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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA E BACHARELADO A DECREPITUDE FEÉRICA DE RIMBAUD Luiz Henrique Bozzo Moreira Curitiba Junho 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA E BACHARELADO

A DECREPITUDE FEÉRICA DE RIMBAUD

Luiz Henrique Bozzo Moreira

Curitiba Junho 2010

LUIZ HENRIQUE BOZZO MOREIRA

A DECREPITUDE FEÉRICA DE RIMBAUD

Trabalho apresentado para a Disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica do curso de História na Universidade Federal do Paraná. ORIENTADOR: PROF. DR. José Roberto Braga Portella.

Curitiba Junho 2010

2

« Ce qui fait ma supériorité, c’est que je n’ai pas de cœur »

Arthur Rimbaud

i

RESUMO: A presente monografia procura estender o conceito de símbolo e

correspondência de Arthur Rimbaud – mais especificamente no que diz respeito às

poesias presentes em Les Illuminations – para além de simplesmente utilizar sua obra

como uma maneira de reforçar o seu contexto histórico e, assim, reduzi-la a simplismos

e generalizações. Para tanto a pesquisa se inicia a partir da reflexão proposta por Dolph

Oehler e a fuga romântica da realidade, passando por uma diferenciação entre a poesia

de Rimbaud destes que o precederam feita por Marcel Raymond. Desta forma, dadas as

condições básicas para a reflexão sobre a obra do poeta francês, parte-se para um estudo

das lettres du voyant, em que o conceito de símbolo surge a partir do momento em que

Rimbaud repensa o trabalho do poeta como a necessidade de se fazer vidente. A idéia é

entender como o poeta, ainda que sob grande influência dos românticos, dá os primeiros

passos rumo à ruptura não só com o próprio modo de escrever poesia, mas também com

a maneira de interpretar o mundo.

Palavras-chave: simbolismo; modernidade; literatura; poesia; correspondências.

ABSTRACT: This document discusses the concept of symbol as well as of

correspondence presented by Arthur Rimbaud – particularly focusing on Les

Illuminations – intending to surpass the usage of his works as a mere consequence of

historical facts, thus reducing it to generalizations and simplifications. For this task this

research is developed basically from the studies of Dolph Oehler and the romantic

escapism from reality as well as of Marcel Raymond’s attempt to differ Rimbaud’s

poetry from those who preceded him. This way given the basic conditions to proper

think over the French poet’s work, the study of the letters du voyant takes place. It’s

important to note that it’s on those letters that Rimbaud formulates the concept of

symbol once he bethinks the poet’s occupation, together with the necessity one has to

make of oneself a seer. Therefore, this essay intends to understand how the poet

succeeds to make his first moves towards not only a rupture against the Romantic

influence over his works but also against the way of writing poetry as well as the way to

face the world.

Keywords: symbolism; modernity; literature; poetry; correspondences.

ii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 1

Capítulo I. A RELAÇÃO HISTÓRIA-LITERATURA

1 Panorama geral.............................................................................................................. 4

2 Historia e narrativa.......................................................................................................11

Capítulo II. RUMO À DESTRUIÇÃO

1 A questão das artes...................................................................................................... 18

2 Individualismo............................................................................................................. 23

3 As origens do Simbolismo........................................................................................... 26

Capítulo III. A DESTRUIÇÃO DE RIMBAUD OU UM PREÂMBULO PARA O

FAZER-SE VIDENTE

1. Da atmosfera decadente e a ruptura com o mundo..................................................... 32

2. Rimbaud e o Simbolismo........................................................................................... 36

3. O presságio interior do poeta...................................................................................... 39

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 45

REFERÊNCIAS............................................................................................................. 48

APÊNDICE.................................................................................................................... 50

iii

INTRODUÇÃO

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud nascido em Charleville, no interior da França, no

ano de 1854, foi abandonado por seu pai logo nos primeiros anos de sua infância. Sendo

considerado por seus professores uma criança talentosa ganhou, aos quinze anos, vários

prêmios. Nesse período também, já dominava diversas matérias, entre elas o latim. Em

1870, chega a Charleville um jovem professor de retórica, Izambard, que se tornaria o

confidente de Rimbaud, além de lhe apresentar autores como Rabelais, Hugo, Banville,

entre outros. Nesse mesmo ano, foge algumas vezes de casa em direção à Bélgica, mais

precisamente para a cidade de Charleroi, apresentada em alguns de seus poemas; e,

durante outubro do mesmo ano, durante sua estadia, compõe alguns de seus poemas,

engajado fortemente em assuntos políticos. Em 1871, após sua cidade ser invadida por

alemães, foge para Paris, onde conhece Paul Verlaine, com quem teve um romance,

terminado quando aquele dispara contra o ombro de Rimbaud e é preso. Depois, escreve

a sua conhecida obra Une Saison en Enfer que seria publicada na Bélgica em 1873, e

seu outro conjunto de poemas, Les Illuminations de 1874, viria a ser publicada somente

quase dez anos mais tarde por Verlaine. Subseqüentemente, Rimbaud teria desistido de

continuar com suas poesias, tendo declarado mais tarde que, se assim continuasse, elas

o deixariam louco. Até o fim de sua vida, Rimbaud passa por diversas localidades

européias até se estabelecer em Harrar, na África, onde viveu até quase o fim de sua

vida como negociante e traficante de armas. Em 1891, um tumor em sua perna direita

lhe obrigou a retornar a França, onde teve sua perna amputada, e morreria ainda nesse

mesmo ano.

Hugo Friedrich ainda resume sua vida da seguinte forma: uma atividade poética

começando na adolescência e interrompendo-se depois de quatro anos; o resto, um

completo silêncio literário, um irrequieto viajar por toda a parte: do que teria gostado

seria de chegar à Ásia, mas teve de se contentar com o Oriente Próximo e a África

Central; dedicado a todo o gênero de ocupações em exércitos coloniais, pedreiras,

firmas de exportação e, por fim, no tráfico de armas para o Negus da Abissínia; além

disso, a relatórios para sociedades geográficas sobre territórios da África até então

inexplorados. Naquele breve período de atividade poética, um ritmo furioso de evolução

que, já após dois anos, tinha feito ir pelos ares não só o próprio início, mas também a

tradição literária que se achava atrás desse e a criar uma linguagem que, ainda hoje,

1

continua sendo uma linguagem originária da lírica moderna: esses são alguns feitos da

pessoa de Rimbaud. Sua obra corresponde a essa impetuosidade1.

A idéia de trabalhar a obra de Rimbaud surgiu da oportunidade que tive durante

o período junto ao PET História de desenvolver a pesquisa enquanto se discutia a

mudança do olhar do indivíduo com a chegada da modernidade. Textos como os de

Simmel2 e Charney3 colaboraram para pensar esta mudança e, mais ainda, como há uma

mudança significativa de comportamento do indivíduo com o desenvolvimento do

espaço urbano e o surgimento das metrópoles. Aliado, assim, a essa pesquisa

desenvolvida pelo grupo, com o objetivo de pensar o surgimento do cinema, ou seja,

como o cinema acabaria por influenciar na vida de uma pessoa, surgiu então a idéia de

pensar que discurso a própria literatura estaria construindo a partir dessas mudanças

referentes ao fim do século XIX e início do século passado. Bermann, já havia dado o

pontapé inicial para esta questão ao partir de algumas poesias de Baudelaire para

demonstrar como a relação entre as pessoas havia, também, mudado.

O interesse em Rimbaud se deu pelo fato de, num período tão curto, sua poesia

ter sido tão variada, aliado a determinadas características de sua obra que, se não a

distingue das de seus contemporâneos, mostra como o seu modo de fazer poesia mudou

– quase que – abruptamente num período tão curto de tempo. Seria, talvez, o próprio

ritmo desses novos tempos que estariam resultando nesta mudança mental4 no autor.

Dessa forma, o trabalho se divide em três capítulos. O primeiro capítulo se

propõe a elucidar algumas questões sobre a relação entre os campos da História e da

Literatura que é tudo, menos algo recente. Assim, num primeiro momento, serão

apresentadas diferentes perspectivas da discussão historiográfica e como a literatura

passa a ser encarada pela História, seguindo por uma discussão sobre história e

narrativa, feita a partir das idéias desenvolvidas por Hayden White e Dominick Lacapra

que buscam repensar não só o próprio trabalho do historiador, mas também a própria

questão da verdade histórica.

A seguir, o segundo capítulo abordará algumas informações essenciais sobre o

contexto de Rimbaud e do Simbolismo. Para tanto o capítulo será dividido em dois

1 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Duas Cidades. 1991.p.70. 2 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976 3 CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo, Casc & Naify, 2001. 4 Aqui empresto o idéia de mudança na vida mental que Simmel propõe em seu texto A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.

2

momentos, tentando ir de uma perspectiva mais ampla para algo mais detalhado: o

primeiro se refererindo a um contexto mais amplo das transformações existentes na

Europa do século XIX, tanto no panorama artístico com o urbano. A segunda parte

englobará tanto a discussão sobre a questão da indivídualidade e como ela surge no

ambiente urbano, como também uma apresentação das origens do Simbolismo,

relacionando-as com a questão da modernidade para, no capítulo seguinte, entender

como a lírica de Rimbaud se relaciona com esse contexto.

No terceiro capítulo serão expostas as principais idéias a respeito do

Simbolismo, bem como das características da poesia rimbaudiana, para se entender

determinados aspectos em sua obra. Assim, a tentativa é entender qual é o discurso que

Rimbaud constrói enquanto destrói, entre seus versos, a própria realidade a sua volta.

Por fim, nas considerações finais da pesquisa, tentarei expor os principais

pontos levantados ao longo do trabalho, tentando responder algumas perguntas. Ao fim

tem-se, em anexo, os principais poemas utilizados para fazer esta monografia.

3

I. A RELAÇÃO HISTÓRIA-LITERATURA

Panorama geral

Não é de hoje que a historiografia e a teoria literária estabeleceram um diálogo

significativo no universo acadêmico, não só internacionalmente, mas também no âmbito

nacional. Pode-se dizer que a própria história adquiriu novos horizontes de pesquisa,

mas foram os historiadores que passaram a refletir sobre o estatuto narrativo de seu

conhecimento. Para se ter idéia do âmbito desta discussão, basta conferir atas de

congressos de historiadores, nos quais discussões sobre a tradição literária são cada vez

mais presentes, ou simplesmente fazer uma breve busca na internet sobre o tema.

Apesar disso, o diálogo, muitas vezes, parece estar se tornando repetitivo, renitente – e

mesmo por vezes a literatura volta a ocupar o lugar dos documentos que ela

supostamente tenderia a subverter, como Daniel Faria escreve5 para pensar sobre as

obras de Baudelaire e Dostoievski. Isso seria o caso encontrado, por exemplo, em obras

como as Machado de Assis e sobre o que elas teriam a dizer sobre a história social do

Rio de Janeiro6.

A possibilidade da utilização da literatura como documento histórico foi

possível, como bem menciona Cristiane de Silveira7, graças ao debate historiográfico

que se seguiu a partir dos anos 1960, a partir da problematização de novos temas e

objetos, colocando-os no campo das paixões e não somente das racionalidades,

buscando análises que privilegiavam os sentimentos e as sensibilidades na re-

construção da história8. A pesquisa histórica que procura trazer à tona os sentimentos,

as sensibilidades, as paixões dos sujeitos em determinadas épocas, tem como centro das

preocupações as relações de poder que se fazem por meio dos jogos políticos. Ou seja,

O plano político ao qual esta história se refere não está presente apenas nas relações travadas

pelo Estado, mas nos diferentes âmbitos da vivência social, pois o político “não constitui um

setor separado: é uma modalidade da prática social” que se concretiza no cotidiano e é 5 FARIA, Daniel. Quando os poetas se despediram da felicidade: Baudelaire e Dostoievski criticam as utopias. In: História Questões & Debates. Curitiba, Paraná, 2005.. 6 Idem, p. 62. 7 SILVEIRA, Cristiane de. Entre a história e a literatura: a identidade nacional em Lima Barreto. In: História Questões & Debates, Curitiba, Paraná, 2005. 8 Idem, p.43.

4

reelaborado de acordo com as expectativas e experiências pessoais. Sendo assim, os registros

históricos não ficam meramente circunscritos às práticas oficiais.9

Além disso, como a autora ainda complementa, questionar onde realmente estão

os cruzamentos entre a história e o romance ficcional constitui-se uma tarefa

complicada. No entanto, acredita-se, ainda, que por meio da literatura o historiador

possa alcançar uma distensão maior entre os limites de ambos e contribuir para o

próprio trabalho da construção histórica, privilegiando os sentimentos dos sujeitos que

procuraram refletir sobre o momento vivido, a partir das possibilidades de vivências

pessoais e de seus contemporâneos10. O cruzamento entre história e literatura

possibilitaria, assim, uma maior flexibilidade para se pensar a história e os vários

elementos constituintes de sua (re)construção, pois, como Silveira entende, não há

como restringir-se a uma única visão dos objetos em análise, mas de pensar em

perspectivas que podem apontar diferentes estilos de representação. Desse modo, se

instiga a procura de novos elementos para sua construção.

Neste sentido, seria importante destacar o fato de que a produção da obra

literária está associada ao seu tempo, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos

de agentes sociais contemporâneos à sua criação e mesclando elementos de ficção e das

possíveis realidades existentes no momento da criação literária11. Dessa forma, a obra

de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com

intermediação entre o real e as aspirações coletivas. A obra literária constitui-se, assim,

parte do mundo, das criações humanas, e transforma-se em relato de um determinado

contexto histórico-social; É seguindo esta linha que qualquer obra literária seria

evidência histórica objetivamente determinada – isto é, situada no processo histórico12.

Para Sevcenko13, por outro lado, o estudo da literatura traz consigo nova

possibilidade de análise do passado, por meio da fala dos não ajustados socialmente. A

narrativa literária cria a possibilidade do vir a acontecer, dos sonhos que revelam outro

cotidiano que não apenas o dos vencedores, faz alusão a sujeitos que reelaboram sua

prática social e os transforma em realizadores de sua própria história, permitindo,

9 Idem, p 44. 10 Ibidem. 11 Idem, p.45. 12 CHALLOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Lima. A história contada. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1998. p. 7. 13 SEVCENKO, Nicolau apud Silveira, Cristiane de. Op. cit, p.45

5

finalmente, o conhecimento de uma realidade que não apenas a sacralizada pela história

dos vencedores.

A literatura – sejam romances, crônicas ou contos – lida com o estudo do

imaginário social, cuja manifestação se dá por meio de imagens e discursos, resultado

do permanente campo de tensão entre os grupos, e neste embate os sujeitos conferem

sentido e explicação ao mundo. A representação seria entendida como um instrumento

de reconhecimento de um objeto ausente e de exibição de uma presença, nos quais

permanece uma constante relação entre imagem presente e objeto ausente14. A luta pela

sobrevivência cotidiana confere lugar aos sujeitos e permite a divisão da sociedade em

grupos, cujas práticas existem nas representações transpostas para a vivência dos

sujeitos, por meio das falas, das práticas político-sociais e dos discursos elaborados

pelos diferentes grupos sociais. Assim,

As representações não são menos reais que as ações concretas, mas são a própria realidade, pois

a ação não existe antes de ser pensada, imaginada na realidade dos sujeitos que a concebem e a

amealham.15

Desta forma, se tem a literatura pertencendo ao campo das representações e

caberia, assim, ao historiador reinterpretar o encontro entre os mundos dos textos e dos

leitores, e como os leitores incorporam e se apropriam de diferentes formas dos textos

em momentos históricos distintos. Os leitores, com efeito, não se confrontam com textos

abstratos, separados da materialidade: manejam objetos cujas organizações comandam

a leitura, sua apreensão e compreensão partindo do texto lido16.

Nessa linha, tem-se a possibilidade de pensar as ficções literárias não como

cópias da realidade, mas como possibilidades de acontecimento, as quais estão

intimamente ligadas com os sentimentos e a imaginação de quem faz parte do momento

de sua confecção. Assim, para Silveira, a criação literária não seria uma cópia do

momento da sua realização, mas tudo que fosse escrito se tornaria, até certo ponto,

verossímil, ou seja, passível de acontecimento.

Por outro lado, a problemática do empobrecimento deste tipo de discussão se

deve, no mínimo, pelo fato de as teorizações sobre o teor do texto literário sempre

14 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 5, 1991. 15 SILVEIRA, Cristiane de. Op.cit. p. 47. 16 CHARTIER, Roger apud Silveira, Cristiane de. Op. cit, p.47

6

retornarem ao tema do mimético, e de maneira simplista17. Explicando: ao ser tratada

como fonte historiográfica, a questão mais recorrente sobre a tradição literária ainda é

sua relação com o real, que nas leituras mais sofisticadas inclui os valores, as crenças e

as ideologias da sociedade. Mas mesmo que a realidade seja tratada como dotada de

dinamismo, no sentido de um processo gerado por conflitos, quando se estabelece para

o discurso literário o espaço da reduplicação, da ilusão ou da representação, é como

se ali as palavras tomassem um aspecto inerte – na melhor das hipóteses “crítico” diante de um

estado de coisas definido. Sendo assim, o texto literário sempre surgirá na historiografia como

complemento, ilustração ou derivação de outras histórias que, supostamente, discutiriam o real

de modo mais direto. 18

Como se o valor da obra de Flaubert ou Balzac – para já adentrar o contexto anterior ao

que se refere esta pesquisa – residisse no fato de ela reforçar ou clarificar aquilo que a

historiografia diz sobre o século XIX na França.

Faria ainda diz que não se trata de negar a relevância da interpretação de um

texto literário no horizonte da mímesis, mas de se observar que a reiteração de apenas

um tipo de leitura pode esgotar rapidamente as possibilidades da história literária,

transformando-a num passeio ocioso pelo jardim do saber. Além do que, ao se ter o

texto literário como ilustração daquilo que o historiador já sabia de antemão, esse fica

reduzido ao papel de fonte reiteradora da maior proximidade entre historiografia e

realidade. Afim de melhor explicar, Faria ainda cita como exemplo um possível estudo

sobre a violência urbana no Brasil dos anos 1970 complementado com incursões à obra

de Rubem Fonseca – como se esta não obrigasse o historiador a refletir sobre o estatuto

do discurso sobre a violência, ou da violência como estratégia narrativa. Neste caso,

seria interessante se perguntar se os contos de Rubem Fonseca seriam documentos

confiáveis para a história social da época19. Do mesmo modo, deveria ser pensado – e

nisso as palavras são minhas – se, por exemplo, se pretendesse estudar o contexto social

brasileiro do fim do século XIX a partir da obra de Coelho Neto, autor conhecido por

retratar um fato histórico como criação literária – transformando pessoas, como ele

mesmo, Aluisio de Azevedo ou Olavo Bilac em personagens da trama.

Mas para isso existem alternativas, como retrata o autor:

17 FARIA, Daniel. Op.cit. p.63. 18 Idem, p.64. 19 Ibidem.

7

uma questão complementar ao problema do mimético refere-se ao estatuto propriamente retórico

do texto literário, como um discurso que se dirige à pluralidade dos leitores, direcionado à

produção de um efeito no público, construindo subjetividades não apenas no sentido de

interpretação da realidade, mas também no de estabelecimento de formas de ação.20

Assim, estabelece-se o texto como evento, devir – e não retrospectiva do que já

foi feito, além da literatura como acontecimento ela própria. Ao tratá-lo como

documento, dificilmente o historiador pensa o texto literário como estratégia de

intervenção no mundo, como tentativa de incitação e choque, como discurso

participante das polêmicas de um certo tempo.

Mas, se os novos historiadores, como Faria escreve, raramente o fazem, os

próprios literatos o fizeram, e não poucas vezes. É nesse sentido que a intenção do autor

com seu artigo seria retomar as discussões de Dostoievski e Baudelaire sobre a

literatura, no intuito de apresentar poéticas que visavam à ação, em vez da mera

compilação do já dado e que se pautavam pela crítica das leituras da poesia como

ilusionismo21. Nesse raciocínio, também as trajetórias políticas dos dois escritores

ganham sentidos em seus escritos – estes também, eventos. No caso dos dois escritores,

a literatura foi apresentada como forma de ação por outros meios: os da via oblíqua do

ato ficcional, que se dirige não tanto à imposição de uma forma de agir (como no caso

dos manifestos e panfletos políticos), mas à provocação do pensamento sobre os

meandros da ação22.

Assim, no caso do autor, seria possível discutir até que ponto a personagem que

vive no subterrâneo pode se confundir com a do próprio Dostoievski. Bakhtin ainda

trata a característica de seus romances

como exemplos maiores da polifonia, o ponto de vista do autor permanece quase indevassável,

nos jogos e conflitos entre as visões de mundo dos diversos personagens dostoievskianos23.

Entretanto, pode-se dizer que o homem do subsolo foi um artifício ficcional

montado com o sentido de se colocarem em xeque algumas das principais ideologias do

20 Idem, p.65. 21 Ibidem. 22 Idem, p. 67. 23 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992

8

século XIX. Como elas aparecem entrelaçadas no romance, é interessante notar que o

ataque à utopia também foi uma crítica às pretensões da razão e às teses sobre o sentido

da história. Ou, se o gênero utópico pode ser entendido como uma das facetas dos

projetos racionalizantes elaborados no mundo moderno, o homem do subsolo seria uma

reação global diante dos impasses característicos da modernidade, em suas dimensões

utópicas24.

Apesar disso, mais adiante, o próprio homem do subsolo desvenda, como

demonstra Faria, o engano ficcional que possibilita esse diálogo, afirmando que,

obviamente, ele mesmo teria sido o inventor das palavras de seus adversários25. Isso

quer dizer que os grandes projetos do século XIX e o seu gênero específico de utopia

teriam a mesma origem que as palavras amargas do próprio narrador – o subterrâneo. A

partir disso, as utopias deixariam de ser vistas como apenas

percepções generosas sobre as possibilidades de uma humanidade aperfeiçoada para se tornarem

metas fictícias destinadas a justificar determinadas configurações da vontade de agir. Assim, a

obra de Dostoievski não apenas negaria a viabilidade prática das utopias, mas atingiria o âmago

de sua instituição como ficções paradigmáticas da modernidade.

Desta forma, o tom fantasioso teria ainda o efeito de colocar em xeque o próprio

estatuto político da escrita. Assim, Faria entende que um texto que se apresentava como

interpelação abolia a transparência de sentido almejada pelo gênero utópico, ao mesmo

tempo em que problematizava o papel do intelectual como planejador social26.

Um dos modos de pensar a relação entre literatura e história é que ambas seriam

narrativas que tem o real como referente, como discorre Sandra Pesavento27, pois

construiriam sobre ele toda uma outra versão da própria realidade. Assim, enquanto

narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Mas, uma vez

que parecem aproximar os discursos, cabe então questionar como, então, elas se

diferenciariam, já que não se trata de se afirmar, de maneira alguma, que história e

literatura ocupariam o mesmo patamar.

24 FARIA, Daniel. Op.cit. p.66. Além disso, questões sobre a modernidade são discutidas no capítulo seguinte. 25 Idem, p.67. 26 Idem, p.68. 27 PESAVENTO, Sandra. História & literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea], Debates, 2006, Puesto en línea el 28 janvier 2006. Disponível em http://nuevomundo.revues.org/index1560.html.

9

A autora defende que a literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso

ao imaginário das diferentes épocas28. Parafraseando Aristóteles, em sua “Poética”, ela

seria o discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficando a história como a narrativa

dos fatos verídicos. No entanto, o que se vê hoje, são historiadores que trabalham com o

imaginário e que discutem não só o uso da literatura como

acesso privilegiado ao passado —tomando o não-acontecido para recuperar o que aconteceu! —

como colocam em pauta a discussão do próprio caráter da história como uma forma de literatura,

ou seja, como narrativa portadora de ficção!29

Assim, a autora pensa a partir da faceta do não acontecido, elemento, segundo

ela, perturbante para um historiador que tem como exigência o fato de algo ter ocorrido

um dia. Sendo assim, deve-se questionar sobre qual acontecido está se tratando. Se, se

estaria em busca de personagens da história, de acontecimentos e datas sobre algo que

ocorreu no passado, não seria esse o caso de usar a literatura como ponto de partida.

Seria possível falar de fonte, mas a questão é um tanto complicada:

como a literatura, relato de um poderia ter sido, pode servir de traço, rastro, indício, marca de

historicidade, fonte, enfim, para algo que aconteceu?30

Sobre essa dimensão de análise que pensa a especificidade da literatura como

fonte, caberia pensar numa reconfiguração temporal31. O conceito, desenvolvido por

Ricoeur, se dá a partir da possibilidade de pensar a literatura na relação com a história

como um inegável e recorrente testemunho de seu tempo.

Admitimos que a literatura é fonte de si mesma enquanto escrita de uma sensibilidade, enquanto

registro, no tempo, das razões e sensibilidades dos homens em um certo momento da história.

Dos seus sonhos, medos, angústias, pecados e virtudes, da regra e da contravenção, da ordem e

da contramão da vida. A literatura registra a vida. Literatura é, sobretudo, impressão de vida.32

Para Pesavento, esses traços seriam possíveis de ser resgatados na narrativa

literária, muito mais do que em outro tipo de documento, pensando em consonância 28 Idem, p.3. 29 Idem, p.4. 30 Ibidem. 31 Idem, p.8. 32 Ibidem.

10

com Ginzburg, uma vez que a poesia – ou literatura – constitui uma realidade que é

verdadeira para todos os efeitos, mas não no sentido literal33. É nesse sentido que se

quer demonstrar que mesmo a literatura que reinstala o tempo de um passado remoto

ou aquela que projeta, ficcionalmente, a narrativa para o futuro são, também,

testemunhos do seu tempo34.

Nesse aspecto, as reflexões desenvolvidas por Márcia Naxara35 complementam o

que foi exposto, já que foram desencadeadas pela proposta de pensar o “lugar” ou

“lugares” a partir de onde se enunciam teorias e concepções de mundo, ou melhor, de

apreensão, compreensão, interpretação e criação de mundo(s) em diferentes lugares e,

também, tempos. É esse tipo de questão, ainda, que levaria a considerar as

aproximações mais que fronteiriças entre história e literatura, que de longa data

compartilham a narrativa e o contar, escrever e descrever, ou melhor,

(re)construir e (re)interpretar por meio da escrita, eventos “reais” e/ou “imaginários”, na

perspectiva da garantia do seu registro e perpetuidade, em especial quando considerados dignos

de memória; narrativas estreitamente ligadas à dupla capacidade da escrita de cristalizar e,

simultaneamente, dar vida às idéias e sentimentos a serem compartilhados; e à palavra e

nomeação como instrumentos primordiais de partilha e vivência comum entre os homens e

destes com o mundo que os cerca.

História e a narrativa

Uma vez apresentadas as principais idéias sobre a relação entre literatura e

história, parece válido ainda retomar uma pergunta feita por LaCapra36 há pelo menos

duas décadas: como se deveria ler romances em história? Essa questão se mostra

importante para a pesquisa, pelo fato de a análise feita da obra de Rimbaud nos

capítulos subseqüentes questionar que tipo de representação da própria realidade, o

poeta constrói em seus versos.

33 Com o intuito de preservar o fluxo do texto deste capítulo essa questão sobre a possibilidade ou não de se resgatar tais impressões de vida, serão debatidas no próximo item. 34 PESAVENTO, Sandra. Op.cit. p.9. 35 NAXARA, M. Historiadores e texto literário: alguns apontamentos. In: História Questões & Debates, Curitiba, Paraná, 2007. Disponível em http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/view/7932/5576 36 LACAPRA, Dominick. História e o romance. IN: REVISTA DE HISTÓRIA, Campinas : IFCH, Unicamp, inverno, 1991.

11

Lukács, como Lacapra cita, disse que o romance foi o gênero da época burguesa.

O romance nos permite ver a dimensão de como um protagonista problemático, cujos

ideais a realidade contradizia e realistas como Balzac ou Zola puderam retratar aspectos

da história contemporânea que desafiavam suas próprias ideologias. Por outro lado,

Bakhtin entende o romance como o ápice da cultura moderna e a mais pronunciada

forma de uso dialogizado da linguagem em geral.37

Para ele, o romance era um gênero que testaria os limites de classificação

genérica e renovava-se continuamente pela incorporação de outros gêneros e usos

sociais em uma troca de perspectivas e vozes. O que se pode entender a partir de tudo

isso é que o romance é um modo de escrita bastante importante no período moderno38.

O autor ainda acredita que o uso documental do romance, como o feito por Louis

Chevalier apresenta sérios problemas, uma vez que tal uso gera uma narrativa histórica

menos autocrítica e indagativa do que a própria narrativa literária, a qual ele tenta

explicar39. Este uso ainda resultaria numa resposta bastante simples para a questão da

relação entre o emprego da linguagem na literatura e as práticas significativas no resto

da sociedade e da cultura. Assim, a literatura seria algo redundante ou puramente

sugestivo40. Ela se torna redundante quando informa algo que outros tipos de fontes

documentais poderiam fazer. Neste aspecto, Lacapra entende que um movimento em

direção desejável se dá quando os textos são compreendidos enquanto

usos variáveis da linguagem que chegam a um acordo com ou – registram – contextos de várias

maneiras – maneiras que comprometem o intérprete como historiador e crítico em uma troca

com o passado através de uma leitura dos textos.41

Isso faz sentido quando se considera que todo o contexto é encontrado através de

um medium de textos específicos ou práticas e que devem ser reconstruídos com base

em evidências textuais, isto é, o contexto seria construído por meio de um diálogo com

outros textos. Além disso, deve-se entender que um texto influencia outros textos e

contextos de forma complexa e que uma questão para a interpretação é exatamente

como um texto chegaria a um acordo com o seu suposto contexto42.

37 Idem, p.107. 38 Idem, p.108. 39 Idem, p.117. 40 Ibidem. 41 Idem, p.118. 42 Idem, p.119.

12

Lacapra ainda aponta para o fato de o romance ter uma característica distintiva

em relação à historiografia: aquele pode tomar empréstimos de uma gama de

documentos e este processo poria em questão um efeito de transposição que invalida

uma concepção do romance no sentido de pura ficção ou uma suspensão total de

referência a realidade43.

E sobre esta questão da narrativa, também é alvo de bastante discussão a teoria

meta-histórica, elaborada por Hayden White44, partindo da teoria literária. Ao entender a

historiografia enquanto uma forma de narrativa, o autor acaba questionando o próprio

ofício do historiador.

Os argumentos apresentados são baseados em textos específicos de White por

um lado e, por outro, numa seleção de literatura secundária; a tentativa é captar o mais

essencial da problemática.

Assim, a idéia é expor como White formula sua teoria e o que ela critica, bem

como mostrar o porquê ela ser alvo de discussão.

Atém mesmo aqueles que só conhecem o autor de ouvir falar conhecem sua

principal obra, intitulada Meta-história, conceito que significa um estudo referente à

história enquanto historiografia; por exemplo, o estudo da linguagem, ou linguagens, da

historiografia45.

Para White, todo o trabalho histórico utilizaria como ferramenta a narrativa, ou

seja, uma representação ordenada e coerente de eventos/acontecimentos em tempo

seqüencial46. Assim, toda explanação histórica é retórica e poética por natureza47. Para

chegar a esse raciocínio, White parte da análise de dois pontos bem específicos: de

historiadores clássicos como Michelet e Burckhardt e de autores que escreveram sobre a

filosofia da história, como Hegel e Nietzsche. A partir dessa escolha, ele levanta quatro

estilos retóricos – denominados tropos – entendidos como estratégias poéticas que os

historiadores utilizariam para construir seus textos: metáfora, metonímia, sinédoque e

ironia. Ele também identifica quatro gêneros literários pelos quais os historiadores

43 Ibidem. 44 WHITE, Hayden. Metahistory: the historical imagination in nineteenthcentury Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1983. 45 MORA, José apud SUTERMEISTER, Paul. A meta-história de Hayden White: uma crítica construtiva à“ciência” histórica. In: Revista Espaço Acadêmico, nº 97, junho de 2009. disponível em http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/index. 46 SUTERMEISTER, Paul. Op. cit. 47 WHITE, Hayden. Op.cit. p.12.

13

entendiam o processo histórico em seus trabalhos: estória romanesca, tragédia, comédia

e sátira, denominados emplotment,48.

A intenção de White com isso é tentar demonstrar que os historiadores

analisados tinham outra mensagem para transmitir que não simplesmente o passado

histórico, havia uma intenção. Assim, semelhantes às boas narrativas, os trabalhos

históricos conduziriam o leitor suavemente, mas diretamente à conclusão que o autor

tem em mente49.

Sua concepção de obras históricas como “artifícios” literários funde a distinção entre

história e estória.

Além disso, para Surtermeister50, a obra de White contextualiza-se enquanto

parte da linguistic turn, tendência nas ciências humanas que dá prioridade à linguagem;

estimulou a historiografia pósmodernista que é crítica relativa à verdade científica.

Além disso, o autor, a partir de Gilderhus, enxergaria White na linha dos seguintes

autores:

Nietzsche, que rejeitou a história como uma forma de conhecimento argumentando que não

poderiam existir relatos objetivamente verificáveis independentemente das parcialidades e

inclinações do historiador; Lévi-Strauss que remeteu em questão as reivindicações que a

racionalidade científica ocidental possuiria alguma superioridade intrínseca sobre formas

míticas do pensamento; Saussure que observou que a linguagem molda imagens da realidade

mas não se refere a essa. Em trabalhos subseqüentes de Foucault, Derrida, de Man, Barthes, e

Hayden White, uma concepção de linguagem emergiu como sistema independente de sinais e

símbolos, que se referem não a algo externo, mas somente a si mesmos. Gilderhus: o historiador

sempre está preso ao mundo dentro do qual ele se pensa, e seus pensamentos e percepções estão

condicionados pelas categorias de linguagem nas quais ele opera.51

White critica fortemente não só a historiografia, mas também a própria consciência dos

historiadores. Seu conceito de história-narrativa põe em xeque as pretensões de verdade

e a objetividade do trabalho dos historiadores52. Desta forma, as narrativas históricas

seriam ficções verbais, seus conteúdos seriam tanto inventados quanto comprovados e

48 Idem, p.13. 49 MANNING, Patrick. Apud SUTERMEISTER. Op.cit. p2. 50 SUTERMEISTER, Op. cit. p.2. 51 Idem, p.3 52 WILSON, Norman J. History in crisis?: recent directions in historiography. Upper Saddle River NJUSA: Prentice-Hall, 1999.

14

elas teriam mais em comum com suas contrapartidas da literatura do que com ciência53,

uma vez que há a necessidade de certa dose de imaginação para encadear os fatos com

determinada coerência. Além disso, as próprias narrativas históricas seriam, também,

somente uma seleção de determinados fatos históricos, o que por sua vez, poria em

dúvida a própria verdade histórica. Nessa linha, o que o autor conclui é que se a

intenção for de reconstruir o passado, a ciência histórica falha fortemente, já que todo o

processo envolvido é um processo literário da narrativa interpretativa, e não se trata

estritamente de empirismo objetivo ou de teorização social54. Assim, as narrativas

explicam

porque os eventos aconteceram, mas são dominadas por suposições do historiador sobre as

forças que influenciam a natureza da causalidade. As narrativas são subjetivas, necessariamente

influenciadas pelo narrador: circunstâncias políticas, classe social, contexto histórico no qual o

historiador vive, cultura, sua localização / perspectiva geográfica / região, raça, sexo etc.55

Frente a isso, surgiram as mais variadas críticas a teorização do autor; uns

considerando sua argumentação como formalista em excesso, desconhecendo o

significado do conteúdo do trabalho de um historiador56 O fato de que a realidade

histórica seria acessível somente através da língua não deveria permitir afirmar que nós

somente teríamos que estudar a linguagem57.

Além disso, White foi criticado por tecer seus argumentos só em obras do século

XIX, excluindo a história contemporânea que poderia ser considerada como renovada,

como se fosse o caso de citar os Annales.

Os críticos de White defendem o valor do trabalho histórico: o trabalho depende

de uma dura pesquisa arquivística, de um cauteloso cuidado para evitar a falsificação,

operando, assim, com uma noção de verdade58. Os historiadores não inventariam nada,

eles operariam dentro de sistemas de hipóteses, conhecimento e questões que são

preexistentes e coletivamente desenvolvidas59. O trabalho dos historiadores evidenciaria

o passado de maneira abrangente e tentaria estabelecer uma interpretação dele que

53 SUTERMEISTER, Op. cit. p.3 54 WHITE, Hayden apud SUTERMEISTER, Paul. Op. cit. p.4. 55 SURTERMEISTER, Paul. Op. cit. p.4. 56 THOMPSON, Willie apud SUTERMEISTER, Paul. Op.cit.p.5. 57 NOIRIEL, Gérard apud SUTERMEISTER, Paul. 58 IGGERS, Georg apud SUTERMEISTER, Paul. Op.cit.p.5. 59 FULBROOK, Mary apud SUTERMEISTER, Paul. Op.cit.p.5.

15

serviria a outras ciências humanas, trazendo, assim, as condições e as mentalidades

estudadas de uma determinada época.

Carlo Ginzburg60, historiador italiano conhecido pelos seus estudos

microhistóricos, é um dos oponentes principais de White. Ele o responsabiliza por

eliminar o pressuposto da verdade da pesquisa como principal tarefa do historiador (mas

ele reconhece no mesmo contexto que o debate sobre a verdade é a questão intelectual

mais importante). Segundo Ginzburg, o relativismo de White seria tão perigoso que

poderia ser até mesmo responsável pelo revisionismo negacionista, o que envergonha o

ofício do historiador. Por exemplo, seguindo o raciocínio de Ginzburg, seria possível

concluir que as relações entre acontecimentos históricos existem somente na mente do

historiador. Se nós acreditássemos nisso, teríamos que dizer que não há conexões reais

entre coisas diferentes que aconteceram no passado. Ginzburg propõe, como se refere

Sutermeister, um método micro-histórico, o que significa analisar fenômenos numa

escala de observação bastante reduzida, o mais exaustivo possível na exploração das

fontes. Mas mesmo um micro-historiador como ele é seletivo, preferindo alguns

exemplos “representativos” de fenômenos no passado - e ignorando outros - a fim de

criar seu argumento próprio. Ginzburg admite também que existe a armadilha

historiográfica61 de querer alcançar resultados significativos às expensas de

rigorosidade científica, afinal, ele não sai do dilema entre ciência e retórica, como revela

bem o livro Hayden White, Carlo Ginzburg e o problema da linguagem na

historiografia.

Lacapra, num outro momento, ainda distingue o romance da historiografia,

entendendo o primeiro como capaz de inventar papéis e eventos que dão origem a

configurações que não são avaliáveis na escrita da história62. Assim, a partir do

momento em que a distinção essencial entre história e romance é destruída, surgiria

então o mito. Seria, então, somente em outros níveis de interpretação que as relações

entre romance e historiografia se tornariam mais comprometidas e controversas63.

60 GINZBURG, Carlo. History, Rhetoric and Proof. Hanover NH USA: University Press of New England, 1999. p. 49. 61 STONE, Lawrence. The Revival of Narrative: Reflections on a New Old History. Past and Present. Oxford, v. 85. p. 3-24, nov. 1979. Disponível em: http://links.jstor.org/sici?sici=0031-2746%28197911%290%3A85%3C3%3ATRONRO%3E2.0.CO%3B2-Y. p.21 62 LACAPRA, Dominick, Op.cit.p.119 63 Ibidem.

16

Poderia até dizer, como menciona Southgate, que White pretendeu salvar a

ciência histórica de uma crise mais geral64, crise que se reflete nas correntes

contraditórias que surgiram ao longo do século XX, cada uma tentando de aumentar a

credibilidade da ciência histórica: neo-marxismo, Annales e cliometria65. Querendo

parecer científica e objetiva, substituindo, por exemplo, a narração pela quantificação, a

história teve represada e negada para si mesma sua fonte maior de força e renovação. O

objetivo de White é, como ele mesmo diz, resgatar a história, admitindo que a narrativa

continuaria sendo a manifestação principal da historiografia, mas que isso implica

reconhecer o problema da cientifidade66.

White estimulou o debate sobre a natureza do conhecimento histórico entre, por

um lado, historiadores que temem questões epistemológicas profundas e outros que não

temem essas questões. Ele criticou um empirismo ingênuo e chamou a atenção para

questões teóricas, chaves sobre a verdade e a objetividade, questões que todos os

historiadores devem encarar.

A meta-história de Hayden White representaria, portanto, uma abordagem que

seria considerada como construtiva para a historiografia: trata-se de pensar sobre a

questão da verdade na historiografia (e talvez nas ciências humanas em geral) - pois os

acontecimentos históricos não têm como ser abordados tal qual aconteceram. Afinal,

parece importante para o historiador questionar o que ele produz e a quais interesses ele

serve.

64 SOUTHGATE, Beverly apud SUTERMEISTER, Paul. Op.cit. p.6. 65 STONE, Lawrence apud SUTERMEISTER, Paul. Op.cit. p.6. 66 Para maior discussão ver STONE, Lawrence. Op.cit.

17

II. RUMO À DESTRUIÇÃO

A questão das artes

Tratando a respeito da produção artística européia no século XIX, Arno Mayer67

discorre contrapondo a inovação trazida pelos artistas dos movimentos denominados

vanguardas, visando romper as convenções academicamente aceitas na arte e a

resistência da cultura artística já estabelecida, cristalizada como “alta cultura” e

amplamente aceita em meio às camadas aristocráticas da maioria das sociedades na

Europa. Essa arte convencional, produzida para agradar o gosto estético das elites

européias, veiculava, por meio de suas idéias e de suas formas, traços relacionados ao

Antigo Regime e, por conta disso, foi um forte elemento de reforço ao tradicionalismo e

ao conservadorismo ao longo do século XIX. Para o autor, esses traços conservadores

estariam presentes durante todo o século XIX e não desapareceram após a Revolução

Francesa, como se costuma afirmar68. Mayer, entretanto, defende a afirmação de que a

sociedade européia só se modernizará de fato ao derrubar as instituições do Antigo

Regime, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

Assim, a cultura da Europa, no decorrer do século, ainda refletia traços de

instituições características das sociedades pré-industriais do Antigo Regime,

apresentando valores que remontavam suas tradições em formas de arte variadas, como

a pintura, o teatro ou a música, assim como na arquitetura das cidades69. As artes e as

expressões públicas do poder, tal como a estatuária ou a arquitetura de palácios e

museus, agiam como uma espécie de instrumento ideológico a serviço das classes

dominantes da sociedade, reforçando o simbolismo presente em seu poder e adquirindo

um caráter não apenas estético, mas funcional70. Em oposição, a Europa presenciou, ao

longo do século XIX, inúmeros movimentos de expressão artística inovadores, que

buscavam um rompimento com valores já estabelecidos na sociedade e almejavam

retratar as mudanças que se viam cada vez maior no meio social, tecendo críticas contra

67 MAYER, Arno. A Força da Tradição. A persistência do Antigo Regime (1848 – 1914). Trad. de Denise Bottmann. São Paulo, 1981. 68 MAYER, Arno. Op.cit. p.187. 69 Idem, p.188. 70 Ibidem.

18

esse modelo artístico baseado principalmente na reprodução dos clássicos e contra essa

postura sufocante que limitava as novas expressões de arte que surgiam.

A crise do século XIX traz ainda pontos essenciais para se compreender como

cada cultura recebia essas mudanças. A título de exemplo, vale citar a cultura vienense

deste período. Em nenhum outro momento um intelectual diria: “É difícil enfrentar uma

ordem social existente, mas mais difícil ainda é postular uma que não existe”, como fez

Hofmannsthal71. Com o passar do século viu-se desvanecer as idéias revolucionárias,

que vinham do século XVIII, um tempo onde as expectativas revolucionárias foram

derrotadas pelos acontecimentos, onde o discurso do artista e do intelectual, sem apoio

da sociedade, tornou-se abstrato, paralisado72. Uma série de reações psicológicas face à

derrota são inferidas por Schorske, por exemplo, o sentimento de impotência advindo

da derrota do ideal ilustrado de progresso73.

Nesse panorama, o papel do artista teve de ser redefinido: ele não se limitava

simplesmente a exprimir a relação entre valores tradicionalmente aceitos e a realidade

social, mas deveria expressar verdades para uma humanidade, que desesperava da

ordem social enquanto tal74. Dessa forma, o artista preocupado em intervir no seu

tempo seria obrigado a direcionar sua inteligência e sua personalidade na busca de uma

expressão artística, que contribuísse para unir os pedaços de uma realidade que se

estilhaçara75; a Arte vanguardista começa a dar seus primeiros passos.

Entretanto, em um primeiro momento, os chamados artistas de vanguarda –

termo derivado do discurso militar evocando uma idéia de marcha desses contra a

fortaleza de uma cultura já estabelecida – tiveram de enfrentar uma resistência muito

grande à expressão de suas idéias76. Isso se deu por conta de os estilos já consagrados

conterem em si diversos elementos que buscavam mascarar as mudanças sociais

ocorridas gradativamente na Europa, criticando as manifestações de modernidade que

surgiam e empurrando esses artistas de vanguarda a um isolamento forçado.

Esse conservadorismo era o que ditava os parâmetros da produção artística de

alta cultura durante o século XIX, visando reproduzir o que era conhecido e consagrado

ao invés de propor novos modelos estéticos:

71 SCHORSKE apud ALAMBERT, Francisco. História, Cultura e Modernidade: Uma leitura da Viena fin-de-siècle. In: R. História, São Paulo, n. 122, p. 147-164, jan./jul. 1990. p.5 72 SCHORSKE, Carl. Viena fin de siècle: política e cultura. São Paulo, Cia. das Letras, 1988. p.261 73 Idem.p.28. 74 Idem, p.263. 75 Ibidem. 76 MAYER, Arno. Op.cit., p.190.

19

mais do que demandar às artes visuais, plásticas e musicais ‘novas expressões’, os artistas eram

solicitados a expressar e reproduzir intensamente as impressões e crenças já experimentadas e

comprovadas77.

Encontrando pouco espaço de expressão junto à sociedade européia, esses círculos de

artistas de vanguarda tenderam a isolar-se cada vez mais, até formarem uma espécie de

subcultura que valorizava a arte apenas enquanto arte, sem aplicações funcionais e

conseqüentemente, desligadas da vida cotidiana.

Nesse aspecto, seguindo em paralelo, as formas arquitetônicas surgidas durante

o século XIX revelam claramente a permanência da ordem cultural do Antigo Regime,

marcada por um forte historicismo que almejava reproduzir estilos já consagrados nos

séculos anteriores: uma concepção urbana inspirada em um passado gótico,

renascentista ou barroco78.

Nesse período, a Inglaterra se anunciava como um dos pólos da industrialização,

apresentando diversas mudanças urbanas; entretanto, o estilo adotado na construção

desse edifício governamental segue ainda padrões neogóticos, derivados das idéias do

romantismo, que visavam resgatar sentimentos, tradições e a estética medieval como

uma forma de reforçar a identidade nacional que se formava. Em outros locais da

Europa, esse processo ocorreu de modo semelhante, como as diversas construções, em

variados estilos consagrados, que foram erigidas ao longo do século XIX na Ringstrasse

de Viena, o que demonstra uma vinculação definitiva do presente daquele período com

um passado que se desejava manter acessível79.

Do mesmo modo, algumas construções que se vinculavam necessariamente a

aspectos da modernidade – como foi o caso das estações ferroviárias, que somente

adquiriam sentido mediante seu uso funcional – apresentaram características curiosas:

mesmo possuindo uma forma estética inovadora, com o uso de novos materiais como o

ferro fundido, vidro e aço, os projetos de decorações para esses locais seguiam os

moldes clássicos que, de certa maneira, mascaravam seus traços de modernidade que

causavam certa estranheza ao serem contrapostos com os padrões tradicionais da arte80.

Assim, duas construções de Londres servem como exemplo: o Palácio de Cristal,

construído em Londres no ano de 1851, sendo a primeira obra arquitetônica a utilizar 77 Ibidem. 78 SCHORSKE, Carl. p.270. 79 SCHORSKE, Carl. p.272. 80 MAYER, Arno. p.195.

20

uma linguagem estética que buscava romper completamente com o passado, e o Palácio

das Máquinas. Ambas acabaram sofrendo mudanças estéticas, por contrastarem demais

com a arquitetura já existente na cidade81.

Outro ponto que se relaciona com essa resistência da alta cultura pelos

defensores do Antigo Regime, diz respeito à grande proliferação dos museus que

ocorreu na Europa a partir da segunda metade do século XIX: ainda que apresente um

aspecto progressista ao permitir o acesso à arte para um maior número de pessoas, para

Mayer, esse aumento no número de museus também possuiria características elitistas,

por estar vinculado a projetos políticos de glorificação de um passado que havia gerado

a sociedade atual82. Isso é algo que pode ser identificado pelas próprias fachadas dessas

construções, sempre remontando estilos artísticos já consagrados. Um elemento que

também denota esse caráter de resistência é a maneira pela qual as obras de arte e os

objetos históricos eram dispostos dentro dos salões dos museus, adquirindo o estatuto de

relíquias que evocavam uma espécie de reverência ao passado e glorificavam as elites.

Dessa forma, as vanguardas encontraram pouco espaço de expressão dentro desses

museus tradicionais, ocupando uma parcela pequena do espaço em relação às formas de

arte já estabelecidas na alta cultura83.

Tratando de alguns dos principais estilos surgidos após o romantismo do século

XIX, Mayer se detém essencialmente nas artes pictóricas. Em sua análise, estabelece

um caráter individual da criação pictórica em contraposição ao aspecto visualmente

coletivo da arquitetura como um dos motivos que estabeleceu essa forma de arte como o

carro-chefe do movimento modernista84. Mais livres para exercerem experimentações

artísticas, o rompimento desses pintores com o classicismo e, posteriormente, com o

realismo, significou uma ruptura com relação às convenções acadêmicas e sociais que

teve início com o impressionismo e seguiu por meio de diversas tendências modernistas

que não se mostraram desconectadas entre si, como a Art Nouveau, o cubismo e o

futurismo85.

Schorske, por outro lado, ainda aponta que a cultura austríaca, por exemplo,

conseguiu expressar por outros meios os problemas de sua cultura, bem como buscar

81 Idem, p.197. 82 Idem, p.199. 83 Ibidem. 84 Idem, pp.200-201. 85 Idem, pp.204; 206.

21

saídas, ainda que utópicas ou desesperadas: esse meio foi a imagem do jardim86.

Segundo o autor, é na análise das formas que se consegue expressar a relação entre

cultura e estrutura social, entre utopia e realidade: dentro de seus limites estreitos, o

jardim capta e reflete a perspectiva em transformação da classe média culta da Áustria,

conforme o antigo Império se aproximava de sua desintegração87.

Essa nova geração iria, então, explodir o jardim, atear fogo na vegetação

colorida e artificial, que se escondia por detrás de suas folhas de papel88. Um mundo

que lhes parecia oco, frio, deformado. Estes artistas mostrariam, assim, em suas obras

um sentimento de repulsa da sociedade, definindo uma postura artística de negação

formal e estrutural das regras e costumes de toda a arte produzida anteriormente89.

Saindo do meio arquitetônico e voltando novamente para a pintura, é possível

perceber que, semelhante ao movimento acima citado, seus artistas eram livres para

experimentar e se rebelar contra as tendências e convenções acadêmicas e sociais. O

impressionismo foi o início de uma sucessão mais rápida de modernismos descontínuos,

mas não desconectados entre si90. Ao se remeter a esse movimento, é possível perceber,

porém, que foi uma trajetória linear do figurativismo à arte não-representacional e não

uma ruptura radical. O movimento impressionista era mais uma associação de artistas

ligados por pontos de vista comuns, integrantes de uma escola de pintura heterogênea

que compartilhavam de algumas técnicas e certos temas. Romperam com as lendas

cristãs, a lisonja social e a estética acadêmica a fim de revelar e não interpretar o

mundo, utilizando para isso a técnica da pincelada interrompida, na qual pinceladas de

pigmento de tinta apareciam lado a lado na tela ao invés de serem modeladas,

desfocando assim a cena pintada e dando a idéia de impressão do artista91.

Mayer acentua que os impressionistas eram adeptos à representação da vida

moderna, mas fixaram-se, antes, no campo e nos camponeses do que na cidade e nos

proletários e confiavam no olho humano como um transmissor da realidade. Por isso,

muitos deixavam seus ateliês e saiam à luz aberta da sociedade, produzindo en plein air.

Assim, introduziam reflexos coloridos nas sombras de suas obras por notarem que as

cores dos objetos eram modificadas pelo ambiente. O autor comenta, ainda, que eles

registravam cenas mais serenas e, quando se remetiam à vida urbana, não a concebiam 86 ALEMBERT, Francisco. Op. cit. p.7. 87 SCHORSKE, Carl. p.264. 88 ALAMBERT, Francisco. p.7. 89 SCHORSKE, Carl. p.265. 90 Idem, p.200. 91 Idem. p.206.

22

numa perspectiva caótica provocada pelas fábricas e multidões como outras expressões

artísticas modernas propuseram92.

Um outro aspecto a ser observado nesse período é o crescimento vertiginoso das

cidades. E essa questão não se resume apenas pelo aumento demográfico, uma vez que a

taxa de mortalidade infantil ainda era alta93, mas, também, por meio de migrações

internas; de pessoas que se situavam em regiões próximas à cidade e que se dirigiam até

ela em busca de novas oportunidades. Para Sennett, a transformação da cidade em um

lugar de estranhos teria como principal razão esta migração94. As descrições observadas

na literatura demonstram o sentimento que homem urbano começou a sentir em meio à

diferença. Nesse momento, surge a idéia de um domínio privado e um domínio público

em equilíbrio. O domínio privado seria visto como um refúgio, caracterizado pela

intimidade95.

Individualismo

Nesse contexto vale a pena pensar como o indivíduo ganha destaque. Até pelo

menos a primeira metade do século, o indivíduo permanece uma categoria abstrata e

mal definida96. Dessa forma, em tempos de ampliação dos movimentos de multidões, o

indivíduo afirma-se como valor político, científico e, sobretudo, existencial. E, é a

respeito dessa descoberta de si por si próprio, geradora de novos laços com os outros,

que Alain Corbin procura tratar: o que ocorre em diferentes gradações é um forte aflorar

do indivíduo, nas idéias e nos costumes97.

Um primeiro aspecto a ser levantado é a questão da identidade do indivíduo. A

questão da denominação de um nome para si, havendo uma ruptura com a tradição de

herdar o nome do pai, passando a se levar em consideração um nome e um sobrenome

no sentido de uma identidade individual – o que é possível de constatar através do

surgimento de diversos costumes, como a marcação das iniciais em cadernos,

guardanapos e outros objetos de pertence pessoal98. Nesse sentido, até as primeiras

décadas do século XIX, o surgimento da máquina fotográfica e a difusão de retratos e

92 Idem, p.207. 93 SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo; Cia. das Letras, 1999. p.230. 94 Idem. p.232. 95 Ibidem. 96 CORBIN, Alain. Op.cit.p.416. 97 Idem, p.415. 98 Idem, p.427.

23

fotos contribuem para essa admiração sobre si mesmo e também, em um outro aspecto,

para o perpetuar da identidade de alguém99. Em outras palavras, a foto serviria como

preservação da marca de uma pessoa, mostrando que ela realmente existiu e, mesmo

após sua morte, deixou traços de sua vida pessoal. É dessa forma que começam a

aparecer os epitáfios nas lápides daqueles que já morreram: uma breve frase que pode

simbolizar a singularidade de uma pessoa.

Outro aspecto a ser pensado é a questão de categorização do indivíduo, em como

ele passa a ser identificado publicamente e, nesse sentido, como é reconhecê-lo em meio

a multidão. O reajustamento do indivíduo impõe-se com maior razão às autoridades no

interior do espaço público, que passam pouco a pouco do anonimato para relações de

interconhecimento100. Isto é, a multidão cada vez mais silenciosa que cobre a rua e

perde a teatralidade; dissolve-se em um agregado de pessoas com o pensamento

absorvido por seus interesses privados. Compreende-se que a partir daí se aprimorem os

processos de identificação e que o controle social torne-se preciso. Assim, surgem

diversos questionamentos: como reconhecer o indivíduo enquanto tal? Como identificá-

lo? Isso tem por conseqüência um duplo problema: como provar a um policial e ao

próprio cidadão, por exemplo, a sua identidade? Nesse contexto começam a surgir

novas medidas de identificação, primeiro através fotos, e beirando a metade do século

XIX, a Bertillonagem, partindo da análise de medidas da anatomia do indivíduo para

identificá-lo, já que até então a mudança de identidade era um processo comum, pois

bastava somente apropriar-se do nome de outrem e saber informações básicas da pessoa,

como o local e o ano de seu nascimento101. Nesse aspecto, Rimbaud, poderia ser visto a

partir desta questão da identidade. Nele, haveria um jogo de interpretações que entra em

cena, sendo possível assumir o papel de qualquer indivíduo. Daí que o poeta, uma vez

vidente, torna entre todos o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, - e

o supremo Sábio!102. Seria essa a possibilidade de interpretar que dirigiria o poeta ao

seu objetivo, assunto que será abordado mais adiante.

Além disso, a preocupação com o indivíduo infere exatamente na divisão entre o

espaço público e o privado e, mais ainda, na divisão do privado. Quer dizer, a divisão da

casa, a criação de cômodos e o aparecimento de quartos individuais – uma adaptação da

velha norma dos conventos unida ao discurso médico, procurando justificar a 99 Idem, p.429. 100 Idem, p.431. 101 Idem, pp.435-436. 102 RIMBAUD, Arthur. Op. cit. p.340-341.

24

necessidade de cômodos separados, pautado na idéia de salubridade –, a especificação

de um determinado quarto a um determinado indivíduo, tudo isso colabora para sua

interiorização, para o conhecimento de si próprio103. E nesse sentido, há um outro

aspecto que passa a reger os hábitos e a moral durante o século XIX, relacionado ao

pudor e à vergonha. Primeiro, há o próprio medo de ver o outro cedendo lugar à

contenção, e, além disso, há o temor de que um segredo íntimo seja violado pela

indiscrição. Sendo assim, o discurso médico aparece pela necessidade de instruir a

juventude e de regular os seus impulsos, como por exemplo, a necessidade de que os

jovens mantenham sempre suas mãos ocupadas para não dar vazão a pensamentos

libidinosos104. Em suma, busca-se conter a pulsão dos jovens, esse impulso gerado pela

curiosidade de conhecer o outro.

É assim que haverá uma mudança no controle e na interpretação de si mesmo. A

necessidade de conter-se e administrar o próprio comportamento começam a aparecer,

também, nos hábitos, como a manutenção de um diário pessoal105. Nesse aspecto, o

desejo de represar a perda, aflora e assombra o homem do XIX: não é só a falta de algo

que o preocupa, mas também, a perda, conduzindo-o a administrar todos os gastos

domésticos na mais extrema minúcia, engendrando a angústia do desperdício, que,

essencialmente, caminha entre extremos; desde o desperdício de esperma até

simplesmente do cotidiano, estreitamento da duração da vida. O indivíduo se descobre

enquanto tal dialogando consigo mesmo. É em função do olhar sobre si mesmo, e dos

olhares dos outros e do mundo, que se estrutura um exame permanente, obcecante106.

Manter um diário é disciplinar o interior; é a secularização da confissão, já que o

diálogo com Deus é substituído por um diálogo consigo mesmo, o que além de reforçar

a identidade, colabora para o indivíduo traçar a sua própria identidade ao escrever sobre

si mesmo.

Outro objeto que passa a ser difundido a partir da segunda metade do século

XIX é o álbum de fotografias. Da possibilidade de se colecionar fotos surge o

simbolismo por trás de um objeto que colabora para a construção “identitária” do

indivíduo e, por conseqüência, o apego por um determinado objeto contribui para que as

pessoas passem a colecioná-los107. Assim, um lenço, por exemplo, pode remeter a

103 Idem, p.447. 104 Idem, pp.453;455. 105 Idem, p.457. 106 Ibidem. 107 Idem, p.459.

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lembrança de um período importante, o que leva uma pessoa a mantê-lo como

recordação. Isso é possível de observar na literatura da época, em especial, na obra

Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, em que o apego de um personagem por um baú

de panos se torna um elemento chave no desenrolar e no concluir da trama. Em suma,

pode-se dizer que a busca retrospectiva do eu, objeto do diário íntimo, estimula,

arrependimentos, aviva nostalgias, mas, em um mesmo movimento, valoriza a

aspiração e desperta o imaginário da construção de si108.

As origens do Simbolismo

Para a questão da contextualização do movimento Simbolista a “A estética

simbolista” de Álvaro Cardoso Gomes parece ser um dos trabalhos mais adequados para

esse tópico. Isso porque o paralelo do movimento com o contexto se dá a partir de uma

análise de suas origens, não só relacionadas ao campo da história, mas também à

produção literária da época, bem como ao debate filosófico. Isso porque, como Gomes

propõe, “a transformação cultural que deu ensejo ao surgimento do Simbolismo

somente pode ser explicada à luz da compreensão dos fenômenos que a suscitaram”109.

Sendo assim, deve-se remeter à Revolução Industrial que, iniciada no século XVIII,

mostra a sua intensificação em meados do XIX, quando, “culturalmente, o homem

tentou explicar o real através de pressupostos científicos”110. Nesse momento, com a

produção em massa das mercadorias, as indústrias exigem cada vez mais mão-de-obra

especializada, o que vem a aumentar o número de pessoas vivendo nas metrópoles.

Vive-se ainda um momento de euforia, baseado na obsessão pela velocidade e pela

competição. De acordo com Charney111, isso demonstra que a base psicológica do tipo

urbano de individualidade consiste numa intensificação dos estímulos nervosos,

resultando na mudança abrupta e ininterrupta entre estímulos internos e externos, i.e., a

mente do indivíduo das cidades é estimulada pela diferença da impressão entre um

instante e por aquilo que o precedeu. E as conseqüências desse progresso são

108 Idem, p.460. 109 GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética Simbolista – Textos Doutrinários comentados. São Paulo, Ed. Atlas S.A.. 1994. p.12 110 Ibidem. 111 Sobre isso e sobre uma reflexão acerca da compreensão do instante para os indivíduos do início do século XX, ver CHARNEY, LEO. Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo, Casc & Naify, 2001.

26

verificáveis ao ver que a produção de recursos aumenta, ao mesmo tempo em que se

diminuem as distâncias, graças aos novos meios de locomoção e do surgimento de

novos meios de comunicação.

Não se pode separar, porém, o desenvolvimento industrial do científico. Não se

trata apenas de identificar as descobertas na práxis diária: a questão é ter em mente que

esse binômio Revolução Industrial/Ciência se mostra bem mais complexo do que pode

parecer, por dizer respeito à própria visão de mundo, grosso modo, o progresso

industrial tem paralelo numa concepção científica e materialista dos fenômenos, que

procura explicar o universo através da “Razão Triunfante”, desprezando a metafísica

em nome do conhecimento experimental da realidade112.

No entanto, essa euforia provocada pelos sucessos desse binômio logo se mostra

arruinada, já que, ao mesmo tempo em que a Revolução Industrial automatizava o

trabalho, economizava recursos, por outro lado transformava o indivíduo numa parte

essencial de um todo. Nesse sentido, Simmel113 procura refletir sobre como a

modernidade passa a influenciar na vida do homem, pois, atrelado às conseqüências da

Revolução Industrial, esse período exigiu uma especialização do homem e uma

segmentação ainda maior do seu trabalho114. Ele comenta, que

Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica de vida.115

A partir dessa idéia, Simmel procura traçar uma linha inicial para a reflexão da

vida do homem moderno, juntamente com a liberdade proporcionada a partir do século

XVIII – não só decorrentes da Revolução Industrial, mas do surgimento de espaços

sociais pela modernidade. Esse período exigiu uma especialização funcional do homem

e de seu trabalho, tornando-o incomparável a qualquer outro e fazendo de cada

indivíduo um ponto indispensável em maior instância. Conseqüentemente, essa

especialização tornou o homem cada vez mais dependente de outrem e de outras

atividades. Desta forma, a mola propulsora que age em qualquer posição que o

112 GOMES, Álvaro Cardoso. Op cit, p.13. 113 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976 114 Idem. p.11. 115 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio Guilherme. (Org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. p.11.

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indivíduo ocupa é a mesma: a resistência apresentada pelas pessoas a serem niveladas e

uniformizadas. Partindo desse raciocínio, o autor procura fazer uma investigação que

penetre no significado íntimo da vida especificamente moderna e seus produtos, que

entre na alma do corpo cultural” afim de “responder à pergunta de como a

personalidade se acomoda nos ajustamentos às forças externas116.

Por conseguinte, aponta para a idéia de que a base psicológica do tipo

metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos,

resultando na mudança abrupta e ininterrupta entre estímulos internos e externos. A

mente do indivíduo das cidades é estimulada pela diferença entre a impressão de um

instante e daquilo que o precedeu117, sejam elas duradouras ou não. O que está em jogo

é que todas essas formas de perceber o exterior “gastam”, como o próprio autor diz,

menos consciência do que a rápida convergência de imagens em movimento, tal qual a

descontinuidade aguda contida na apreensão com uma única vista de olhos e o

inesperado de impressões repentinas. É assim definida a condição psicológica criada

pela metrópole: diferentemente do ritmo que se acompanhava numa vida rural, a cidade

bombardeia o indivíduo com miríades de informações (embora possa parecer forçoso

num primeiro momento). No meio disso, para acomodar-se à mudança e ao contraste de

fenômenos, o intelecto do tipo metropolitano desenvolve um filtro, para não dizer uma

barreira, que o protege das “correntes e discrepâncias ameaçadoras de sua

ambientação externa” que por outro lado o absorveriam.

Ele [o indivíduo] reage com a cabeça, ao invés do coração. Nisto, uma conscientização crescente vai assumindo a prerrogativa do psíquico. A vida metropolitana, assim, implica uma consciência elevada e uma predominância da inteligência no homem metropolitano.118

Desta maneira, a intelectualidade se destina a preservar a subjetividade de cada um

contra a intensidade metropolitana. Dessa intensa racionalidade, Simmel chama atenção

para o fato de que a vida metropolitana seria, sem ela, inimaginável sem a mais pontual

integração de todas as diversas e complexas atividades e relações mútuas, sem essa

“matematização”, em última instância, da vida, se estendendo aos relacionamentos e

afazeres do típico metropolitano. Tendo em vista esses mesmos fatores que, por um

116 Idem. p.12. 117 Sobre isso e sobre uma reflexão acerca da compreensão do instante para os indivíduos do início do século XX, ver CHARNEY, LEO. Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo, Casc & Naify, 2001. 118 SIMMEL, Georg. Op. cit, p.13.

28

lado, precisaram a vida do indivíduo moderno, deve se observar, por outro lado, que

esses mesmos fatores promoveram uma subjetividade altamente pessoal, sendo

caracterizada por um fenômeno intrínseco à metrópole, e, por conseqüência, a produção

do indivíduo blasé119. Essa atitude, comenta o autor, resulta, em primeiro lugar, dos

estímulos contrastantes que, de maneira abrupta, bombardeiam a psique dos indivíduos:

uma vida em perseguição desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé porque agita o

inconsciente até seu ponto de mais alta reatividade por um tempo tão longo que acaba

por deixá-los superaquecidos – não literalmente, é claro –, cessando de funcionar. Surge

assim, a incapacidade de reagir a novos estímulos com a intensidade apropriada, ou ao

menos esperada, constituindo uma atitude blasé que diferencia o individuo da metrópole

quando comparado com outro de um lugar menos intenso, menos sujeito às

transformações. Nesse sentido, à medida que o indivíduo é submetido a essas formas de

atitude, sua atitude de autopreservação exige dele um estado de indiferença ao ambiente

da metrópole e seus perigos típicos. Tendo isso em vista, a pessoa precisa enfrentar a

dificuldade imposta pelas cidades no sentido de afirmar perante o meio, vendo-se

obrigada a explorar os mais variados tipos de extravagância, buscar o diferente para

sobressair-se e atrair a atenção, não sob um espectro egocêntrico, mas para não ser

sublevado pelo meio urbano, para preservar sua essência mais pessoal. Reforçando isso,

Sennett também infere que é nesse momento que as aparências do indivíduo e o próprio

indivíduo – seu caráter e sua predisposição moral – se confundem. Nesse sentido seria

criada uma mentalidade de um jogo de interpretação em que o menor dos detalhes

poderia definir a verdadeira personalidade do individuo120 .

O atrofiamento da subjetividade pela hipertrofia do exterior, para tomar

emprestados os termos do autor, entra, assim, como um motivo para a própria

preservação do indivíduo da metrópole.

Nesse contexto, a própria filosofia positivista, que serviu como base para os

estudos científicos, acaba por entrar em crise, a citar a idéia de Schopenhauer121 do

mundo enquanto representação. Desmistifica-se o esforço, a luta, a idéia de competição

contida nas bases ideológicas da Revolução Industrial e do Positivismo, ao mesmo

tempo em que o filósofo introduz um pessimismo que viria a ser o tema básico do

119 Idem. p.15. 120 SENNETT, Richard. Op.cit. p.241. 121 SHOPENHAUER apud GOMES, Álvaro Cardoso. Op cit.

29

movimento simbolista122. Assim, se a realidade é apenas uma impressão do ser, mera

representação, o homem sofre a partir do momento em que anseia chegar até ela.

É nessa linha que se insere o Simbolismo. É nesse sentido, também, que Gomes

explicita suas especificidades. Assim, essa busca culminando num vazio, num nada,

acaba por dar à poesia simbolista um caráter francamente hermético, como propõe o

autor. Ainda mais pelo movimento de buscar traduzir emoções através de uma gama de

metáforas, estados inconscientes ou conteúdos que subvertem uma lógica123. Assim,

descontruído o discurso, a poesia se torna um objeto destinado a expressar o mais

profundo sentimento do ser. Não se trata, como visto, de objetivá-lo, mas de reforçar

essa subjetividade inerente à emoção. Trata-se ainda, de recusar-se a aceitar a realidade,

a ir contra a lógica do contexto vivido, de uma negação do status quo124.

O trabalho clássico de Hugo Friedrich, “A estrutura da lírica moderna”125

reforça, então, o que fora dito, ao analisar as características de Rimbaud; a partir de

1871, não produz mais

tessituras de sentido completo, mas sim, fragmentos, linhas truncadas, imagens agudas, perceptíveis ao sentido, mas irreais; tudo isso, porém, de tal forma que, naquela unidade, vibra o caos que foi necessário para a unidade tornar-se linguagem: na unidade de uma musicalidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias e harmonias126.

Nesse sentido, o ato lírico desloca-se cada vez mais da expressão do conteúdo a um

modo de ver ditatorial – um subjetivismo extremo – e, portanto, a uma insólita técnica

de expressão, que nem sequer precisa destruir a ordem sintática127. Ao autor, basta

somente traduzir em frases o seu caos interno.

Assim, o objetivo do fazer poesia seria chegar ao desconhecido, ou “escrutar o

invisível, ouvir o inaudível”128. Rimbaud, longe de ir adiante e buscar aprofundar esses

conceitos, permanece na caracterização negativa do objeto perseguido; distingue-o

122 Idem. p. 14. 123 GOMES, Álvaro Cardoso. Op cit, p.29. 124 Gomes procura ainda relacionar essa “rebeldia” simbolista ao contexto sócio-econômico, tentando demonstrar uma certa revolta do movimento que se recusava fazer da poesia uma mercadoria, perante a mercantilização freqüente dos objetos. No entanto, seria forçoso pensar nesses termos, parecendo que o autor busca legitimar sua tese procurando argumentos que fogem um pouco à crítica simbolista. Carece-se, assim, de um pensamento mais aprofundado em relação esses termos. 125 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Duas Cidades. 1991. 126 Idem. p. 60. 127 Vale lembrar que em Rimbaud essa destruição da ordem sintática se mostra presentes em poucas ocasiões, se comparado a seus contemporâneos como Mallarmé, por exemplo. 128 Para melhor entendimento dessas e outras questões, as Lettres du voyant se mostram essenciais. São nelas que Rimbaud faz suas principais reflexões do ofício do poeta. São nelas, ainda, que ele define o conceito de símbolo, utilizado em sua poesia.

30

como o outro, simplesmente, mas não lhe dá conteúdo. Sua impulsão para transcender a

realidade é a própria deformação desta em imagens que, mesmo irreais, não são sinais

de uma verdadeira transcendência. A visão poética penetra no mistério vazio através de

uma realidade intencionalmente feita em pedaços129. A obra de Rimbaud deve ser

entendida não como um link direto para o pensamento de sua época, mas sim, como

uma representação do que procura representar em suas poesias. O capítulo seguinte

apresentará as principais noções presente na obra de Rimbaud na tentativa de corroborar

as reflexões acima expostas.

129 Idem, p. 65.

31

III. A DESTRUIÇÃO DE RIMBAUD OU UM PREÂMBULO PARA O FAZER-

SE VIDENTE

Da atmosfera decadente e a ruptura com o mundo

Pensar no período em que Arthur Rimbaud escreveu suas poesias significa,

como enunciado exaustivamente em estudos mais recentes, pensar não o contexto de

1870-73, mas compreender este recorte temporal levando em consideração influências

de um período anterior. Busco aqui o momento de alarde dos idos de 1848 para

identificar o pessimismo soberano dos autores que presenciaram tanto o momento de

concretização de um sonho, com a derrubada do governo de Luís Filipe em fevereiro,

quanto o seu esfacelamento, em julho, com as medidas tomadas pelo governo para

reprimir os que simpatizavam com idéias de esquerda. Isso porque, a partir de uma

reflexão surgida a partir da leitura de Dolph Oehler130, pensei em inferir a possibilidade

de haver uma permanência deste pessimismo trinta anos depois, com a derrota francesa

na guerra contra a Prússia.

O ano de 1848 marca um ponto importante na história francesa, para se entender

o “panorama literário”; em fevereiro uma revolta popular conseguiu com que o governo

aderisse às propostas de diversas vertentes, tais como a questão da ordem e da

estabilidade levantada pela pequena burguesia ou a necessidade por melhores condições

de trabalho por parte de operários e, ainda, o próprio sufrágio universal.

Assim, constituiu-se um governo provisório que passou a atender boa parte

dessas medidas. Até aí a idéia de harmonia parece cabível se só existisse Paris, contudo,

era a despreocupação com outras províncias que se mostrava presente. Ainda se viu uma

reação conservadora ao governo provisório e à sua (falta de) experiência administrativa,

fazendo com que o próprio governo deixasse de operar.

Nesse mesmo sentido, o Partido da Ordem, que possuía influência nacional, se

apoiava na defesa de interesses daqueles que defendiam a propriedade privada e, assim,

passou a combater idéias socialistas e qualquer tipo de sua veiculação. Então, o que se

viu em junho desse ano foi o governo tomar severas medidas para reprimir os operários.

130 OEHLER, Dolph. O Velho Mundo desce aos Infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

32

Esses, então desempregados, revoltaram-se levantando barricadas, dispostos a enfrentar

o status quo mantido pela burguesia.

Se até um momento a insurreição operária parecia bem sucedida, a ação do

Estado fez com que 1500 manifestantes morressem. A própria repressão posterior,

conseqüente de um medo dos proprietários, também fora violenta. Após uma avaliação

do evento, retirou-se qualquer direito dos condenados e 12.000 deles foram presos e 4

mil deportados para a Argélia.

É nesse panorama que o imaginário presente na literatura parisiense de 1848 –

ano, também, em que se iniciaram na Europa diversas rebeliões, denominadas

Primavera dos Povos, em meio às crises econômicas contra os regimes monárquicos –

levanta diversos aspectos possíveis de serem encontrados na obra de Rimbaud, mesmo

sendo escrita mais ou menos vinte anos mais tarde.

O que acontece é que, segundo Bernard131, Rimbaud lera diversos autores

daquele período que haveriam deixado certa influência em sua estética – a ser

destacado, aqui, Victor Hugo – e, como Oehler ressalta, o imaginário literário, junto à

estética antiburguesa não estiveram restritas somente ao ano de 1848, mas

permaneceram em momentos posteriores.

Isso, porque em razão da “monstruosidade”, esse evento logo se tornou presa do

recalque e, com ele, a literatura que, de uma forma ou de outra, quisera lhe dar voz.

Mas, não se deve pensar na literatura enquanto cúmplice desse recalque dos horrores de

1848; Oehler132 mesmo deixa claro que, antes de tudo, ela própria se tornou uma vítima

desse, na medida em que tentou se opor a ele.

E o protesto literário contra o esquecimento não se limita somente em inferir a

culpa na sociedade burguesa, mas vai além: o “senso crítico” pós-1848 reinscreveu o

acontecimento em outro contexto e transformou suas reminiscências em imagens

dialéticas, pensando aqui como Walter Benjamim133 propõe, na medida em que esse

passado se vê reapropriado pelo presente – aqui, pensando nos anos 1870.

As reflexões de Marcel Raymond134 se encaixam, deste modo, de maneira

interessante; na medida em que a literatura de junho – como infere Oehler –, num

sentido amplo do termo, é entendida enquanto testemunho das próprias jornadas de tal

mês. 131 RIMBAUD, Arthur. Oeuvres. Paris, Garnier, 1962. 132 OEHLER, Dolph. Op.cit, p.10. 133 BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas vol.III. São Paulo, Ed. Brasiliense. 1989. 134 RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao Surrealismo.São Paulo, Edusp, 1997.

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Na medida em que os autores desta época se propõem a escrever o real, é

possível pensar, também, a obra de Rimbaud como um momento de transição do

próprio significado do romantismo, mesmo que pareça forçoso.

A questão ganha sentido ao se pensar na própria literatura “social” – isto é, com

um propósito crítico – dos anos 1840 que pretendia, ao abordar sentimentos gerais e

comunicáveis ao maior número de pessoas, se afastar do mundo exterior para observá-lo

melhor, com maior imparcialidade. Isso por sua vez, seria o que teria levado autores

como Victor Hugo a se proporem a descrever ou transmitir verdades.

É nesse sentido que é possível pensar numa mudança, ainda que Rimbaud deixe

transparecer esse espírito decadente que se manifestava em 1840. Isso se vê ao se tomar

um trecho de uma poesia sua do fim de 1870, período da guerra entre a França e a

Prússia,

[...] Tandis qu'une folie épouvantable broie Et fait de cent milliers d'hommes un tas fumant; - Pauvres morts ! dans l'été, dans l'herbe, dans ta joie, Nature ! ô toi qui fis ces hommes saintement!… –135

[...]

Vê-se a descrição de uma massa amorfa formada pelos soldados; “Enquanto uma

terrível loucura esmaga e faz de milhares de homens uma pilha de fumaça”. Vê-se aqui

a erradicação do homem ao se transformar nesta pilha de cinzas, porém, o extermínio

atrelado ao senso de destruição toma um rumo diferente do que antes era relacionado

nos autores de 1848. O que quero dizer é que, a questão do extermínio anteriormente

estava atrelada a dar um fim às jornadas de junho como escreve Oehler136.

O que acontecia era que um fanatismo exterminador perseguia os espíritos, seja

como vontade ativa de extermínio, seja como sentimento de uma ameaça vinda de um

adversário, tanto político como de outra classe. Oehler ainda discorre que essa pulsão

exterminadora era sentida por aqueles que eram vítimas da repressão. Na realidade,

funcionava para a burguesia como uma contrapartida, que via na erradicação do povo

um meio de cessar a destruição da propriedade por conta dos socialistas. O que se vê

com o emprego da idéia de extermínio em Rimbaud é o seu uso como uma denúncia à

135 Tradução feita livremente por mim da poesia Le Mal (O Mal) [Enquanto uma loucura terrível, esmaga e faz de centenas de homens uma pilha de fumaças;/ - Pobres mortos! No verão, na relva, em tua alegria,/ Natureza! ó tu que fizestes esses homens santamente!... –] 136 OEHLER, Dolph. Op.cit, p.91.

34

própria guerra; o extermínio aqui assume o seu sentido pleno ao conformar numa massa

de cinzas o homem.

É a partir disso que se pode pensar na “ruptura” com aquele romantismo

primitivo: embora haja esse “comprometimento” com o isolamento do indivíduo, com

esse repúdio pelo mundo e, ainda, um ataque à própria classe burguesa, o que

aconteceria na verdade é não mais o “ofício” de querer expressar o mundo.

Cabe muito mais, aqui, pensar numa subjetividade, daí a atmosfera onírica

assumir um papel de relevância: “é sobre o que se chama de civilização e sobre o

homem do Ocidente que ele sonha em primeiro lugar em dar o bote do animal

feroz”,escreve Raymond137. Há uma tentativa do poeta de negar todos os valores

produzidos pelo homem, uma necessidade de superá-lo, de criticar o Estado, a ordem

pública e suas obrigações, os costumes, o cristianismo.

É nesse raciocínio que Rimbaud entende a tarefa do poeta como um fazer-se

vidente. Trata-se sempre, de ultrapassar as possibilidades que parecem destinadas ao

homem, de abandonar, de certa forma, a cultura. Isso porque a tarefa, enquanto vidente,

está ligada muito mais a um plano “surreal” - o que leva a pensar no próprio

simbolismo, ou ainda, no termo símbolo.

Em uma análise possível, trata-se de se desarticular de qualquer referência ou

carga de significados que um termo possa carregar consigo; trata-se de desmistificá-lo

ao mesmo tempo em que assume um significado único enquanto projeção do próprio eu.

Explicando melhor: trata-se de se expressar simbolicamente, com o cuidado de

não retirar do símbolo muito de sua autenticidade; pois, nesse caso, se torna algo que

não é. Isso porque o símbolo autêntico, como propõe Raymond, nasce de uma dialética

entre uma adesão direta do espírito a uma forma de pensamento naturalmente figurada,

não sendo nunca uma tradução, mas uma correspondência com o real, o que por

conseqüência não pode ser traduzido138.

E isso, ainda, se deve ao fato de os próprios símbolos do sonho não serem

governados por “leis”, por serem polivalentes, isto é, não por assumirem vários

sentidos, mas por estarem sempre numa metamorfose. É assim que tais símbolos, por

terem vários valores ligados, sobretudo, a uma afetividade individual, estão longe de

serem encerrados numa estrutura, enfim, deixa-se de ter um sentido lógico.

137 RAYMOND, Marcel . Op.cit, p.31 138 Idem, p.34

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Há uma necessidade, portanto, de entender que, apesar de haver um sentimento

execrável em relação ao homem que já se encontrava anteriormente, é a própria

subjetividade do poeta que o diferenciará daquilo que já se viu presente entre os autores

de outrora, trata-se, enfim, de interpretar esse simbolismo que perpassa sua obra. Mas,

para que isso seja possível faz-se necessário inseri-lo no contexto do Simbolismo,

período o qual Rimbaud representa.

Rimbaud e o Simbolismo

De acordo com Gomes, são estas as características simbolistas que alguns

românticos – e até mesmo alguns parnasianos – apresentaram: a sugestibilidade, a

musicalidade de expressão e certo idealismo platônico – nas palavras do autor –, tendo

este sua origem no sueco Emmanuel Swedenborg, para quem todas as coisas que

existem na natureza desde o que já de menos ao que já de maior são

correspondências139. E a razão para isso está no fato de que o mundo natural existe

graças ao mundo espiritual.

Para os simbolistas, no entanto, este espiritualismo – que surgiu como uma

revolta aos pressupostos materialistas e positivistas delimitou-se “aos limites da

natureza terrenal”. E nisso, há um fato curioso distinguindo românticos e simbolistas:

enquanto os primeiros almejam a ascensão a um paraíso, os simbolistas fazem do

mundo sua própria meta140.

De um modo geral, é a correspondência o ponto central da poesia simbolista;

despreza-se o aparente, para ir à busca do oculto, daquilo que constitui a essência do

universo. Nesse sentido, o poeta descarta que os objetos “reais” sejam ontologicamente

providos de um significado. Daí que a relação entre esse mundo real e o espiritual é

feito através de correspondências.

E, pensando nisso, cabe abrir um parênteses para trazer aqui uma poesia de

Baudelaire de mesmo título141.

139 GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética Simbolista – Textos Doutrinários comentados. São Paulo, Ed. Atlas S.A.. 1994. p.16 140 Idem, p.17. 141 Eis a poesia original, seguido pela tradução de Álvaro Cardoso Gomes: La Nature est un temple où de vivants piliers/ Laissent parfois sortir de confuses paroles;/ L'homme y passe à travers des forêts de symboles/ Qui l'observent avec des regards familiers. / Comme de longs échos qui de loin se confondent / Dans une ténébreuse et profonde unité,/ Vaste comme la nuit et comme la clarté,/ Les parfums, les

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La Nature est un temple où de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles; L'homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l'observent avec des regards familiers. [...]

Neste poema, Baudelaire fala das relações entre o concreto e o abstrato e da

fusão de diferentes sensações no mundo material. Ele ilustra uma espécie de ritual, em

que o homem atinge a plenitude dos sentidos para poder comungar com a Natureza,

depois de decifrada a “floresta de símbolos”142. Assim, o poeta deve ser um decifrador

de símbolos – deve fazer-se um vidente. Embora a carta seja citada uns parágrafos à

frente, Rimbaud diz que o poeta se faz vidente por um longo, imenso e racional

desregramento de todos os sentidos.

Dessa maneira, essa sinestesia, essa fusão de diferentes sensações, é um esforço

para demonstrar que a palavra, mais do que uma representação, pode também ser

encarada como um objeto. E, antes de cair em contradição, é importante salientar que o

trabalho com imagens sinestésicas serve para que o poeta represente o instante de uma

percepção. É a volta da ditadura do eu exposto anteriormente. É a tentativa de expressar

uma subjetividade, de tentar se fazer entender. É nesse raciocínio que as estranhas

combinações de cores que Rimbaud vê nas vogais fazem sentido:

A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu : voyelles, Je dirai quelque jour vos naissances latentes : A, noir corset velu des mouches éclatantes Qui bombinent autour des puanteurs cruelles, [...]143

couleurs et les sons se répondent./ II est des parfums frais comme des chairs d'enfants,/ Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, /— Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,/ Ayant l'expansion des choses infinies,/ Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,/ Qui chantent les transports de l'esprit et des sens. – A Natureza é um templo onde vivos pilares/ Deixam escapar, às vezes, confusas palavras; O homem ali passa por entre florestas de símbolos/ Que o observam com olhares familiares./ / Com longos ecos que ao longe se confundem/ Numa tenebrosa e profunda unidade,/ Vasta como a noite e como a claridade,/ Os perfumes, as cores e os sons se correspondem./ /Há perfumes frescos como carnes de crianças,/ Doces como os oboés, verdes como as pradarias,/ -E outros, corrompidos, ricos e triunfantes,/ /Tendo a expansão das coisas infinitas,/ Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,/ Que cantam os transportes do espírito e dos sentidos. 142 Idem, p.18. 143 RIMBAUD, Arthur. Op. Cit,p.110. Tradução de Augusto de Campos: A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,/ Ainda desvendarei seus mistérios latentes:/ A, velado voar de moscas reluzentes / Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;/ / E, nívea candidez de tendas e areais,/ Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes; / I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes/ Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;/ U, curvas,vibrações verdes dos oceanos,/ Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos / Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;/ O, supremo clamor cheio de estranhos versos,/ Silêncios assombrados de anjos e universos;/ - O! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!

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Ou quando uma estrela chora rosa,

L'étoile a pleuré rose au cœur de tes oreilles, L'infini roulé blanc de ta nuque à tes reins La mer a perlé rousse à tes mammes vermeilles Et l'Homme saigné noir à ton flanc souverain.144

E, uma vez encontrada a correspondência entre os sentidos, o homem está apto a

participar do mundo da Natureza, em que tudo tem uma íntima relação entre si, em que

o mundo material não está de modo algum dissociado do espiritual.

Além disso, é importante ressaltar que o símbolo deve ser entendido não só

como uma palavra ou imagem que remete a algo desconhecido, mas também como um

conjunto de palavras, ou porque não, idéias, que evoca um determinado estado de

espírito. Trata-se, em última análise, de um jogo de sensações. É nessa linha que “o

simbolismo transfigura o fenômeno em idéia, a idéia em uma imagem de tal forma que

aquela permaneça infinitamente eficaz na imagem e fora de alcance”145.

Partindo do pressuposto que a idéia deve ser expressa por analogias, partir de

algo concreto para exprimir um mundo abstrato, o que os simbolistas buscavam era

corresponder concreto/abstrato da melhor forma possível. Desse modo, o símbolo deixa

de ser apenas uma palavra ou imagem isolada, para se tornar “uma frase, uma estrofe,

um poema e assim por diante” 146.

Em Rimbaud, isso aparece com a junção de duas imagens para expor um

determinado estado de espírito:

O saisons, ô chateaux,

Quelle âme est sans défaut147

Aqui, “Estações” e “castelos” mantêm uma estreita correspondência com a alma;

mesmo assim, os nexos entre as imagens concretas e a interioridade são totalmente

implícitos. A alma é um simulacro de estações e castelos, ou melhor, ambas as imagens

são bastante fortes para retratar um estado de espírito. 144 Idem, p.111. Tradução de Augusto de Campos: A estrela chorou rosa ao céu de tua orelha./ O infinito rolou branco, da nuca aos rins./ O mar perolou ruivo em tua teta vermelha./ E o Homem sangrou negro o altar dos teu quadris. 145 GOMES, Álvaro Cardoso. Op cit, p.20 146 Idem, p.21. 147 Tradução de Álvaro Cardoso Gomes: Ó estações, ó castelos,/ Que alma não tem defeitos?.

38

Deve-se ter em mente ainda, que a percepção, tratando-se de algo semelhante ao

instante, é algo bastante fugaz. Daí, que o símbolo não se resume em expressar apenas

esse instante: ele presta-se a traduzir contínuos estados de alma. Por isso é elaborado

com essa idéia de continuidade, de aglutinação148.

Explicando: o poema não representa indiretamente algo através de palavras

isoladas, não se trata de tentar enxergar pelas entrelinhas um significado obscuro que

cada palavra provavelmente está escondendo. Trata-se do oposto, muitas vezes as

palavras não têm um significado simbólico quando vistas isoladamente. Mas,

“adquirem” um ao se aglutinar umas com as outras, seja para representar algo pela

sonoridade de aliterações e assonâncias, seja pelo resultado final pintado por cada verso.

E, é esta capacidade de sugerir do símbolo que permite aproximar a poesia

simbolista da música, a ponto de poetas intrincarem suas obras com os mais variados

instrumentos ou, como no caso de Rimbaud, uma ponte usar um acorde menor149.

Daí, que a poesia urbana que se encontra em Les Illuminations transfere o

inconsciente ao superdimensional150: com imagens incoerentes, acumuladas e

sobrepostas, cria-se uma cidade irreal, transcendendo qualquer noção; o real e o irreal se

cruzam; entre chalés de cristal e palmeiras de cobre, por cima de abismos, ocorre o

desmoronamento das apoteoses, segundo Friedrich.

Não é possível, assim, achar um sentido em meio a essa aglutinação de imagens

e sentidos. Na realidade, a questão é que o próprio sentido da poesia reside na confusão

criada pelas imagens pintadas pelo poeta.

O presságio interior do poeta

La première étude de l’homme qui veut être poète est sa propre connaissance, entière ; il

cherche son âme, il l’inspecte, il la tente, l’apprend. Dès qu’il la sait, il doit la cultiver ; cela semble simple : en tout cerveau s’accomplit un développement naturel ; tant d’égoïstes se proclament auteurs ; il en est bien d’autres qui s’attribuent leur progrès intellectuel ! — Mais il s’agit de faire l’âme monstrueuse : à l’instar des comprachicos, quoi ! Imaginez un homme s’implantant et se cultivant des verrues sur le visage. Je dis qu’il faut être voyant, se faire voyant.

148 Idem, p.20. 149 Apesar de parecer improvável, é o que aparece em sua poesia em prosa Les Ponts como consta no trecho “[...]Des accords mineurs se croisent et filent, des cordes montent des berges. On distingue une veste rouge, peut-être d'autres costumes et des instruments de musique.[...]” traduzindo: Acordes menores se entrecruzam e desaparecem, sobem cordas das margens. Dintingue-se uma jaqueta vermelha, talvez outros trajes e instrumentos de música. 150 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Duas Cidades. 1991. p.66.

39

Le Poète se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens. Toutes les formes d’amour, de souffrance, de folie ; il cherche lui-même, il épuise en lui tous les poisons, pour n’en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, — et le suprême Savant — Car il arrive à l’inconnu ! Puisqu’il a cultivé son âme, déjà riche, plus qu’aucun ! Il arrive à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses visions, il les a vues ! Qu’il crève dans son bondissement par les choses inouïes et innombrables : viendront d’autres horribles travailleurs ; ils commenceront par les horizons où l’autre s’est affaissé !

— la suite à six minutes –

Ici j’intercale un second psaume, hors du texte : veuillez tendre une oreille

complaisante, — et tout le monde sera charmé. — J’ai l’archet en main, je commence : MES PETITES AMOUREUSES Un hydrolat lacrymal lave Les cieux vert-chou : [...]

A. R. Voilà. Et remarquez bien que, si je ne craignais de vous faire débourser plus de 60 c. de port, — Moi pauvre effaré qui, depuis sept mois, n’ai pas tenu un seul rond de bronze ! — je vous livrerais encore mes Amants de Paris, cent hexamètres, Monsieur, et ma Mort de Paris, deux cents hexamètres !

— Je reprends : Donc le poète est vraiment voleur de feu. Il est chargé de l’humanité, des animaux même ; il devra faire sentir, palper, écouter ses

inventions ; si ce qu’il rapporte de là-bas a forme, il donne forme : si c’est informe, il donne de l’informe. Trouver une langue ;

— Du reste, toute parole étant idée, le temps d’un langage universel viendra ! Il faut être académicien, — plus mort qu’un fossile, — pour parfaire un dictionnaire, de quelque langue que ce soit. Des faibles se mettraient à penser sur la première lettre de l’alphabet, qui pourraient vite ruer dans la folie !151

151 RIMBAUD, Arthur. Op. cit. p.340-341. Segue a tradução: O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, Inspeciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-la; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! - Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos (3), pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto. Digo que é necessário ser visionário, fazer-se visionário. O Poeta faz-se visionário por um prolongado, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele próprio procura, esgota em si todos os venenos para deles guardar apenas as quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a sobre-humana força, em que ele se torna entre todos o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! - Pois ele atinge o desconhecido! Uma vez que cultivou a sua alma, já de si rica como nenhuma! Ele atinge o desconhecido e, acaso, enlouquecido, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-á visto! Que ele estoire no seu sobrevôo pelas coisas inauditas e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes onde o outro se abateu! - A seqüência dentro de seis minutos - Aqui intercalo um segundo salmo fora do texto: queira dispensar um ouvido complacente, - e toda a gente ficará encantada. - Tenho o arco na mão, começo: As Minhas Pequenas Apaixonadas Pronto. E repare bem que se eu não receasse fazer-vos desembolsar mais de 60 c. de portes, - eu, pobre assombrado, que desde há sete meses não embolso uma única moeda de bronze! - enviar-vos-ia ainda os meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, caro senhor, e a minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros! Retomando: É pois o poeta, verdadeiramente, ladrão de fogo.

40

É exatamente nessa parte da carta que boa parte do trabalho de reflexão

exercitado nesta pesquisa aparece. A idéia fundamental de Rimbaud presente nessa carta

endereçada a Paul Demeny152, escrita em 1871, reside justamente no princípio de que o

poeta é um vidente, isto é, ele é o encarregado de fazer relações entre as coisas,

penetrando num espaço desconhecido, vedado ao homem comum.

É ali que se escondem as imagens poderosas, todas as formas de amor, de

sofrimento, de loucura, o incógnito, captados por seu olho mágico. Esta atribuição do

fazer-se vidente, como um ser inspirado, um louco, não representa algo novo, como

Gomes afirma: trata-se, como já dito, de uma inspiração platônica, uma vez que para o

filósofo grego, os poetas líricos não são lúcidos ao comporem suas belas canções; mas,

quando sob o poder da música e do metro, ficam inspirados e possessos153.

No entanto, isso não quer dizer que se trata de uma aplicação direta da idéia

platônica; essa idéia de o poeta estar possuído pela inspiração divina é, antes, retomada

e reapropriada pelos românticos em outro momento. O que é necessário é diferenciar a

visão destes da de Rimbaud.

Para aqueles – e também para Platão154, segundo Gomes –, poesia é algo que

independe da Vontade; Platão diz que o poeta não é capaz de criar sem antes estar fora

de si, ou seja, não ser o senhor de sua razão; Shelley155 acrescenta ainda que a poesia

não é, como o raciocínio, uma força para ser exercida por determinações lógicas.

Rimbaud, por outro lado, não exclui a vontade do processo criativo: o

desregramento de todos os sentidos é racional – Le Poète se fait voyant par un long,

Ele tem a seu cargo a humanidade, os animais mesmo; deve fazer sentir, palpar, escutar as suas invenções; se aquilo que ele transmite de lá tem forma, ele dá a forma; se é informe, ele dá o informe. Achar uma língua; - De resto, sendo toda a palavra uma idéia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser-se acadêmico - mais morto que um fóssil, - para compilar um dicionário, seja de que língua for. Um ser fraco que se meta a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, e poderá rapidamente precipitar-se na loucura! 152 Poeta nascido em Douais, Paul Demeny era amigo de Georges Izambard – um professor com quem Rimbaud se correspondia. Foi em 1870, durante a estadia de Rimbaud em Douais com a família de Izambard, que o acolheu depois de sua primeira fuga de Paris, que o professor permitiu os dois se encontrarem. Demeny, então, já havia publicado várias coleções de poesia e algumas peças de teatro, das quais Rimbaud parecia ter tido contato, provavelmente por meio de Izambard. À Demeny, Rimbaud ainda confiara dois cadernos contendo suas poesias, na esperança que fossem publicados. Além disso, estes poemas encontrados após a morte do poeta são freqüentemente chamados pelos editores de Cahier de Douai. Rimbaud, também, trocou diversas cartas com Demeny, incluindo a famosa lettre du voyant. (Extraído de: <http://www.azurs.net/arthur-rimbaud/demeny.html> acessado em 25.04.10) 153 GOMES, Álvaro Cardoso. Op. Cit, p.52. 154 Idem, p.50 155 SHELLEY, Percy. Defesa da poesia. apud GOMES, Álvaro Cardoso. Op. Cit, p.52.

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immense et raisonné dérèglement de tous les sens156. O poeta tem o controle da loucura,

que somente passará a dominar-lhe a razão no fim do processo criativo quando Il arrive

à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses visions, il les a

vues!157

Assim, ele se diferencia do romântico que não tinha controle do processo

criativo, procurando fazer da poesia algo desprovido de racionalidade. A poesia de

Rimbaud é desta forma, uma exploração sistemática das visões que o vidente apreende

do inconsciente158. É interessante notar que esse “irracionalismo racional”, que dá seus

primeiros passos em Rimbaud, aparece mais adiante em Mallarmé, outro expoente do

Simbolismo francês. Para este, a poesia seria a perfeita utilização deste mistério que

constitui o símbolo, como relembra Friedrich159.

A contraposição ao pressuposto romântico não se restringe somente ao domínio

do ofício do poeta, Rimbaud ainda contraria o princípio da inspiração: não se trata mais

de uma inspiração externa, ou mesmo proveniente das Musas160. Agora ela se origina da

própria subjetividade, do próprio inconsciente. O resultado dessa perscrutação no

abismo do eu, em busca de inspiração, é uma marginalização do próprio poeta, quando

se identifica com o enfermo ou o maldito – Ineffable torture où il a besoin de toute la

foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand

criminel, le grand maudit161.

E, isso traz uma conseqüência, ainda, na própria percepção do eu do poeta. O eu

de Rimbaud é produto dessa transformação que sua poesia sofre, do seu processo

criativo. Desta forma, este eu pode vestir todas as máscaras, estender-se a todas as

formas de existência, a todos os tempos e povos162. E o exemplo mais claro que parece

remeter a essa idéia seria o seu famoso barco ébrio, imagem encarnada pelo autor para

narrar todo caos gerado pela sobreposição de imagens.

Assim, a última preocupação do eu fabricado por Rimbaud seria tornar-se uma

válvula autobiográfica. Com ele é que se dá início à separação anormal entre o sujeito

156 Tradução livre feita por mim: O poeta faz-se vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. 157 Tradução livre feita por mim: Ele atinge o desconhecido e, uma vez enlouquecido, e acabando por perder a inteligência das suas visões, as terá visto! 158 GOMES, Álvaro Cardoso. Op. cit. p.52. 159 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.63. 160 GOMES, Álvaro Cardoso. Op. cit. p.52. 161 Tradução livre feita por mim: Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, em que ele se torna, entre todos, o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito. 162 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.68.

42

poético e o eu empírico, que impede entender a lírica moderna enquanto uma

experiência autobiográfica163 – e, porque não, um canal obscuro para a mente do autor.

E como infere Gomes, essa mudança no modo de conceber a inspiração e o

próprio poeta, subverte o conceito de Belo: não há mais a tentativa de conquistar as

suaves harmonias românticas. A beleza reinventada agora tem olhos somente para a

Vênus decrépita164 dos versos de Rimbaud. Caminha-se pelos campos do grotesco e do

bizarro, criando uma arte, como Gomes mesmo expõe, dissonante; substituindo o

harmônico propositalmente pelo feio165.

Isso porque, como Friedrich complementa, belo e feio já não são mais valores

opostos, mas digressões de estímulos166. A diferença entre eles, ou como entre qualquer

outra dualidade é eliminada. A aproximação entre os opostos produz uma dinâmica de

contraste, que por sua vez, deve surgir a partir do próprio feio. A poesia até então partia

da associação do feio à inferioridade moral.

Com Baudelaire, o feio se torna algo curioso, interessante e vem ao encontro de

uma vontade artística que serve da intensidade e da expressividade. Já com Rimbaud, ao

feio é incumbida a tarefa de servir a uma energia sensitiva que impele à mais violenta

deformação do real. Uma poesia que tem como objetivo

menos os conteúdos que as relações de tensão sobre-objetiva necessita também do feio porque

este, como provocação ao sentimento natural da beleza, produz aquela dramaticidade chocante

que se deve estabelecer entre o texto e o leitor167.

E não se pode esquecer ainda da menção a Prometeu, personagem que o próprio

poeta encarna ao se fazer vidente: donc le poète est vraiment voleur de feu168. Isso se dá

pelo fato de divulgar algo que fora vedado aos homens, uma vez tomado pela loucura e

chegando à condição de le suprême Savant. O que se deve relevar, ainda, é que esse

163 Idem, p.69. 164 Refiro-me, no caso, à poesia Vênus Anadiômene do próprio Rimbaud. Comme d’un cercueil vert en fer blanc, une tête/ De femme à cheveux bruns fortement pommadés/ D’une vieille baignoire émerge, lente et bête,/ Avec des déficits assez mal ravaudés;/ / Puis le col gras et gris, les larges omoplates/ Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;/ Puis les rondeurs des reins semblent prendre l’essor;/ La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:/ / L’échine est un peu rouge, et le tout sent un goût/ Horrible étrangement; on remarque surtout/ Des singularités qu’il faut voir à la loupe…/ / Les reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS;/ —Et tout ce corps remue et tend sa large croupe/ Belle hideusement d’un ulcère à l’anus. 165 GOMES, Álvaro Cardoso. Op. cit. p.53. 166 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.77 167 Idem, p.79. 168 Tradução livre, feita por mim: Portanto, o poeta, realmente, ladrão de fogo.

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fogo só é expresso, no entanto, por meio da criação de uma “nova linguagem”, expressa

pela poesia.

Assim, ainda que a reflexão sobre o símbolo em Rimbaud pareça interminável,

ou demasiado complexa, já é possível estabelecer alguns pontos de reflexão sobre sua

obra. Já se tentou enquadrar o poeta de diversas formas para justificar o modo que sua

obra se desenvolveu, seja como continuador de Baudelaire ou um preâmbulo a

Mallarmé. O que importa, no entanto, é tentar achar uma saída para esses tipos de

limitações.

44

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sempre que o nome de Arthur Rimbaud é citado, vemos sempre comparações ou

até mesmo tentativas de justificá-lo como um precursor de um rock star moderno,

desvairado, impetuoso169. Por outro lado, aproximando-se de uma análise mais

apropriada da obra, tenta-se ver nela o reflexo do fim de sua curta vida – afinal, ele

morreu aos trinta e sete anos –, ainda que sua atividade poética tenha ocorrido

anteriormente. Há ainda aqueles que procuram entender o autor dentro do meio no qual

o movimento simbolista se originou; um movimento muitas vezes compreendido

enquanto decadente, mas que, como mostra Álvaro Cardoso Gomes170, tal termo se

mostra incapaz de defini-lo. Longe de descartá-lo, trata-se apenas de entender essa

diferenciação entre Simbolismo e Decadentismo, o primeiro como um movimento

especificamente literário, o segundo como propriamente existencial, como escreve

Gomes:

Se o Decadentismo não teve a sombra de uma doutrina, notabilizando-se mais por constituir um estado de espírito frente ao mundo, o Simbolismo, pelo contrário, configura-se como um movimento em que não faltam teóricos e em que os difusos princípios do Decadentismo tomam corpo, sob a forma de uma atitude passiva frente à vida, [...], como fuga do mundo destituído de sentido.

As análises de sua obra são geralmente muito escassas, afinal, os trabalhos

geralmente se voltam a nomes mais notórios como Baudelaire – que não pode de

maneira alguma deixar de ser mencionado – ou Mallarmé. Não se trata de colocar

Rimbaud num pedestal acima dos autores acima citados, ou fazer qualquer conclusão

reducionista acerca de sua obra; pelo contrário, o que se pretendeu, foi ressaltar a

importância de desconstruir algumas reflexões acerca do autor, e compreendê-lo,

também, a partir de sua subjetividade, indo além do simples jargão historiográfico de

que tudo é fruto de seu próprio tempo.

Além disso, se deve levar em conta, que não se pode avaliar a poesia de

Rimbaud – ou pelo menos as que se referem à sua “2ª fase”, pós 1871 – pela medida em

que seus conteúdos referentes à realidade exterior são ainda exatos e completos171. A

169 Pelo menos é o que tenta fazer Wallace Fowlie com seu livro Rimbaud e Jim Morrison: os Poetas Rebeldes. Ed. Campus, São Paulo, 2004. 170 GOMES, Álvaro Cardoso. A Estética Simbolista – Textos Doutrinários comentados. São Paulo, Ed. Atlas S.A.. 1994. 171 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.70.

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poesia – como diria Friedrich172 – sempre teve essa liberdade de jogar, de deslocar,

reordenar o real, reduzindo-o a alusões expandindo-o demoniacamente, fazendo-o meio

de uma interioridade, símbolo de uma ampla condição de vida. Seria possível estimar

até que ponto essas transformações levam em consideração as relações objetivamente

existentes, até que ponto mesmo sendo invenção poética, continuam a ser relações

possíveis do mundo real e permanecem no campo de metáforas e outras figuras de

linguagem.

No entanto, desde Rimbaud, a lírica não cuida mais de tais considerações, a não ser em proporções cada vez menores. A preocupação agora é sempre menos com a relação das partes do discurso entre si e de sua ordem de valor no próprio discurso173.

Assim, se quiser se pensar em como a poesia está ligada à própria realidade, que

se tome esta como base, para poder avaliar a extensão da destruição do real que agora

sucede, assim como a violência da ruptura do velho estilo metafórico.

E, no que se refere a esta última, vale a pena resgatar mais uma vez Marcel

Raymond, já que é a partir disso que se pode pensar na “ruptura” do Simbolismo com o

Romantismo: apesar de haver um isolamento do indivíduo, com esse repúdio pelo

mundo, agora, na verdade, preocupa-se menos ainda com a necessidade de querer

expressar o mundo. Cabe muito mais, aqui, pensar numa subjetividade, daí a atmosfera

surreal, inconsciente, assume um papel de relevância: “é sobre o que se chama de

civilização e sobre o homem do Ocidente que ele sonha em primeiro lugar em dar o

bote do animal feroz”,escreve Raymond174. Há uma tentativa do poeta de negar todos os

valores produzidos pelo homem, uma necessidade de superá-lo, de criticar o Estado, a

ordem pública e suas obrigações, os costumes, o cristianismo.

Isso porque esse desconhecido já não pode ser saciado pela fé, pois se trata de

um pólo de tensão que rechaça a realidade. A partir do momento em que ela é

vivenciada na sua insuficiência frente à transcendência, a paixão por esta se torna uma

destruição cega da realidade. E a realidade, agora destruída, constitui o sinal caótico da

insuficiência do rea175.

Visando não só captar o misterioso, o essencial, mas também o inefável, os

instantes passageiros, os estados íntimos que mudam a cada momento da experiência, os

172 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.73. 173 Idem, p. 73. 174 RAYMOND, Marcel . Op.cit, p.31 175 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.75.

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simbolistas tiveram que fazer da linguagem um instrumento maleável, que buscava o

intraduzível. Os românticos tinham empreendido revolução neste sentido176. Contudo,

sucumbiram diante da convencionalidade das imagens, conseguidas à custa de um

aprofundamento superficial no “eu”. Tentando evitar o emocionalismo fácil, fruto de

uma retórica grandiloqüente, os simbolistas optaram pela miniloqüencia, pela voz em

surdina177, utilizando-se de uma subjetividade que recusa a fazer da poesia

desaguadouro de sentimentos ou um repositório de dramas pessoais. Para isso, tiveram

que adotar a impessoalidade, conseguida na escolha adequada do objeto que suscita os

sentimentos. É nesse raciocínio que Rimbaud entende a tarefa do poeta como um fazer-

se vidente.

Em todo o caso, parece que a peculiaridade de Rimbaud reside mais numa

necessidade de sobrecarregar um verso como para causar choque sinestésico no leitor

que numa obrigatoriedade de ter que negar a realidade antes de qualquer coisa.

Se ainda questionar-se “onde está a História nisso tudo”, LaCapra178 ainda

parece rebater este tipo de questão melhor que eu. Assim como o estudo das poesias não

se dá pelo nível de proximidade delas da realidade, a própria pesquisa, também, não se

presta, de modo algum, a usar a obra de Rimbaud como forma de reforçar o seu

contexto, visto que este tipo de abordagem proporciona uma resposta simples demais

para a relação entre literatura e sociedade. Assim, a literatura se torna redundante

quando nos informa o que pode ser coligido em outras fontes documentais179.

Deste modo, tentou-se pensar menos a obra do poeta como uma fonte para fatos

sobre o passado, que considerá-la, também, como um texto que reconstrói aquilo que

ele representa180. E, isso serve, como dito no início desta monografia, como resposta

para possíveis acusações de teleologismos e simplismos.

Em todo o caso, para aqueles de coração sensível, sedentos por aproximar o

conteúdo das poesias e a realidade, o mais recomendado seria ler o lado romântico de

Rimbaud, até 1871. Assim, pelo menos, não correm o risco de enfrentar alguma

frustração e reforçar a aversão do poeta181.

176 GOMES, Álvaro Cardoso. Op. cit. p.70. 177 Ibidem. 178 LACAPRA, Dominick. Op cit. 179 Idem. p.119. 180 Ibidem, p.116. 181 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit. p.72. Esse trecho, na verdade, refere-se a uma frase dita por Rimbaud em dado momento de sua vida como poeta, que Friedrich acaba citando, eventualmente; Minha superioridade consiste no fato que não tenho coração. Tenho aversão a corações sensíveis.

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WILSON, Norman J. History in crisis?: recent directions in historiography. Upper

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APÊNDICE

Poesias selecionadas Le Mal – Arthur Rimbaud Tandis que les crachats rouges de la mitraille Sifflent tout le jour par l'infini du ciel bleu ; Qu'écarlates ou verts, près du Roi qui les raille, Croulent les bataillons en masse dans le feu ; Tandis qu'une folie épouvantable, broie Et fait de cent milliers d'hommes un tas fumant ; - Pauvres morts dans l'été, dans l'herbe, dans ta joie, Nature, ô toi qui fis ces hommes saintement !... - - Il est un Dieu qui rit aux nappes damassées Des autels, à l'encens, aux grands calices d'or, Qui dans le bercement des hosanna s'endort, Et se réveille quand des mères, ramassées Dans l'angoisse et pleurant sous leur vieux bonnet noir, Lui donnent un gros sou lié dans leur mouchoir !

O Mal – tradução de Ivo Barroso Enquanto esse cuspir vermelho da metralha Silva no céu azul o dia inteiro, e logo, Verdes ou rubros, junto ao Rei que os achincalha, Tombam os batalhões em massa sob o fogo. Enquanto a insânia horrenda arde num fogaréu Cem mil homens e os deixa a fumegar, demente, - Pobres mortos! na relva, ao sol do estio, em teu Seio, Natura, ó tu que os criaste santamente!... - Existe um Deus, que ri nas toalhas dos altares Num cálice dourado, entre incensos, e nesse Tranqüilo acalentar de hossanas adormece; E acorda quando as mães, morrendo de pesares, Choram de angústia, sob o negro xale imenso, E lhe dão uma moeda, amarrada no lenço!

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Correspondences – Charles Baudelaire La Nature est un temple où de vivants piliers Laissent parfois sortir de confuses paroles ; L'homme y passe à travers des forêts de symboles Qui l'observent avec des regards familiers. Comme de longs échos qui de loin se confondent Dans une ténébreuse et profonde unité, Vaste comme la nuit et comme la clarté, Les parfums, les couleurs et les sons se répondent. II est des parfums frais comme des chairs d'enfants, Doux comme les hautbois, verts comme les prairies, — Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, Ayant l'expansion des choses infinies, Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Qui chantent les transports de l'esprit et des sens. Correspondências – tradução de Álvaro Cardoso Gomes A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam escapar, às vezes, confusas palavras; O homem ali passa por entre florestas de símbolos Que o observam com olhares familiares. Com longos ecos que ao longe se confundem Numa tenebrosa e profunda unidade, Vasta como a noite e como a claridade, Os perfumes, as cores e os sons se correspondem. Há perfumes frescos como carnes de crianças, Doces como os oboés, verdes como as pradarias, — E outros, corrompidos, ricos e triunfantes, Tendo a expansão das coisas infinitas, Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso, Que cantam os transportes do espírito e dos sentidos.

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Voyelles – Arthur Rimbaud A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu : voyelles, Je dirai quelque jour vos naissances latentes : A, noir corset velu des mouches éclatantes Qui bombinent autour des puanteurs cruelles, Golfes d'ombre ; E, candeur des vapeurs et des tentes, Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles ; I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles Dans la colère ou les ivresses pénitentes ; U, cycles, vibrements divins des mers virides, Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux ; O, suprême Clairon plein des strideurs étranges, Silence traversés des Mondes et des Anges : - O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux ! - Vogais – tradução de Augusto de Campos A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais, Ainda desvendarei seus mistérios latentes: A, velado voar de moscas reluzentes Que zumbem ao redor dos acres lodaçais; E, nívea candidez de tendas e areais, Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes; I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes Da ira ou da ilusão em tristes bacanais; U, curvas,vibrações verdes dos oceanos, Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos; O, supremo clamor cheio de estranhos versos, Silêncios assombrados de anjos e universos; - O! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos!

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L’étoile a pleuré rose... – Arthur Rimbaud L'étoile a pleuré rose au cœur de tes oreilles, L'infini roulé blanc de ta nuque à tes reins La mer a perlé rousse à tes mammes vermeilles Et l'Homme saigné noir à ton flanc souverain. A estrela chorou rosa... – tradução de Augusto de Campos A estrela chorou rosa ao céu de tua orelha. O infinito rolou branco, da nuca aos rins. O mar perolou ruivo em tua teta vermelha. E o Homem sangrou negro o altar dos teus quadris. Les Ponts – Arthur Rimbaud Des ciels gris de cristal. Un bizarre dessin de ponts, ceux-ci droits, ceux-là bombés, d'autres descendant ou obliquant en angles sur les premiers, et ces figures se renouvelant dans les autres circuits éclairés du canal, mais tous tellement longs et légers que les rives, chargées de dômes, s'abaissent et s'amoindrissent. Quelques-uns de ces ponts sont encore chargés de masures. D'autres soutiennent des mâts, des signaux, de frêles parapets. Des accords mineurs se croisent et filent, des cordes montent des berges. On distingue une veste rouge, peut-être d'autres costumes et des instruments de musique. Sont-ce des airs populaires, des bouts de concerts seigneuriaux, des restants d'hymnes publics? L'eau est grise et bleue, large comme un bras de mer. - Un rayon blanc, tombant du haut du ciel, anéantit cette comédie. As Pontes – tradução encontrada no livro Estrutura da Lírica Moderna de Hugo Friedrich Céus cinzentos de cristal. Desenho bizarro de pontes, algumas retas, outras arqueadas ou decendo oblíquas e formando ângulo com as primeiras, essas imagens se renovando nos demais circuitos iluminados do canal, mas todas de tal modo longas e leves que as margens, carregadas de cúpulas, parecem baixas e reduzidas. Outras sustentam mastros, sinais, parapeitos frágeis. Acordes menores se entrecruzam e desaparecem, sobem cordas das margens. Distingue-se uma jaqueta vermelha, talvez outros trajes e instrumentos de música. São árias populares, fragmentos de concertos senhoris, vestígios de hinos públicos? A água é cinzenta e azul, ampla como um braço de mar. – Um raio branco, desferido do alto céu, cai e aniquila esta comédia.

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Venus Anadyomène – Arthur Rimbaud Comme d’un cercueil vert en fer blanc, une tête De femme à cheveux bruns fortement pommadés D’une vieille baignoire émerge, lente et bête, Avec des déficits assez mal ravaudés; Puis le col gras et gris, les larges omoplates Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort; Puis les rondeurs des reins semblent prendre l’essor; La graisse sous la peau paraît en feuilles plates: L’échine est un peu rouge, et le tout sent un goût Horrible étrangement; on remarque surtout Des singularités qu’il faut voir à la loupe… Les reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS; —Et tout ce corps remue et tend sa large croupe Belle hideusement d’un ulcère à l’anus. Vênus Anadiomene – tradução de Ivo Barroso Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça Morena de mulher, cabelos emplastados, Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa, Com déficits que estão a custo retocados. Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce; Depois a redondez do lombo é que aparece; A banha sob a carne espraia em placas chatas; A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar Pormenores que são de examinar-se à lupa... Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus; -- E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.

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Lettre du Voyant, à Paul Demeny, 15 mai 1871 À Douai. Charleville, 15 mai 1871. J’ai résolu de vous donner une heure de littérature nouvelle. je commence de suite par un psaume d’actualité : CHANT DE GUERRE PARISIEN Le Printemps est évident, car Du cœur des Propriétés vertes [...] A. Rimbaud. — Voici de la prose sur l’avenir de la poésie -Toute poésie antique aboutit à la poésie grecque ; Vie harmonieuse. — De la Grèce au mouvement romantique, — moyen-âge, — il y a des lettrés, des versificateurs. D’Ennius à Théroldus, de Théroldus à Casimir Delavigne, tout est prose rimée, un jeu, avachissement et gloire d’innombrables générations idiotes : Racine est le pur, le fort, le grand. — On eût soufflé sur ses rimes, brouillé ses hémistiches, que le Divin Sot serait aujourd’hui aussi ignoré que le premier venu auteur d’Origines. — Après Racine, le jeu moisit. Il a duré deux mille ans !

Ni plaisanterie, ni paradoxe. La raison m’inspire plus de certitudes sur le sujet que n’aurait jamais eu de colères un jeune-France. Du reste, libre aux nouveaux ! d’exécrer les ancêtres : on est chez soi et l’on a le temps.

On n’a jamais bien jugé le romantisme ; qui l’aurait jugé ? les critiques !! Les romantiques, qui prouvent si bien que la chanson est si peu souvent l’œuvre, c’est-à-dire la pensée chantée et comprise du chanteur ?

Car Je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident : j’assiste à l’éclosion de ma pensée : je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet : la symphonie fait son remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène.

Si les vieux imbéciles n’avaient pas trouvé du Moi que la signification fausse, nous n’aurions pas à balayer ces millions de squelettes qui, depuis un temps infini, ! ont accumulé les produits de leur intelligence borgnesse, en s’en clamant les auteurs ! En Grèce, ai-je dit, vers et lyres rhythment l’Action. . Après, musique et rimes sont jeux, délassements. L’étude de ce passé charme les curieux : plusieurs s’éjouissent à renouveler ces antiquités : — c’est pour eux. L’intelligence universelle a toujours jeté ses idées, naturellement ; les hommes ramassaient une partie de ces fruits du cerveau : on agissait par, on en écrivait des livres : telle allait la marche, l’homme ne se travaillant pas, n’étant pas encore éveillé, ou pas encore dans la plénitude du grand songe. Des fonctionnaires, des écrivains : auteur, créateur, poète, cet homme n’a jamais existé !

La première étude de l’homme qui veut être poète est sa propre connaissance, entière ; il cherche son âme, il l’inspecte, il la tente, l’apprend. Dès qu’il la sait, il doit la cultiver ; cela semble simple : en tout cerveau s’accomplit un développement naturel ; tant d’égoïstes se proclament auteurs ; il en est bien d’autres qui s’attribuent leur

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progrès intellectuel ! — Mais il s’agit de faire l’âme monstrueuse : à l’instar des comprachicos, quoi ! Imaginez un homme s’implantant et se cultivant des verrues sur le visage.

Je dis qu’il faut être voyant, se faire voyant. Le Poète se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les

sens. Toutes les formes d’amour, de souffrance, de folie ; il cherche lui-même, il épuise en lui tous les poisons, pour n’en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, — et le suprême Savant — Car il arrive à l’inconnu ! Puisqu’il a cultivé son âme, déjà riche, plus qu’aucun ! Il arrive à l’inconnu, et quand, affolé, il finirait par perdre l’intelligence de ses visions, il les a vues ! Qu’il crève dans son bondissement par les choses inouïes et innombrables : viendront d’autres horribles travailleurs ; ils commenceront par les horizons où l’autre s’est affaissé !

— la suite à six minutes - Ici j’intercale un second psaume, hors du texte : veuillez tendre une oreille

complaisante, — et tout le monde sera charmé. — J’ai l’archet en main, je commence :

MES PETITES AMOUREUSES Un hydrolat lacrymal lave Les cieux vert-chou : [...] A. R.

Voilà. Et remarquez bien que, si je ne craignais de vous faire débourser plus de 60 c. de port, — Moi pauvre effaré qui, depuis sept mois, n’ai pas tenu un seul rond de bronze ! — je vous livrerais encore mes Amants de Paris, cent hexamètres, Monsieur, et ma Mort de Paris, deux cents hexamètres ! — Je reprends :

Donc le poète est vraiment voleur de feu. Il est chargé de l’humanité, des animaux même ; il devra faire sentir, palper,

écouter ses inventions ; si ce qu’il rapporte de là-bas a forme, il donne forme : si c’est informe, il donne de l’informe. Trouver une langue ;

— Du reste, toute parole étant idée, le temps d’un langage universel viendra ! Il faut être académicien, — plus mort qu’un fossile, — pour parfaire un dictionnaire, de quelque langue que ce soit. Des faibles se mettraient à penser sur la première lettre de l’alphabet, qui pourraient vite ruer dans la folie !-

Cette langue sera de l’âme pour l’âme, résumant tout, parfums, sons, couleurs, de la pensée accrochant la pensée et tirant. Le poète définirait la quantité d’inconnu s’éveillant en son temps dans l’âme universelle : il donnerait plus — (que la formule de sa pensée, que la notation de sa marche au Progrès ! Enormité devenant norme, absorbée par tous, il serait vraiment un multiplicateur de progrès !

Cet avenir sera matérialiste, vous le voyez ; — Toujours pleins du Nombre et de l’Harmonie ces poèmes seront faits pour rester. — Au fond, ce serait encore un peu la Poésie grecque. L’art éternel aurait ses fonctions ; comme les poètes sont citoyens. La Poésie ne rhythmera plus l’action, elle sera en avant.

Ces poètes seront ! Quand sera brisé l’infini servage de la femme, quand elle vivra pour elle et par elle, l’homme, jusqu’ici abominable, — lui ayant donné son

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renvoi, elle sera poète, elle aussi ! La femme trouvera de l’inconnu ! Ses mondes d’idées différeront-ils des nôtres ? — Elle trouvera des choses étranges, insondables, repoussantes, délicieuses ; nous les prendrons, nous les comprendrons.

En attendant, demandons aux poètes du nouveau, — idées et formes. Tous les habiles croiraient bientôt avoir satisfait à cette demande. — Ce n’est pas cela !

Les premiers romantiques ont été voyants sans trop bien s’en rendre compte : la culture de leurs âmes s’est commencée aux accidents : locomotives abandonnées, mais brûlantes, que prennent quelque temps les rails. — Lamartine est quelquefois voyant, mais étranglé par la forme vieille. — Hugo, trop cabochard, a bien du vu dans les derniers volumes : Les Misérables sont un vrai poème. J’ai Les Châtiments sous la main ; Stella donne à peu près la mesure de la vue de Hugo. Trop de Belmontet et de Lamennais, de Jéhovahs et de colonnes, vieilles énormités crevées.

Musset est quatorze fois exécrable pour nous, générations douloureuses et prises de visions, — que sa paresse d’ange a insultées ! Ô ! les contes et les proverbes fadasses ! Ô les nuits ! Ô Rolla, Ô Namouna, Ô la Coupe ! Tout est français, c’est-à-dire haïssable au suprême degré ; français, pas parisien ! Encore une œuvre de cet odieux génie qui a inspiré Rabelais, Voltaire, jean La Fontaine, ! commenté par M. Taine ! Printanier, l’esprit de Musset ! Charmant, son amour ! En voilà, de la peinture à l’émail, de la poésie solide ! On savourera longtemps la poésie française, mais en France. Tout garçon épicier est en mesure de débobiner une apostrophe Rollaque, tout séminariste en porte les cinq cents rimes dans le secret d’un carnet. A quinze ans, ces élans de passion mettent les jeunes en rut ; à seize ans, ils se contentent déjà de les réciter avec cœur ; à dix-huit ans, à dix-sept même, tout collégien qui a le moyen, fait le Rolla, écrit un Rolla ! Quelques-uns en meurent peut-être encore. Musset n’a rien su faire : il y avait des visions derrière la gaze des rideaux : il a fermé les yeux. Français, panadif, traîné de l’estaminet au pupitre de collège, le beau mort est mort, et, désormais, ne nous donnons même plus la peine de le réveiller par nos abominations !

Les seconds romantiques sont très voyants : Th. Gautier, Lec. de Lisle, Th. de Banville. Mais inspecter l’invisible et entendre l’inouï étant autre chose que reprendre l’esprit des choses mortes, Baudelaire est le premier voyant, roi des poètes, un vrai Dieu. Encore a-t-il vécu dans un milieu trop artiste ; et la forme si vantée en lui est mesquine — les inventions d’inconnu réclament des formes nouvelles.

Rompue aux formes vieilles, parmi les innocents, A. Renaud, — a fait son Rolla, — L. Grandet, — a fait son Rolla ; — les gaulois et les Musset, G. Lafenestre, Coran, CI. Popelin, Soulary, L. Salles ; les écoliers, Marc, Aicard, Theuriet ; les morts et les imbéciles, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, les Deschamps, les Desessarts ; les journalistes, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard ; les fantaisistes, C. Mendès ; les bohèmes ; les femmes ; les talents, Léon Dierx, Sully-Prudhomme, Coppée, — la nouvelle école, dite parnassienne, a deux voyants, Albert Mérat et Paul Verlaine, un vrai poète. — Voilà. — Ainsi je travaille à me rendre voyant. -

Et finissons par un chant pieux.

Carta a Paul Demeny – tradução de Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ) Charleville, 15 de maio de 1871

Resolvi dar-lhe uma hora de literatura nova. Começo de imediato por um salmo atual:

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CANTO DE GUERRA PARISIENSE [...]

– Agora um pouco de prosa sobre o futuro da poesia: Toda poesia antiga termina na poesia grega, Vida harmoniosa. – Da Grécia ao

movimento romântico, – idade média – há letrados, versificadores. De Ennius a Théroldus, de Théroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, deformação e glória de inúmeras gerações idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. – Houvessem insuflado suas rimas, embaralhado seus hemistíquios, e o Divino Idi ta7 seria hoje tão ignorado quanto o primeiro autor de Origens8. – Depois de Racine, o jogo embolorou. Durou dois mil anos!

Nem pilhéria nem paradoxo. A razão me inspira mais certezas sobre o tema do que, de raiva, poderia um dia ter um Jeune-France. De resto, os novos são livres para execrar seus antecessores: estamos em casa e temos tempo. O romantismo jamais foi bem julgado. Quem o teria julgado? os críticos!!

Os românticos? que provam tão bem que a canção poucas vezes tem a ver com a obra, isto é, com o pensamento cantado e compreendido pelo cantor? Pois EU é um outro. Se o cobre desperta clarim, não é por sua culpa. Isso me é evidente: assisto à eclosão de meu pensamento; contemplo-o; escuto-o; faço um movimento com o arco: a sinfonia faz seu movimento no abismo, ou de um salto surge na cena.

Se os velhos imbecis não houvessem encontrado do Eu apenas a significação falsa, não teríamos que varrer estes milhões de esqueletos, que há um tempo infinito, acumularam os produtos de sua inteligência caolha, proclamando-se autores!

Na Grécia, eu disse, versos e liras ritmam a Ação. Depois, música e rimas são jogos, passatempos. O estudo desse passado encanta os curiosos: muitos se divertem renovando essas antigüidades: – isso é feito para eles. A inteligência universal sempre lançou suas idéias naturalmente; os homens reuniam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se por eles, escreviam-se livros: essa era a marcha, uma vez que o homem não trabalhava a si mesmo, não havia ainda despertado, não estava ainda na plenitude do grande sonho. Funcionários, escritores: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!

O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é seu próprio conhecimento, completo; ele busca sua alma, investiga-a, tenta-a, aprende-a. Assim que a conhece, deve cultivá-la; isso parece simples: em qualquer cérebro se realiza um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; e há outros que atribuem a si mesmos seu próprio progresso intelectual! – Mas trata-se de tornar a alma monstruosa: à maneira dos comprachicos9, ora! Imaginem um homem implantando e cultivando verrugas em seu próprio rosto.

Digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e estudado desregramento

de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca por si mesmo, esgota em si todos os venenos, para guardar apenas suas quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana; em que ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo Sábio! – Pois ele chega ao desconhecido! Já que cultivou sua alma, já rica, mais que qualquer outro! Ele chega ao desconhecido; e quando, enlouquecido, acabar perdendo a inteligência de suas visões, ele as viu! Que exploda em seu salto por entre as coisas inauditas e inomináveis: outros horríveis trabalhadores virão, e começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu!

– a seqüência de seis minutos –

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Aqui intercalo um segundo salmo, fora do texto: disponha um ouvido complacente, – e todos ficarão encantados. – Tenho o arco na mão, começo: MINHAS POBRES NAMORADAS10 [...]

Aí está. E observe que se eu não temesse fazê-lo desembolsar mais de sessenta centavos de correio, – eu, pobre coitado que há sete meses não tive uma única moeda! – eu lhe ofereceria também ainda meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, Senhor, e minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros!

– Recomeço: O poeta é, pois, realmente um ladrão de fogo. É responsável pela humanidade, pelos próprios animais; ele deverá fazer com

que se sintam, apalpem, ouçam suas invenções; se o que ele traz de longe tem forma, ele dá forma; se é informe, ele dá informe. Encontrar uma língua; – De resto, como toda palavra é idéia, chegará o tempo de uma linguagem universal!

É preciso ser acadêmico, – mais morto do que um fóssil, – para completar um dicionário, qualquer que seja a língua. Os parvos começariam a pensar na primeira letra do alfabeto e poderiam rapidamente ser levados à loucura.

Essa língua será da alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento enganchando pensamento e puxando. O poeta definiria a quantidade de desconhecido que em sua época desperta na alma universal: ele daria mais – do que a fórmula de seu pensamento, do que a notação de sua marcha para o Progresso! Enormidade tornando-se norma, por todos absorvida, ele seria realmente um multiplicador de progressos!

Esse futuro será materialista, o senhor o vê; – Sempre plenos do Número e da Harmonia, esses poemas serão feitos para ficar. – No fundo, seria ainda um pouco a Poesia grega. A arte eterna teria suas funções; como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a ação; ela estará adiante.

Esses poetas serão! E quando tiver sido quebrada a servidão da mulher, quando ela viver para si e por si, o homem, – até aqui abominável – a despachará, e ela, também, será poeta! A mulher encontrará desconhecido! Seus mundos de idéias serão diferentes dos nossos? – Ela encontrará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós as tomaremos, nós as compreenderemos.

Enquanto esperamos, peçamos aos poetas o novo, – idéias e formas. Todos os hábeis logo acreditariam ter satisfeito essa exigência. – Não é isso! Os primeiros românticos foram videntes sem se darem conta: a cultura de suas almas iniciou-se acidentalmente: locomotivas abandonadas mas ardentes, que seguem os trilhos durante algum tempo. – Lamartine é, às vezes, vidente, mas estrangulado pela forma velha. – Hugo, teimoso demais, viu muito nos últimos volumes: Os miseráveis é um verdadeiro poema. Tenho Os castigos sob as mãos: Stella dá relativamente bem a medida da visão de Hugo, Demasiado Belmontet e Lamennais, demasiados Jeovás e colunas, velhas enormidades arrasadas.

Musset é 14 vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas por visões, – como sua preguiça de anjo insultou! Oh! os contos e os provérbios enfadonhos! oh as noites! oh Rolla, oh Namouna, oh a Taça! Tudo é francês, quer dizer odioso ao grau supremo; francês, e não parisiense! Mais uma obra deste gênio odioso que inspirou Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine! comentado pelo sr. Taine! Primaveril o espírito de Musset! Encantador o seu amor! Aí está, pintura esmaltada, poesia sólida!

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Durante muito tempo a poesia francesa será saboreada, mas na França. Qualquer menino de mercearia é capaz de desenrolar uma apóstrofe Rollaca, qualquer seminarista guarda quinhentas rimas no segredo de um caderno. Aos 15 anos, esses impulsos de paixão põem os jovens no cio; aos 16, eles já se contentam em recitá-los com ardor; aos 18 anos, mesmo aos 17, qualquer colegial que tem os meios faz o Rolla, escreve um Rolla! Talvez alguns ainda morram por isso. Musset nada soube fazer: havia visões por detrás do véu das cortinas: ele fechou os olhos. Francês, miserável, arrastado da bodega à carteira da escola, o belo morto está morto, e, doravante, não nos demos sequer ao trabalho de despertá-lo com nossas abominações! Os segundos românticos são bastante videntes: Théophile Gautier, Leconte de Lisle, Théodore de Banville. Mas como inspecionar o invisível e ouvir o inaudito não é a mesma coisa que retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Ele também, porém, viveu em um meio demasiado artista; e a forma nele tão exaltada é mesquinha: as invenções de desconhecido exigem formas novas. Rompida com as formas velhas, entre os inocentes, A. Renaud – fez seu Rolla; L. Grandet, – fez seu Rolla; os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, Cl. Popelin, Soulary, L. Salles; os escolares, Marc, Aicard, Theuriet; os mortos e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamps, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boêmios; as mulheres; os talentos, Léon Dierx, Sully-Prudhomme, Coppée, – a nova escola, dita parnasiana, tem dois videntes, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. – Aí está12. – Assim trabalho para tornar-me vidente. –

E terminemos com um canto piedoso.

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