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PARECER TÉCNICO: AZULEJARIA DA TORRE SINEIRA A origem da igreja brasileira é portuguesa, nascida do pré- românico e, mesmo quando sua evolução já ia avançada, sempre seu ponto de partida se fez presente. O culto cristão, ao ser introduzido nas novas terras, caracteriza suas construções com um misto de caráter religioso e militar, e este aspecto será impresso à arquitetura de seus mosteiros e conventos. Essa herança se faz clara nas igrejas brasileiras com suas torres quebradas, de nítido traçado militar, remetendo às antigas Sés da Idade Média. A torre sineira portuguesa exerceu, diferentemente do campanile italiano de origem decorativa religiosa do Oriente, também a função militar. Mesmo após a extinção dessa necessidade, eles mantiveram seu formato como símbolo hierárquico nas matrizes. Os franciscanos, objeto de nosso estudo, se distinguiram pelo emprego da torre única e recuada. Entretanto, apesar dos beneditinos e jesuítas usarem também esse modelo na maioria de suas construções, não o fizeram tão marcadamente como eles. A mais antiga forma das torres brasileiras, a piramidal, teve como base a Sé de Braga. Nitidamente de influência árabe, eram recobertas por telhas nas suas quatro faces, como a Sé de Mariana (1710-34), ou eram forradas com azulejos como a de Cairu. Germain Bazin aponta o Convento de Santo Antonio de Cairu e a Sé do Salvador do Mundo de Olinda (com reconstrução datada cerca de 1660) como os dois primeiros exemplos de campanário piramidal forrados com azulejos. Cita, ainda, que essas mais antigas forrações eram feitas com azulejos brancos, sendo as seguintes já bicolor, com introdução do azul, em composição disposta em traçado de ziguezague, conforme os encontrados na Igreja de Boa Viagem de Salvador (cerca de 1712) e Santo Antonio da Vila de São Francisco (1658-1686). A forma piramidal do campanário 1

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PARECER TÉCNICO: AZULEJARIA DA TORRE SINEIRA

A origem da igreja brasileira é portuguesa, nascida do pré-românico e, mesmo quando sua evolução já ia avançada, sempre seu ponto de partida se fez presente. O culto cristão, ao ser introduzido nas novas terras, caracteriza suas construções com um misto de caráter religioso e militar, e este aspecto será impresso à arquitetura de seus mosteiros e conventos. Essa herança se faz clara nas igrejas brasileiras com suas torres quebradas, de nítido traçado militar, remetendo às antigas Sés da Idade Média. A torre sineira portuguesa exerceu, diferentemente do campanile italiano de origem decorativa religiosa do Oriente, também a função militar. Mesmo após a extinção dessa necessidade, eles mantiveram seu formato como símbolo hierárquico nas matrizes. Os franciscanos, objeto de nosso estudo, se distinguiram pelo emprego da torre única e recuada. Entretanto, apesar dos beneditinos e jesuítas usarem também esse modelo na maioria de suas construções, não o fizeram tão marcadamente como eles. A mais antiga forma das torres brasileiras, a piramidal, teve como base a Sé de Braga. Nitidamente de influência árabe, eram recobertas por telhas nas suas quatro faces, como a Sé de Mariana (1710-34), ou eram forradas com azulejos como a de Cairu. Germain Bazin aponta o Convento de Santo Antonio de Cairu e a Sé do Salvador do Mundo de Olinda (com reconstrução datada cerca de 1660) como os dois primeiros exemplos de campanário piramidal forrados com azulejos. Cita, ainda, que essas mais antigas forrações eram feitas com azulejos brancos, sendo as seguintes já bicolor, com introdução do azul, em composição disposta em traçado de ziguezague, conforme os encontrados na Igreja de Boa Viagem de Salvador (cerca de 1712) e Santo Antonio da Vila de São Francisco (1658-1686). A forma piramidal do campanário apresenta, ainda, outra forração encontrada no Seminário de Belém da Cachoeira (1726-32) onde convivem azulejos brancos e azuis com pratos de cerâmica chinesa de Macau.

A azulejaria, por mais de cinco séculos, ocupa um lugar proeminente na arte lusa sobretudo por se basear em conceitos simples, formadores de sua cultura, cujos fatores a tornaram referência mundial. Sendo os mais preponderantes a praticidade funcional aliada ao baixo custo e à beleza estética, conjugados ao permanente intercâmbio cultural com os outros povos. Portugal ao dotar a azulejaria dessa extrema complexidade e a introduzindo em espaços caracterizadamente fechados, como palácios e conventos, acaba por promover as transformações desses locais de forma original e funcional. E, a partir de então, é introduzido no Brasil trazido, principalmente, pela Ordem Franciscana que passa a aplicá-lo tanto internamente como externamente em suas torres sineiras. Entretanto, devido à fragilidade do material, seu uso ficou restrito aos conventos do litoral, onde é largamente empregado, sendo o nordeste o possuidor de seus melhores exemplares.

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Cabe lembrar que a obra de arte é uma unidade possuidora de alguns recursos e várias funções. Os recursos levam ao estudo e à pesquisa. E, as funções representam os diversos modos pelos quais ela poderá ser utilizada ao ser exibida. Entre elas poderão ser apontadas as seguintes: a informativa, referindo-se ao seu conteúdo, seus materiais componentes; a histórica, que indica sua importância contextualizada dentro de uma determinada época; a cultural, que caracteriza a representatividade de um grupo ou de uma época realizada através da decoração; a estética, que se se vincula à qualidade dos lavores técnicos representativos na obra; e a mecânica, que aponta a aplicabilidade prática da obra para ser exposta levando em conta sua conservação futura.

Posto isso e considerando que:

1. A assertiva que as primeiras forrações de azulejos foram brancas, com Cairu situando-se entre elas, contrapõem-se a uma outra, a azulejaria policroma que ora se encontra na torre, considerada original.

2. O questionamento que envolve essa matéria, se os originais são os atuais ou eram brancos, não influi no critério de intervenção, posto que aqueles já se integraram à história do monumento. Uma pesquisa a respeito poderá ser realizada para futura elucidação do assunto visando acrescentar mais dados à história da arquitetura brasileira.

3. Culturalmente existe um comportamento sistemático entre os franciscanos de complementarem azulejos faltantes com peças originários de outros locais do convento ou, até mesmo, de outros da mesma Província, com o único intuito de manter formalmente a estética da azulejaria com o aproveitamento de antigos azulejos na composição dos silhares que ornamentam o convento ou para ornamentar suas torres sineiras.

4. O Convento de Santo Antonio de Cairu possui azulejos policromos em sua torre sineira anteriores à fundação do convento e que, segundo Santos Simões, possivelmente sejam originários do Convento de São Francisco de Salvador devido à semelhança com aqueles lá existentes. Esses azulejos são complementados por outros provenientes de vários locais do convento.

5. A presença de azulejos estranhos à composição confunde e interfere na leitura estética e histórica do conjunto azulejar.

6. A proposta técnica apresentada é bastante pertinente. Pelo ponto de vista da obra, resgata suas principais funções, principalmente a estética, a histórica e a cultural, exigidas para que o bem seja considerada de valor. E, do ponto de vista do restauro, não fere nenhum de seus princípios já que o padrão em questão é repetitivo, logo pode ser reproduzido.

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Sugiro que:

Os azulejos identificados como pertencentes à cena do Milagre da Mula sejam reordenados em novo painel, registrando o ocorrido e passando a fazer parte do acervo museológico do convento como testemunho de sua história. E, enquanto aos outros fora do padrão compositivo deverão voltar para seus locais de origem, já que foram previamente identificados.

Acredito que as sugestões acima expostas possam preencher satisfatoriamente os requisitos necessários à intervenção além de salvaguardarem os valores estético, histórico e cultural do bem.

Magaly Oberlaender

Museóloga-restauradora

Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 2011.

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