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ANTNIO MANUEL HESPANHA

I MBECILLITAS .AS BEM-AVENTURAAS DA INFERIODADE NAS SOCIEDADES DE ANTIGO REGIME.

-ufmg- fafich, 2008

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ANTNIO MANUEL HESPANHA , IMBECILLITAS. AS BEM-AVENTURAAS DA INFERIODADE NAS SOCIEDADES DE ANTIGO REGIME.

1. Categorias. Um pouco de teoria da histria. ................................ 4 2. A Ordem. .......................................................................... 26 2.1. 2.2. 2.3. 2.4. 2.5. 2.6. Cosmos. A ordem - uma categoria do poltico na poca moderna.26 Consequncias institucionais. ____________________________ 30 Ordem e estado. _______________________________________ 31 Perfeio e diferena. ___________________________________ 31 Diferena e hierarquia. Estados, pessoas e individuos. _______ 33 Uma ordem universal de criaturas. ________________________ 36

3. Menores. .......................................................................... 42 4. Loucos, prdigos, falidos e vivas gastadeiras . ......................... 53 5. Mulheres, esposas e vivas. .................................................. 65 5.1. Mulheres. _____________________________________________ 65 5.1.1. __ Menos dignas. ______________________________ 68 5.1.2. __ Frgeis e passivas. __________________________ 72 5.1.3. __ Lascivas, astutas e ms. ______________________ 74 5.1.4. __ Portugal. ___________________________________ 76 Esposas . _____________________________________________ 77 Uma comunidade natural. ________________________________ 78

5.2. 5.3.

5.3.1. __ Uma comunidade fundada no amor. _____________ 81 5.3.2. __ A economia dos deveres familiares. _____________ 84 5.3.3. __ Marido e mulher: uma igualdade enviesada. _______ 86 5.3.4. __ Uma comunidade de bens e de trabalho. _________ 88 5.3.5. __ A perpetuao da unidade: primogenitura e indivisibilidade sucessria do patrimnio familiar. __________________________ 88 5.3.6. __ Entre a unidade da famlia e a igualdade dos filhos. _ 90 5.3.7. __ Outras fidelidades domsticas. _________________ 90 5.3.8. __ A fora expansiva do modelo domstico. _________ 92 6. Rsticos. .......................................................................... 96 7. Selvagens e brbaros . ....................................................... 136 8. Pobres e miserveis . ......................................................... 159 9. Mobilidade. ..................................................................... 169 9.1. Introduo. ___________________________________________ 169

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; e-mail: [email protected]: webpage: www.hespanha.net .

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9.2. 9.3.

Ordem e vontade. Um mundo relativamente indisponvel. ____ 171 O equilibrio. __________________________________________ 172 9.3.1. __ Honestidade. ______________________________ 172 9.3.2. __ Justia. ___________________________________ 176 A mudana. __________________________________________ 177 9.4.1. __ Ordem e tempo. ____________________________ 177 9.4.2. __ Obras.____________________________________ 179 9.4.3. __ Graa: gratido, liberalidade e misericrdia. ______ 182

9.4.

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Voc conhece o meu mtodo, meu caro Watson. Parte da observao das coisas insignificantes, Sir Arthur Conan Doyle, The Bascombe Valley Mistery, 1891.

1. Categorias. Um pouco de teoria da histria. O tema deste curso so categorias. Podia chamar-lhes imagens, representaes ou conceitos. Escolho a primeira palavra propositadamente. Categoria remete, na reflexo sobre o conhecimento, para a ideia de modelos de organizao das percepes, da realidade, se quisermos. Ou seja, conota uma capacidade activa, estruturante, criadora (poitica) na modelao do conhecimento. E este um sinal metodolgico que queria deixar desde j, o de que pressuponho que estas entidades a que me referirei tm essa capacidade de criar conhecimento (se no - adianto j toda a provocao ... - de criar realidade). Nisso categoria leva vantagem sobre as restantes palavras, nomeadamente sobre imagem, ou representao. Tradicionalmente, imagem ou representao eram palavras que denotavam alguma passividade. A imagem era a cpia, ou representao, de uma coisa. Representar, em termos jurdicos, era estar em vez de. J em termos teatrais e polticos, no Antigo Regime era um tanto mais do que isso: era antes, apresentar algo escondido, mesmo inevitavelmente escondido; com o que representar podia constituir a primeira viso de uma coisa, uma apresentao, como quando apresentamos tornamos conhecidas pela primeira vez - pessoas. Do mesmo modo, o reino, como corpo mstico, via-se pela primeira vez (apresentava-se) nas Cortes 1. Com isto, j havia alguma novidade e criao. Hoje em dia, os historiadores mesmo aqueles que no se confessam de bom grado como construtivistas fazem dos termos imagens, imaginrio e representao um uso que lhes reala, alm do aspecto arbitrrio, o seu aspecto poitico. Ou seja, por um lado, sublinham que a imagem no mantm nenhum vnculo foroso com a realidade, antes sendo criaes autnomas dos sujeitos (colectivos, prefere-se hoje pensar). Por outro lado, realam que, uma vez instalados, estes imaginrios modelam as percepes, as avaliaes, os comportamentos. Com esta reviso, o termos convm-me e, por isso o usarei por vezes, para evitar a monotonia do discurso. Em todo o caso, categoria tem uma vantagem suplementar a de realar o carcter orgnico, arrumado, destes quadros mentais. O facto de eles constiturem conjuntos tendencialmente coerentes entre si, com lgicas internas de organizao e de desenvolvimento. Para alm de que, apesar de tudo, me parece mais forte a evocao da sua natureza activamente organizadora. Esta remisso para a lgica de organizao existe tambm na palavra conceito. Na sua etimologia est o verbo latino capere, que significa agarrar,

1 Hasso Hofmann: ReprsentationStudien zur Wort- und Begriffsgeschichte von der Antike bis ins 19. Jahrhundert. Habilitationsschrift. Schriften zur Verfassungsgeschichte, Band 22. Berlin, 1974; Paolo Cappellini, Rapresentanza in Generale - Diritto Intermedio, in Enciclopedia del Diritto, Milano, Giuffr, vol. XXXVIII, 1987.

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tomar; tal como, no correspondente alemo (Begriff), est o verbo greifen, com a mesma conotao activa, ao passo que ao sinnimo Auffassung subjaz o verbo fassen, agarrar, apanhar, tomar. O que me afasta da palavra o facto de estar muito embebida por concepes racionalistas; por insinuar um esforo mental consciente e reflectido, tpico dos pensadores e dos filsofos, gente de que no me vou ocupar muito, enquanto tais, ou seja, enquanto produtores conscientes e individualizados de ideias. Temo que, se optasse por falar de conceitos se confundisse o meu trabalho com uma empresa de histria das ideias, concebida como histria de ilusres pensadores e dos seus intencionais pensamentos. E no disso que vou tratar. Qualquer grande pensador que aqui aparea aparece sem gales, reduzido a um soldado raso (eventualmente mais eloquente) de um grande exrcito annimo. certo que a ideia de uma histria dos conceitos 2 foi relanada por Reinhardt Koselleck intenes muito semelhantes s que exprimi 3. Em todo o caso o peso da palavra conceito ainda , nos discursos usuais, demasiado para que se utilize sem a preocupao de se ser mal entendido, aproximando-nos fora de uma histria individualista, subjectivista, intencionalista das construes intelectuais. O projecto de uma histria das categorias tem que combater em duas frentes. Por um lado, tem que combater, na frente da histria social, aqueles que acham decerto vacinados pela histria tradicional das ideias que, como a histria se faz de actos humanos e no de palavras l, nesse plano dos actos e comportamentos, que a historiografia tem que assentar arraiais. Claro que esses homens que agem tambm pensam e tambm falam. Mas esse pensar e esse falar limitar-se-iam a pensar em coisas e a falar de coisas. Por outras palavras, Os homens construiriam o o pensamento a partir da realidade, avaliariam a realidade em funo de interesses e, em funo da realidade e da sua avaliao, assumiriam comportamentos, uns dos quais eram discursos, com os quais traduziriam em palavras o modo como viam e avaliavam a realidade e a forma como reagiriam; os quais, de novo, seriam apreendidos por outros como realidades, avaliados segundo outros interesses e respondidos com outros comportamentos. Interesses, realidades, comportamentos seriam, termos sociais, coisas. O resto, incluindo as palavras, seriam, nos mesmos termos, no coisas. Como a histria social se devia ocupar de coisas, as ideias e as palavras no faziam parte dela, por justamente lhes faltar espessura social. Hoje j poucos pem as coisas assim. Quase todos percebem que h mediaes, refraces, criao: (i) na passagem da realidade sua representao intelectual; (ii) na identificao dos nossos interesses; (iii) na

2 Hans Erich Bdeker (ed.), Begriffsgeschichte - Diskursgeschichte Metapherngeschichte, com contributos de Reinhart Koselleck, Ulrich Ricken, Hans Erich Bdeker, Jacques Guilhaumou, Mark Bevir, Rdiger Zill und Lutz Danneberg, Gttingen: Wallstein Verlag 2001 (publ. do Max-Planck Institut fr Geschichte). J o Archiv fr Begriffsgeschichte, ed. por Gunter Scholtz, em colaborao com Hans-Georg Gadamer e Karlfried Grnder (desde 1955), tinha a inteno de constituir um ponto de partida para um dicionrio dos conceitos filosficos. 3 Cf. Reinhardt Kosellek, Le futur pass. Contribution la smantique des temps historiques, Paris, ditions de lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales, 1990 ; Koselleck, Reinhart, Practice of Conceptual History: Timing History, Spacing Concepts, Stanfird University Press, 2002 (com prefcio de Hayden White). Fora da Alemanha, uma proposta semelhante tem sido avanada por J. G. A. Pocock, Q. Skinner [James Tully (ed.), Meaning and Context: Quentin Skinner and His Critics, Princeton University Press, 1989, 370 pp.) ; Giuseppe Duso , La logica del potere. Storia concettuale come filosofia politica, Laterza, Biblioteca di cultura moderna, 1999, M. Barberis, Libert, Bologna, Il Mulino, 2002, Introduo.

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avaliao da realidade em face deles; (iv) na formulao de programas de acoresposta (reaco). Mas algumas manhas persistem. Por exemplo, a de, quando se fala na autonomia e criatividade dos discursos e das sua figuras, se responder com o facto de que estes no falam por si, mas que so apropriados socialmente. E que, sendo-o, perdem uma lgica prpria e se dobram lgica dos interesses dos grupos apropriadores. E, com isto, voltamos vaca fria. Pois os tais interesses voltaram a ser coisas perante as quais as palavras recebidas (apropriadas, tornadas coisa prpria pelas imperiais coisas) voltaram a perder qualquer autonomia). Que existe uma sobre-determinao de sentido local sobre o sentido geral, que falamos, ouvimos, sentimos, avaliamos em situao e que isso redefine os sentidos gerais, parece evidente. Mas que essa redefinio decorra de interesses em bruto, no estado de natureza, no mediados por representaes particulares, uma coisa totalmente diferente. Outra via de recuperar a soberania das coisas a de, falando-se em discursos, se responder com as prticas. As prticas sero, naturalmente, coisas. Puras e duras. Gestos, gestos cruzados, contra-gestos, contagens, frequncias, viagens, tiros, cpulas, cultivos, Coisas meramente exteriores, sem qualquer interioridade. Uma vnia j duvidoso que o seja; uma palavra, quase nunca; uma ideia, isso jamais. Se houver um qualquer interior na prtica, ela j deixa de ser prtica e passa a representao. De modo que a tal dialctica entre prticas e representaes, entre prticas e discursos, uma quadratura do crculo. , na verdade, uma maneira de simular alguma abertura s representaes, por quem, na verdade, cr que elas cantam ociosamente, enquanto as prticas, afanosamente, constroem a histria. Bondosamente, sugere-se agora que a formiga para s vezes um bocadinho para ouvir a cigarra. Mas segue, imperturbada, a sua lida. *** Num texto de sntese 4, Koselleck sistematiza algumas das razes da autonomia da histria dos discursos. A primeira delas parece banal; mas contm mais de razo que aquilo que aparenta. Trata-se do uso de conceitos tcnicos ou enfaticamente carregados de sentido. Uns e outros tm uma evidente espessura, que os faz dizer para alm do que aquilo que os locutores querem. No primeiro caso de que os exemplos tpicos so as linguagens formalizadas, como, por exemplo, as linguagens de programao dos dias de hoje -,estamos perante aquilo a que Umberto Eco chamou os limites da interpretao 5: o conceito, na sua fixidez tcnica ou formalista, resiste apropriao. E, por isso, a histria social no tem grande volta a dar-lhe. Dirse- que, na longa durao, isto raramente ou nunca acontece, pois no h

4 5

Cf. Reinhardt Kosellek, Le futur pass, cit.

Umberto Eco, I limiti dell'interpretazione, Milano 1990; trad. ingl., The limits of interpretation, Bloomington, Ind. : Indiana University Press, 1990.

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formalismo que resista ao tempo. verdade, mas, no curto e mdio termo claro que h discursos e categorias no disponveis. Existe, no entanto, uma segunda espcie de indisponibilidade: a dos conceitos to carregados de sentido, que este sentido (positivo ou negativo) sobre-investe o sentido dos utilizadores. As categorias dizem mais do que se quer, tm sentidos preter-intencionais. por isso que nem um honesto ateu est vontade com a palavra Deus; ou que um rebento das boas velhas famlias portuguesas nunca usa, deliberadamente, a rabiosa palavra vermelho, mas apenas encarnado. Num plano menos ftil, Kosellek descreve o impacto objectivo de palavras polmicas na histria poltica europeia, como revoluo, feudal, cidado. Mesmo ciciada, melosamente insinuada, revoluo sempre Revoluo (ibid., 103). Da que estas palavras fecundas no sejam domesticamente apropriveis, seno limitadamente, pelos grupos sociais. Realmente, elas esto antes deles; fazem eventualmente os grupos sociais 6. *** E com isto entramos num segundo aspecto da autonomia da histria dos discursos. Os discursos como palcos de lutas sociais. As categorias como praas fortes que se conquistam ou se perdem, na luta social. Realmente, muitos nomes no so apenas nomes. Intelectual, burgus, proletrio, homem, demente, rstico, so, alm de sons e letras, estatutos sociais pelos quais se luta, para entrar neles ou para sair deles. Numa sociedade de classificaes ratificadas pelo direito, como a sociedade de Antigo Regime, estes estatutos eram coisas muito expressamente tangveis, comportando direitos e deveres especficos, taxativamente identificados pelo direito. Da que, ter um ou outro destes nomes era dispor de um ou outro estatuto. Da que, por outro lado, classificar algum era marcar a sua posio jurdica e poltica. A mobilidade de estatuto que ento existia no era tanto uma mobilidade social, nos termos em que hoje a entendemos (enriquecer, estudar, melhorar o crculo das suas relaes, mudar de bairro); era antes e sobretudo uma mobilidade onomstica ou taxinmica conseguir mudar de nome, conseguir mudar de designao, de categoria (discursiva), de estado (nobre, fidalgo, jurista, peo, lavrador). Claro que a mudana de vida podia ser importncia; mas quem decidia dessa importncia era a prpria entidade conceptual que designava o estado pretendido. Ou seja, era o conceito de nobreza (a definio da categoria da nobreza) que decidia que mudanas de vida eram necessrias para se ser admitido. Pierre Bourdieu generalizou esta perspectiva a todos os mecanismos de distino social, construindo uma teoria geral sobre o modo de organizar estratgias de luta por smbolos, por marcas de distino 7. E tambm explicou

Cerruti (Simona), " La construction des catgories sociales ", in Boutier (Jean), Julia (Dominique) (dir.), Passs recomposs. Champs et chantiers de l'histoire, Paris, Autrement, 1995, p. 224-234. Aplicao: Cerutti (1990), Simona, La ville et les mtiers. Naissance d'un langage corporatif, Turin, 17e-18e sicle), Paris, EHESS, 1990. Para Portugal, uma aluso ao problema em Nuno L. Madureira (coord.), Histria do trabalho e das ocupaes. III. A agricultura: Dicionrio, Lisboa, Celta, 2002, Introduo (Conceio Martins, Nuno Monterio)7

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P. Bourdieu, La distinction, Paris : ditions de Minuit, 1979.

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que, j quando se fala, se esto a fazer coisas muito mais complicadas do que designar objectos existentes a, em estado bruto, fora do discurso. Na verdade, no apenas se esto a construir, de novo, objectos; como se est a construir poder, por vezes um poder imenso, com essas coisinhas aparentemente volteis e frgeis que so as palavras 8. Por isso que podemos encarar a categorizao social como uma forma de institucionalizao de laos polticos; e as tentativas de re-categorizao como uma espcie de revoluo. Simona Cerruti estudou este impacto poltico das categorias na sociedade torinense dos fins do Antigo Regime e o modo como a reforma social e poltica passava sobretudo pelo refazer do mbito e hierarquia dessas categorias. Em Portugal, Nuno Monteiro e Fernanda Olival, entre outros, tm, por sua vez, estudado as lutas pelo poder de classificar; os seus trabalhos 9 mostram a persistncia da poltica da coroa para se arrogar o direito de classificar pessoas como nobres (nobilitar) ou como cavaleiros das ordens militares, enquanto a nobreza mais antiga e os juristas cada grupo pelas suas razes se manifestavam frequentemente no sentido de que essa classificao era feita pela natureza, pelo valor, pelos usos e fama estabelecidos, nveis de leitura em que eles eram os peritos com o poder de classificar 10. Num estudo de h uns anos mostrei como o uso pelos juristas medievais de categorias de classificao dos oficiais pblicos provindas do Imprio bizantino e j sem qualquer correspondncia com a realidade poltico-administrativa tinha efeitos polticos concretos, inculcando a ideia de centralizao poltica e de hierarquia dos funcionrios entre si 11. Neste caso, o conjunto das categorias nem sequer aplicado a pessoas. Apenas funciona como um modelo de organizao poltica com o qual a situao administrativa instalada continuamente confrontada, sendo por ele avaliada e paulatinamente conformada. O prprio facto de estas categorias serem objecto de um confronto social i.e., de os seus contornos e contedos serem objecto de despique f-las, evidentemente, mover, Mas apenas nos termos de uma gramtica que a delas. Ou seja, o prprio sistema das categorias que selecciona as regras da luta. Nem todos os argumentos serviam, nem todas as autoridades eram sempre invocveis, nem todos os limites eram sempre ultrapassveis 12. *** Mas nem apenas no plano da categorizao tm os conceitos um impacto nas lutas sociais. Todo o conflito , de algum modo, raisonn. Ou seja, debate-se8 9

P. Bourdieu, Ce que parler veut dire: conomie des changes linguistiques, Paris, 1982.

Nomeadamente, Nuno G. Monteiro, O crepsculo dos Grandes, Lisboa, ICS, 2000; Fernanda Olival, As ordens militares e o Estado moderno. Honra, merc e venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2002.10 11

Cf. A. M. Hespanha, "A nobreza nos tratados jurdicos dos scs. XVI a XVIII", Penlope, 12(1993), 27-42.

A. M. Hespanha, "Reprsentation dogmatique et projets de pouvoir. Les outils conceptuels des juristes du ius commune dans le domaine de l'administration", em E.-V. Heyen (ed.), Wissenschaft und Recht der Verwaltung seit dem Ancien Rgime, Frankfurt/Main, Vitt. Klostermann, 1984, 1-28.12

Cf. Koselleck, cit, p. 103.

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mais do que se combate. Esgrimem-se argumentos, tentando desvalorizar os argumentos do adversrio e reforar o consenso social sobre os nossos. Argumentos, h-os para todos os gostos e para todas as causas. As Escrituras Sagradas e a tradio textual do direito (nomeadamente, o Corpus iuris civilis) foram fontes inesgotveis e muito variadas de tpicos polticos. Mas tambm os argumentos so relativamente indisponveis. Quanto a argumentao e a retrica constituam a base dos estudos propeduticos da universidade, todas as pessoas cultas, que participavam nos grandes debates, estavam conscientes das regras de uso de cada argumento. Para isso existiam os tratados De argumentibus et locis communibus (Dos argumentos e lugares comuns). Hoje, no dispomos deste ensino formal. Mas cada argumento, para alm de ter as suas regras prprias, chama por outros ou repele outros. Realmente, o campo dos argumentos est organizado por regras de implicao, de simpatia, de antipatia ou de excluso. De tal modo que o uso de um tpico conveniente pode implicar a aceitao de outros muito inconvenientes. Por exemplo, e como veremos mais tarde. Era conveniente, para a justificao da escravatura, aceitar o tpico aristotlico de que havia homens que, por natureza, estavam destinados a servir. Mas a aceitao deste tpica implicava reconhecer que o gnero humano no era uno e que, portanto, a Salvao no podia ser universal 13. Ou seja, nem tudo se pode invocar. E, mais do que isso, invocar certas razes pode ter consequncias indesejadas e indesejveis. De onde, as intenes polticas de quem fala - as razes dos polticos, colhidas na histria poltica conjuntural podem no ser a nica instncia decisiva do que dito. A lgiva interna do prprio discurso em que elas se exprimem fornece, seguramente, outra leitura. Os seus argumentos existem previamente nas memrias tpicas no senso comum de uma cultura local (por exemplo, a cultura poltica, ou a cultura parlamentar); os argumentos tm competncias demonstrativas limitadas e organizam-se entre si segundo relaes objectivas. *** este facto da relativa indisponibilidade do discurso 14 que autoriza uma histria autnoma das categorias e dos discursos. Koselleck exprime esta ideia com nitidez: cada conceito abre certos horizontes, tal como fecha outros, define experincias possveis e teorias pensveis ... A linguagem conceptual um mdio dotado da sua prpria coeso que permite exprimir tanto a capacidade de experincia (Erfahrungsfhigkeit) como a dimenso terica (Theoriehaltigkeit) 15. Koselleck vai bem fundo na justificao do carcter criativo do discurso. Na verdade, ele sublinha o modo como o discurso conforma a prpria vida: ao prdeterminar a sua apreenso (experincia). Poder-se-ia acrescentar: ao avaliar13 Sobre este tema da cogncia das regras de argumentao, o melhor , ainda, Ch. Perelman & L. OlbrechtsTyteca, Trait de largumentation. La nouvelle rhtorique, Pars, PUF, 1958 ; Luigi Lombardi [Vallauri], Saggio sul diritto giurisprudenziale, Milano, Giuffr, 1975. Recente e muito til, Michel Meyer, Manuel Maria Carrilho e Benot Timmermans, Histria da Retrica, Lisboa, Temas e Debates, 2002. 14 Pode ir-se mais longe neste descentramento do sujeito locutor. Do discruso pode passar-se materialidade do suporte da comunicao: a oralidade, a escrita; ou, mesmo, a materialidade do layout tipogrfico, como tem sido sugerido pela material bibliography e pelos estudos de histria do livro. 15

Koselleck, Le futur pass , cit. 110.

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essa experincia, ao identificar os interesses, ao escolher os comportamentos. Em suma, antes dos momentos pragmticos, existem sempre momentos dogmticos. Da que, muito coerentemente, Koselleck inclua a histria das categorias no mbito da histria estrutural. As categorias constituem, de facto, modelos muito permanentes de atribuir sentido aos comportamentos individuais e individualizados (cada um dos significados ligados a uma palavra ultrapassa a unicidade prpria dos acontecimentos histricos, ibid., 115). Tal como as estruturas (virtuais) da lngua (langue) atribuem sentido lngua falada (langage) e aos actos de fala (linguistic utterances). neste sentido que as categorias conceituais escapam a uma histria cronolgica dos seus sucessivos usos, reclamando antes uma histria da gramtica abstracta que d sentido aos seus usos verificados e a verificar; a histria de um conceito no , por isso, uma mera cronologia (uma narrativa empirista de usos), comportando, tambm, aspectos sistmicos 16. *** De onde vem s categoria esta autonomia frente histria ? Se no vem das intenes dos locutores ou dos interesses dos grupos, de onde vem este seu poder de organizar as vidas ? H mais de trinta anos, Michel Foucault escreveu um livro muito importante sobre as categorias da cultura clssica europeia 17, descrevendo aquilo que, a um nvel muito profundo, o das suas categorias mais fundamentais, separara essa cultura, quer da anterior, quer da de hoje. Para descrever essas grandes formas culturais, essas molduras mais gerais do conhecimento, Foucault cunhou um conceito, o de episteme. Num momento em que as explicaes sociologistas da histria cultural tinham um impacto muito forte na cultua universitria francesa, Foucault foi severamente criticado pelo facto de no providenciar uma explicao sociolgica para a gnese destes modelos intelectuais. Dois anos depois, um novo livro aparece expressa e exclusivamente dedicado a explicitar a sua metodologia subjacente. O seu ttulo Larchologie du savoir, 1969 remete j para a ideia de que o saber tem uma origem. S que Foucault recusa enfaticamente uma concepo humanista desta origem, quer ele estivesse num sujeito individual (psicologismo, racionalismo clssico), quer num sujeito colectivo (sociologismo, nomeadamente o materialismo histrica da vulgata estabelecida) 18. Essa origem encontra-a Foucault em dispositivos materiais da produo cultural desde as tradies textuais aos circuitos de comunicao, desde as bibliotecas aos campos de objectos disponveis, desde

Uma vez forjado, um conceito contm, pelo nico facto de constituir lngua a possibilidade de ser empregue de forma generalisante, de constituir um elemento de tipologia ou de abrir perspectivas de comparao. Os conceitos no nos informam somente do carcter nico dos significados passados, mas contm possibilidades estruturais, apresentam estruturas contemporneas em conjunto com outras que o no so, de uma forma que que no possvel reduzir ao simples desenrolar dos acontecimentos na histria (ibid., 115).17 18

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Les mots et les choses, Paris, 1966. Que no inclui toda a sociologia cultural marxista, nomeadamente a gramsciana e ps-gramsciana.

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as linguagens tcnicas aos arquivos da memria cultural invocados, desde as formas de diviso social e de institucionalizao do trabalho intelectual s suas relaes com as estruturas sociaIs mais globais. nesses dispositivos e nas prticas discursivas que eles suscitam que as formaes discursivas, ou seja, as particulares configuraes dos discursos num determinado perodo, tm a sua origem. Glosado e adaptado de muitas formas, por vezes desenvolvido e estendido no seu mbito de aplicao, este texto continua, a meu ver, a ter uma enorme operacionalidade na resposta questo acima formulada. Os discursos no vm do nada, nem vm de um Todo que seja a Razo universal. Mas tambm no so, to pouco, a expresso, dcil e disponvel, de intenes dos sujeitos. Vm de prticas de discurso, em que, seguramente, h sujeitos que falam e que escutam; mas em que uns e outros falam e escutam em lugares e com meios sobre os quais no dispem de um poder de conformao. Estas prticas fazem parte da histria, mas de uma histria em que, no centro, no est o Sujeito, com o seu poder de atribuio de sentido. Mas antes dispositivos objectivos que, objectivamente, constituem os sentidos possveis. Dispositivos, uns intelectuais, outros materiais, outros sociais. Entre os primeiros esto as nossas categorias. Sem querer dar ao tema um desenvolvimento que, aqui, seria desproporcionado, remeto, com estas linhas, para uma obra cannica que estabelece a base terica e metodolgica de que aqui parto, e que explicitei melhor com especial aplicao aos discursos dos juristas em outros lugares 19. *** Na obra de M. Foucault, esta ideia de descentramento do sujeito, de substituio do sujeito como instituidor do sentido dos discursos por estruturas objectives de produo discursiva no abria explicitamente para aquilo que se veio a chamar bibliografia material. Ou seja, para a ideia de que na gnese dos sentidos do discurso podem estar elementos puramente materiais dos suportes da comunicao. Embora esta ideia que seguramente agradaria a Foucault j tivesse sido suficientemente explicitada por Walter Ong, no final dos anos 50, a propsito da histria da lgica ocidental 20. Para ele, a evoluo de um pensamento argumentativo, dominante at ao sc. XVI, para um pensamento sistemtico, cujo emblema vem a ser a nova lgica de Pierre de la Rame (Petrus Ramus), relaciona-se estreitamente com a difuso massiva da imprensa e com uma nova organizao da folha escrita 21. Alguns anos depois, Marshall McLuhanCf. A. M. Hespanha, Una historia de textos, em F. Toms y Valiente et al., Sexo barroco y otras transgresiones premodernas, Madrid, Alianza, 1990, 187-196; Tradizione letteraria del diritto e ambiente sociale, em Angela de Benedictis e Ivo Mattozi (eds.), Giustizia, potere e corpo sociale nella prima t moderna. Argomenti nella litteratura giuridico-politica, CLUEB, Bologna, 1994, 23-36.; v. tambm A histria do direito na histria social, Lisboa, Horizonte, 1978.20 Walter Ong, Ramus, Method and the Decay of Dialogue: From the Art of Discourse to the Art of Reason, Cambridge: Harvard University Press, 1958 21 A folha corrida substituindo o flio glosado, em que o texto cannico aparece rodeado dos comentrios (individualizados) de sucessivos autores. A segunda, materializando graficamente a situao discursiva de dilogo, de posies dissonantes e no integradas, era menos compatvel com a arte tipogrfica do que a primeira. Mas esta, promovia a reduo da pluralidade de opinies a uma exposio sistemtica. Cf., do mesmo autor, The Presence if the Word: Some Prolegomena for Cultural and Religious History, New Haven, Yale University Press, 1967; Rhetoric, Romance and Culture, 19

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voltou ao tema da influencia da estrutura material dos media na criao de sentido, alargando o mbito da discusso aos novos textos da galxia audiovisual (por oposio galxia do impresso 22. Do lado da antropologia, o tema completado por Jack Goody, numa obra clssica sobre o modo como a oralidade e a escrita condicionam o pensamento, mesmo nas suas operaes mais bsicas (listar, analisar, sistematizar, contextualizar) 23. At que surge tambm num seu lugar natural a histria do livro com a redefinio do prprio conceito de bibliografia, levada a cabo por de Donald F. McKenzie. De modo a incorporar no estudo dos textos, todos os elementos que contribuem para lhes dar sentido, comeando pela sua apresentao grfica, da responsabilidade dos editores e, antes deles, da prpria organizao da produo material do livro 24 25. Perspectivas deste tipo tm dois tipos de consequncias. Por um lado, afastam a ideia de sujeito e de intencionalidade do sentido ainda mais do centro da interpretao e da constituio das categorias. Por outro, convidam a um estudo das origens do sentido a uma arqueologia dos saberes muito atenta aos detalhes mais materiais da comunicao: no caso dos impressos: a estrutura do trabalho editorial e as suas consequncias no livro 26, a organizao da pgina, os tipos 27, o uso das maisculas 28, a diviso do texto impresso 29, a ilustrao do texto, o nmero de pginas 30, o formato do livro, a organizao das bibliotecas e as suas polticas de aquisies 31a prpria forma escrita e os significados que ela pode revestir para os seus utilizadores 32. A obra de McKenzie, um erudito estudioso da edio (alm de, no comeo da sua vida profissional, ele mesmo um tipgrafo), est repleta de exemplos de todo o peso que estes elementos materiais tm na produo de sentido.Ithaca, Cornell University Press, 1971; Orality and Literacy: The Technologizing of the Word, Ithaca, Cornell University Press, 1982. Sntese e aplicao ao direito no meu texto, Antnio Manuel Hespanha, Form and content in early modern legal books. Bridging the gap between material bibliography and the history of legal thought, Rechtsgeschichte, 12(March, 2008). Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man, Toronto, University of Toronto Press, 1962; Understanding Media: The Extensions of Man, New York, McGraw-Hill, 1964.23 Jack Goody, 1977. The domestication of the savage mind. Cambridge, Cambridge University Press [cujo ttulo, na verso francesa, muito feliz: La raison graphique]; Jack Goody, (ed.), Literacy in Traditional Societies, Cambridge, Cambridge University Press, 1968. 22

Fundamentais: D. F. McKenzie, Bibliography and the sociology of texts, London, British Library, 1986; bem como os seus ensaios recolhidos em Making meaning. Printers of the mind and other essays (ed. Por Peter D. McDonald & Michael F. Suarez, S,J,, Amherst-Boston, University of Massachusetts Press, 2002. Sobre o novo conceito de bilbiografia (material ou analtica), cf. a primeira obra, pp. 9 ss.. Sntese e aplicao ao direito no meu texto, Antnio Manuel Hespanha, Form and content in early modern legal books. Bridging the gap between material bibliography and the history of legal thought, Rechtsgeschichte, 12(March, 2008).25 Note-se que D. F. McKenzie se refere a um conceito muito alargado de texto, que engloba a escrita, a imagem parade ou em movimento, o som, etc.. 26 Printers of the Mind: Some Notes on Bibliographical Theories and Printing-House Practices, em Making meaning , cit, 13-85. 27 Indenting the Stick in the First Quarto of King Lear (1608), ibid. 86-90; ou Stretching a Point: Or, The Case of the Spaced-out Comps, ibid., 91-109. 28 29

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Cf. um texto meu, j antigo, "Forma e valores nos Estatutos Pombalinos", Vrtice, 347 (1972), 927-941.

McKenzie refere um dito de Th. Hobbes sobre o impacto que a atomizao da Bblia em versculos teria tido na sua apropriao por vrias seitas crists ( Biblography ..., cit., 56. O exemplo aduzido por McKenzie tirado de James Joyce, adaptando o nmero de pginas sugesto subliminar da importncia do nmero 13.31 32 30

Our Textual Definition of the Future: The New English Imperialism? , em Making meaning, 276 ss..

Notvel, a sua anlise do Tratado de Waitangi, celebrado, em 1840, entre a coroa britnica e 46 chefes maori: The sociology of a text: oral culture, literacy, and print in early New Zealand, em Bibliography ..., cit. 77-130. Sobre as transies de suporte comunicativo, mas na Europa do sc. XVII, v. Speech Manuscript - Print , em Making meaning ..., 237-258.

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*** Mas - abordando agora a questo de outro ponto de vista - far sentido a teoria da aco implcita nesta estratgia de explicao histrica ? Na qual modelos ou horizontes mentais tendem a pre-formar, tanto o diagnstico das situaes, como as estratgias de comportamento ? Em que o macro a condio da interpretao do micro ? 33 Sirva-me de contra-exemplo, para clarificar o meu ponto, uma obra recente sobre histria da cultura, inserida em prestigiadas correntes actuais e escrita com uma grande nitidez de contornos tericos 34. E o que l encontrei, na proposta inicial e na concretizao, , ponto por ponto, um ataque em forma a esta maneira de ver as coisas. A, todo o sentido reside no contexto. a situao, o caso, que, na suas caractersticas irrepetveis e irredutivelmente complexas, constri os sujeitos da aco (ou seja, os pe em aco). Ou melhor, os pe em aces, j que a complexidade das situaes e dos sentidos que os contextos envolvem mltipla e inesgotvel 35. Uma viso destas tem vrias consequncias historiogrficas, diametralmente oposta s que adopto, mas que o autor explicita com legitimidade terica. A primeira a de que todas as evocaes de quadros gerais de referncia ou horizontes de expectativas, ou quadros de avaliao, ou padres de valorao - so deliberadamente suspensos (ou mesmo definitivamente excludos) 36. Cultura de elites, cultura popular, sistemas de crenas, modelos de religiosidade, de disciplina, de poder e de resistncia, regularidades disciplinares 37, quadros institucionais e, evidentemente, sistemas jurdicos 38, tudo33 Cf., sobre a oposio entre macro-historia e micro-histria, por ultimo, Jrgen Schlumbohm (ed.), Mikrogeschichte - Makrogeschichte: komplementr oder inkommensurabel ?, com contributos de Maurizio Gribaudi, Giovanni Levi, Jrgen Schlumbohm und Charles Tilly, Gttingen: Wallstein Verlag 1998, 2 ed. 2000 [publ.Max-PlanckInsitut fr Geschichte].

Refiro-me a Diogo Ramada Curto, A cultura poltica em Portugal (1578-1642). Comportamentos, ritos e negcios, diss. Doutoramento na FCSH, UNL, 1994 (no publicado).35 Ao oporem-se deliberadamente grande obra de sntese, investida de um carcter de substncia unitria, os Discursos na sua natureza dispersa e fragmentada constituem-se em fonte de inspirao para as abordagens interessadas em analisar o significado plural dos actos - incluindo os actos de linguagem - considerados polticos [...]. Em esquema, pode dizer-se que actos, negcios, experincias ou prticas no podero separar-se dos significados, representaes ou discursos, que os agentes em relao produzem em diferentes situaes, necessariamente contingentes (Curto, Diogo R., cit., cit., p. 2).

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Uma opo analtica desta natureza implica uma maior ateno ao comportamento dos actores envolvidos em cada um dos acontecimentos, em detrimento das instituies, dos sistemas normativos, das estruturas ou dos processos, com os quais os seus actos se relacionam. Assim, sem nunca perder de vista o horizonte principal constitudo pelos acontecimentos, a insistncia no comportamento dos actores visa, por um lado, a anlise das diversas relaes que entre eles se estabelecem e, por outro lado, a interpretao subjectiva das suas aces [cita Simmel, Weber e Goffman]. (Diogo, 1994, p. 2). Neste sentido, a cultura politica, enquanto conceito que d acesso a um problema geral, constitui-se numa hiptese retrospectiva, espcie de grande quadro que articula diferentes unidades de actos e de situaes. Em cada urna dessas unidades, ser possvel reconstituir uma modalidade diferente da cultura politica (Diogo, 1994, 3). Note-se a crtica que o Autor dirige histria cultural que tenta superara o formalismo e imobilismo da histria institucional tradicional: Numa das suas utilizaes mais consolidadas disciplinarmente, as explicaes que procuram valorizar a importncia dos aspectos culturais na anlise dos sistemas polticos fazem parte de urna reaco geral contra os estudos legais, constitucionais e institucionais [...] Primeiro, existe a possibilidade de se cair numa espcie de idealismo, atravs do qual as ideias identificadas com a cultura seriam a causa dos actos considerados polticos. Tornear este38 37

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isto so formas de iludir o verdadeiro sentido dos actos humanos, justamente porque so modelos gerais pelos quais a aco concreta nunca se deixa moldar. A segunda pr a tnica na recepo 39, mais do que na produo, tema um tanto trivial nos dias de hoje; mas que aqui aparece com uma colorao um pouco diferente das formulaes clssicas, tanto ao substituir a noo de horizonte pessoal de leitura pelo de contexto prtico de utilizao 40, como ao propor uma capacidade poitica ilimitada e arbitrria por parte dos leitores em situao 41. A terceira a de que a nica escala de observao , portanto, a pequena escala, aquela que reconstri aquela situao que, por sua vez, constri os actores, os lances (enjeux) e as estratgias 42. claro que, se por atender s situaes apenas se quer significar contextualizar adequadamente as aplicaes de modelos gerais e verificar a ambivalncia das suas apropriaes, o mtodo no passa de um trusmo 43.

obstculo implica dispor de uma concepo alargada de cultura, e prestar particular ateno aos contextos e configuraes sociais em que as mesmas ideias adquirem significado. Segundo risco: o de radicalizar os aspectos subjectivos da cultura. Neste caso, para evitar os exageros ser necessrio ter sempre presente o horizonte dos actos e das situaes. Finalmente, um terceiro risco reside, mais do que no carcter eclctico da noo de cultura poltica, na circularidade das explicaes que consideram a cultura determinada pelos actos polticos e vice-versa. Ora, frente a esta indeterminao ser necessrio aproveitar os ensinamentos da sociologia poltica, que oscila entre o estudo da base social do poder em todos os sectores institucionais, mais ou menos articulados, e a anlise dos grupos polticos especficos, que tm a seu cargo as prticas de controlo, incluindo as mais eufemizadas, da violncia (burocracia, sistema judicial, elites, grupos de interesse, etc.) (Curto, Diogo R., cit., 4). Se bem entendo, o primeiro ponto, tm sido eficazmente ultrapassados por muita da melhor histria da cultura dos dias de hoje. O segundo ponto corresponde a uma verso amputada daquilo a que se costuma chamar a morte do sujeito; digo amputada, porque as limitaes da subjectividade no so apenas as que decorrem dos horizontes dos actos e das situaes; decorrem tambm de constrangimentos genricos liberdade de receber, de criar e de reagir. Quanto ao terceiro ponto, ele corresponderia a substituir a histria da cultura jurdicoinstitucional pela histria social dos agentes e processos institucionais, em particular dos grupos de que decidem na base das normas institucionalizadas. Ou seja, ficam de forma as funes automticas de inculcao ou de insinuao dos discursos e dos ritos institucionais e das instituies, bem como a considerao do seu papel geral na formao de sensos comuns. Bem como, evidentemente, as suas dimenses no sociais (lgicas autnomas de reproduo dos textos, dos gneros e dos estilos; bibliografia material includa).39 Cf., sobre a teria da recepo, R. Jauss e W. Iser, Teoria della ricezzione, trad. It, Torino, Eiaudi, 1997; Eco, Umberto, Lector in fabula: la cooperazione interpretativa nei testi narrativi, Milano, Bompiani, 1979.

[...] uma definio alargada dos discursos - conotada quer com as formulaes tericas ditas da alta poltica, quer com determinadas sries organizadas em funo de uma instncia de controlo discursivo (hospital, penitenciria, universidade, etc.) - ter ainda de integrar a multiplicidade de sentidos que se encontram nas prticas que do a ler esses mesmos discursos, bem como nas diversas maneiras de politizao de enunciados inicialmente criados fora da esfera considerada poltica. Esta inevitvel disperso de significados encontra uma disciplina de anlise em torno dos materiais impressos, mas revela-se mais difcil de seguir no caso dos discursos de maior circulao, dos sermes aos rumores, bem como no caso dos discursos baseados em formas mais ou menos estereotipadas, da frmula de chancelaria ao captulo de corte. Se um mesmo enunciado pode ser lido de diferentes maneiras, como comeou por propor a teoria da recepo, o importante procurar analisar as reaces suscitadas pelos diferentes discursos. Um ponto de vista desta natureza sugere uma interrogao mais profunda acerca das modalidades de crena, legitimao ou reconhecimento baseadas em discursos (Curto, Diogo R., cit., 6). [...] surpreender a capacidade de uma audincia e de certos agentes construrem outros significados nos prprios actos de recepo. Prolongar este jogo de relaes supe conferir aos agentes, aos grupos ou s audincias uma capacidade de conferir significados, a uma ordem social, a um sistema de crenas ou a um simples acto, significados que no se encontram previamente determinados (Curto, Diogo R., cit., 179). Um ponto de vista desta natureza aspira tambm a uma reconstituio mais precisa dos contextos e das situaes em que ocorrem os diversos tipos de actos, tendendo, por isso, a acentuar uma escala de anlise microssociolgica ]. Partindo desta mesma escala, ser mais fcil reconstituir as diferentes situaes de negociao, deciso e conflituosidade que caracterizam as relaes dos indivduos ou dos grupos; e, simultaneamente, escapar ao crculo vicioso de muitas interpretaes que, situadas a urna escala de anlise macrossociolgica, se bloqueiam nas ideias feitas sobre o sentido dos movimentos de mudana, os processos, as revoltas e as revolues [cita literatura sociolgica sobre a relao micro-macro]. (Curto, Diogo R., cit., p. 2). Na verdade, no tem grande novidade chamar a ateno para o seguinte. Inventariar estes comportamentos, sem perder de vista o contexto conflitual em que se situam, constitui uma espcie de salvaguarda frente s leituras que tendem a reduzir a cultura popular lgica do processo de civilizao, centrado nos mecanismos e nos modelos de controle da violncia. Em suma, compreender a lgica dos comportamentos populares supe deixar em aberto a sua43 42 41

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A quarta a de que a interpretao das situaes nunca fornece chaves que ultrapassem essa situao, uma vez que os contextos so irrepetveis. Quando muito, facilita aluses (que bem se podem transformar em iluses ...). A reconstruo de um objecto geral como cultura poltica - surge assim como um problema metodolgico central 44. A quinta que, vista esta irrepetibilidade dos contextos e a inextensibilidade dos modelos interpretativos, a narrativa histrica inverificvel 45. Por muito que se sobrecarreguem os textos de citaes eruditas e de papelada de arquivo, ou por muito enfticas, fortes ou mesmo terrorizantes que sejam as afirmaes dos autores, as concluses a que se chega so apenas problemticas e provisrias aluses a sentidos inatingveis, locais e efmeros 46. Seja como for. As questes postas ao modelo aqui proposto (que tambm o que tenho cultivado, mas nem sempre aquele que tenho sugerido, em momentos de maior desvario ...) no deixam de ser pertinentes. A meu ver, sobretudo, em dois pontos: ao requerer uma melhor dilucidao da tenso entre categorias culturais dominante (simplificando um pouco, de senso comum) e categorias alternativas, bem como uma atenta ponderao dos seus equilbrios; ao insistir numa melhor explicitao da matriz de transaces que, num contexto determinado, se realizam entre o modelo do senso comum e os impulsos induzidos pela situao concreta.

diversidade de pequenas tcticas, elaboradas ao sabor dos acontecimentos, e a no querer reiterar atravs de anlise histrica as categorias da cultura hegemnica, quando atribui aos populares e de forma geral aos inimigos as marcas da selvajaria e de uma violncia a controlar. Supe, ainda, uma maior ateno diversidade das situaes e a uma verificao das bolsas que, no interior da sociedade global, permanecem isoladas, sem que tais situaes impliquem necessariamente comportamentos de violncia (Curto, Diogo R., cit., 177). Uma perspectiva analtica que se desenvolve em funo da interpretao dos actos e dos acontecimentos ter de explicar a prpria disperso das unidades que constri, ou seja, ter de saber encontrar na prtica os critrios que justificam a resoluo de um problema o que uma cultura poltica ? atravs de uma abordagem fragmentria [cita bibliografia sobre fragmentao e histria] (Curto, Diogo R., cit., p. 10). Da que, coerentemente, o A. afirme: Sem pretender oferecer qualquer tipo de sntese, este livro ser construdo sob a gide da descontinuidade dos espaos, dos tempos e dos objectos. E se nas suas trs partes se encontrarem velhas questes sobre nveis de cultura e grupos sociais, o poder carismtico, a construo de um espao pblico, a burocracia e a formao das elites, no se julgue que atravs delas se pretende restaurar uma qualquer unidade temtica perdida. partida, a questo de se saber qual a cultura poltica em Portugal, no perodo que decorre entre 1578 e 1642, oferece um quadro propositadamente vago para poder inscrever nele uma sucesso de fragmentos e de pequenas histrias. Tal como numa viagem sem destino certo, nenhum porto parece seguro... (Curto, Diogo R., cit., p. 11). [...] Toda e qualquer preocupao de exaustividade fica excluda de uma anlise apostada em provar a vantagens da fragmentao, na resposta a um problema de lgica de aco dos agentes e dos grupos. Por isso, a necessidade de alargar o inventrio de tais comportamentos dever ser orientada em funo de uma preocupao mais comparativa do que exaustiva [...].Frente s definies unvocas da cultura popular em progressiva tomada de conscincia poltica [...], uma anlise destinada a compreender a lgica dos comportamentos polticos populares, circunscrita descrio de um conjunto de acontecimentos, procede por insinuao (Curto, Diogo R., cit., 175-176). E a verdade que, muito frequentemente, se encontram no texto referido confisses de non liquet, alertando para a a indecidvel complexidade, para a ambgua polissemia, para a insuficincia da anlise. V.g., Mas a verdade que muito pouco se sabe acerca do significado de tais conjuntos de actos ou dos smbolos de representao que neles se utilizam. (Curto, Diogo R., cit., 106). A mostra militar constitui exemplo por excelncia da sua convergncia. A sua difuso constitui um processo social complexo, que dificilmente poder ser identificado com o da criao de uma cultura de massas. Pois, tal como se verificou, a mostra pode ser considerada como um modo de organizao formal sujeito a usos sociais diferenciados, o mesmo acontecendo com determinados argumentos passveis de ser utilizados por agentes situados em posies contrrias. (Curto, Diogo R., cit., 121).46 45 44

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A minha convico pessoal a de que existem matrizes gerais de percepo, avaliao e reaco, histricas e integrantes do senso comum. Que estas, tendo espaos de incerteza e limites de variao, so tendencialmente coerentes. Que disso que se fala quando se fala de categorias de senso comum. E que este senso comum mais do que as situaes que nos enredam pesa duramente sobre as nossas vidas. Neste sentido, creio que a histria da cultura comum, como a que tento fazer e como a que outros a tm feito, tem um sentido explicativo muito grande, sobretudo se se quiserem entender os processos sociais seriais e massivos. No me comove muito o descentramento do sujeito que com isto se opera; por um lado, porque no creio do seu descentramento venha algum mal histria; mas, mesmo que viesse, o sujeito no menos descentrado se o escravizarmos lgica das situaes concretas 47. O ponto terico crtico, aqui, outro. o da capacidade trans-histrica de aceder a esses universos categoriais dadores de sentido. Porm, tenho que dizer que no conheo nenhum fundamento metodolgico que garanta que, se descermos do macro para o micro, das categorias para as prticas, das estruturas para os indivduos, esses problemas de inacessibilidade desapaream. *** Esta ltima observao permite-nos um curso excurso sobre uma das novas modas da histria a biografia. Nos ltimos tempos, a biografia ficou de moda. Os mritos da novidade vo para um grupo de companheiros de ofcio, de inspirao relativamente consistente, com referncias culturais tambm bastante partilhadas e todos eles comungando, se no me engano, de um certo desfastio pela histria chamada estrutural. Em comum tm tambm a escrita sedutora e um bom conhecimento, pelo menos ao nvel que lhes interessa, do perodo sobre que trabalham 48. Na teorizao desta histria biografia, a que tambm chamam poltica, ressaltam sobretudo duas ideias-chave. Uma delas a recusa de esquemas interpretativos fortes, daqueles usados pelos cientistas sociais dos vrios matizes, substituindo-os por uma interpretao evidente (pelo menos, de senso comum), do gnero daquela que ns usamos para nos orientarmos na vida. O que, sendo pacfico para ns interpretarmos a vida de hoje, bastante mais problemtico para ns interpretarmos a vida de h muitos anos. Os nossos filhos sabem, disso, quando procuram entender os pais; e ns prprios o sabemos tambm quando temos a sorte de ainda poder tentar entender os nossos. Na minha opinio, por detrs da

Recorde-se novamente Diogo Ramada Curto: Segundo risco: o de radicalizar os aspectos subjectivos da cultura. Neste caso, para evitar os exageros ser necessrio ter sempre presente o horizonte dos actos e das situaes (Curto, Diogo R., cit., 4).48 Em Portugal, a teorizadora desta nova histria poltica, entendida como histria biogrfica, tem sido Ftima Bonifcio. Os operacionais so vrios, colaborando muitos deles num dos ltimos nmeros da Anlise social dedicada ao tema.

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evidncia de alguns enredos, podem esconder-se sensibilidade de hoje. E isto, j se v, tem perigos graves.

retroprojeces

da

A outra ideia-chave do nvel biografismo a de que so os homens concretos e no os desenvolvimentos annimos das estruturas /tambm mentais) que modelam a histria. Mas como no so muitos os homens que esto em condies de modelar a histria pelo menos, a histria de um pas -, quem acaba por interessar a esta corrente historiogrfica so os grandes homens, nomeadamente os grandes polticos. A grande biografia exige, em princpio, um grande biografado (pressupondo, naturalmente, que escrita por um grande bigrafo). Na sua falta, a biografia transforma-se num acto de cruel assassinato de um personagem, sempre confrontado com o personagem ideal que nunca foi, que nas condies no poderia ter sido e que porventura nem sequer quis ser. Ressalvado o ltimo livro de Vasco Pulido Valente (Glria, Lisboa, Crculo de Leitores, 2001), que pode ser a boa contraprova do que acabo de dizer, e a reabilitao de Joo Franco, da autoria de Rui Ramos (Joo Franco e o fracasso do reformismo liberal (18841908), Lisboa, ICS, 2001), a ltima literatura (e no apenas deste gnero) sobre o sculo XIX portugus tem ganho, por isso mesmo, um tom cido, corrosivo, e subrepticiamente moralista, de inventariao de mediocridades; que s no espanta muito, porque parece herdeira da auto-avaliao dos prprios contemporneos, tambm eles cultivando j um o juzo azedo sobre uma sociedade que, um pouco olimpicamente, consideravam decadente. Para alm de que, no mnimo, esta pr-compreenso implica um confronto sem sentido entre pases modelos (a Inglaterra, a Prssia, a Frana) e pases medocres (designadamente, Portugal). Da que - voltando um pouco atrs -, talvez se deva repensar na hiptese mais tradicional de investigar a vida dos outros homens, traando os tais grandes frescos sociais ou mentais que, necessariamente, havero de ser informados por algum modelo interpretativo geral -, de onde resultem os grandes cenrios (econmicos, culturais, institucionais, jurdicos) em que os homens pequenos e Grandes se movem. E a retornaremos, seguramente, a uma histria das categorias, dos sentidos comuns, mais gerais ou mais locais, que comandavam os clculos pragmticos (que definiam, por exemplo, o que era glria, e, depois, que papel a sua busca devia ocupar numa estratgia de vida). *** Em suma. O que se pretende, aqui, sublinhar a necessidade de ter em conta o modo de transaco entre ideias e interesses, entendidos estes ltimos como os resultados mais directos da interaco social 49. Poder-se- ento entender como um sistema de ideias (o liberal) cuja lgica era a da generalizao absoluta da cidadania, posto em contacto com um49 Literatura recente acerca da histria dos interesses tem salientado como estes so inevitavelmente mediatizados pelas representaes da "realidade social"; e, deste modo, como to pouco eles escapam cpacidade poitica das categorias. Cf. Ornaghi, Interesse, Bologna, Il Mulino, 2000.

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certo "ambiente" de prticas e interesses polticos inspito a essa generalizao, deformado por ele, e obriga a desenvolver elementos tericos capazes de introduzir critrios selectivos nas anteriores teorias da Nao e do indivduo. justamente este tipo mediatizado de conversao entre "sistema" e "ambiente" 50 que permite ultrapassar, quer uma histria das ideias que ignora os mecanismos de transaco com o exterior do sistema ideolgico, quer com uma histria social (ou uma histria poltica) que pressupe que as "ideias" so ilimitadamente mobilizveis e disponvelmente funcionalizveis a quaisquer projectos, estratgias ou interesses sociais e polticos. Assim, o que aqui nos interessa sublinhar o modo como interesses at a justificados teoricamente nos quadros de uma concepo - que, por motivos tambm tericos, deixou de poder servir - buscaram novas justificaes nos quadros da nova teoria, para poderem sobreviver socialmente. E, ao mesmo tempo, ver esta teoria a alterarse si mesma para poder incluir em si desenvolvimentos capazes de justificar os novos/antigos interesses. O processo pode ser assim descrito: uma nova teoria deslegitima interesses estabelecidos. Nem a primeira nem os segundos podem ser sacrificados. Assim, a teoria tem que se equipar com mdulos tericos suplementares que permitam re-legitimar (em novos quadros) os interesses permanentes / subsistentes. Uma nota final sobre interesses. Interesses so tambm, muito claramente, representaes, neste caso acerca das vantagens (ou inconvenientes) do alargamento do universo poltico a certas categorias pessoas. Mas, ao estudarmos estes interesses, no estamos a tocar numa realidade bruta (isto , no mediatizada por representaes). Pelo contrrio, estamos em pleno mundo das imagens e de representaes acerca de categorias de pessoas e acerca de vantagens e desvantagens polticas. Identificamos mulheres, dementes, falidos, loucos, menores, a partir das imagens (dos esquemas de percepo) que aplicamos realidade contnua do universo dos nossos parceiros sociais. Atribumos ou no vantagens sua participao poltica, em funo imagens sobre as suas qualidades, sobre a ordem poltica, sobre as nossas qualidades e, finalmente, sobre o que nos convm da ordem poltica 51. *** Neste texto, vamos utilizar quase apenas categorias e conceitos tirados dos corpos literrios do direito comum europeu. Isto obriga-nos a esclarecer um

50 Com estas referncias a sistema e ambiente, remete para os modelos tericos auto-poiticos, que me parecem muito produtivos neste contexto. Cf., por todos, N. Luhmann, Essays on self-reference, Columbia, Col. U.P., 1990. No mesmo sentido de evocao de uma perspectiva sistmica, v. A seguinte formulao de M. Barberis: Si potrebbe forse aggiungere riformulando le posizioni della Storia concettuale e della Scuola di Cambridge nel gergo dellevoluzionismo filosofico che i concetti giuspolitici nascono ed evolvono come le specie naturali, adattandosi ai mutamenti dellambiente. Coloro i quali, nei diversi contesti storici, partecipano ai giochi della politica o del diritto, compiono certo atti intenzionali, come deliberate mosse del gioco; tali atti intenzionali, per, generano spesso effetti inintenzionali, n voluti n previsti dagli autori, fra i quali occorre annoverare gli stessi concetti, sempre intesi come regole duso del linguaggio. Dunque, i concetti si formano e si affermano compatibilmente con le esigenze dellambiente, e sopravvivono solo a patto di adattarsi ai mutamenti di questo (M. Barberis, 1999, Libert, Bologna, Il Mulino, 1999.

Sobre o carcter construdo do interesse, Ornaghi, 2000, Lorenzo, Interesse, Bari. Laterza, 2000, Introduzione.

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pouco as razes desta fixao no discurso jurdico e, a partir da, dizer duas palavras de um elogio da histria do direito. Comeo por salientar que o direito dispunha, realmente, de um corpo textual imponente. No plano dos livros impressos, as matrias jurdicas (de direito civil ou de direito cannico, de direito comum ou de direitos ptrios, na tratadstica ou na praxstica) cobriam uma elevada percentagem da edio. Pelos finais do sc. XVIII, se excluirmos os temas puramente literrios, o direito vinha em segundo lugar, logo a seguir teologia, no panorama editorial portugus, espanhol ou napolitano:Assuntos Portugal < c. 1750, % Teologia Filosofia Medicina Direito tica Matemtica Histria Literatura Outras 31 3 3 5 3 4 29 20 2 Espanha < ad c. 1670, % 40 4 4 9 2 3 22 12 6

(Cmputos feitos com base em Barbosa Machado, Bibliotheca luzitana, crtica e chronologica, Lisboa, Of. Grficas Bertrand (Irmos) Lda, 1741-1759, 4 vols.; Nicolas Antnio: Bibliotheca hispana nova: sive hispanorum scriptorum qui ab anno MD. ad MDCLXXXIV. flourere notitia: tomus primus. Matriti [Madrid],, Apud Joachimum de Ibarra typographum regium, 1783.)

Ainda sem abandonar o plano dos escritos de natureza culta, uma base de dados de textos jurdicos de ndole terica ou doutrinal produzidos em Portugal, nos scs. XV a XVIII, e mantidos em arquivos ou bibliotecas portuguesas pde reunir mais de 6 000 peas, sem excessivas pretenses de exaustividade. Para alm disto, a mole imensa dos escritos jurdicos prticos, produzidos quotidianamente por escrives e notrios. Numa quantificao muito grosseira, feita a partir dos emolumentos destes funcionrios, pude calcular que, s no domnio da administrao judiciria, se escreveriam em Portugal, por ano, milhares de laudas 52. Estes escritos, situados a nveis diversos da comunicao social desde as universidades at s escrivaninhas das pequenas terras -, infiltravam-se continuamente no dilogo social, disseminavam a imagens e tpicos acerca da sociedade e dos seus vrios grupos.

52

A. M. Hespanha, "Centro e periferia no sistema poltico portugus do Antigo Regime", Ler histria, 8(1986), 35-

60.

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Mas esta centralidade no decorria apenas do carcter massivo de produo escrita, que inaugurou aquilo a que Pierre Legendre chamou espaos dogmticos industriais 53. Decorria tambm do lugar que a cultura tico-poltica do direito comum reservava justia, lugar esse a que, provavelmente, no era estranho o funcionamento dessa industria dogmtica. A justia como equilbrio, como atribuio do seu lugar a cada coisa (ius suum cuique tribuendi) - era, de facto, um virtude central numa imagem do mundo dominada pela ideia de ordem, como era a Weltanschaung de Antigo Regime. Arte das artes e governo das almas (ars artium, & animarum regimen), chamalhe Manuel lvares Pegas, logo no promio do seu monumental comentrio s Ordenaes filipinas (Pegas, 1669, I, in proem., gl. 23,n. 2). Com bom fundamento, pois j S. Toms de Aquino lhe atribura uma posio destacada no quadro da sua lista das virtudes (Summa theol., IIa.IIae, q. 57-122). A justia tinha virtudes anexas: a religio, a piedade, a reverncia, a gratido, a verdade, a amizade, a liberalidade e a equidade. Em todas elas, havia alteridade, ou seja, havia deveres a cumprir para com outrem; ou para com Deus, ou para com os pais ou superiores, ou para com os amigos, ou para com a propria natureza das coisas (como no caso da verdade e da honestidade). Por isso, como a justia diz respeito aos outros explica S. Toms todas as virtudes relativas a outrem so conexas coma Justia, pois tm algo em comum com ela. O mundo das virtudes s no se reduzia justia ou porque, estando esta ltima relacionada com a igualdade (cf. ib., a.11), nem todas as outras se lhe podiam identificar, uma vez que algumas careciam de igualdade nas recprocas prestaes (o caso mais tpico era a religio cf. q. 80, a. un.); ou porque, noutras delas, a razo do dbito no era estritamente jurdico. Mas, basicamente, podia ser dito que justo era todo o comportamento devido e que se podia pretender, em nome da justia, no apenas as dvidas do direito, mas o respeito filial, a reverncia social, a gratido pelas mercs, a amizade merecida e aprpria correspondncia no amor. E, por isso, o que Deus erigia, no Fim dos Tempos, era precisamente um Tribunal, um juzo, chamando justos aos da sua direito e injustos ao da sua esquerda 54. *** A centralidade a que acabamos de aludir explica a pervasividade de conceitos jurdicos no discurso cultural e social pr-moderno. A. Gurevic descreve a cultura medieval como construda sobre o direito, retomando a conhecida designao utilizada por F. Chabod para descrever a cultura da Europa meridional, no Antigo Regime la civilt della carta bollata, a cultura do papel selado. De facto, a centralidade, aliada longa permanncia da cultura jurdica ocidental cujo corpus doutrinal se mantm durante sculos e sculos -, fizera com que ela tivesse embebido os esquemas mais fundamentais de apreenso53 54

Pierre Legendre. L'empire de la vrit. Introduction aux espaces dogmatiques industriels. Fayard, 1983

A. M. Hespanha, "Justia e administrao nos finais do Antigo Regime", em Hispania. Entre derechos proprios y derechos nacionales, Milano, Giuffr, 1989, 135-204.

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cognitiva e valorativa do mundo, instituindo grelhas de distino e de classificao, maneiras de descrever, constelaes conceituais, regras de inferncia, padres de valorao. Esquemas que se tinham incorporado na prpria linguagem; que se tinham tornado comuns numa literatura vulgar ou em tpicos e brocardos; que se exteriorizavam em manifestaes litrgicas, em programas iconolgicos, em prticas cerimoniais, em dispositivos arquitectnicos. E que, por isso, tinham ganho uma capacidade de reproduo que ia muito para alm daquela que decorria dos textos originais em si mesmos. A tradio literria teolgica, tica e jurdica constitua, assim, um habitus de auto-representao dos fundamentos antropolgicos da vida social. Neste sentido, a sua aco de modelao dos comportamentos antecedia mesmo qualquer inteno explicita e conscientemente normativa, pois decorria de que a tradio jurdica inculcava necessariamente uma panplia completa de utenslios intelectuais de base, necessrios apreenso da vida social. Porm, a literatura jurdica era tudo menos puramente descritiva. A sua carga preceptiva era enorme. Primeiro porque, nela, o tom descritivo decorre, desde logo, de uma crena na indisponibilidade da ordem do mundo. As suas proposies apareciam ancoradas, ao mesmo tempo, na natureza e na religio. De facto, o que aparece, como que descrito, nos livros de teologia e de direito constitui o dado inevitvel da natureza ou o dado inviolvel da religio. Os estados de esprito dos homens (affectus), a relao entre estes e os seus efeitos externos (effectus), eram apresentados como modelos forosos de conduta, garantidos a montante pela inderrogabilidade da natureza e, a jusante, pela ameaa da inevitvel perdio eterna e tambm da eventual punio terrena. Depois porque, para alm de decorrer de uma crena, a descrio era, tambm, um expediente retrico para reforar a perceptividade. Este tom descritivo inculcava. Na verdade, a inelutabilidade natural de que as normas morais e jurdicas apareciam revestidas. Em suma, apesar de todas as aparncias estilsticas, inteno dos textos tico-jurdicos no era a de descrever o mundo, mas de o transformar. Transformar, porm, mais por meio da sua eficcia simblica de constituir imagens, do que pela sua capacidade de enunciar normas de comportamento efectivamente dotadas de coao 55. *** Deste modo, os textos jurdicos tm, ao nvel da sociedade, uma estrutura semelhante do habitus, tal como concebido por Pierre Bourdieu. Por um lado, constituem uma realidade estruturada (pelas condies de uma prtica discursiva embebida em dispositivos textuais, institucionais e sociais especficos), que

55

Cf. Austin Sarat e Thomas R. Kearns (cords.), The Rhetoric of Law, Ann Harbor, University of Michigan Press ,

1995.

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incorpora esquemas intelectuais cuja adequao ao ambiente fora comprovada 56. Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que continua a operar para o futuro, inculcando esquemas de apreenso, avaliao e aco. Tanto os intuitos prticos, como o apelo a valores universais como a natureza e a religio, favoreciam a difuso destes modelos mentais e pragmticos em auditrios culturalmente muito diferentes do grupo dos produtores. Para alm disso, os ambientes institucionais em que os textos eram produzidos dispunham de "interfaces de vulgarizao" muito eficazes (a parentica, a confisso auricular, a literatura de devoo, a liturgia, a iconologia sagrada, para a teologia; as frmulas notariais, a literatura de divulgao jurdica, os brocardos, as decises dos tribunais, para o direito), por meio dos quais os textos-matriz obtinham tradues adequadas a uma grande multiplicidade de auditrios. este secular embebimento que tornaram a moral e o direito em saberes consensuais. De resto, esta consensualidade em torno das suas proposies fundamentais constitua uma vocao central destes discursos. Esta vocao para a consensualidade provm, antes de mais, das prprias condies de produo da tradio literria em que os textos se incluem. Tratase, com efeito, de uma tradio que, durante vrios sculos, tinha trabalhado sobre bases textuais imodificadas e que tinha podido produzir, como que por sedimentao, as opinies mais provveis, i.e., as mais aceitveis pelo auditrio 57. Esta sedimentao tinha cristalizado o acquis consensual em tpicos, brocarda, dicta, regras, opiniones communes. Era a, portanto, que estavam depositadas as opinies mais comuns e mais durveis do imaginrio sobre o homem e a sociedade. Mas provinha tambm da inteno prtica a que antes j nos referimos. A educao pela persuaso no se pode levar a cabo seno a partir de um ncleo de proposies geralmente aceites. Para modificar eficazmente os comportamentos dos homens, a moral e o direito tinham que partir de bases consensuais de argumentao e exigir atitudes tambm no muitos distantes daquilo que era consensualmente tido como justo. *** O carcter consensual deste ncleo de representaes fundamentais no exclua, evidentemente, vises conflituais, sobre as quais era preciso optar, em vista da formao de uma regra de comportamento. O saber teolgico-jurdico tinha desenvolvido mtodos de encontrar a soluo justa que, por um lado, deixavam aparecer a pluralidade de vises conflituais e que, por outro, faziam depender a opo entre elas dos consensos56 Esta uma vantagem deste corpo literrio sobre a tradio literria ficcional ou puramente ensastica. que, aqui, os mecanismos de controle de adequao prtica das proposies ou no existem ou tm muito menos fora reestruturante. Uma personagem psicologicamente inverosmil no obriga necessariamente o autor a reescrever uma novela. 57 Sobre esta ntima relacionao entre o discurso do direito (nomeadamente, do direito de Antigo Regime) e a aquisio do consenso no mbito de um auditrio, cf. clssicos, Ch. Perelman & L. Olbrechts-Tyteca, Trait de largumentation..., cit ; Luigi Lombardi [Vallauri], Saggio sul diritto giurisprudenziale, cit.

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possveis, registando a soluo mais consensual (opinio communis) como a soluo provvel (embora no forosa). Estes processos metodolgicos eram, por um lado, o esquema expositivo da quaestio e, por outro, a combinao da tpica (ars topica) e da opinio comum 58. A quaestio era, simplificando um tanto, um processo metdico de decidir questes problemticas: (i) colocando o problema em discusso; (ii) enunciando as objeces posio que vir a ser adoptada; (iii) enunciando ainda cursivamente os contra-argumentos a estas objeces (sed contra); (iv) enunciando a resposta adoptada (responsio, respondeo quuod); (v) replicando as objeces iniciais, agora j explicitamente em funo da resposta adoptada 59. O uso deste modo de raciocinar e apresentar os resultados garantia, portanto, um dilogo regrado e exaustivo entre os argumentos presentes no auditrio, tomando em linha de conta dos conflitos provenientes, nomeadamente, de diferentes apropriaes dos textos, e visando convencer, ganhar adeso, popularizar a resoluo, e no impor unilateral e dogmaticamente uma sada. Uma vez resolvida a quaestio, a responsio transforma-se num tpico, integrando-se num capital de proposies (ou lugares) comuns, que ser tratado pela tpica. A tpica, por sua vez, acede ao catlogo das bases consensuais de qualquer discusso, i.e., aos topoi (argumentos) socialmente aceitveis. Mas a tpica garante ainda que a soluo final, registada para a posteridade como opinio comum, a soluo mais consensual, tomada de futuro como base de novos desenvolvimentos textuais. Quaestio e topica so, assim, dois poderosos mecanismos de enraizamento dos textos teolgico-jurdicos nos contextos sociais, mecanismos que transformam estes textos em testemunhos particularmente fiveis acerca dos dados culturais embebidos na prtica. O lugar central ocupado pelo imaginrio jurdico na representao da sociedade e do poder so disso uma prova convincente 60. No entanto, no eram apenas estes mecanismos de achamento da soluo jurdica que mantinham em contacto textos e senso comum. Exisitiam outros. As solues jurdicas letradas eram continuamente justificadas pelo facto de serem aceites pelas pessoas comuns: por serem longamente usadas (usus receptae), por estarem enraizadas em prticas sociais (radicatae, praescriptae), por corresponderem ordm das coisas, tal como esta era geralmente concebida58 Sobre quaestio e topica, v. A. M. Hespanha, Cultura jurdica europeia. Sntese de um Milnio, Florianpolis, Fundao Boiteux, cap.5.6. 59 60

Cf. bibl. Acima sobre retrica e argumentao (Perelman, Lombardi).

Outra forma de enraizamento de normas, mas este relevando j mais da retrica do que da dialctica era o exemplum, em que um padro abstracto era corporrizado num caso exemplar, susceptvel de concityar adeso emocional. Sobre o tema, cf. John D. Lyons, Exemplum: The Rhetoric of Example in Early Modern France and Italy, Princeton Univ Press, 1990; Peter von Moos, Geschichte als Topik : das rhetorische Exemplum von der Antike zur Neuzeit und die historiae im "Policraticus" Johanns von Salisbury, Hildesheim (Olms) 1988; Claude Bremomy, Lexemplum, Paris, Brepols, 1982 ; Jacques Berlioz, Le rcit efficace : lexemplum au service de la prdication (XIIIe-XVe sicle , dans Rhtorique et histoire. Lexemplum et le modle de comportement dans le discours antique et mdival, Rome, Ecole franaise, 1979, p. 113-146 ; P. J. Schneemann, Lire et parler. La rception de lexemplum virtutis , em Gaehtgens, Thomas W., et al., Lart et les normes sociales au XVIIIe sicle, Paris, MSH, 2001; Carlo Delcorno, Exemplum e letteratura : tra Medioevo e Rinascimento, Bologna, Il Mulino, 1989 ; Jos Aragues Aldaz, Deus concionator."Mundo predicado y retrica del "exemplum" en los Siglos de Oro, Rodopi Bv Editions, 1999. Bibliografia de exempla, em http://www.ehess.fr/centres/gahom/Bibliex.htm (2002.10.30)

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(honestae, bonnae et aequae). O prprio quadro das fontes de direito aqceite pela doutrina exprimia este peo do sentido comum de justia. No topo estava o costume (consuetudo), a doutrina mais comumente aceite (opinio communis) e a prtica judicial (stylus curiae, praxis). E era este contnuo escrutnio do senso comum que era completado pelas referidas tcnicas de deciso da quaestio e da topica. Mas a conversao entre direito letrado e senso comum ainda no termina aqui. Uma vez obtida, a deciso torna-se num osso mais desse esqueleto da vida quotidiana formado pelo direito praticado e recebido (ius receptum vel praticatum). De facto, os casos decididos integrariam o horizonte das normas morais e das expectativas da comunidade. De novo, o processo de reelaborao doutrinal do sentido social de justia continuava. Trabalhando sobre esta acquis de decises prticas os juristas destilavam regula ou brocarda, curtas frases ou epigramas em que se concentrava a sabedoria jurdica prtica e que podiam ser facilmente apreendidos pelos no leigos em direito. Nesta fase, as construes letradas estruturadas pelo senso comum voltavam vida quotidiana, tornando-se, de novo, estruturantes. Enfim, a conhecida imagem bi-fronte estruturado/estruturante que P. Bourdieu aplica ao habitus. *** Mas no ser que justamente o intuito preceptivo da teologia, da moral e do direito prejudica a relevncia dos seus textos como testemunhos das relaes sociais? Ou seja, nestes textos o pathos normativo no os far estar mais atentos ao dever ser do que ao ser? No lhes dar uma colorao mistificadora, "ideolgica", que os inutilize como fontes idneas da histria? Alguns reparos feitos por historiadores utilizao destas fontes insistem justamente neste ponto. Por isso que, para alguns, a estas fontes carregadas de intenes seriam de preferir fontes no intencionais, subprodutos brutos da prtica, como peas judiciais, peties, descries e memoriais. Ou seja, textos que no foram escritos para constituir modelos de aco, mas antes que foram escritos sob a modelao da aco. provvel que a preferncia pelas fontes meramente aplicativas em relao s fontes doutrinais, do ponto de vista da sua "fidelidade ao real", repouse num conceito de ideologia como conscincia deformada e do discurso ideolgico como discurso mistificador, discurso que poderia ser oposto a outros meramente denotativos, que reproduziriam sem mediaes o "estado das coisas". Este conceito de ideologia no rene hoje muitos sufrgios, pois no se aceita geralmente que, por oposio ao discurso ideolgico, existam discursos no deformados, dando neutralmente conta da realidade. E, assim, entre um texto explicitamente normativo e um texto aparentemente denotativo, a diferena que existe apenas a de duas gramticas diferentes de construo dos objectos. Porque, afinal, a realidade d-se sempre como representao. Com a 24

desvantagem de que, nos discursos no explicitamente normativos, esta gramtica se encontra escondida, encapsulada em actos discursivos aparentemente neutros, ou fragmentada em manifestaes parciais, pelo que as suas explicitao e reconstruo global constituem um trabalho suplementar. At por razes de economia da pesquisa, vale mais a pena ler o que os telogos e juristas ensinavam, longa e explicadamente, sobre, por exemplo, a morte, do que procurar, atravs da leitura de milhares de testamentos, perscrutar a sensibilidade comum sobre ela. A vocao consensualista da literatura teolgico-jurdica, a que nos referimos no exclua, porm, que na sociedade moderna convivessem representaes diversas dos valores que, por sua vez, comandavam prticas de sentidos diversos ou at abertamente conflituais. A sociedade moderna no era, evidentemente, uma sociedade unnime. As pessoas no actuavam sempre da mesma maneira, mesmo em contextos prticos objectivamente equivalentes. Ou seja, os seus sistemas de apreenso e avaliao do contexto, bem como os de eleio da aco e de antecipao das suas consequncias no eram sempre os mesmos. Alguns destes conflitos situam-se a um nvel mais superficial de avaliao e deciso, no seio de um espao de variao deixado pelos modelos mais profundos de representao e de avaliao veiculados pela tradio teolgicojurdica. Ou seja, os actores sociais tiram partido da prpria natureza argumentativa do discurso teo-jurdico, optando por um ou por outro tpico, mais coerente com os outros seus sistemas particulares de clculo pragmtico. Estas situaes no escapam, porm, a anlise discursiva proposta. Por um lado, estes sub-modelos "tpicos" so apenas opes possveis dentro de um sistema de categorias mais profundo. Pode optar-se pela preferncia das "armas" sobre as "letras" ou, pelo contrrio, pela das "letras" sobre as "armas" e construirse, sobre cada uma das opes, uma estratgia discursiva e prtica prpria. Mas o catlogo dos argumentos a favor de cada posio e at as formas alternativas de os hierarquizar esto fixadas num meta-modelo comum compendiando as bases culturais de consenso que, justamente, permitem que as suas posies dialoguem 61. Ou seja, as diferentes apropriaes do conjunto contraditrio de tpicos que integram o sistema discursivo do direito no saltam para fora da sua sistematicidade, a um nvel mais profundo, tal como as posies contraditrias das partes num processo no estoiram com as normas de deciso processual 62. No cremos, no entanto, que seja prudente erigir o modelo cultural subjacente ao esprito das instituies e da literatura doutrinal do direito como um modelo global, um pouco como faz Louis Dumont para os quadros mentais subjacentes s hierarquizaes sociais da cultura hindu 63. Existem, evidentemente, modelos de representao estranhos ao discurso dos telogos e dos juristas. Por exemplo, para a poca primo-moderna peninsular, o modelo do mundo dos polticos, fundado em valores (como o da oportunidade ou da

61 Mas que, por exemplo, exclui uma discusso do mesmo gnero sobre a preferncia do estado "nobre" e do estado "mecnico". 62 63

Ou as estratgias opostas de dois jogadores no dessoram o patrimnio comum das regras do jogo. Dumont, 1966.

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eficcia, concebidas como adequao a um nico ponto de vista) 64, que so claramente antipticos aos fundamentos da imagem da sociedade que enforma o discurso da teologia moral e do direito. Como h outros modelos radicalmente alternativos, de minorias culturais (judeus, mouros, herticos) ou de grupos subalternos (bruxas, libertinos, mulheres), embora haja, a meu ver, que ir com cuidado na pretenso, muito comum hoje, de buscar outros ... naqueles que, nas suas estruturas bsicas de pensamento e sensibilidade so mesmos. Bem como h que no cair na iluso de que estes discursos minoritrios ou reprimidos so os protagonistas da histria cultural da poca, tema a que j voltarei. O discurso dos telogos e dos juristas apenas permite o acesso a estas outras constelaes cognitivas e axiolgicas em contraface, na medida em que com elas polemiza. E nem isso, quando nem sequer obrigado a polemizar com elas, limitando-se a desqualific-las pelo silncio ou pelo desdm 65. Naturalmente que estes modelos "variantes" (num caso) ou "alternativos" (no outro) devem ser considerados pelo historiador ao traar o quadro dos paradigmas de organizao social e poltica da sociedade moderna. A sua eficcia em meios sociais determinados deve ser contextualizada. No necessariamente nos termos de uma contextualizao "social", sobretudo atenta aos "interesses" dos grupos, mas de uma contextualizao cultural, que tenha em conta os sistemas cognitivos e axiolgicos prprios desses grupos de que, justamente, decorrem os seus "interesses". Porm, os respectivos peso e difuso sociais - e, logo, a sua capacidade para dar sentido (para "explicar") as prticas - destes modelos alternativos de clculo pragmtico devem ser tidos em conta. Ora, pelas razes j antes referidas, parece-me que os discursos alternativos teologia moral e ao direito so, durante toda a poca Moderna, francamente minoritrios. No devendo ser sobrevalorizados quando se trata de descrever condutas massivamente dominantes, so, em todo o caso, muito importantes para explicar as resistncias aos poderes estabelecidos e, tambm, os processos de ruptura e desintegrao do universo cultural moderno que conduzem substituio pelo universo cultural contemporneo. 2. 2.1. A Ordem. Cosmos. A ordem - uma categoria do poltico na poca moderna.

A ideia de ordem central na imaginao poltica e jurdica moderna. Numa sociedade profundamente crist, o prprio relato da Criao (Gnesis, I) no pode ter deixado de desempenhar um papel estruturante. A, Deus aparece, fundamentalmente, dando ordem s coisas: separando as trevas da luz,

64 V.g., a oportunidade ou eficcia do ponto de vista do interesse da coroa, deixando inatendidos os pontos de vista de outros interesses, cuja considerao conjunta e equilibrada constitua, precisamente, a justia.

Como acontece com o "direito dos rsticos", ignorado ou referido depreciativamente como os usos dos ignorantes ou dos rudes, a que adiante nos referiremos.

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distinguindo o dia da noite e as guas das terras, criando as plantas e os animais "segundo as suas espcies" e dando-lhes nomes distintos, ordenando as coisas umas para as outras (a erva para os animais, estes e os frutos para os homens, o homem e a mulher, um para o outro e ambos para Deus) 66. Esta narrativa da Criao - ela mesmo resultante de uma antiqussima imagem do carcter espontaneamente organizado da natureza - inspirou seguramente o pensamento social medieval e moderno, sendo expressamente evocada por textos de ento para fundamentar as hierarquias sociais. Nas Ordenaes afonsinas portuguesas (1446), esta memria da Criao / Ordenao aparece a justificar que o rei, ao dispensar graas e, com isso, ao atribuir hierarquias polticas e sociais entre os sbditos, no tenha que ser igual para todos: "Quando Nosso Senhor Deus fez as criaturas assi razoveis, como aquelas que carecen da razo, no quiz que dois fossen iguais, mas estabeleceu e ordenou cada uma em sua virtude e poderio departidos, segundo o grau em que as ps. Bem assim os Reis, que em lugar de Deus na terra so postos para reger e governar o povo nas obras que ho-de fazer - assim de justia, como de graa e merc - devem seguir o exemplo daquilo que ele fez [...]" (Ord. Af., I, 40, pr.). Tambm a filosofia grega e romana antigas confirmavam este carcter naturalmente organizado do universo natural e humano. Para Aristteles, o mundo estava finalisticamente organizado. As coisas continham na sua prpria natureza uma inscrio (um gene, por assim dizer) que "marcava" o seu lugar na ordem do mundo e que condicionava, no somente o seu estado actual, mas tambm o seu futuro desenvolvimento em vista das finalidades do todo. Era este gene que criava nas coisas apetites (affectus,

66 1. No princpio, Deus criou os cus e a terra. -2. -A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Esprito de Deus pairava sobre as guas. -3. -Deus disse: "Faa-se a luz!" E a luz foi feita. -4. -Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. -5. -Deus chamou luz DIA, e s trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manh: foi o primeiro dia. -6. -Deus disse: "Faa-se um firmamento entre as guas, e separe ele umas das outras". -7. -Deus fez o firmamento e separou as guas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. -8. -E assim se fez. Deus chamou ao firmamento CUS. Sobreveio a tarde e depois a manh: foi o segundo dia. -9. -Deus disse: "Que as guas que esto debaixo dos cus se ajuntem num mesmo lugar, e aparea o elemento rido." E assim se fez. -10. -Deus chamou ao elemento rido TERRA, e ao ajuntamento das guas MAR. E Deus viu que isso era bom. -11. -Deus disse: "Produza a terra plantas, ervas que contenham semente e rvores frutferas que dem fruto segundo a sua espcie e o fruto contenha a sua semente." E assim foi feito. -12. -A terra produziu plantas, ervas que contm semente segundo a sua espcie, e rvores que produzem fruto segundo a sua espcie, contendo o fruto a sua semente. E Deus viu que isso era bom. -13. -Sobreveio a tarde e depois a manh: foi o terceiro dia. -14. -Deus disse: "Faam-se luzeiros no firmamento dos cus para separar o dia da noite; sirvam eles de sinais e marquem o tempo, os dias e os anos, -15. -e resplandeam no firmamento dos cus para iluminar a terra". E assim se fez. -16. -Deus fez os dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir noite; e fez tambm as estrelas. -17. -Deus colocou-os no firmamento dos cus para que iluminassem a terra, -18. -presidissem ao dia e noite, e separassem a luz das trevas. E Deus viu que isso era bom. -19. Sobreveio a tarde e depois a manh: foi o quarto dia. - 20. -Deus disse: "Pululem as guas de uma multido de seres vivos, e voem aves sobre a terra, debaixo do firmamento dos cus." - 21. -Deus criou os monstros marinhos e toda a multido de seres vivos que enchem as guas, segundo a sua espcie, e todas as aves segundo a sua espcie. E Deus viu que isso era bom. - 22. -E Deus os abenoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, e enchei as guas do mar, e que as aves se multipliquem sobre a terra." - 23. -Sobreveio a tarde e depois a manh: foi o quinto dia. - 24. -Deus disse: "Produza a terra seres vivos segundo a sua espcie: animais domsticos, rpteis e animais selvagens, segundo a sua espcie." E assim se fez. -2 5. -Deus fez os animais selvagens segundo a sua espcie, os animais domsticos igualmente, e da mesma forma todos os animais, que se arrastam sobre a terra. E Deus viu que isso era bom. -26. -Ento Deus disse: "Faamos o homem nossa imagem e semelhana. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus, sobre os animais domsticos e sobre toda a terra, e sobre todos os rpteis que se arrastem sobre a terra." - 27. -Deus criou o homem sua imagem; criou-o imagem de Deus, criou o homem e a mulher. - 28. -Deus os abenoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicaivos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra." - 29. -Deus disse: "Eis que eu vos dou toda a erva que d semente sobre a terra, e todas as rvores frutferas que contm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento. - 30. -E a todos os animais da terra, a todas as aves dos cus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda erva verde por alimento." E assim se fez. - 31. -Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manh: foi o sexto dia [...] .

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amor, philia) internos que as encaminhavam espontaneamente para a ocupao dos seus lugares naturais e para o desempenho das suas funes no todo. No caso dos homens, este gene determinava o seu instinto gregrio (affectus societatis), a sua natureza essencialmente poltica, o desempenho dos seus papis polticos no seio de uma sociedade organizada em vista do bem comum. Neste sentido, era legitimo falar de um equilbrio natural ou de um justo por natureza (dikain physikon) (cf. Villey, 1968). Os esticos insistiam na existncia de um poder criador e ordenador (pneuma, logos), que daria movimento ao mundo e que o transformaria num mundo ordenado (cosmos) (v. Villey, 1968, 428-80; Thomas, 1991). O pensamento medieval herda tudo isto, fundindo ambas as concepes num sincretismo por vezes difcil de deslindar. Fundamentalmente, na famosa polmica entre realistas e nominalistas, que domina o pensamento escolstico, o que os realistas querem sublinhar que da essncia das coisas faz parte a sua natureza relacional, no conjunto do todo da Criao. Que - em particular -, no mundo humano, no h indivduos, isolados e socialmente incaractersticos. Mas que h pais, filhos, professores, alunos, homens, mulheres, franceses, alemes, essencialmente relacionados uns com os outros por meio de pedculos essenciais, predicados, atributos, que os referiam, por essncia, uns aos outros, que os marcavam, por natureza, como membros determinados da cidade, como sujeitos polticos (v. Villey, 1981). Para alm das concepes reflectidas dos filsofos, a ideia de uma ordem objectiva e indisponvel das coisas dominava o sentido da vida, as representaes do mundo e da sociedade e as aces dos homens. Honestidade, honra e verdade, palavras centrais na linguagem poltica e jurdica da po