escassos, assim, senti-me estimulado a buscar outros parceiros, no s para suporte nanceiro, mas tambm como apoio de idias. E os resultados no tardaram a aparecer. O ECA Estatuto da Criana e do Adolescente foi adotado como poltica pblica no porque os deputados deram a idia, mas porque ns nos mobilizamos como sociedade civil para que o Estatuto adquirisse relevncia social. Outro exemplo a atuao da Fundao Abrinq pelo m do trabalho infantil. Fizemos uma pesquisa para saber quem beneciado pelo trabalho infantil. Viajamos por diversas regies para vericar quem est por trs disso

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no Brasil. Descobrimos fazendas utilizando mo-de-obra infantil em larga escala; no entanto, no visitvamos estes lugares para apontar o dedo e encontrar culpados. Atuamos na cadeia de quatro setores carvo, sapatos, suco de laranja e acar e lcool com o intuito de fazer com que o topo, ou seja, as grandes indstrias, assumissem o compromisso de eliminar o trabalho infantil em todas as etapas e fases do processo produtivo. Ns queramos propor alternativas, estabelecendo parcerias com universidades e outras instituies para retirar as crianas do trabalho infantil e encaminh-las escola. Um exemplo que sempre lembro o das usinas e plantaes de cana-de-acar. Na dcada de 80, quando realizamos o levantamento do setor, o governo era o nico comprador de lcool. Propus aos governantes de ento que s adquirissem o produto de fabricantes que no utilizassem mo-de-obra infantil. Todos consideravam a idia excelente, mas ela nunca se tornava realidade. Ento, com o apoio da Andi Agncia Nacional Pelos Direitos da Criana e de diversos empresrios, organizamos uma manifestao em frente ao Palcio do Planalto para mostrar a vergonha que era o governo subsidiar o trabalho infantil. A partir da, no foi mais possvel protelar a deciso e foi introduzida uma clusula contra o trabalho infantil nos processos de licitao. Relato este caso quando quero demonstrar a importncia da legitimidade de uma causa perante a sociedade e, tambm, da necessidade de se fazer presso em alguns momentos, para se chegar ao resultado desejado. Um outro aspecto importante para quem quer atuar em causas sociais tecer uma rede de relacionamentos. E como fazer isso? Conversando com outras pessoas, conhecendo outras instituies, fazendo amizades, sem necessariamente haver uma inteno por trs. Uma poro de parcerias que constru surgiu a partir do meu interesse em conhecer as pessoas, mesmo que no houvesse um interesse imediato neste contato. O presidente Lula, por exemplo, eu o conheci em 1984, quando telefonei e pedi um encontro para conversarmos. Lula mostrou-se surpreso, porque era a primeira vez que

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um empresrio tomava a iniciativa de fazer contato com ele. Queria conhec-lo por curiosidade pessoal e para entender melhor suas idias. No estava satisfeito com o que lia nos jornais. Como com o presidente Lula, muitas parcerias e amizades que z comearam a partir do meu interesse. Em resumo, penso que para inuenciar polticas pblicas necessrio ter fora poltica. Mas ningum nasce com ela. Precisamos conquist-la por meio da coerncia das nossas idias e atitudes, da nossa tica, da nossa coragem e at da nossa ousadia, pois no podemos ter medo do ridculo. Precisamos acreditar nas nossas causas. O Frum Social Mundial ilustra bem o que quero demonstrar. Em encontros empresariais de que participava, sempre propus uma agenda social dentro do Frum Econmico de Davos. Deparava-me, no entanto, com uma viso muito fechada e neoliberal, calcada na certeza de que o mercado tudo resolve. Incomodado com esta situao e estimulado por uma srie de experincias, tive a idia de realizar um Frum Social Mundial, um evento num lugar que reunisse organizaes, entidades, a populao, para que juntos zessem suas idias ganhar fora e legitimidade e, com isso, viabilizar propostas e aes que pusessem a economia a servio das necessidades das pessoas. Propus tambm que a data do Frum Social coincidisse com a do Frum Econmico para as pessoas perceberem as alternativas e escolhas ticas em jogo: quais so as prioridades humanas? Para onde vo os recursos? Quais os valores que devem nortear as atividades das organizaes e das pessoas? Compartilhei estes pensamentos com minha esposa e ela achou que fazia sentido. Conversei com outros companheiros para avaliar a viabilidade e o resto da histria vocs conhecem. De todas estas experincias que relatei at aqui, pude tirar algumas concluses. Em primeiro lugar, precisamos entender que poltica pblica no uma ao individual e voluntria. Trata-se de uma ao universal, que distribui direitos. Assim, necessrio congregar e organizar as pessoas em torno das idias para lhes dar fora e legitimidade. Em seguida, temos de convencer as pessoas a respeito da importncia da causa. Para tanto, existem as presses (ou lobbies), que devem ser feitas de maneira articulada. As empresas e

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outros setores, quando utilizam o lobby, fazem-no organizadamente, pois j conhecem os caminhos por onde passar para atingirem seu objetivo. preciso agir utilizando os mecanismos jurdicos, pressionar por meio da formulao de estratgias e de manifestaes pblicas, para que os governos no se omitam da sua responsabilidade. Por isso, penso que no se deve ter medo de fazer uso de mtodos um pouco incomuns, mas com grande ecincia em termos de presso democrtica e pacca. Alis, a presso s ser legtima se for coerente com a causa. Uma causa tica deve ser alcanada por mtodos ticos, democrticos e paccos. Atuar em causas sociais, como vocs podem perceber, no fcil e nem sempre romntico. Exige disciplina, perseverana, ousadia e humildade. Mas, principalmente, exige clareza de propsitos e delidade. Eu acredito, no entanto, que, mesmo diante dos infortnios e traies, quem mantm a delidade com a causa, no com partidos polticos ou instituies, no perde o rumo e est sempre preparado para construir parcerias, pressionar e obter resultados.

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Ouvidoria para o setor social: a gora possvel

Gilberto de Palma*

I. O paradigma clssico

* Diretor do Instituto gora em Defesa do Eleitor e da Democracia.

gora praa grega onde se davam as assemblias dos cidados. Servia tambm s trocas, atravs do mercado, e s artes, atravs do teatro e seus consagrados festivais. Curioso notar que a representao simblica no teatro cedia espao representatividade real na poltica. A polis se denia ento no pela quantidade, mas pela variedade; no pelo conceito implcito em muito ou grande, tal como indicado na palavra metrpole, mas por vrios, como sugerido em polifonia, polimorfo, politesmo ou se preferirmos, poltica... Diversidade e inclusividade j foram, um dia, inerentes democracia. E a qualidade desta se fazia no apenas pelos mecanismos do contrato de representatividade, mas pela riqueza do cenculo, multi e variado, uma vez que quantidade em si no garante a co-existncia da diferena.

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Para conferir o elevado grau de inclusividade, sublinhemos que a economia representada pelo mercado e a losoa, pela livre expresso e circulao de idias, dividiam o espao com a arte e a poltica. As representaes esto para a morte em oposio sobrevivncia; o mistrio, ao conhecimento e o agora, ao devir. Trafegavam no duplo registro do real e do imaginrio a partir de um nico espao, o espao do cidado. Com o advento do Estado centralizador e o ocaso da praa grega, temos, entre outras razes invariavelmente econmicas, a diluio desses dois conceitos: representatividade e representao; aquela tendo como pressuposto atividade e controle, e esta ltima, contemplao e catarse. Na modernidade, a passividade da representao assiste ainda substituio gradativa da arte pelo entretenimento e o vrios pelo muitos. Sem deixar de ser complexas, as sociedades modernas se tornam quantitativas, enquadradas, passveis de tradues numricas, sobretudo no que concerne produo, circulao e consumo de mercadorias, tanto para os assim chamados segmentos includos como para os excludos do sistema do bemestar. Ter o nome na praa acrescido de um adjetivo, bom ou ruim, passou a signicar apenas poder de compra, nada mais. A crtica democracia Abdicando da melanclica perspectiva de perda ou orfandade, convm lembrar que a Hlade dmokratas de Slon, Pricles e Clstenes, reformadores e arquitetos polticos, exclua, evidentemente, os estrangeiros residentes, os escravos e as mulheres. Alm disso, at onde se sabe, para no cair na cilada de romantizar a idade de ouro da democracia ateniense, no havia nada de encantador em muitos dos debates da antiga gora ou nas eclesiais sobre sorteio de misses burocrticas e aferies de responsabilidades, que muitas vezes no passavam de encontros tarefeiros. Todavia, estava plantado no corao do que viria a ser a cultura ocidental o conceito de igualdade e a todos (entre os homens livres) era reconhe-

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cido o direito ao acesso s contas pblicas e opinio divergente, sem constrangimentos. A democracia, contudo, nunca se libertou do estigma de presente de grego, expresso para a dubiedade das aes humanas e ou divinas, seja a Caixa de Pandora ou o Cavalo de Tria, como prenncio s pestes e aniquilaes. Redimensionada modernidade, a democracia produziu estranhos frutos, ora caixa ora cavalo, sem renamentos literrios: pensemos no Nacional Socialismo, eleito legitimamente pela vontade popular na Alemanha nos anos 30; pensemos nos governantes de Amrica Latina ps-regimes militares, costuradores de emendas s constituies para sucessivos apndices de mandatos e oportunas reeleies. Pensemos em ditadores posteriormente aclamados em democracias re-inauguradas; pensemos em referendos regidos por batutas de marqueteiros, governos eleitos pelo poder econmico e apelos de bordes publicitrios. Nem precisamos pensar em aporte nanceiro de empresas para caixa dois de partidos, na lavagem de dinheiro em crime organizado a comprar supremas cortes e derrubar mandatrios. Tudo aparentemente dentro das regras do jogo democrtico. J no sculo recm iniciado, quantos pases invadidos em nome da democracia, ao arrepio das Naes Unidas e de tratados internacionais? O que tm estes ingredientes a ver com a arkh dmokratas, com a soberania da dmos? A democracia se presta, contudo, entre outros esportes, para a crtica da democracia. Dessa crtica e a necessria vivncia de suas contradies depende o aperfeioamento possvel. De todas as precariedades, a menos precria ainda a velha praa. Tratemos de restaur-la luz agora da tecnologia e de outra globalizao. Para tanto, preciso questionar, corajosamente, as relaes entre democracia e legalidade; legalidade e legitimidade; democracia e educao; democracia e igualdade de direito ao acesso s informaes. De outro lado, no se pode ter exclusivamente no Estado o interlocutor para eventuais respostas, ajustes e equacionamentos nos temas acima suscitados pelo simples fato de que, na qualidade de regulador e guardio desses

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direitos e daquelas relaes, parte interessada e ao mesmo tempo desinteressada na colocao de luzes sobre o desenrolar dos acontecimentos, quando no, interessada em obscurecer determinados processos e informaes de interesse pblico no propriamente favorveis a instncias governamentais. Considerando esse quadro estrutural, a quem cabe questionar as relaes apontadas acima, no mbito das sociedades complexas e, sobretudo, desiguais? possvel que a mais conseqente crtica democracia possa ser formulada no a partir de suas contradies, mas apesar de suas contradies, aonde ela no chega, ou seja, o dcit de democracia. Examinemos se as distores apontadas acima no existem por conta da ausncia ou incompletude de valores democrticos justamente por parte daqueles que se constituem na razo de ser da democracia, a demos, ator sem o qual no existiria o consagrado discurso de um suposto poder: do, para e pelo (povo). Considerada a hiptese, a crtica ou ponto crtico recair forosamente no processo de construo e no no funcionamento de algo cujo projeto (inacabado) no foi formulado pelos interessados a partir de suas necessidades reais. Quando os supostos atores no foram os autores da democracia, que valor podem atribuir a uma Constituio, por progressista que seja? Em outras palavras, a praa est repleta, porm vazia. Considerada a hiptese do vrios se fazer substituir pelo muitos e a representatividade pela mera representao, no seria nada destoante, em sua expresso poltica, a substituio de povo por pblico. O que em nada destoa ainda da concorrncia entre a praa como poder de compra e a gora como espao do cidado. Duas formas de perceber a democracia H, genericamente, pelo menos duas maneiras de se contribuir para a democracia: tome um partido poltico que tenha em sua carta programa a proposta de, uma vez no poder, democratizar o poder. Atire-se s tarefas eleitorais e, uma vez no poder, exija o cumprimento do programa. Pode demo-

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3 Governana definido aqui na forma como um povo cria rgos, instncias e representaes para satisfazer suas necessidades, neste caso, participar e influenciar na governabilidade. 4 Educador colombiano, terico e livre pensador da construo do espao pblico e da democracia.

rar vinte anos ou uma vida toda. Tempo suciente para, em algum momento, perguntar (e convm perguntar): e se no chegar ao poder? E, principalmente, que garantia temos de uma vez no poder... etc... Uma outra forma parece mais simples e, no entanto, no a mais cmoda; exige-se a democracia j, sobretudo pratique-se j a democracia. Nada impede incorpor-la como um valor intrnseco s relaes e praticar no trabalho, na famlia, na escola, na comunidade e na amorosidade, o primado democrtico como respeito a mim e ao outro, ao eu e ao ns. Nada desautoriza a democracia como prtica cotidiana e como viso. Nesse sentido, no precisamos esperar o sinal ocial de largada vindo de cima, governos ou partidos, para cambiar o mundo do qual sou parte, represento e nele me reconheo. No , portanto, o grau de militncia que diferencia os dois plos de percepo de democracia acima apontados, mas o espao em que se realizam, de onde estou e me permito interferir no mundo. O militante partidrio e o no partidrio, mas que enxerga democracia como algo externo sua vida e seu cotidiano, constituem um mesmo lado da moeda. O outro lado pode ser representado pela noo de democracia como sentido pessoal incorporado a todas as formas de relaes, independente de regimes ou arranjos organizacionais. O Instituto gora em Defesa do Eleitor e da Democracia, organizao de governana3 com sede na cidade de So Paulo, realiza, por ocasio de encontros do Frum Social Mundial, pesquisas qualitativas sobre a percepo de democracia na Amrica Latina. Trata-se de um pblico supostamente informado, mais que isso, mobilizado. Segundo a mdia dos levantamentos, 74% dos entrevistados denem democracia como forma ou regime de governo, identicados com demandas e responsabilidades governamentais. Para Jose Bernardo Toro4, democracia antes de tudo cosmoviso, um valor individual espelhado na sociedade de indivduos livres e democrticos. Nesse sentido, um valor cultural transmitido no mbito da famlia, da escola, dos sindicatos, nas organizaes da sociedade civil, nas relaes de produo e, evidentemente, na forma como se autogovernam. Democracia, para esse

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pensador, ainda uma construo cultural, uma tomada de deciso da sociedade, mas garantida individualmente por valores e convices assumidos a priori. Diferentemente, portanto, da concepo de democracia como regime governamental que no diz respeito s pessoas em seu cotidiano, a democracia como cosmoviso, para se realizar, pressupe a construo de um espao pblico e de sujeitos iguais. Quem so os atores na construo desse espao? A proposta Embora ao Estado e s empresas, respectivamente, 1o e 2o setores, possa ser atribuda e reconhecida parcela de responsabilidade na construo do espao pblico5 e com ele, as bases da democracia na prtica, parece cada vez mais evidente a grande e diferenciada contribuio do chamado setor social nesta tarefa, no apenas como protagonista, mas como elite dirigente.6 Bernardo Toro diferencia classe dominante de classe dirigente atribuindo primeira papel de abertura de espaos em causa prpria e segunda a tarefa de construir espaos de participao em benefcio de todos e das legtimas aspiraes da sociedade. Relativamente nova e excepcionalmente diversicada, tal como o vrios da polis, o setor das organizaes sociais e demais atores associativistas se qualica como a frao vocacionada para pavimentar o espao pblico no estatal e exercer, de fato, ecaz controle social sobre os poderes constitudos. Para municiar a chamada sociedade da informao de informao propriamente crtica e formao cidad. Uma participao com consulta sistmica sociedade. Assim como no se faz necessrio esperar o sinal ocial de governos para viver a democracia, no se precisa de tribunais eleitorais para realizar consultas apenas de quatro em quatro anos s comunidades, muito menos para incidir em polticas pblicas de acordo com os resultados aferidos em consultas independentes.

5 Pblico no no sentido de consumidor, mas espao pblico no estatal, espao poltico de direito dos cidados. 6 Bernardo Toro, Jose. A construo do pblico. Rio de Janeiro: Senac.

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Com incidncias locais, regionais ou globais pe-se em marcha um duplo processo cultural que coloca o setor social como indutor de mudanas qualitativas. Duplo por construir interlocuo ao mesmo tempo com a sociedade civil (espao pblico) e com a sociedade poltica (poderes constitudos), aproximando-as na direo da maior legitimidade possvel, enquanto representados e representantes, sem excluir no mbito da primeira (sociedade civil) o chamado setor mercantil, as empresas e suas cotas de responsabilidade social. Somente nas redes de empreendedorismo e lideranas sociais como as da Ashoka e da Fundao Avina, para o fortalecimento do setor social e o desenvolvimento sustentvel na Ibero Amrica, por exemplo, h organizaes vocacionadas para o controle social com foco em variados poderes e setores tais como: Supremo Tribunal, oramentos municipais, imprensa, consumidores, legislativos, juventude, empresas, trco de animas silvestres etc., alm de acentuado interesse em inuenciar polticas pblicas de gnero, etnia, sade, educao, infncia, meio ambiente, indigenista etc. Essas organizaes, no entanto, muitas vezes, trabalham isoladas, reinventando metodologias de controle com diferentes pesos e critrios. Falta-lhes a perspectiva de complementaridade que pressupe, evidentemente, compatibilidade metodolgica, sinergia e comunicao. Muitas vezes os resultados so incipientes at por serem monotemticos, com foco em um nico campo de observao. o trabalho em migalhas, nunca passado a limpo, carece de impacto, escala e no chega a mobilizar a sociedade para inuenciar ecazmente polticas pblicas, em mbito local, regional ou internacional. No entanto, a rede sucientemente grande e variada para apresentar resultados e impacto transformador. Segundo dados recentes do IBGE, s no Brasil, o chamado setor associativista conta com perto de 300 mil pessoas jurdicas e sua participao no PIB considervel. Nos ltimos 25 anos, a curva ascendente e acentuada, contrastando com a dos ndices de desenvolvimento humano, cuja curva, inversamente, acentuada e descendente, nisso, em nada destoando da mdia

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da Amrica Latina. Pelo visto, algo no confere. Apesar dos esforos notrios, os resultados so desapontadores. Se os sculos XVIII e XIX foram os sculos dos Estados nacionais, o sculo XX, o do mercado, o que falta para o XXI vir a ser o dos cidados, ou mais precisamente, o sculo da sociedade civil? Sabemos que, no Brasil, com todas as distores apontadas acima, incluindo o dcit de democracia, tudo passa pela gura solar do Estado. O que faz efetivamente a sociedade civil brasileira para contra-restar os ndices de corrupo, impunidade, distribuio poltica de cargos, conivncia com a ilegalidade, caixa dois nos fundos partidrios, excesso de burocracia e sucateamento dos servios pblicos? O que fazem as trezentas mil organizaes assim denominadas do terceiro setor? O que pleiteiam? Parceria com o Estado? Evidentemente esses atores esto construindo o espao pblico em condies adversas, em um pas sem tradio democrtica, com largos perodos de exceo, subservincia, cultura do favor, crimes de concusso etc. Alm disso, internamente, h a incessante luta pela sustentabilidade das organizaes, que toma emprestado a perder de vista, horas e energias das atividades ns e misso especca. H, sobretudo, construo e apropriao de saberes especializados e nem todas as entidades conseguem deixar, ainda que por breve tempo, sua causa primordial para pensar no grau e na qualidade de sua conexo com o setor, com o pas, com o mundo. Das 300 mil organizaes, menos de 0,5 % so vocacionadas para o controle social e o restante se divide em dezenas de temas, entre emergentes e estruturais, reexos dos sistemas complexos em que se transformaram as sociedades humanas. Que aconteceria se as poucas organizaes orientadas para o controle social colocassem disposio ferramentas simples de controle, especialmente para as reas de saberes estanques onde as no vocacionadas constroem suas histrias de servios? Ferramenta de controle do oramento pblico, por exemplo. O universo de organizaes do setor social se divide em reas temticas como educao, sade, meio ambiente, direitos humanos etc. As polticas pblicas, igual-

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mente, possuem as mesmas reas; os oramentos municipais, idem, chamam-se rubricas e so essencialmente as mesmas reas. Se aquelas organizaes decidissem monitorar, com a ajuda de organizaes especializadas em controle social, o oramento e a produo legislativa das reas em que acumulam saberes e prestam servios s comunidades, sem fugir s suas misses, o que aconteceria? Que sucederia com o chamado setor cidado se, aps um perodo de ensaios, erros e acertos, a somatria dos monitoramentos oramentrios e legislativos especcos, realizados por diferentes organizaes se complementasse formando um controle social substantivo, oferecido sociedade e aos rgos de imprensa? Acaso perdurariam os ndices de corrupo, legislao em causa prpria, crimes de lesa ptria? No mdio prazo, o que aconteceria com os IDHs da Amrica Latina, por exemplo? Para ir direto ao ponto, no importa se os baixos ndices de desenvolvimento humano so de responsabilidade direta dos governos. A pergunta que importa : em que medida o baixo ndice de resposta dos governos s necessidades bsicas dos cidados de responsabilidade da sociedade civil? A questo no nova e, em geral, fez-se acompanhar de irrefutvel e anacrnico raciocnio: se os cidados no tm sequer as necessidades bsicas observadas, como podem realizar controle, monitoramento e cobrana dos agentes pblicos, fazer valer seus direitos? Ou ainda, de que me adianta uma Constituio democrtica se no posso ler ou no sei para que serve? Correto, apesar de primrio, e muito pertinente 25 anos atrs. O tempo, entretanto, passou... O que mudou, o que h de novo? Trezentas mil organizaes do terceiro setor e a grande possibilidade de sinergia entre as mesmas! A cota de responsabilidade das organizaes: o caso gora Aceitando a cota ideal da proposta, a colaborao do Instituto gora se far tendo por foco os parlamentos municipais. Originalmente desenhada para incluir pessoas (precisamente, o segmento juventude) e no organizaes na grande praa (leia-se incluso poltica), a Ouvidoria do Eleitor, um

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dos projetos do gora, uma tecnologia social que compreende trs processos, cada qual com suas ferramentas e produtos. Vejamos. 1o Processo - Monitoramento de Cmaras Municipais: sua ferramenta o levantamento jornalstico e seu produto, a informao. claro que esse produto se apresenta de vrias formas: terminais eletrnicos; pgina web, boletim eletrnico, boletim impresso, balanos legislativos, dados para imprensa e rdios comunitrias. Nesse sentido, uma agncia de notcias independente, especializada nos poderes legislativos locais, mas tambm um observatrio civil interativo. Como a informao toma diferentes destinos, parte desse 1 processo cumpre sua misso de informar, indo para as rdios, jornais e revistas. Outra parte d origem ao 2 processo, ainda no mbito da Ouvidoria; 2o Processo - Dinmicas de governana: sua ferramenta a pedagogia, seu produto, as sugestes de leis. Nesse sentido, o gora uma organizao de educao. O conjunto das informaes geradas no 1 processo aqui utilizado para produo e execuo de projetos em educao para diferentes segmentos: corpo funcional de empresas, escolas, centros comunitrios, universidades etc. Para atender um campo maior de clientes, o gora criou um cardpio variado de temas sobre poltica que no se restringe a Cmaras Municipais e suas produes legislativas, embora seja essa uma singularidade diferencial. A forma como as informaes tericas (sobre o que democracia, voto, estrutura poltica brasileira, Amrica Latina etc.) e as informaes prticas (sobre o que est acontecendo na cidade, na Cmara, com o seu vereador, com o oramento na rea de seu interesse etc. incidem nas comunidades) gera os produtos para o 3 e ltimo, mas, no nal processo de trabalho, pois, ao fechar-se um ciclo, outro reabre-se e recomea, assim sucessivamente. 3o Processo - Inuncia em polticas pblicas na esfera dos legislativos locais: a ferramenta a simples administrao de formulrios, j os

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produtos so as leis, leis nascidas dos prprios eleitores, a partir de suas necessidades. Comea, termina e recomea no parlamento. Cada ciclo, porm, confere maior legitimidade a um sistema que, antes tido como obrigao, percebe-se agora, cada vez mais como um direito: escolher, votar, acompanhar e participar dos mandatos. Esquematicamente,Tecnologia social:Dinmicas de GovernanaAtivismo suprapartidrio

Controle Social de Legislativos

Incidncia em Polticas Pblicas Locais

Adm. da Informao

A Ouvidoria do Eleitor funciona como um sistema elptico de informao. Sua nalidade contribuir para o controle social com incidncia em polticas pblicas locais. Sua viso: uma ouvidoria em cada municpio. As informaes colhidas nas Cmaras, ou informaes-geradoras, chegam ao ouvidor (Ncleos de ouvidores) treinado pelo gora para

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exercer essa funo nas escolas, empresas e centros comunitrios. Estes recebem demandas (sugestes, crticas ou perguntas) em formulrios padronizados, de seus pares, colegas de trabalho, moradores do bairro etc. As demandas, depois de repassadas central de controle dos dados, protocolada no gabinete de um vereador escolhido pelo demandante ou Comisso de Legislao Participativa das Cmaras para, em seguida, entrar no rito parlamentar. O que se espera no que todas as propostas se transformem em leis, mas que o representante poltico responda demanda do representado. As Ouvidorias esto presentes em duas capitais, So Paulo e Rio de Janeiro, alm de algumas cidades do interior paulista. Somente em um municpio de So Paulo, em seis meses de funcionamento da Ouvidoria do Eleitor, de 19 demandas, 12 foram atendidas, as restantes continuaram em tramitao. Quando indicaes de leis feitas pelos eleitores se transformam efetivamente em leis porque foram referendadas e at aprimoradas pelo vereador. Isto significa, a mdio prazo, operar mudanas na cultura poltica, especialmente em pequenos municpios, onde predominam as velhas frmulas clientelsticas, de subservincia e favor. A figura do vereador como facilitador de um projeto de cidade concebido pelos prprios cidados se ope figura do vereador despachante. Ope-se ainda j esperada obsesso pela reeleio, na medida em que ao referendar, sem transigir, legtimos anseios da sociedade, no ter esse vereador que se preocupar com gastos de imagem na campanha. Os eleitores aprendem rapidamente a identificar quem legisla a seu favor. Os legisladores apreendem essa lgica e escolhem livremente que caractersticas pretendem imprimir a seus mandatos, se o antigo paradigma ou o novo que se impe.

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Informao

Ouvidoria do EleitorVereadores Cmara Municipal Ministrio Pblico Imprensa ONGs e Universidade Conselhos Municipais Representantes RepresentadosInformao

Central Triagem Encaminhamento Acompanhamento Retorno ao eleitor

Ncleos de Ouvidores Escolas Empresas Centros Comunitrios

Eleitores

Mas, se a Ouvidoria do Eleitor proposta pelo Instituto gora tem por pblico nal os eleitores em geral, o que vem a ser a Ouvidoria para o Setor Social? Imaginemos: a) No lugar de pessoas fsicas (eleitores), pessoas jurdicas (organizaes da sociedade civil). b) No lugar de treinamento para lderes comunitrios (os ouvidores), seleo ou eleio de um responsvel, internamente, para receber as informaes geradoras. Em organizaes sociais no h necessidade de esforo pedaggico, h viso crtica, massa crtica e potencial valor agregado para informar e formar cidados. c) No lugar de boletim informativo, um apanhado geral da produo legislativa, mas com nfase na rea de poltica pblica de interesse da organizao consorte.

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d) Do ponto de vista da Ouvidoria, ou do input de comunicao, no lugar de sugestes, crticas, ou perguntas por vezes carentes de fundamentao, indicaes de leis qualicadas, porque fruto de saberes e expertises. e) Ainda do ponto de vista da Ouvidoria, no seriam apenas indicaes de leis qualicadas que chegariam, mas especialmente preciosas no plano da legitimidade, porque fruto de dinmicas de governana produzidas no mbito das comunidades, onde as organizaes consortes operam saberes e desenvolvem relaes.

Ouvidoria para o Setor SocialVereadores Cmara Municipal Ministrio Pblico Imprensa Universidade Conselhos Municipais Representantes Representados Rede de Controle Social

Informao

Orgs. do Setor Social

Sociedade civil

Informao

Imaginemos agora que, ao invs de um simples clipping sobre tudo o que se passa nos parlamentos locais, a Ouvidoria do Setor Social envie s diferentes organizaes dados referentes s metas e execuo do oramento pblico especco da rea de atuao de cada uma.

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Exemplo de tabela de controle oramentrio7Efetividade Eccia Ecincia Efetividade Accountability

Resultado pesquisa satisfao cidado

Meta longo prazo 2006-2008

Contrato de gesto e clusula

Necessidade ou problema

Custo unitrio realizado

Meta curto prazo- 2006

Resultado obtido 2006

Custo total realizado

Custo total Previsto Valor e Fonte

rea/setor Responsabilidade

Gerente da meta

Correes Metas ou Planos

A partir disso esto dadas as condies para um duplo exerccio de controle social: produo legislativa e execuo oramentria, porm, em rede com resultados exponenciais. Eis um exemplo de como uma nica organizao de controle social pode contribuir, se redirecionar esforos para adequao de uma ou duas ferramentas simples, disponveis para uma quantidade ilimitada de outras organizaes. A proposta ampliada Consideremos que outras organizaes de controle possam tambm colocar disposio mais ferramentas complementares. Teremos um cenrio em que uma rede matriz que dever se organizar dividindo competncias e desenvolvendo tecnologias prticas estar suprindo uma rede secundria, conferindo escala ao trabalho de controle social. Teremos ento, concretamente, um empreendimento capaz de fortalecer o setor e provocar redimensionamentos de legitimidade na esfera do Estado e das instituies. Especialmente se os resultados da atuao dessa rede estiverem sistematizados e disponveis para a imprensa.

7 De autoria de Ester Scheffer, contadora e fiscal estadual, lder Avina e colaboradora do Instituto gora no Rio de Janeiro. O modelo de tabela ferramenta facilitadora do controle social.

observaes

N ordem

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Essa proposta ampliada dever partir de uma anlise pragmtica do universo do setor social com a nalidade de gerar um perl de competncias ou o mapa dos ativos, na ordem e uso dos seguintes ltros: 1. organizaes sem ns lucrativos, sem ns partidrios e sem ns religiosos; 2. organizaes no lantrpicas; 3. organizaes orientadas para o controle social; 4. organizaes temticas interessadas em participar da rede de controle social e promover inuncia em polticas pblicas. Na verdade os itens 1 e 2 so pr-requisitos, 3 e 4 so os atores propriamente ditos, separados em rede matriz e secundria. O item 3, rede matriz, deve ser submetido a nova srie de ltros porque o exerccio meramente classicatrio j dene os possveis campos de incidncia em polticas pblicas. Por exemplo: a) organizaes de controle com foco nos poderes constitudos (legislativos, executivos e judicirios); b) organizaes de controle com foco em poderes difusos (consumidores, contribuintes, eleitores); c) organizaes de controle com foco em poderes institudos (mdia, empresas, licitaes pblicas e agncias reguladoras). Inicialmente, trata-se de um exerccio classicatrio a partir de perguntas abrangentes: quem faz o qu, onde, com que foco, em que campo, sobre qual tema ou temas, com quais ferramentas? Mas no se trata apenas de desenhar um mapa o mais prximo possvel dos recursos institucionais instalados. O primeiro trabalho desses atores indutores ser a conexo operacional, isto , no podero fornecer ferramentas ecazes com indicadores de avaliao para a rede subseqente sem compatibilizar metodologias que permitam complementaridade de resultados entre si, ou seja, a construo de conectores. Em resumo, as etapas podem ter a seguinte ordem: mapa dos ativos, em seguida, construo de conectores entre si e, s ento, disponibilizao de ferramentas complementares para a rede usuria.

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8 Ribeiro, Renato Janine. A Democracia. So Paulo: Folha. 9 Extrado de um manual do 3 setor (Ipaz Assessoria de imprensa para organizaes sociais.)

Alguma diculdade se impe e foroso distinguir, numa primeira abordagem organizativa, processos, programas e produtos. Conceitos como combate corrupo, controle social, governana e inuncia em polticas pblicas comparecem como temas, imbricados na cultura do setor social, muitas vezes como sinnimos ou direo a ser perseguida, comportamentos etc. Operam, no plano das idias, como ims semnticos8 onde uma expresso chama outra, atraindo-se reciprocamente, enriquecendo o iderio e, especialmente o discurso. Porm, no plano operacional so processos. Complementares por certo, mas com estratgias e especicidades diferenciadas, sobretudo, momentos diferentes. Aqui convm tomar emprestada a explicitao esquemtica da tecnologia social do gora e perguntar: o que processo e o que produto? Quais ferramentas transformam o primeiro no ltimo? No chega a ser uma operao fcil, claro, embora seja factvel. A primeira questo sempre sobre a possibilidade, depois sobre a diculdade. Isto porque, considerando os diferentes graus de desenvolvimento das organizaes, nem sempre ca claro para elas qual dos ims semnticos acima tem tangibilidade ou traduo prtica em seu dia-a-dia, na forma de processos, produtos e ferramentas. Em outras palavras, a organizao forjou sua especialidade processual? Ou realiza parcialmente todos os processos e enfrenta a prpria incompletude chamando a tudo pelo nome genrico de combate corrupo? Isso no signica que determinadas entidades devam car de fora. Ao contrrio, participar na rede e nela descobrir sua singularidade (e fragilidades) aproveitar-se da rede para desenvolver-se. Ou redes s servem quando teis para determinados ns desprezando-se os meios intederminados? Trata-se, enm, de um esforo de orquestrao, onde a partitura concebida, evidentemente, pelos prprios instrumentistas (as organizaes), munidos das tecnologias sociais instaladas, por elas desenvolvidas e testadas. Em seguida, a questo de arranjo, que varia de pas para pas, conforme o cenrio e as disposies dos atores nos diferentes setores sociais da Amrica Latina. Em outras palavras, para usar uma frase de efeito, no podemos mudar os ventos, mas podemos ajustar as velas9.

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Organizando a partitura em movimentos (partes constitutivas) Rede Nacional de Controle SocialONG Tema Foco, Pblico AlvoGrupos Vulnerveis

Ferramentas

Campo de Incidncia

Resultados ObjetivosCumprimento e Melhora da Lei e Instituies Iniciativa Popular Boa Gesto dos Recursos Publicos Atendimento das Necessidades do Cidado Desenvol. Cultura Poltica Eleitor Cumprimento do Cdigo do Consumidor Cumprimento da Lei ECA Boa Gesto de Recursos Pblicos Garantia de Direitos das Mulheres

Ferramenta para a Rede

A (SP)

Dir. Humanos

Advocacia

Judicirio Executivo

Estratgia de Consultoria Jurdica Metodologia de Acomp. e Incidncia em Leis Modelo de Organizao Cidad e Demanda Metodologia Participao e Avaliao de Oramento Pblico

B (SP) C (BA)

Democracia

Eleitor

Governana

Legislativo Local Executivo e Legislativo

Combate a Corrupo

Cidado

Governana Instrumento Participao e Avaliao Oramento Pblico Comunicao

D (MT)

Transp. Fiscal

Cidado

Executivo e Legislativo Local

E (RJ) F (RJ) G (DF) H (DF)

Cidadania

Eleitor Consumidor Jornalistas

Opinio Pblica Empresas e Governos Opinio Pblica Legislativo Executivo

Estratgia de Comunicao Assistncia Jurdica Metodologia de Anlise de Mdia

Mercado Direitos Criana e Adolescente Democracia

Advocacia Controle da Mdia Monit. de Oramento Pblico / Lobby Lobby

Cidado

Estratgia de Lobby

I (DF)

Direitos da Mulher

Mulheres

Congresso Nacional

Estratgia de Lobby

Outras Organizaes Parceiras para Grupo Executivo - Em Aberto Parcerias Estratgicas em Articulao

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O exerccio expresso nessa tabela de sete campos verticais, um estudo preliminar para uma primeira elaborao do mapa das competncias para controle social e incidncia em polticas pblicas, produzido por representantes de cinco organizaes da rede Avina. Estudo iniciado em janeiro de 2006, intitulado Convite iniciativa / Rede de controle social, proposto por dois lderes parceiros, foi prontamente respondido pela representao Recursos Marinho-costeiros e Hdricos, com o apoio e o incentivo das demais representaes, notadamente as de Sudeste-DF e de Curitiba. No primeiro campo, esquerda, gurariam os nomes das organizaes, aqui omitidos propositadamente em razo de ser um processo de autoria coletiva, ainda em fase preliminar. As entidades esto preenchendo os campos de acordo com a proposta do mapa. Como se trata de um trabalho em aberto e em curso, as discusses geradas para o contedo dos campos facilitam o renamento de critrios para a formao da rede. Na parte inferior, consta a indicao da unidade federativa em que atuam, embora algumas organizaes tenham abrangncia em mais de um estado ou capital. Os campos 2 e 3 apresentam, respectivamente, os temas e os focos, isto , do geral particularidade, como construir territorialidade de s