Missão Atcon e a Universidade em transição: a PUC-Rio e os...
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Helio Maurcio Piraj Cannone
Misso Atcon e a Universidade em transio:
a PUC-Rio e os Estados Unidos no contexto
de reforma universitria da Ditadura militar
MONOGRAFIA
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
Rio de Janeiro, novembro de 2015
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Helio Maurcio Piraj Cannone
Misso Atcon e a Universidade em transio: a PUC-Rio e
os Estados Unidos no contexto de reforma universitria da
Ditadura militar
Monografia
Departamento de Histria
Orientadora: Luciana Lombardo Costa Pereira
Rio de Janeiro, novembro de 2015
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Agradecimentos
Eu me formei, deformei e transformei em Histria pela PUC-Rio e devo esse
prazer agridoce a um nmero muito grande de pessoas. Tentarei ser grato a alguns
deles aqui, embora j fique triste por imaginar que possa esquecer alguns.
Aos meus dois grandes mestres formadores: Professora Margarida de Souza
Neves, pela pacincia, carinho e aprendizagem e ao Professor Ilmar Rohloff de
Mattos, pelo privilgio de ter sido seu aluno e amigo.
A minha amiga e orientadora Luciana Lombardo no s pela amizade (que
grande), mas por ter me mostrado uma concepo de Histria que de outro modo
eu certamente jamais teria conhecido. Agradeo ao Romulo Mattos e Larissa
Costard pelos mesmos motivos.
A minha namorada Julia pelo apoio e carinho nos momentos acadmicos e no
acadmicos da vida. Agradeo tambm a ela por esta monografia estar com um
portugus e uma formatao apresentveis.
Aos professores que tive durante os meus cinco anos de graduao. Afinal, de um
jeito ou de outro, todos contriburam para minha formao.
Aos pilares estruturantes do departamento de Histria da PUC-Rio: seus
funcionrios. Agradeo ao Moiss, Claudio, Anair, Cleusa e dna pela ajuda
quando precisei, pelas brincadeiras nas horas de distrao e, claro, pelo caf!
A todos os amigos que eu fiz na PUC-Rio atravs do Ncleo de Memria, PIBID,
CASOC e na vida que levei pela Gvea. Em especial, Clarissa, Ana Carolina,
Paulo, Patrcia, Igor, Matheus, Vitor Hugo, Rafaela, Lvia, Daniella, Gustavo,
Priscila, Jos Luz e Renato.
A Lucas Pedretti e a Pedro Fraga por terem sido meus Professores informais,
amigos incondicionais e ouvido para minhas reclamaes. A partir de vocs
aprendi que amizade, poltica e historiografia podem e devem andar juntas.
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Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar as bases ideolgicas da
Reforma Universitria da PUC-Rio entendendo que ela faz parte de um contexto
maior. Isso ser feito atravs de sua relao com a conjuntura internacional do
perodo e tambm com os debates e disputas de projetos para o ensino superior
presentes em territrio nacional. Pretende-se, por fim, analisar o relatrio
elaborado pelo norte-americano Rudolph Atcon para a PUC-Rio.
Palavras-chaves
Guerra fria, universidades, ditadura militar, Reforma Universitria.
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Sumrio
1. Introduo
2. Uma histria do que poderia ter acontecido: os debates sobre ensino superior antes do golpe de 1964
3. A Guerra nem to fria assim: relaes entre Estados Unidos e Brasil nos anos 1960
4. A misso Atcon para a Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
5. Concluso
6. Fontes e Referncias Bibliogrficas
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Tese VI
Articular historicamente o passado no significa conhec-
lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma
reminiscncia, tal como ela relampeja no momento de um
perigo. Cabe ao materialismo histrico fixar uma imagem
do passado, como ela se apresenta, no momento do
perigo, ao sujeito histrico, sem que ele tenha conscincia
disso. O perigo ameaa tanto a existncia da tradio
como os que a recebem. Para ambos, o perigo o mesmo:
entregar-se s classes dominantes, como seu instrumento.
Em cada poca, preciso arrancar a tradio ao
conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias
no vem apenas como salvador; ele vem tambm como o
vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as
centelhas da esperana privilgio exclusivo do
historiador convencido de que tambm os mortos no
estaro em segurana se o inimigo vencer. E esse inimigo
no tem cessado de vencer.
Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de Histria
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Introduo
Essa monografia de concluso de curso um primeiro resultado de uma
pesquisa que se iniciou no segundo semestre de 2011. Na poca estava sob
orientao da Professora Margarida de Souza Neves no Ncleo de Memria da
PUC-Rio. As tarefas realizadas no perodo variavam entre a catalogao de
documentao referente Universidade e a higienizao e seleo de documentos
da Diretoria de Admisso e Registro (DAR). Alm disso, eram tambm realizados
seminrios tericos nos quais se liam artigos e livros sobre memria e
historiografia.
Nas pastas do DAR em que se faz a higienizao e seleo de documentos
para a digitalizao constavam provas antigas de vestibular e currculos antigos de
cursos da instituio. No contato com tal material, despertou-me a curiosidade de
compreender por que no cabealho das provas de vestibular em determinado
momento as Faculdades, Institutos e Escolas da PUC deixaram de aparecer e
deram lugar a departamentos diversos.
Aos poucos, o estudo, a pesquisa e a orientao da Professora Margarida
de Souza Neves permitiram concluir que se tratava de um processo mais amplo e
que sequer dizia respeito apenas PUC. No relatrio de PIBIC elaborado para o
Ncleo de Memria no ano seguinte foram apresentadas algumas ideias sobre a
Reforma Universitria e o lugar da Universidade Catlica neste processo. No
decorrer dos anos, a pesquisa acabou amadurecendo. Atravs do contato com
bibliografia sobre o perodo, da conversa com professores e de disciplinas feitas
na graduao, a pesquisa foi gradualmente tomando a forma que hoje assume
neste trabalho.
Cabe ressaltar que, no decorrer do estudo, cada vez mais a Reforma
Universitria da Ditadura militar e o captulo catlico sobre isso foi deixando de
ser uma curiosidade e passou a ser uma tentativa de resposta para uma srie de
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conflitos vivenciados na vida do estudante universitrio. Deste modo, a
perspectiva aqui adotada crtica e parte de concepes do prprio autor sobre a
poltica, a educao e sobre o que histria e qual o seu papel. Evidentemente, o
rigor metodolgico jamais se perdeu de vista por causa disso, e o eventual leitor
pode confiar que tudo o que foi escrito fruto de pesquisa e cruzamento de fontes
com bibliografia. Admitir o lugar de que se parte no diminuir o trabalho, mas
dever de qualquer candidato a intelectual que no seja ingnuo ou desonesto. A
iseno completa no existe. Por vezes os que no conseguem admitir isso
acabam por tomar o lado que parece mais imparcial na disputa acerca da
interpretao do objeto. No toa, esse lado geralmente do vencedor. O que se
pretende aqui o oposto: admite-se uma perspectiva crtica na medida em que
qualquer empatia deslocada para os que no conseguiram impor sua leitura do
processo: os vencidos.
Esse trabalho embora tenha suas falhas e lacunas resultado de uma
pesquisa continuada durante os anos, tanto autonomamente como sob orientao
da Professora Luciana Lombardo. Por conta disso, esse no o primeiro produto
que ela gerou. Alm do relatrio de PIBIC de 2012 e apresentaes orais em
eventos, outro resultado um artigo publicado no dcimo volume da revista do
Instituto de Estudos da Religio (ISER) sob o nome de Misso e Universidade
em Transio: as bases ideolgicas da reforma universitria da Ditadura Militar e
a PUC-Rio como caso exemplar (CANNONE, 2015). Consequentemente, houve
um esforo de sistematizao anterior a esta monografia e que muito ajudou na
elaborao da mesma. O artigo serviu de roteiro para a escrita deste trabalho de
concluso de curso, sendo o segundo uma verso estendida do primeiro. O
eventual leitor que tiver interesse, pode no artigo ver uma primeira verso mais
resumida deste trabalho. Algumas partes esto bastante similares, outras foram
modificadas quando foi feito o esforo de um trabalho maior. A forma como esto
organizadas as ideias e os tpicos tratados praticamente a mesma. Usando o
artigo como roteiro (ou mesmo sumrio) deste trabalho, a estrutura dos captulos
se organizou a partir dele.
No primeiro captulo que se segue a esta introduo pretendeu-se tratar
dos projetos de educao em disputa antes do golpe militar de 1964. Trata-se
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ento de uma anlise descritiva que privilegia o caso dos liberais representados
principalmente por Ansio Teixeira e da Unio Nacional dos Estudantes (UNE),
que tal como se tenta demonstrar eram os protagonistas nos debates sobre ensino
superior no Brasil nas vsperas do golpe militar. Tambm no captulo h um
brevssimo histrico da Universidade no Brasil durante o sculo XX. No mesmo
captulo faz-se o esforo de corroborar a hiptese de Florestan Fernandes de que a
Reforma Universitria elaborada pela Ditadura Militar representa na verdade uma
Contrarreforma do ensino superior brasileiro. Os catlicos aparecem no primeiro
captulo como bloco de poder que estava inserido nos debates educacionais e
fundaram uma Universidade para disputar a concepo de ensino superior para o
Brasil.
J no segundo captulo, o esforo foi no sentido no de entender a
conjuntura interna, mas a externa. Rudolph Atcon que d parte do nome desta
monografia era cidado norte-americano. O mesmo foi no s o responsvel por
escrever o relatrio de Reforma da PUC-Rio, mas tambm elaborou documentos
para as Universidades brasileiras como um todo. Ele no pensava sozinho e o fato
de ter sido convidado a diversos pases para reestruturar as suas Universidades de
acordo com os moldes dos Estados Unidos expresso de um contexto maior: a
guerra fria. Neste captulo, pretende-se explorar isso e conectar o interesse dos
Estados Unidos no Brasil com o dos catlicos conservadores atravs do
anticomunismo como pauta comum.
No terceiro e ltimo captulo antes da concluso buscou-se analisar com
maior profundidade o caso da PUC-Rio em si atravs da figura do prprio
Rudolph Atcon. Alm de entrelaar a Misso Atcon para a Amrica Latina com o
papel que cumpriu no Brasil, o captulo pretende analisar por dentro a Proposta
de Atcon para a PUC-Rio atravs de anlise parte a parte do relatrio elaborado
pelo mesmo.
Em todos os captulos buscou-se uma estratgia de escrita parecida: partir
de casos gerais e inserir o caso da Pontifcia Universidade Catlica e seus
representantes dentro dele. Isso se deve ao fato de aqui se compreender que narrar
a histria de uma instituio s faz sentido se a partir disso se puder levantar
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questes mais amplas e que digam respeito a um todo maior do que o objeto em
si. Logo, a Histria da Reforma Universitria da PUC-Rio no foi vista como uma
histria em si, mas um captulo bastante elucidativo da Reforma Universitria
da Ditadura militar. No decorrer dos captulos se tem o objetivo de demonstrar
que entender esse captulo fundamental para o livro da Reforma Universitria
como um todo.
Outra escolha proposital na forma de escrita foi o lugar dado s
concepes tericas que informam o trabalho e os debates historiogrficos no qual
ele estaria situado. Em alguns casos, a introduo ou o primeiro captulo de uma
monografia, dissertao ou tese costuma descrever longamente os autores que
sero mobilizados, as teorias que o autor reivindica, a enumerao de autores que
j escreveram sobre, qual a opinio que se tem sobre eles e a forma como se est
interpretando suas obras. Aqui no se far nada disso. Isso porque a concepo de
que se est partindo que teoria e objeto no so coisas separadas, elas existem
uma em relao a outra. Assim, os debates historiogrficos e as concepes
tericas aparecero na medida em que estiverem interligadas com o assunto que se
est tratando. Com isso, pretende-se deixar o trabalho orgnico e coerente em si
mesmo, ao invs de separado mecanicamente entre a teoria e a prtica.
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Uma histria do que poderia ter acontecido: os debates sobre ensino superior antes do golpe de 1964
No site da Comisso Nacional da Verdade est disponvel o seu relatrio
final para download e consulta pblica (BRASIL, 2015). O segundo volume
apresenta um texto sobre a violao de Direitos Humanos nas Universidades,
escrito com a participao das comisses da verdade nas universidades. Sua
presena no relatrio se justifica pela alta interferncia da Ditadura militar no
cotidiano do ensino superior brasileiro, exemplo disso foi a prpria Reforma
Universitria de 1968. De fato, as polticas de Estado promovidas pelos militares
transformaram de forma profunda e totalmente antidemocrtica a vida
universitria. Houve ampla represso a estudantes e suas entidades, assim como a
professores e organizaes polticas que se reuniam nas universidades. Muitos
professores e estudantes que resistiram a este processo foram silenciados. Alguns
deles pagaram com a prpria vida tal como mostra a lista de mortos e
desaparecidos do Relatrio final da CNV.
Apesar de ter um nexo direto com suas trajetrias individuais, no existem
amplos resultados de pesquisa publicados sobre histria da educao feita por
historiadores com formao na rea, ou atuantes em departamentos de histria.
Quando se observa o recorte ps 1964 o nmero diminui ainda mais. Assim
sendo, a maior parte da produo existente sobre histria da educao tem sido
feita por pesquisadores com formao nas cincias sociais ou em educao, que
no geral atuam em departamentos de educao ou de sociologia.
Recentemente na rea de histria algumas produes acadmicas tm
aparecido. Dentro do calendrio das atividades que lembraram os 50 anos do
golpe militar, foi publicado o livro As Universidades e o Regime militar: cultura
poltica brasileira e modernizao autoritria da autoria de Rodrigo Patto S Motta
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(MOTTA, 2014). Os mritos do trabalho so muitos, dentre os quais destaca-se o
esforo de sntese das diversas disputas polticas para a educao superior no
perodo. Alm disso, o trabalho fruto de enorme levantamento documental, parte
dele indito. Rodrigo Patto analisa a histria das universidades no perodo
dialogando com sua conjuntura poltica e econmica, o que d uma viso maior e
mais completa sobre o tema.
A posio do autor absolutamente crtica a ditadura militar. Contudo,
Rodrigo Patto parte de um conceito alargado de cultura, cuja nfase parece estar
na tentativa de evitar conflitos e de resolver tenses atravs da negociao. Assim,
acaba por explicar questes de outra ordem atravs de uma suposta cultura
brasileira, entendida de forma homognea. O historiador se baseia nos
antroplogos Gilberto Freyre e Roberto da Matta para chegas a estas concluses.
Marcelo Badar Mattos (MATTOS, 2014) analisa essa forma muito presente de
culturalismo na historiografia brasileira. Segundo o autor, este conceito alargado
de cultura configura-se como um tipo de determinismo. Os historiadores que
partem desse pressuposto reduzem outras dimenses da vida do homem e ignoram
o nexo entre cultura e algo que no cultura. Para Marcelo Badar isso reflexo
da influncia do paradigma ps-moderno entre os historiadores. O ps-
modernismo a que o autor se refere tem como base uma percepo da sociedade
construda atravs de jogos de linguagem que se estruturam no atravs do
conceito de classe, mas do conceito de identidades fluidas. Com sua crtica
metanarrativa e a uma forma do fazer historiogrfico que visa uma viso mais
total da histria, essa perspectiva antagnica ao marxismo. Em tal ponto de vista
a contradio entre os interesses das classes dominantes representada pelo
Estado e os interesses dos grupos que sofrem sua opresso no considerada o
ponto central. Situando o debate de Rodrigo Patto em seu contexto historiogrfico
tornam-se compreensveis as tentativas do historiador de encaixar as questes
polticas e econmicas das Universidades durante a Ditadura militar dentro de um
influxo de cultura poltica que se caracteriza pela adeso, resistncia e
acomodao aos modelos de educao do Estado repressivo.
O captulo essencialmente terico de seu livro intitula-se justamente
Adeso, resistncia e acomodao: o influxo da cultura poltica. Nele, o autor se
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insere no determinismo cultural analisado por Marcelo Badar quando cria uma
espcie de estrutura cultural brasileira. Tal estrutura posta como base para as
tomadas de decises dos personagens do processo, assim como para as polticas
do Estado. Em tal perspectiva o Estado de exceo tomado como apenas um
momento dentro de uma suposta cultura brasileira que tende a evitar conflitos e,
por isso, no merece ser tratado com especificidade.
Outro problema para o entendimento geral do processo est no recorte de
seu objeto. Logo na introduo de seu livro, o autor indica que privilegiar as
Universidades Federais em seu estudo. O que fica incompleto neste tipo de anlise
que para entender o processo de reforma universitria necessrio estudar casos
em que parceiros ideolgicos da ditadura estavam diretamente envolvidos. Por
no deslocar o seu olhar para certos grupos de universidades privadas no perodo
o autor acaba diminuindo o tamanho da participao americana no projeto de
universidade que se concretizou no Brasil. Embora no tenha sido radicalmente
implantado um modelo americano de universidade no Brasil, as suas bases
tericas sobrevivem at os dias atuais. Tecnicismo, nfase em produo acelerada,
sistema de crditos e diviso por departamentos so todas caractersticas dos
moldes norte-americanos de Universidade. Tal faceta da Reforma Universitria
ser melhor estudada nos prximos dois captulos deste trabalho.
Neste captulo o objetivo tratar brevemente das questes internas do
debate educacional no Brasil antes de 1964. O motivador para se realizar tal
esforo veio tambm da leitura do livro de Rodrigo Patto. Apesar dos mritos do
trabalho, o autor parece fornecer uma anlise incompleta do objeto que pretende
estudar. De um lado, por seu recorte temtico no qual s desloca o olhar para
as Universidades federais e de outro por seu recorte cronolgico. No livro do
autor sobre o tema das Universidades durante a Ditadura militar ele se preocupa
pouco em entender a histria do ensino superior logo anterior ao golpe. Tendo em
vista que s passou a existir Universidade no Brasil tal como entendida hoje
na terceira dcada do sculo XX propcio afirmar que entender os debates
anteriores ao golpe militar ajuda a entender o que foi feito no ensino superior
depois dele. Afinal, tratam-se apenas de trinta anos de diferena. Reconstituir os
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debates sobre a educao na poca da fundao da Universidade no Brasil
entender quais foram os projetos que os militares boicotaram ao assumir o poder.
No ano de 1932, os chamados pioneiros da educao nova escreveram o
Manifesto ao povo e ao Governo. A inteno era propor uma maneira de pensar a
Universidade que tivesse na pesquisa a sua espinha dorsal, indo ento contra os
que defendiam esta instituio como mero caminho de profissionalizao. Os
princpios gerais da Educao Nova iam no sentido de pensar a educao
enquanto cincia e assim moderniz-la, atualiz-la com seu tempo. Segundo a
anlise feita no manifesto, a Educao brasileira tinha sido demasiadamente
literria e ministrada por profissionais sem formao para tal. Assim, para mud-
la seria preciso fazer reformas radicais.
Contra a tendncia intelectualista defendeu-se uma valorizao do aluno,
que deve ser visto enquanto sujeito ativo no processo educacional. O interesse
valorizado como fator educativo, atravs dele o aluno torna-se sujeito criativo no
processo. Trabalhos em grupo, contato com o ambiente e uso da tecnologia
disponvel so valorizados enquanto ferramentas de aprendizagem. Prope-se em
tal mudana radical do ensino um modelo escolar integrado em que se dividiriam
as funes de acordo com os segmentos e partindo de pressupostos
democrticos pensando que os alunos deveriam passar por todos eles, uma vez
que a Educao deveria atender a demandas de incluso social.
Uma vez que o ensino deveria ser ministrado por profissionais
capacitados, o Manifesto defendeu a criao de Faculdades para a formao de
profissionais outros alm das profisses liberais (Direito, Medicina e Engenharia).
Deste modo, se formariam professores qualificados para inserir-se em um
processo verdadeiramente transformador da educao, da sociedade e da nao. A
partir deste ideal de Universidade concretizam-se os projetos da Universidade de
So Paulo em 1934 e da Universidade do Distrito Federal, fundada por Ansio
Teixeira em 1935.
Atravs da figura do Ministro da Educao Gustavo Capanema (1934 a
1945), fundou-se a Universidade do Brasil em 1937, porm com uma proposta
diferente dos Pioneiros da Educao nova. Segundo Ana Waleska Mendona,
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esta Universidade se instaura como Universidade Modelo, modelo este que deve
ser seguido pelas demais Universidades do territrio nacional (MENDONA,
2000). Mendona demonstra que h uma inteno do governo de assumir as
iniciativas no campo cultural, incluindo ento a universidade. Essa tentativa faz
parte de um motivo maior do governo vigente de criar e legitimar uma identidade
nacional brasileira, manifestando-se no s na cultura de formao educao ,
como na msica, na literatura e em espetculos pblicos.
Segundo Maria do Carmo Xavier (XAVIER, 2004), a publicao de tal
documento insere-se em um contexto mais amplo das disputas em territrio
nacional acerca de como deveria ser concebia a Educao ps-revoluo de 1930.
Deste modo, determinado grupo os liberais lana o Manifesto com o intuito de
se posicionar contrariamente a outro segmento forte: os catlicos. O segmento
religioso defendia uma concepo de Educao que fosse confessional, a partir
dos pressupostos da Igreja catlica e alinhado com sua leitura moral do mundo.
Na linha que sugere a autora, as Faculdades Catlicas que em 1946 se
tornaram Pontifcia Universidade Catlica tem tambm sua origem nas disputas
sobre o sentido da educao superior na ento capital federal. Ansio Teixeira
defendia um modelo pautado por valores liberais e Gustavo Capanema
representava o modelo estatal da ditadura de Vargas. Os catlicos fundaram no
Rio de Janeiro a partir das figuras do Padre jesuta Leonel Franca e de Don
Sebastio Leme as Faculdades Catlicas como instituio de ensino superior
pautada pelos valores tradicionais da Igreja Catlica. Defendia-se tambm uma
concepo humanstica de educao que tinha como inteno formar
culturalmente os setores mais abastados da sociedade.
Tal como prope Ana Waleska (MENDONA, 2000), tendo o governo
assumido as iniciativas na educao, no caso universitrio isso se manifesta com o
controle federal sobre os institutos de ensino superior que so agregados e passam
a ser Universidades, embora continuem funcionando de maneira autnoma.
Partindo do projeto de tornar a Universidade do Brasil a Universidade Modelo,
o ministro da Educao Gustavo Capanema tenta desestabilizar projetos
concorrentes. Embora Ansio Teixeira fosse Secretrio de Educao do Rio de
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Janeiro, mantinha a posio de que a Universidade deveria ser autnoma em
relao ao Estado. Deste modo, em 1939 o decreto lei 1.063 transfere os cursos da
Universidade do Distrito Federal para a Universidade do Brasil. A inteno de
Getlio Vargas e seu ento Ministro da Educao e da Sade Gustavo Capanema
era que o projeto de Universidade do Estado Novo expresso pela Universidade
do Brasil fosse o nico modelo universitrio pblico existente na capital do pas.
Assim, formas diferentes de conceber o espao universitrio, como o criado pelo
prefeito Pedro Ernesto e seu diretor do Departamento de Educao Ansio
Teixeira, no deveriam competir com a via estatal expressa pela Universidade do
Brasil. Ento, com o argumento de que no era competncia da prefeitura gerir
uma universidade, a UDF fechada e o que lhe resta transferido para a
Universidade do Brasil sob a forma da Faculdade Nacional de Filosofia.
O decreto lei 1.190 de 1939 instituiu a Faculdade Nacional de Filosofia e
lhe deu os objetivos de preparar intelectuais para atividades culturais de ordem
desinteressada ou tcnica, preparar docentes para o ensino secundrio e normal e
realizar pesquisa nos objetos do ensino que ministrava. Na prtica, a funo
principal exercida pela faculdade era de formao docente, sendo a pesquisa
colocada em segundo plano. Inicialmente os cursos oferecidos eram os de:
Filosofia, Letras anglo-germnicas, Letras clssicas, Letras neolatinas, Cincias
Sociais, Fsica, Histria e Geografia, Histria Natural, Matemtica e Qumica
Alm disso, os que desejavam se licenciar precisavam cursar uma seo especial
de Didtica. Em 1948 implantado o curso de Jornalismo e em 1962, o de
Psicologia.
Nas dcadas de 1950 e 1960 a federalizao continua agregando escolas
profissionalizantes para dar origem a Universidades. Enquanto isso se alarga o
ingresso s tais Universidades por conta da ampliao do Ensino Pblico bsico
decorrente do projeto governamental de assumir as iniciativas culturais, alm da
equivalncia do curso tcnico ao curso secundrio, expresso pela Lei de Diretrizes
e Bases de 1961. Era preciso que se pensasse uma nova Reforma para a
Universidade, uma que atendesse as demandas do pas em ascenso que o Brasil
procurava ser.
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No livro intitulado Universidade Brasileira: Reforma ou Revoluo?
(FERNANDES, 1975) Florestan Fernandes defende que a transio vivida pela
Universidade entre os anos 1960 e 1970 se devia a uma mudana na prpria
sociedade. A Escola Superior teria limitaes estruturais que impediriam a
expanso do tipo de ensino associado revoluo cientfico tecnolgica. Tal
modelo era obsoleto e no atendia procura crescente pelo ensino superior. A
Escola Superior era representativa do contexto anterior, provinciano e com uma
tradio elitista onde poucos tinham acesso ao ensino graduado.
Demandas e projetos para reformar a Universidade vinham de todos os
lados. Havia propostas de carter liberal que defendiam uma Universidade que
embora pblica fosse autnoma em relao ao Estado, cujo papel deveria ser
formar quadros profissionais para o Brasil, mas principalmente gerar
conhecimento novo. O maior representante desta concepo era Ansio Teixeira
que fundou primeiramente a UDF em 1935 e depois a Universidade de Braslia
(UNB) em 1962. O educador havia feito mestrado na Universidade de Columbia
nos Estados Unidos sob orientao do filsofo John Dewey entre 1928 e 1931 e
pretendia trazer para o Brasil suas ideias. Outros projetos exigiam uma
Universidade popular que estivesse a servio do povo, como o projeto encabeado
pela Unio Nacional dos Estudantes.
O que todos eles tinham em comum que viam a necessidade de uma
reforma estrutural da Universidade que a fizesse passar por um processo
modernizador e a livrasse do modelo vigente, considerado obsoleto. Outra
semelhana entre os variados projetos que todos foram boicotados quando a
ditadura assumiu para si a reforma universitria e a fez em seus moldes. Nesta
chave- tal como prope Florestan Fernandes (1975) possvel pensar a reforma
universitria de 1968 como uma contrarreforma do ensino superior brasileiro. A
Reforma Universitria uma pauta histrica da Universidade no Brasil que existe
desde a poca de sua fundao e defendida por grupos que no estavam
satisfeitos com a forma de conceber e administrar a Universidade no pas. Dar
protagonismo aos militares pela efetivao dessa pauta ignorar os esforos de
todos os grupos que lutaram por isso antes da lei de Reforma Universitria em
1968.
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Na pgina 7 do primeiro caderno da edio do dia 12 de Agosto de 1960
do Jornal Correio da Manh existe um artigo com o ttulo Cresceu
repentinamente a greve universitria (CORREIO DA MANH, 1960). Alm de
noticiar os movimentos de greve estudantil em institutos de ensino superior pelo
Brasil (Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul) consta tambm o subttulo
nica faculdade da PUC grevista (Idem) que reporta o seguinte:
Recebemos da nica Faculdade da Pontifcia Universidade Catlica que aderiu o movimento o seguinte comunicado:
O centro acadmico Eduardo Lustosa, rgo representativo dos
alunos da Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade
Catlica, cumprindo determinao de sua soberana assembleia
geral, reunida hoje, em vista dos acontecimentos verificados
recentemente em diversas universidades do Brasil e como
reclamo por uma urgente Reforma Universitria, decreta greve
geral por trs dias, a saber, 11, 12, 13 de Agosto Carlos Jos
Fontes Diegues, presidente. (CORREIO DA MANH, 1960, p.
7).
O que parece significativo no documento supracitado a mobilizao de
estudantes pedindo a reforma universitria em diversos lugares do pas.
significativa tambm a participao da Faculdade de direito da PUC na greve de
estudantes pela reforma universitria. J na quarta pgina do supracitado jornal no
primeiro caderno da edio do dia 11 de Abril de 1961, noticiado que a escola
politcnica da USP continua em greve pela reforma universitria:
Continua sem soluo a greve dos alunos da Escola Politcnica
de So Paulo, apesar dos esforos dos dirigentes da escola, da
universidade e do governo. Do dia 21 de maro at hoje,
estende-se o movimento, o qual conta o apoio e a solidariedade
da Unio Nacional de Estudantes, Unio Estadual, de quase
todos os Centros Acadmicos das universidades paulistas Em
manifesto ao povo, os estudantes solicitam o afastamento dos
maus professores e pedem uma reforma universitria.
(CORREIO DA MANH, 1961, p. 7).
O trecho acima est localizado em uma seo intitulada Ensino: roteiro
universitrio no centro da pgina, ao lado dos quadrinhos. A matria com ttulo de
Politcnica da universidade de SP continua em greve por ineficincia de
professores (CORREIO DA MANH, 1961), de onde o trecho foi recortado, tem
quatro subsees que descrevem a greve e explicam as causas e motivos dos
estudantes. Novamente descrita uma situao em que um corpo estudantil da
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universidade, no caso a escola Politcnica da USP, declara sozinho uma greve.
Neste caso, as criticas maiores se dirigem cadeira de estradas e trfego que no
atendiam ao curso de engenharia civil e a ineficincia do curso. O texto chega a
terminar com a frase de impacto: Que se formem engenheiros para servir e no
para ter diploma (CORREIO DA MANH, 1961, p. 7).
Tal como ressalta Maria de Lourdes Fvero em A UNE em tempos de
Autoritarismo (FVERO, 2009) os estudantes organizados atravs da Unio
Nacional dos Estudantes (UNE) eram um dos grupos mais ativos na demanda por
Reforma Universitria. No Rio de Janeiro, seu principal espao de articulao e
mobilizao era a Faculdade Nacional de Filosofia. Tal como j foi exposto aqui,
a instituio era resultado do desmembramento da Universidade do Distrito
Federal em 1939. L se reuniam diversos partidos e demais organizaes de
esquerda: PCB (Partido Comunista Brasileiro), AP (Ao Popular), PC do B
(Partido Comunista do Brasil) e POLOP (Poltica Operria). Os variados
membros da comunidade FNFi tinham contato com ideais polticos e
revolucionrios que eram pautas da ordem do dia durante seu tempo. As diversas
clulas polticas existentes na Faculdade incluindo-se a UNE faziam panfletos,
reunies e comcios nos quais se discutiam a crtica ao Imperialismo, Reforma
Agrria e Reforma Universitria. Eram constantes as greves organizadas por
estudantes como forma de presso para realizao de suas reivindicaes.
No livro supracitado de Fvero, a autora reproduz integralmente trs
documentos que demonstram a articulao dos estudantes pela Reforma
Universitria no s em nvel regional como nacional. Na Declarao da Bahia
(1961), Carta do Paran (1962) e na Luta atual pela reforma Universitria
(1963) so explicitados os pressupostos do projeto estudantil para o ensino
superior brasileiro. Os documentos so resultado de reunies e congressos da
Unio Nacional dos Estudantes realizados nos anos de elaborao de cada um. As
principais pautas defendidas eram ampliao de vagas no ensino superior,
fundamentalmente no pblico reforma administrativa das Universidades que
eliminasse a figura do professor catedrtico e democratizasse a relao entre
professor e aluno e modernizao do ensino superior para que ele se adequasse
realidade nacional. Neste caso, tratavam-se de demandas para que o ensino fosse
20
ferramenta de compreenso da realidade brasileira e ao mesmo tempo adequado s
inovaes tecnolgicas e profissionais do pas.
No entendimento dos estudantes, a reforma universitria no deveria ser
gerida apenas por uma cpula de polticos, mas tambm pelos prprios estudantes
e membros da comunidade universitria. Por isso, era inteno dos mesmos em
1963 encaminhar suas propostas para o Congresso e exigir que elas fossem
discutidas. Na Luta atual pela reforma Universitria os estudantes anexaram ao
final do documento uma proposta de reviso da Lei de Diretrizes e Bases na qual
reproduziram a Lei e lhe acrescentaram ao lado a mudana proposta. Nos casos
em que discordaram integralmente do contedo, os estudantes no reproduziram o
artigo, constando apenas a palavra Vetado. Exemplo disso o artigo 74 o qual
os alunos vetaram integralmente. No texto substituto, os alunos propuseram que
era obrigatria a presena dos professores na instituio de ensino. O segundo
pargrafo do artigo proposto apresenta que o professor que no comparecer sem
justificativa a 25 % das aulas pode ter seu afastamento solicitado (FVERO,
2009, p. 279).
Os artigos totalmente vetados so os que versaram acerca de concentrao
de grandes poderes na mo dos professores e diretores. Os artigos que
regularizavam as atividades de ensino e pesquisa na Universidade so os menos
alterados, sendo por vezes apenas acrescidos de mais pargrafos ou artigos.
Exemplo o Captulo I do Ttulo IX, no original o artigo 66 do mesmo definia o
dever do ensino superior como a pesquisa, o desenvolvimento das cincias, letras
e artes, e a formao de pessoal de nvel universitrio (FVERO, 2009, p. 272).
O texto revisado mantm integralmente o original e modifica apenas profissionais
de nvel universitrio para profissionais especializados nos diferentes misteres
tcnicos cientficos e culturais (FVERO, 2009, p. 273). Provavelmente o fim
era ampliar a compreenso sobre o tipo de pessoa que poderia sair formada pela
Universidade, dando carter mais amplo.
A UNE partia, de fato, de concepes polticas claras, contudo, isso em
momento algum tira a densidade ou a seriedade dos documentos que prope.
Alm disso, tal como descrito nas primeiras sees de seus documentos, as
21
propostas surgiam de longa discusso por parte dos estudantes e o texto era
diversas vezes revisto antes de ser publicado. Os estudantes organizados atravs
da UNE tinham um projeto original de Reforma Universitria que em nvel de
profundidade se equiparava aos projetos vindos do Estado ou de outros grupos da
sociedade civil.
A Reforma Universitria tal como se tentou demonstrar aqui era pauta
ampla dos envolvidos e interessados na poltica educacional desde a fundao da
Universidade no Brasil. O papel dos militares nesse processo foi o de no permitir
que outros projetos se concretizassem e fazer a reestruturao da Universidade
brasileira da maneira que lhes era mais conveniente e com pressupostos que mais
se adequavam aos seus. Aristteles define na Potica que a diferena entre poesia
e histria que a primeira fala sobre o que poderia ter acontecido e a segunda fala
sobre o que aconteceu (ARISTTELES, 1966). Mais de dois mil anos depois
dessa afirmativa talvez caiba fazer uma histria que no abra mo de sua
incumbncia inicial de falar do que aconteceu mas que com isso tenha um ar
de poesia e fale sobre o que poderia ter acontecido.
No clebre discurso da Central do Brasil em 13 de maro de 1964 o ento
presidente Joo Goulart ao tratar das Reformas que realizaria a seguir em seu
governo diz o seguinte:
Na mensagem que enviei considerao do Congresso
Nacional, esto igualmente consignadas duas outras
reformas que o povo brasileiro reclama, porque exigncia
do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me
reforma eleitoral, reforma ampla que permita a todos os
brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus
destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo
engrandecimento do pas a influir nos destinos gloriosos do
Brasil. Nesta reforma, pugnamos pelo princpio
democrtico, princpio democrtico fundamental, de que
todo alistvel deve ser tambm elegvel.
Tambm est consignada na mensagem ao Congresso a
reforma universitria, reclamada pelos estudantes
brasileiros. Pelos universitrios, classe que sempre tem
estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos
populares nacionalistas. Ao lado dessas medidas e desses
decretos, o governo continua examinando outras
providncias de fundamental importncia para a defesa do
22
povo, especialmente das classes populares. (GOULART,
1964)
Ao listar algumas reformas complementares que iria realizar, Joo Goulart
cita a Reforma Universitria, que estava sendo reclamada pelos estudantes. Para
os fins deste trabalho no se ir investigar em profundidade o apelo de Goulart aos
estudantes ou s classes populares. Porm, o que cabe ressaltar que a Reforma
Universitria j estava na pauta das decises polticas e muito provvel que a
modernizao da Universidade brasileira iria acontecer caso o regime democrtico
no tivesse sido derrubado, mas foi.
Retornando ao livro As Universidades e o Regime (MOTTA, 2014) de
Rodrigo Patto o autor por vezes parece exigir uma mea culpa por parte dos que
so radicalmente contra a Ditadura militar (ele mesmo estaria incluso). Na
hiptese que ele levanta, os militares so responsveis por uma sria de violaes
aos direitos humanos, derrubaram a democracia e governaram de forma
autoritria. No caso das Universidades, eles perseguiram e expurgaram alunos e
professores, instauraram aparatos de espionagem (com as Assessorias de
Segurana e Informao) e tentaram eliminar toda a autonomia na gesto das
instituies. Para citar apenas um exemplo que o prprio autor d, aps o golpe
de 1964 dezenove alunos foram expulsos da Faculdade Nacional de Filosofia por
serem acusados de estar envolvidos diretamente em atividades polticas. Nove
deles foram expulsos no dia 23 de Abril. Os outros dez foram nomes que
incomodavam diretamente o ento diretor da Faculdade e catedrtico de Histria
Antiga e Medieval Eremildo Vianna. Dentre estes ltimos estava o aluno de
histria Elio Gaspari, que ao posteriormente seguir carreira de jornalista inventa
um personagem chamado Eremildo, o idiota.
Ao tratar do conceito de Modernizao Conservadora, Rodrigo Patto d
maior nfase ao fato do projeto militar ser modernizante do que ao de ser
conservador. No outro lado da hiptese de Rodrigo Patto, seria preciso admitir
que os militares foram os responsveis por modernizar o ensino, reestruturar
administrativamente a Universidade, criar e fomentar a ps-graduao, reformular
os currculos e criar novos cursos. Em uma anlise que comea em 1964 e
estritamente factual, Rodrigo Patto no est errado. Tudo que aqui foi listado
23
comeou a ser implementado como poltica pblica e nacional a partir da Lei de
Reforma Universitria de 1968. Mas se o recorte cronolgico comear trinta anos
antes possvel perceber que a discusso no comeou com os militares e nem
precisava ter terminado com eles.
Tal como se tentou demonstrar aqui, havia projetos para a Universidade no
Brasil vindos de todos os lados, tratava-se de uma pauta j posta na discusso
poltica. Destes projetos, alguns j estavam bastante avanados, exemplos so o de
Ansio Teixeira que se concretizou na Universidade de Braslia, o da UNE e o
projeto conservador dos Catlicos. Estes ltimos talvez tenham sido os nicos que
se beneficiaram com o golpe militar. Os prximos captulos deste trabalho
tentaro explorar um pouco isso.
24
3
A Guerra nem to fria assim: relaes entre Estados Unidos e Brasil
nos anos 1960
Vivemos no sculo passado (ano de 1900) uma das maiores
conquistas no campo dos direitos humanos. Foi uma conquista
que nasceu pobre, muito em funo do cristianismo, de
pensadores cristos, e criou-se uma mentalidade do valor da
pessoa humana e acho que foi o grande saldo do sculo, onde
vivemos duas grandes guerras mundiais. Tivemos experincia
de totalitarismo, nazismo e comunismo que eram um total
esquecimento do valor da pessoa humana. Com milhes de
pessoas sacrificadas foi despertado na conscincia da sociedade
o valor da pessoa humana. (MOURA, 2004)
O trecho de entrevista concedida pelo Padre Jesuta Larcio Dias de
Moura em 2004. O clrigo, ao ser perguntado se na poca em que a entrevista foi
realizada se vivia uma maior conscientizao dos Direitos Humanos d a resposta
reproduzida acima. V-se que o mesmo elabora sua memria de uma maneira que
enxerga no Cristianismo forte protagonismo no campo das conquistas acerca da
dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo, Padre Larcio refere-se a
inimigos deste ideal durante o Sculo XX, os quais ele chama de Totalitarismos.
So eles o comunismo e o nazismo. A aproximao entre experincias histricas
to distintas como a sovitica e a alem na verdade, no original do Jesuta.
De fato, a historiografia e a cincia poltica norte-americana da guerra fria fizeram
bastante uso do conceito de Totalitarismo como maneira de aproximar nazismo e
comunismo. Por exemplo, os trabalhos Histria Concisa da Revoluo Russa do
historiador Richard Pipes (PIPES, 2008) e Origens do Totalitarismo (ARENDT,
2007) da filsofa Hannah Arendt. No se pretende aqui dissertar sobre a validade
ou no de tal perspectiva. Contudo, interessa entender porque Padre Larcio Dias
de Moura apropria-se disso.
25
Dizer que os Estados Unidos da Amrica tiveram grande impacto poltico,
econmico e cultural na Amrica Latina aqui se tratando do Brasil fica mais
claro se for empreendido o esforo de compreender o planejamento sistemtico de
penetrao ideolgica do pas. Tony Judt (JUDT, 2008) demonstra que aps a
segunda guerra mundial a poltica global norte-americana se modifica. O clima de
tenso ideolgica com a Unio Sovitica quebra o isolacionismo americano e faz
o pas entrar na poltica internacional para que, buscando zonas de influncia, os
EUA se mantenham hegemnicos no Ocidente. Neste clima de tenso que se
encaixa o caso do Brasil.
A interveno dos Estados Unidos nos pases vizinhos pode ser dividida
em dois perodos. Em um primeiro momento, trata-se do que Antnio Pedro Tota
chamou de Imperialismo sedutor (TOTA, 2000). Esta primeira fase caracteriza-
se por uma tentativa de aproximar a Amrica Latina dos ideais norte-americanos
por vias que no fossem explicitamente violentas. Segundo assinala Gerson
Moura em Tio Sam Chega ao Brasil a influncia cultural macia dos norte-
americanos comea nos anos 1940 (MOURA 1984). Partindo de um entendimento
de cultura em sentido amplo como padres de comportamento, expresses
artsticas e dos modelos de conhecimento tcnico e saber cientifico Gerson
Moura considera as prticas dos Estados Unidos no Brasil como um Imperialismo
cultural.
A chamada poltica de boa vizinhana tinha como discurso retrico o
convvio harmnico entre os pases da Amrica, com troca de mercadorias e
valores culturais. Porm, tal relao teria sido assimtrica, pois mesmo havendo
esteretipos de ambos os lados ao imaginar o outro em questo, do lado norte-
americano a difuso de valores culturais se alargou e se imps. Quando questes
da cultura brasileira eram levadas para a Amrica do Norte o pas era sempre
representado como algo extico ou paradisaco, ao mesmo tempo em que era visto
como atrasado, menos civilizado. Exemplos disso a figura de Carmem Miranda
nos filmes americanos. A atriz est sempre com indumentria exagerada, sem
saber falar ingls direito e demonstrando personalidade excessivamente calorosa.
O mesmo esteretipo aparece em Z Carioca, personagem animado criado pelos
estdios Walt Disney para o longa-metragem Al Amigos de 1942. O papagaio
26
serve de representao do malandro carioca: excessivamente festeiro e
desapegado ao trabalho, alm de desonesto.
A partir de 1945 com o fim da Segunda guerra mundial e o acirramento
da Guerra fria os Estados Unidos vai paulatinamente mudando sua poltica
exterior. Esse perodo caracteriza o segundo momento de interveno americana.
A ento potncia envolve-se com planos de reestruturao dos pases europeus
como forma de redefinir sua esfera de influncia no globo. Simultaneamente, o
pas alterou sua postura em relao a Amrica Latina e passou a interferir
diretamente na poltica de tais pases. Segundo Carlos Fico (FICO, 2008), essa
postura para com a Amrica Latina ganha ainda mais fora com a Revoluo
cubana (1959-1961). A retirada do poder do ditador Fulgncio Batista apoiado
pelos EUA j era em si mesma ameaadora. O alinhamento desta ilha to
prxima geograficamente da Flrida com o bloco socialista foi um espanto ainda
maior. Alimentados pelo clima de guerra fria, os Estados Unidos passaram ento a
entender que se fazia necessria uma interferncia direta para evitar o avano da
suposta ameaa comunista na almejada esfera de influncia.
A doutrina Mann definiu em 1964 que os Estados Unidos dariam apoio a
qualquer governo anticomunista nas Amricas, independente do mesmo ter
formato democrtico ou no. Pelo que parece, o governo do ento presidente John
Kennedy era mais fiel manuteno de uma ordem econmica pautada pelos
valores capitalistas de mercado e de poltica do que aos princpios do mito
fundador do seu pas, ou seja, a democracia estabelecida por moldes liberais.
Tratando-se do caso brasileiro, em um primeiro momento so enviadas misses
encabeadas por tcnicos norte-americanos que atravs de reformas tentariam
conter levantes populares no pas. Exemplo disso a Superintendncia para o
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Segundo Carlos Fico (FICO, 2008 p.
40) as propostas dos EUA para o Nordeste eram no geral paliativas e no
resolviam de fato os problemas estruturais da regio. Umas delas, era a construo
de chafarizes com placa da Aliana do Progresso em regies de seca. O autor diz
ainda que o economista Celso Furtado ficou decepcionado com as medidas
tomadas, pois elas pareciam mais comprometidas em fazer propagandas do grande
27
irmo do que solucionar os problemas que impediam o desenvolvimento do
Brasil.
O prprio nome do projeto Aliana para o progresso j demonstra
como era a viso norte-americana. Eles se colocavam como detentores dos valores
da civilizao e precisavam leva-la para os povos entendidos como menos
esclarecidos e desenvolvidos. Em pareceres de tcnicos da Aliana para o
Progresso reproduzidos por Carlos Fico, a sensao de superioridade dos
americanos explicita. Em um deles aparece o seguinte:
Fatalismo e tolerncia com o sistema prevalecem tanto nas favelas do
Rio quanto no Nordeste empobrecido (...) Embora a atitude de letargia
e fatalismo talvez sirva para isolar o Brasil de uma revoluo de massa
radical vinda de baixo, ela um dos maiores obstculos no caminho
do desenvolvimento poltico e econmico rpido e racional. (FICO,
2008, p. 45)
No trecho, o relator em questo ao mesmo tempo em que apresenta
determinado olhar sobre as classes populares no Brasil tirando das mesmas a
capacidade de agncia nos processos sociais tranquiliza os seus chefes de que
seria difcil uma revoluo popular no pas por conta de sua leitura da realidade
social. Alm disso, o tcnico em questo v o modelo americano como mais
evoludo na medida em que parte dele para considerar que o inatismo dos
brasileiros pode impedir o desenvolvimento da nao.
Seguindo na linha proposta por Walter Benjamin em suas teses sobre o
conceito de histria (BENJAMIN, 1987) pode se indicar que seja nos ideais
europeus do sculo XIX ou nos americanos do sculo XX, o outro lado da
civilizao a barbrie. Tais conceitos no so opostos, mas duas faces do
mesmo. Nas duas realidades histricas supracitadas, quando o primeiro emerge no
discurso, o segundo existe na prtica. No caso norte-americano no houve como
consequncia duas guerras mundiais, mas um apoio massivo violncia travestido
da mscara de parecer tcnico.
Exemplo que cabe citar o estudado por Martha Huggins (HUGGINS,
1998) em seu trabalho intitulado Policia e poltica: Relaes Estados Unidos
Amrica Latina. No livro a autora demonstra como desde o incio do Estado de
28
exceo que ocorreu no Brasil, houve apoio dos EUA. Huggins informa que
desde 1957 mesmo ano em que o tecnocrata Rudolph Atcon estava dirigindo a
reforma universitria na Universidade de Concepcin no Chile havia
treinamento policial no Brasil com consultores norte-americanos. O auxlio na
rea de segurana pblica persiste durante os anos. Assim como a reforma
universitria tinha como modelo as universidade norte- americanas, o FBI servia
de modelo para criar-se uma nova polcia de mbito federal. Os brasileiros
aprenderam com os americanos tticas de combate de guerrilha, alm da
doutrinao ideolgica que pretendia alinh-los com polticas norte-americanas de
segurana nacional.
Essa barbrie gerada por uma nao que se considerava civilizada se
expressa tambm no telegrama que o embaixador Lincoln Gordon enviou ao
Departamento de Estados dos EUA (FICO, 2008). Nele Gordon enfatiza que Joo
Goulart pretendia um golpe peronista no Brasil. Na anlise do embaixador
existiria uma esquerda radical mobilizada o suficiente para promover uma
revoluo socialista no pas. A anlise de Gordon s faz sentido se for
considerado o fato de que ele estava inserido em um contexto de guerra fria na
qual qualquer pauta reformista era confundida com ameaa comunista. A outra
hiptese que o embaixador era extremamente desonesto. Caio Navarro de
Toledo (TOLEDO, 2004) em seu artigo O golpe contra as reformas e a
democracia chama ateno para o fato de que o Partido Comunista do Brasil
(PCB) no tinha teor revolucionrio explcito no perodo, alm de no haver
condies objetivas que permitissem uma mobilizao de esquerda a nvel de
gerar uma revoluo socialista. Segundo Caio Navarro de Toledo, o presidente
deposto Joo Goulart estava comprometido no com ideais prximos dos
soviticos, mas com reformas de base que se colocavam como necessrias para
aumentar a estabilidade do capitalismo nacional. Goulart se considerava um
herdeiro de Getlio Vargas e queria manter as polticas do mesmo.
Carlos Fico reproduz trecho do relatrio no qual Gordon solicita o apoio
blico:
Para este propsito, e de acordo com nossas negociaes de 21 de
Maro em Washington, uma possibilidade parece ser a partida
29
antecipada de uma fora-tarefa naval para manobras no Atlntico Sul,
mantendo-a no espao de uns poucos dias de distncia de navegao
de Santos. Provises logsticas deveriam satisfazer as exigncias
especficas no plano de contingncia para uma fora-tarefa conjunta
combinada de Marinha dos Estados Unidos para o Brasil, do chefe do
Estado-Maior para o Brasil Sul, revisado aqui em 9 de Maro.
Aeronaves de transporte seriam importantes para efeito psicolgico.
(FICO, 2008, p. 96)
Por fim, o departamento de Estado deu apoio logstico e militar para o
Brasil. Foram enviados navios com porta-avies, munio e gasolina que
chegaram pelo porto de Santos. Essa operao ficou conhecida como Operao
Brother Sam. No houve guerra civil que fizesse necessrio o uso do suporte
fornecido. Porm, na diplomacia o apoio se manifestou, fato que confirma isso o
reconhecimento que o Estados Unidos deu ao golpe militar 24 horas depois do
ocorrido.
No que concerne a conjuntura interna do golpe, cabe explicitar em que
medida houve participao no s militar, mas tambm civil. Ren Dreifuss
considera em seu trabalho 1964: A conquista do Estado (DREIFUSS, 1981) que a
participao de outros grupos para alm do exrcito foi crucial para romper a
ordem democrtica. O autor classifica tais grupos de modo que d a entender que
o golpe de 1 de Abril no foi apoiado pela sociedade como um todo, mas por
determinados grupos que tinham interesse na derrubada de Joo Goulart.
Segmento que se destaca o chamado por ele de Complexo IPES/IBAD. Tal grupo
era composto pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o Instituto Brasileiro
de Ao Democrtica que por sua vez tinham como membros militares e civis
comprometidos com projetos conservadores de capitalismo. No pr-golpe o
complexo foi fundamental em disseminar propagandas que intensificavam o clima
de guerra fria. Dentre a publicidade produzida pelo complexo, encontravam-se
panfletos, cursos e documentrios para serem exibidos em salas de cinema. O
contedo explicitamente golpista enfatizava os perigos de uma suposta
ameaa comunista no Brasil e o risco do pas se tornar uma China na Amrica
latina.
Durante a instaurao da Ditadura, o IPES teve papel ativo. O presidente-
militar Castello Branco foi indicado pelo IPES, a SNI foi ocupada por Golbery
30
Colto e Silva, membro do IPES. O mesmo aconteceu com outros ministrios e
comisses, tal como o Ministrio do Planejamento que foi dirigido por Roberto
Campos. O economista foi responsvel pelo esvaziamento de atribuies do
Banco do Brasil e da abertura para que bancos privados fizessem parte da
estrutura financeira do Estado. Ainda segundo Dreifuss, os membros do IPES
ocupavam cargos para tomar medidas que impedissem as reformas idealizadas por
Joo Goulart ou por seus antecessores nacional-desenvolvimentistas. No caso do
Ministrio do Trabalho foi criado o Fundo de Garantia do Tempo de Servio
(FGTS) que acabou com a estabilidade no emprego, tirando ento um direito da
classe trabalhadora. No caso do Ministrio da Educao e Cultura Dreifuss prope
que a interferncia do IPES foi responsvel por dar o formato da Reforma
Universitria de 1968. Deste modo, a Coordenao de Aperfeioamento do
Pessoal de Ensino Superior (CAPES) se tornou um rgo produtivista e inspirado
em modelo de cincias tecnolgicas, a educao ganha carter individualizante
com o sistema de crditos e universidades privadas ganham incentivos pblicos
para se modernizarem, expandir suas vagas e estruturas. Umas dessas
Universidades foi a PUC-Rio, administrada por catlicos conservadores e
anticomunistas. No toa a vice-reitoria de desenvolvimento da Universidade era
ocupada na poca da Reforma administrativa da instituio pelo economista,
militar e membro do IPES Jos Garrido Torres.
Na obra Em guarda contra o Perigo Vermelho (MOTTA, 2002) Rodrigo
Patto define o catolicismo como uma das matrizes principais do anticomunismo
no Brasil. O autor defende que desde a segunda metade do Sculo XIX os
Catlicos vinham se preocupando com a ascenso de tal doutrina poltica, porm
no sculo XX que a Igreja iria se tornar a instituio no estatal que mais se
dedicou ao embate contra o comunismo. No Brasil no foi diferente, aps o
levante comunista de 1935 houve grande empenho na construo de um discurso
que se opusesse a tal ideologia. J no incio dos anos 1960, praticamente
consenso entre os historiadores que trabalham com o tema dentre eles, o prprio
Rodrigo Patto que o anticomunismo foi fundamental para que ocorresse o golpe
de 1964. Entre os apoiadores do golpe militar, muitos dos que integravam a
sociedade civil partiam de valores morais cristos disseminados pelos
31
conservadores catlicos, tais como famlia, tradio, bons costumes. Alm disso, a
famosas marchas organizadas em So Paulo em resposta ao discurso da Central do
Brasil de Joo Goulart associado a um suposto levante comunista chamava-se
Marcha com Deus pela liberdade.
Rodrigo Patto (MOTTA, 2002) sinaliza que ao se deparar com o
comunismo, a Igreja Catlica o v como mais um inimigo que emerge contra o
Cristianismo. A partir de trecho reproduzido da obra A Igreja e o marxismo do
Padre J. Cabral, Rodrigo Patto analisa como criada uma linha de continuidade
histrica na qual em cada poca houve um inimigo que se ops ao bem. As
sinagogas, o Imprio Romano, os brbaros, a reforma protestante e a revoluo
francesa foram todos movimentos que se opuseram a Cristo. O comunismo seria
mais um estgio da dicotomia proposta, cujo bem era representado pela Igreja
Catlica e o mal eram as foras malignas que historicamente se opuseram
Instituio. O Padre J. Cabral compreendia que todo o Mal que se levantou contra
a Igreja Catlica foi derrotado e assim, no seu entendimento, tambm seria o
comunismo.
Uma vez sendo espcie de encarnao do mal, no de se estranhar a
associao feita por imagens de propaganda anticomunista no Brasil entre
comunismo e o Diabo. Na capa do Catecismo anticomunista de autoria do
Arcebispo de Diamantina representado um demnio vermelho embaixo de
uma figura de Maria. Outra forma de chamar ateno contra o modelo poltico que
o catolicismo elegeu como inimigo era represent-lo como totalmente oposto ao
cristianismo e a f. Assim, em outra imagem, um crucifixo quebrado ao meio e a
legenda apresenta: O comunismo assim! O comunismo despreza a tua
religio.
32
Figuras 1 e 2. Religio e Guerra Fria (MOTTA, 2002, p. 98-99)
Carla Simone Rodeghero analisa em Captulos de Guerra Fria
(RODEGHERO, 2007) documentos presentes no National Archives dos Estados
Unidos. A autora percebe a necessidade de no se cair na tentao de pensar o
anticomunismo da Guerra Fria em uma chave apenas assimtrica. importante
ento entender que os prprios agentes dos pases monitorados e que tiveram
golpes militares apoiados pelos Estados Unidos so importantes nos eventos que
ocorrem dentro de seus respectivos territrios. Assim, o anticomunismo catlico
precisa ser entendido no s como expresso de uma conjuntura internacional,
mas em uma dialtica entre o contexto interno e externo ao Brasil.
Seguindo na perspectiva acima adotada, passa a ser importante analisar
expresses do anticomunismo catlico no Brasil de acordo com a conjuntura do
pas. Para os limites desse trabalho, ser tratado aqui mais especificamente da
insero dos anticomunistas catlicos nos debates educacionais do Rio de Janeiro.
Cabe agora retomar a figura do Padre Larcio Dias de Moura, jesuta formado em
filosofia, o clrigo foi reitor da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
em dois momentos: primeiramente de 1962 at 1970 e depois de 1982 a 1995. No
ano de 1965 foi inaugurada a nova ala de um prdio da instituio, que recebeu o
nome do presidente dos Estados Unidos: John Kennedy. Em 1963, o presidente
norte-americano foi agraciado com o ttulo de Doutor Honoris Causa pela
33
Universidade, dois anos depois seu irmo o Senador Robert Kennedy veio
Universidade para receber a homenagem em seu nome e inaugurar o busto de
John na Ala Kennedy do Edifcio da Amizade. Uma vez que John Kennedy foi
assassinado em 1963, o evento ganhou um carter ainda mais emotivo. Na gesto
do Padre Larcio empreendeu-se tambm a Reforma Universitria da instituio
sob assessoria do Norte-americano Rudolph Atcon, que pretendia conceber a
universidade enquanto empresa privada. Na Aula Magna de 1968 o reitor
apresenta a reforma como fator de modernidade que iria vincular os preceitos
morais cristos com o progresso cientfico e qualificao profissional que o Brasil
estaria precisando (MOURA 1968).
Na quarta pgina do jornal Correio da Manh de 11 de agosto de 1961
(CORREIO DA MANH, 1961) h uma fotografia do presidente dos Estados
Unidos da Amrica, John Kennedy abrindo a seo intitulada Ensino: roteiro
universitrio. A reportagem faz meno ao aparecimento do mesmo no
Congresso Internacional de Professores, que teria reunido cerca de 300 delegados
de 67 pases. Kennedy discursa sobre a importncia da educao para preparar
intelectualmente as geraes futuras capacitando-as a enfrentar e solucionar os
problemas do mundo moderno (CORREIO DA MANH, 1961).
possvel pensar que um dos problemas do mundo moderno para
Kennedy era a disputa por zonas de influncia com a Unio Sovitica. Tal como
j foi apresentado aqui, o clima de tenso da guerra fria em 1961 tinha sido
recm-aquecido com a revoluo cubana. Talvez seja por querer buscar zonas de
influncia para o seu pas que o presidente norte-americano tenha comparecido ao
Congresso Internacional de Professores. A partir da documentao possvel
perceber um interesse dos Estados Unidos na rea da educao. interessante
tambm o destaque que o artigo carrega na pgina do jornal, estando acima e no
centro. Isso pode indicar uma recepo positiva por parte dos redatores do jornal a
uma aproximao com a potncia do Norte.
O debate sobre as universidades no Brasil no comeou com as Reformas
Universitrias do perodo entre 1960 e 1970. De fato, sequer a influncia norte-
americana nas universidades comea neste perodo. Desde o primeiro momento da
34
interveno americana na dcada de 1940 existe interferncia dos EUA na
educao brasileira. Segundo Ana Waleska Mendona (MENDONA, 2000) em
1947 a reforma administrativa do Instituto Tcnico da Aeronutica (ITA) teve
assessoria do professor Richard Smith do Massachusetts Institute of Technology
(MIT) que escreveu o documento que Mendona chama de Relatrio Smith.
Segundo a descrio da autora, esta reforma foi feita com departamentos e centros
e pensando a Universidade como empresa privada. A diferena que a partir do
movimento de reformas universitrias dos anos 1960 os valores norte-americanos
foram difundidos e adotados como regra a ser seguida pelas universidades
brasileiras.
No caso da PUC-Rio, a reforma antecedeu a das Universidades Federais e
foi feita por moldes norte-americanos por conta prpria. Os catlicos se
aproximaram dos EUA pelo anticomunismo em comum, mas houve tambm uma
tentativa de barganha. De fato, a instituio ganhou contrapartida financeira no
s do BNDE e do governo federal para se modernizar, mas tambm dos Estados
Unidos e de empresas do pas estrangeiro. Assim, tendo um mesmo inimigo, cabia
uma aproximao no para copiar os Estados Unidos, mas para obter vantagens e
estabelecer parcerias. Segundo Rodrigo Patto (MOTTA, 2002), no Rio de Janeiro
o Cardeal Dom Sebastio Leme foi articulador da conteno anticomunista no
Brasil. Usando do prestgio social de que dispunha enquanto arcebispo do Rio de
Janeiro, se posicionava no debate pblico discursando contra o comunismo,
representado pelo mesmo enquanto opositor aos ideais cristos. Tal figura foi
responsvel tambm pela articulao da Revista A Ordem em conjunto com o
intelectual conservador e catlico Jackson de Figueiredo. Em 1940, o Cardeal
Leme foi um dos fundadores das Faculdades Catlicas, o mesmo era figura to
reconhecidamente importante que quando o campus foi transferido para a Gvea
em 1957 o primeiro edifcio foi batizado de Cardeal Leme.
Os catlicos seguiram em uma linha que a partir de determinada viso
sobre o mundo interferiu diretamente no mesmo. Enquanto conservadores, tal
grupo foi fundamental para a instaurao e manuteno de uma ordem
conservadora. Tal ordem era pautada por determinada leitura do cristianismo,
35
influenciada pelo nacionalismo e inserida no contexto de guerra fria (no qual o
medo do avano comunismo beirava o patolgico).
Na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro houve questes
particulares. Havia como na maioria das Universidades neste perodo
estudantes e professores que eram radicalmente contrrios Ditadura militar.
Contudo, tratando de uma relao entre Estado e Instituio, o que se percebe
adeso. Exemplo disso o evento aqui j apresentado que ocorreu em 1965. A
vinda do Robert Kennedy e a inaugurao de um busto em homenagem a seu
irmo podem ser mobilizados como demonstrao de uma relao de amizade
entre a PUC-Rio e os valores e concepes polticas dos Estados Unidos. Vale
ressaltar que tanto a outra ala do mesmo edifcio quanto o que j existia na
Universidade tm nomes que remetem a cargos eclesisticos da religio catlica.
As construes chamam-se respectivamente Cardeal Leme e Cardeal Frings. No
caso de Kennedy este fator no se exclui totalmente. O presidente tambm era um
catlico, porm leigo, alm de dois anos antes da inaugurao da Ala ter sido
assassinado, o que geraria uma bela homenagem crist.
Figura 3. Robert Kennedy na PUC-Rio em 1965 (Acervo do Ncleo de memria da PUC-
Rio)
36
Ao ser feito o salutar exerccio de pensar a Ala Kennedy e sua inaugurao
a partir de um contexto poltico e social maior torna-se difcil no colocar tal
evento na tenso ideolgica do perodo ps-segunda grande guerra que se
expressa na Guerra Fria. No ano de 1963, John fora agraciado ainda como doutor
Honoris Causa pela PUC-Rio, seu irmo veio Universidade dois anos depois
para receb-lo. Examinando uma fotografia do evento v-se sentado e compondo
mesa Robert Kennedy ao lado esquerdo do Reitor da PUC-Rio, Padre Larcio
Dias de Moura. Ao lado direito de Robert est um representante da Igreja Catlica
com trajes de Bispo. Atrs do senador h um homem com culos escuros,
possivelmente algum encarregado de sua segurana, e no entorno um volume
grande de pessoas, muitas se amontoando na escada em espiral para ver a figura
poltica norte-americana.
Na imagem observa-se ainda uma juno entre poltica e religio. O reitor
da universidade talvez seja uma espcie de mediador, ao mesmo tempo em que
membro do clero representante maior dentro da PUC-Rio. Independente da
postura acerca do transcendente que o irmo de John Kennedy apropriasse para si,
ele ali acima de tudo senador dos Estados Unidos da Amrica, celebre
anticomunista e irmo do ex-presidente com o mandato acidentalmente
interrompido. J a figura aqui caracterizada como arqutipo do religioso o bispo
que aparece esquerda da fotografia, cortado pelo fotgrafo que provavelmente
preferiu retratar o convidado estrangeiro. Na mesa central h microfones nos quais
o Reitor se pronuncia, um deles da emissora de rdio dos Estados Unidos com
nome de Voice of America. possvel analisar atravs da imagem uma
representao da vinda de Robert Kennedy PUC-Rio que se mostra com carter
de evento extraordinrio, com direito plateia. Para alm de um primeiro plano,
debruar-se sobre a imagem permite pensar o contexto poltico e social que d
sentido a tal evento e na qual se insere a antecipao da universidade no projeto de
Reforma universitria e a consultoria do norte-americano Rudolph Atcon para
fazer a mesma. A proposta de Atcon para a reestruturao da Universidade e sua
insero no contexto nacional e internacional de reformas educacionais sero
exploradas no prximo captulo deste trabalho.
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4
A misso Atcon para a Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
A reforma administrativa da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro foi feita atravs de proposta elaborada por Rudolph Philip Atcon. Ele se
autodenominava um especialista em planejamento da Universidade. Atcon era
grego de nascimento, teve educao alem e naturalizou-se norte-americano.
Gabriela Inhan de Souza (SOUZA, 2015) informa em sua dissertao de Mestrado
amplamente baseado em fontes de diversos formatos que o mesmo era
formado em engenharia civil pela Union College (Nova Iorque) e em Artes
liberais pela Amherst College (Massachusetts), fez tambm ps-graduao em
filosofia pela Universidade de Harvard. Atcon nasceu em 1921 e faleceu em 1995.
O assessor norte-americano esteve no Brasil em dois momentos. Em 1952,
ele foi convidado por Ansio Teixeira para auxiliar na reestruturao da CAPES
(Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Ensino Superior). Contudo, sua
volta ao Brasil se deu em contexto diverso. Na dcada de 1960, aps o governo
brasileiro ter firmado os convnios entre o Ministrio da Educao e a United
States Agency for International Development, Atcon reaparece como um tcnico
americano indicado para reestruturar a Universidade brasileira, adequando-a aos
moldes considerados modernos de administrao da vida universitria. Com este
objetivo ele elaborou documentos que sistematizam a sua compreenso de como
se daria a reforma das universidades: primeiro, o Rumo a reestruturao da
Universidade brasileira, originalmente publicado pelo MEC em 1965 e depois em
1968 com o ttulo de Manual para o planejamento integral do Campus
universitrio, sem grandes alteraes no essencial de seu contedo.
O perodo entre as duas passagens de Rudolph Atcon no Brasil no foi
caracterizados por uma interrupo das atividades do tcnico. Neste meio tempo
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Atcon foi enviado pelo governo dos Estados Unidos para assessorar a Reforma
Universitria de diversos pases da Amrica Latina dentre eles: Chile, Nicargua,
Honduras, Colmbia, Venezuela, Mxico e So Domingos. Este perodo de
intensa reestruturao das universidades latino-americanas chamado por Maria
de Lourdes de Albuquerque Fvero de Movimento de Reformas Universitrias
(FVERO, 1990). De fato, a reforma que o Brasil iria passar e que se
configuraria em Lei federal em 1968 no foi caso isolado, mas se insere em um
contexto que engloba diversos pases da Amrica Latina. Segundo Margarita
Victoria Rodrguez:
(...) chegam aos pases de Amrica Latina propostas de reformas, que influenciam a elaborao das polticas
universitrias da regio: entre elas o Informe de Rudolph P.
Atcon, que propunha as transformaes institucionais
necessrias para que a universidade gera-se a mudana social.
(RODRIGUEZ, 2000, p. 2)
Em relatrio que Atcon escreveu para a UNESCO, consta que em 1957
esteve no Chile elaborando a Reforma na Universidad de Concepcin. No
segundo pargrafo do mesmo ele apresenta: The following is an account of my
activities throughout the trip to Chile which I just concluded as the first part of my
mission to the University of Concepcion1 (ATCON, 1957, p. 1). A partir deste
documento possvel compreender como o tecnocrata se considerava. Para ele, as
reformas da qual participava na Amrica Latina faziam parte de um projeto seu
com um todo coerente, o qual ele chamava de misso. Segundo destaca tanto em
Rumo a reestruturao da Universidade brasileira quanto em seu relatrio
UNESCO, o modelo norte-americano de Universidade era o que ele considerava
mais desenvolvido do ponto de vista tcnico e funcional. Assim, o melhor a ser
fazer era transplantar esse modelo para outros pases para que eles um dia
conseguissem ter universidades to eficientes quanto as que existiam na Amrica
do Norte.
1 Traduo livre: O seguinte uma prestao de contas das minhas atividades durante a viagem
para o Chile a qual eu acabei de concluir como a primeira parte de minha misso na Universidade
de Concepcion.
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Segundo Atcon o antigo modelo de Universidade era ineficiente e
ultrapassado. A sua misso entendida por ele como uma misso modernizadora.
A modernizao, segundo tais critrios, se estabelecia a partir de fatores
tecnolgicos e econmicos. Rudolph Atcon considerava o sistema anterior de
Universidade ineficaz, pois no atendia as demandas do mercado, era um modelo
visto como caro em si e sem propsito. Uma das formas de modificar essa
situao a Reforma Administrativa da Universidade. A Misso Atcon pode ser
vista ento como um projeto de Universidade para a Amrica Latina a partir de
uma ideologia pautada por valores polticos, sociais e econmicos dos Estados
Unidos no perodo, tal como explorado no captulo anterior deste trabalho. Seu
objetivo era impor sua viso sobre educao e sobre sociedade para o Brasil.
Em fevereiro 1966, a Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
encomenda Atcon um estudo que auxiliasse na reforma que a instituio j havia
iniciado. O resultado a Proposta de reestruturao da Pontifcia Universidade
Catlica do Rio de Janeiro, entregue universidade em abril do mesmo ano. O
documento basicamente reitera questes presentes nos outros trabalhos sobre
reforma universitria do mesmo autor, por vezes at mesmo reproduzindo
integralmente algumas partes. No que especfico, Atcon adapta suas concepes
ao caso da PUC-Rio. Deste modo, ele valoriza o fato da instituio j ser privada
e defende apaixonadamente a criao de um Departamento de Teologia que
fornea disciplinas a serem ministrada para todos os cursos. Cabe ento analisar
primeiramente a forma como Atcon entendia o papel da Universidade em geral
para depois entender aquela que acreditava ser sua Misso na PUC-Rio.
Um dos aspectos principais do que aqui se chamar de Teoria geral de
Rudolph Atcon a defesa de um modelo de Universidade a partir de uma
estrutura empresarial, com centros e departamentos, tal como nas Universidades
norte-americanas. Assim como demonstra o planejador:
Por estar razes, um planejamento dirigido reforma administrativa da
universidade brasileira, no meu entender, tem que se dirigir ao
propsito de implantar um sistema administrativo tipo empresa privada
e no do servio pblico. (ATCON, 1966, p. 48)
Tal como ressalta Luiz Antnio Cunha (CUNHA, 2007) Rudolph Atcon
um tecnocrata, ou seja, ele entende que a realidade social responde a valores
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objetivos os quais podem ser implementados de maneira que o ser humano uma
varivel comparada a qualquer outra da matemtica. Em outras palavras, para
Atcon as categorias que importam so exportadas das chamadas cincias duras e
existem formas de medir atravs de anlises quantitativas o bom desempenho de
determinada instituio e a partir disso propor modelos que aumentem sua
eficincia. Atcon entendia que a melhor maneira de administrar uma universidade
seria como empresa privada, pois seria a melhor tcnica a ser aplicada para este
caso. Nestes pressupostos, ele defendia um modelo taylorista no qual determinado
segmento da empresa ou neste caso, da Universidade, devia se ocupar com
apenas uma funo e faz-la da melhor forma possvel. Na concepo de Rudolph
Atcon se o modelo aumenta a produtividade de uma empresa e com isso promove
o desenvolvimento do pas, vai fazer o mesmo para a Universidade. Do mesmo
modo, a interferncia do Estado na gesto da empresa/Universidade era algo
extremamente mal visto, uma vez que para Atcon isso a encaminharia para uma
subservincia em relao aos objetivos do Estado e impedia que a instituio se
desenvolvesse plenamente a partir de seus prprios interesses.
Caracterstica forte dos tcnicos que vieram realizar reformas ao assessorar
mudanas de cunho desenvolvimentista na Amrica Latina colocar o seu prprio
discurso como isento de paixes e questes poltico-ideolgicas, afinal tratar-se-ia
de um discurso cientfico, objetivo. O missionrio Rudolph Atcon no diferente,
contudo, j na sua defesa de forma de organizao da vida universitria possvel
enxergar a expresso de uma ideologia2. A defesa de uma universidade cientfica,
pura e objetiva reflete um contexto poltico tenso de bipolarizao ideolgica e
em si mesma, um projeto poltico-ideolgico para a Amrica Latina.
A fortuna crtica do marxismo desenvolveu tais pressupostos aplicando-os
em estudos que permitiam ampliar o olhar sobre a mesma questo. A partir de
2 Na definio clssica do termo, tal como definido por Marx e Engels em A Ideologia alem
(MARX, ENGELS, 2008) ideologia seria uma produo de falsa conscincia na qual os homens
criam ideias, supersties e teorias para justificar algo que existe na estrutura social. Nas relaes
sociais, a ideologia seria a superestrutura que reflete a estrutura socioeconmica de determinada
sociedade. A ideologia pode servir como ferramenta para transmitir e justificar a explorao, o
opressor faz com que o oprimido compartilhe de sua ideologia, no permitindo que ele perceba-se
enquanto explorado.
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Pierre Bourdieu e Antonio Gramsci possvel transpor a questo da Ideologia
para pensar o problema das Universidades e dos intelectuais. Segundo Pierre
Bourdieu, os laos sociais que inscrevem o indivduo na sociedade podem ser
compreendidos atravs da chave analtica dos Campos. Assim, o Campo cultural
seria aquele em que trocas deste tipo ocorrem, estabelecem-se hierarquias e
forma-se um Capital especfico que espcie de medidor dentro do campo em
questo. Em O campo cientfico, o socilogo define as disputas epistemolgicas
como disputas de poder (BOURDIEU, 1986). De um lado, porque as lutas
travadas para estabelecer uma narrativa em relao outra so disputas para
estabelecer uma interpretao sobre o objeto estudado. De outro lado, o autor
compreende que a academia no um campo separado da esfera social, mas se
constitui e constituda por indivduos que esto inscritos nas relaes sociais
exteriores ao mundo acadmico. Deste modo, a disputa epistemolgica uma
disputa de poder, pois tambm uma batalha sobre a interpretao do mundo e as
medidas a serem tomadas para mudar (ou conservar) o mesmo. Sua medio
estabelecesse pelo Capital acadmico (ou cientfico) adquirido, que se torna ento
modo de hierarquizar dentro deste campo. Partindo desta concepo, pode-se
dizer que quando Atcon se prope neutro e objetivo ele est dentro de uma disputa
poltica no campo cientfico que por essncia no pode ser imparcial.
Antonio Gramsci (GRAMSCI, 2000) tem um entendimento bastante
peculiar do que so os intelectuais. Para o autor italiano, eles podem ser de tipo
orgnico ou mecnico. O primeiro caso seria aquele de fato alinhado com um
projeto de poder e contribuinte para a manuteno do mesmo. O segundo seria de
tipo essencialmente desinteressado, que pode contribuir ou no para a manuteno
da realidade socioeconmica. Segundo o autor, a dinmica entre superestrutura
(onde estaria a cultura) e a infraestrutura (socioeconmica) no pode ser explicada
de uma maneira em que a segunda condicione a primeira, mas sim em uma
interseo dialtica em que uma formadora da outra. Logo, intelectuais
orgnicos so formados e formam a estrutura socioeconmica em que esto
inseridos. Os intelectuais de tipo orgnico, dentro de uma concepo de Estado
ampliado que contempla no s altas instancias de poder, mas tambm a
sociedade civil so fundamentais na disputa por hegemonia.
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Atravs de tal chave analtica, possvel compreender que embora o
discurso de Rudolph Atcon se proponha imparcial e cientfico, ele poltico-
ideolgico e parte de suas concepes sobre a realidade social e sobre o tempo em
que o mesmo se inscreve. O tecnocrata foi relator do projeto de reforma
universitria da PUC-Rio e pode ser entendido como intelectual orgnico, uma
vez que comprometido com o projeto de poder que defende. Ao mesmo tempo,
os critrios de qualidade que ele aplica para defender a gesto da universidade
como empresa privada o inscrevem nas disputas epistemolgicas da educao que
perpassam o sculo XX. Afinal, tais definies partem de pressupostos que ao
olhar de Atcon so cientficos. O tecnocrata faz uso de seu Capital acadmico e
da rede de influncia tanto poltica quanto intelectual que dispunha no Brasil e
por causa disso selecionado para o cargo. No por acaso, quando se cria o
Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras sugesto do prprio
Rudolph Atcon em seu relatrio de 1968 para as Universidades brasileiras o
mesmo nomeado conselheiro chefe.
Na Teoria geral de Atcon, a Universidade aparece com uma dupla funo.
De um lado, o tecnocrata defende que a universidade tem como eixo principal a
orientao para fins profissionais e desenvolvimentistas, de outro, ele no
despreza o investimento em formao e em certar partes de seus documentos para
o Brasil Atcon d at certa nfase a tal dimenso. Contudo, o lugar para o
conhecimento desinteressado bem delimitado, ele deve ser secundrio e s
existir no caso de o primeiro aspecto j estar bem desenvolvido. Essa , inclusive,
crtica que ele faz ao modelo da Universidade de Braslia (ATCON, 1966). A
compreenso do norte-americano de que a Universidade tem tambm papel
formativo na cultura no inocente e nem fruto de pura especulao filosfica do
autor. Embora o mesmo repudie o modelo francs de universidade considerado
motivo do arcasmo das instituies brasileiras de ensino a sua formao alem
lhe faz enfatizar caractersticas do ensino superior tal como ele se desenvolveu na
Alemanha.
Alexander Von Humboldt idealizou na segunda metade do sculo XIX
uma forma de organizao da Universidade que ele considerava a mais pertinente
para os interesses nacionais do Estado alemo. No texto Sobre a organizao
43
interna e Externa das Instituies Cientficas Superiores em Berlim
(HUMBOLDT, 1997) o filsofo pretende-se explanar didaticamente o modelo que
prope. O que permeia a proposta a ideia de Bildung uma possvel traduo
seria cultura de formao. Tal conceito j foi amplamente estudado tanto na
crtica literria quanto na filosofia que se debrua sobre a cultura alem do sculo
XIX. Para os fins deste trabalho, cabe realizar o esforo de entender sua aplicao
para pensar a universidade e como Rudolph Atcon se apropriou disso.
A ideia central deste conceito filosfico seria que o indivduo um ente
com desenho original, mas que s se sofisticaria ao entrar em contato com o que
diferente de si. Na aplicao para o ensino universitrio, o que seria almejado
que uma vez definida a vocao profissional de um estudante ele no poderia
entrar em contato apenas com as discusses de sua rea. Por exemplo, um
historiador para ser bom precisa entrar em contato com a sociologia, a
filosofia, a cincia poltica. O objetivo disso no o estudante de histria deixar
de ser historiador, mas se tornar um historiador melhor, capaz de se apropriar de
conhecimentos diversos para se aperfeioar profissionalmente. Deste modo,
Humboldt propunha que a Universidade de Berlim se organizasse por um campus
integrado que possibilitasse a existncia desta troca de saberes. Ao mesmo tempo,
o aluno deveria ter relativa autonomia de escolher os cursos que assistiria e
atividades de cunho artstico deveriam ser incentivadas. Tudo isso com o fim
principal de formar o indivduo atravs de determinada concepo de cultura.
Alm de propiciar uma forma de entender a Universidade que correspondesse a
isso e fosse a locomotiva do avano dos saberes cientficos.
Todas as caractersticas descritas acima so igualmente defendidas nos
relatrios de Rudolph Atcon, fazendo assim parte de sua Teoria Geral. Contudo,
h evidentes diferenas, primeiro porque em Atcon o investimento em formao
cultural secundrio, sendo o principal fim da Universidade promover o
desenvolvimento do pas atravs de preparao de quadros. Se h uma forte
influncia da concepo alem de ensino superior em Rudolph Atcon, ela se
mistura de forma latente com os pressupostos norte-americanos, pas o qual Atcon
se naturalizou cidado, seguiu carreira e era agente contratado para atuar
internacionalmente. Por vezes, o tcnico at mistura os dois ideais em um mesmo
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argumento. Exemplo disso sua defesa do sistema de crditos por disciplina ao
invs de turmas com um currculo comum, pois o primeiro permitiria que
indivduo desenvolvesse suas potencialidades e