Direito_Hebraico

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CURSO: DIREITO Disciplina: História do Direito Prof.: Flávio Freire O DIREITO HEBRAICO E A LEGISLAÇÃO MOSAICA “Não atentareis para pessoa alguma em juízo, ouvireis assim o pequeno como o grande: não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; porém a causa que vos for difícil, fareis vir a mim e eu a ouvirei”. Moisés 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS a. Digressão Histórica - O Código Mosaico é de autoria de Moisés. Este teria sido colocado num cesto de vime e posto no Rio Nilo por sua mãe para evitar que fosse morto, em cumprimento a um decreto do Faraó do Egito, que determinou que toda criança até certa idade e do sexo masculino fosse morta, isto em razão da quantidade de hebreus na região, que viviam entre o Egito e a Mesopotâmia. Os hebreus, de origem semita e mais tarde cognominados israelitas e após judeus, foram o primeiro povo que passou a admitir a existência de um único Deus, daí serem monoteístas (mono = um, théos =deus). Moisés, que quer dizer salvo das águas, foi recolhido das águas do Rio Nilo, diz a lenda, por uma princesa e criado na Corte, tendo recebido uma educação exemplar. b. O Direito dos Hebreus - Encontra-se na primeira parte da Bíblia Sagrada, no denominado Velho Testamento e mais especificamente no Torá (Pentateuco). Apesar de não se poder precisar a data em que foi escrito, sabe-se que foi aproximadamente 1.400 anos a.C 1 . Compõe-se de cinco livros, daí o nome Pentateuco, (que quer dizer Penta, cinco, teukhos, livros): Gênesis, Êxodo, Levítico, Número e 1 Para Gilissen, a datação continua sendo controvertida, sendo que a maior parte do texto mosaico teria sido escrita entre os séculos XII e V a.C.

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CURSO: DIREITODisciplina: História do Direito Prof.: Flávio Freire

O DIREITO HEBRAICO E A LEGISLAÇÃO MOSAICA

“Não atentareis para pessoa alguma em juízo, ouvireis assim o pequeno como o grande: não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; porém a causa que vos for difícil, fareis vir a mim e eu a ouvirei”. Moisés

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

a. Digressão Histórica - O Código Mosaico é de autoria de Moisés. Este teria sido colocado num cesto de vime e posto no Rio Nilo por sua mãe para evitar que fosse morto, em cumprimento a um decreto do Faraó do Egito, que determinou que toda criança até certa idade e do sexo masculino fosse morta, isto em razão da quantidade de hebreus na região, que viviam entre o Egito e a Mesopotâmia. Os hebreus, de origem semita e mais tarde cognominados israelitas e após judeus, foram o primeiro povo que passou a admitir a existência de um único Deus, daí serem monoteístas (mono = um, théos =deus). Moisés, que quer dizer salvo das águas, foi recolhido das águas do Rio Nilo, diz a lenda, por uma princesa e criado na Corte, tendo recebido uma educação exemplar.

b. O Direito dos Hebreus - Encontra-se na primeira parte da Bíblia Sagrada, no denominado Velho Testamento e mais especificamente no Torá (Pentateuco). Apesar de não se poder precisar a data em que foi escrito, sabe-se que foi aproximadamente 1.400 anos a.C1. Compõe-se de cinco livros, daí o nome Pentateuco, (que quer dizer Penta, cinco, teukhos, livros): Gênesis, Êxodo, Levítico, Número e Deuteronômio. Destes, a parte considerada mais importante é o Deuteronômio, que se traduz como “segundas leis”. No Pentateuco, Moisés estabelece normas de conduta a serem obedecidas pelo povo hebreu, havendo uma divinização do direito, o Deus sendo a sua única fonte. Não há diferença substancial entre normas morais, religiosas e jurídicas. A língua utilizada teria sido provavelmente o aramaico2.

1 Para Gilissen, a datação continua sendo controvertida, sendo que a maior parte do texto mosaico teria sido escrita entre os séculos XII e V a.C.2 Hodiernamente, o direito contido e perpetuado pelo Código Mosaico ainda tem aplicação na antiga Palestina, hoje Israel, através de recompilações e acréscimos advindos da tradição oral, contidas no Talmud. Trata-se de um direito religioso.

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c. Institutos jurídicos – dentre os mais importantes temos a família, correspondendo a uma estrutura patriarcal, com poder total do pai sobre os filhos e a esposa; casamento, com a possibilidade de compra da esposa, em dinheiro ou serviços; sucessão, o filho varão detinha a condição de herdeiro único, a mulher sendo excluída, etc.

2. SISTEMA PUNITIVO HEBRAICO

i. Pena de Talião – O princípio da pena de talião está presente, como no Código de Hammurabi, porém sua aplicação era mais amena, tendo em vista outros princípios existentes. O homicídio, por exemplo, era punido com a pena de morte. Já se o homicídio fosse culposo, ou seja, se não houve a intenção de provocar aquele resultado, o denominado homicídio involuntário, a penalidade era a obrigação do autor do delito refugiar-se noutra cidade para se manter vivo3.

ii. Estupro – com relação ao crime de estupro, vejamos o que diz o Código Mosaico:

“Se houver uma jovem virgem prometida a um homem, e um homem a encontra na cidade e se deita com ela, trarei ambos à porta da cidade e os apedrejareis até que morram: a jovem por não ter gritado por socorro na cidade e o homem por ter abusado da mulher de seu próximo. (...) Contudo, se o homem encontrou a jovem prometida no campo, violentou-a e deitou-se com ela, morrerá somente o homem que se deitou com ela; nada farás à jovem, porque ela não tem pecado que mereça a morte. (...) Ele a encontrou no campo, e a jovem prometida pode ter gritado, sem que houvesse quem a salvasse”. (Deut. 22, vs. 23-27).

iii. Adultério - concernente ao adultério, ao contrário do Código de Hamurabi, que punia muito mais a mulher que o homem, no Código mosaico, ambos, homem e mulher, pegos em flagrante cometendo adultério, deveriam ser mortos. A mulher virgem não prometida que se deitasse com um homem e fosse pega em flagrante, a pena era suportada pelo homem, que deveria pagar uma pena pecuniária ao pai da jovem e ser obrigado a tomá-la pelo resto da vida.

3. SISTEMA PROBATÓRIO E FALSO TESTEMUNHO

i. Prova testemunhal - No Código mosaico, quanto à prova testemunhal, não era permitido o depoimento de uma só

3 O delitos mais comuns eram aqueles praticados contra a divindade, como idolatria, blasfêmia, mas também contra a honestidade (adultério, fornicação), a honra (calúnia) e a propriedade.

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pessoa, exigindo-se um número elevado de testemunhas: “Uma única testemunha não é suficiente contra alguém, em qualquer caso de iniqüidade ou de pecado que haja cometido”. (Deut. 19, v. 15). É o famoso brocardo: testis unus, testis nullus. Quanto ao falso testemunho, era um crime punido de forma rigorosa, como na maioria das legislações antigas:

“E os juízes bem inquirirão, e eis que sendo a testemunha falsa testemunha, que testificou falsidade contra seu irmão, far-lhe-eis como cuidou fazer a seu irmão: e assim tirarás o mal do meio de ti”. (Deut. 19, vs. 18 e 19).

4. DIREITO DE FAMÍLIA – Casamento e Divórcio

i. Divórcio - o Divórcio existia na época, porém não como o conhecemos atualmente. O concubinato era considerado algo normal. Na legislação mosaica, o homem exerce uma preponderância sobre a mulher, apesar dos avanços do Código. O homem poderia separar-se da mulher, desde que esta perdesse a graça a seus olhos. Vejamos o que diz o Código:

“Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graças em seus olhos, por nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito de repúdio e lho dará na sua mão e a despedirá de sua casa”. (Deut., 24, v. 1).

ii. Virgindade - O homem que, posteriormente ao casamento, descobrisse não ser sua mulher mais virgem, “então tirarão a moça à porta da casa de seu pai e os homens da cidade a apedrejarão com pedras, até que morra”. (Deut. 22, v. 21). Caso a acusação feita pelo marido não fosse verdadeira, este teria obrigação de mantê-la como sua mulher em todos os dias da sua vida, não a podendo despedir.

5. DIREITO SUCESSÓRIO

i. Critério da primogenitura - quanto à herança, o primogênito era beneficiado em detrimento dos outros filhos. Este é quem passava a ocupar o lugar do pai, cuidando dos outros irmãos, administrando os bens deixados pelo patriarca.

6. PROPRIEDADE E PODER FAMILIAR

i. Direito de Propriedade - O direito de propriedade também já havia sido tratado no Código, no capítulo 19, v. 14, onde está dito: “Não mudes o limite do teu próximo, que limitaram

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os antigos na tua herança, que possuíres na terra, que te dá o Senhor teu Deus para a possuíres”. Quanto ao direito de propriedade, não se sabe precisar a data de seu surgimento.4

ii. Poder familiar - Havia um grande respeito em relação à autoridade paterna, como no Código de Hammurabi, tanto que, por ser uma sociedade patriarcal, qualquer ato que importasse em desrespeito a esta figura, era punido severamente. Esta autoridade que exercia o pai, hoje a denominamos Poder Familiar, exercidos por ambos os genitores, previsto no nosso código civil, em seus artigos 1.630 e ss5. No Código mosaico, o filho que não obedece ao pai e à mãe deve ser morto:

“Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz do pai e à voz da mãe e, castigando-o eles, não lhes der ouvidos, então todos os homens de sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra”. (Deut. 21, vs. 18 e 21).

7. NORMAS DE DIREITO DO TRABALHO

i. Descanso Semanal - O Código mosaico continha normas de Direito do Trabalho, dispondo sobre a proibição de trabalho gratuito, da submissão de uma pessoa a outra por tempo indefinido. No Código mosaico, o descanso semanal é tratado pela primeira vez, ao contrário das legislações antigas. Aqui, ninguém deverá trabalhar no sétimo dia:

“nem o teu servo nem a tua serva, nem os estrangeiros e nem mesmo animal algum pudesse trabalhar no sétimo dia, devendo todos descansarem”.

8. A PROTEÇÃO AO DOMICÍLIO

a. A inviolabilidade de domicílio - presente como um direito fundamental em nossa Constituição, artigo 5º, inciso XI6, foi uma

4 Quanto ao direito de propriedade, não se sabe precisar a data de seu surgimento. Segundo Jean-Jacques Rousseau, o direito de propriedade aparece pela primeira vez quando uma pessoa, apossando-se de determinada faixa de terra, diz: isto é meu, e todos os outros, posteriormente, nada opunham, então aquele fato torna-se consumado.5 Dizem os artigos 1.630 e 1.634 ambos do Código Civil brasileiro: Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores. Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

6 Inciso XI do artigo 5º da Constiuição Federal de 1988: XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

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das conquistas do Código mosaico, tendo sido este precursor nessa matéria:

“quando emprestares alguma coisa a teu próximo, não entrarás em sua casa para tirar o penhor; fora estarás, e o homem a quem emprestaste te trará fora o penhor”. (Deut. 24, vs. 10 e 11).

9. OUTRAS DISPOSIÇÕES

9.1. Usura - A usura, crime consistente em cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei, condenada em nossa legislação, também assim o era nas legislações antigas, já que é uma chaga que acompanha o homem desde os tempos imemoriais. No capitulo 23, v. 19 do mesmo Livro, existe previsão a respeito: “A teu irmão não emprestarás à usura, nem à usura de dinheiro, nem à usura de comida, nem à usura de qualquer coisa que se empresta à usura”.

9.2. Direito Ambiental - A legislação mosaica continha normas de direito ambiental: “Quando tiveres que sitiar uma cidade durante muito tempo antes de atacá-la e tomá-la, não deves abater suas árvores a golpes de machado; alimentar-te-ás dela, sem cortá-las(...)”. (Deut. 20, v. 19).

9.3. Legítima Defesa, Impenhorabilidade de bens imprescindíveis ao exercício da profissão, e o princípio de que a pena não deverá passar da pessoa do agente que praticou o delito – individualização da pena, estão presentes na legislação mosaica, e corroboram o entendimento de que estas normas representaram, sem dúvida alguma, um enorme avanço quanto aos direitos humanos.

9.4. Ausência de igualdade jurídica - Por outro lado, devido à impregnação da religião na vida dos hebreus, havia normas severas a serem aplicadas à mulher, que não tinha os mesmos direitos que o homem, talvez em razão da supremacia física deste que a protegia contra os inimigos. De modo contrário, a mulher também exercia relevante papel na organização política hebraica, a mulher podia chegar até a magistratura, como Débora, que foi juíza.