RETÓRICA, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E...

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Marcelo Fernandes Pires dos Santos RETÓRICA, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO E PATHOS: O PROBLEMA DAS EMOÇÕES NO DISCURSO JURÍDICO Brasília 2015

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  • Marcelo Fernandes Pires dos Santos

    RETRICA, TEORIA DA ARGUMENTAO E PATHOS: O PROBLEMA

    DAS EMOES NO DISCURSO JURDICO

    Braslia

    2015

  • Universidade de Braslia UnB

    Faculdade de Direito FD

    RETRICA, TEORIA DA ARGUMENTAO E PATHOS: O PROBLEMA

    DAS EMOES NO DISCURSO JURDICO

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial obteno do grau de mestre, no

    Programa de Ps-Graduao da Faculdade

    de Direito da Universidade de Braslia, rea

    de concentrao Direito, Estado e

    Constituio.

    Orientadora: Prof. Dra. Claudia Rosane Roesler

    Orientando: Marcelo Fernandes Pires dos Santos

    Braslia, 2015

  • Marcelo Fernandes Pires dos Santos

    Retrica, Teoria da Argumentao e Pathos: o problema das emoes no discurso

    jurdico.

    __________________________________________________

    Professora Doutora Claudia Rosane Roesler

    Orientadora

    __________________________________________________

    Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar

    Examinador interno (UnB)

    __________________________________________________

    Professor Doutor Isaac Costa Reis

    Examinador externo (UFSBA)

    __________________________________________________

    Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins

    Suplente (Unb)

    Braslia, 27 de maio de 2015.

  • Para os meus pais.

  • AGRADECIMENTOS

    Prof. Dra. Claudia Rosane Roesler, pela orientao, pelos ensinamentos

    acerca do direito e da Teoria da Argumentao Jurdica, pelas observaes precisas

    durante a elaborao da dissertao, pela pacincia e pela convivncia acadmica nestes

    dois ltimos anos. Serei sempre grato.

    Ao Prof. Dr. Guy Hamelin, do Departamento de Filosofia da Universidade de

    Braslia - UnB, pelas inspiradoras aulas sobre Aristteles e os estoicos.

    Ao Prof. Dr. Marcelo Neves, pelo seu trabalho terico crtico em relao

    prtica jurdica brasileira e pelas instigantes aulas.

    Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisio do

    conhecimento: Marcus Faro de Castro, Juliano Zaiden Benvindo, Argemiro Cardoso

    Martins.

    Faculdade de Direito da UnB, cujo processo seletivo me possibilitou realizar

    esta dissertao.

    Faculdade de Direito do Recife, instituio onde realizei a minha graduao.

    A todos os amigos da Coordenao-Geral Jurdica da Procuradoria-Geral da

    Fazenda Nacional, em especial: Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa, Vanessa

    Silva de Almeida, Ricardo Soriano de Alencar, Daniel Neiva Freire, Alexandre Budib,

    Henrique Crisstomo de Macedo, Aline Nascimento Cunha, Mariana Massumi, Maria

    Emanuelle Pinheiro.

    minha famlia, pelo constante incentivo e apoio.

  • Lngua, aonde vais? Salvar ou destruir a cidade?

    (provrbio antigo)

    Pois o comeo tambm um deus que, enquanto permanece entre os homens, tudo salva.

    (Plato, Leis, 775e)

  • 7

    Resumo

    O projeto de racionalidade construdo pela atual Teoria da Argumentao

    Jurdica marcado, fundamentalmente, por um forte silncio a respeito das emoes,

    um tema que passou a ser considerado, nos tempos atuais, um indiferente terico,

    embora, tradicionalmente, tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da tica desde a

    Antiguidade. Essa moderna lacuna terica tem por consequncia a preocupante

    incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar, de avaliar e de

    refletir a presena das emoes na argumentao e, mais amplamente, na prtica

    jurdica. Este estudo objetiva compreender por que as emoes saram de cena da Teoria

    da Argumentao Jurdica e tentar fornecer razes para que elas sejam novamente

    estudadas. Assim, preciso investigar se elas seriam compatveis com uma

    argumentao jurdica racional e, mais amplamente, com a explanao do sistema

    jurdico. Para atingir tal objetivo, este estudo parte da filosofia antiga, mais

    especificamente do pensamento de Aristteles e da escola estoica, a fim de entender

    como ambos integraram a temtica das emoes na sua tica e na sua retrica. Em

    seguida, investiga-se em que contexto histrico surge a Moderna Teoria da

    Argumentao, considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraes

    seguintes. Almeja-se, igualmente, pesquisar a compreenso da psicologia de nossa

    poca sobre as emoes. Ao fim, objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoes

    na argumentao jurdica, possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e

    capacidade crtica, a fim de melhorar a qualidade do discurso jurdico.

    Palavras-chave: emoes teoria da argumentao jurdica retrica

    psicologia lingustica.

  • 8

    Abstract

    The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is

    marked fundamentally by strong silent about emotions, a subject that has been

    considered, nowadays, a theoretical indifferent, although traditionally has been linked to

    the study of speech and ethics since ancient times. This modern theoretical gap has the

    effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify,

    evaluate and reflect the presence of emotions in argument and, more broadly, in legal

    practice. This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation

    Theory and try to provide reasons for them to be studied again. Thus, it is necessary to

    investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and,

    more broadly, with the explanation of the legal system. To achieve this goal, it is

    necessary to study ancient philosophy, specifically the thought of Aristotle and the Stoic

    school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his

    ethics and his rhetoric. Then, we investigate in which historical context comes the

    Modern Theory of Argumentation, considering the thought of its founders and the

    following generations. It aims also search to understand the psychology of our time on

    emotions. In the end, the objective is to identify the good and bad use of emotions in

    legal reasoning, enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in

    order to improve the quality of legal discourse.

    Key-words: emotions theory of legal argumentation rhetoric psychology

    linguistic.

  • 9

    Lista de abreviaturas e siglas

    ADI Ao direta de inconstitucionalidade

    ADPF Arguio de descumprimento de preceito fundamental

    CF Constituio Federal

    MTA Moderna Teoria da Argumentao Jurdica

    SVF Stoicorum Veterum Fragmenta

    STF Supremo Tribunal Federal

    TAJ Teoria da Argumentao Jurdica

  • 10

    SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................................... 11

    1. O LUGAR DO PATHOS NA RETRICA E NA TICA ARISTOTLICA E

    ESTOICA ................................................................................................................................... 14

    1.1 Origens da retrica e as emoes ...................................................................................... 14

    1.2 A retrica aristotlica e pathos .......................................................................................... 19

    1.3. Pathos e a tica aristotlica .............................................................................................. 30

    1.4 Apatheia: o pathos na tica e na retrica estoica ............................................................... 40

    2. AS EMOES, A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTAO E A

    INTERDISCIPLINARIDADE .................................................................................................... 57

    2.1 O contexto histrico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentao ..................... 57

    2.2 Theodor Viehweg, Stephen Toulmin, Chaim Perelman, Olbrechts-Tyteca e as emoes no

    discurso. .................................................................................................................................. 62

    2.3 As emoes falaciosas ....................................................................................................... 68

    2.4 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoes no discurso .......................... 74

    2.5 A abordagem lingustica das emoes .............................................................................. 84

    2.6 A psicologia cognitiva e as emoes ................................................................................. 92

    3. O LUGAR DAS EMOES NO DIREITO ........................................................................ 100

    3.1 A importncia das emoes para o direito ...................................................................... 100

    3.2 Anlise............................................................................................................................. 109

    3.2.1 O caso dos pneumticos ........................................................................................ 109

    3.2.2 O caso dos fetos anencfalos ................................................................................ 115

    3.2.3 O caso dos campees da copa do mundo de 1958, 1962 e 1970 .......................... 120

    3.3 As emoes na argumentao jurdica ............................................................................ 125

    4. CONCLUSO ...................................................................................................................... 139

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................. 145

  • 11

    INTRODUO

    O atual interesse pela estrutura argumentativa das decises judiciais fruto da

    crescente valorizao, no campo do direito, da Teoria da Argumentao Jurdica TAJ,

    que nasceu, na metade do sculo XX, pelos trabalhos de Theodor Viehweg, Stephen

    Toulmin, Cham Perelman e Olbrechts-Tyteca.

    Pode-se dizer que o atual reconhecimento do carter argumentativo do direito

    guarda relao direta com a substantiva importncia adquirida pela TAJ. Neste sentido,

    MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito o fato de

    ele ser uma disciplina argumentativa, pois, para tentar encontrar uma soluo jurdica

    aos nossos problemas da vida comum, precisamos, primeiramente, construir

    proposies em consonncia com o sistema jurdico1.

    Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a

    argumentao das decises judiciais com suporte no instrumental terico fornecido pela

    TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padro de racionalidade no

    discurso jurdico. Assim, via de regra, analisam-se, em primeiro lugar, os argumentos e,

    aps, procura-se avaliar se as decises judiciais esto adequadamente fundamentadas,

    investigam-se a coerncia interna da argumentao, a coerncia das decises judiciais

    dentro de um repertrio de julgados, assim como a capacidade de universalizao das

    premissas; ao fim, busca-se atingir um estado timo de consistncia argumentativa2.

    Todavia, nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa, no ouvimos

    falar a respeito das emoes. Nenhum dos atuais tericos da TAJ disserta a respeito das

    emoes na argumentao jurdica: teriam elas perdido definitivamente importncia na

    vida do direito? possvel realizar uma anlise e uma crtica do uso das emoes numa

    deciso judicial? As emoes so incompatveis com a TAJ e, mais amplamente, com a

    racionalidade do direito? As emoes corromperiam o discurso jurdico e o ser humano?

    Este trabalho, portanto, insere-se na constatao de uma preocupante lacuna

    terica da TAJ, que consiste na ausncia de tematizao sobre as emoes. Assim, com

    o objetivo de tentar construir uma resposta que faa sentido para compreender por que

    tal matria no mais teorizada e, ao mesmo tempo, por que ela deveria ser

    (novamente) teorizada, precisaremos realizar um especfico percurso nos Captulos I e II

    desta dissertao.

    1 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of law. New York: Oxford University Press, 2010, p. 14.

    2 ATIENZA, Manuel. Curso de argumentacin jurdica. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 553-557.

  • 12

    No Captulo I, propomos fazer um retorno Antiguidade, a fim de entender,

    primeiramente, em que contexto histrico surge e se desenvolve a um nvel to alto a

    discusso das emoes.

    Em seguida, tendo em vista a sua importncia histrica para a TAJ, iremos

    analisar o tema sob comento na Retrica de Aristteles, a fim de examinar como o

    Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto, especialmente tentando identificar: (i) a

    importncia das emoes na referida obra aristotlica; (ii) a concepo de emoo

    utilizada; (iii) as influncias filosficas de tal concepo; (iv) a maneira pela qual as

    emoes devem ser utilizadas no discurso; e (v) os fundamentos psicolgicos do tema.

    Aps, iremos investigar, nos Livros I e II da tica a Nicmaco, em que medida

    as emoes so importantes para a vida moral do indivduo, tentando entender se, para

    Aristteles, suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito

    a aspectos estritamente racionais. Nesse tpico, iremos analisar como o Estagirita divide

    a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua tica das virtudes. Ao fim,

    tentaremos identificar se o tratamento terico das emoes na tica a Nicmaco

    compatvel com aquele presente na retrica.

    Tendo realizada a investigao do tema na retrica e na tica aristotlica, iremos

    realizar um contraponto terico com a filosofia estoica, que advogava que as emoes

    deveriam ser eliminadas da vida comum. Assim, considerando a ausncia de

    tematizao contempornea das emoes tanto na TAJ quanto no direito, tentar entender

    por que aquela escola filosfica firmou tal posicionamento contribui para a reflexo

    acerca de nossa atual compreenso da matria. Desse modo, iremos analisar a tica

    estoica, a fim de apreender a sua noo de virtude e de vcio, os seus fundamentos

    psicolgicos e a construo terica da figura do sbio, objetivando perceber de que

    modo todo esse pensamento influenciou a retrica estoica.

    Ao fim do Captulo I, procuraremos realizar uma comparao entre o

    pensamento aristotlico e o estoico, tentando evidenciar o grau de importncia que

    ambos conferiam s emoes. Ademais, registre-se que o Captulo I fornecer o

    fundamento filosfico em relao ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste

    trabalho, a fim de proporcionar reflexo, comparao e crtica.

    O Captulo II ter um vis mais prtico e examinar especificamente a Moderna

    Teoria da Argumentao MTA com o objetivo de: (i) compreender em que contexto

    histrico surge tal saber terico e qual tipo de discurso era predominante sua poca;

    (ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoes; (iii) qual

  • 13

    disciplina especfica foi responsvel por recepcionar as emoes no mbito da MTA;

    (iv) quais as reaes tericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as

    emoes no mbito da MTA; (v) o que a psicologia do nosso tempo, mais

    especificamente a Teoria da Avaliao (psicologia cognitiva), poderia nos informar

    acerca da racionalidade das emoes. Destaque-se que este Captulo ter por objetivo

    tambm localizar critrios para anlise e avaliao da dimenso emotiva do discurso

    jurdico.

    No Captulo III, j com a compreenso terica possibilitada pelos Captulos I e

    II, iremos abordar, no primeiro tpico, a importncia das emoes para o direito,

    tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de

    nossa prtica jurdica. Ademais, tentaremos responder se o modelo estoico analisado no

    Captulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturao do ordenamento jurdico.

    No segundo tpico, iremos examinar, com suporte no instrumental colhido no Captulo

    II, trs julgados do Supremo Tribunal Federal no af de explicitar a presena de

    argumentos emotivos. O terceiro tpico estar reservado a tecer consideraes crticas

    aos julgados, bem como tentar fornecer uma respostar terica acerca da tica das

    emoes na deciso e na argumentao jurdica.

    Ao fim deste trabalho, alm de responder os problemas acima elencados,

    procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relao entre

    as emoes e o discurso jurdico e, mais amplamente, o direito, a fim de possibilitar a

    melhoria da qualidade do discurso jurdico brasileiro e o surgimento de um debate

    qualificado, com a manuteno de uma perspectiva crtica, sobre o tema das emoes.

  • 14

    1. O LUGAR DO PATHOS NA RETRICA E NA TICA ARISTOTLICA E

    ESTOICA

    1.1 Origens da retrica e as emoes

    O primeiro problema que se impe quando pretendemos falar a respeito da

    origem da retrica diz respeito ao prprio significado da palavra retrica. Ou seja, de

    qual retrica falamos quando investigamos sua origem? A palavra, nos dias de hoje,

    possui mltiplos significados, sendo, sem dvida, o mais saliente aquele em que

    preponderam afetos negativos. Assim, retrica , sobretudo, usado para designar um

    discurso vazio (sem contedo), mentiroso, falacioso, incoerente, apenas ornamental, isto

    , uma mera fachada lingustica para uma verdadeira armadilha de intenes.

    Essa carga semntica pejorativa tambm denunciada por Knudsen, que lista

    trs atuais usos da expresso: 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e, ao

    mesmo tempo, superficial que mascara um contedo vazio e enganoso, normalmente

    atribudo a um poltico ou a um conferencista; 2) um conjunto de figuras de linguagem

    encontrado na literatura, cuja aplicabilidade se limita ao espao de sala-de-aula; 3) uma

    significao mais ampla para se referir a discursos especficos em relao a um tema ou

    a um autor: a retrica do dio, a retrica do Supremo Tribunal Federal, a retrica

    do Presidente Obama3.

    Assim, a fim de cumprir nosso intento, um bom ponto de partida seria tentar

    localizar a primeira vez em que a palavra retrica foi utilizada num texto escrito.

    Segundo Timmerman-Schiappa, e considerando os fragmentos textuais que nos foram

    legados atravs do tempo, o termo rhtorik aparece pela primeira vez em Grgias de

    Plato no incio do sculo IV a.C., sendo provvel que o prprio Plato tenha

    inventando o termo, pois atribuda ao autor da Repblica a criao de uma srie de

    palavras com terminao -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode

    significar pessoa com uma especfica habilidade)4.

    Fazendo referncia a uma pesquisa do vocabulrio grego realizada por Pierre

    Chantraine, em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminao -ikos,

    Schiappa lembra que mais de 250 no foram localizadas antes de Plato. Uma pesquisa

    3 KNUDSEN, Rachel. Homeric speech and the origin of rhetoric. Baltimore: John Hopkins University

    Press, 2014, p. 1. 4 TIMMERMAN, David M.; SCHIAPPA, Edward. Classical greek rhetorical theory and the

    disciplining of discourse. New York: Cambridge University Press, 2010, p 9.

  • 15

    feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae

    sugere que as palavras gregas para erstica (eristik), dialtica (dialektik), e antilogik,

    assim como retrica, originaram-se nas obras de Plato5.

    Desse modo, e partindo das referidas fontes, o termo rhtorik foi primeiramente

    utilizado por Plato para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em

    pblico para fins de convencimento, especialmente perante assembleias, tribunais e

    demais ocasies especiais. No Fedro, por exemplo, Scrates destaca que a retrica

    [...] uma arte de conduzir as almas atravs das palavras, mediante o discurso [...]6. E,

    posteriormente, em Aristteles, [...] a capacidade de descobrir o que adequado a cada

    caso com o fim de persuadir7. Assim, a partir destes dois filsofos a retrica surge com

    o status de um saber, munido com vocabulrio prprio, para anlise do discurso.

    com Plato, tambm, que ocorre a conhecida ciso entre retrica e filosofia. A

    palavra rhtorik, j no seu nascedouro, surge para fins bem precisos, isto , para

    demarcar o campo de uma tcnica (techne) moralmente questionvel que lida com a

    opinio (doxa) e que leva, atravs da palavra, as pessoas ao engano, em contraste com a

    refinada atividade do filsofo, cuja base de reflexo est fundada sob o domnio da

    verdade (aletheia). Em Grgias e no Fedro, so oferecidos vrios exemplos da figura do

    retrico como algum que obtm sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os

    outros.

    Antes de rhtorik, o termo mais abrangente utilizado para se referir atividade

    do discurso nos textos do sculo V era logos, que possui distintos significados na

    tradio grega: qualquer coisa que dita, mas isso pode ser uma palavra, uma frase,

    uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteiro8. Logos est, assim,

    relacionado com o contedo, e no com aspectos estilsticos ou estticos; comporta a

    ideia de razo, argumento, ordem. O ensino de artes verbais, no sculo V a.C.,

    associado ao logos, portanto, no diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca

    5 A computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the

    Greek words for eristic (eristik), dialectic (dialektik), and antilogic (antilogik), like rhetoric, originate

    in Platos works. (trad. livre). Id, ibid., p. 9-10. No sentido de que o termo rhtorik aparece pela

    primeira vez na obra platnica, cf. COLE, Thomas. The origins of rhetoric in ancient greek. Baltimore:

    The John Hopkins University Press, 1991. 6 PLATO. Fedro, trad. Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimares editores, 2000, p. 90.

    7 ARISTTELES, Retrica, trad. Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do

    Nascimento Pena. So Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 12. 8 it is anything that is said, but that can be a word, a sentence, part of a speech or of a written work, or a

    whole speech (trad. livre). KENNEDY, George A.. A New History of classical rhetoric. New Jersey:

    Princeton University Press, 1994, p. 11.

  • 16

    pela verdade, conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distino platnica

    entre os fins da retrica e os fins da filosofia9.

    Assim, enquanto a retrica emerge firmemente relacionada com significados

    pejorativos, logos sempre desfrutou de uma boa reputao. Os sofistas exultavam o

    poder que ele possua: segundo Grgias, logos podia espantar o medo e a tristeza,

    incutir a compaixo e o prazer10

    . Iscrates reforava o seu poder e prestgio na vida

    pblica: aqueles que so hbeis no discurso no so apenas homens de poder em suas

    prprias cidades, mas so tambm tidos em grande estima em outros estados11

    .

    Mas, se possvel, numa anlise textual, atribuir a cunhagem da palavra retrica

    a Plato, possvel inferir, de outra parte, que a referida palavra grega s pode surgir

    quando a atividade a que se refere j estava bem consolidada na sociedade. Assim, a

    origem que buscamos passa a ser no mais da palavra, mas de eventos que

    supostamente deram o incio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade.

    Foi na Scilia, por volta de 426 a.C., que ocorreu o evento que impulsionou a

    fundao da retrica: aps a expulso de tiranos que dominavam politicamente a

    mencionada regio, as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e

    tribunais, a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime

    ditatorial. Os sicilianos Corax e Tsias, cientes desta necessidade, foram os primeiros a

    organizar isso num mtodo, criando preceitos tericos que almejavam o sucesso da fala

    em pblico, por meio da diviso do discurso, do uso de argumentos de probabilidades e

    de outras matrias.12

    A novidade terica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Grgias quanto

    pelo prprio Tsias, que parece ter ensinado Lsias e Iscrates. Por sua vez, o manual

    (ou manuais) de Corax e Tsias era conhecido por Aristteles que os resumiu em seu

    perdido Synagoge Technon (Coleo de Artes), que a partir de ento passou a ser o

    referencial terico sobre o assunto13

    . Ccero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa

    anlise das regras coletadas nos manuais antigos de retrica, incluindo o de Tsias,

    9 TIMMERMAN, D. M., op. cit, p. 10-11.

    10 KENNEDY, G.. Op. cit., p. 25.

    11 those who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in

    honour in other states(48-51) (trad. livre). Cf. ISOCRATES, Panegyricus. New York: Harvard

    Univesity Press, vol. 1, trad. George Norlin, 1928, p. 149. 12

    CICERO. Brutus, trad. J. L. Hendrickson, Cambridge/London: Harvard University Press, 46, 1962, p.

    49. 13

    GAGARIN, Michael. Background and origins: oratory and rhetoric before the sophists. in:

    WORTHINGTON, Ian (ed.). A companion to greek rhetoric. Oxford: Blackwell publishing, 2007, p.

    30.

  • 17

    tendo superado os autores originais em clareza, brevidade e estilo, motivo pelo qual

    apenas os escritos aristotlicos passaram a ser consultados.14

    Todavia, essa tradicional explanao sobre os primeiros organizadores da arte

    retrica tem sido, recentemente, objeto de reviso, em virtude da inconsistncia das

    fontes histricas. Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para

    Tsias, uma vez que alguns escritos apenas fazem referncia a este ltimo, ou, se Corax,

    realmente, existiu, era preocupado com argumentos de probabilidade.15

    Essa polmica a respeito da real identidade dos autores, porm, no bice para

    assinalar o que se procura aqui dizer: a partir de um determinado momento, o discurso

    eficiente, isto , a fala articulada que almeja persuaso passou a ser extremamente

    valorizada na cultura antiga. Se pudermos conjecturar que, ao reivindicar a reaquisio

    da propriedade perdida aps a expulso dos tiranos na Siclia, uma pessoa poderia ter

    melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do contedo do discurso, podemos

    entender o quo dramtica era a necessidade de aperfeioamento desta atividade.

    Assim, a expulso dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela

    restaurao de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a

    organizao terica de uma atividade que, posteriormente, Plato ir designar de

    retrica. Mas, ainda assim, no podemos relevar que, no ambiente grego, outros fatores

    j demarcavam a forte presena do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade.

    Contra a tradicional tese de que a retrica surgiu, no sculo V a.C., com Corax e

    Tsias, ou de que a retrica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de

    Plato e Aristteles, no sculo IV a.C., por meio de um vocabulrio especfico

    governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas, Knudsen advoga a ideia

    de que o nascedouro da retrica se localiza na obra de Homero.

    O seu posicionamento, no entanto, no consiste na defesa de que Homero seria

    uma inspirao para a retrica ou um exemplo da existncia, na poca, de uma forte

    cultura de eloquncia, mas de que o narrador homrico j apresenta o discurso como

    [...] uma habilidade tcnica, que deve ser ensinada e aprendida, e que varia de acordo

    com o orador, a situao, e o auditrio16

    . Assim, os personagens de Homero, na Ilada,

    14

    CICERO. On Invention, trad. H. M. Hubbel. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press,

    1949, (II. 6), p. 171. 15

    COLE, Thomas. Who was corax?. In: Illinois classical studies, vol. 16, 1991, p. 65-84. 16

    [] a technical skill, one that must be taught and learned, and one that varies according to speaker,

    situation, and audience. KNUDSEN, R.. Op. cit., p. 4.

  • 18

    apresentam a retrica na prtica, enquanto Aristteles, posteriormente, apresenta a

    retrica em teoria.

    No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero, no sculo II d.C., o pseudo-

    Plutarco, teria feito o registro mais antigo a respeito do vnculo da obra de Homero com

    a retrica:

    Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso

    poltico uma funo da arte retrica, pois esta o poder de falar de

    maneira persuasiva, e quem mais seno Homero estabeleceu sua

    proeminncia nisso? Ele ultrapassou todos os outros em

    grandiloquncia e seu pensamento dispe do mesmo poder que sua

    dico.17

    Por sua vez, no seguinte trecho da Ilada, pode-se observar que as caractersticas

    do discurso de Odisseu e de Menelau so finamente analisadas pelo narrador,

    demonstrando que a fluncia, a clareza, a conciso, a prolixidade, a objetividade, a

    gestualidade so fatores j claramente distinguveis na fala e na figura do orador:

    Quando urdiam discursos e expunham ideias,

    Menelau era fluente e claro, mas conciso,

    no sendo um homem multipalavroso, nem

    dispersivo, e tambm por ser ele o mais moo.

    Quando Odisseu, porm, multiardiloso, punha-se

    de p para falar, fixava o olhar no cho,

    mantendo o cetro imvel (nem para trs, nem

    para diante o inclinava); parecia um rstico,

    algum desatinado ou fraco de cabea.

    Mas quando a voz do peito emitia, poderosa,

    palavras como copos-de-neve no inverno,

    ningum, nenhum mortal o igualaria18

    .

    Knudsen, todavia, vai alm e se dedica a analisar os discursos diretos da Ilada, a

    fim de demonstrar que todos os recursos retricos (entimema, paradigma, diathesis,

    tpicos, ethos, etc.) identificados por Aristteles j estavam presentes na estrutura

    literria de Homero19

    . Ao examinar outras obras literrias do mundo antigo, tais como a

    Epopia de Gilgamesh, o Shujing, o Maabrata, demonstra que o emprego de recursos

    17

    Political discourse is a function of the craft () of rhetoric, which Homer seems to have been the fi

    rst to understand, for if rhetoric is the power to speak persuasively, who more than Homer has established

    his preeminence in this? He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same

    power as his diction (trad. livre). PSEUDO-PLUTARCO, Essays 161, apud KNUDSEN. Id., ibid., p. 22 18

    HOMERO. Ilada, trad. Haroldo de Campos, III, vol. 1. So Paulo: Benvir, 2002, p. 212-223. 19

    My overarching contention is that the Iliad, through the direct speeches of its characters, demonstrates

    a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be

    categorized as rhetoric in the fourth century; in particular, these techniques closely match the system

    explicated in Aristotles Rhetoric. KNUDSEN, R. Op. cit, p. 84.

  • 19

    retricos nestas ltimas extremamente pobre se comparado Ilada. Assim, destaca

    que no se pode explicar o sofisticado sistema retrico encontrado em Homero sob a

    justificativa da existncia de um modelo retrico universal. Vale dizer, a tese segundo a

    qual h um padro de convencimento supostamente presente em todos os discursos e

    que seriam inerentes natureza humana no consegue ser extensvel para a realidade

    literria de outras obras antigas20

    .

    Assim, esse hiperdesenvolvimento de um padro retrico nos discursos da Ilada

    pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favorvel cultura da

    competio, do debate e da liberdade, como ocorria de forma bastante original na

    Grcia e no encontrava correspondente em culturas orientais: desde as primeiras

    poesias gregas at a oratria jurdica e poltica da era clssica tardia, [...] a Grcia antiga

    funcionava como uma cultura de debate, em que o poder era conquistado e negociado

    atravs do discurso persuasivo 21

    .

    Segue-se, por isso, que conveniente falar no da origem, mas das origens

    da retrica. Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do

    debate no de se impressionar que a retrica tenha sido criada e amadurecida neste

    ambiente, havendo para ela, portanto, vrios incios possveis, vale dizer, um incio na

    filosofia, um incio na poesia pica, um incio enquanto evento histrico.

    No entanto, para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quo importante

    era, nas suas origens, a necessidade de dominar, na vida pblica, o discurso eficiente.

    por essa razo que a anlise das emoes (pathos) emerge na obra aristotlica, j que,

    apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e, por isso, retrico, a

    compreenso sobre as emoes se desenvolve a um nvel to alto.

    1.2 A retrica aristotlica e pathos

    Preliminarmente, e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar

    mais de perto do tema central deste trabalho, oportuno registrar que a origem do termo

    grego pathos, sob cujo signo Aristteles trata o tema das emoes, se encontra no verbo

    paschein, que significa sofrer, e, nessa medida, explicita o carter passivo do

    20

    KNUDSEN, R. Op. cit, p. 101. 21

    From the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and,

    much later, the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic), ancient Greece functioned

    as a debate culture, one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive

    speech (trad. livre). KNUDSEN, R.. Id., ibid., p. 101.

  • 20

    fenmeno emotivo22

    . Nos trechos a seguir transcritos, observa-se que o Estagirita utiliza

    o termo no sentido exposto, ou seja, em relao s emoes, o sujeito est em situao

    de passividade, isto , ele afetado, movido por elas:

    Ento, um homem que enrubesce em virtude de vergonha no

    chamado de enrubescido, nem aquele que empalidece diante do medo

    de plido; ao contrrio, diz-se que ele foi, de algum modo, afetado.

    Portanto, tais coisas so chamadas de afeces [path] e no

    qualidades.23

    Acrescente-se a estas consideraes que dizemos que somos afetados

    em funo das emoes, porm no dizemos que somos afetados em

    funo das virtudes e dos vcios, mas que nos dispomos de um certo

    modo.24

    Saliente-se que, alm de emoo, pathos tradicionalmente tambm traduzido

    por afeco ou afeio, assim como tambm por paixo, que vem do latim passio,

    sendo que, nestas duas ltimas tradues (afeco e paixo), diferentemente de

    emoo, persiste, de certo modo, aquele sentido de passividade25

    .

    De outra parte, interessante tambm acrescentar que a temtica das emoes

    algo que perpassa toda a obra aristotlica, pois se encontra presente na tica, na

    Retrica, na Psicologia, na Filosofia da Natureza, na Teoria Potica. Porm, a despeito

    disso, Aristteles no apresenta nenhum conceito de emoo, preferindo, algumas

    vezes, introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos. Por isso, esclarece Rapp,

    no se pode falar de boa conscincia de uma Teoria das Emoes de Aristteles, mas

    de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26

    .

    Assim, tendo realizado brevemente tais anotaes preliminares, convm registrar

    que sobre o que convence, em cada caso, no discurso de que se ocupa a retrica.

    Aristteles, logo na abertura de sua obra, afirma que todas as pessoas esto submetidas

    s regras da retrica, pois impossvel, em vida, no passar pela experincia de ter que

    22

    RAPP, Cristof. Aristoteles: Bausteine fr eine Theorie der Emotionen. In: LANDWEE, Hilge; RENZ,

    Ursula (hrsg). Klassische emotionstheorien: von Platon bis Wittgenstein. Berlin/New York: Walter de

    Gruyter, 2008, p. 48. 23

    Thus a man who reddens through shame is not called ruddy, nor one who pales in fright pallid; rather

    he is said to have been affected somehow. Hence such things are called affections but not qualities (trad.

    livre). Cf. ARISTOTELES. Categories. In: BARNES, J (ed.). The complete works of Aristotle, trad. J.

    L. Akrill, (9b20-9b32), Princeton: Princeton University Press, 1991, p. 17. 24

    ARISTOTELES. thica nicomachea I13-III8: tratado da virtude moral, trad. Marco Zingano. So

    Paulo: Odysseus, 2008, p. 48-49 (1106.5-7) . 25

    RAPP, C. Op., cit., p. 48. Cf. TIELEMAN, Teun. Chrysippus on affection: reconstruction and

    interpretation. Leiden: Brill, 2003, p. 15. 26

    RAPP, C.. Op., cit., p. 47. Adverte-se o leitor, previamente, que no iremos utilizar, neste trabalho, um

    conceito normativo de emoo. Embora, ao longo da obra, algumas caractersticas das emoes sejam

    evidenciadas, no haver o fechamento de um conceito.

  • 21

    defender ou atacar argumentos. Porm, enquanto alguns fazem esta atividade de forma

    irrefletida ou ento de modo mais consciente, por meio de uma prtica conquistada pelo

    hbito, possvel faz-la estruturadamente atravs de um mtodo, que analisaria por que

    algumas pessoas obtm tanto sucesso ao discursarem. Desse modo, para Aristteles, a

    retrica uma arte (techne), ou seja, [...] um corpo de regras e princpios gerais que

    podem ser conhecidos pela razo27

    , contrariando, assim, Plato, para quem a retrica se

    reduziria a uma mera habilidade, que no se submete razo, nem consegue explicar as

    causas e os motivos do que faz.

    Sobre a parte que especificamente objeto de nosso interesse, isto , a

    explanao sobre as emoes, convm examinar os Livros I e II da Retrica.

    Primeiramente, urge compreender como o assunto introduzido no Captulo I do Livro

    I e, depois, como ele desenvolvido tanto no Captulo II, por intermdio da doutrina

    dos meios de convencimento, quanto no Livro II, no detalhamento das emoes em

    espcie. O objetivo de nossa exposio consiste em traar um panorama geral das

    emoes no campo da retrica.

    Com efeito, Aristteles introduz o tema, no Captulo I do Livro I, por meio de

    uma forte crtica aos tratados de retrica de sua poca, que se preocupavam mais em

    instigar os nimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto

    de controvrsia. Ele nomina essas distraes do discurso como questes exteriores ou

    no essenciais ao assunto, pois sobre a verdadeira substncia da persuaso retrica, que

    so os entimemas, tais manuais nada tratam.

    O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados, que

    ele no menciona, fossem aplicadas em todas as unidades polticas, aqueles autores de

    retrica praticamente nada teriam a dizer. Assim, para Aristteles, estaria

    terminantemente proibido perverter o juiz atravs da ira, do dio, da compaixo e de

    outros estados da alma. Enfatize-se que as tradues aqui consultadas utilizam sempre a

    palavra perverter, que d ideia de corromper a cognio do julgador, porque, a partir

    do momento em que o julgador estiver possudo por determinado estado mental

    (compaixo, ira, etc.), ele estar impossibilitado de conhecer, de modo isento, o fato.

    J no Captulo II, em prosseguimento, Aristteles relaciona as emoes como

    um dos meios de prova na seguinte classificao:

    27

    [] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by

    reason.(trad. livre). GRIMALDI, William M. A.. Aristotle, Rhetoric I: a commentary. New York:

    Fordham University Press, 1980, p. 4.

  • 22

    Das pisteis produzidas atravs do discurso existem trs espcies;

    algumas residem no carter [thos] do orador; outras, na forma em que

    dispem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de esprito; e

    outras no discurso [logos] em si, demostrando ou aparentando

    demostrar algo28

    .

    apropriado notar que Aristteles no menciona explicitamente as emoes

    neste trecho. Desse modo, parece bastante pertinente a observao de Knudsen, que

    prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis, porque,

    literalmente, o termo utilizado no texto por Aristteles. Assim, diathesis uma

    expresso mais abrangente, que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade

    psicologia do auditrio e, nesse sentido, englobaria pathos29

    .

    No entanto, a despeito da observao a respeito da palavra diathesis feita por

    Knudsen, Aristteles, logo em seguida, explana que [...] persuade-se pela disposio

    dos ouvintes, quando estes so levados a sentir emoo por meio do discurso [...]30

    ,

    parecendo-nos, portanto, mais interessante insistir nesse ltimo termo (pathos) como

    meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago, que

    englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicolgica.

    Em seguida, isto , aps vincular a ideia de persuaso pela disposio dos

    ouvintes com as emoes, Aristteles conclui no sentindo de que nosso juzo varia de

    acordo com o nosso estado mental. Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza,

    pelo amor ou pelo dio est diretamente relacionado ao juzo que iremos formular sobre

    o assunto.

    Logo aqui, convm registrar certa surpresa, ao observar que, a despeito da crtica

    inicial no Captulo I, Aristteles inclui, sem diferena hierrquica, as emoes, ao lado

    do ethos e do logos como meios de convencimento. O espanto, no entanto, apenas

    aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retrica se destina a tratar,

    em p de igualdade, as emoes com os entimemas. Sobre essa suposta contradio,

    muito pode ser comentado.

    Tentando compreender a questo, Fortenbaugh rene trs respostas j oferecidas

    para esse problema. A primeira hiptese entende que, no Captulo I do Livro I,

    Aristteles defende um modelo de retrica ideal, em que apenas sejam utilizados

    argumentos que tratem do assunto objeto de controvrsia, sendo que este modelo ideal

    deixado de lado no Captulo II, quando se fala do discurso poltico, em que se faria

    28

    ARISTTELES. Retrica, apud KNUDSEN, R.. Op., cit., p. 39. 29

    KNUDSEN, R.. Id., ibid., p. 39. 30

    ARISTTELES, Retrica. Op. cit., 2012, p. 13.

  • 23

    necessrio o uso de apelos emotivos31

    . Na segunda hiptese, Aristteles dirigiria o seu

    criticismo aos contemporneos que utilizam as emoes por meios no-discursivos

    (choros, lgrimas, rostos irnicos)32

    .

    A terceira resposta, preferida por Fortenbaugh, seria no sentido de uma evoluo

    do pensamento aristotlico. Inicialmente, Aristteles teria visto as emoes de uma

    forma negativa e incompatvel com uma argumentao baseada na razo. Porm,

    durante o perodo em que frequentou a Academia de Plato, sabe-se que a relao entre

    emoo e pensamento era objeto de estudo, o que provavelmente o levou a ter uma

    viso mais favorvel sobre as emoes. Assim, se a tarefa do orador convencer o

    ouvinte e isso feito por intermdio de uma mudana de pensamento, ento nada

    haveria de errado em faz-lo por meio do emprego de argumentos razoveis que

    resultaria numa resposta emocional positiva dos destinatrios33

    . Levando isso em

    considerao, possvel que Aristteles tenha escrito suas primeiras crticas s emoes

    num tratado hoje em dia perdido e, posteriormente, ao desenvolver a doutrina dos trs

    meios de convencimento, transferiu tais observaes ao atual manual sem realizar uma

    completa adaptao do tema34

    .

    De outra parte, tambm se cogita que os captulos desenvolvidos por Aristteles

    fossem, na verdade, alternativos, sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou

    ento que o Captulo I era no apenas inconsistente com o que segue (Captulo II), mas

    que ambos se destinavam a pblicos diferentes. Konstan assevera que essa dvida talvez

    seja impossvel de solucionar, embora seja razovel afirmar que, ao tratar das emoes

    no Livro II, Aristteles j pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35

    .

    Frede, por sua vez, demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as

    emoes tenham recebido tanta ateno na Retrica, de modo que formula as seguintes

    indagaes: Isso uma mera concesso com os maus caminhos do mundo real? Se o

    inimigo o faz, devo estar preparado para tambm fazer?36

    . Ela, no entanto, registra que,

    em nenhum momento, Aristteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o

    discurso, limitando-se a fazer um registro tcnico das emoes.

    31

    FORTENBAUGH, W. W.. Aristotles art of rhetoric. In: WORTHINGTON, Ian (ed.). A companion to

    greek rhetoric. Oxford: Blackwell publishing, 2007, p. 117. 32

    Id, ibid., p. 117. 33

    Id., ibid, p. 118 34

    Id., ibid., p. 118. 35

    KONSTAN, David. Rhetoric and emotion. In: WORTHINGTON, Ian (ed.). A companion to greek

    rhetoric. Oxford: Blackwell publishing, 2007, p. 414. 36

    FREDE, Dorothea. Mixed feelings in Aristotles rhetoric. In: RORTY, Amlie Oksenberg (ed.). Essays

    on aristotles rhetoric. Berkeley/Los Angeles: California University Press, 1996, p. 264.

  • 24

    De fato, embora exista uma ruptura de pensamento entre a crtica inicial s

    emoes e o seu posterior desenvolvimento nos captulos subsequentes, acreditamos

    que no h motivo para largar, pelo menos, aquela censura direcionada ao uso das

    emoes com o objetivo de fugir das questes essenciais objeto de controvrsia. De

    todo modo, tal mudana de entendimento permanece de difcil explicao e, conforme

    assevera Hall, o novo posicionamento fez com que Aristteles, possivelmente

    influenciado por Plato, tenha elegido as emoes um dos objetos centrais da retrica37

    .

    Ainda sobre a importncia quantitativa e qualitativa que as emoes adquirem na

    retrica aristotlica, se pensarmos que pathos tema especificamente pertencente a uma

    das partes da alma e, por isso, esperaramos encontrar na obra psicolgica de

    Aristteles, que a De Anima (Sobre a Alma), o seu desenvolvimento mais completo

    e detalhado, teremos uma certa decepo ao observar que, no seu suposto habitat

    especfico, a matria encontra um tratamento extremamente acanhado

    comparativamente quele encontrado na Retrica. A este respeito, Cooper anota ser

    desapontante a abordagem do tema em De Anima38

    e Konstan chega a dizer que,

    curiosamente, o melhor local para encontrar uma boa discusso sobre emoes nas

    obras antigas justamente nos livros de retrica:

    Se voc deseja consultar uma discusso grega ou romana sobre

    emoes, o lugar para procurar no como se poderia esperar em

    um tratado de psicologia, ou, em termos clssicos, Sobre a Alma

    (por exemplo, De anima de Aristteles), mas sim um ensaio sobre

    retrica. Em primeiro lugar, no lado grego, h a prpria Retrica de Aristteles, com o seu tratamento detalhado, no Livro II, de uma dzia

    ou mais de diferentes emoes. Na literatura latina, Ccero examina as

    emoes no seu De inventione, assim como em outros ensaios de

    oratria, embora tambm as trate com algum detalhe no seu dilogo

    filosfico, As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4).

    Mais tarde no sculo III D.C., um tal Apsines se este o seu nome

    verdadeiro pesquisou as emoes em elaborado detalhe como parte

    de um extenso livro sobre retrica (apenas uma poro restou,

    especialmente a parte que trata da compaixo).39

    37

    HALL, Jon. Oratorical delivery and the emotions: theory and practice. In: DOMINIK; William, HALL,

    Jon (ed.). A companion to roman rhetoric. Oxford: Blackwell publishing, 2007, p. 232. 38

    COOPER, John M.. An aristotelian theory of the emotions. In: RORTY, Amlie Oksenberg (ed.).

    Essays on aristotles rhetoric. Berkeley/Los Angeles: California University Press, 1996, p. 238. 39

    If you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions, the place to look is not

    as one might have expected in a treatise on psychology, or in classical terms, On the Soul (for

    example, Aristotles De anima), but rather an essay on rhetoric. First and foremost, on the Greek side,

    there is Aristotles own Rhetoric, with its detailed treatment, in Book 2, of a dozen or more different

    passions. In Latin literature, Cicero examines the emotions in his youthful De inventione, as well as in

    other essays on oratory, although he also treats them at some length in his philosophical dialogue, The

    Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4). As late as the third century AD, a certain Apsines if

    that is his true name surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on

  • 25

    Por sua vez, passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II,

    Aristteles principia afirmando que, por ser o objetivo da retrica formar um juzo no

    ouvinte para a tomada de deciso, o orador no deve apenas se concentrar na tarefa de

    fazer crvel e persuasivo o seu argumento (logos), mas tambm deve se preocupar tanto

    com a sua prpria imagem, tendo em vista que o seu carter (ethos) tambm objeto de

    julgamento das pessoas, quanto com a necessidade de colocar os destinatrios numa

    determinada disposio mental (pathos), reafirmando, assim, a doutrina dos trs meios

    de convencimento. Logo em seguida, coloca esta ltima forma de convencimento

    (pathos) como de grande importncia para a oratria judicial.

    O relevo conferido ao trabalho retrico dirigido disposio mental dos ouvintes

    devidamente esclarecido, sem mais nenhuma ponderao negativa, da seguinte

    maneira: se algum estiver sob o efeito do amor ou do dio, da indignao ou da calma,

    os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo critrio de grandeza;

    quem ama, acha que o juzo que deve formular sobre quem julgado de no

    culpabilidade ou de pouca culpabilidade; por outro, quem odeia acha o contrrio40

    .

    Assim, Aristteles estabelece uma funo cognitiva especfica para as emoes,

    vale dizer, em funo delas que alteramos nossos juzos acerca do mundo. Estar

    afetado por uma emoo a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de

    algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade. Desse modo, por possuir

    uma funo to determinante no discurso, o orador precisa estar preparado para bem

    utiliz-las, o que s se alcana atravs de um profundo conhecimento sobre o ser

    humano.

    A novidade, porm, no se encerra por a, pois Aristteles, ao dissertar sobre a

    natureza das emoes, afirma que elas so compostas por prazer (hedon) e por dor

    (lup), oferecendo mais complexidade ao tema.

    A ideia segundo a qual as emoes comportam tal natureza complexa, ou seja,

    de que so formadas por sentimentos mistos, creditada a Plato, que, ao longo de sua

    obra filosfica, se deparou desde cedo com o problema do prazer: no Fdon, por

    exemplo, o autor da Repblica adverte que o verdadeiro filsofo deveria se manter

    distante do prazer, que fonte dos maiores males (83bd). Em Grgias, aquele que vive

    desmedidamente na busca do prazer considerado uma pessoa infeliz, pois tenta em vo

    rhetoric (only a portion survives, chiefly the part dealing with pity) (trad. livre). KONSTAN, D.. Op.,

    cit., p. 411. 40

    ARISTTELES. Op. cit., 2012, p. 84.

  • 26

    preencher um jarro furado com uma peneira (493abd). Por sua vez, no Filebo, uma das

    suas ltimas obras, a dor definida como a desintegrao do estado de equilbrio

    natural, enquanto o prazer, agora numa viso mais positiva, busca recuperar a harmonia

    perdida, conforme se observa no seguinte trecho:

    SOCRATES: O que eu afirmo que quando encontramos

    comprometida a harmonia nos seres vivos, ao mesmo tempo haver a

    desintegrao da sua natureza e o aparecimento da dor.

    PROTARCO: O que voc diz bastante plausvel.

    SOCRATES: Mas se o contrrio ocorre, e a harmonia recuperada e a

    natureza inicial restabelecida, precisamos dizer que o prazer surge, se

    devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as matrias mais

    difceis no menor tempo possvel.41

    Com esta ltima definio, Frede destaca que Plato se concilia com alguns

    aspectos da natureza humana, j que o prazer, pelo menos agora, tem uma funo

    benfica e teraputica para o indivduo. Esta nova abordagem no recorre mais ideia

    de que o prazer um distrbio ou uma doena da alma e, ao mesmo tempo, possibilita

    submeter os vrios tipos de prazer a um conceito nico, explicando quando alguns so

    bons e outros no (51b)42

    .

    J neste momento, oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento

    platnico e o encontrado na Retrica de Aristteles, a fim de observar que o Estagirita

    recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definio de prazer: Admitamos que

    o prazer um certo movimento da alma e um regresso total e sensvel ao seu estado

    natural, e que a dor o contrrio(1370a)43

    .

    Plato, de outra parte, aps discutir vrias formas de mistura de prazer e de dor,

    chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoes na obra

    aristotlica. Ele afirma que as emoes tambm se submetem a este mesmo fenmeno

    misto e fornece uma lista de exemplo: a ira, o medo, a saudade, as lamentaes, o amor,

    a inveja, a malcia e outros sentimentos da mesma espcie. Num fragmento da Ilada

    citado no referido dilogo, a raiva apresentada como algo que amarga a alma at dos

    41

    SOCRATES: What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted, there will

    at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain.

    PROTARCHUS: What you say is very plausible.

    SOCRATES: But if the reverse happens, and harmony is regained and the former nature restored, we

    have to say that pleasure arises, if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the

    shortest possible time(31d) (trad. livre). Cf. PLATO. PHILEBUS, trad. Dorothea Frede. In: COOPER,

    John M. (ed.). Plato: complete works, Indianapolis/Cambridge: Hacket Publishing Company, 1997, p.

    419. 42

    FREDE, D.. Op., cit., p. 262. 43

    ARISTOTELES. Op. cit., 2012, p. 56.

  • 27

    mais sbios, mas, ao mesmo tempo, provoca um dulor maior do que o mel. A amargura

    da raiva reside na dor que ela provoca, desequilibrando o estado natural do indivduo e a

    doura est justamente na antecipao mental do ato de vingana, que a sua imensa

    fonte de prazer. Por sua vez, o riso, que um prazer, quando dirigido a uma infelicidade

    do outro, fruto da malcia (Schadenfreude)44

    , que uma dor da alma (50a)45

    .

    Retornando novamente Retrica, Aristteles oferece uma lista de emoes

    opostas (ira, calma, amizade e inimizade, medo, confiana, vergonha, desvergonha,

    benevolncia, compaixo, indignao, inveja, emulao etc.) que ser enquadrada no

    referido modelo terico dos sentimentos mistos. Ressalte-se, porm, que, em nenhum

    momento, Aristteles faz referncia explcita teoria platnica, nem utiliza a palavra

    misto ou mistura e, neste aspecto, esclarece poucos detalhes de sua abordagem

    emotiva. No entanto, o cotejo a seguir realizado mostra que a influncia platnica tem

    fundamento e a sua investigao merece ser feita, a fim de compreender como foi

    moldada a primeira grande abordagem retrica das emoes de que temos notcia.

    Assim, a ira acompanhada de dor, em funo de um desprezo sem razo

    dirigido a ns ou a pessoas que temos estima, e de prazer na esperana de se vingar, que

    representada mentalmente no indivduo, provocando um deleite comparvel queles

    encontrados nos sonhos (1378b). O medo uma dor em virtude da representao de um

    mal vindouro (1382a). A causa da vergonha consiste numa dor em razo de males

    passados, presentes ou futuros que so passveis de destruir a nossa reputao (1383b).

    A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisio de

    bens desejveis, ou seja, o sucesso alheio fonte de grande aflio, e o prazer estaria na

    possibilidade de observar o fracasso na aquisio destes bens (1387b-1388a). De seu

    turno, na compaixo, a dor resultado de um mal que recai naquele que no a merece,

    fazendo-nos sofrer por extenso (1385b). Na indignao, a dor est em observar um

    xito imerecido (1386b). J o amor, que melhor tratado no Livro I, nos provoca dor

    diante da ausncia da pessoa amada, cuja lembrana e a esperana de reencontro nos

    provocam prazer (1370a).

    bem verdade que em relao a algumas emoes, tais a amizade e a

    benevolncia, Aristteles no chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas

    envolvidos, mas, conforme nota Frede, isso mostra que ele estava mais preocupado em

    44

    A palavra alem Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortnio

    alheio. 45

    PLATO. Op., cit., 1997, p. 439-440.

  • 28

    mostrar quais emoes o orador deveria dominar para ser convincente no

    empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade terica46

    .

    De outra parte, importa registrar que, no detalhamento das emoes, trs

    aspectos so, via de regra, esclarecidos, quais sejam, o estado de esprito em que

    geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoo, contra quem ou

    o que costumam ter aquela reao emotiva e em quais circunstncias ocorrem. Sem

    saber estes trs aspectos, o orador no estar nas condies ideais de alcanar xito no

    seu empreendimento de colocar o auditrio numa determinada disposio mental.

    Por exemplo, como o medo est relacionado visualizao da ocorrncia de um

    mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequncias negativas na esfera

    pessoal do indivduo, o ouvinte deve estar num estado de esprito que acredite que, de

    fato, algo ruim ir lhe suceder. Assim, pessoas insensveis por j terem vivenciado toda

    sorte de desgraa na vida ou porque esto muito confiantes em si mesmas, por terem ou

    acreditarem ter muitos amigos, vigor fsico, prosperidade econmica ou outro motivo

    que as fortalea mentalmente no sentiro medo. Logo, a confiana o contrrio do

    medo e um verdadeiro escudo contra o sentimento de insegurana que aplaca o

    medroso. Por outro lado, teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a ns, e, nesta

    categoria, encontram-se aqueles que so injustos ou perversos, desde que contem com

    instrumentos para cometerem os seus atos de injustia e de maldade, aqueles que

    provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que ns, os nossos concorrentes,

    quando o objeto de conquista no pode ser compartilhado, os que foram vtimas de

    injustia por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem. Por fim, em

    relao coisa que tememos, ela dever ter a capacidade de nos causar grande

    penosidade, inclusive a prpria destruio, sendo o seu aspecto temporal altamente

    relevante, j que tendemos a ter medo em relao a um mal iminente e no sentirmos

    temor quanto a algo que provavelmente se suceder, mas a sua ocorrncia se dar num

    intervalo temporal muito longnquo.

    Na posse de tais informaes, e tentando imaginar um orador que planeje incutir

    medo num auditrio formado por pessoas com alto nvel de confiana, certamente o

    passo inicial ser dessensibilizar os ouvintes. Se, por exemplo, as pessoas forem

    confiantes por possurem muita riqueza, ser necessrio demonstrar no discurso que os

    seus bens materiais nada podero fazer contra o mal que se aproxima. Se, por outro

    46

    FREDE, D.. Op., cit., p. 271.

  • 29

    lado, o mal lhes parece distante, o discurso dever enfatizar que a distncia no to

    grande quanto aparenta e dever reforar a capacidade destrutiva deste mal, bem como

    certificar que, apesar de longnquo, o infortnio ocorrer. No entanto, se o auditrio

    estiver experimentando um medo excessivo, talvez seja necessrio lhes transmitir

    confiana, demonstrando que o mal no seja to grande quanto aparenta ou que as

    pessoas dispem de meios adequados para enfrent-lo.

    Enfim, preciso realizar um minucioso estudo do auditrio, a fim de

    compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (pr-discurso),

    continuar a perceb-lo durante o discurso, tudo isso com o objetivo de conduzir os

    ouvintes a uma pretendida disposio mental. Nesta perspectiva, a retrica uma

    tcnica fundada no profundo conhecimento terico do ser humano, na aquisio de

    experincia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especficas de um

    determinado grupo social e na contnua prtica discursiva.

    Cumpre acrescentar que, no discurso retrico, h tambm um intenso trabalho de

    representao mental ou, melhor dizendo, de imaginao, isto , phantasia. As palavras

    gregas phantasia e phantasma so traduzidas por imagem, imaginao ou representao

    mental em diversas ocasies da obra em comentrio. oportuno destacar que phantasia

    um termo tcnico da psicologia aristotlica e no se confunde com o uso atual da

    palavra fantasia, que significa inveno, narrativa ficcional, algo fora da realidade.

    A phantasia uma faculdade da alma, que no nem pensamento, nem

    percepo, embora parta desta ltima. Ela visa dar conta de, pelo menos, dois

    problemas: a presena na ausncia, isto , a lembrana ou pensamento de objetos

    ausentes; a questo do engano, que no consegue ser explicado pela ideia de que o

    semelhante conhece o semelhante, pois esta ltima tese sustenta que o conhecimento se

    identifica com os seus objetos (409b29-30) e, por isso, no pode [...] errar ou desviar

    de como as coisas so47

    . Assim, para Aristteles, a phantasia uma faculdade

    especfica da alma que procura solucionar esse problema da cognio, tornando, atravs

    da representao mental, o verdadeiro e o falso possveis.

    Desse modo, Aristteles expe que o prazer consiste em sentir uma certa

    emoo, e a imaginao [phantasia] uma espcie de sensao enfraquecida48

    (1370a28-29). Ao falar acerca do prazer sentido na vitria, assevera que todos gostam

    47

    it cannot err or deviate from the way things are. CASTON, Victor. Aristotles psychology. In: GILL,

    M. L.; PELLEGRIN, P. (ed.). The Blackwell Companion to Ancient Philosophy, Oxford: Blackwell

    Publishing, 2006, p. 334. 48

    ARISTTELES. Op., cit., 2012, p. 57.

  • 30

    de vencer porque criamos para ns mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade

    em relao aos outros (1370b33). A honra e a boa reputao so altamente prazerosas,

    porque, atravs delas, imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma

    pessoa virtuosa. Na ira, o prazer ocorre em face da representao mental [phantasia] do

    ato de vingana (1378b). O medo uma dor ocasionada pela representao [phantasia]

    de um mal iminente (1382a21). Na esperana, representamos mentalmente [phantasia]

    que as coisas que nos transmitem segurana esto prximas (1383a17). Por sua vez, a

    vergonha consiste na representao imaginria [phantasia] da perda de reputao pelo

    indivduo (1384a24)49

    .

    Assim, em vista dos trechos acima citados, fica claro que phantasia tem um

    papel essencial no trabalho retrico, porque atravs de sua elaborao discursiva ser

    possvel suscitar determinadas emoes no auditrio. E isso porque, conforme destaca

    Rapp, muitas emoes surgem apenas atravs da percepo ou da imaginao

    (phantasia), no necessitando de uma operao cognitiva superior, incluindo qualquer

    julgamento, compreendido este ltimo como uma operao sofisticada50

    . Assim, em

    concluso, a phantasia retrica consiste na induo de uma determinada disposio

    mental por meio da produo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um

    estado emocional especfico.

    Desse modo, tendo completado a exposio do tema, possvel agora notar a

    evoluo do pensamento de Aristteles sobre as emoes, compreender de que modo

    elas so suscitadas, entender a sua natureza complexa e a sua funo cognitiva, precisar

    quais delas so importantes para o orador e, por fim, observar a sua centralidade dentro

    da retrica.

    1.3. Pathos e a tica aristotlica

    Visto o delineamento do tema na retrica aristotlica e percebido o alto grau de

    importncia que as emoes adquirem no discurso persuasivo, passamos agora a

    investig-las na tica aristotlica, mais precisamente nos Livros I e II da tica a

    Nicmaco.

    49

    GRIMALDI, William M. A.. Aristotle, Rhetoric II: a commentary. New York: Fordham University

    Press, 1988, p. 26. 50

    Viele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande, bedrfen

    aber keiner hheren kognitiven Operation, also auch keines Urteils, falls darunter eine solche

    anspruchsvollere Operation verstanden wird (trad. livre). RAPP, C.. Op., cit., p. 56.

  • 31

    Aristteles inicia, no Captulo II do Livro I, dizendo que se houver um bem que

    seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade ltima,

    tal bem, dada a sua importncia, merece, por razes prticas, ser estudado e conhecido,

    uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforo na vida humana.

    Esse bem final ou supremo relacionado felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no

    Captulo IV: verbalmente, -nos possvel quase afirmar que a maioria esmagadora da

    espcie humana est de acordo no que tange a isso, pois tanto a multido quanto as

    pessoas refinadas a ele se referem como a felicidade51

    (1095a17-19).

    Aps discorrer sobre vrias concepes correntes sobre felicidade (eudaimonia),

    oferecendo-lhes crtica, bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista, Aristteles, no

    Captulo XIII, afirma que felicidade uma certa atividade da alma em conformidade

    com a virtude perfeita ou que a felicidade humana significa a excelncia da alma,

    justificando, portanto, a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para

    melhor compreender a matria em exame.

    Por isso, em seguida, apresenta a diviso da alma em uma parte dotada de razo

    (logon) e uma outra parte no-racional (alogon). Primeiramente, detalhada a parte

    no-racional, que se divide em duas: uma poro cuida da nutrio e do crescimento e,

    por isso, partilhada com todos os seres vivos, no sendo caracterstica apenas do ser

    humano (parte vegetativa ou nutritiva), mas uma outra poro, embora tambm seja

    no-racional, possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razo. Esta

    ltima poro a sede dos desejos, apetites e emoes e, geralmente, denominada de

    parte apetitiva ou desiderativa.

    Porm, em prosseguimento, sem se decidir, ele observa que talvez seja mais

    apropriado dividir a parte racional em duas: uma que detm o princpio racional strictu

    sensu e em si mesmo, e a outra parte (a apetitiva), que no possui razo, mas que

    capaz de ouvi-la, como um filho ao seu pai. Em ambos os casos, seja a parte

    irracional duplamente dividida, seja a parte racional duplamente dividida, uma coisa

    permanece igual: a parte apetitiva (desiderativa) no detm, em si, o princpio racional,

    mas capaz de escutar e obedecer a razo, conforme explana Rapp:

    Na verdade, Aristteles diz que ou o sentido da frase logo echon

    (ter razo) bipartite primeiro: aquilo que tem razo em sentido

    estrito e a tem em si mesmo; segundo: aquilo que capaz de obedecer

    ou responder razo ou que um elemento da parte no-racional da

    51

    ARISTTELES. tica a nicmaco, trad. Edson Bini. So Paulo: Edipro, 2009, p. 40.

  • 32

    alma capaz de ouvir, obedecer, ou responder quela parte da alma

    que possui razo em si mesma.52

    Mas qual a principal finalidade em apresentar esta diviso da alma em uma

    parte racional e outra no-racional? Ora, se lembrarmos que a felicidade um estado de

    excelncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita, ento do conhecimento

    das partes da alma e da compreenso do seu bom funcionamento dependem o excelente

    desempenho da totalidade da alma. Assim, anota Pakaluk, o pressuposto implcito neste

    captulo que a virtude do todo s possvel atravs da distino da virtude das

    partes53

    .

    E tal, portanto, a justificativa para apresentar a diviso entre virtudes

    intelectuais e virtudes morais ou ticas. As virtudes intelectuais so aquelas pertencentes

    ao campo da parte racional da alma e, de seu turno, as virtudes morais so relacionadas

    parte no-racional da alma, mas que, conforme visto, tm a caracterstica de poder

    ouvir e obedecer razo.

    Interessante registrar o jogo ambguo que o vocbulo virtude exerce no texto.

    Se, num primeiro momento, Aristteles usa virtude, geralmente, no singular, para se

    referir felicidade, convm notar que, agora, ele passa a utilizar a palavra no plural

    (virtudes intelectuais e virtudes morais). O termo grego aret pode ser traduzido por

    excelncia ou por virtude, sendo que, ao empregar a palavra no singular para definir a

    felicidade, o Estagirita quer se referir atividade excelente da alma, um estado que

    exerce bem sua funo e atinge os melhores padres. J no segundo caso exemplificado

    (plural), deseja aludir s virtudes individuais tais como, popularmente, as conhecemos:

    justia, moderao, coragem, etc.54

    Assim, tendo em vista tal classificao, o Livro II ir se ocupar da virtude moral

    (no singular), ou seja, procurar-se- compreender de que maneira a parte no-racional

    da alma ir atingir o seu estado excelente, enquanto as virtudes morais (no plural) iro

    ser exploradas em outro trecho da obra (III.8-VI).

    Neste propsito, no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral, o

    Estagirita abre a discusso esclarecendo o seu modo de aquisio, a fim de diferenciar

    tal virtude em relao virtude intelectual. Enquanto esta ltima se adquire pela

    52

    RAPP, C..Para que serve a doutrina aristotlica do meio termo?. In: ZINGANO, Marco (org.). Sobre a

    tica nicomaqueia de aristteles. So Paulo: Odysseus Editora, 2010, p. 410. 53

    PAKALUK, Michael. On the unity of the nicomachean ethics. In: MILLER, Jon (ed.). Aristotles

    nicomachean ethics: a critical guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 31. 54

    RAPP, C.. Op., cit., 2010, p. 407-408. Cf. ARISTTELES. Ethica Nicomachea. Op., cit., p. 78.

  • 33

    instruo, aquela produto do hbito (ethos), marcando, com esta posio, clara

    divergncia com o intelectualismo socrtico, que entende que a virtude adquirida por

    meio do conhecimento, vale dizer, para praticar atos bons e ser considerado bom

    suficiente que o indivduo compreenda o que bondade; para ser justo, satisfatrio

    conhecer o que justia. Diferentemente, no modelo aristotlico, algum s se torna

    virtuoso, caso realize atos em conformidade com a virtude. Por conseguinte, preciso

    realizar atos de coragem ou de justia para, por exemplo, ser considerado corajoso ou

    justo.

    Ademais, as virtudes morais no so inatas; no so geradas pela natureza

    (phusei) nem so contrrias natureza (paraphisen). Embora nos sejam concedidas

    como potncias (dynameis), necessitam ser exercidas para serem adquiridas e no

    permanecerem em eterno estado de latncia. Isso porque a virtude uma hexis

    (disposio), um estado de carter adquirido que se tornou estvel, fixo, no sujeito a

    regresses55

    . por isso que a sua aquisio s ocorre mediante a repetio de vrios

    atos (hbito), necessitando tambm que haja conhecimento e deliberao na sua prtica

    (1105a30-35).

    Porm, onde se encaixam as emoes neste modelo terico? Qual o papel que

    desempenham para o atingimento do estado de excelncia da parte no-racional da

    alma?

    No Captulo I do Livro II, Aristteles fornece o primeiro exemplo emprico

    relativo importncia das emoes para a o desenvolvimento do carter do indivduo:

    atravs da ao em situaes arriscadas e ao formar o hbito do [sentimento] do medo

    ou [aquele] da autoconfiana que nos tornamos corajosos ou covardes56

    . No Captulo

    II, reafirma-se o mesmo exemplo: a pessoa que sente medo em relao a tudo, querendo

    fugir de todas as situaes, ir adquirir o carter de um covarde, sendo que aquele que

    no vivencia medo em face de qualquer situao, um temerrio.

    Aps, o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de

    incidncia em relao s aes e s emoes. Assim, em relao a estas ltimas, estar na

    posse de uma virtude moral significa que o indivduo se encontra bem ou mal disposto a

    55

    WOLF, Ursula. A tica nicmaco de Aristteles, trad. Enio Paulo Giachini. So Paulo: Edies

    Loyola, 2013, p. 69-70. 56

    ARISTTELES. Op., cit., 2009, p. 68.

  • 34

    sofrer o governo das emoes: as disposies so os estados de carter formados

    devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relao s paixes.57

    Com efeito, se pensarmos que a teoria moral aristotlica concerne s emoes e

    o vocbulo pathos, derivado de paschein, traz consigo a ideia de que o indivduo

    afetado por algo, isto , ele sofre a ao de uma emoo e, por isso, se encontra numa

    condio passiva, e considerando que esta mesma teoria moral tambm se preocupa

    com a ao (praxis), isto , quando o indivduo atua e, respectivamente, est numa

    posio ativa, o modelo tico em comentrio se preocupa no apenas com o agir

    devidamente, mas tambm com o ser afetado devidamente. Assim, a arte de viver bem

    no se resume a uma arte de agir adequadamente, mas, sobretudo, a uma arte de sentir

    de modo adequado as emoes58

    .

    Dessa forma, com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de

    como atingir esse ponto de excelncia em relao s aes e s emoes, Aristteles

    apresenta a doutrina do meio termo:

    Ora, de tudo que contnuo e divisvel possvel tomar a parte maior

    ou a menor, ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores,

    menores e iguais seja relativamente prpria coisa ou relativamente a

    ns, a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficincia.

    Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois

    extremos; o que exatamente o mesmo para todos os seres humanos;

    pela mediania relativa a ns entendo aquela quantidade que nem

    excessivamente grande, nem excessivamente pequena, o que no

    exatamente o mesmo para todos os seres humanos59

    Assim, em vista do modelo conceitual oferecido, a excelncia tica estar no

    distanciamento do muito e do muito pouco em direo ao centro, isto , ao ponto

    mediano. A boa disposio de carter alcanada quando se evita tanto o excesso

    quanto a deficincia, que seriam modos de falhar tanto na ao quanto na forma de

    sentir a emoo.

    Rapp destaca que as interpretaes normativas desta doutrina,

    tradicionalmente, a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os

    casos individuais e encontrar, consequentemente, uma soluo. Assim, ela tem sido

    compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas aes ou emoes sejam

    57

    Id., ibid., p. 74. 58

    KOSMAN, L. A.. Beeing properly affected: virtues and feelings in Aristotles ethics. In: RORTY,

    Amlie Oksenberg. Essays on aristotles ethics. Berkeley/Los Angeles: California University Press,

    1980, p. 104-105. 59

    ARISTTELES. tica a nicmaco. Op., cit., p. 76.

  • 35

    moderadas; (b) para que apenas selecionemos as aes ou as reaes emotivas

    equidistantes dos dois extremos60

    .

    Todavia, a melhor sada seria observar o seu carter anti-dedutivo, j que, no

    campo tico, a infinidade de situaes e peculiaridades desaprova uma leitura regra-

    caso desse modelo terico: o melhor que a teoria tica pode fazer formular

    enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hs epi to polu) e no em

    geral.61

    Nesta rea, que no a do necessrio, no se podem formular premissas

    cogentes a partir das quais deduziramos solues firmes.

    Aristteles, nesse ponto, adiciona uma srie de parmetros, a fim de explanar

    conceitualmente a boa medida da ao ou da emoo: experimentar uma emoo

    adequadamente significa senti-la na ocasio certa, oportunamente, em relao s

    pessoas e aos fins certos e de maneira correta, o que demonstra a complexidade do

    aperfeioamento tico, uma vez que se espera do indivduo uma grande sensibilidade

    experincia concreta.

    Em tal perspectiva, sentir uma emoo devidamente pode significar reagir de

    modo enrgico, porque uma situao especfica pode reclamar que a pessoa tenha uma

    resposta emocional intensa. Isso no anula a noo de virtude moral esclarecida

    conceitualmente pela doutrina do meio-termo, porque a pessoa que no reage de forma

    adequada ocasio em face daqueles parmetros expostos estar ou falhando por

    deficincia ou por excesso. Por exemplo, o indivduo que, frequentemente, reaja com

    raiva em relao s pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira

    equivocada ou no reaja quando deveria estar mal disposto em relao s emoes62

    .

    Assim, at o momento, o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira

    algum estar bem ou mal disposto em relao s emoes, uma vez que, conforme se

    delineou, a parte no-racional da alma apenas exerce bem a sua funo quando ouve a

    razo e, no campo das emoes, isso ocorre quando o indivduo as sente adequadamente

    de acordo com as circunstncias.

    Porm, Aristteles, demonstrando que, no terreno da tica, as peculiaridades so

    muitas, afirma que para determinadas emoes (a inveja, a malevolncia, a impudiccia

    e outras semelhantes), o modelo da mediania intil e os parmetros sequer aplicveis,

    60

    RAPP, C.. 2010, p. 416. 61

    Id., ibid, p. 419. 62

    RAPP, C..Op., cit., 2008, p. 66.

  • 36

    porque tais paixes so ms em si mesmas: para elas, s existe o erro, pois no h como

    senti-las no momento certo, quanto pessoa certa, ou de modo certo etc.

    Assim, enquanto para uma gama de emoes possvel afirmar que possvel

    senti-las adequadamente e isso implica pressupor que, quando apropriadamente

    vivenciadas, algo de bom ter ocorrido da sua fruio, para outras tal pensamento no

    extensvel.

    Temos que nos socorrer do Livro II da Retrica, a fim de evidenciar por que a

    inveja seria, do ponto de vista tico, uma emoo vil em si mesma: o Estagirita afirma

    que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia aquela que sente inveja

    da felicidade dos outros e, consequentemente, esta mesma pessoa ter grande regozijo

    ao observar o fracasso alheio. Enquanto a indignao e a inveja partilham de um ponto

    comum por serem emoes penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia,

    entre elas existe uma destacada diferena: a indignao uma dor gerada pela

    observao de um sucesso imerecido (injusto), enquanto a inveja uma dor provocada

    pela conquista de um bem merecido (justo). Enquanto a indignao e a compaixo esto

    ligadas ao bom carter, a inveja est relacionada a pessoas de alma pequena

    (mikropsykhoi). Ao comparar a emulao com a inveja, destaca que aquela

    experimentada por pessoas de bem, de alma grande, enquanto a ltima por pessoas vis,

    desprezveis, que podero inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem.

    Enfim, parece que no foi toa que Aristteles, de forma inusual, brigou com os poetas

    no incio da Metafsica, ao dizer que mais provvel que eles sejam mentirosos,

    conforme profere o provrbio, do que os deuses invejosos (1386b10-25; 1387b30-39;

    1388a30-37; 983a1-5).

    Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoes que so vis em si mesmas,

    fundamentando-se na palavra grega mochteria, utilizada em trecho em que discutido

    este mesmo assunto na tica a Eudemo (1221b21)63

    . bem verdade que mochteria

    tambm foi vertida por vcio em algumas tradues deste mesmo trecho na referida

    obra aristotlica64

    , mas no deixa de ser um uso interessante para a descrio das

    mencionadas emoes, parecendo-nos oportuna a sua utilizao.65

    63

    LEIGHTON, Stephen. Inappropriate passion. In: MILLER, Jon (ed.). Aristotles nicomachean ethics:

    a critical guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 211. 64

    ARISTOTLE. Eudemian ethics, trad. Michael Woods. Oxford: Clarendon Press, 2005, p. 18. 65

    Cf. a explanao dada para mochteria: corrupt, corruption (mochtheros, mochtheria): A strong term

    used to describe vicious human beings. Like the English term, the Greek has a range of meanings, from

    morally bad or wicked to perverse or depraved in one's longings and the like; it can also mean, in non

    moral contexts, simply defective or bad condition. In the Ethics, mochtheria is sometimes used

  • 37

    Assim, por exemplo, a inveja uma emoo perversa, porque, conforme se viu,

    anti-meritria. O sujeito invejoso no consegue enxergar um valor positivo na

    conquista alheia e espera pela sua desgraa. Consequentemente, uma emoo

    relacionada ao cometimento de injustias.

    Mas, de um modo geral, todas as emoes perversas compartilham de algo em

    comum: elas so incompatveis com o bom carter. Consoante nota Leighton, as

    emoes perversas [...] no contribuem em nada, mas apenas inibem uma vida virtuosa

    ou prspera. Enquanto a maioria das emoes objeto de elogio ou de censura

    conforme as circunstncias particulares em que se manifestam, estas merecem censura

    simplesmente por serem sentidas66

    .

    Ora, pelo visto at o presente momento, Aristteles divide as emoes em dois

    grupos: aquelas que podem ser adequadamente ou no-adequadamente sentidas de

    acordo com as circunstncias e aquelas que so vis em si mesmas (perversas). Naquele

    primeiro grupo de emoes, os indivduos virtuosos sentiro as emoes

    adequadamente, enquanto aqueles no-virtuosos sentiro inadequadamente. No segundo

    grupo, apenas os sujeitos de carter falho (no-virtuoso) as sentiro67

    . Desse modo, de

    acordo com este modelo, quando devidamente formadas na disposio de carter do

    indivduo, as emoes contribuiro significativamente no alcance de uma vida feliz.

    Porm, a despeito disso, quais so as outras implicaes deste modelo?

    O primeiro ponto consiste em perceber que vrias questes essenciais para a

    vida, inclusive para a vida em sociedade, no esto localizadas no mbito de uma

    racionalidade strictu sensu. Se o indivduo no for, por hbito, levado a constituir uma

    disposio de carter que o faa detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos

    perversos, provavelmente ser indiferente, emocionalmente, a aes truculentas ou

    brutas contra outras pessoas.

    Nesse sentido, conforme pontua Striker, a falha em perceber qual o melhor curso

    de ao a tomar diante de determinada situao est relacionada disposio emocional,

    porque esta que ir possibilitar ao indivduo ter uma boa perspectiva moral,

    permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que o melhor em cada circunstncia. Pessoas

    synonymously with the word for vice and so can serve as the contrary of virtue. ARISTTELES.

    Aristotles nichomachean ethics, trad.Robert Bartlett e Susan D. Collins. Chicago/London: Chicago

    University Press, 2011, p. 307. 66

    They cannot contribute to, but only inhibit, a virtuous or flourishing life. While most passions deserve

    praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (iiii), these deserve blame

    simply for being felt (trad. livre). LEIGHTON, S.. Op., cit., p. 215. 67

    LEIGHTON, S..Id., ibid., p. 226.

  • 38

    incapazes de sentir adequadamente indignao ou compaixo sero inbeis em prevenir

    ou aliviar o sofrimento alheio, assim como no estaro interessadas em reparar uma

    injustia68

    . Ademais, registre-se que, sem medo, a pessoa no tem como deliberar

    adequadamente diante de um perigo (1383a5). E, por ltimo, a depender da situao,

    talvez seja necessrio responder com muita indignao ou muita raiva, porque a

    conjuntura pode demandar uma resposta enrgica, de modo que o ideal de que as

    emoes sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)

    no est condizente com tal abordagem69

    .

    De outra parte, convm tambm compreender de que maneira este modelo

    extensvel a outros domnios, pois, at ento, a classificao entre emoes adequadas e

    perversas esteve atrelada ao prisma tico da vida comum. Mas, conforme adverte

    Leighton, possvel pensar a questo da adequao e da perversidade das emoes na

    poltica, na retrica