Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do...
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
Katia Cilene da Silva Santos
A antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer
(Verso corrigida)
So Paulo 2017
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Katia Cilene da Silva Santos
A antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer
(Verso corrigida)
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia, do
Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do
ttulo de Doutora em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Brando.
So Paulo 2017
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
Santos, Katia Cilene da Silva
S237a A antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer / Katia Cilene da Silva Santos ;
orientador Eduardo Brando. - So Paulo, 2017.
240 f.
Tese (Doutorado)-Faculdade de Filosofia, Letras
e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.
Departamento de Filosofia. rea de concentrao:
Filosofia.
1. Schopenhauer. 2. Antinomia da faculdade de
conhecimento. 3. Metafsica. 4. Teoria do
conhecimento. 5. Idealismo. I. Brando, Eduardo,
orient. II. Ttulo.
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Folha de Avaliao
SANTOS, Katia Cilene da Silva. A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer. 2017. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2017.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________Instituio: ____________________ Julgamento:_________________________ Assinatura: ___________________
Prof. Dr. ____________________________Instituio: ____________________ Julgamento:_________________________ Assinatura: ___________________
Prof. Dr. ____________________________Instituio: ____________________ Julgamento:_________________________ Assinatura: ___________________
Prof. Dr. ____________________________Instituio: ____________________ Julgamento:_________________________ Assinatura: ___________________
Prof. Dr. ____________________________Instituio: ____________________ Julgamento:_________________________ Assinatura: ___________________
Prof. Dr. ____________________________Instituio: ____________________ Julgamento:_________________________ Assinatura: ___________________
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Dedico este trabalho minha famlia: Luzia, Artur, Toni, Jane, Adriano, Fernando, Nadja, Daniel,
Luiz Fernando, Arthur e Alessandro.
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Agradecimentos
Agradeo ao meu orientador, professor Dr. Eduardo Brando, por me
acompanhar desde o mestrado com sua forma especial de orientar. Foi muito importante, na minha trajetria at aqui, sua liberdade de pensamento e sua
abertura a diferentes horizontes e alternativas. As anlises sem preconceitos, as correes fundamentais, as sugestes pertinentes e as indicaes agudas e certeiras resultaram todas as vezes em um pensamento mais claro e um texto
melhor. Agradeo muito especialmente ao professor Dr. Newton da Costa, pela
generosidade com que me ajudou em vrios momentos da minha pesquisa. Sou grata pelas diversas dvidas que me sanou, pelas indicaes bibliogrficas e pelas orientaes em questes de lgica. Mas sou grata, sobretudo, por me
receber com hospitalidade, pelos conselhos que me ensinaram sabedoria e pela solicitude com que sempre me atendeu.
Agradeo tambm professora Dra. Macia Lcia Cacciola, pela leitura crtica do texto da minha prova de qualificao. As correes e os pontos falhos que me apresentou foram importantes para que eu repensasse os rumos do meu
trabalho e reavaliasse meus caminhos. Agradeo ainda ao professor Dr. Jos Eduardo Baioni, pelas relevantes
indicaes bibliogrficas. Por fim, agradeo ao CNPq pelo subsdio financeiro, de 2015 at o trmino
da pesquisa.
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Nosso ponto de vista objetivo realista e,
portanto, condicionado, na medida em que, tomando os seres naturais como dados, da
abstrai que a existncia objetiva deles pressupe um intelecto, no qual se encontrem primeiro
como representao; mas o ponto de vista subjetivo e idealista de Kant tambm condicionado, na medida em que emerge da
inteligncia, a qual, ela mesma, tem a natureza como pressuposto, e somente pode surgir como
resultado do desenvolvimento desta at o seres animais.
Schopenhauer
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RESUMO
SANTOS, Katia Cilene da Silva. A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer. 2017. 240 p. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2017.
Resumo: Este trabalho versa sobre a antinomia da faculdade de conhecimento, tambm conhecida como paradoxo de Zeller, que Schopenhauer refere no primeiro livro de O mundo como Vontade e representao. Essa questo tem sido bastante discutida na histria do pensamento schopenhaueriano e
permanece ainda hoje como um problema em aberto. Desde os primeiros leitores de Schopenhauer, a antinomia da faculdade de conhecimento foi apontada como
um problema de soluo difcil, quando no impossvel, e explicada de maneiras diversas. Algumas vezes, apontou-se a heterogeneidade das teorias sobre as
quais o pensamento schopenhaueriano se ergue; em outras, a antinomia foi atribuda a erros de interpretao da filosofia kantiana; por vezes, remeteram-na a um dualismo em que se chocam materialismo e idealismo, ou realismo e
idealismo, e h ainda outras vises. Nesta tese, propomos uma interpretao alternativa, que toma as dificuldades da filosofia schopenhaueriana como
constitutivas, e, sem pretender justific-la nem impugn-la, busca sua compreenso a partir das questes tericas com as quais o filsofo se defrontou. Como resultado, encontramos que Schopenhauer evidencia a insuficincia tanto
do idealismo quanto do realismo para a explicao completa e correta do mundo, bem como a mtua exigncia entre ambos. A complementaridade entre os
pontos de vista opostos do idealismo e do realismo impe que sejam articulados, embora sua combinao origine os diversos problemas presentes na obra schopenhaueriana, entre os quais est a antinomia da faculdade de
conhecimento. Adicionalmente, analisamos outras questes e dificuldades que surgiram no pensamento de Schopenhauer, algumas mencionadas pelo filsofo,
outras no.
Palavras-chave: Schopenhauer. Antinomia da faculdade de conhecimento. Metafsica. Teoria do conhecimento. Idealismo.
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ABSTRACT
SANTOS, Katia Cilene da Silva. The antinomy of Schopenhauer's theory of knowledge. 2017. 240 p. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2017.
Abstract: This work deals with the antinomy of the faculty of knowledge, also known as Zeller's paradox, to which Schopenhauer refers in the first book of The
world as Will and representation. This question has been much discussed in the history of Schopenhauer's thought and still remains today as an unsolved
problem. Since the early readers of Schopenhauer, the antinomy of the faculty of knowledge was pointed out as a problem of difficult solution, if not impossible, and explained in different ways. At times, the heterogeneity of the theories on
which Schopenhauer's thought stands has been pointed out; other times, the antinomy was attributed to errors in the interpretation of Kantian philosophy; for
many times referred to a dualism in which collide materialism and idealism, or realism and idealism; and there are still other viewpoints. In this thesis, we propose an alternative interpretation, which takes the difficulties of
Schopenhauer's philosophy as constitutive, and not pretending to justify or contest it, we search for an understanding from the theoretical questions with
which the philosopher faced. As a result, we find that Schopenhauer evidences the inadequacy of both idealism and realism for the complete and correct explanation of the world, as well as the mutual demand between them. The
complementarity between the opposing viewpoints of idealism and realism demands they to be articulated, although their combination gives rise to the
various problems present in Schopenhauer's work, among which is the antinomy of the faculty of knowledge. In addition, we analyzed other issues and difficulties that arose in Schopenhauer's thought, some mentioned by the philosopher.
Keywords: Schopenhauer. Antinomy of the faculty of knowledge. Metaphysics.
Theory of knowledge. Idealism.
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Lista de abreviaturas
Traduzimos do alemo as citaes das obras de Schopenhauer. Indicamos em notas de rodap
as localizaes dos fragmentos transcritos nas edies originais utilizadas, e tambm em
tradues referenciadas em portugus ou espanhol. Traduzimos as citaes da obra de Ernst
Cassirer da edio em espanhol da Fondo de Cultura Econmica. Retiramos as citaes de
Crtica da Razo Pura da edio portuguesa da Calouste Gulbenkian, e indicamos a
paginao original da Kniglich Preuischen Akademie der Wissenschaften. Outros casos
sero informados em notas de rodap.
WWV I = Die Welt als Wille und Vorstellung, erster Band. [Edio alem: Die Welt als Wille
und Vorstellung I und II. Gesamtausgabe. Mnchen: Deutschen Taschenbuch, 2011 (Nach
den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Ltkehaus); edio brasileira: O
mundo como vontade e representao. 1 tomo. Traduo, apresentao, notas e ndices de
Jair Barboza. So Paulo: UNESP, 2005 (essa edio ser referida como MI)].
KkP = Kritik der kantischen Philosophie. [Edio alem: Die Welt als Wille und Vorstellung I
und II. Gesamtausgabe. Mnchen: Deutschen Taschenbuch, 2011 (Nach den Ausgaben letzter
Hand herausgegeben von Ludger Ltkehaus); edio brasileira: Crtica da filosofia kantiana.
Traduo de Wolfgang Leo Maar e Maria Lcia Mello e Oliveira Cacciola. So Paulo: Nova
Cultural, 1988 (essa edio ser referida como CFK)].
WWV II = Die Welt als Wille und Vorstellung, zweiter Band. [Edio alem: Die Welt als
Wille und Vorstellung I und II. Gesamtausgabe. Mnchen: Deutschen Taschenbuch, 2011
(Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Ltkehaus); edio brasileira:
O mundo como vontade e representao. 2 tomo. Traduo, apresentao, notas e ndices de
Jair Barboza. So Paulo: UNESP, 2015 (essa edio ser referida como MII)].
SF = ber das Sehn und die Farben. [Edio alem: Smtliche Werke. Band III. Kleinere
Schriften. Stutgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012 (Textkritisch bearbeitet und
herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Lhneysen); edio brasileira: Sobre a viso e as
cores: um tratado. Traduo de Erlon Jos Paschoal. Nova Alexandria: So Paulo, 2003 (essa
edio ser referida como VC)].
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V = ber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde. [Edio alem:
Smtliche Werke, Band III. Kleinere Schriften. Stutgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012
(Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Lhneysen); edio
espanhola: De la cudruple raz del principio de razn suficiente. Traduccin y prlogo de
Leopoldo-Eulogio Palacios. Madrid: Gredos, 1981 (essa edio ser referida como CR)].
WN = ber den Willen in der Natur. [Edio alem: Smtliche Werke, Band III. Kleinere
Schriften. Stutgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2012 (Textkritisch bearbeitet und
herausgegeben von Wolfgang Frhr. von Lhneysen); edio espanhola: Sobre la voluntad en
la naturaleza. 1 ed. 3 reimpr. Traduccin de Miguel de Unamuno. Prlogo y notas de
Santiago Gonzlez Noriega. Madrid: Alianza, 1987 (essa edio ser referida como VN)].
PP I = Parerga und paralipomena I: [Edio alem: Smtliche Werke. Band IV.
Stutgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von
Wolfgang Frhr. von Lhneysen). As tradues dos textos utilizados sero indicadas em notas
de rodap].
PP II = Parerga und paralipomena II: [Edio alem: Smtliche Werke. Bnde V/1, V/2.
Stutgart/Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von
Wolfgang Frhr. von Lhneysen). As tradues dos textos utilizados sero indicadas em notas
de rodap].
KrV= Kritik der reinen Vernunft [Edio alem: Kants Gesammelte Schriften.
Herausgegeben von der Kniglich Preuischen Akademie der Wissenschaften. 2. Auflage.
Band III. Berlin: Georg Reimer, 1904; edio portuguesa: Crtica da razo pura. 5 ed.
Traduo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo. Introduo e notas de
Alexandre Fradique Morujo. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001 (essa edio ser
referida como CRP)].
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SUMRIO
Introduo................................................................................................................................13
Captulo 1 Introduo antinomia da faculdade de conhecimento
1.1 Apresentao terica e histrica da antinomia da faculdade de conhecimento...............17
1.2 Outras questes presentes na filosofia schopenhaueriana................................................23
1.3 Investigao acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento...............30
1.4 Investigao acerca dos conceitos das outras questes presentes na filosofia de
Schopenhauer......................................................................................................................41
1.5 Estrutura histrica da metafsica de Schopenhauer: o debate sobre a coisa em si...........44
1.6 Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos..............................................................70
Captulo 2 A construo do lado externo do mundo: idealismo transcendental
2.1 Philosophia prima
2.1.1 O princpio mximo do conhecimento....................................................................77
2.1.2 Formas da sensibilidade, intuies puras e sujeito da volio................................85
2.1.3 Dianoiologia............................................................................................................91
2.1.4 Teoria da razo......................................................................................................107
2.2 O conhecimento filosfico.............................................................................................118
2.3 Crtica de Schopenhauer ao idealismo de Kant.............................................................123
2.4 Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento...........................................131
2.5 Fundamentos do mundo como representao.................................................................134
Captulo 3 A constituio do lado interno do mundo: metafsica
3.1 A Vontade como o em si do indivduo..........................................................................141
3.2 A Vontade como o em si do mundo...............................................................................149
3.3 Objetivao da Vontade.................................................................................................161
3.4 Relaes da Vontade com o intelecto e o crebro.........................................................166
3.5 Discrdia da Vontade consigo mesma e teleologia.......................................................172
3.6 Fundamentos do mundo como Vontade.........................................................................182
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Captulo 4 Interpretaes paradigmticas e anlise pessoal
4.1 Recepo da filosofia schopenhaueriana.......................................................................187
4.2 - Apreciaes crticas da antinomia da faculdade de conhecimento.................................197
4.3 Solues apologticas da antinomia da faculdade de conhecimento.............................206
4.4 Anlise pessoal...............................................................................................................217
Referncias.............................................................................................................................228
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Introduo
Querer resolver todos os problemas e
responder a todas as interrogaes seria
atrevida filucia e presuno to
extravagante, que isso bastaria para se tornar
imediatamente indigno de toda a confiana.
Kant
O tema de que se ocupa esta tese uma questo muito interessante. Um
pensador de esprito to vivo e de ideias to importantes na tradio filosfica, como Arthur
Schopenhauer, foi levado a reconhecer e a relatar, no seu sistema, o que entendeu ser uma
antinomia da faculdade de conhecimento. Ao faz-lo, porm, ele indicou que sua filosofia
infringira o princpio de no contradio, que est na base do conceito de antinomia. Embora
ele tenha justificado o problema pela bifurcao dos pontos de vista do fenmeno e da coisa
em si, a soluo no foi convincente e as discusses, iniciadas com seus contemporneos,
ainda hoje subsistem. Em 1869, seu amigo e discpulo Julius Frauenstdt publicou um artigo
intitulado Arthur Schopenhauer und seine Gegner, na revista Unsere Zeit, deutsche Revue
der Gegenwart1, no qual informa sobre diversas crticas de que a filosofia schopenhaueriana
foi alvo. Frauenstdt menciona muitos opositores e muitas objees ao pensamento de
Schopenhauer, entre as quais est a antinomia da faculdade de conhecimento. Menciona
tambm a reao do filsofo a vrias acusaes de contradio, em cartas nas quais manifesta
revolta em ser chamado de contraditrio.
O espanto que as contradies provocam se deve a que, desde a defesa
feita por Aristteles do princpio de no contradio, no livro da Metafsica, a presena de
antinomias, aporias ou paradoxos em qualquer teoria equivale a uma condenao. O princpio
de no contradio uma das principais leis da lgica clssica, entendidas como necessrias e
suficientes para o pensamento correto, e sua violao tem sido vista como um erro capaz de
impugnar todo um sistema terico. Apesar disso, a presena de contradies muito comum
na Histria da Filosofia. Diversos autores tiveram, em algum momento, uma contradio ou
1 FRAUENSTDT, J. Arthur Schopenhauer und seine Gegner. Unsere Zeit, deutsche Revue der Gegenwart.
Monatsschrift zum Conversationslexikon. Bd. 5, 2, Leipzig, 1869, p. 686-707.
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outro problema lgico apontado no desenvolvimento de suas ideias. A lista de exemplos seria
extensa, mas basta lembrarmos o conhecido debate sobre a concepo kantiana de coisa em si,
no qual diversos pensadores refletiram sobre a contradio que significava sustentar a
existncia de um objeto irrepresentvel na base de todas as representaes. Um filsofo da
magnitude de Kant, numa das questes mais importantes de toda a tradio filosfica,
precisou lidar com uma dificuldade ligada ao princpio de no contradio. O caso de
Schopenhauer talvez seja nico na Histria da Filosofia, porque seus opositores acusaram a
presena de contradies, paradoxos e antinomias, em todas as frentes de seu pensamento. O
prprio filsofo mencionou, alm da antinomia da faculdade de conhecimento, outras trs
oposies decorrentes de suas ideias, a saber, entre a necessidade que rege a conduta humana
e a liberdade na negao da Vontade, entre mecanicismo e finalismo na natureza, e entre a
contingncia no decorrer da vida do indivduo e a necessidade moral que intimamente a
determina.
Nesta pesquisa, no buscamos redimir a filosofia schopenhaueriana,
tampouco conden-la. No temos a pretenso desmedida de destrinchar todas as questes que
ela suscita, para ento atribuir-lhe este ou aquele selo. A perspectiva que adotamos a de que
as dificuldades decorrentes do princpio de no contradio podem indicar a necessidade de
uma abordagem diferente, na qual no se procure elimin-las a qualquer custo ou invalidar a
teoria em que ocorrem. Caso a violao do princpio seja inevitvel, os problemas talvez no
sejam de ordem discursiva ou lgica, mas tenham razes em profundas questes filosficas.
Atualmente, pensadores das lgicas paraconsistentes, entre eles o professor Newton da Costa,
tm evidenciado que as contradies no so aberraes, e que existem domnios do discurso
onde elas so inexpugnveis, como a Medicina e o Direito. Nessas lgicas, mostrou-se
possvel manter sistemas contraditrios sem se incorrer em trivialidade, isto , sem que se
deduzam quaisquer frmulas ou teoremas em uma teoria contraditria dada. Com os
princpios norteadores de um novo ramo dentro das lgicas paraconsistentes, a lgica
paraclssica, argumentamos nesta tese que a filosofia schopenhaueriana, embora
inconsistente, no trivial.
Com esse objetivo, no primeiro captulo deste trabalho, apresentamos a
antinomia da faculdade de conhecimento e investigamos sua natureza, e o mesmo fazemos
com relao a outras questes semelhantes. Com base no discernimento de alguns conceitos
lgicos, deliberamos sobre qual deles descrever melhor cada um dos problemas de que
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tratamos. Expomos a trama conceitual do debate ps-kantiano sobre a coisa em si, para
ressaltar as questes s quais Schopenhauer precisava responder, bem como para iluminar as
suas opes tericas. Ao final do captulo, trazemos tona o dilema que est na base da
metafsica e da teoria do conhecimento schopenhauerianas, bem como os conceitos nele
envolvidos.
No segundo captulo, examinamos a teoria da representao e
explicitamos o mecanismo de produo desse lado do mundo pelo sujeito do conhecer.
Detalhamos o modo como Schopenhauer encaixa as peas do quebra-cabea que se tornou o
problema do conhecimento, aps as discusses sobre a coisa em si. Mostramos que o ponto
central da soluo que ele elabora o princpio de razo suficiente, por meio do qual responde
a todas as questes que se encontravam abertas naquele debate. Ressaltamos essas relaes e
indicamos como elas manifestam seu posicionamento especfico frente ao idealismo
transcendental. Expomos a concepo de Schopenhauer acerca do conhecimento filosfico,
algumas das crticas que ele faz ao idealismo kantiano e a relao que ele estabelece entre o
seu prprio idealismo e a fisiologia, com o objetivo de clarificar os caminhos que seu
pensamento vai urdindo. Ao final, destacamos os contornos do mundo como representao,
tal como concebido pelo filsofo, e trazemos luz os seus fundamentos.
O terceiro captulo trata da metafsica schopenhaueriana, na qual a coisa
em si deduzida como o lado interno do mundo. Apresentamos a argumentao acerca da
Vontade como essncia do indivduo humano, bem como sua extenso posterior ao mundo
como um todo, animado e inanimado. Retratamos a objetivao da Vontade, sublinhando o
processo de refinamento das suas manifestaes no decurso tempo, e apontamos suas relaes
com o intelecto e o crebro. Discutimos as concepes de autodiscrdia e de teleologia, e
finalizamos com uma reflexo sobre os fundamentos do mundo como Vontade. O quarto e
ltimo captulo abrange algumas das mais relevantes apreciaes histricas da antinomia da
faculdade do conhecimento e da filosofia schopenhaueriana como um todo. Delineamos a
recepo das obras de Schopenhauer por seus contemporneos, destacamos algumas das
avaliaes crticas da antinomia da faculdade de conhecimento, bem como outras
apologticas, e apresentamos nossas concluses. Neste ltimo item, refletimos sobre a
complementaridade dos pontos de vista do idealismo e do realismo, e conclumos pela
necessidade de manter ambas as perspectivas. A explicao do mundo com base somente em
uma delas vista como insuficiente por Schopenhauer e, ainda que d origem a
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inconsistncias, sua juno no torna seu pensamento trivial.
Por fim, queremos esclarecer que o ttulo desta tese no se refere apenas
antinomia da faculdade de conhecimento, mas teoria do conhecimento de um modo mais
amplo, porque a questo envolve diferentes aspectos da filosofia de Schopenhauer. De fato, a
antinomia se relaciona com o intelecto, mas tambm com a Vontade e com a filosofia da
natureza schopenhaueriana. O ncleo est na origem do conhecimento, suas condies de
possibilidade e seu mecanismo interno de funcionamento, que so questes ligadas
faculdade de conhecer, no entanto, a antinomia tambm se refere ao surgimento do suporte
material do intelecto, ligado Vontade e ao desenvolvimento e aperfeioamento fenomnicos
dela.
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Captulo 1 Introduo antinomia da faculdade de conhecimento
1.1 Apresentao terica e histrica da antinomia da faculdade de conhecimento
No 7 do primeiro livro de O mundo como Vontade e representao
(doravante, O Mundo...), Schopenhauer identifica um problema na sua filosofia, ao qual ele
denomina antinomia da faculdade de conhecimento (Antinomie in unsern
Erkenntnivermgen)2. Esse problema desponta nos desdobramentos de duas teses
fundamentais de seu pensamento, a saber, a concepo de que todo o mundo conhecido se
reduz a representao do sujeito e a de que as objetivaes da Vontade, base metafsica de
tudo o que existe, apresentam um progresso no tempo. Essas teses fazem parte dos alicerces
da filosofia schopenhaueriana, e sua confrontao foi interpretada como levando a uma
contradio, tanto pelo filsofo quanto por diversos comentadores de sua obra.
De acordo com Schopenhauer, o universo emprico consiste em
representao de um sujeito cognoscente, de modo que todos os seres animados, bem como
toda a natureza inanimada, dependem de um intelecto e somente podem existir por meio dele.
Nas palavras do filsofo, o mundo [...] simplesmente representao, e como tal exige o
sujeito cognoscente como portador de sua existncia [...]3. Essa relao de implicao entre o
sujeito e o mundo como representao radicalizada pela conexo intrnseca entre a
faculdade cognoscitiva e o corpo material que lhe d suporte, pois o crebro apontado por
Schopenhauer como o rgo no qual se situa o conhecimento. Para ele, o espao como
condio da extenso dos corpos, o tempo como forma da sucesso dos eventos e a lei de
causalidade como reguladora das transformaes na natureza so as bases da constituio do
sujeito congnoscente, e possuem uma origem cerebral. Ernst Cassirer sublinha esse aspecto,
2 WWV I, ersters buch, 7, p. 65; M I, Livro I, 7, p. 76.
3 WWV I, ersters buch, 7, p. 64; M I, Livro I, 7, p. 75.
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ressaltando que Schopenhauer formula sua teoria do conhecimento sobre uma concepo que
, ao mesmo tempo, metafsica e fisiolgica:
O mundo que assim nasce existe somente na representao e para a
representao: , pura e exclusivamente, um produto do crebro. Nunca se
poder afirmar com a energia necessria, sublinhar-se com fora o bastante
essa condicionalidade fisiolgica. Sem o olho no existiria jamais o mundo
das cores: sem o crebro, jamais existiria o mundo dos corpos no espao, o
mundo das mudanas e das dependncias causais no tempo. O intelecto, que
possui como seu patrimnio apriorstico e original todas essas relaes e
formas, encontra-se absolutamente condicionado por fatores fsicos: a
funo de um rgo material, subordinado, portanto, a este e sem o qual
seria to impossvel como o ato de segurar sem a mo.4
Da perspectiva de sua metafsica, contudo, Schopenhauer sustenta a
existncia de uma gradao nas objetivaes da Vontade, ancorada na complexidade e no
aperfeioamento crescentes dos seres da natureza, que culmina no animal cognoscente. A
investigao da natureza baseada na lei de causalidade, diz o filsofo, leva necessariamente
concepo de que [...] no tempo, cada estado da matria superiormente organizado sucedeu a
um mais rudimentar: isto , que animais surgiram antes dos homens, peixes antes dos animais
terrestres, plantas antes destes, o inorgnico antes de todo orgnico; [...]5. Todos esses seres
seriam orientados por um princpio de afirmao, em virtude do qual sua existncia teria
como nico objetivo garantir Vontade sua prpria objetivao. Em funo disso, o
aprimoramento no decurso do tempo se daria no sentido de afirmarem a Vontade de modo
cada vez mais eficaz, o que teria sido alcanado com o ser humano. Com efeito, a razo e o
conhecimento abstrato, presentes apenas na humanidade, seriam os instrumentos mais
eficientes para a satisfao do querer individual. No obstante, a possibilidade de uma tal
gradao exige que se admita a existncia de um processo temporal, no qual uma longa cadeia
de causas e efeitos tenha transformado a natureza e sofisticado o mundo, desde o inorgnico
at o crebro dotado de razo.
A questo que surge ao se confrontarem os dois aspectos expostos
notada e descrita por Schopenhauer:
Assim, de um lado, vemos necessariamente a existncia do mundo inteiro
dependente do primeiro ser cognoscente, por mais imperfeito que possa ser;
de outro lado, tambm necessariamente, esse primeiro animal cognoscente
completamente dependente de uma longa cadeia anterior de causas e efeitos,
4 CASSIRER, E. El problema del conocimiento III. 1 ed. 4 reimpr. Traduccin de Wenceslao Roces. Mxico:
Fondo de Cultura Econmica, 1993, p. 497. (grifos do autor) 5 WWV I, ersters buch, 7, p. 64; M I, Livro I, 7, p. 75.
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na qual ele entra como um pequeno elo. Esses dois pontos de vista
contraditrios, aos quais, na verdade, fomos conduzidos com a mesma
necessidade, podem de fato nomear-se novamente antinomia da nossa
faculdade de conhecimento e situar-se como contrapartida daquela
encontrada no primeiro extremo da cincia da natureza; [...].6
Para o filsofo, a questo dissolvida considerando-se que o espao, o
tempo e a causalidade referem-se unicamente representao e no ao ncleo do mundo,
coisa em si. A chave para essa soluo seria a compreenso de que o tempo est associado ao
conhecimento, ou seja, se certo que no havia conhecimento antes do intelecto, no haveria
tambm tempo algum. Ao surgir como atributo do primeiro ser cognoscente, somente ento
que o tempo traria as noes de passado e futuro infinitos, bem como a representao de uma
cadeia causal anterior. Como ele explica,
[...] assim como o primeiro presente, tambm o passado de onde ele provm
depende do primeiro sujeito cognoscente e sem ele nada , embora a
necessidade conduza a que esse primeiro presente no se apresente como o
primeiro, isto , como no tendo nenhum passado como me e como o incio
do tempo; mas, sim, como consequncia do passado, conforme o princpio
do ser no tempo, da mesma forma que o fenmeno que preenche o passado
se apresenta como efeito de estados prvios que o preencheram, segundo a
lei de causalidade.7
Essa resposta elaborada por Schopenhauer, no entanto, no remediou os
problemas a encontrados pelos historiadores e filsofos posteriores, e a questo passou
Histria da Filosofia como uma falha, um paradoxo descoberto por Eduard Zeller 8
. Em 1875,
na obra Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz, Zeller exps a formulao da
antinomia que tem sido a mais citada. No seu livro, ele afirma que, quando confrontamos as
partes do sistema schopenhaueriano, somos conduzidos concluso de que o mundo resulta
da representao, a qual, por sua vez, resulta de um rgo material que pressupe o mesmo
mundo. Nas palavras dele,
Encontramo-nos, portanto, no crculo evidente de que a representao deve
ser um produto do crebro, e o crebro, um produto da representao; e que
este ltimo no seja o limite extremo da sua concepo, mas apenas
enquanto ele representado, um subterfgio vazio: pois somente enquanto
6 WWV I, ersters buch, 7, p. 65; M I, Livro I, 7, p. 76. Schopenhauer se refere nessa passagem ao que ele
chama de antinomia qumica, que no discutiremos neste trabalho. De acordo com o filsofo, a cincia qumica
tem como objeto o primeiro estado da matria, que tenta encontrar pelo mtodo da causalidade. Porm, estaria
condenada ao fracasso, pois mesmo que um tal primeiro estado fosse encontrado, ficaria inexplicado o modo
como teria podido sofrer alguma mudana na ausncia de um outro estado, diferente dele, que pudesse dar
origem primeira mutao. Cf. WWV I, ersters buch, 7, p. 63-64; M I, Livro I, 7, p. 74-75. 7 WWV I, ersters buch, 7, p. 66; M I, Livro I, 7, p. 77.
8 Em verdade, no se pode falar em descoberta, uma vez que o prprio Schopenhauer menciona essa dificuldade,
como de resto algumas outras que discutiremos adiante.
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matria, somente enquanto se torna representado, que pode existir
corporalmente o rgo que gera as representaes. Aqui se situa uma
contradio, para cuja soluo o filsofo nem minimamente contribuiu.9
Como afirma Maria Lcia Cacciola em Schopenhauer e a questo do
dogmatismo, trata-se de uma crtica clssica teoria da representao schopenhaueriana, que
foi por isso qualificada como contraditria10
. De fato, tanto antes quanto depois de Eduard
Zeller, diversos comentadores apresentaram e discutiram essa dificuldade, entre eles Kuno
Fischer, Johannes Volkelt e Ernst Cassirer. J em 1871, Julius Frauenstdt, discpulo e amigo
do filsofo, publicou seu Schopenhauer-Lexicon, no qual h um verbete sobre a antinomia da
faculdade de conhecimento sob o nome de antinomia fisiolgica (die physiologische
Antinomie)11
. Ainda antes dele, Adolf Cornill e Rudolf Seydel tocam no problema em 1856 e
1857, respectivamente. O primeiro, em sua obra Arthur Schopenhauer als
Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung12
, atribui-
o a um dualismo que dilaceraria o sistema. O segundo o remete a um hiato entre a teoria do
conhecimento schopenhaueriana e sua metafsica, na obra Schopenhauers Philosophisches
System13
.
Existem ainda muitas outras obras dedicadas a Schopenhauer que aludem
antinomia, no necessariamente de modo crtico, tanto escritas no passado como no
presente. Dentre elas, esto diversas teses de doutorado alems, datadas do final do sculo
XIX ao incio do XX, como, por exemplo, a de Dmitry Tzerteleff, Schopenhauers
Erkenntniss-Theorie: eine kritische Darstellung14
, defendida na Universidade de Leipzig, em
1879. Alm dessa, h a de Hugo Otczipka, Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung
Schopenhauers15
, tambm defendida na Universidade de Leipzig, em 1892, e a de Otto
9 ZELLER, E. Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz. Mnchen: Didenbourg, 1875, p. 713.
(traduo nossa) (grifos do autor) 10
CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questo do dogmatismo. So Paulo: EDUSP, 1994, p. 77. 11
Cf. FRAUENSTDT, J. Schopenhauer-Lexicon: ein Philosophisches Wrterbuch. Erster Band. Leipzig:
Brockhaus, 1871, p. 37 et seq. 12
CORNILL, A. Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische
Weltanschauung. Heidelberg: Georg Mohr, 1856. 13
SEYDEL, R. Schopenhauers Philosophisches System. Leipzig: Breitkop und Hrtel, 1857. 14
TZERTELEFF, Dmitry. Schopenhauers Erkenntniss-Theorie: eine kritische Darstellung. Inaugural-
Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwrde der Phiosophischen Fakultt der Universitt
Leipzig. Leipzig: G. Reusche, 1879, p. 35 et seq. 15
OTCZIPKA, Hugo. Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers. Der Hohen philosophischen
Fakultt der Universitt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwrde. Leipzig-Reudnitz:
Oswald Schmidt, 1892, p. 150 et seq.
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Suckau, intitulada Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie: Ihre
Erklrung und Ihre Folgen16
, defendida em Weimar, em 191217
.
Uma das mais interessantes e profcuas anlises da teoria do
conhecimento schopenhaueriana a realizada por Ernst Cassirer. De acordo com esse
pensador, Schopenhauer tenta realizar a intermediao entre dois mundos, a saber, o da
metafsica do ponto de vista do idealismo alemo e o das cincias naturais, apoiado
especialmente na psicologia francesa e na teoria fisiolgica das cores, de Goethe. Esse seria
um carter sui generis do pensamento de Schopenhauer, que o teria levado bifurcao de
dois caminhos e de duas metas completamente diferentes, em funo dos quais haveria
surgido uma antinomia j na prpria formulao do problema do conhecimento18
.
Cassirer considera que o fato de Schopenhauer apoiar sua teoria da
representao sobre as cincias naturais, e no sobre a lgica e a matemtica, assegura-lhe um
lugar especial entre os ps-kantianos, mas em contrapartida envolve sua filosofia num
problema insolvel. Diferentemente dos outros discpulos de Kant, em Schopenhauer a
investigao no expe apenas a trajetria do conhecimento no sentido que vai do intelecto ao
objeto, mas tambm no inverso, do mundo conhecido ao intelecto. Schopenhauer, portanto,
teria decidido fundamentar sua viso acerca da formao do conhecimento no somente em
uma operao intelectual transcendental, como os outros idealistas alemes, mas sustentando-
se tambm no fisiolgico. Sua inteno ao fazer isso teria sido a de rechaar a construo
terica de tipo pantesta, em que um ser absoluto e originrio engendra o mundo, ao mesmo
tempo em que revela a si prprio. No entanto, na concepo de Cassirer, a estaria o erro
fundamental de Schopenhauer, pois o processo no poderia ser entendido como a
manifestao de uma entidade no tempo, mas somente no sentido de uma emanao lgica. A
dificuldade de harmonizar o mtodo transcendental de Kant, que se ocupa das verdades e da
validade ideal dos juzos, com as questes prprias do lado emprico da teoria fisiolgica seria
responsvel por grande parte dos problemas da filosofia schopenhaueriana. A partir da, um
crculo vicioso resultaria da derivao dos juzos com base nas coisas, e escreve Cassirer,
16
SUCKAU, Otto. Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie: Ihre Erklrung und Ihre
Folgen. Dissertation zur Erlangung der Doktorwrde bei der philosophischen Fakultt der Groherzoglich
Hessischen Ludwigs-Universitt zu Gieen. Weimar: R. Wagner Sohn, 1912, p. 39 et seq. 17
No quarto captulo deste trabalho, delineamos a recepo da filosofia de Schopenhauer e algumas das apreciaes, tanto crticas quanto apologticas, que a antinomia da faculdade do conhecimento recebeu. 18
CASSIRER, E. op. cit., p. 493.
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[...] esse crculo vicioso tem necessariamente de produzir-se, to logo o
problema da filosofia crtica saia de seu campo prprio e verdadeiro; isto ,
to logo perguntemos, no por uma dependncia ideal com respeito a
verdades, mas por uma dependncia real do sujeito com respeito ao objeto e
vice-versa.19
No fundo do sistema schopenhaueriano, haveria um crculo do anterior e
do posterior no tempo, que estaria na base da teoria do conhecimento do filsofo e seria
tambm a origem da antinomia. O prprio Schopenhauer teria admitido a uma circularidade,
vendo-se obrigado a conceber o intelecto tanto como prius, quanto como posterius20
. Com
base nisso, seramos forados a concluir que o espao est na cabea e, simultaneamente, a
cabea est nele, assim como que o tempo est em ns e que tambm estamos nele. Do
mesmo modo, a prpria derivao do mundo como representao no espao e no tempo
exigiria a existncia anterior de certos dados primrios que, na realidade, j seriam obra do
intelecto, como no caso da intuio dos objetos realizada pela retina.
O crculo vicioso surgiria, igualmente, quando se analisa a exposio
schopenhaueriana do ponto de vista metafsico. O intelecto, juntamente com o crebro, seria
um produto tardio da Vontade, sua ltima e superior objetivao. Nessa perspectiva, o tempo,
o espao e a causalidade, que so as condies do devir, teriam de surgir posteriormente como
atributos do sujeito. Ento, diz Cassirer,
[...] deveria estar claro, segundo a prpria metafsica de Schopenhauer, que
no pode haver nenhuma classe de objetivaes da vontade anteriores ao
intelecto, mas somente para este. S para o sujeito cognoscente e sua forma
de reflexo se fragmenta o em si simplesmente unitrio da vontade em uma
pluralidade de graus de objetivao, e na srie ascendente do devir.21
Em resumo, no se poderia apontar nenhuma origem material do
intelecto, nenhuma demonstrao que apresentasse a derivao dele a partir de outro ser ou
essncia. Somente seria possvel realizar algo desse tipo recorrendo-se a uma
autodeterminao ou automovimento de um ser absoluto. O prprio Schopenhauer, como
mostra Cassirer, apontou o problema das metafsicas genticas, evidenciando que o princpio
de razo no tem validade fora da experincia e que, portanto, no se pode supor nenhuma
causalidade entre a coisa em si e o fenmeno. No entanto, o filsofo teria cometido o mesmo
erro no tocante relao entre Vontade e conhecimento, na medida em que o princpio de
razo utilizado para mostrar a origem ltima do intelecto. A filosofia schopenhaueriana
19
Ibidem, p. 510. (grifos do autor) 20
Ibidem, p. 512. 21
Ibidem, p. 517. (grifos do autor)
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como um todo resultaria ento numa metafsica gentica de fundamento biolgico22
.
1.2 Outras questes presentes na filosofia schopenhaueriana
Alm do nosso objeto de pesquisa, podem-se mencionar ainda outras
questes, entre elas trs contradies que foram expressamente referidas por Schopenhauer e
que adiante discutiremos. Algumas das dificuldades que notamos nos parecem ser superficiais
ou aparentes, enquanto outras talvez tenham razes mais profundas. Em contextos superficiais,
encontram-se embaraos que no comprometem a integridade do conjunto e podem ser
conciliados com suas premissas bsicas. Em nveis mais internos, h aqueles que podero
estar radicados nas fundaes do sistema. Segundo pensamos, no decurso da formulao da
sua filosofia, Schopenhauer acaba se deparando com diversos problemas que precisa resolver
tomando por base seu pensamento nico. Essa tarefa, no entanto, no nada fcil, pois as
solues precisam ser harmonizadas com um mundo que possui dois lados mutuamente
excludentes. Enquanto representao, o mundo se caracteriza pela necessidade, em virtude de
ser construdo pelo princpio de razo suficiente, mas, ao mesmo tempo, tem sua essncia em
algo totalmente oposto, uma Vontade imanente absolutamente livre, cega e sem objetivo. Em
funo disso, constantemente surgem contrastes, conflitos e oposies insuspeitadas, que nem
sempre podem ser levadas a bom termo.
Essa viso no nova na histria da recepo da filosofia de
Schopenhauer, e no nos parece estar ultrapassada. A ttulo de exemplo, mencionamos uma
obra do sculo XIX e outra do XXI, ambas com concepes similares. A primeira delas a de
Louis Ducros, intitulada Schopenhauer, les origines de sa mtaphysique, de 1883, que analisa
o pensamento schopenhaueriano na perspectiva da Vontade23
. Esse autor delineia a trajetria
de construo da metafsica do filsofo, que admite a presena da coisa em si e a define como
22
Ibidem, p. 520. 23
DUCROS, L. Schopenhauer, les origines de sa mtaphysique: ou les transformations de la chose en soi de
Kant a Schopenhauer. Paris: Germer Baillire & Co, 1883.
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Vontade, comparando-a com as de Kant, Fichte e Schelling. Nas filosofias destes ltimos,
conforme Ducros, a vontade tomada como coisa em si tambm ocupa um papel fundamental,
tanto quanto na de Schopenhauer. Sua concluso, porm, de que o pensamento deste ltimo
repleto de contradies devidas combinao de duas linhas tericas antagnicas, a saber,
um idealismo crtico e um realismo dogmtico24
. Ento, ele escreve,
Leiam o primeiro livro de O Mundo como representao e vontade; em
nome dos princpios do criticismo, Schopenhauer demonstra que o mundo
no seno uma representao, menos que isso, uma iluso do esprito; no
se poderia ser mais idealista. Abram o segundo livro e percebero uma
linguagem totalmente diferente: os princpios crticos so abandonados,
ressuscitam-se as realidades, elevam-nas ao posto de substncias, de coisas
em si, em uma palavra, apresenta-se tanto dogmtico e afirmativo no seu
realismo, que se criticou, quanto negativo no seu idealismo.25
A segunda obra, Aporie und Subjekt: die erkenntnistheoretischen
Entfaltungslogik der Philosophie Schopenhauers26
, foi publicada por Martim Booms em 2003
e analisa a teoria do conhecimento de Schopenhauer com base no conceito de sujeito. Para
Booms, a filosofia schopenhaueriana repleta de aporias e de contradies, que, a seu ver,
no so devidas irracionalidade da Vontade, mas ao subsolo lgico da sua concepo de
sujeito. Com essa perspectiva, ele argumenta que a filosofia schopenhaueriana se rebela
contra seus prprios fundamentos. Nas palavras dele,
Um trabalho filosfico que se ocupa da filosofia de Schopenhauer se v em
face de enormes problemas de orientao, logo que algo atinge a
determinao de um possvel princpio, ou ento um ponto de acesso: um
dos mais notveis de todos os planos ( considerando o nvel de contedo
(1.1), o plano terico formal e o argumentativo (1.2), assim como a
correspondente delimitao histrico-filosfica complementar (1.3) e a
histria da recepo (1.4) responsvel pela caracterstica do pensamento de
Schopenhauer), consiste em sua anunciada heterogeneidade, em uma
divergncia e polaridade entre pontos de vista e abordagem metdica
distintos, os quais, por meio da permanente produo de mediaes, mantm
sua filosofia em um permanente estado de tenso e, com isso, conduzem a
inegveis aporias, crculos viciosos, mudanas de perspectiva e demolio de
argumentaes[...].27
Do nosso ponto de vista, h certos problemas que se situam na superfcie
do edifcio terico schopenhaueriano e que podem ser descritos, de modo geral, como
concluses que o sistema no permitiria logicamente extrair, embora o filsofo o faa. Um
24
Ibidem, p. 150. 25
Ibidem, loc. cit. (traduo nossa) 26
BOOMS, Martin. Aporie und Subjekt: die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der Philosophie
Schopenhauers. Wurzburg: Knigshausen & Neuman, 2003. 27
Ibidem, p. 16. (traduo nossa)
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exemplo de tais dificuldades a suposio de poder expressar o enigma do mundo por meio
do conhecimento abstrato. A formulao do princpio de razo suficiente28
como forma nica
do conhecimento29
, cujas razes, em ltima instncia, possibilitam apenas perguntar pelas
razes e responder ao porqu das coisas30
, contrasta com a pretenso da filosofia
schopenhaueriana que, embora seja fruto de uma das figuras dele, do principium rationis
sufficientis cognoscendi, pretende demonstrar o qu do mundo, seu mais ntimo interior. Ou
seja, se o princpio de razo somente pode expressar a necessidade de um fundamento para
tudo o que existe, o enigma do mundo jamais poderia ser desvelado por meio dele, nem
poderia ser traduzido em conceitos. Em suma, a essncia do mundo no poder ser encontrada
seguindo-se as relaes causais que constituem a representao, tampouco se forem
oferecidas as razes de conhecimento dos juzos verdadeiros. necessrio um conhecimento
de tipo diferente pode alcan-la, a saber, o esttico ou o tico, mas nunca o racional. De fato,
afirma Schopenhauer, [...] a essncia ntima do mundo, a coisa em si, nunca pode ser
encontrada pelo seu mtodo [do princpio de razo]; porm, tudo o que com ele se pode
alcanar sempre dependente e relativo, apenas fenmeno, no a coisa em si[...]31
.
Uma segunda dificuldade pode ser apontada no tocante ao conhecimento
do sujeito acerca de seu prprio interior. Conforme Schopenhauer, nossa vontade individual
nos d a conhecer, de modo imediato, o processo interno da causalidade, pois a lei de
motivao ela mesma vista por dentro32
. Em Da qudrupla raiz do princpio de razo
suficiente (doravante, Da qudrupla raiz...), Schopenhauer afirma sobre esse ponto que A
atuao do motivo no conhecida por ns apenas como so todas as outras causas, de fora e
de modo indireto, mas ao mesmo tempo de dentro, de modo totalmente imediato e, portanto,
em sua completa forma de ao33
. Em contraste com isso, porm, no item intitulado
Astronomia Fsica de Sobre a Vontade na Natureza, o filsofo discorre sobre as diferenas
que se notam entre causas e efeitos, conforme se ascende na escala progressiva dos seres, e
28 No segundo captulo, abordaremos o princpio de razo suficiente de modo detido. 29
Existe tambm o modo de conhecimento esttico, no qual se abandona o fio condutor do princpio de razo e
alcanam-se as Ideias, entendidas como graus de objetivao da Vontade e formas eternas das coisas. Para
Schopenhauer, elas so refletidas pela obra de arte, cuja contemplao leva intuio imediata da vida e da
natureza por um indivduo transformado em puro sujeito do conhecer. H tambm o conhecimento obtido pela
converso tica, que descortina a essncia da Vontade e leva a neg-la. No obstante, o conhecimento filosfico
no do mesmo tipo do esttico ou do tico, mas tem de seguir o princpio de razo suficiente do conhecer. ,
segundo Schopenhauer, a apresentao in abstracto do que foi conhecido in concreto. 30
V, 4, p. 15; CR, 4, p. 33. 31
WWV I, ersters buch, 7, p. 67; M I, Livro I, 7, p. 78. 32
V, 43, p. 173; CR, 43, p. 208. 33
V, 43, p. 173; CR, 43, p. 208.
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que determinam uma perda progressiva da compreensibilidade do processo de causao34
. A
maior inteligibilidade possvel da causalidade est nos processos mecnicos, em que causas e
efeitos so qualitativamente homogneos. Quando a causa de uma natureza e o efeito de
outra, a conexo causal vai deixando progressivamente de ser evidente. Como ele explica,
Aquela relao inversa em que se esclarecem a causalidade e a Vontade,
aquele modo alternante de avanar e recuar de ambas deriva de que, quanto
mais uma coisa nos dada como simples fenmeno, isto , como
representao, mais clara se mostra a forma a priori da representao, isto ,
a causalidade: assim na natureza inanimada; mas, inversamente, quanto
mais imediatamente a Vontade nos consciente, mais retrocede a forma da
representao, a causalidade, como conosco mesmos. Assim, quanto mais
um lado do mundo se aproxima, mais perdemos o outro de vista.35
Por conseguinte, quanto mais a Vontade se manifesta nos fenmenos,
mais incompreensveis eles so, porque se afastam da causalidade. O princpio de razo
suficiente do devir estaria, assim, em uma relao inversa de compreensibilidade com a
Vontade, o que entra em conflito com o carter mais conhecido atribudo vontade
individual, em funo da lei de motivao. A questo que se abre ento a de saber como
podemos conhecer melhor e mais profundamente algo, sem o intermdio da forma intelectual
responsvel pelo conhecimento. Mais que isso, como a lei de motivao pode ser a
causalidade vista por dentro, se elas devero se excluir mutuamente?
Apesar de serem complicadores da filosofia de Schopenhauer, esses
impasses no adentram profundamente no seu pensamento e talvez possam ser dissolvidos
com algum esforo e boa vontade intelectual. H alguns outros, no entanto, cuja resoluo no
to simples e que o prprio filsofo admitiu terem sido resolvidos apenas imperfeitamente.
Com efeito, Schopenhauer assinala o que entende serem trs oposies (Gegenstze)36
,
imputadas por ele distino entre representao e Vontade. A primeira, estudada por ns em
dissertao de mestrado, ocorre entre a afirmao da existncia de uma ao livre no mundo
fenomnico, no momento de negao da Vontade, e a necessidade que rege todas as aes
humanas. No fim de contas, considerando-se o conjunto das colocaes do filsofo sobre essa
questo, sua filosofia refletiria um fato presente no prprio mundo e na Vontade mesma,
definida como autoconflitante e autodestrutiva. Embora possa ser explicada, a contradio
34
WN, p. 411 ss; VN, p. 138 ss. 35
WN, p. 418; VN, p. 146. 36 A exposio desses problemas pode ser conferida em: PP I, Transzendente Spekulation ber die anscheinende absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen, p. 271; Especulacin transcendente sobre los visios de
intencionalidade en el destino del individuo. In: Los designios del destino. Estudio preliminar, traduccin y notas
de Roberto Rodrgues Aramayo. Madrid: Tecnos, 1994, p. 44.
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acaba no sendo dissolvida e permanece tanto no mundo, quanto no discurso.
A segunda oposio estabelece simultaneamente o nexus effetivus e o
nexus finalis na natureza, ou seja, o mecanicismo e o finalismo que ocorrem ao mesmo tempo
nos fenmenos naturais37
. Schopenhauer sustenta que entre objetos naturais distantes no
espao e heterogneos entre si h uma espcie de compatibilidade, que parece ser orientada
por algum tipo de finalidade. Tal finalidade, porm, no pode ser explicada por processos
mecnicos e lineares, que so o escopo do princpio de razo, nem pelo conceito de causa que
ele estabelece, pois este no se coaduna com a admisso de um ser que se origine ou se
organize a si mesmo. Dessa concepo da causalidade, inclusive, decorrem todas as diversas
crticas que Schopenhauer tece ao conceito de causa sui. Alm disso, por ser cega e sem
objetivo final, a Vontade no permitiria a afirmao de uma teleologia na natureza. No
obstante, essa teleologia afirmada como existente pelo filsofo e explicada metaforicamente.
A terceira oposio mencionada por Schopenhauer concerne ao contraste
entre a contingncia dos acontecimentos da vida individual e a necessidade moral que a
determina38
. De acordo com ele, embora embotada e sem finalidade, a Vontade originaria um
todo coerente e ordenado na vida humana. No ntimo das pessoas, e sem o seu conhecimento,
ela dirigiria todas as aes em funo de seus prprios fins, de maneira que os eventos
isolados e aparentemente desconexos das trajetrias de vida individuais concorreriam para
uma manifestao uniforme do ser como um todo. Por conseguinte, haveria uma contradio
entre a vida do indivduo, constituda por uma srie de acontecimentos fortuitos, e os fins
morais da Vontade, que ele perseguiria independentemente de seu prprio consentimento. No
fim de contas, sem que soubesse, o ser humano estaria sendo conduzido pela Vontade meta
final de negao de si mesma39
. Porm, como evidente, tais ideias so completamente
opostas de uma Vontade obtusa, sem fim e sem alvo, um dos pilares da filosofia
schopenhaueriana.
Outra dificuldade de consequncias significativas foi apontada por
Eduardo Brando, em sua tese de doutorado intitulada A concepo de Matria na obra de
Schopenhauer40
. Brando evidencia o modo como o filsofo incorreu em contradies e
incoerncias de importantes desdobramentos, na formulao da sua viso a respeito da
37
Ibidem, loc. cit.; ibidem, loc. cit 38
Ibidem, loc. cit.; ibidem, loc. cit. 39
Ibidem, p. 272; ibidem, p. 44-45. 40
BRANDO, E. A concepo de matria na obra de Schopenhauer. So Paulo: Humanitas, 2008.
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matria. Segundo esse autor, o incio do processo se deu com as mudanas realizadas por
Schopenhauer em sua teoria da representao, pelas quais a noo de matria passou a ter dois
sentidos. O primeiro sentido consiste na definio de matria como Stoff, enquanto
determinada no tempo e no espao e identificada com os estados perceptveis da causalidade.
O segundo sentido o da matria enquanto Materie, indeterminada, fora do tempo e do
espao, que passa a constituir a substncia que est na base dos acidentes representados pela
matria como Stoff41
.
Essa reformulao, diz Brando, acabou por obscurecer as relaes entre
Vontade e matria, bem como a ligao desta ltima com o sujeito cognoscente. De um lado,
a matria passaria a se confundir com o absoluto, medida em que, em diversas passagens,
Schopenhauer afirma ser absolutum aquilo que nunca surge nem perece, aquilo cujo quantum
nunca se altera, que so tambm caractersticas da matria como Materie. Nessa perspectiva,
o filsofo teria chegado ao mesmo resultado dos ps-kantianos que ele criticava, assim como
substncia tal como pensada por Espinosa42
. De outro lado, no tocante s relaes entre
matria e sujeito cognoscente, a reformulao da teoria da representao por Schopenhauer
teria levado a uma mudana na noo de objeto. Segundo Brando, o mundo como
representao deixa de ser entendido a partir da correlao entre sujeito e objeto, e passa a ter
dois polos distintos, a saber, sujeito e matria como Stoff. Isso, no entanto, desloca a noo de
objeto, que passa ento a ser superposta de matria. Na opinio de Brando, o
estabelecimento dos dois sentidos para o conceito de matria, em O mundo como vontade e
representao: tomo II, complementos (doravante, O Mundo...II), foi importante para que a
noo de mundo mantivesse um trao idealista. Sem isso, a filosofia de Schopenhauer recairia
em um materialismo, j que a nica matria admitida seria a posteriori, ou seja, Stoff, com
riscos atribuio de um sentido moral ao mundo. No entanto, o conceito de matria tambm
teria sido pensado por Schopenhauer contra os idealistas do seu tempo, da a importncia de
coloc-la como visibilidade da Vontade. Assim, conclui Brando,
Seguindo a lio de Lebrun, talvez fosse ento mais correto enxergar na
noo de Materie de Schopenhauer uma estrutura aportica, em que cada
lado realado conforme o inimigo a ser combatido: se o materialismo, a
matria abstrao, ens rationis, fenmeno; se o idealismo absoluto,
Berkeley, incluso o fenmeno, a matria, o objeto precisa ser algo em si,
41
BRANDO, E. A concepo de matria em Schopenhauer e o absoluto. In: SALLES, J.C. (Org.).
Schopenhauer e o Idealismo Alemo. Salvador: Quarteto, 2004, p. 52. 42
Ibidem, p. 50.
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como ocorre nos Complementos de O Mundo.43
Essa duplicidade de perspectiva, bem como as transformaes e
deslocamentos conceituais realizados por Schopenhauer na teoria da representao, teriam
repercutido na sua filosofia como um todo, com efeitos profundos:
Esta estrutura aportica tem suas caractersticas prprias: a Materie
causalidade abstrata, atividade abstrata, mas tambm inerte, imvel; dada a
priori mas s surge como abstrao. No limite, preciso no perder de vista
que, se a lectio purissima sobre a matria ensina a imaterialidade da matria,
que ela um substrato lgico, meramente acrescentado pelo pensamento
como o permanente dos fenmenos, h em contrapartida passagens em que
ela parece, de fato, concreta.44
Outra consequncia que, segundo pensamos, poderia ser da extrada a
de que, no fim de contas, a filosofia de Schopenhauer apresenta-se como um dualismo e no
como um monismo. Com efeito, monista aquela filosofia na qual h apenas um ser, uma
substncia, uma nica essncia qual tudo se refere, seja no mundo animado, seja no
inanimado. A princpio, a Vontade seria essa substncia nica, pois descrita como tudo no
todo, o e o de toda a existncia e do prprio mundo. Porm, como entender o monismo
schopenhaueriano frente s caractersticas atribudas matria como Materie, conforme a
exposio da obra de Eduardo Brando? Schopenhauer declara sua filosofia como a exposio
de um pensamento nico, no qual aparece a Vontade como a verdadeira substncia,
subjacente ao mundo como um todo. Quaisquer objetos existentes, animados ou inanimados,
so vistos por essa filosofia como manifestao desse ente nico, razo pela qual teramos de
afirmar que se trata de um pensamento monista. Todavia, possvel perceber traos de
dualismo no pensamento de Schopenhauer, quando a matria tratada como o absoluto, ou
mesmo quando o intelecto se ala ao posto de superioridade que necessrio para negar a
Vontade, a substncia primordial. primeira vista, esses poderiam parecer problemas
marginais, que apenas realariam o peso da matria ou do conhecimento no universo
conceitual schopenhaueriano como um todo. No entanto, bastante embaraoso que matria e
conhecimento se coloquem, mesmo que em circunstncias especficas, em situao de
igualdade com a Vontade.
43
BRANDO, E. A concepo de matria na obra de Schopenhauer. So Paulo: Humanitas, 2008, p. 329-330.
(grifos do autor) 44
Ibidem, loc. cit. (grifos do autor)
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- 30 -
1.3 Investigao acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento
Para uma boa compreenso das questes mencionadas, que so de
naturezas distintas, apresentaremos nossas opes conceituais acerca de cada um delas. De
fato, verificamos frequentes divergncias nesse tocante, tanto nas obras de Schopenhauer
quanto de seus comentadores, o que prejudica o entendimento do nosso tema. A questo que
nos ocupa, por exemplo, vista por Schopenhauer indistintamente como contradio e como
antinomia45
. Portanto, necessrio explicitar com clareza onde esto problemas, para ento
direcionarmos a ateno aos pontos exatos. De nossa parte, concordamos com Bacon, quando
afirma que a verdade emerge mais rapidamente do erro do que da confuso46
.
Os conceitos de contradio, paradoxo e antinomia so definidos com
caractersticas especficas, embora correlacionadas. De um modo geral, possvel definir a
contradio como a atribuio a um sujeito, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, de
qualidades ou relaes mutuamente excludentes. Todas as formas em que ela pode se
manifestar so apoiadas no princpio de no contradio, pressuposto, tambm, nas definies
de paradoxo e de antinomia. O princpio de no contradio entendido na lgica clssica
como uma das leis mximas do pensamento, ao lado dos de identidade e do terceiro excludo,
os quais, em conjunto, so considerados as condies necessrias e suficientes para o
pensamento correto. Embora no tenham sido aceitos sem crticas, j que em diversos
momentos ao longo da Histria questionou-se se teriam o estatuto de leis e se deveriam
mesmo ter primazia na lgica, os trs princpios foram admitidos em geral como
fundamentais.
De uma perspectiva informal, antinomia e paradoxo so noes anlogas
e podem ser definidos como argumentos aparentemente corretos, cujas premissas so
aceitveis, mas no a concluso. Em conformidade com essa posio, a maioria dos manuais e
dicionrios de Lgica apresentam paradoxo e antinomia como sinnimos. No obstante, de
45
Schopenhauer escreve: Diese zwei widersprechenden Ansichten, auf jede von welchen wir in der That mit
gleicher Notwendigkeit gefhrt werde, knnte man allerdings wieder eine Antinomie in unserm
Erkenntnivermgen nennen []. Cf.: WWV I, ersters buch, 7, p. 65, M I, Livro I, 7, p. 76. 46
BACON, F. The New organon. New York: Cambridge University Press, 2000, Book II, Aphorism XX, p. 130.
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um ponto de vista formal e mais rigoroso, no se pode entend-los como conceitos idnticos.
o que afirma o lgico Newton da Costa, ao definir uma antinomia formal como sendo
aquela evidenciada em uma teoria formalizada que se mostre trivial metaterica ou
epistemologicamente. Paradoxo formal, por seu turno, a derivao de dois teoremas
contraditrios em uma teoria formalizada. Como explica Da Costa, pela definio usual da
lgica clssica, [uma teoria] T antinmica se, e somente se, nela se puder derivar um
paradoxo47
.
Embora no tencionemos formalizar a filosofia Schopenhauer, optamos
por no considerar antinomia e paradoxo como sinnimos. No obstante, no nos ateremos
estritamente s noes formais de paradoxo e antinomia expostas por Da Costa, se bem que os
conceitos que manteremos se aproximam claramente dos que ele prope. Segundo pensamos,
nosso propsito nesta tese exige que preservemos, no conceito de antinomia, a marca das
discusses realizadas por Kant na Crtica da razo pura, por ser esse o entendimento que
Schopenhauer explicitamente adota. Kant chama de antinomias os resultados tericos do
conflito das leis da razo, surgidos no uso emprico dessa faculdade48
. Para ele, na condio
mximas para a orientao do entendimento acerca da totalidade do conhecimento do mundo,
as ideias da razo so regulativas, mas no possuem validade emprica. As antinomias
consistem na contraposio de teses e antteses que supostamente afirmariam verdades
empricas, relacionadas totalidade incondicionada do mundo. Por serem derivadas da
prpria razo, seriam naturais e inevitveis. Nas palavras de Kant, as antinomias originam-se
[...] quando se aplica a razo sntese objetiva dos fenmenos; a pretende,
certo, e com muita aparncia, fazer valer o seu princpio da unidade
incondicionada, mas em breve se enreda em tais contradies, que se v
forada a desistir da sua pretenso em matria cosmolgica.49
No nos interessa discutir todas as implicaes da teorizao kantiana
sobre esse ponto, mas apenas ressaltar sua conceituao e mostrar o modo como teses e
antteses se contrapem. Para isso, ressaltamos uma caracterstica fundamental das antinomias
entendidas desse modo, a saber, embora sejam mutuamente excludentes, tanto as teses quanto
as antteses so legtimas e demonstrveis logicamente. Nesse sentido, Kant afirma que
Quando no nos limitamos a aplicar a nossa razo, no uso dos princpios do
entendimento, aos objetos da experincia, mas ousamos alargar esses
47
DA COSTA, N. Ensaio sobre os fundamentos da lgica. 3 ed., So Paulo: Hucitec, 2008, p. 221. 48
KvR, A406/B433 A408/B435; CRP, p. 379-380. 49
KvR, A407/B433; CRP, p. 379. (grifos do autor)
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princpios para alm dos limites desta experincia, surgem teses sofisticas,
que da experincia no tm a esperar confirmao, nem refutao a temer, e
cada uma delas no somente no encerra contradio consigo prpria, mas
encontra mesmo na natureza da razo condies da sua necessidade; a
proposio contrria, porm, infelizmente, tem por seu lado fundamentos de
afirmao igualmente vlidos e necessrios.50
Exporemos somente a primeira antinomia, a ttulo de exemplo, pois o
procedimento kantiano em relao s outras o mesmo. A primeira antinomia da razo tem
como tese a proposio O mundo tem um comeo no tempo e tambm limitado no espao,
e como anttese O mundo no tem comeo nem limites no espao; infinito tanto no tempo
como no espao51
. Cada uma delas provada indiretamente, pela refutao da sua contrria.
Assim, Kant busca a prova da tese por meio das consequncias que se podem extrair da
admisso da anttese, segundo a qual o mundo no limitado no tempo nem no espao. Por
um lado, no caso de no ser limitado no tempo, um instante determinado exigiria um decurso
infinito de tempo e de estados sucessivos dos objetos, antes que pudesse ser dado. No entanto,
diz Kant, a infinitude dessa srie anterior ser pensada como nunca concluda, o que tornaria
impossvel a prpria existncia do mundo. Com isso, um incio em um ponto do tempo torna-
se condio necessria para a existncia do mundo52
. Por outro lado, se for admitida a
infinitude no espao, o mundo ter de ser pensado como um todo infinito de objetos
simultneos. Esse todo, porm, s pode ser pensado por ns como sntese sucessiva das
partes, e no poderamos englob-lo em uma intuio com limites determinados. A sntese
sucessiva das partes de um mundo infinito no espao precisaria ser completada e isso, por sua
vez, exigiria um tempo infinito para a enumerao de todas as coisas que se justapem. Da,
conclui o filsofo, [...] um agregado infinito de coisas reais no pode considerar-se um todo
dado, nem portanto dado ao mesmo tempo. O mundo no , pois, infinito quanto extenso
no espao, antes encerrado em limites; [...]53
.
De modo semelhante, a anttese provada pela refutao da tese.
Supondo-se que o mundo possui um incio, preciso admitir que houve um tempo vazio em
que no existia. Entretanto, nada poderia surgir em um tempo vazio, na medida em que no se
poderia distinguir uma parte sua de outra, tampouco a existncia de algo da no existncia. No
tocante ao espao, admitindo-se que o mundo tem limites, ter de ser suposto um vazio
ilimitado, onde ele ento se encontrar situado. Nesse caso, porm, o mundo estaria em
50
KvR, A421/B449; CRP, p. 389. (grifos do autor) 51
KvR, A426/B454 A427/B455; CRP, p. 392-393. 52
KvR, A426/B454; CRP, p. 392. 53
KvR, A428/B446; CRP, p. 394. (grifos do autor)
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relao com algo que no propriamente um objeto, j que fora dele mesmo no h nenhum.
E, diz Kant, [...] semelhante relao no nada e, consequentemente, tambm nada a
limitao do mundo pelo espao vazio; portanto, o mundo no limitado quanto ao espao,
quer dizer, infinito em extenso54
.
Kant conclui acerca das quatro antinomias que, nas duas primeiras, as
contradies surgem porque o espao, o tempo e a simplicidade so pensados como coisas em
si, quando so na verdade conceitos com idealidade transcendental. Em virtude disso, o
mundo em si acabaria sendo convertido em objeto de conhecimento, o que impossvel, e
assim tanto as teses quanto as antteses seriam falsas. Nas duas ltimas antinomias, por seu
turno, as teses e as antteses seriam verdadeiras, mas referentes a realidades distintas, a saber,
as teses aos nmenos, e as antteses, aos fenmenos. Como resultado, Kant encontra que o
conflito de leis da razo pura produz as antinomias, as quais se configuram como a
formulao de duas vias tericas distintas que apresentam o mundo com caractersticas
excludentes, mas que possui cada uma as suas justificaes. Enquanto derivadas da prpria
constituio da razo, so resultados naturais e no podem ser extintas ou completamente
dissolvidas.
O conceito de paradoxo possui uma raiz antiga (), como
opinio que contraria os conhecimentos comumente aceitos como verdadeiros. Do ponto de
vista informal, trata-se de um argumento de vlido, mas cuja concluso no pode ser aceita
porque implica um problema lgico ou de natureza emprica. Nas histrias da lgica e da
filosofia, verificaram-se e discutiram-se diversos tipos de paradoxos e, a ttulo de uma
organizao mnima, lanaremos mo da classificao feita por Da Costa55
. Este terico
destaca, em primeiro lugar, os paradoxos lgico-matemticos, que se relacionam com as
noes formais da lgica e da matemtica. Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo o
paradoxo das classes, apontado por Russell na lgica de Frege. Nesse paradoxo, surge um
problema com a classe de todas as classes que no so membros de si mesmas, quando se
indaga se ela ou no membro de si mesma. Caso a resposta seja afirmativa, a classe de todas
as classes que no so membros de si mesmas ter um membro que membro de si mesmo.
Se a resposta for negativa, a classe de todas as classes que no so membros de si mesmas no
conter a si mesma, embora devesse conter, pois seria uma classe que no contm a si mesma.
Por conseguinte, qualquer opo que se faa resultar paradoxal.
54
KvR, A429/B457; CRP, p. 395. 55
DA COSTA, N. op. cit., p. 225.
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O segundo tipo de paradoxos o semntico, derivado do uso da
linguagem, cujo exemplo mais tpico o chamado paradoxo do mentiroso. Nesse caso, o
paradoxo surge da anlise da proposio Esta sentena falsa. Por um lado, se a
considerarmos verdadeira, o que ela afirma verdade, e ela ser, simultaneamente, falsa, pois
isso que assevera. Por outro lado, se a considerarmos falsa, aquilo que ela afirma no
verdadeiro, e, portanto, a sentena estar negando sua falsidade e afirmando sua verdade. Em
ambos os casos, a verdade da proposio Esta sentena falsa implica a prpria falsidade, e
vice-versa. O ltimo grupo de paradoxos envolve conceitos e conhecimentos empricos, como
o conhecido paradoxo de Aquiles e a tartaruga, formulado Zeno de Eleia para negar a
realidade do movimento. Nesse paradoxo, est envolvida a ideia de divisibilidade infinita do
espao, um conceito apreensvel apenas pela razo, sem correspondncia intuitiva. Segundo a
formulao clssica, Aquiles e uma tartaruga apostam corrida e partem simultaneamente, mas
com um metro de vantagem dado ao animal. Embora Aquiles seja muito mais veloz, quando
avana o metro dado tartaruga, esta avana dez centmetros; quando o heri percorre esses
dez centmetros, a tartaruga corre um centmetro, e assim sucessivamente. Por conseguinte,
mesmo avanando infinitamente, a distncia entre ambos nunca ser igual a zero e Aquiles
jamais alcanar a tartaruga.
De acordo com Da Costa, pode-se solucionar um paradoxo de dois
modos diferentes. Um deles o negativo, em que se prova que sua concluso , na verdade,
uma falcia formal ou material. Caso se trate de uma falcia formal, deve-se demonstrar que o
argumento possui uma forma lgica invlida; caso se trate de uma falcia material, deve-se
provar que uma das premissas factualmente falsa. A segunda maneira, positiva, de se
solucionar um paradoxo mostrando que sua concluso realmente verdadeira. Em suma,
para resolver um paradoxo, seria necessrio reduzi-lo a falcia ou justificar sua concluso.
O conceito de aporia est relacionado aos anteriores e se define por ser
uma dificuldade terica cuja soluo muito trabalhosa ou impossvel. A forma em que
aparece pode ser a de uma antinomia ou de um paradoxo, e o que a distingue a exigncia de
grandes esforos para seu desenlace, ou a inexistncia de qualquer sada. Os modos pelos
quais uma aporia poderia ser resolvida so os mesmos que resolveriam um paradoxo, isto ,
sua reduo a falcia ou a justificao da sua concluso. No entanto, no caso especfico das
aporias, a resoluo demandaria esforos tericos excessivos e a reviso dos princpios
bsicos das teorias. Normalmente, segundo Da Costa, as aporias so solucionadas pela via
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negativa, mostrando-se que se tratam de falcias ou que possuem uma premissa falsa, para
que assim se evite uma reviso completa dos fundamentos da teoria em questo56
. Portanto, a
soluo positiva delas no tarefa fcil, pois requer grandes mudanas, como a transformao
completa do sistema formal em que se apoia ou a reestruturao de teorias.
Com base no exposto acima, julgamos que a antinomia da faculdade de
conhecimento no se revela uma contradio, um paradoxo e nem mesmo uma antinomia. No
nosso entender, como mostraremos a seguir, trata-se mais propriamente de um tipo especial
de circulus in probando que envolve a possibilidade do conhecimento e sua relao com o
tempo. Na verdade, a questo no simples de ser decidida, pois, em termos latos, o problema
poderia ser enquadrado em qualquer das noes apresentadas, mesmo com as diferenas que
apontamos. Todavia, uma escolha deve forosamente ser feita, se quisermos compreender a
fundo e precisamente o problema com o qual nos ocupamos. Para isso, utilizaremos a
exposio e a argumentao anteriores como os apoios de que necessitamos para tornar nossas
opes menos arbitrrias.
Em primeiro lugar, parece-nos que o problema da teoria do conhecimento
de Schopenhauer no pode ser entendido como contradio. De fato, o filsofo escreve que a
existncia do mundo inteiro depende do primeiro ser cognoscente e tambm que o primeiro
animal cognoscente depende de uma longa cadeia precedente de causas e efeitos57
, isto ,
subordina-se existncia do mundo como representao. Quando analisamos esse problema
do ponto de vista do desrespeito norma lgica bsica de que a concluso deve ser
consequncia das premissas, isto , se as premissas forem verdadeiras, que a concluso
tambm o seja, notamos que no se aplica a esse caso. O que temos aqui so duas concluses,
provindas de dois lados distintos do pensamento schopenhaueriano tomado como um todo.
Cada uma das concluses tem suas ilaes prprias, que so suficientes para justific-lo, de
modo que no se observam premissas verdadeiras levando a uma concluso falsa. De modo
semelhante, no h a atribuio simultnea, ao primeiro ser cognoscente, de qualidades ou
relaes mutuamente excludentes. No se afirma, por exemplo, que o mundo da representao
depende e no depende dele, simultaneamente. O mesmo se pode afirmar em relao ao
desrespeito ao princpio de no contradio, segundo o qual um enunciado no pode ser
tomado como verdadeiro e como falso a um s tempo e sob aspectos idnticos. De fato,
ambas as proposies da antinomia no esto em uma oposio direta, ou seja, no se pode
56
DA COSTA, N. op. cit., p. 226. 57
WWV I, ersters buch, 7, p. 65, M I, Livro I, 7, p. 75.
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dizer que uma a negao exata da outra.
Uma possibilidade diferente seria a anlise de cada sentena da
antinomia como uma proposio condicional. Na primeira, a existncia do animal
cognoscente (A) seria o antecedente do qual decorreria o consequente, a existncia do mundo
como representao (M): A M. Na segunda, os termos estariam trocados e o mundo como
representao seria o antecedente, enquanto o primeiro animal seria o consequente: M A.
No obstante, a contradio de uma proposio condicional resulta do rompimento da relao
de implicao entre o antecedente e o consequente, isto , caso acontea de o antecedente ser
verdadeiro e o consequente ser falso. Portanto, s poderamos falar em contradio, caso no
discurso schopenhaueriano estivesse afirmado, ao lado das duas proposies da antinomia,
que o animal cognoscente em algum momento existiu, mas no mundo como representao:
A M; ou, inversamente, que o mundo da representao existe, mas no o animal
ognosente: M A. A rigor, A M e M A no se contradizem.
No nosso entender, a antinomia da faculdade de conhecimento no deve
tambm ser enquadrada entre os paradoxos, em sentido rigoroso. Como j expusemos,
paradoxo formal a derivao de dois teoremas contraditrios em uma teoria formalizada,
mas nossa anlise anterior demonstrou que os dois enunciados da antinomia no esto em
uma relao de contraditoriedade. Tomando em considerao o conceito mais geral de
paradoxo, talvez se pudesse afirmar que as duas concluses paralelas so paradoxais, na
medida em que o argumento de cada uma possui premissas verdadeiras, mas concluses
inaceitveis, quando comparadas entre si. Porm, como estamos buscando uma preciso
crescente do nosso objeto de estudo, cremos que esse conceito de paradoxo muito amplo, a
ponto de abranger distintas classes de problemas, o que no nos auxilia.
Alm disso, segundo pensamos, nenhum dos tipos de paradoxos que
examinamos possui a forma da antinomia da faculdade de conhecimento. Os paradoxos
lgicos-matemticos envolvem autocontradio, trazendo como consequncia que a atribuio
de qualquer dos valores de verdade, V ou F, s proposies envolvidas resultar sempre em
uma proposio falsa. Por exemplo, no caso do paradoxo das classes, de Russel, se
respondermos afirmativamente questo de saber se a classe de todas as classes que so no
membros de si mesmas pertence a si mesma, teremos uma proposio falsa, pois a classe de
todas classes que no so membros de si mesmas ter um membro que no pertence a ela, isto
, uma classe que membro de si mesma. Se respondermos negativamente, a classe de todas
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as classes que no so membros de si mesmas no conter a si mesma, mas ento seu carter
universal ser posto em xeque, pois haver um membro que deveria estar dentro dela e,
todavia, est fora. Nesse exemplo, a resposta pergunta sobre a classe de todas as classes no
admite resposta verdadeira, e essa outra forma de conceituar a contradio, a saber, se o
valor de verdade resultante de uma frmula sempre falso. No entanto, o problema da
antinomia da faculdade de conhecer no se assemelha a esse caso. Se tomarmos como
verdadeira cada concluso em separado, veremos que a existncia do mundo inteiro depende
necessariamente do primeiro ser cognoscente uma proposio perfeitamente consistente
consigo mesma, no levando a valores de verdade falsos, nem implicando verdade e falsidade
simultneas. O mesmo se pode dizer de o primeiro ser cognoscente depende de uma longa
cadeia de causas e efeitos que o precede. Na verdade, os problemas surgem quando se
colocam ambas as sentenas lado a lado.
Considerando os paradoxos semnticos, a relao lgica estabelecida
entre as proposies envolvidas ligeiramente diferente, embora tambm vejamos um tipo de
autocontradio envolvida. Tomando o exemplo do paradoxo do mentiroso, observamos que a
verdade da proposio Esta sentena falsa (S) acarreta sua prpria falsidade, enquanto sua
falsidade acarreta a prpria verdade. Com efeito, se a proposio verdadeira, o que ela
afirma deve ser falso, e o resultado pode ser expresso assim: (S)V(S)F. Do mesmo modo,
se o que a proposio afirma falso, ela deve ser verdadeira: (S)F(S)V. Mais uma vez, no
esse o tipo de oposio que se percebe na antinomia da teoria do conhecimento de
Schopenhauer. Cada parte dela no implica a prpria verdade e falsidade simultaneamente,
nem mesmo a juno de ambas implica.
No tocante aos paradoxos empricos, a semelhana com o nosso objeto
de estudo parece ser maior, pois a dificuldade lgica surge pela impossibilidade de se pensar
claramente a questo, como numa espcie de interrupo do pensamento frente a um impasse
que envolve tambm conhecimentos empricos. O exemplo do paradoxo de Aquiles e a
tartaruga evidencia uma necessidade, decorrente do prprio intelecto, de continuar realizando
a diviso da extenso ao infinito, embora a velocidade de Aquiles imponha ao pensamento a
ideia de que ele deve se sobrepor divisibilidade contnua do espao e ultrapassar a tartaruga.
Contudo, no nosso entendimento, no exatamente isso o que comparece no nosso objeto de
estudo. Realmente, pensar que o mundo dependente do primeiro ser cognoscente e que, ao
mesmo tempo, o primeiro ser cognoscente depende da existncia do mundo no leva a um
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impasse desse tipo, algo que se pode pensar, ainda que somente tomando cada proposio de
modo separado. Os problemas surgem quando as pensamos juntas, mas a possibilidade que
existe aqui de se considerar cada poro do problema est excluda no caso dos paradoxos
empricos, pois eles se configuram como um todo indivisvel.
Sob a perspectiva do conflito de leis, que o conceito que adotamos para
antinomia, tambm no se verifica algo semelhante no nosso objeto. As antinomias, no
sentido kantiano, so teses e antteses contraditrias ou contrrias, que surgem do conflito da
razo pura consigo mesma. Aparentemente, esse seria o caso, pois, assim como as antinomias
kantianas, as duas proposies conflitantes da teoria do conhecimento de Schopenhauer tm
cada uma sua justificao lgica. Por um lado, das teses acerca do mundo tomado como
representao decorre, necessariamente, que ele s pode existir com apoio no sujeito; por
outro, das teses que sustentam a Vontade como o em si do mundo decorre, tambm
necessariamente, que ela se objetiva numa trajetria de refinamento at chegar ao crebro
humano. No entanto, ambas as proposies no esto entre si na mesma relao em que esto
as teses e antteses das antinomias formuladas por Kant, nas quais uma sempre a negao
explcita da outra. Alm disso, no se observa um conflito propriamente entre leis da razo ou
de outra coisa, mas sim uma discrepncia entre duas formas de descrever e explicar o mundo,
isto , entre dois discursos distintos, um pelo lado da representao e outro pelo lado da
Vontade. As antinomias kantianas derivam da constituio da razo pura, so como iluses
naturais e inevitveis. A de Schopenhauer, por seu turno, o resultado de um modo duplo de
compreender o mundo.
importante, ainda, analisarmos a antinomia do ponto de vista do que se
entende por petio de princpio ou crculo vicioso, pois assim que ela foi entendida em
grande parte das vezes. No 92 de Manual dos cursos de lgica geral, Kant afirma que se
comete pe