Sobre Fanon UFSCAR
-
Upload
julio-carvalho -
Category
Documents
-
view
7 -
download
0
description
Transcript of Sobre Fanon UFSCAR
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
395
SOCIOLOGIAGT 9: IDENTIDADES E DIFERENASSesso 1: Relaes tnicas e raciais
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
407
QUE FANON ESSE NA TEORIA CULTURAL CONTEMPORNEA?
Erik W B Borda UFSCar [email protected]
O trabalho aqui apresentado visa realizar uma breve discusso acerca das apropriaes de Fanon por dois movimentos intelectuais contemporneos, a saber, os estudos ps-coloniais e a perspectiva decolonial. Identificou-se, aps um balano preliminar, que existem abordagens diferentes da obra de Fanon em cada um desses movimentos, inclusive influenciando os textos preferencialmente lidos e o que feito com base nessa bibliografia. No o objetivo deste trabalho dar uma resposta definitiva acerca do estatuto de Frantz Fanon na Teoria Social produzida por esses autores do sul global, mas apenas identificar tendncias. Por fim, prope-se uma leitura no cindida da obra de Fanon para suplementar eventuais lacunas entre as perspectivas. A importncia deste trabalho se justifica pelo crescente interesse sobre a obra fanoniana, e nesse sentido, pode contribuir para melhor situar a obra do autor. Introduo
O colonialismo no foi apenas um mero evento, coincidentemente encontrado
nessa configurao histrica que chamamos de Modernidade. No um acidente
histrico, o qual devemos esquecer e pensar apenas como uma fase no permanente
percurso de aprimoramento do Humano. Tampouco se trata de algo superado, uma vez
autonomizadas as administraes polticas nacionais... afinal, a matriz de poder que
lhe corresponde que Anbal Quijano chamou de Colonialidade do Poder segue bem
viva, e deixando muito mais do que veias abertas. O processo de negao radical da
alteridade, uso ostensivo da violncia e hierarquizao dos povos a partir da idia de
Raa est to presente agora quanto antes, lanando-nos questes decisivas s quais no
encontraremos respostas satisfatrias no interior dos paradigmas gerados por essa
mesma matriz de poder que nos propomos a criticar. chegado o momento de nos
atentarmos s mentes abertas da Amrica Latina, em direo a alternativas s
alternativas! Elas esto a, sempre estiveram, ns que nos mantivemos surdos
imaginando que essas alternativas no passavam de fsseis de um passado mtico pr-
colonial, no mais existente. Contudo, se h algo que bem nos ensina Gabriel Garca
Mrquez que na Amrica Latina se fundem diferentes temporalidades136, e j no
136 Segundo Anbal Quijano, as relaes entre histria e tempo so muito diferentes na Amrica Latina em relao Europa. Dessa forma, haveria mais um motivo de incompatibilidade das teorias europeias e norte-americanas em relao Amrica Latina, onde h uma simultaneidade, e no uma sequncia. Aqui o passado penetra no presente de uma forma muito especfica; a questo , como apreender isso em uma obra? No es, pues, de ningn modo un accidente que no fuera un socilogo, sino un novelista como Gabriel Garca Mrquez el que, por fortuna o por conciencia, encontrara el camino de esta revelacin, por la cual, en verdad, se hizo merecedor del Premio Nobel. Porque de qu modo sino esttico-mtico,
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
408
mais possvel ignor-las! A luta de descolonizao que est em jogo no momento atual
menos a substituio de uma espcie de homens por outra espcie de homens
(FANON, 2006. p. 51) que nos fala Fanon em Os condenados da Terra do que as
pretenses do mesmo autor em Pele negra, mscaras brancas, isto , liberar o
colonizado137 de si prprio.
Liberar o colonizado de si prprio significa, antes de tudo, uma verdadeira
revoluo epistemolgica, uma mudana na forma como produzimos conhecimento e
experimentamos o mundo.138 A luta contra colonialidade do poder no pode ser
desligada da luta contra colonialidade do ser e do saber. Tal revoluo epistemolgica
implica necessariamente em levar a srio toda a ampla gama de experincias
historicamente desperdiada, implica em alargar nossa ontologia para abarcar o que foi
apagado pela Modernidade. Existem povos no mundo que desde o incio desse processo
no estavam de acordo com a imposio do saber europeu inicialmente teolgico e
posteriormente tcnico-cientfico , e apresentaram alternativas crticas, verses contra-
hegemnicas narrativa moderna.
Demorou muito tempo para nos darmos conta de que no era essa a Modernidade
que queramos. O sangue derramado desde o sculo XV como consequncia do
expansionismo europeu ganhou visibilidade quando violncias similares comearam a
ocorrer no seio dos centros imperiais, contra sua prpria populao. Foi a que se notou
o lado escuro da Modernidade, sua cara metade que a possibilitou, mas que ainda no a
haviam nomeado. Os autores do grupo Modernidade/Colonialidade, como sugere o
prprio nome do movimento, sustentam que a Modernidade emerge no momento do
contato entre Europeus e os povos nativos americanos em 1492. Nesse sentido, a
Colonialidade o outro lado da moeda da Modernidade, uma vez que apenas com a
ideia de um continente novo a Amrica que se tornou possvel conceber o olhar
para o futuro to caro a nossa era. Nesse momento especfico se assiste a uma total
reconfigurao da imagem do Universo em ambos os mundos, e o incio de
se puede dar cuenta de esta simultaneidad de todos los tempos histricos en un mismo tiempo (grifo meu)? De qu otro modo que convirtiendo todos los tempos en un tiempo? [...]Eso es, a mi juicio, lo que bsicamente hizo o logr Garca Marquez en Cien aos de soledad. Eso, sin duda, vale un Premio Nobel. (QUIJANO, 1988. pp. 61 62.)137 Fanon utiliza, na verdade, a expresso homem de cor ao invs colonizado, contudo, para fins de anlise o resultado o mesmo. O problema muito importante. Pretendemos, nada mais nada menos, liberar o homem de cor de si prprio. (FANON, op. cit. p. 26)138 Para uma melhor apreenso da temtica acerca de novas epistemologias, ver os ensaios compilados por Boaventura de Souza Santos (2010) em Epistemologias do Sul e o livro Renovar a teoria crtica, reinventar a emancipao social, do mesmo autor.
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
409
epistemcidios e dominaes sem precedentes na histria humana. O processo colonial
que a se inicia depois difundido ao resto do mundo engendra um padro global de
poder que persiste aps fim das estruturas polticas que o sustentavam, no obstante, no
perodo atual tal matriz de poder desestabilizada. Todas as vozes silenciadas pelo
colonialismo comeam a se fazer mais presentes, os subalternos finalmente podem falar
e aos poucos serem ouvidos. A geopoltica do conhecimento que objetiva basicamente
o primeiro mundo como um local de produo de conhecimentos e o terceiro mundo
como produtor de culturas a serem conhecidas , nos termos de Mignolo, passa a ser
abalada. Entre as inmeras maneiras de se captar a voz daqueles que foram deixados de
lado na marcha do sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno duas se fazem
mais significativas; os Estudos ps-coloniais e, a mais recente, perspectiva decolonial.
Como devemos pensar o colonialismo e quais foram de fato seus impactos? Essas duas
perspectivas visam a responder a essa pergunta.
1. Estudos ps-coloniais e o local da Cultura. O ps-colonialismo pensado enquanto um acervo de perspectivas tericas
surge no momento em que intelectuais dos antigos territrios coloniais, em geral de
domnio britnico ou francs, ingressam em Universidades estrangeiras no perodo do
ps-guerra. Nesses grandes centros, espectros tericos crticos vagavam j fazia algum
tempo. Entre eles poderamos encontrar os Estudos Culturais, por exemplo, que atravs
de um dilogo ambivalente com o marxismo buscavam novas formas de pensar a
dimenso da cultura e sua centralidade para as lutas polticas contemporneas. Nos anos
que se sucederam criao do primeiro centro de Estudos Culturais (CCCS) no
departamento de ingls da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, assistiu-se na
Europa uma verdadeira exploso de pensamentos crticos que afetaram todas as reas de
conhecimento, da Filosofia Antropologia, da Lingustica Sociologia. So desse
perodo as crticas de Foucault ao sujeito, demonstrando a existncia deste apenas a
partir das prticas discursivas e determinadas relaes de poder, e mesmo Lvi-Strauss
ainda tem a oportunidade de levar ao limite seu estruturalismo, dessa forma jogando
outra p de terra sobre o Humano, cuja morte j havia sido preconizada por Nietzsche.
nesse momento que observamos reinterpretaes e renovaes do marxismo, como as
oferecidas por Althusser, e da Psicanlise, pelos trabalhos de Lacan. A teoria cultural
vive sua era dourada! No de se surpreender, portanto, que os intelectuais do Terceiro
Mundo que chegaram em tal momento se nutriram de maneira intensa das novas
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
410
vertentes crticas do pensamento Europeu. A teoria ps-colonial surge, assim,
estreitamente ligada s elaboraes tericas do ps-estruturalismo e dos Estudos
Culturais, sendo construda nas principais universidades metropolitanas a partir das
contribuies desses pensadores homens, brancos e europeus.
Ressaltar o lugar social dos sujeitos que produziram essas novas formaes de
pensamento no algo irrelevante, na verdade, justamente o contrrio. A perspectiva
decolonial, qual retornaremos mais adiante, leva ao extremo a proposta foucaultiana
de que os saberes emergem em contextos scio-histricos especficos, e nesse sentido,
as teorias pretensamente universais europeias no passariam, por sua vez, de teorias
extremamente provincianas. O trabalho intelectual para os autores do grupo decolonial
est profundamente enraizado nas relaes sociais e de poder, algo que chamarei aqui
de uma ontologia hiper-sciohistoricizada. No entanto, no havia apenas autores
europeus sendo articulados por esses intelectuais ps-coloniais na construo de suas
crticas. Alguns autores do sul foram utilizados, e outros inclusive resgatados devido a
seu potencial de crtica epistemolgica s formas eurocntricas de conhecimento: Frantz
Fanon foi um deles. A leitura de Frantz Fanon, um psiquiatra negro martiniquenho,
marca um giro importante na teoria social contempornea cujos impactos ainda no
puderam ser suficientemente mensurados139. O autor introduz em seu livro Pele negra,
mscaras brancas uma dimenso que no havia ainda sido investigada com
profundidade quando se falava na questo colonial, isto , o abalo subjetivo gerado
por essas estruturas de dominao. Pensadores ps-coloniais como Homi Bhabha,
Gayatri Spivak, Avtar Brah, Stuart Hall, Edward Said e etc. trabalharam com e sobre
os escritos de Fanon, em especial o livro mencionado, como porta de entrada para
discusses inditas acerca do papel da Cultura no processo colonial, assim como as
relaes deste com a construo das Cincias Sociais e Humanidades produzidas nas
Universidades europeizadas no necessariamente europeias, mas as que partilham de
seu modelo colonial de produo de saberes. Desse modo, os Estudos ps-coloniais
marcaram uma ruptura importante no interior do pensamento europeu, na medida em
que utilizaram as teorias ps-modernas e ps-estruturalistas para explicitar justamente
as prprias lacunas e insuficincias desses paradigmas. A cultura ganhou uma
139 Segundo Stuart Hall (2009), importante quando estudamos qualquer trabalho intelectual nos atentarmos menos s continuidades do que as rupturas. As leituras da obra de Fanon, sua after-life, devem ser vistas, pois, em termos das rupturas que ela estabeleceu no interior da Teoria cultural contempornea. Como as apropriaes ainda so muito recentes, torna-se relativamente difcil mapear satisfatoriamente seus impactos.
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
411
centralidade ainda mais intensa em relao a sua posio nos Estudos Culturais, que em
alguma medida precederam e possibilitaram os Estudos ps-coloniais ao situar raa e
etnia como traos importantes na anlise de formaes sociais. Inaugurou-se, dessa
forma, pela primeira vez um pensamento crtico antieurocntrico desapegado a
essencialismos de qualquer espcie, e que podia finalmente nos lanar em direo a um
novo humanismo...Ser mesmo?
2. A perspectiva decolonial e a ideia de Amrica Latina.De maneira geral, pode-se dizer que a perspectiva decolonial surge como uma
reao teoria ps-colonial a partir da radicalizao de suas propostas. (BALLESTRIN,
2013) Para entender tal movimento necessrio, antes de tudo colocar, em relevo duas
consideraes. A primeira diz respeito composio dos autores do grupo. A segunda,
por sua vez, corresponde ao fato do surgimento do grupo ser relativamente recente,
pouco mais de dez anos. Os autores que compe o grupo Modernidade/Colonialidade
so latino-americanos. Em um primeiro momento tal afirmao pode parecer trivial,
mas se for levado em conta origem dos autores principais que marcaram os Estudos
ps-coloniais, em sua maioria sul-asitica, africana ou do Oriente Mdio, rapidamente
nos possvel captar as implicaes advindas dessa considerao. Os latino-americanos
que tiveram contato com as novidades tericas do ps-colonialismo se queixavam
dentre os muitos problemas identificados da centralidade concedida ao colonialismo
anglo-francs nessas vertentes, e dessa forma do total desconhecimento de outras
formas coloniais (pr)existentes que em alguma medida ensaiaram a dominao
imperial na frica e na sia entre os sculos XVIII e XX. Como dissemos na
introduo, para os latino-americanos do grupo decolonial a Modernidade comea com
a inveno do continente americano (inicialmente ndias ocidentais) ao final do sculo
XV, e o processo colonial que a se inaugura funda uma forma totalmente nova da
dominao e o surgimento do sistema-mundo colonial global. Para autores como
Mignolo (2007), a prpria possibilidade do que Edward Said chamou de Orientalismo j
estava gestada no processo de conquista da Amrica, uma vez que nela que h o
surgimento do Ocidentalismo, seu precursor lgico e epistemolgico. Quando se leva
isso em considerao, no se torna mais possvel limitar a reflexo sobre o perodo ps-
colonial apenas s ex-colnias no-ibricas. A empreitada de levar adiante a reflexo
sobre essa parte significativa do sistema-mundo ficou, pois, relegada aos autores latino-
americanos.
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
412
Quadro 1. Perfil dos membros do Grupo Colonialidade/Modernidade.
Integrante rea NacionalidadeUniversidade onde
leciona
Anbal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional
de San Marcos, Peru
Enrique Dussel Filosofia Argentina
Universidad Nacional
Autnoma de Mxico
Walter Mignolo Semitica Argentina Duke University, EUA
Immanuel Wallerstein Sociologia Estadonidense
Yale University, EUA
Santiago Castro-Gmez Filosofia Colombiana
Pontificia Universidad
Javeriana, Colmbia
Nelson Maldonado-Torres Filosofia Porto-riquenha
University of California, Berkeley,
EUA
Ramn Grosfguel Sociologia Porto-riquenha University of
California, Berkeley, EUA
Edgardo Lander Sociologia Venezuelana Universidad Central
de Venezuela
Arthuro Escobar Antropologia Colombiana University of North Carolina, EUA
Fernando Coronil Antropologia Venezuelana University of New York, EUA
Catherine Walsh Lingustica Estadounidense Universidad Andina
Simn Bolvar, Equador
Boaventura Santos Direito Portuguesa Universidade de Coimbra, Portugal
Zulma Palermo Semitica Argentina Universidad
Nacional de Salta, Argentina
Fonte: BALLESTRIN, 2013. p. 98
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
413
A segunda considerao toma como base os pouco mais de dez anos do
surgimento do grupo, o que por sua vez garante, pelo menos at o momento presente,
uma relativa identidade no que concerne ao compartilhamento de noes, raciocnios e
conceitos [...], (dessa forma) contribuindo para a renovao analtica e utpica das
cincias sociais latino-americanas do sculo XXI. (BALLESTRIN, op. cit. p. 99) A
crtica e teoria ps-colonial originada nos principais centros produtores de teoria seria,
pois, com relao perspectiva decolonial bem menos homognea, o que torna um
pouco mais complexo o mapeamento de seu surgimento e noes partilhadas. Algo,
porm, deve ser retido. Afirmamos a centralidade que Fanon possua para os autores
ps-coloniais, mas devemos dizer que tambm os decoloniais se debruaram sobre sua
obra e tm produzido textos igualmente originais, como lidar com isso? Como foi
possvel a leitura bsica de um mesmo autor suscitar interpretaes e reflexes tericas
diversas? H alguma diferena na apropriao de Fanon feita por essas duas vertentes?
Estariam elas lendo o mesmo Fanon?
3. As duas mscaras de um mesmo FanonStuart Hall, em um artigo intitulado The after-life of Frantz Fanon, longe de
querer capturar o verdadeiro Fanon, lana-se sobre as apropriaes atuais da obra do
autor. Embora no tenha sido possvel no texto discutir o grupo
Modernidade/Colonialidade que se consolida aps a escrita do artigo , suas
discusses sobre que Fanon esse na teoria cultural? nos podem ser muito teis para
pensar as diferenas de perspectiva entre os dois movimentos intelectuais apresentados
nas sees anteriores. O que importa aqui a vida aps a morte de Fanon, nos termos de
Derrida, o efeito espectral. De fato, o psiquiatra martiniquenho ainda visto de
maneira muito diversa pelas Cincias Humanas contemporneas. Hall aponta tal fato
com base em Henry Louis Gates;
Henry Louis Gates, que basicamente simptico a grande parte da empreitada ps-colonial e ps-estruturalista, alegra-se, no entanto, ao expor quo variadas, e mesmo internamente contraditrias, so as leituras recentes de Fanon enquanto um terico global. (HALL, 1996. p. 15) 140
Em grande parte, isso se deve crena em uma suposta ruptura entre os escritos
de Fanon em Pele negra, mscaras brancas141 e sua obra final, Os condenados da
140 Traduo livre 141 A partir de agora PNMB
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
414
Terra142. Stuart Hall considera tal proposio dbia, e durante o artigo voltar sua
ateno a essa questo e forma como devemos reler a multivocalidade de Pele Negra,
mscaras brancas. (idem, p. 16)
O que est proposto a nos parece, antes de tudo, uma alternativa terica a essas
diferentes apropriaes de Fanon. Para os fins deste trabalho, operaremos a partir do
pressuposto de que h um privilgio, por parte da perspectiva ps-colonial, da leitura de
PNMB, enquanto a perspectiva decolonial por sua vez dedicaria mais ateno a obra
CT. O empreendimento de Hall ao evocar os laos de continuidade entre essas duas
obras reformularia totalmente nossa apreenso disso que talvez seja um pseudoproblema
terico. De que maneira Hall sustenta essa continuidade? E qual precisamente a
implicao de afirmar tal continuidade quando pensamos as diferenas entre
decolonialismo e ps-colonialismo?
3.1. Os trs dilogos inconclusos de Fanon.
Para Stuart Hall, impossvel ler PNMB sem levar em conta que a obra tambm
produto de trs dilogos inconclusos e inter-relacionados, aos quais Fanon sempre
retorna ao longo de sua vida e trabalho. O primeiro com a psiquiatria francesa, o
segundo, com a obra de Sartre e o terceiro com o movimento da Negritude. Esses temas
estariam presentes em Fanon do comeo ao fim de sua produo intelectual. Seu debate
com a psiquiatria francesa exemplificado no artigo de Hall por meio de seu desacordo
com Lacan. Ambos os autores, segundo Hall, optam por utilizar a concepo hegeliana
de totalidade, mas para Fanon o bloqueio que destotaliza o reconhecimento do Eu
pelo Outro na troca do olhar racializado emerge da estrutura especular historicamente
especfica do racismo, e no de um mecanismo geral de autoidentificao (Id. ibid. p.
26). Isso nos atenta ao quo racialmente neutro o discurso de Lacan, e ao mesmo
tempo o quo racializada sua epistemologia. As conseqncias polticas advindas de
tal fato no devem ser desprezadas, na medida que para Bhabha, por exemplo,
aceitando a poltica de subverso que subjaz ambivalncia h a conseqncia, a
partir da perspectiva terica de Lacan, de que a ambivalncia faz parte do script do
colonialismo. Por outro lado, para Fanon, h a questo de justamente acabar com essa
ambivalncia pois ela que o est matando! Nesse sentido, para Stuart Hall fica a
142 A partir de agora CT
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
415
pergunta: como articular a viso de ambivalncia de Lacan com a proposta fanoniana de
fixidez?
O debate com a obra de Sartre seria, na verdade, o debate de Fanon com Hegel
atravs de Sartre, em especial com a dialtica do Senhor e do Escravo apresentada no
livro A Fenomenologia do Esprito143. Para Hegel, o homem apenas humano na
medida em que tenta impor sua existncia a outro homem com o fim de ser reconhecido
por ele. H aqui a obrigatoriedade da reciprocidade absoluta Eles se reconhecem ao
reconhecerem mutuamente um ao outro (HEGEL apud HALL. 1996. p. 28) Caso haja
resistncia, surge a o desejo por reconhecimento que leva o escravo luta selvagem.
No obstante, Hall aponta que para Fanon, o negro escravo nunca lutou at a morte
com o senhor, ou arriscou sua vida. Foi-lhe dada a liberdade, o que na realidade nada
mais do que a liberdade de assumir a atitude do senhor, de comer sua mesa.
vamos ser bonzinhos com os pretos (HALL, op cit. p. 29) Mais uma vez aqui, a
relao colonial desvirtua a possibilidade de dialtica, ou nos termos de Fanon
...qualquer ontologia torna-se irrealizvel em uma sociedade colonizada e civilizada.
(FANON, op. cit. p. 103) Todas essas convolues sartro-hegelianas importam? Alguns
afirmam que Fanon poderia ter seu filme queimado ao vincular seus escritos a
qualquer sinal de dilogo com o pensamento europeu. Hall aponta o essencialismo
prejudicial que subjaz a essa assertiva, uma vez que demonstra o total desconhecimento
dos impactos de Fanon na cultura francesa. A carreira de Fanon incompreensvel
quando so negligenciadas as complexidades das relaes que o colonialismo francs
constitua aos intelectuais antilhanos. E last but not least, apenas luz da luta at
morte que possvel se compreender o trabalho tardio de Fanon. o senhor absoluto
de Hegel, a morte, que abre as portas para a atividade auto-construtora do homem
negro, um em-si-para-si (id. ibid. p. 31).
Por fim, o terceiro e ltimo debate, com a Negritude ou nos termos de Hall, a
idias da cultura negra como um ponto positivo de identificao (idem). No reterei
aqui muita ateno a esse terceiro dilogo, uma vez que Hall tampouco dedica grande
ateno a ele. Basta-nos reter que a discusso de Fanon com Negritude pode ser
resumida com o seguinte problema: quais so os riscos de me manter preso construo
que o Outro fez de mim? Apegar-se apaixonadamente aos pontos positivos de ser 143 Diz respeito especialmente ao papel concedido dialtica senhor/escravo tambm pelo fato de Hegel dar centralidade luta-de-vida-e-morte, que a fase final da luta do escravo por reconhecimento. Para Fanon a desigualdade inerente ao sistema colonial que abre as portas necessidade de luta at a morte do escravo tema que a que voltar a sua obra mais tarde.
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
416
negro no seria para Fanon uma boa estratgia, uma vez que assim estaramos mudando
apenas o contedo do debate, mas no os seus termos. preciso antes de tudo liberar o
homem negro de si mesmo, ou seja, justamente dessa priso subjetiva gerada pela
categoria negro categoria essa inventada para inferioriz-lo. De acordo com Hall,
Fanon mais levado questo da opresso poltica em um contexto colonial enquanto
violao da essncia humana do que sugere Homi Bhabha. (id. ibid. p. 35) A
insistncia de Fanon em explorar os desejos do homem negro suas profundezas to
carregada quanto a empreitada de Freud ao refletir acerca dos desejos das mulheres. Tal
insistncia nos leva necessariamente alm do limite onde alienao cultural solapa a
ambivalncia da identificao psquica. (idem) Esse estudo da opresso poltica em
um contexto colonial est presente tanto nos Estudo ps-coloniais quanto Decoloniais.
Em alguma medida, no entanto, tenta-se demonstrar a ruptura entre o Fanon de PNMB e
CT. Ballestrin, por exemplo, no artigo j mencionado neste trabalho, em uma nota de
rodap nos diz com base em Maldonado-Torres que: A Colonialidade do Poder e do
Saber ganhou vrias elaboraes do grupo (Modernidade/Colonialidade), enquanto
que a Colonialidade do Ser (grifo meu), primeiramente pensada por Mignolo e
posteriormente desenvolvida por Maldonado-Torres, no foi recebida com
entusiasmo. (BALLESTRIN, op. cit. p. 100) A questo do ser tende em geral a se fazer
mais presente na obra PNMB do que CT, que tende a preocupar-se mais com a questo
do poder poltico e econmico no contexto de uma frica sob regime colonial. As
implicaes de partir do pressuposto da ruptura entre o primeiro Fanon de PNMB e o
segundo Fanon de CT leva justamente aflio de Ballestrin e Maldonado-Torres,
pois tal pressuposto no d conta de capturar o acervo comum de preocupaes e
dilogos inconclusos que perpassam a obra do autor, levando as apropriaes a se
polarizarem em torno da leitura desses dois Fanons. Se verdade que h pouca nfase
no grupo Modernidade/Colonialidade sobre a questo do ser (Idem), e por sua vez na
Teoria ps-colonial uma autonomizao da Cultura e desconsiderao da dimenso
econmica (LARSEN, 1994; EAGLETON, 2005), isso teria muito possivelmente como
um motivo tal leitura cindida da obra de Fanon. Perde-se de vista que ele prprio em
PNMB j dizia que:A anlise que empreendemos psicolgica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienao do negro implica uma sbita tomada de conscincia das realidades econmicas e sociais. S h complexo de inferioridade aps um duplo processo: inicialmente econmico; em seguida pela interiorizao, ou melhor, pela epidermizao
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
417
dessa inferioridade. (FANON, 2008. p. 28)
De certa forma tal passagem j seria por si s suficiente para sinalizar a
continuidade entre as duas obras. Somando-se a ela a intensa anlise que fez Stuart Hall
da obra de Fanon, podemos afirmar com garantia a continuidade. Resta agora
operacionalizar isso na construo de um corpo terico que articule as diferentes
apropriaes de Fanon enquanto um nico autor.
3.2 Um Fanon e muitas leituras concluso Acredito que no texto tenha ficado clara a proposta de Outra leitura de Fanon, que
no seja nem marxista nem colonizada pelo ps-estruturalismo de matriz francesa
em voga na academia. Hall parece demonstrar no primeiro dilogo a necessidade de se
escapar, por exemplo, da leitura de Fanon via Lacan e reconhecer diretamente no
prprio autor os problemas que esto colocados144, embora com o devido cuidado de
que no h um Fanon verdadeiro. A releitura a que incessantemente retorna Hall ao
longo de seu artigo nos fora a perceber que PNMB est intimamente relacionado a CT
enquanto projeto poltico-intelectual de longo prazo, e dessa forma a reteno analtica
ou opo poltica apenas uma das obras ou uma de suas leituras acaba por ser
improdutiva do ponto de vista da produo de conhecimento, uma vez que se perde de
vista a inexistncia de uma vida de Fanon, esta s garantida devida a sua vida aps a
morte, ou seja, suas diversas interpretaes. No que diz respeito s diferenas de
apropriao por parte das perspectivas decoloniais e ps-coloniais, o impacto se mostra
arrasador. Se a idia de Hall que nos esforcemos em trabalhar com Fanon, pouco
interessam eventuais rupturas em sua obra, interessando mais as redes de continuidade,
que nos levam tambm a ver com outros olhos o trabalhar com a teoria decolonial e a
ps-colonial. Devemos da mesma forma verificar nelas mais as continuidades do que as
rupturas. A descolonizao da mente como precedente descolonizao do Mundo se
torna mais efetiva a partir do momento em que esforos tericos diversos so
articulados em conjunto na direo de uma matriz epistemolgica crtica, do contrrio, o
que manifestamos na introduo deste trabalho como sendo o grande potencial e a
grande tarefa de descolonizao no sculo XXI acaba por se tornar mais um dilogo
vertical, mero reprodutor do Sistema-mundo colonial. 144 Como o j mencionado vnculo entre estruturas-poltico-econmicas racistas e o psiquismo.
-
XII SEMANA DE CINCIAS SOCIAIS DA UFSCar
418
Bibliografia.
BALLESTRIN, L. Amrica Latina e o giro decolonial. In: Revista Brasileira de Cincia Poltica, n11. Braslia: maio - agosto de 2013, pp. 89-117.
EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o ps-modernismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. FANON, F. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. __________. Pele negra, mscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. HALL, S. The after-life of Frantz Fanon: Why Fanon? Why now? Why Black skin, white masks? In: The fact of blackness: Frantz Fanon and visual representation. Seattle: Bay Press, 1996. __________. Estudos Culturais: Dois Paradigmas. In: SOVIK, L. (Org.) Da Dispora: identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. pp. 123 - 150. LARSEN, N. La teora crtica brasilea y la cuestin de los "Cultural Studies". In: Revista de Crtica Literaria Latinoamericana, Ao 20, No. 40 (1994), pp. 155-164. QUIJANO, A. Modernidad, identidad y utopa en Amrica Latina. Lima: Ediciones Sociedad y Poltica, 1988. MIGNOLO, W. Historias locales, diseos globales. Madrid: Ediciones Akal, 2003. __________. Colonialidad del Poder y Clasificacin Social. In: journal of worldsystems research, VI, 2, summer/fall 2000, 342-386 __________. La idea de Amrica Latina. Barcelona: Gedisa editorial, 2007. SANTOS, B de Sousa. Renovar a teoria critica e reinventar a emancipao social. So Paulo: Boitempo, 2007. SANTOS, B de Sousa et MENESES, M P. (Orgs.) Epistemologias do Sul. So Paulo: Editora Cortez, 2010.