TARANTINO É ADORNO: A RELAÇÃO BLAXPLOITATION, CINEMA ...

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ONDE - E COMO - TARANTINO É ADORNO: A RELAÇÃO BLAXPLOITATION, CINEMA CLÁSSICO E INVERSÃO Filipe Artur de Sousa Queiroz 1 RESUMO O trabalho se configura como um momento específico de nossa pesquisa: dimensionar o cinema de Quentin Tarantino, por meio da aproximação com certas tecnologias teóricas - neste caso, a teoria estética de Theodor Adorno. As reflexões tratadas aqui possuem a clara pretensão de serem histiriográficas, sendo executadas para compreender nosso problema central: quando, porque e sobretudo como uma narrativa cinematográfica como a de Quentin Tarantino se torna realizável, dentro da específica história da narrativa cinematográfica hollywoodiana? Contudo, o foco deste artigo se faz num outro questionamento: como uma obra que do ponto de vista da configuração do sensível, na qual se vê nitidamente que uma possível falta de incentivo financeiro - e tecnológico - não se caracteriza como alguma limitação para a produção da obra de arte, como diante disto, Tarantino (ainda) insiste em produzir efeitos e estratégias cinematográficas típicas de um cinema que justamente se caracterizava pelo baixo orçamento e déficit tecnológico - os ditos blaxploitation? E que justamente por conta disto - não exclusivamente, é claro - este tipo de “abordagem” cinematográfica elaborava uma narrativa que “subvertiaum “gênero” dominante. Ou seja: afinal, porque Tarantino ainda insiste em reproduzir formas de um cinema que em outro momento foram marginais? PALAVRAS-CHAVE: TARANTINO; NARRATIVA; ADORNO; CINEMATOGRAFICA; HISTORIOGRAFICAS Pensemos um pouco sobre as razões de nossa escolha da obra de Quentin Tarantino, para dentro de um trabalho com pretensões primordialmente historiográficas. Anteriormente nos apegávamos ao critério da sua “suposta” capacidade\habilidade de levar aos extremos “metodologias” de feitoria de um cinema específico, o hollywoodiano. E era exatamente nisto que tornava possível problematizar sua narrativa cinematográfica, buscando não apenas significá-la numa perspectiva da “análise fílmica”, mas sim, legitimar nossas reflexões como pertencente ao campo da ciência histórica. Contudo, com o desenrolar das leituras e suas discussões, confirmou-se que o referido cineasta poderia nos dizer algo a mais. E desta maneira, tratamos de sofisticar nossa antiga justificativa sobre o uso da obra tarantiniana: como uma obra que do ponto de vista da configuração do sensível, na qual se vê nitidamente que uma possível falta de incentivo financeiro - e tecnológico - não se caracteriza como alguma limitação para a produção da obra de arte, como diante disto, Tarantino (ainda) insiste em produzir efeitos e estratégias cinematográficas típicas de um cinema que justamente se caracterizava pelo baixo orçamento e déficit tecnológico? E que justamente por conta disto - não exclusivamente, é claro - este tipo de “abordagem” cinematográfica elaborava uma narrativa que subvertia um “gênero” dominante. Ou seja, diante desta nova exposição, questiona-se: 1 Mestrado (PPGH - UFG). Bolsista Capes. Email: [email protected]

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ONDE - E COMO - TARANTINO É ADORNO: A RELAÇÃO BLAXPLOITATION,

CINEMA CLÁSSICO E INVERSÃO Filipe Artur de Sousa Queiroz1

RESUMO

O trabalho se configura como um momento específico de nossa pesquisa: dimensionar o cinema

de Quentin Tarantino, por meio da aproximação com certas tecnologias teóricas - neste caso, a

teoria estética de Theodor Adorno. As reflexões tratadas aqui possuem a clara pretensão de

serem histiriográficas, sendo executadas para compreender nosso problema central: quando,

porque e sobretudo como uma narrativa cinematográfica como a de Quentin Tarantino se torna

realizável, dentro da específica história da narrativa cinematográfica hollywoodiana? Contudo,

o foco deste artigo se faz num outro questionamento: como uma obra que do ponto de vista da

configuração do sensível, na qual se vê nitidamente que uma possível falta de incentivo

financeiro - e tecnológico - não se caracteriza como alguma limitação para a produção da obra

de arte, como diante disto, Tarantino (ainda) insiste em produzir efeitos e estratégias

cinematográficas típicas de um cinema que justamente se caracterizava pelo baixo orçamento

e déficit tecnológico - os ditos blaxploitation? E que justamente por conta disto - não

exclusivamente, é claro - este tipo de “abordagem” cinematográfica elaborava uma narrativa

que “subvertia” um “gênero” dominante. Ou seja: afinal, porque Tarantino ainda insiste em

reproduzir formas de um cinema que em outro momento foram marginais? PALAVRAS-CHAVE: TARANTINO; NARRATIVA; ADORNO; CINEMATOGRAFICA;

HISTORIOGRAFICAS

Pensemos um pouco sobre as razões de nossa escolha da obra de Quentin Tarantino, para

dentro de um trabalho com pretensões primordialmente historiográficas. Anteriormente nos

apegávamos ao critério da sua “suposta” capacidade\habilidade de levar aos extremos

“metodologias” de feitoria de um cinema específico, o hollywoodiano. E era exatamente nisto

que tornava possível problematizar sua narrativa cinematográfica, buscando não apenas

significá-la numa perspectiva da “análise fílmica”, mas sim, legitimar nossas reflexões como

pertencente ao campo da ciência histórica. Contudo, com o desenrolar das leituras e suas

discussões, confirmou-se que o referido cineasta poderia nos dizer algo a mais. E desta maneira,

tratamos de sofisticar nossa antiga justificativa sobre o uso da obra tarantiniana: como uma

obra que do ponto de vista da configuração do sensível, na qual se vê nitidamente que uma

possível falta de incentivo financeiro - e tecnológico - não se caracteriza como alguma limitação

para a produção da obra de arte, como diante disto, Tarantino (ainda) insiste em produzir

efeitos e estratégias cinematográficas típicas de um cinema que justamente se caracterizava

pelo baixo orçamento e déficit tecnológico? E que justamente por conta disto - não

exclusivamente, é claro - este tipo de “abordagem” cinematográfica elaborava uma narrativa

que subvertia um “gênero” dominante. Ou seja, diante desta nova exposição, questiona-se:

1 Mestrado (PPGH - UFG). Bolsista Capes. Email: [email protected]

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afinal, porque Tarantino ainda insiste em reproduzir formas de um cinema que em outro

momento foram marginais?

Para tentar melhor desenharmos o quadro teórico acerca deste “melhoramento” de nosso

problema, acerca de um “sintoma” que nos intriga, busquemos melhor sua contextualização.

Retomemos as discussões acerca deste “cinema marginal”. Por ora, concentraremos nossas forças

apenas numa atitude cinematográfica - entre tantas - que influencia diretamente a obra de nosso

diretor. O Blaxploitation - cinematografia de cunho estadunidense2. Num primeiro passo se faz

efetivo procurar não estabelecer algum tipo de conceituação ou mesmo definição, mas sim localizar

como tal atitude fílmica se articulava - tanto do ponto de vista de uma organização do material

estético, ou, mais precisamente para o nosso caso, como se relacionava com as “dominantes”

“recomendações” de fabricação de um específico cinema narrativo. Em sua dissertação3 de mestrado

defendida em 2011, Victor M. Oiwa realiza uma leitura sobre o ciclo blaxploitation, especificando

sua análise nos usos das trilhas sonoras de algumas destas obras dos anos 1970. O autor estabelece

uma relação interessante e potencialmente valiosa para as ciências humanas, que é a aproximação

entre uma demanda mercadológica e uma necessidade social específica de representação - contudo,

infelizmente, tal estratégia interpretativa é pouco aprofundada. A produção blaxploitation não se

resumiu à apenas uma necessidade de mercado - interesse dos grandes estúdios em lucrar com

cinemas de negros, feito para negros. Mas também, e de maneira mais relacional, à uma noção de

representação: específica parcela da população estadunidense sentir-se “representada” em alguma

noção ou possibilidade, ou de um personagem, ou até mesmo de um super herói.

Quando falamos em “atitudes fílmicas” estamos nos referindo precisamente a

comportamentos diegéticos, inserções de elementos específicos - como diálogos, decupagem das

cenas, escolhas de trilhas sonoras, bem como suas funções -, todos estes elementos que são

introduzidos dentro da narrativa fílmica e passam a exercer funções que levam à possibilidade de

alguma caracterização da atitude do diretor, ou de um gênero, quem sabe. E olhando para as

específicas produções blaxploitation de 1970 o que conseguimos estabelecer não é um conjunto de

atividades que buscam alguma universalização. Mas elementos que estão em várias narrativas

cinematográficas - elementos distintos uns dos outros, até - e que acabam por realizar um objetivo

comum: destoar de alguma unidade de recomendação de feitoria do cinema - fosse ela “oficial” (como

2 Há significativas discussões acerca da validade da necessidade de alguma definição (e classificação) dos gêneros

cinematográficos. Afinal, questiona-se, blaxploitation é um gênero ou subgênero do cinema, ou um ciclo? Tal discussão

não se faz, neste momento, interessante e salutar para nossas argumentações. Gostaríamos de concentrar nossas forças

reflexivas no que este tipo de cinematografia fora capaz de produzir, do ponto de vista de atitudes (comportamentos)

fílmicas, e como tais empreendimentos influenciam a obra de Quentin Tarantino. 3 OIWA, V. M. 2011.

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código Hays4) ou habitual entre o quotidiano da cinematografia - ou como algum “sistema clássico”5

de fabricação de cinema. Ou seja, comportamentos que se afastam do que se configura como

tradicional, “recomendável” ou até “normal” para as produções cinematográficas. Esta é a atitude

fílmica que trabalharemos ao nos debruçarmos sobre as produções blaxploitation. Tratemos de

entender isto de maneira mais concreta. Sweet Sweetback's Baadasssss Song6. Retrata-se ali um

quotidiano marginalizado, bem como seus costumes e seus hábitos. O apelo sexual, ou liberdade

sexual (diríamos) são suas características marcantes. Um fator interessante que decididamente se

contrasta com uma obra como a de Howard Hanks (His Girls Friday)7, por exemplo, é a função (e

emprego) de diálogos conscientemente elaborados: não há na produção de Melvin Van Peebles

diálogos longos, ou mesmo jogos de retóricas entre personagens visivelmente conscientes de sua

função dentro do jogo diegético; nem mesmo situações que dependem inexoravelmente da habilidade

no uso das palavras para existirem, como ocorre na obra de Hanks. Os impasses são resolvidos graças

à astúcia, inteligência e esperteza (e sobretudo malandragem - habilidade de subverter, precisamente)

dos personagens.

O mesmo ocorre em His Girl Friday. Contudo, quando comparado a Sweetback's Baadasssss

Song percebemos que a habilidade em subverter a regra, “ganhar sempre”, se localiza dentro de

contextos distintos. Na obra de Howard Hanks, por exemplo, o diálogo elaborado, consciente, leva a

uma espécie de subversão à regra social - e na maioria das vezes moral. No entanto, esta atitude se

faz numa finalidade de benefício próprio - no caso, Walter Burns. Por outro lado, contrastando

diretamente com o que se pode chamar de “desvio social\moral”, em Sweetback's Baadasssss Song,

a subversão ocorre primeiramente não pela dependência de um diálogo consciente e extremamente

elaborado. Mas sim graças à necessidade de sobrevivência do personagem Sweetback, frente a

4 Código elaborado em 1927 pelo advogado e político Will H. Hays - cabeça da MPPDA - no qual se configurou como

uma estratégia dos empresários dos grandes estúdios de Hollywood para evitar possíveis dissentimentos, sobretudo

censura dos meios governamentais. 5 Deve se esclarecer que tal “sistema clássico” não corresponde a uma fórmula. Dentro das capacidades tecnológicas da

narrativa cinematográfica clássica, encontramos diversas possibilidades de tornar inteligível o que se está narrando. O

que não representa, contudo, que necessariamente exista receitas fixas para sua fabricação - elas priorizam a claridade do

entendimento dos acontecimentos. BAPTISTA, M. p. 54 - 55. 2011 6 1971. Dirigido por Melvin Van Peebles. A obra se fez como um grande “clássico” do “gênero” por ser um dos primeiros

a ser produzido. Evidentemente, não somente por isto, mas pela capacidade reflexiva de seus elementos, além da

originalidade de suas atitudes fílmicas. 7 Jejum de amor (tradução brasileira). Obra de Howard Hanks feita em 1940, na qual se conta a história do conturbado e

divertido casal Walter e Hildy. A problemática do filme gira em torno das (im) possibilidades do casal reatar - atualmente

recém divorciados. Contudo, Hildy quer seguir em frente, enquanto que seu ex-marido (editor chefe do jornal onde ela

deseja se demitir) insiste para que o romance seja retomado.O personagem que se destaca sem sombra de dúvidas é Walter

Burns. Somos levados a usar como justificativa principal para tal afirmação sua potencialidade criativa, no que se refere

ao seu destreza na argumentação. O personagem de Cary Grant possui afinada persuasão que nos leva sempre ao riso

admirável: a rapidez e engenhosidade de seu pensamento para criar e solucionar situações é algo certamente risível (além

da capacidade em criar histórias, dentro da própria história fílmica). Comprovando, assim, que um bom personagem, bem

como um elaborado uso de palavras podem ser muito eficazes na manutenção da audiência cinematográfica: o

telespectador se mantém vidrado e concentrado no enredo da trama.

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injustiça - e truculência - policial; além da vontade de assegurar sua liberdade individual, mesmo

quando o estado deseja o contrário. A trilha sonora é outro ponto marcante: não há um trabalho

“erudito” ou “clássico”, que procure antes de tudo ambientar a cena e (ou) o telespectador. Tem-se

músicas que realizam a social e cômica tarefa de comentar os fatos e ocorridos na narrativa. Se em

algumas obras o herói se livra das “enrascadas” do destino graças às suas habilidades no uso das

palavras, em Sweet Sweetback's Baadasssss Song temos um personagem que se safa graças às suas

potencialidades sexuais. Denunciando assim, talvez, a marginalidade que o sexo, bem como a

sexualidade possuíam na narrativa cinematográfica tradicional - já que tal tipo de temática se fez

possível justamente numa obra cuja produção se localizou às margens da centralidade da tradição

cinematográfica de Hollywood.

Across 110th Street, produção de 1972 dirigida por Barry Shear. O contexto da obra se passa

no Harlem no qual o titulo se refere à fronteira informal entre os dois núcleos: italianos e negros. E

tem como pano de fundo a transferência de cargos no departamento de polícia, onde o Capitão Matelli

(Anthony Quinn) é substituído pelo tenente negro Pope (Yaphet Kotto). Talvez a primeira coisa que

possa nos chamar atenção, seja sua violência gratuita. Em todos os sentidos! A narrativa é dotada de

uma agressividade à agentes passivos, na maioria dos casos cidadãos que são ultrajados pela força e

truculência policial: o ladrão que paga com a vida, após ser duramente torturado, pelos próprios

membros de suas comunidades (os “Brothers”), ou por outras esferas do submundo (como a máfia

italiana). Não há longos e afinadissímos diálogos para superação (e solução) de impasses. O que

ocorre como alternativa é o uso exacerbado (e assustador, por vezes) da violência: os dilemas entre

os personagens são superados pelo uso da força, tortura e uso de armas. O ato final Jim Harris (Paul

Benjamim), antes de sua morte se configura como emblemático e problemático. Enxerga-se ali um

ato heróico que acaba por criticar (refletir, precisamente) toda uma estrutura burocrática e existencial

da vida. Harris baleado com dois tiros, percebendo que resta-lhe poucas (ou nenhuma) alternativas

que o levará a sair com vida, olha para as ruas do Harlem (NY) e decide jogar a maleta de dinheiro

para os que ali estão. A atitude do personagem pode se configurar, também, como uma afronta às

estruturas policiais. Pois sendo morto, o dinheiro possivelmente iria para o domínio das esferas

policiais burocráticas, sobretudo corruptas, fazendo com que todo o seu esforço (incluindo sua última

e fracassada luta pela sobrevivência) não fizesse-lhe algum sentido.

Tomemos como análise a obra de Orson Welles (1941), agora, para posteriormente

realizarmos um paralelo com as duas obras blaxploitation já citadas. Citizen Kane propõe retratar a

história de Charles Foster Kane. Importante e expressivo empresário e jornalista que ao longo de sua

história construiu impérios da mídia impressa - “The inquirer”. A trama passa por vários momentos

importantes da história estadunidense como a Primeira guerra mundial, Crise de 1929 e Guerra

Hispano-Americana, no intuito de elucidar como o enigmático personagem se articulou e se

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posicionou diante de tais acontecimentos. A dinâmica da obra se articula através de relatos de amigos

e familiares próximos de Kane, entre eles uma de suas ex-esposas, antigos amigos e desafetos, e ex-

funcionários. São memórias acerca da experiência que tais figuras tiveram com o personagem em

questão. A trama pretende montar uma seqüência de acontecimentos no passado - memórias,

precisamente - que torne possível compreender e articular seus objetivos. Do ponto de vista da

narrativa cinematográfica “clássica”, Citizen Kane expressa componentes que nos permitem

enquadrá-la dentro de um tradicional processo de “feitoria cinematográfico”. Há a localização

imediata de um problema principal, e um secundário - algo típico a este tipo de produção:

respectivamente, saber o que significa “Rosebud” e tentar saber não o que o fez Mr. Charles Kane,

mas sim quem ele era. Para a consagração de tais objetivos firma-se uma narrativa com uma seqüência

temporal lógica e tradicional. Onde cada relato de cada personagem se refere a um momento

específico da vida de Mr. Kane: sua ex-esposa Susan Alexander Kane, seu amigo e antigo desafeto

Jedediah Leland, o empregado Mr. Bernstein8. A primazia do diálogo prevalece, principalmente na

força retórica de Mr. Kane. O filme não somente comporta uma consciência imagética superior à

algumas produções posteriores, como uma consciência e velocidade no emprego das palavras

igualmente qualitativos. Isto confirma-se especificamente na cena em que Mr. Kane dialoga com

Walter Parks Thatcher, seu ex-guardião legal, sobre ideológicas atitudes de Mr. Kane frente a direção

de seus jornais, em defender o proletariado e os “menos favorecidos”. A rapidez e lucidez - além é

claro de um ranço moralista de autosacrifício - de seu pensamento e suas palavras são capazes de

silenciar Mr. Thatcher, em sua fúria contra a atitude de Kane em se voltar contra os acionistas do

transporte público. Nota-se a função principal que empregam à trilha sonora: a mesma que utilizaram,

por exemplo, na contemporânea produção Jejum de amor (His girl Friday), de 1941. Ela possui o

claro objetivo de ambientar a cena, auxiliando, certamente, na manipulação das emoções do

espectador. Não se observa nesse tipo de produção objetivos de comentar ou reforçar alguma ideia

de alguma instância narradora superior. Ao contrário, até. Somos sempre levados a crer que a

sucessão dos fatos ocorre dentro de uma naturalidade já tradicionalmente cristalizada. Ao longo da

8 C. Cangaçu em sua dissertação de mestrado “A construção narrativa e plástica do filme Matrix” (2008) nos traz

relevantes informações, leituras e estratégias teóricas e metodológicas acerca do cinema clássico hollywoodiano. Elenca

algumas características deste cinema que podem se fazer constantes dentro de uma série de particularidades e ser

compreendido como “cinema clássico”. Todas estas características se estruturam a partir de duas diretrizes básicas: 1)

reprodução e consequentemente cristalização de estereótipos e estratégias narrativas que acabaram por consolidar a

linguagem cinematográfica; e 2) fortalecimento da condição ou do caráter ficcional da obra cinematográfica. Ou seja, não

possibilitar que o espectador perceba que aquilo que está na tela se trata de uma obra de ficção. E como isto se realiza no

cinema? Por exemplo, deixando bastante evidente ao espectador quais são os objetivos da trama. Como no caso de Citizen

Kane saber o que significa “Rosebud”, além da empreitada de descobrir quem era Mr. Kane. Tal estratégia faz com que

o espectador não pense na sua condição e questione o que está assistindo. Afinal de contas, como bem escreve Cangaçu,

“Ambiguidades irresolutas, tramas sem conclusões e artifícios para que o espectador questione ‘o meio cinematográfico’ não são elementos muito bem vindos nesse cinema”. CANGAÇU, C. p. 48. 2008.

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narrativa vamos observando que Mr. Kane se articula como um típico herói da tradição

hollywoodiana: supera todas as suas supostas adversidades, procurando prevalecer não precisamente

seus ideais, mas suas concepções e ideologias que superam qualquer senso falho de justiça, até mesmo

os formalizados pelo estado ou pelas instituições. Isto acaba por conferir à sua figura um teor de

moralidade que será diversas vezes reproduzido pelos estereótipos cinematográficos hollywoodiano.

Como por exemplo, nos típicos e tradicionais Western hollywoodiano9.

Procuremos retomar o panorama geral sobre o quadro das atitudes fílmicas que desejamos

formular em nosso trabalho. A partir de nossa reflexão da obra de Melvin Van Peebles levantamos

duas características fulcrais que se contrastam decisivamente com um suposto “sistema clássico

hollywoodiano”: ausência de diálogos conscientemente elaborados e o diferenciado emprego das

trilhas sonoras. Já em Across 110th Street buscamos frisar que o uso indevido da violência possui um

objetivo claro: a superação de impasses e das situações problemas. Além do fato de que específicos

personagens da trama possuem ordenamentos críticos às instituições burocráticas que na maioria das

vezes, serão diretamente contrários a algum senso de justiça, ética ou moral formalizados por uma

instituição (polícia), ou por uma instância governamental (estado). Por outro lado sobre Jejum de

amor (His Girl Friday) procuramos refletir e trazer para nossas discussões alguns outros elementos:

uso excessivamente consciente da palavra, dos diálogos que na maioria das vezes acabam por colocar

os personagens em belas e espertas saídas de cenas e superação de impasses e situações

problemáticas. E a partir desta características buscamos elucidar que quando comparado com Sweet

Sweetback's Baadasssss Song, por exemplo, a criatividade para se elaborar uma ficção, dentro de um

ficção, ou ou uma história dentro da história, esta criatividade surge de interesse próprio, em benefício

próprio. Não pretende, mesmo que inconscientemente, qualquer crítica ou função social nesta atitude.

Apenas um entretenimento que consiste em “salvar a pele” de um personagem. E por último

analisamos Citizen Kane no qual demonstramos que há, também, um emprego mais consciente da

palavra e dos diálogos onde a retórica se fixa como estratégia para superação de impasses e situações

perigosas. Outra definição que desejamos refletir fora a questão do protagonista orientado

precisamente por uma noção capitalista e sobretudo moralista, o que acaba por consolidá-lo como

herói e figura altamente reproduzível na filmografia estadunidense.

Diante disto, deve se perguntar, o que isto tudo representa? O que pretendemos, então, com

essas análises e comparações de análises fílmicas? Apenas elas, apenas a análise? Certamente não!

Estamos interessados, deve-se relembrar, o que estas atitudes fílmicas podem nos esclarecer acerca

9 Para aqueles que necessitam de um exemplo material para esta constatação, deve se atentar a alguns Western que John

Wayne protagonizou. Em especial, Rio Bravo (1959) e The Searchers (1956) nos quais a figura do americano racista -

ódio ao indígena - portador de um senso moral quase patológico procura estabelecer sua ordem (fazer justiça) a partir do

exemplo de sua experiência existencial e temporal.

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da condição em certos momentos da história da narrativa cinematográfica hollywoodiano. Objetiva-

se com tais aproximações melhor desenhar ou contextualizar como e onde um específico cinema tido

com “marginal”, ou de “baixo orçamento” “subverte” - por meio de certas atitudes fílmicas - um

processo de fabricação do cinema entendido como “sistema clássico”. Quando o cinema buscou se

consolidar como uma arte dotada de uma linguagem e sobretudo de uma expressividade própria, que

se adaptasse à sua condição narrativa e tecnológica - lembrando que estamos falando da história do

cinema hollywoodiano -, ele elabora fórmulas e estereótipos que passam “representar” apenas

específicos setores. E é exatamente neste ponto que entra a relevância do trabalho de Victor M. Oiwa

no qual consegue enxergar, em suas leituras e interpretações dos blaxploitation, mesmo não

aprofundando tanto no assunto, que justamente esta “subversão” às atitudes fílmicas “clássicas”

(“dominantes”) se fez como uma elaboração de uma nova linguagem, de outra expressividade para a

confecção de narrativas cinematografias. Filmes que mesmo se configurando como ficção - a priori

afastando-se do real - se aproximavam mais efetivamente de outro contexto estadunidense da década

de 1970. E esta “subversão” se dá em elementos específicos, por nós já apontados: 1) ausência de

diálogos conscientemente elaborados, primando, ao contrário, assim, por alguma composição

imagética mais emblemática e estilística - sobreposições de imagens que ocorre em Sweet

Sweetback's Baadasssss Song; 2) não optar por diálogos na superação dos impasses (dilemas), e sim

recorrer ao mecanismo da exposição da violência, usurpando, talvez, algum senso moral de não

agressão aos aparelhos sensoriais do espectador - afinal, toda esta dinâmica acaba por chocar; 3) o

benefício próprio que é tão comum como “justificativa” no emprego dos diálogos conscientes, se

transforma num “benefício próprio” mais próximo da marginalidade quotidiana do negro, ou seja,

quase um novo método de tornar aquilo que está na tela menos “estranho” ao espectador. Qual o

resultado disto? Com esta aproximação - e consequentemente elaboração de um novo fazer - os filmes

blaxploitation “subvertem” a “recomendação central” de não possibilitar que o espectador questione

as composições narrativas daquela diegese. E 4) o uso das trilhas sonoras não mais para somente

“ambientar”, mas sim - principalmente - comentar.

E no fim das contas, como tudo isso se relaciona com a obra de Quentin Tarantino? Afinal,

nossas problematizações centrais giram em torno de um objeto específico: sua narrativa. A obra

tarantiniana pode se configurar para alguns numa vasta potencialidade de irrelevância cômica e

bizarra, combinando elementos que vão da paródia à ridicularização, e que por diversas vezes nos

provoca o riso imediato, impossibilitando dimensioná-la ou refletir sobre a mesma de forma séria e

comprometida. Mas deve-se compreender que o cineasta vem realizando trabalhos que

problematizam - não somente - processos de feitoria da narrativa cinematográfica, e não - certamente,

não! - reproduz qualquer máxima que coloque o cinema como puro entretenimento - ao rechear, por

exemplo, suas obras com elementos da cultura pop e de consumo. Tarantino é enciclopédico, e

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cinéfilo por natureza, seu conhecimento sobre a diversidade temática e tecnológica da narrativa no

cinema é algo sempre presente em suas composições. Abaixo segue um trecho que possui uma

interessante reflexão acerca desta sua característica, que é levar o supérfluo a um nível de quase

exacerbação de seu uso, que acaba por refletir sobre a capacidade dos discursos.

Este prazer na contradição é o verdadeiro cartão de visitas de Tarantino, escrever filmes

“pulp” para o público que mais do que desejosos de emoções viscerais, é possivelmente quem

não tenha muito contato com Tolstoy, e muito menos ouvido falar sobre Michael Crichton ou

John Grisham, mas que possivelmente possa calcular quão sangrento pode ser um bife

“Douglas Sirk Steak”, ou a diferença qualitativa entre Bewitched e I Dream of Jeanine10.

PEARY, G. p. 50. 1998.

Tarantino se apropria de todos estes recursos metodológicos, destes fazeres

cinematográficos “marginais”; de todas estas “subversões” à alguma ordem dominante tida

como “clássico”. Se alimenta tanto das fontes dos “marginais”, como também das “centrais” -

contudo, como veremos mais a frente, este tipo de alimentação consiste, também, numa atitude

com finalidade “subversiva”. Não cabe a esta expressão - “subversão” - precisa definição do que

Tarantino realiza, ao se apropriar de certas atitudes fílmicas e inseri-las em suas produções.

Mauro Baptista11 nos apresenta a alternativa reflexiva de que não se trata necessariamente

disso, mas sim de “inversão das convenções de gênero” 12 . E no que consiste? Quebra na

linearidade de uma tradição da narrativa cinematográfica, mudando uma série de convenções

altamente reproduzidas ao longo da história da narrativa cinematográfica hollywoodiana.

Diante disto, resta-nos saber, agora, por fim, como o cineasta opera tais diretrizes e

componentes. Para tanto, deve-se debruçar sobre alguns momentos de alguns de seus filmes. É

exatamente aqui que podemos enxergar se formando mais claramente a aproximação com a

teoria estética adorniana: nesta retomada de específicas atitudes fílmicas, e sua resignificacão

por meio de uma problematização.

Pulp Fiction, 1994. O filme conta a história do quotidiano de alguns criminosos (Vincent

Vega e Jules Winnfield) - bem como seus desdobramentos - que possuem a função de entregar

uma misteriosa maleta - não nos é revelado seu conteúdo - ao chefe igualmente criminoso

Marsellus Wallace. Gostaríamos de nos concentrar em uma específica cena, a última: a cena do

assalto à lanchonete. As encenações giram em torno de quatro personagens centrais, Yolanda,

Pumpkin - ou “Ringo” - Vicent Vega e Jules Winnfield. Os dois primeiros pretendem assaltar o

10 No original: “That delight in contradiction is really Tarantino’s calling card, for the writes pulp movies for audiences

who want more than mere visceral thrills, who may not have read much Tolstoy, and even less Michael Crichton or John

Grisham, but who might figure out how bloody a ‘Douglas Sirk Steak’ can be, or the qualitative difference between

Bewitched and I Dream of Jeanine.”. PEARY, G. p. 50. 1998. 11 BAPTISTA, M. 2011. 12 Idem. p. 71.

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restaurante Howthorne Grill, onde se encontram, também, Vincent e Jules. A cena é recheada

com diálogos cômicos, informações completamente desnecessárias ao entendimento da

narrativa e, sobretudo, apresenta duas perspectivas sobre o mesmo ponto de vista. O assalto se

inicia e os núcleos se encontram. Jules consegue se sobrepor à situação, e apontar sua arma

para Pumpkin. A cena mergulha numa típica tensão tarantiniana: gritarias, jogos de palavrões

e principalmente prolongamentos dos momentos anteriores e posteriores ao ato de violência13. O

espectador acredita que Jules - ou Yolanda - irá atirar, fazendo-nos temer pelo banho de sangue.

Contudo, que se observa são diálogos excessivos e retóricas bem elaboradas, o que faz a tensão

da cena aumentar - como por exemplo a contagem para abrir a maleta; e os elogios à “bela”

performance de Yolanda; bem como as declarações amorosas do casal. Tarantino nos enche com

informações completamente desnecessárias tanto à compreensão da trama, quanto, sobretudo,

para tornar as reações cênicas ainda mais irreais - o fato de Yolanda querer fazer necessidades

fisiológicas; a contagem do dinheiro da carteira de Jules; ou a citação de Ezequiel. Desta maneira

afasta-se de qualquer “naturalidade” - “alguém reagiria desta maneira à um assalto?”,

“Sentiria este tipo de sensação?” ou “falaria exatamente isto?” - criando situações hiper-

realistas bizarras14 - bizarras para um assalto, no caso. Não se trata necessariamente de afastar

de alguma naturalidade - aproximação com o real -, mas sim de específicas convenções

narrativas cinematográficas que asseguram, de uma forma “tradicional”, a atenção do

espectador. Afinal, a premissa base da narrativa cinematográfica clássica é justamente não

permitir que se questione o que se assiste. Não há nesta específica cena atos que atentem aos

aparelhos sensoriais dos espectadores. O que há é justamente uma inversão: usos e abusos de

diálogos em momentos anteriores ao possível momento de violência, que fazem a narrativa

estagnar gerando na maioria das vezes o riso - afinal, as situações são levadas aos seus extremos,

à ridicularização, por vezes.

A questão dos diálogos excessivos, prolongando momentos prévios de violência, e

fazendo a narrativa estagnar no tempo, se configura como retomada de uma atitude fílmica

realizada pelo “cinema clássico” - conscientes diálogos com hábil uso das palavras. Porém, toda

esta apropriação se faz dentro de uma inversão da dinâmica de atitudes fílmicas do

blaxploitation - mostrar a violência, o horror; o ato de violentar; explorar a agressão ao

sensório. Tarantino inverte, ou seja, o que se fez como importante, em alguma atitude fílmica,

agora se torna banal15 - o diálogo que pode se fazer ausente, é agora altamente explorado,

13 Idem. p. 77. 14 Idem. p. 71 e 72. Para o autor, que opera neste momento com nenhum respaldo teórico-conceitual, define como hiper-

real “algo que se apresenta como mais real mais real que o real e, portanto, não é real”. 15 Idem. p. 73.

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dentro de uma temática blaxploitation (filmes de gangues). E qual é o resultado de toda esta

operação? Cenas que decisivamente rompem com qualquer suposta linearidade da narrativa -

linearidade que o espectador espera. E assim, afasta-se totalmente dos parâmetros de qualquer

naturalidade, precisamente convenções linguisticas e metodológicas de “representação”. Outro

momento da narrativa que podemos traçar paralelos e observar os mesmos procedimentos, mas

com resultados um pouco distintos, é na cena de overdose de Mia Wallace. A injeção de

adrenalina que lhe é aplicada por Vincent Vegas, fazendo-a levantar repentinamente - como

zumbi -, torna toda a movimentação da cena como pertencente ao universo do bizarro,

afastando-se, novamente, de qualquer parâmetro de realidade\”naturalidade”.

Tarantino bem como os filmes blaxploitation invertem específicos processos de

fabricação do cinema. Procuram representar não o que é convencional, ou institucionalmente

cristalizado, mas o oposto: opor a aquilo que já fora exacerbadamente reproduzido. E nesta

estratégia acabam por criticar e desenvolverem uma arte com uma linguagem dotada de outra

“racionalidade” que não possa ser mais mensurada - ou pensada, logo compreendida - pelas

estruturas de pensares reificados. Afinal, sua obra fílmica procurou justamente se localizar

cada vez mais longe disto. E é precisamente nesta centelha que se pode mensurar a arte

tarantiniana pela teoria estética adorniana: quando se nega em reproduzir - por meio de uma

representação (nas retomadas das atitudes fílmicas) - processos de fabricação da narrativa

cinematográfica. E que ao longo de sua história foram utilizados, sobretudo convencionados

como padrões - estamos nos referindo aqui à clássica narrativa do cinema.

A arte contemporânea para Adorno se faz dentro daquilo que o conceito proíbe, ela quer

não mais copiar, mas imitar por meio da negação - um outro tipo de operação mimética

(imitação pelo negativo)16. Ou seja, tudo se concentra na questão do não-idêntico: aquilo que

nas obras de arte fala, é o que nelas faltam17. Nesta operação o autor objetiva compreender a

dialética do espirito da arte, que se articula por meio da mimese específica: organiza o não

organizado, não pretendendo a cópia da natureza, mas sim sua imitação, pela ausência. Por isso

de algumas obras de arte parecerem estar separadas do movimento do mundo. O não-idêntico

reside tanto na historicidade da definição de sublime de Kant18, bem como na formação do

absoluto em Hegel - algo que se “contrapõe” à teoria adorniana -, além da tomada de

autoconsciência do espírito 19 . E é este elemento central que confere à obra de arte uma

16 ADORNO, T. 2008 p. 206. 17 Idem. p. 208 - 210. 18 SCHAEFER, S. 2012. 355. 19 ADORNO, T. 2008. p. 222.

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experiência estética processual. Experiência estética é processual - o caráter processual das

obras de arte: um processo específico, dotado de suas relações organizacionais que se

fundamentam na relação entre os opostos. A característica da arte (precisamente sua

experiência estética) de se realizar justamente num caráter processual, revela um específico jogo

(relação) que a mesma mantém com os seus elementos antagônicos20. A arte procura articular

a própria linguagem formal de seus meios. E dentro desta lógica imanente (que se estrutura

sobre sua própria linguagem) observa que articula-se um movimento específico: no qual o todo

pretende “doutrinar” o fragmento que insiste em irromper diante da vontade de universalização

(racionalista) humana. Configurando-se, assim, o fetichismo da unidade da obra de arte.

Contudo, ela não se faz como unidade, mas sim como devir. Não se pode fazer como universal,

apesar de pretender, temporalmente, pois é justamente este jogo entre a pretensão ao todo e as

irrupções das partes que lhe confere o caráter de movimento.

A questão da unidade (todo) e pluralidade (fragmento), deve ser levada até à

centralidade do método da empiria21. Tal praxis racionalista que se baseia no método de indução,

no qual procura-se construir a semelhança em meio a diferença, se contrasta diretamente a

uma análise imanente que requer a obra de arte. Segundo Adorno, a própria condição de sua

materialidade se contrasta com a má naturalidade do contigente e do caótico. A obra de arte,

então, possui alguma unidade? Sim! Contudo, não é precisamente como o todo que se estabelece

aos objetos racionais. É uma unidade específica: unidade imanente - no sentido de possuir uma

linguagem que lhe é própria, a dialética objetiva e negativa. Ou seja, uma operação mimética

(específica) da negação. Na realidade, se trata precisamente de uma ilusão, de uma falsidade.

Se o projeto adorniano se configura em tornar ineficaz os discursos da racionalidade na

significação da obra de arte, dotando-a de uma soberania linguistica imanente, poderíamos

assim observar semelhante processualidade na obra de Tarantino - evidentemente salvando as

devidas especificações? Como já exposto, as diretrizes para a significação de sua obra não

devem ocorrer nos usos dos pensares - e das convenções - reificados. O cineasta opera suas

críticas ao real, ao social instituído, por meio do emprego de elementos que se afastam

precisamente desta mesma realidade. No primeiro parágrafo colocamos os seguintes

questionamentos: como uma obra que do ponto de vista da configuração do sensível, na qual se

vê nitidamente que uma possível falta de incentivo financeiro - e tecnológico - não se caracteriza

como alguma limitação para a produção da obra de arte, como diante disto, Tarantino (ainda)

20 Adorno utiliza como exemplo a questão temporal. A partir do cerne temporal: a duração que se torna a intenção da

obra de arte, e que contudo, são elas formas humanas mortais. Com isso, pode-se dimensionar o que seja classicismo: a

forma que se preserva no tempo. Idem. p. 201. 21 SCHAEFER, S. 2012. p. 341.

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insiste em produzir efeitos e estratégias cinematográficas típicas de um cinema que justamente

se caracterizava pelo baixo orçamento e déficit tecnológico? E que justamente por conta disto -

não exclusivamente, é claro - este tipo de “abordagem” cinematográfica elaborava uma

narrativa que subvertia um “gênero” dominante. Ou seja, porque Tarantino ainda insiste em

reproduzir formas de um cinema que em outro momento foram marginais? É justamente neste

sintoma que a teoria estética adorniana se faz válida. O “hiper-real bizarro” que Mauro Baptista

fixa nas obras de Tarantino se faz como um elemento não-idêntico: seu cinema se afasta -

conscientemente - de quaisquer parâmetros que possam parecerem naturais aos olhos do

espectador; afasta de realidades cinematográficas amplamente consumidas - e instituídas pelo

desenvolvimento da técnica e da linguagem; opera as representações resgatando metodologias

e feitorias - também - de narrativas cinematográficas que acabaram - à sua maneira - não

reproduzindo o cotidiano cinematográfico reificado - como a violência e seu horror gratuito

que são retomados do blaxploitation. E ao se afastar do real, negando-o mas paradoxalmente

possibilitando uma dura e específica crítica à sua organização, a obra de Tarantino permite ser

significada pela teoria estética adorniana. Afinal, a elaboração do não-idêntico por meio deste

viés hiper-real bizarro confere a seus filmes uma linguagem imanente que detém um caráter

processual, firmando-a como obra de arte. Para adorno, a arte, bem como a obra de arte -

ambas não devem ser pensadas, muito menos conceituadas separadamente22 - possui a função

de agressão - do espectador ser agredido em seus aparelhos sensoriais. Pois somente a

contemplação de um objeto que escolheu conscientemente - devido ao caráter de sua natureza,

o caráter processual da arte - não reproduzir o reificado, pode trazer alguma espécie de

consciência crítica acerca da reificação do seu quotidiano23.

Diante de tais explanações, buscamos aplicar as teorias estéticas adorniana na obra de

Quentin Tarantino. Constatamos para tanto, a necessidade de recorrer à outros momentos da

história da narrativa cinematográfica - algo talvez cansativo para o leitor - para melhor

ilustrarmos nossas reflexões. Sendo assim, deve se perguntar, porque justamente Adorno -

22 A partir disto podemos nos perguntar sobre a validade do conceito de grandeza da obra de arte, dentro da teoria estética

adorniana. Tal conceito costuma estar atrelado ao momento de unidade, e é exatamente aí que reside sua problemática.

Possui um resquício de efeito autoritário, no qual se sujeita o fragmento, o não-idêntico ao total da unidade. O mesmo

ocorre à definição de arte, configurando assim certa impossibilidade de sua definição, bem como de sua validade.

Segundo Adorno, o conceito não respeita a dialética das partes com o todo, que toda obra de arte possui. Nele contém

elementos extra-estéticos que não valorizam\aceitam - devidamente - a regulação (sua lógica estética) própria da obra de

arte. A arte se faz dentro daquilo que o conceito proíbe - se contrapõe ao impedimento do movimento dos movimentos. O

conceito se faz como concreto, não abstrato. Pretensa sobretudo uma universalização, além de conter justamente os extra-

estéticos que questionam a materialidade da obra de arte - que faz perguntar, “isso é arte?”. Por fim, para Adorno, o

conceito de arte não pode ser separado do conceito de obra. 23 Tarantino escolhe não reproduzir o reificado, e sim afastar dele. Mas então, qual é este real reificado? As convenções

do sistema narrativo cinematográfico clássico - Tarantino inverte suas convenções.

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precisamente “Teoria Estética”? Certamente por ela possibilitar dimensionar, ou mesmo

contextualizar, para posteriormente historicizarmos uma específica perspectiva da obra do

cineasta. Pretendemos entender, significar - do ponto de vista teórico - a dimensão pop, de

cultura de massa, o consumo em Tarantino. Não se trata, evidentemente, apenas de uma parcela

das dimensões das reflexões adorniana - porque não englobar, afinal, as discussões sobre

industria cultural? -, mas também consequentes retomadas, re-articulações e releituras do

pensamento adorniano. Como é o caso de Frederic Jameson. Em um rápido artigo24 Jameson

nos oferece uma salutar reflexão acerca da validade de se retomar o pensamento adorniano,

para a significação de algumas obras cinematográficas voltadas diretamente para o consumo

da cultura de massa (obras como Tubarão, de Steven Spielberg; e Poderoso Chefão I e II, de Ford

Coppola). O autor se sustenta teoricamente numa semiótica específica do cinema.

Fundamentada na análise narrativa dos mitos presentes nas supracitadas produções

cinematográficas, no intuito de discorrer sobre quais as funções ideológicas e utópicas que

efetivam a manipulação.

Encontramos nas reflexões de Jameson uma certeira justificativa para a retomada de

Adorno no processo de significação das obras de arte, na atualidade. A antiga dualidade entre

alta cultura e baixa cultura fora superada de certa maneira pela escola de Frankfurt. E em

especial, na figura de Adorno, diante da empreitada de dimensionar as obras pertencentes ao

modernismo - sem vocação para serem mercadorias -, estabeleceu uma espécie de “separação”

entre cultura dotada de uma processualidade, e a cultura de massa. Contudo, Jameson procura

estabelecer uma série de elementos, consequentes da efetiva mercalização da atividade artística,

que comprovam que há muito vem ocorrendo uma espécie de inter-relacão entre produção

cultural “processual” - a “efetiva” - com a cultura de massa - abrindo espaço, assim, para a

necessidade da abordagem da cultura como disciplina, e não como área dependente de outros

campos do saber. Do ponto de vista prático, isto significa que determinadas produções da

cultura de massa, nos dias de hoje, ao contrário do que se convencionou, possuem sim

consciência e fundamentação estética - e é exatamente neste ponto que podemos visualizar a

interpenetração entre as relações. E o ponto que desejamos concluir é precisamente esta

validade, ou justificativa. Obras como a de Tarantino são por vezes - de maneira justa -

associadas à cultura de massa. Contudo possuem precisas articulações - como as que

procuramos demonstrar ao longo de nossa análise que é a presença do não-idêntico

(afastamento tanto das diretrizes cinematográficas “convencionais”, quanto de quaisquer

parâmetros de aproximação com o real), personificado na elaboração de um “viés hiper real

24 JAMESON, Fredric. Reificação e utopia na cultura de massa.

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bizarro” -, articulações estas que acabam por operar significativa configuração do sensível,

dotando a obra de arte seja de uma linguagem imanente, um caráter processual, enfim, critérios

que possam “defini-la” como autêntica - para retomar Adorno.

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