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    Esta msica se prope a manter-se firme e consciente ante a

    experincia da escuta regressiva. O espanto que Schenberg e Webern

    suscitam, agora como antes, no emana da sua incompreensibilidade,mas do fato de que so compreendidos bem demais. Sua msica

    configura de imediato aquele medo, aquele terror, aquela percepo da

    situao catastrfica da qual os demais apenas querem se safar,

    retrocedendo. So chamados individualistas, quando na realidade sua

    obra no mais do que um nico dilogo com os poderes que

    destroem a individualidade poderes cujas deformes sombrasincursionam hipertrofiadas em sua msica.

    Adorno, Sobre o Carter Fetichista da Msica e a Regresso da

    Audio

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    Agradecimentos

    profa Lia Toms por ter me orientado no mestrado, pela confiana depositada neste

    trabalho e pela liberdade que me concedeu.

    Ao prof. Flo Menezes pelas pertinentes crticas e comentrios, inclusive na banca de

    qualificao do mestrado.

    Ao prof. Mario Videira por ter participado da banca de qualificao e pela ateno

    que dedicou, nesta ocasio, leitura do trabalho.

    Ao prof. Jorge de Almeida, que me fez relembrar do primado do objeto.

    Ao Eduardo Socha pelas agradveis e proveitosas conversas de almoo que me

    alertaram para questes fundamentais.

    Patrcia Kruger pela ajuda sistemtica com a lngua alem.

    Raquel Simes, pelo companheirismo e pelas vrias ajudas ao longo do percurso.

    Aos funcionrios da UNESP que mantiveram o espao em funcionamento para a

    realizao da pesquisa de que este livro resultado.

    Por fim, CAPES pela bolsa de estudos concedida.

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    ndice

    Introduo......................................................................................................................7

    1 A expresso antes do expressionismo...................................................................13

    1.1 Paixes simuladas ...........................................................................................15

    1.2 Autonomia da forma e expresso ...................................................................24

    1.3 Harmonia ........................................................................................................422 Fetichismo: a expresso bloqueada.......................................................................61

    3 Expressionismo: o sismgrafo e a crtica da tradio ...........................................73

    4 Expresso e forma emErwartung.........................................................................85

    4.1 Estrutura Motvica ..........................................................................................88

    4.2 A crtica da autonomia e os novos meandros da tcnica temtico-motvica 105

    4.3 Figura e intervalo..........................................................................................116

    Consideraes Finais.................................................................................................131

    Bibliografia................................................................................................................139

    ANEXOS...................................................................................................................143

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    Introduo

    Foi necessrio que se adquirissem os princpios da pintura, da arquitetura, damsica, e se desenvolvessem estticas especiais. Sem dvida, as ltimas nopodem fundamentar-se mediante uma simples adaptao do conceito geral debeleza, porque este aceita em cada arte uma srie de novas distines. Cada artedeve ser conhecida nas suas determinaes tcnicas, [cada arte] quer sercompreendida e julgada a partir de si prpria (Hanslick, 2011, p. 8).

    J em meados do sculo XIX a metafsica do belo que, no dizer de Hanslick,

    subsumia as artes individuais a uma especulao metafsica sobre o belo em geral

    era vista como problemtica por dispensar a reflexo esttica de uma considerao

    particularizada sobre as questes tcnicas envolvidas em cada uma das artes e de uma

    anlise de como essas questes se apresentam nas obras singulares. Essa falta de

    vnculo entre a esttica e a anlise tcnica culminou, pouco mais de meio sculo

    depois, nas severas crticas de Arnold Schoenberg aos tericos da msica, os quais,

    segundo o compositor, emitiam juzos, a partir de noes infundadas de belo e feio,

    sobre msicas que no compreendiam (Schoenberg, 2001, p. 45). A acusao de

    Schoenberg se insere em um contexto no qual a especulao esttica sobre o belo

    degenerou-se, conforme afirma Dahlhaus, em justificao do estado de coisas

    existente, e em cujo nome os guardies de tradies esgotadas protestavam contra onovo, que no compreendiam e ao qual se fechavam (Dahlhaus, 2003, p. 11).

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    A defesa schoenberguiana da tcnica artesanal em detrimento do juzo esttico

    abstrato (Schoenberg, 2001, p. 41-47) pode ser tomado, ainda hoje, como uma

    advertncia sobre a importncia da considerao de questes tcnico-musicais para

    uma esttica musical que realmente pretenda compreender seu objeto. O que se

    encontra nas pginas seguintes o resultado de uma pesquisa atravessada desde o

    incio por essa preocupao de articular a esttica musical e a anlise. O impulso por

    esta articulao um dos poucos elementos que se mantiveram inalterados desde o

    incio deste trabalho.

    Nosso objeto o monodrama Erwartung, Op. 17 de Arnold Schoenberg,

    composto em 1909, uma das obras expressionistas do compositor. Ao afirmarmos

    que uma obra musical expressionista, criamos uma srie de questes ao invs de

    nos aproximarmos de sua essncia. Se nas artes plsticas a existncia de grupos e

    revistas expressionistas pode simplificar a tarefa de um pesquisador, possibilitando

    buscar nos prprios textos escritos por seus membros uma caracterizao do

    movimento, no caso da msica isto no ocorre: o que h no um movimento

    declarado, mas uma tendncia mais ou menos comum observada entre algunscompositores, os quais no se consideravam nem expressionistas, nem adeptos a

    qualquer ismo. O termo expressionismo pode referir-se a fenmenos muito

    diferentes, no entanto, certo que, entre as produes artsticas do expressionismo

    em geral1que datam das primeiras duas dcadas do sculo XX, encontra-se presente

    um impulso comum. Embora no se defina por formas especficas ou pordeterminados procedimentos gerais, este impulso comum constitui um horizonte

    esttico, apresentado por Adorno nos seguintes termos:

    Primariamente como expresso de um novo nimo apreendido na cultura, por umlado; resultado de um crescente desenraizamento dos compromissos de estilo, por

    1 Uma caracterizao ampla das questes estticas que estavam em jogo no contexto artstico doexpressionismo pode ser encontrada em Crtica Dialtica em Theodor Adorno(Almeida, 2007) e O Debatesobre o Expressionismo: um captulo na histria da modernidade esttica (Machado, 1991).

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    outro; criao e ao mesmo tempo reao, o Expressionismo coloca o Eu de modoabsoluto, exige o grito puro (Adorno, 2009a, p. 589)2.

    A postura esttica representada por Erwartung evidencia essas duas

    caractersticas: em primeiro lugar, a busca de uma expresso renovada e, em

    segundo, a desobrigao frente ao cnone tradicional e, mais do que isso, a imposiode uma ruptura com os padres formais e estilsticos que o constituem. A expresso

    exige, pois, a recusa dos procedimentos formais que at ento garantiam a

    inteligibilidade da msica. Assim, a postura esttica desta obra define tambm uma

    relao determinada entre expresso e forma, relao esta a cujo estudo este trabalho

    se dedica.Nosso objetivo amplo estudar a singularidade de Erwartung e do

    expressionismo, em geral naquilo que podemos denominar uma histria do conceito

    de expresso, o que inclui, confirme mencionamos acima, o estudo das relaes entre

    a expresso e seu oposto, a forma. Contudo, esta tarefa demandaria uma anlise

    aprofundada do monodrama em todos os seus aspectos, bem como um estudo maiscompleto da recepo da obra e dos escritos estticos que abordam o expressionismo.

    Isto tornaria possvel confrontar entre si tanto as abordagens analticas como as

    posies dos diferentes autores que participaram dessas discusses estticas. Tendo-

    se em vista que tal proposta tornaria a pesquisa demasiado extensa, optou-se por

    tomar como objeto a recepo da obra pelo filsofo Theodor Adorno, pois trata-se de

    um autor que abordaErwartung,inclusive em seus aspectos tcnico-musicais, a partir

    de uma esttica profundamente articulada com o pensamento filosfico como um

    todo3. Assim, um dos nossos objetivos desdobrar, na forma de uma anlise tcnica,

    a caracterizao que Adorno faz da obra, principalmente na sua Filosofia da Nova

    Msica.

    2 Este trecho pertence ao ensaio Expressionismo e Veracidade Artstica, em que o autor reflete sobre osimpasses da literatura expressionista. Embora o tema do ensaio seja a literatura, certamente possvelestender tambm para a msica o impulso esttico nela presente.3A respeito disto, vale salientar que aFilosofia da Nova Msica, de Adorno, foi concebida pelo autor comouma digresso Dialektik der Aufklrung [Dialtica do Esclarecimento] (Adorno, 2004, p.11).

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    O captulo A expresso antes do expressionismo apresenta a concepo de

    Adorno sobre o conceito de expresso referente msica anterior ao expressionismo.

    O filsofo identifica nessa msica duas formas de expressividade essencialmente

    distintas, contra as quais o expressionismo lana um golpe: a expresso como

    simulao de paixes; e a expresso como organizao total da obra a partir de um

    Eu ordenador. No primeiro caso, a expresso depende de uma relao de

    significao, isto , os caracteres musicais devem constituir significantes que

    expressam significados extra-musicais. Sua formulao esttica aparece na chamada

    Esttica do Sentimento. No segundo caso, o que constitui a expresso a

    subordinao de todos os elementos particulares ao princpio de unidade e totalidade

    estabelecido pela forma autnoma, cuja ideia corresponde de um sujeito autnomo,

    capaz de estabelecer o nomos da forma a partir de si prprio e subsumir a

    multiplicidade dos estmulos sensveis unidade do Eu. Sua formulao esttica

    encontra-se fundamentalmente em Eduard Hanslick, mas tambm na sociologia da

    msica de Max Weber.

    O captulo Fetichismo: a expresso bloqueada expe o conceito adorniano defetichismo musical. O advento da indstria cultural e a mudana do lugar social

    ocupado pela msica acarretaram transformaes na estrutura musical, cuja

    consequncia mais imediata para a msica como um todo foi a reverso de cada uma

    dessas duas formas de expressividade mencionadas acima em seu oposto, isto , em

    um bloqueio expressivo, ou fetichismo o que tem aqui o mesmo sentido. Destemodo, na medida em que almejavam a expresso, os compositores j no podiam

    mais recorrer aos antigos meios expressivos. A expresso como simulao de paixes

    sobrevalorizava a parte, o elemento momentneo, em detrimento do todo, ao passo

    que a expresso como subsuno do momentneo ao Eu ordenador sobrevalorizava a

    totalidade abstrata. At o incio do sculo XX isto no era um problema: aexpressividade da msica tonal dependia de uma tenso irreconcilivel entre as partes

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    e o todo, entre o singular e o universal. Em contrapartida, a msica-fetiche concilia

    ambos momentos, mas apenas em aparncia.

    O captulo Expressionismo: o sismgrafo e a crtica da tradio uma

    aproximao analtica ao expressionismo schoenberguiano em geral, e a Erwartung

    em particular, a partir daFilosofia da Nova Msica. Explicita-se aqui a dinmica por

    meio da qual o impulso expressivo presente na obra se desdobra em uma crtica

    trplice msica tradicional: 1- a crtica do tematismo; 2- a crtica do ornamento e da

    aparncia musical; 3- a crtica da universalidade abstrata. O princpio expressivo de

    Erwartung conduz esteticamente a uma crtica do fetichismo, fetichismo este cujas

    consequncias no se limitam produo e difuso de mercadorias musicais

    padronizadas, mas se estendem a ponto de colocar problemas espinhosos prpria

    composio musical. No expressionismo schoenberguiano, desaparece a concepo

    unitria da obra de arte autnoma bem como os momentos musicais de fcil

    assimilao, constitudos a partir de esquemas gerais conhecidos, de modo que tanto

    a sobrevalorizao do momentneo como a da totalidade abstrata so radicalmente

    evitadas. Esse golpe ao fetichismo se manifesta tanto na estrutura harmnica como na

    temtico-motvica. A estrutura harmnica no ser desenvolvida em todo o seu

    alcance, mas fundamentalmente naquilo em que se diferencia da harmonia tonal: a

    dissonncia emancipada.

    J a estrutura temtico-motvica ser abordada no quarto captulo, Expresso

    e forma em Erwartung, onde se desenvolve uma anlise motvica de Erwartung.Com base nesta anlise, apresentamos a relao entre forma e expresso na obra.

    Partindo de trs abordagens analticas da obra de Hans Heinz Stuckenscmidt,

    Herbert Buchanan e Carl Dahlhaus , a anlise sistematiza trs grupos motvicos que

    articulam a obra como um todo. Contudo, o aspecto fundamental desta obra que deve

    ser levado em conta em sua anlise o abandono de todos os recursos em virtude dosquais a msica se constitua como uma linguagem autnoma, isto , estruturada a

    partir de critrios intra-musicais. A posio de Erwartung contra a autonomia da

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    forma, que se manifesta na descontinuidade temporal, probe uma anlise que se

    limite descrio e caracterizao dos motivos que constituem o tecido da obra, j

    que o papel desses motivos e de suas mtuas relaes no o de serem percebidos

    enquanto tais e imediatamente, mas o de construrem a expressividade. A anlise

    musical que se segue permite identificar a relao da articulao motvica com a

    concepo geral da obra, baseada na descontinuidade temporal. Por meio dela,

    identificamos em Erwartungum procedimento compositivo baseado em duas foras

    contrrias que definem um campo: 1- as conexes musicais baseadas nas relaes

    intervalares, constituindo uma massa de coeso afigural que atravessa toda a obra

    e; 2- a coagulao de gestos meldicos localizados que constituem figuras. Assim,

    um elemento musical pode ser escutado de duas maneiras: como uma estrutura

    intervalar com traos determinados, que pode assumir diferentes perfis meldicos, ou

    como um contorno gestual com um perfil caracterstico independente das relaes

    intervalares que perfaz. Ao tomar o fenmeno musical como resultado da ao dessas

    duas foras contrrias, a anlise que apresentamos permite responder, ainda que de

    uma maneira parcial, a questo central deste trabalho, a saber: como se d a relaoentre forma e expresso emErwartung?

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    1 A expresso antes do expressionismo

    A msica expressiva ocidental, desde princpios do sculo XVII, assumiu aexpresso que o compositor atribua a suas obras, e no somente a expressodramtica, como ocorre no caso da msica para drama, sem que as emoesexpressadas pretendessem estar imediatamente presentes e serem reais obra. Amsica dramtica, verdadeira msica ficta, ofereceu, de Monteverdi a Verdi, ummodo de expresso estilizado e ao mesmo tempo mediato, isto , a aparncia dapaixo. Quando transcendia isto e pretendia uma substancialidade mais alm daaparncia dos sentimentos expressados, esta pretenso no estava ligada amovimentos musicais individuais que deveriam refletir os da alma, mas estavagarantida unicamente pela totalidade da forma que comandava os caracteresmusicais e suas conexes (Adorno, 2004, p.39).

    Vrios autores da musicologia que se depararam com a obra de Schoenberg

    consideraram que as obras compostas entre 1908 e 1913 no chamado perodo da

    atonalidade livre apresentam uma mudana qualitativa em relao s suas

    composies anteriores. No entanto, a maioria deles aborda esta transformao por

    um ponto de vista estritamente tcnico-musical, secundarizando a questo da

    expresso ou apresentando-a de maneira genrica, a ttulo de contextualizao

    histrica, quando no omitindo. Adorno est de acordo com tais autores em relao

    periodizao da obra, no entanto o ncleo da transformao que identifica a partir de

    1908 reside no prprio conceito de expresso: o expressivo do Schoenberg dos anos

    1908 a 1913 qualitativamente diferente do expressivo da msica anterior. Assim o

    expressionismo schoenberguiano uma crtica da expresso tal como era concebida

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    at ento: em primeiro lugar, expresso romntica, e tambm dramtica, que se

    refere ao sculo XVII e a Monteverdi e se estende at o romantismo do fim do sculo

    XIX. Adorno qualifica este expressivo como uma simulao de paixes: a expresso

    se define aqui pelas relaes da msica com os sentimentos, e se baseia na

    capacidade que ela tem de represent-los. Em segundo lugar, o expressionismo

    schoenberguiano se posiciona criticamente em relao a um outro modo de expresso

    cuja formulao terica que encontramos na esttica romntica, ou, mais

    precisamente, emDo Belo Musicalde Eduard Hanslick (Hanslick, 2011) baseia-se

    no conceito de autonomia da forma. Seu campo objetivo, entretanto, no se limita ao

    romantismo musical, mas se retroage tambm ao classicismo. Trata-se da expresso

    compreendida como um comando racional subjetivo dos diferentes caracteres

    musicais em funo de uma unidade formal, isto , de uma totalidade articulada.

    Considerando que 1- o intuito deste trabalho abordar a recepo adorniana de

    Erwartung uma obra de Schoenberg que pertence a esse perodo expressionista, ou

    da atonalidade livre; 2- o cerne da transformao realizada pelo conjunto de obras ao

    qual ela pertence identificada por Adorno no conceito de expresso e; 3- essatransformao tem como referncia negativa esses dois conceitos de expresso acima

    mencionados; considerando-se isto, o objeto deste trabalho nos obriga a uma

    digresso no sentido de fixar essas referncias antes de abordar a ruptura representada

    pela obra em questo. Assim, a primeira questo a ser feita deve ser: Ruptura ou

    transformao em relao a qu? Ou seja, o que havia antes?

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    1.1 Paixes simuladas

    O sentimento como contedo ou finalidade da msica possui uma histria.

    Dahlhaus apresenta, em um de seus ensaios intitulado Transformaes da Esttica

    do Sentimento , um desenvolvimento histrico da Esttica do Sentimento que

    perpassa cinco sculos, desde o sculo XV at o XIX (Dahlhaus, 2003).

    O musiclogo baseia-se em uma distino da teoria lingustica de Karl Bhler

    entre trs diferentes funes que as frases podem desempenhar: desencadeamento

    [Auslsung], representao [Darstellung] e notificao, ou manifestao [Kundgabe].

    As aes so desencadeadas [ausgelst], os estados de coisas representados

    [dargestellt], os estados anmicos manifestados [kundgegeben] (Dahlhaus, 2003, p.

    31). Cada uma destas funes corresponde a uma poca especfica na histria da

    Esttica do Sentimento. Para autores dos sculos XV e XVI como Johannes Tinctoris,

    Nicola Vicentino e Gioseffo Zarlino, a funo da msica era desencadear efeitos no

    ouvinte. Os estmulos sonoros incitavam sentimentos, os quais no eram objetivados

    por eles, mas simplesmente percebidos e sentidos como seus. A ligao entre o

    sonoro e o anmico, em virtude da qual o primeiro agia sobre o segundo, era

    explicado da seguinte maneira:

    Os movimentos dos sons desencadeiam por simpatia os da alma (...) e estosujeitos s mesmas leis que os impulsos psquicos. Os hipotticos espritosvitais, a que se atribua a transferncia dos estmulos fsicos para as reaesanmicas alongam-se ou contraem-se, aproximam-se ou afastam-se de umobjeto; e os movimentos dos espritos vitais so, segundo Nicola Vicentino (1555)e Gioseffo Zarlino (1558), a razo por que segundas, teras e sextas maiores,alongadas, dispem alegria, pelo contrrio, as menores, contradas, tristeza. O

    passional em ns (...) eleva-se e baixa, salta ou rasteja e caminha lentamente.Ora avana, ora recua, ora nos toca de modo mais fraco, ora com maior fora(Dahlhaus, 2003, p. 33).

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    Aqui inadequado falar em expresso dos sentimentos. A funo da msica

    baseando-se no modelo lingustico apresentado desencadear sentimentos ou

    afetos, em um sentido prximo ao de causalidade mecnica, presente na afirmao de

    que o atrito entre dois corpos causa elevao da temperatura. Contrariamente a isso,

    autores do sculo XVIII, tais como Charles Batteux, Friedrich Wilhelm Marpurg e

    Jean-Jacqcues Rousseau, esperavam que a msica representasse ou imitasse as

    paixes, porm no as do compositor nem as do ouvinte, conforme evidenciam as

    prescries de Marpurg:

    Nas coisas musicais, procure-se, de incio, investigar e determinar com rigor que

    afeto reside nas palavras; qual o seu grau; de que sentimentos composto... Emseguida, tente-se discernir exatamente a essncia do afeto proposto, a queemoes a alma nele se encontra exposta; como tambm o corpo sofre; quemovimentos se lhe exigiram... S ento e depois de tudo isso se ter primeiroconsiderado, examinado, medido e decidido com exatido, de um modo cuidadosoe atencioso, que algum se abandona ao seu gnio, sua imaginao e forainventiva (Marpurg apud Dahlhaus, 2003, p. 33).

    A msica deve portanto representar estados de coisas, e os afetos, por sua vez,

    so tidos como coisas que existem objetivamente, independentemente de serem ou

    no experimentados pelo compositor ou pelo ouvinte. Cabe msica representar, isto

    , re-apresentar esses afetos, assim como uma pintura que representa ou re-

    apresenta uma catedral, uma pessoa etc.

    apenas na segunda metade do sculo XVIII que aparecem autores daquilo

    que pode ser chamado num sentido mais rigoroso de uma esttica da expresso, entre

    os quais Dahlhaus destaca Daniel Schubart e Carl Philipp Emmanuel Bach. Aparece

    ento a figura do compositor como sujeito que se encontra por trs da obra e se

    expressa por meio dela. A expresso no se define mais pela representao objetiva

    de afetos nem tampouco pela capacidade que a msica deve ter de incitar ossentimentos, mas pela exigncia originalidade, e portanto de que o ntimo do

    compositor torne-se apto para a msica, pois s quem retorna a si mesmo e cria a

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    partir do prprio ntimo original. O princpio da originalidade no exige a simples

    novidade, mas tambm e, sobretudo, que uma obra de arte seja uma verdadeira

    emanao do corao (Dahlhaus, 2003, p. 35).

    Essa distino que Dahlhaus apresenta entre a expresso at meados do sculo

    XVIII representao dos afetos e a expresso baseada na idia de um compositor

    que expressa o seu ntimo manifestao dos afetos no parece ser aceita por

    Adorno, que rene toda a msica desde o sculo XVII at o final do XIX sob o

    mesmo nome de msica expressiva ocidental, conjunto que compreende a

    expresso dramtica de um Monteverdi cuja teoria esttica identificada por

    Dahlhaus em autores do sculo XVIII, e para a qual o musiclogo julga mais

    adequado o termo representao , a expresso no dramtica cuja referncia

    central parece ser a msica romntica, baseada nos preceitos estticos da expresso

    subjetiva do compositor encontrados nos textos estticos a partir da segunda metade

    do sculo XVIII, conforme mostra Dahlhaus e a expresso wagneriana cujo

    gnero dramtico remonta a Monteverdi, mas que apresenta, aos olhos de Adorno,

    elementos claramente romnticos. digno de nota que a aspirao originalidade e a

    consequente manifestao do ntimo no esto entre os atributos estticos deste

    conjunto musical designado por Adorno, ainda que este conjunto inclua a msica

    romntica, qual tais atributos se referem.

    Antes de mais nada, importante ter-se em conta uma diferena metodolgica

    entre Adorno e Dahlhaus que em parte explica essas tenses: a anlise dos escritosestticos o que constitui a fora centrpeta do ensaio de Dahlhaus, ao passo que no

    ensaio de Adorno so as obras musicais propriamente ditas que aparecem no centro.

    Dahlhaus formula suas questes com base no contedo apresentado pelos escritos

    que analisa, enquanto Adorno se baseia na prpria msica e nas questes que ela

    mesma apresenta. Isto no significa que Adorno negligencia as questes colocadaspelos escritos estticos e tampouco que Dahlhaus negligencia o fenmeno musical

    propriamente dito. De qualquer modo, essa diferena de metodologia entre duas

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    obras que versam sobre um mesmo objeto a esttica musical talvez possa revelar

    bastante sobre a diferena entre os dois autores, cuja afinidade , em todo caso, muito

    significativa.

    Para alm das diferenas de metodologia, o que une, afirma Adorno, a partir do

    conceito de expresso msicas to diferentes entre si e as separa do expressionismo

    o carter de paixes simuladas. O que o expressionismo problematiza aos olhos de

    Adorno a compreenso dos caracteres musicais como significantes, dos quais os

    afetos aparecem como significados. Os significantes so, assim, um meio de acesso

    aos contedos afetivos, e estes pr-existem em relao aos primeiros. neste sentido

    que devemos compreender a afirmao presente na citao que inicia este captulo:

    Adorno afirma que essa expresso cuja origem remonta ao sculo XVII e com a qual

    a obra expressionista de Schoenberg rompe uma expresso mediata, pois depende

    da mediao de um signo.

    Neste conceito de expresso mediata, ou de simulao de paixes, difcil

    negar a referncia ao liedromntico, no entanto Wagner quem aparece como uma

    das referncias mais importantes para Adorno, principalmente tratando-se deErwartung, que, em virtude do gnero dramtico, se aproxima mais da pera do que

    do lied. Adorno dedica obra operstica de Wagner uma grande monografia

    intituladaEnsaio sobre Wagner(Adorno, 2008). O livro atravessado do comeo ao

    fim pela questo da expresso a qual se apresenta intrincada com outras questes ,

    mas no segundo e terceiro captulos que ela posta no centro da discusso. Ofilsofo inicia a abordagem do expressivo wagneriano a partir daquilo que considera

    um impulso social presente na obra do compositor, qual seja, o de uma conciliao

    com o pblico da audincia, por meio da adequao da composio s condies de

    compreensibilidade desse pblico. Tal impulso se inscreve em um contexto musical

    em que as composies mais avanadas e inovadoras vo progressivamente seseparando do pblico dos concertos e se fechando a estreitos grupos de espectadores

    e inclusive tornando-se economicamente insustentveis. Entre o compositor e a

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    audincia cava-se um fosso cada vez maior. Adorno no apresenta esse impulso

    social na forma de um comentrio geral sobre o compositor, mas a partir de

    elementos tcnico-musicais nos quais ele se manifesta:

    Sua msica est (...) concebida para o gesto de marcar o compasso e dominadapela imagem do marcar o compasso. Neste gesto os impulsos sociais de Wagnertornam-se tcnicos. Se em sua poca o compositor e a audincia j se opemliricamente alienados entre si, a msica de Wagner tende a paliar esta alienaoimplicando o pblico na obra como elemento do efeito desta. (...) em nome doouvinte faz-se emudecer aquilo cuja sensibilidade se rege por normas diferentesda unidade mtrica (Adorno, 2008, p. 31).

    A identidade musical baseia-se na unidade mtrica do compasso, uma unidadeque se estabelece a despeito do contedo musical do motivo, e se fixa como um

    denominador comum. A msica de Wagner, afirma Adorno, carece de processos de

    construo musical pela articulao motvica. Em um ato de conivncia ao ouvinte, o

    que ela nos apresenta a repetio incessante do padro mtrico, indiferente ao

    material com o qual os compassos so preenchidos: toda a msica parece primeiroestruturada em compassos e depois recheada (Adorno, 2008, p. 33).

    O gesto , para Adorno, o motor da expresso. Toda a expresso da msica

    moderna ocidental deriva de seu contedo gestual. No fosse essa capacidade de

    mimetizar o gesto, a msica no seria mais do que o caleidoscpio de Hanslick4, no

    seria mais do que um movimento agradvel de formas sonoras (Adorno, 2002, p.139). E se ela mimetiza os gestos, isto s possvel na medida em que o contedo

    gestual apresenta-se nela como uma estrutura musical objetiva e tecnicamente

    descritvel, isto , como um motivo. Ao apresentar-se como motivo, o gesto assume

    uma identidade musical determinada, em virtude da qual pode ser apreendido,

    4Eduard Hanslick apresenta uma concepo do belo musical segundo a qual a beleza artstica se desdobra namsica a partir das relaes formais intra-musicais, sem qualquer referncia a algo exterior. Ele compara amsica a um caleidoscpio: trata-se, em ambos casos, de formas em movimento. No primeiro caso, formassonoras, no segundo, visuais (Hanslick, 2011, p. 41).

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    memorizado e consequentemente reconhecido a cada repetio, ainda que estas no

    sejam exatas.

    Se o gesto torna-se apto para a msica ao apresentar-se como um motivo, a

    repetio motvica torna-se fundamental. A expresso no pode se limitar a uma mera

    enunciao de um motivo, at mesmo porque um motivo no se constitui enquanto tal

    em uma nica enunciao, isto , como algo isolado: s se converte em tal na medida

    em que repetido. Por outro lado, a expresso como efuso do corao, como

    manifestao original e irrepetvel (Dahlhaus, 2003, p. 37) probe a rigidez mecnica

    da repetio literal. nessa tenso entre a necessidade de repetio pressuposta pelo

    motivo e pelo trabalho motvico e o impulso expressivo pela originalidade e

    irrepetibilidade que surge a necessidade de uma intensa articulao formal. Por meio

    de procedimentos compositivos como o desenvolvimento, a variao e a mediao de

    contrastes possvel desdobrar um determinado motivo em novas configuraes que

    conservam certos elementos do primeiro motivo e transformam outros, o que torna

    possvel estabelecer-se musicalmente uma relao dinmica entre identidade e no

    identidade, repetio e originalidade. E exatamente neste ponto que Adornoidentifica uma fraqueza tcnica na msica de Wagner, confrontada sobretudo com as

    grandes formas do classicismo vienense, fraqueza esta que no decorre da

    insuficincia tcnica ou incapacidade do compositor, mas precisamente desse gesto

    de marcar compasso, isto , da hipstase da unidade mtrica, que silencia as

    potencialidades musicais dos motivos que preenchem os compassos:

    Em Wagner as insuficincias da organizao tcnica da composio derivam semexceo do fato de que a lgica musical pressuposta em toda parte pelo materialde sua poca amolecida e substituda por uma espcie de gesticulao (...).Certamente, toda msica remonta a este elemento gestual e o conserva em si. NoOcidente, entretanto, ele foi espiritualizado e interiorizado como expresso,

    enquanto simultaneamente todo discurso musical se submete sntese lgica pelaconstruo; a grande msica se esforou pela nivelao de ambos elementos.Wagner se ope; sua msica (...) no consuma em si nenhuma histria. Omomento expressivo potenciado ao mximo dificilmente se contm no espaointerior, na conscincia do tempo, e se lana para fora como gesto. (...) A fora do

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    elemento construtivo consumida pela intensidade exteriorizada, por assim dizerfsica (Adorno, 2008, p. 35).

    Em Wagner o desdobramento e a renovao dos caracteres internos do gesto

    por meio da lgica musical e em nome da expresso substitudo pela gesticulao,

    isto , no pelo gesto refletido musicalmente em caracteres motvicos, mas pelogesto, por assim dizer, fisiolgico, que se constitui pela mera obedincia unidade

    mtrica abstrata, a despeito do contedo motvico que preenche os compassos. Essa

    expresso calcada nas potencialidades internas do gesto, e que ganha significncia

    graas articulao formal, est, para Adorno, bloqueada em Wagner. Nele, o

    contedo da expresso exterior forma musical: se lana para fora como umagesticulao abstrada do material, de suas qualidades internas e das possibilidades de

    articulao formal que ele apresenta:

    Para exteriorizar-se como gesto to sensivelmente como exige o procedimentowagneriano, a expresso no pode nunca contentar-se consigo mesma, mas deve

    acentuar-se e em seguida inclusive exagerar-se por sua crescente repetio. (...) aemoo expressiva, ao aparecer por segunda vez, torna-se comentrio enftico desi mesma (Adorno, 2008, p. 38).

    A expresso fica, por assim dizer, congelada no gesto e ganha sua fora no da

    diferenciao, mas fundamentalmente das repeties exatas ou quase exatas do

    motivo expressivo inicial e da intensificao, por exemplo por meio do crescimentodo volume sonoro pelo acrscimo de instrumentos na orquestrao. A emoo

    expressiva torna-se, assim, comentrio enftico de si mesma, ou seja, auto-

    referncia segura de si mesma e que no sofre qualquer tipo de transformao,

    diferenciao ou renovao ao longo do tempo musical. Em virtude de sua rigidez, o

    elemento expressivo constitui-se como um signo estvel, cujo significado ocontedo expressado transcende o mbito musical, pois constitui-se de contedos

    que pr-existem em relao msica, e que so por ela evocados. O expressivo

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    compreende-se pura e simplesmente, pois, como uma aluso a um contedo extra-

    musical:

    Se a unidade de gesto e expresso no se alcana no Leitmotiv [pois o gesto meramente repetido e no se diferencia por meio da construo temtica], se o

    motivo, enquanto portador da expresso, se aferra sempre ao mesmo tempo aocarter drasticamente gestual, isto no indica menos que o fato de que semmediao o gesto nunca pode dotar-se de alma. Diferentemente, representa algodotado de alma. O momento intencional especfico da expresso wagneriana: omotivo media enquanto signo um significado coagulado. A pesar de toda a nfasee a intensidade, a msica de Wagner se comporta como a escritura com palavra.(...) Sua expresso no se representa, mas representada. A apreenso de umelemento fragmentado da totalidade espiritualizada, meramente exterior, porsignificados que este deve representar e que podem permutar-se to bem como

    seus representantes, faz dos Leitmotivewagnerianos alegorias (Adorno, 2008, p.44).

    a essa representao de contedos anmicos exteriores msica e pr-

    existentes em relao a ela que Adorno se refere como simulao de paixes, como

    expresso mediata, que toma os caracteres musicais como meios de acesso a

    contedos extra-musicais. O gesto musical propriamente dito s se torna expressivo,

    s pode dotar-se de alma, a partir do momento em que entra para a forma, isto ,

    em que ganha uma articulao tcnica em virtude da qual ele se desdobra

    motivicamente em caracteres que apresentem formulaes originais da ideia gestual,

    e torna-se, assim, expressivo. A expresso musical s possvel, portanto, pela

    mediao da forma. Quando o procedimento tcnico da expresso se limita repetio sequencial, o motivo no se apresenta como algo dotado de alma, que em

    si expressivo, mas apenas representa algo dotado de alma. Os contedos

    expressados so indiferentes msica, a qual se limita a evoc-los.

    Adorno identifica no procedimento compositivo de Wagner uma tentativa de

    contornar essa limitao tcnica, decorrente da abstrao da unidade de compasso emrelao ao material musical, por meio da fluidez harmnica, que se contrape

    rigidez motvica e temtica. Na anlise que apresenta dos primeiros compassos do

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    preldio de Tristo e Isolda, ele mostra que as repeties motvicas apresentam-se

    variadas, mas apenas com o intuito de se acomodar ao esquema harmnico, que

    nestes compassos est claramente desenvolvido em torno da tnica de l menor,

    sempre pressuposta por ainda o acorde de tnica no esteja presente. O

    desenvolvimento harmnico molda, portanto, as repeties motvicas, e estas

    adquirem uma plasticidade, decorrente das alteraes de notas exigidas pela sucesso

    harmnica que o motivo deve parafrasear. Essa plasticidade das repeties motvicas

    o que aos olhos de Adorno confere a Wagner o carter misterioso, de algo

    claramente apreensvel, mas ao mesmo tempo paradoxalmente obscuro, expresso na

    fala de Sachs: no o posso reter mas tampouco esquec-lo (Sachs apud Adorno,

    2008, p. 43). neste aspecto paradoxal e ambguo da obra de Wagner que Adorno

    identifica um dos elementos fundamentais das configuraes formais do compositor:

    por um lado, a fixao nas partes isoladas do todo e, por outro, uma concepo da

    grandiosa obra de arte total como um todo contnuo, sem fissuras. Wagner

    conservou ao longo de toda sua vida tanto o formato colossal de tais produtos como o

    vesturio com o que sonham os teatros de aficionados (Adorno, 2008, p. 30). A

    compreenso mais sistmica da recepo adorniana de Wagner passaria

    necessariamente por um desenvolvimento mais aprofundado dessa tenso. Como,

    porm, isto extravasaria os propsitos desta pesquisa, apenas a mencionamos no

    intuito de evidenciar que a posio de Adorno em relao a Wagner no unvoca, j

    que se trata, para Adorno, de uma obra que articula muitas contradies estticas esociais que meio sculo depois o filsofo ainda no via superadas. Em Wagner,

    progresso e reao no se deixam separar como as ovelhas e os carneiros, mas se

    imbricam quase indissoluvelmente (Adorno, 2008, p. 47).

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    1.2

    Autonomia da forma e expresso

    O segundo conceito de expresso musical abordado por Adorno a compreende

    como um comando da organizao racional dos diferentes caracteres musicais em

    funo de uma unidade formal. Pelo princpio da forma autnoma, como expresso

    de uma subjetividade autnoma, o compositor comanda os momentos parciais, que se

    apresentam inicialmente isolados e carentes de relao entre si, estabelecendo entre

    eles relaes e, por meio disso, articulando uma totalidade. A expresso musical

    uma derivao do princpio de autonomia da forma, isto , da idia de que a msica

    possui uma racionalidade e unidade interna que a torna capaz de fundar a partir de si

    mesma os critrios valorativos pelos quais seu julgamento deve se pautar. A idia de

    autonomia musical foi formulada teoricamente pelo musiclogo e esteta Eduard

    Hanslick em um livro de 1854, intituladoDo belo musical (Hanslick, 2011). O autor

    se prope, nesse trabalho, a empreender uma reviso da Esttica do Sentimento,

    vertente esttica que abordava a msica exclusivamente a partir da sua relao com

    os sentimentos, quer seja pelos efeitos anmicos desencadeados por ela, quer seja pela

    sua suposta capacidade de representar afetos. A crtica da Esttica do Sentimento e o

    desenvolvimento de uma esttica que fundamentasse o belo musical no na relao

    com contedos extra-musicais mas na configurao dos elementos musicais e na sua

    articulao interna, sem referncia a algo exterior, no so gratuitos: Hanslick

    formula conceitualmente uma tendncia na histria da msica no sentido dodesenvolvimento das formas musicais autnomas isto , no associadas a ocasies

    sociais, tal como missas, danas etc., e nem subordinada a textos ou programas e da

    consequente valorizao da msica instrumental pura. Diante desse progressivo

    florescimento da msica absoluta e da extenso de seus critrios tambm para as

    msicas com texto ou programa, a Esttica do Sentimento mostrava-se, segundoHanslick, insuficiente para a compreenso do artstico na msica, o qual em sua

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    poca j havia adquirido suficiente autonomia frente s determinaes extra-musicais

    a ponto de tornar necessria uma nova esttica musical.

    Embora as reflexes de Hanslick girem em torno do belo musical e se

    desenvolvam no sentido de estabelecer para ele um critrio intra-musical, a expresso

    musical aparece como um de seus desdobramentos. Da mesma maneira que a

    reflexo sobre o belo se volta para o interior da forma musical, assim tambm a

    expresso ganha, neste contexto, o sentido de uma formulao de idias musicais,

    no se determinando a partir da relao com contedos extra-musicais: se agora se

    perguntar o que h de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim:

    ideias musicais (Hanslick, 2011, p. 41). No obstante esse carter hermtico da

    expresso musical, a idia de um sujeito-compositor que se expressa na msica no

    negada por Hanslick, embora esse sujeito-compositor no aparece como um

    indivduo emprico e biogrfico:

    Toda obra tem por objetivo trazer manifestao externa uma idia que cobrou

    vida na fantasia do artista. Este elemento ideal na msica sonoro, e no algo deconceitual, que importaria primeiro traduzir em sons. O ponto decisivo de queparte toda a ulterior criao de um compositor no o propsito de descrevermusicalmente uma paixo, mas a inveno de uma determinada melodia. Graasao poder primitivo e misterioso, em cuja oficina no penetra nem jamais penetraro olho humano, ressoa no esprito do compositor um tema, um motivo. Nopodemos remontar alm da origem desta primeira semente, temos que aceitar issocomo simples fato (Hanslick, 2011, p. 45).

    Hanslick no considera, portanto, que a ideia da autonomia da msica se choca

    com o princpio da expresso, na medida em que os contedos da expresso so

    ideias musicais que florescem na fantasia do compositor e no conceitos no musicais

    traduzidos em sons. E os primeiros elementos de que se constitui uma ideia so o

    tema ou o motivo, que ressoa no esprito do compositor. Partindo-se deles, no possvel caminhar para trs, mas apenas para frente, isto , em direo as relaes,

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    combinaes e articulaes entre temas diferentes, etc., ou seja, em direo s

    configuraes formais que eles ganham ao longo da msica.

    Do belo musical do comeo ao fim uma crtica da Esttica do Sentimento.

    Seus dois primeiros captulos apresentam a tese negativa de Hanslick, isto , mostram

    aquilo em que a esttica musical no deve se fundamentar. A esttica musical no

    deve se fundamentar nos sentimentos, quer sejam eles considerados como a

    finalidade da msica captulo 1 quer sejam como o seu contedo captulo 2.

    interessante observar que Hanslick aborda aqui duas das estticas distinguidas por

    Dahlhaus a partir da teoria lingustica: uma delas que via na msica a funo de

    desencadear efeitos, ou de incitar as paixes, e outra segundo a qual a msica deveria

    representar paixes como estados de coisas.

    Nesses dois captulos iniciais, as linhas gerais do desenvolvimento do texto

    mostram o carter problemtico de uma esttica cujo fundamento relao da msica

    com os sentimentos, j que

    O efeito da msica sobre o sentimento no tem (...) nem a necessidade nem aconstncia nem, por fim, a exclusividade que um fenmeno deveria apresentar

    para conseguir fundamentar um princpio esttico (Hanslick, 2011, p. 15).

    Vrios so os exemplos que evidenciam essa falta de necessidade, essa

    contingncia que o autor identifica na relao entre da msica com os sentimentospor ela suscitados ou representados. A mesma msica, afirma Hanslick, suscita

    paixes diferentes em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades e

    circunstancias, mas ainda, na igualdade de todas estas condies em diferentes

    indivduos (Hanslick, 2011, p. 14). Uma msica com texto, que adquire uma funo

    de representar conceitos, se presta to bem para representar um determinadocontedo conceitual como outro totalmente diferente, com mudana integral do texto.

    Isto ocorre, por exemplo quando se representa a pera Os Huguenotes de

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    Meyerbeer, com mudana de cenrio, de poca, das personagens, da ao e das

    palavras, como os Gibelinos em Pisa (Hanslick, 2011, p. 30), onde todo o contedo

    religioso e o sentimento piedoso desaparece. No obstante, essa transposio no

    lesa no mnimo a expresso puramente musical (Hanslick, 2011, p. 30). Alm

    disso, um mesmo trecho musical pode representar um sentimento determinado to

    bem como o seu oposto (Hanslick, 2011, p. 29). So inumerveis os trechos do livro

    em que o autor mostra esse carter problemtico da relao entre a msica e os

    contedos que ela se pe a representar. Eles atravessam todo o livro, desdobrando-se

    a partir das questes desenvolvidas em cada captulo e seria exaustivo e

    desnecessrio enumer-los aqui. Mais proveitoso seria identificar a origem dessa

    incompatibilidade que o autor atribui relao entre as estruturas musicais e os

    contedos representados por elas. Sua origem deriva do paradoxo de uma arte no

    conceitual como a msica se propor a representar contedos conceituais. O carter

    no conceitual da musica , para Hanslick, consequncia de sua no referncia a

    contedos extra-musicais, isto , do fato de que ela s pode ser compreendida

    esteticamente a partir de seus elementos internos. Os sentimentos, por sua parte,

    dependem essencialmente de definies conceituais e s assim podem ser

    compreendidos e distinguidos entre si:

    O que que faz, pois, de um sentimento este sentimento determinado: nostalgia,

    esperana, amor? porventura a simples fora ou fraqueza, a agitao domovimento interior? Decerto que no. Esta pode ser idntica para sentimentosdiferentes e, de novo, ser diversa para o mesmo sentimento em vrios indivduos eem momentos distintos. O nosso estado de nimo s pode obter concreojustamente neste sentimento determinado baseando-se numa quantidade derepresentaes e juzos talvez inconscientes no momento de um forte sentir. Osentimento da esperana inseparvel da representao de um estado mais felizque deve ocorrer e que se compara com o estado atual. A melancolia coteja umasorte passada com o presente. Trata-se de representaes, de conceitos e juzos

    inteiramente determinados. Sem eles, sem este aparato de pensamentos, no podechamar-se ao sentir presente nem esperana nem melancolia, pois s ele ostorna tais. Se dele se abstrair, permanece uma emoo indefinida, quando muito, asensao de um vago bem-estar ou incmodo. O amor no concebvel sem arepresentao de uma personalidade amada, individual, sem o desejo e o anelo da

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    felicidade, da exaltao, da posse do objeto. O que o transforma em amor no andole da mera moo anmica mas o seu cerne conceitual, o seu contedo real ehistrico. Segundo a sua dinmica, tanto pode ser suave como arrebatador,apresentar-se ou como alegre ou como doloroso, e sempre permanece amor. Estasimples observao basta para demonstrar que a msica consegue expressarunicamente esses diversos adjetivos acompanhantes, nunca o substantivo, o

    prprio amor. Um sentimento determinado (uma paixo, um afeto) nunca existecomo tal sem um contedo real, histrico, que se pode expor apenas mediante

    conceito (Hanslick, 2011, p. 20).

    Adorno compartilha com Hanslick a ideia de que a msica no pensa por

    conceitos, e muito da sua crtica a Wagner se baseia nisso. Muito da tenso interna

    que Adorno v na obra dramtica de Wagner deriva tambm do conflito desse carter

    conceitual ou, mais precisamente, alegrico presente em uma msica que, ao

    mesmo tempo, reivindica o ideal de autonomia da msica, a despeito das afirmaes

    de Wagner de que a msica essencialmente uma arte no autnoma, subordinada s

    outras artes, como a literatura e o teatro (Wagner, 1893, p. 26-7). O ideal de

    autonomia se manifesta na aspirao forma musical contnua e unitria, em virtude

    da continuidade harmnica, conforme vimos, mas tambm da melodia infinita, daorquestrao e de outros parmetros abordados por Adorno noEnsaio sobre Wagner.

    A continuidade sem fissuras buscada por uma articulao intra-musical

    desmentida, afirma Adorno, pela falta de desenvolvimento motvico, a qual

    substituda pela gesticulao. Assim, o expressivo se estabelece de fora para dentro, a

    partir de uma expresso que no se representa, mas representada (Adorno, 2008,p. 44), que no se desdobra a partir da elaborao formal dos prprios materiais

    musicais isto , como algo no conceitual mas se apresenta como um significado

    conceitual pr-existente em relao msica.

    A partir do terceiro captulo deDo belo musical, o texto caminha no sentido de

    expor a posio que a arte musical autnoma toma em relao aos materiais musicais

    e que, consequentemente, a esttica musical tambm deve tomar. Hanslick no nega

    o carter simblico de determinados sons, em virtude do qual eles so associados a

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    determinados contedos. No entanto a arte musical comea, afirma, onde termina a

    simbologia dos sons:

    Tal como as cores, os sons possuem j por natureza, e na sua individuao,significado simblico, que atua fora e antes de toda a inteno artstica. Cada cor

    respira um carter peculiar: no para ns uma simples cifra que obtm apenasum lugar mediante o artista, mas uma fora posta j pela natureza em relaosimpattica com certas disposies de nimo (...).

    De modo anlogo, os materiais elementares da msica tonalidades, acordes etimbres so j em si caracteres. Temos tambm uma arte de interpretaodemasiado diligente para o significado dos elementos musicais; sua maneira, asimblica das tonalidades de Schubartproporciona o equivalente da interpretao

    das cores levada a cabo por Goethe. No entanto, aqueles elementos (sons, cores),na sua aplicao artstica, seguem leis inteiramente diversas do que aquelaexpresso da sua manifestao isolada5(Hanslick, 2011, p. 24).

    Aqui Hanslick j anuncia o giro da esttica do sentimento em direo a uma

    esttica da totalidade da forma. A crtica adorniana da expresso como simulao de

    paixes j delineada, portanto, em Hanslick, que varre todos os contedos afetivos,

    todas as paixes simuladas para fora do terreno da msica, traa uma linha que os

    separa implacavelmente da arte musical, na qual os sons seguem leis inteiramente

    diversas. Conforme veremos mais adiante, a posio de Adorno no que toca

    relao da msica com os elementos extra-musicais diferente da de Hanslick, no

    entanto possvel afirmar que Adorno v em Hanslick um dos momentos da dialtica

    da expresso entendida como expresso anmica, de afetos e gestos extra-musicais

    , qual seja, o negativo, o da construo e da forma, em que a expresso imediata,

    pura e simples, negada pela objetividade da forma.

    5 Esta parece ser a traduo mais adequada para a passagem Es folgen jedoch diese Elemente (Tne,

    Farben) in ihrer knstlerischen Verwendung ganz anderen Gesetzen, als jener Ausdruck ihrer isolirtenErscheinung. A edio portuguesa de que dispomos a traduz, entretanto, da seguinte maneira: No entanto,aqueles elementos (sons, cores), na sua aplicao artstica, seguem leis inteiramente diversas, comoexpresso de sua manifestao isolada. Porm, Hanslick contrape a aplicao artstica do som suamanifestao isolada. Trata-se de uma comparao, portanto o als deve traduzir-se por do que e nocomo.

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    Na citao acima, Hanslick traa um limite que separa nitidamente os sons

    musicais e os no musicais, ou simblicos, mas o critrio que torna possvel tal

    discernimento no fica expresso: apenas sugerido. Hanslick afirma que os sons

    seguem, na msica, leis diferentes daquelas que seguem em sua manifestao

    isolada. Na arte musical, os sons no esto isolados, mas combinados entre si, e

    nisto consiste o salto do som simblico que j algo em si mesmo, isoladamente

    para o som musical que s se torna algo atravs da relao com outros sons. Os

    contedos particulares tornam-se, assim, artsticos ao serem reconfigurados,

    relativizados, transformados, combinados, etc. no interior na forma artstica

    espiritualizada e, portanto, intelectual. Hanslick viveu um momento artstico geral

    marcado pelo impulso romntico de liberao em relao mera imitao da natureza

    em direo criao individual por meio da reflexo subjetiva sobre as formas

    naturais. Neste impulso aparece tambm a idia de uma liberdade subjetiva frente ao

    carter necessrio e, neste sentido, no livre da natureza, cujas leis o homem no

    pode transformar. A diferenciao feita por Hanslick entre o som simblico e o

    musical, a defesa do carter espiritual da arte e sua crtica s estticas que se fixam nosom natural se inserem neste panorama artstico e esttico. Sua crtica Esttica do

    Sentimento e a nfase no mais no sentimento, mas na fantasia enquanto atividade

    do puro intuir (Hanslick, 2011, p. 10), reapresentam esse desejo de liberao da arte

    frente determinidade natural como uma questo da esttica musical. A relao entre

    o espiritual e o natural, central em Hegel e tambm retomada por Adorno, noaparece em Hanslick, contudo, como uma relao, mas como uma simples oposio:

    Se dissssemos que o agrado esttico produzido por uma pea musical se guiapelo seu valor artstico, tal no impede que um simples apelo de trompa, umjodler [canto tirols] na montanha possa porventura arrebatar-nos mais do quequalquer sinfonia de Beethoven. Mas, neste caso, a msica insere-se nonaturalmente belo. Percepcionamos ento o que ouvido, no como estadeterminada criao sonora, mas como uma espcie particular de efeito naturale,na sua coincidncia com o carter paisagstico do ambiente e a disposio anmica

    pessoal, pode deixar muito atrs de si, em poder, qualquer fruio artstica.

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    Existe, pois, uma preponderncia da impresso que o elementar pode alcanarsobre o artstico, mas a esttica (ou, se pretendermos uma formulao mais estrita,aquela sua parte que trata do belo artstico) s deve considerar a msica a partir dasua vertente artstica, por conseguinte, reconhecer unicamenteos efeitos que ela,enquantoproduto espiritual humano, suscita na pura contemplao mediante umadeterminada configurao daqueles fatores elementares [grifos meus] (Hanslick,2011, p. 89).

    Hanslick no afirma que certos sons so exclusivamente artsticos e os demais,

    exclusivamente naturais, simblicos. No entanto, mesmo tratando-se de um mesmo

    som que ao mesmo tempo natural e musical, sua considerao enquanto som

    espiritual, ou artstico, exclui as referncias s suas caractersticas naturais isoladas e

    sua simbologia.

    Ao contrrio do som natural, que se relaciona com os sentimentos, os sons

    musicais se movem no terreno da autonomia da forma. Seu carter artstico e,

    portanto, sua beleza no derivam de sua relao com os sentimentos, mas das

    relaes que estabelecem entre si. A ideia da totalidade da forma que em Hanslick

    articula-se, conforme vimos, de uma determinada concepo de expresso musical levada pelo autor s ltimas conseqncias. Em contrapartida, se possvel a

    ideia de um artsticomusical para Adorno, ele se baseia em uma relao dinmica

    entre a parte (os detalhes e os momentos isolados) e o todo. Se verdade que os

    momentos individuais esto subsumidos pela unidade e totalidade da forma, tambm

    verdade que essa totalidade s se legitima atravs do seu confronto com taismomentos, e no como um princpio hipostasiado de todo particular e que os deduz a

    partir de si. O valor esttico da msica depende dessa dinmica entre a parte e o todo.

    Em Hanslick, a forma artstica se separa da natureza e de todas as representaes

    isoladas por uma linha bem traada. O espiritual da msica se move em uma esfera

    aparte do som natural. A nfase incide, pois, sobre a unidade do todo formal:

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    ('

    O mestre revela estilo quando, ao realizar a idia claramente concebida, suprimetudo o que mesquinho, inconveniente, trivial, conservando assim uniformementeem cada pormenor tcnico a atitude artstica do todo (...).

    O aspecto arquitetnico do belo musical vem claramente para primeiro plano naquesto do estilo. Uma legalidade superior (...) ser danificada pelo estilo de uma

    pea musical por meio de um nico compasso que, embora em si irrepreensvel,se no harmoniza com a expresso do todo (Hanslick, 2011, p. 65).

    Esse processo unilateral que Hanslick encontra na msica, por meio do qual o

    princpio geral da forma deduz as partes a partir de si mesmo, e estas, por seu turno,

    so dceis soberania da forma, ganha uma determinao tcnica a partir do conceito

    de tema. O tema a unidade autnoma, esteticamente indivisvel, musical de

    pensamento (Hanslick, 2011, p. 110), a partir da qual todo o mais se desenvolve. Ele

    a origem qual todas as configuraes formais remetem, e quase poderamos dizer:

    a rigor no h nada alm do prprio tema, j que todos os desenvolvimentos

    posteriores no so mais do que a sua confirmao, a evidncia de seu carter total e

    implacvel, e de sua impermeabilidade a tudo aquilo que no proceda dele:

    Tudo nela [na criao musical] conseqncia e efeito do tema, por estecondicionado e configurado, por ele governado e levado a efeito. Eis o axiomaautnomo que momentaneamente satisfaz, certo, mas que o nosso esprito querver discutido e desenvolvido (...). O compositor coloca o tema, como o

    protagonista de um romance, nas mais diversas situaes e ambientes, nos maisdspares estados de nimo e ocorrncias tudo o mais, por contrastado que seja,s em relao a tal pensado e configurado (Hanslick, 2011, p. 111).

    Se verdade que o compositor coloca o tema em diferentes situaes, o

    ambienta de diferentes maneiras, tambm verdade que tudo na criao musical

    consequncia dele, que tudo o que no temas pensado e configurado em relao

    a ele.

    difcil negar a importncia do pensamento de Hanslick para Adorno. Embora

    as citaes e as referncias diretas no sejam frequentes, a mobilizao do conceito

    de autonomia para pensar a forma musical e tudo aquilo que se relaciona a esse

  • 7/17/2019 08_2014 Antinomia Da Expressao - Philippe Curimbaba Freitas

    34/160((

    conceito a concepo da totalidade da forma e inclusive o conceito de expresso

    mostra o tributo de Adorno a Hanslick, mais presente nas entrelinhas do que nas

    referncias expressas. Assim como Hanslick, Adorno est atento para o carter

    instvel da relao da msica com os significados que se lhes possa atribuir, e no

    nega que o artstico de uma arte autnoma como a msica no pode ser buscado

    imediatamente nos contedos particulares que ela representa. No entanto, para ele a

    relao entre o musical e o extra-musical bem mais complexa e s pode ser

    encaminhada de maneira dialtica.

    Adorno toma a questo sobre a relao entre os caracteres musicais e os

    contedos afetivos como um desdobramento da reflexo acerca do carter lingustico

    da msica, desenvolvida no texto Sobre a Relao Contempornea entre Filosofia e

    Msica(Adorno, 2002). Todo o texto gira em torno da questo sobre o significado na

    msica, sobre a possibilidade ou impossibilidade de determinao de sua essncia em

    termos conceituais, extra-musicais. Adorno compara a msica com as artes que

    empregam signos verbais tanto em poesia como em prosa e com as artes visuais.

    A participao no medium que simultaneamente o medium da cognio

    [Erkenntnis] (Adorno, 2002, p. 139) no primeiro caso, e as configuraes formais a

    partir de objetos do mundo exterior que inclusive na pintura abstrata se mesclam

    com o contedo no segundo; isto d a impresso de que tanto as artes visuais como

    a poesia e a prosa estabelecem uma referncia inequvoca entre significante e

    significado, embora Adorno reconhea que aquilo que emerge como o significadode uma obra diferente do seu contedo. A referncia inequvoca a contedos extra-

    artsticos encobre um carter enigmtico que a arte apresenta diante da pergunta pelo

    seu significado, carter este que a msica, ao contrrio dessas outras artes, expe a

    nu:

    (...) impossvel determinar de alguma maneira compreensvel o significado damsica, isto , aquilo por meio do qual ela adquire seu direito de existir. (...) algo enigmtico que aparece em toda a msica. (...) Trata-se (...) do fato de que

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    ()

    no h absolutamente nenhum momento geral que pode ser encontrado, e que sejacapaz de ir para alm da descrio da msica, que indique seu significado e

    justificao. Se ento aproxima-se da msica o suficiente para que ela seja vistacom estranhamento; se, em outras palavras, no se associa sua existnciaenquanto fenmeno com sua justificao, ento torna-se impossvel entender deonde deriva a dignidade que foi atribuda a ela na nossa cultura (Adorno, 2002, p.158).

    No possvel encontrar para a msica nenhum tipo de significado que se

    estabelea de uma maneira necessria, tal como h nas artes visuais, na poesia e na

    prosa. Adorno se refere a uma crise da msica, que no precisa ser introduzida

    (Adorno, 2002, p. 135), pois trata-se de um diagnstico geral da primeira metade

    do sculo XX, delineado a partir das ltimas experincias musicais mais avanadas

    que datam desde os primeiros anos do sculo. Alguns sintomas mais evidentes dessa

    crise so as dificuldades de criao formal consistente e substancial, o

    endurecimento e nivelamento comerciais da vida musical e a ruptura entre a

    produo autnoma e o pblico (Adorno, 2002, p. 135). As formulaes mais

    comuns desta crise a atribuem a um perigo radical (Adorno, 2002, p. 137) que

    ameaa a msica. No entanto, argumenta Adorno, se a msica est exposta a um

    perigo radical, necessrio que se interrogue o que ela , qual sua essncia, pois,

    para que algo esteja posto em perigo, necessrio que exista, e que apresente uma

    essncia definvel conceitualmente. Para que o seu final seja temido, necessrio que

    isso que existe e apresenta uma essncia tenha uma dignidade em virtude da qual

    ganhe uma legitimidade, um propsito ou sentido de existir [raison dtre]. No

    entanto, vimos que essa questo pelo sentido da msica no pode ser solucionada, j

    que no possvel atribuir msica algum significado intrinsecamente musical, do

    qual derivaria sua essncia e seu sentido de existir. Desta forma, at mesmo essa

    presumida crise que ameaa a msica torna-se enigmtica, pois no possvel

    identificar a que ela se refere. Essa aporia constitui a fibra do texto de Adorno, paraquem a soluo s pode ser dialtica. Adorno sensvel s reflexes de Hanslick na

    medida em que identifica na msica uma autonomia da forma, que probe sua simples

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    36/160(*

    subsuno a uma essncia universal e extra-musical, subsuno esta pressuposta na

    pergunta pelo seu significado. Mesmo assim, a posio de Hanslick no acatada por

    Adorno:

    (...) a suposta felicidade que provocada por formas sonoras em movimento umprincpio muito estreito e abstrato para servir de fundamento a uma forma artealtamente organizada. Caso se tratasse apenas disso, ento no haveria diferenaentre um caleidoscpio e um quarteto de Beethoven exceto a diferena no material(Adorno, 2002, p. 139).

    O exemplo do caleidoscpio uma metfora usada pelo prprio Hanslick para

    ilustrar o belo musical como um auto-referido movimento de formas, umas emrelao s outras. No entanto, o nvel de articulao formal da msica imensamente

    superior ao de um caleidoscpio e um princpio to vago no suficiente para

    caracterizar a singularidade artstica de uma msica determinada, ou a especificidade

    de um estilo, j que apenas descreve algo que acontece a todas as msica e, no

    melhor dos casos, afirma a prpria singularidade do artstico de cada msica, sendoque esta mesma singularidade, na medida em que atribuda a todas elas, torna-se

    uma caracterstica geral. Todas as msicas artsticas so singulares: nisto todas elas

    se assemelham.

    Adorno no v com bons olhos qualquer tentativa de definir a msica de uma

    maneira universal, j que isso necessariamente leva concepes to abstratas a ponto

    de no realizarem aquilo que julgam realizar. Definies da msica como uma

    linguagem sui generis ou como um algo marcado por um tempo e um espao

    diferentes do tempo e do espao empricos so muito abstratas e incapazes de separ-

    la, enquanto linguagemsui generis, das outras linguagens e, enquanto algo temporal

    e espacialmente distinto do mundo emprico, do tempo e do espao empricos, a no

    ser por meio de um enunciado abstrato que no afirma mais que a prpria diferena,

    dispensando-se de determin-la concretamente (Adorno, 2002, p. 142). Para ser

    categoricamente separada do no musical, a msica deve tomar determinaes to

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    (+

    abstratas que a acabam paradoxalmente fundindo ao no musical. A diferena

    caracterstica da msica frente ao mundo emprico, s outras formas de linguagem e a

    tudo aquilo que no msica no se baseia em uma formulao categrica, abstrata

    ou atemporal: concerne s particularidades, isto , as diferenas concretas: os estilos

    particulares, as obras particulares de cada estilo e, alm disso, os momentos

    particulares de cada obra musical, os quais Adorno, ao contrrio de Hanslick, no v

    como mera deduo lgica do todo. O elemento responsvel por essas diferenas

    singulares a expresso. Entretanto,

    (...) o momento de expresso, no qual percebeu-se o corretivo do princpio de

    Hanslick citado acima, muito ambguo, em qualquer instncia isolada, e muitovago para representar o contedo da msica por si mesmo (Adorno, 2002, p.139).

    A singularizao expressiva o elemento no qual a reflexo conceitual sobre a

    msica deve se basear para superar a contradio das definies que, por demasiado

    abstratas, nada definem. No entanto, o momento expressivo nada soluciona por simesmo, isto , se considerado de maneira isolada, como um princpio independente

    do momento objetivo da obra unitria e organizada, pois assim permanece ambguo.

    E aqui produz-se o curto-circuito do texto: toda msica caracterizada de uma

    maneira primria por aquilo que, na linguagem, com as palavras, apenas ocorre como

    resultado de uma concentrao alienante (Adorno, 2002, p. 139). O que ocorre namsica de uma maneira primria, isto , sem a mediao dos conceitos, das palavras

    e, em suma, dos universais, s pode ocorrer na linguagem verbal por meio de um

    agrupamento de diversos singulares sob um conceito universal que abstrai as

    diferenas entre eles: por meio da perda da singularidade enquanto tal, enquanto no

    subsumida universalidade do conceito, isto , de uma alienao. A espinhosa tarefa

    de uma reflexo conceitual sobre a msica torna-se um enigma insolvel na medida

    em que a msica, conforme j afirmava Hanslick, uma arte no conceitual e,

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    portanto, resistente ao esquema de subsuno do singular ao universal, que est na

    base de toda linguagem verbal.

    A msica olha seu ouvinte com olhos vazios, e quanto mais profundamente seimerge nela, mais incompreensvel torna-se sua proposta ltima, at que aprende-

    se que a resposta, se tal possvel, no est na contemplao, mas nainterpretao. Em outras palavras, a nica pessoa que pode solucionar o mistrioda msica aquele que a toca corretamente, como algo total. Seu enigma se burlado ouvinte ao seduzi-lo a hipostasiar, como ser, o que em si um ato, um devir e,como devir humano, um comportamento (Adorno, 2002, p. 139).

    A vacuidade conceitual da msica, que olha seu ouvinte com olhos vazios,

    obriga a reflexo sobre ela a abandonar a pergunta pelo seu sentido extra-musical emprol de uma compreenso orgnica, da msica como comportamento ou gesto.

    Em msica, estamos diante de gestos e no de significados. Na medida em quemsica linguagem, , como a notao na histria da msica, uma linguagemsedimentada de gestos. No possvel perguntar msica o que ela traz como seu

    significado; na realidade a msica tem como seu tema a questo: como podem osgestos tornarem-se eternos? (...) Como linguagem, a msica tende ao puronomear, unidade absoluta entre objeto e signo, que em sua imediaticidade estperdido para todo conhecimento humano (Adorno, 2002, p. 139).

    Ao evidenciar o paradoxo de uma arte no conceitual que representa contedos

    conceituais, Hanslick j apresenta, no obstante, o corretivo do carter abstrato de sua

    esttica musical: a msica no representa os sentimentos, mas apenas mimetiza os

    movimentos anmicos que podem acompanh-los, isto , os gestos. Adorno

    provavelmente diria que Hanslick tem razo contra si mesmo: se para ele esses

    movimentos esto subsumidos ao conceito, como adjetivos, para Adorno a

    possibilidade da expresso na msica se baseia justamente na autonomia dos gestos

    frente s representaes s quais o conceito o subsume. Assim tambm, a autonomia

    musical reflete essa autonomia do movimento anmico e do gesto frente ao conceitual

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    (#

    e abre espao para a expresso de movimentos anmicos no subsumidos

    universalidade do conceito.

    Contudo, aps serem negados em prol da gestualidade e do orgnico, o

    conceito e a razo reaparecem, ainda que transformados. Gesto e linguagem

    conjugam-se na msica, segundo Adorno. As implicaes de sentido extra-musicais,

    desde o eco de marchas e msica blica na grande sinfonia (...) at os reais e extra-

    estticos shocks e emoes da alma, desde cujos documentos cristalizou-se a nova

    linguagem formal da msica (Adorno, 2002, p. 142), por um lado; e a articulao

    dos sons no interior de um processo, por meio de uma construo racional da forma,

    por outro: estes dois elementos opostos apresentam-se na msica intrincados, e torna-

    se, portanto, impossvel separ-los um do outro. O carter lingustico da msica no

    deve ser entendido como sua participao no mundo dos significados, pois no

    possvel separar, no gesto, significante e significado: no ato do puro nomear

    diferente do de significar o nome aparece na msica como puro som, separado de

    seu portador, e portanto como o oposto de todo ato de significao, de toda inteno

    de sentido (Adorno, 2002, p. 140). O que a constitui como linguagem suaparticipao no mundo da racionalidade, j que

    A msica no conhece o nome o absoluto como som imediatamente, mas, se possvel expressar-se assim, se esfora por uma construo que o conjure pormeio de um todo, de um processo. Portanto ela est ao mesmo tempo entrelaada

    no interior desse processo, no qual categorias como racionalidade, sentido,significado, linguagem ganham sua validez (Adorno, 2002, p. 140).

    nessa tenso entre o anseio pela nomeao de algo imediato e no

    intencional e a articulao racional em virtude da qual tal nomeao se torna possvel

    que Adorno identifica a contradio essencial no interior da qual se move a criao

    musical:

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    40/160($

    O paradoxo de toda msica que, como um esforo em direo quilo nointencional para o qual foi escolhida a inadequada palavra nome, ela sedesdobra precisamente apenas por causa de sua participao na racionalidade nomais amplo sentido (Adorno, 2002, p. 140).

    A especificidade da linguagem musical no pode ser compreendida, segundo

    Adorno, a no ser a partir dessa essncia contraditria.

    Por uma parte, [a racionalidade musical] implica que a msica, atravs dadisposio sobre o material da natureza, se transforma em um sistema mais oumenos rgido, cujos momentos singulares tm um significado independente dosujeito e ao mesmo tempo aberto a ele. Toda msica, desde o princpio da pocado baixo contnuo at hoje, est unida como um idioma, que em boa medida est

    dado pela tonalidade, e cujo poder continua ainda na negao atual da tonalidade.O que designa o termo musical no uso mais simples da linguagem, se referejustamente a esse carter idiomtico, a uma relao para com a msica na qual seumaterial, em virtude de sua objetivizao, se converte em segunda natureza dosujeito musical. Mas, por outra parte, tambm sobrevive, no momento da msicasemelhante linguagem, a herana do pr-racional, mgico, mimtico: graas sua linguistizao, a msica se afirmou como rgo da imitao (Adorno, 2002, p.145).

    A msica determinada, por um lado, pelos seus elementos abstratos e

    universais, que esto para alm da singularidade de cada msica determinada. O que

    se obtm por meio desta abstrao aquilo que comum entre elas: os elementos

    musicais sedimentados que se abstraram desta ou daquela msica em particular para

    constiturem um referencial abstrato compartilhado daquilo que musical, queestabeleceria os padres de reconhecimento e legitimidade ante os quais os

    momentos expressivos e particulares de cada msica deveriam se curvar para no se

    tornarem incompreensveis. Dito de outro modo, um sistema, um idioma.

    Por outro lado, a msica no pode ser compreendida sem uma considerao de

    seus momentos expressivos, nos quais vai alm dos elementos convencionais, em

    direo a algo que tende ao informe e ao pr-racional: nesses momentos, ela se

    particulariza, se lana para alm dos elementos universais criando, por meio de um

    processo, novas configuraes que so irrepetveis.

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    )&

    Isto pode explicar porque, conforme vimos no sub-captulo anterior, Adorno

    no identifica, tal como Dahlhaus o faz, a aspirao originalidade como uma das

    caractersticas da msica expressiva ocidental, cuja expressividade assume, para o

    filsofo, o sentido de uma mera simulao de paixes. A esttica de Adorno, no s

    naFilosofia da Nova Msicamas nos escritos sobre msica e sobre artes em geral, se

    desenvolve a partir das questes tcnicas e formais apresentadas por cada uma das

    obras. Adorno no prope uma reflexo sobre as doutrinas estticas enquanto tais,

    mas sim uma reflexo sobre as questes estticas emanadas pelas prprias obras. Sua

    esttica algo que podemos chamar de uma esttica materialista: no se trata de uma

    discusso das idias enquanto tais, mas sim na medida em que elas estabelecem

    relaes concretas, com a criao artstica e sua histria. Essa exigncia de uma

    expresso subjetiva e original deixa de ser apenas um preceito esttico e passa a

    enredar-se em uma dinmica histrica concreta na medida em que mobiliza os

    elementos construtivos intra-musicais da forma autnoma. A concepo da forma

    como um todo coeso e racional abriu um caminho para que a expresso subjetiva

    pudesse aparecer como uma fora concreta no interior da msica e ganhar o sentidode uma singularizao irrepetvel, que paradoxalmente s se torna possvel em

    virtude dos elementos objetivos da forma. Dahlhaus tambm tem isto em mente:

    seguindo a prpria exposio desse conceito de expresso subjetiva, no ensaio

    Transformaes da esttica do sentimento (Dahlhaus, 2003), ele apresenta a

    contradio em que a msica se enreda ao tomar essa expresso como princpio.

    Enquanto composio, enquanto letra escrita, a arte da expresso musical enreda-se num paradoxo que, no entanto, no se pode abolir como contradio morta,mas se deve conceber antes como contradio viva, que impele a evoluohistrica. Se a msica visa tornar-se (...) persuasiva e expressiva e o princpio daexpresso , desde o final do sc. XVIII, o agente da sua histria deve ento, porum lado, para ser compreensvel, cunhar frmulas: na pera, constituiu-se um

    vocabulrio que tambm se estendeu msica instrumental. Por outro lado, aexpressividade, enquanto efuso do corao e expresso do prprio ntimo,optou pelo desvio do habitual e do batido. (...)A expresso encontra-se, pois, contraditoriamente cruzada com a conveno, e o

    particular com o geral. Se, enquanto subjetiva, irrepetvel, incorre ao mesmo

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    tempo, para ser clara, na coao consolidao. No instante em que se realizanuma existncia apreensvel, abandona a sua essncia (Dahlhaus, 2003, p. 37).

    Expusemos at aqui esses dois conceitos de expresso mobilizados por Adorno

    como modelos negativos ao abordar o expressionismo musical de Schoenberg

    expresso como simulao de paixes e como comando subjetivo da totalidade daforma; desenvolvemos a crtica de Hanslick esttica do sentimento, crtica esta que

    parte dos conceitos de autonomia da forma e de totalidade; posteriormente,

    desenvolvemos a crtica de Adorno hipstase do todo sobre as partes na esttica de

    Hanslick. Podemos perceber de tudo isto que Adorno mobiliza esse conceito de

    expresso ligado totalidade da forma no sentido de desenvolver, por assim dizer, doseu negativo, o conceito daquilo que podemos designar como uma singularizao

    expressiva, em que a expresso no mais se constitui a partir da totalidade da forma

    como um princpio isolado, mas dos momentos particulares irredutveis ao todo que

    se configuram e tornam-se expressivos em virtude da sua relao dinmica com o

    princpio formal abstrato. O propsito disto foi apresentar a caracterizao adornianada situao geral da expresso musical no contexto esttico e composicional em que

    emergiu o expressionismo musical e, em particular, o monodrama Erwartung. A

    ruptura representada por esta obra s pode ser adequadamente compreendida se

    levarmos em conta os desafios com os quais se deparava a composio musical, em

    nosso caso especialmente em virtude das dificuldades enfrentadas pelos compositores

    que se mantinham fiis ao princpio da expresso. O expressivo de Erwartung

    abandona esse princpio de autonomia da forma compreendido como uma

    subsuno dos momentos singulares ao esquema geral da forma por meio do qual

    as partes constituem-se como funo do todo. Nela, a expresso no se constitui

    atravs dessa tenso entre a parte e o todo: Erwartung realiza a idia de uma

    expresso imediata, emancipada dos meios estilsticos e formais estabelecidos, um

    impulso de negao radical da tradio estilstica do passado. No entanto, s

    possvel compreender a necessidade desta posio radical de recusa dos recursos

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    )'

    formais estabelecidos aps abordarmos o conceito adorniano de fetichismo musical,

    j que as crescentes dificuldades na criao de obras musicais consistentes e fiis ao

    princpio expressivo so, para Adorno, um fenmeno inseparvel da tambm

    crescente fetichizao da cultura, e da msica em particular. Mas antes de passarmos

    ao captulo sobre o fetichismo, desenvolvamos melhor essa concepo da expresso

    calcada na autonomia da forma, detendo-nos, neste momento, no parmetro da

    harmonia.

    1.3 Harmonia

    Mas inclusive a liberao da melodia de seu antigo carter de acorde perfeito devido ao lied romntico continua no marco da universalidade harmnica. Acegueira com que se desenvolveram as foras produtivas musicais, especialmentea partir de Beethoven, deu como resultado despropores. Cada vez que umaesfera isolada do material se desenvolvia num movimento histrico, as outras

    partes ficavam atrs e desmentiam na unidade da obra aquelas partes maisavanadas e desenvolvidas. Durante o romantismo, isto valia sobretudo para ocontraponto. Aqui o contraponto se converte num mero agregado de composiohomofnica. Nesta poca os compositores limitam-se a combinar exteriormenteos temas pensados homofonicamente ou a adornar de maneira puramenteornamental o coral harmnico com partes polifnicas. Nisto se assemelhamWagner, Strauss e Reger (Adorno, 2009, p. 53).

    Essa observao de Adorno, de que na msica romntica os parmetros maisdesenvolvidos so absorvidos pelos menos desenvolvidos, de que os avanos do

    contraponto e do pensamento horizontal so relativizados pela universalidade

    harmnica, deve ser considerada no mbito das reflexes do autor sobre o conceito de

    racionalizao da msica, de organizao racional de todo o material musical, para

    empregar uma expresso que aparece poucas linhas abaixo da ltima citao. Estamesma racionalizao posteriormente conduziu, aos olhos de Adorno, tcnica

    dodecafnica. Frente selva natural que comumente caracterizava o

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    desenvolvimento dos parmetros musicais, desordenado e independente, a unificao

    da melodia e da harmonia sob o primado da harmonia visto por Adorno como um

    pressuposto histrico-musical da organizao total dos materiais. Esse papel inicial

    central da harmonia na organizao racional da msica faz eco, no por acaso, com o

    conceito de racionalizao musical desenvolvido por Max Weber em seus

    Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica (Weber, 1995), obra que Adorno

    indubitavelmente conhecia e tinha em mente ao apresentar, na Filosofia da nova

    musica, a concepo de uma organizao racional do material musical.

    Max Weber apresenta uma concepo de expresso baseada na autonomia da

    forma. Para ele, a forma autnoma absorve os elementos que a negam, isto , o

    irracional, mas desde que toda irracionalidade se submeta a um sistema racional de

    atribuio de sentido, ou seja, ao princpio formal abstrato. Assim, possvel pensar

    em uma teoria da expresso musical como um dos desdobramentos da teoria

    weberiana da racionalizao musical. Segundo Weber, racionalizao e expresso

    aparecem juntos na msica moderna ocidental, fundamentalmente sob o primado da

    harmonia. Porm, ao contrrio de Hanslick, Weber no considera a msica como uma

    realidade hermtica, impermevel a elementos extra-musicais. Expresso e

    racionalidade musical, ou expresso e forma no se identificam reciprocamente,

    como ocorre em Hanslick, mas estabelecem uma relao de tenso.

    Antes de explicitarmos esta relao, aproximemo-nos do conceito weberiano

    de racionalizao musical. Ao contrapor, arte racionalizada, uma outra arte anterior,no racionalizada e a servio da religio, Weber apresenta o fundamental da primeira:

    Com o desenvolvimento da msica a uma arte estamental (...), com aultrapassagem do emprego meramente prtico-finalista das frmulas sonorastradicionais e, por conseguinte, com o despertar das necessidades puramente

    estticas, inicia-se regularmente sua verdadeira racionalizao (Weber, 1995, p.86).

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    A msica se racionaliza ao livrar-se de funes rituais, no interior das quais

    adquiria poderes mgicos, religiosos, medicinais etc. Os materiais musicais eram

    nesses contextos determinados a partir de frmulas, s quais se atribua poderes

    sobrenaturais. Portanto, um dos aspectos da racionalizao musical sua

    autonomizao em relao a funes rituais. Livres da subordinao a tais funes

    extra-musicais, os materiais musicais passam a ser adotados e desenvolvidos a partir

    de necessidades puramente musicais. Autnoma em relao aos fins prticos, a

    msica se realiza em funo do gozo esttico (Waizbort, 1995, p. 39).

    No entanto, a autonomia da msica no se esgota, segundo Weber, na liberao

    em relao aos objetivos prtico-finalistas. Mesmo realizada com o objetivo do gozo

    esttico, a msica ainda pode constituir e desenvolver seu material pela mimetizao

    de elementos extra-musicais.

    Em certas circunstncias, a fala pode ainda exercer (...) uma influncia direta ecompleta sobre a formao do curso da melodia: se esta lngua, por exemplo, foruma das chamadas lnguas sonoras, nas quais o significado das slabas varivel

    de acordo com a altura do som em que so pronunciadas (Weber, 1995, p. 81).

    Weber comenta em seguida uma srie de casos nos quais a msica toma as

    caractersticas da fala como um princpio mimtico. Em contraposio a isso,

    racionalizao tambm significa autonomizao em relao a qualquer princpio

    mimtico extra-musical no interior da msica.A racionalizao da msica, para Weber, no unvoca: pode se dar em

    diversos graus e direes. Weber descreve e analisa em sua sociologia da msica as

    msicas de diferentes povos, suas caractersticas especficas e seus diversos graus e

    modos de racionalizao. O que principalmente lhe interessa determinar aquilo que

    especifico msica ocidental. Tal especificidade consiste justamente no carter

    harmnico da racionalizao de intervalos. No entanto, Weber mostra atravs dos

    inumerveis exemplos de msicas de diferentes povos que o material musical no se

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    deixa racionalizar harmonicamente isto , pela simples diviso matemtica da

    oitava sem criar certos problemas que devem ser resolvidos no interior de cada

    sistema musica