CARONE Beco de Flores

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Beco de flores Modesto Carone 1 As sereias dos barcos soavam desoladas ao largo da costa quando cheguei a Paraty. Embora fosse maio chovia sem parar; ninguém se aventurava pelas ruas alaga-das por causa do mau tempo; os hotéis pareciam acomodados à escuridão. Apesar disso andei durante horas para encontrá-lo. No meio do nevoeiro era natural que a túnica colasse ao meu corpo como uma armadura; as sandálias mergulhavam com ruído nas poças mais fundas. Atendendo a um comando subterrâneo eu segurava o punhal na mão direita: dentro de alguns instantes ia vê-lo diante de mim. Ao entrar no beco de ores tive a certeza de que ele caminhava ao meu encontro. Pisei tensa nas pedras lisas, as narinas abertas ao tóxico das plantas pendentes de muros e janelas. A essa altura a visibilidade era quase nula e as cãibras paralisavam os dedos em volta do punhal; no entanto não afrouxei nem um pouco a pressão. Isso não me impediu de estremecer ao surpreendê-lo sentado no chão. De fato a vontade de golpeá- lo enquanto ele estava anestesiado era muito grande: só a custo me contive. Por isso esperei que ele voltasse a si para vencer a distância que me separava do seu pescoço. Ao enterrar a lâmina na carne desprotegida percebi que as lágrimas me subiam aos olhos; pois eu o odiava a ponto de saber que obedecia passivamente a uma realização de desejo. 2 Senti que Erínia estava por perto Quando cheguei ao centro comercial de Paraty. Embora fosse maio a chuva caía sem parar; as pedras lisas impediam que os turistas se aventurassem pelas ruas; além do mais faltava luz em toda parte e as sereias dos barcos soavam desoladas ao largo da costa. Eu tinha armado o guarda-chuva de plástico e cami- nhava em direção ao mar; surpreendido pelo nevoeiro percebi que não chegaria à praia; tanto que depois de andar mais de uma hora estava no ponto de partida. Foi nesse lance que desviei o olhar para o beco: parecia um jardim suspenso. Os tufos de ores despen cavam pelos muros e janelas; a primeira vez que os vi pensei que fossem restaurantes; as casas no entanto estavam fechadas por causa do mau tempo.

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Beco de floresModesto Carone

1As sereias dos barcos soavam desoladas ao largo da costa quando cheguei a Paraty. Embora fosse maio chovia sem parar; ningum se aventurava pelas ruas alaga-das por causa do mau tempo; os hotis pareciam acomodados escurido. Apesar disso andei durante horas para encontr-lo. No meio do nevoeiro era natural que a tnica colasse ao meu corpo como uma armadura; as sandlias mergulhavam com rudo nas poas mais fundas. Atendendo a um comando subterrneo eu segurava o punhal na mo direita: dentro de alguns instantes ia v-lo diante de mim. Ao entrar no beco de ores tive a certeza de que ele caminhava ao meu encontro. Pisei tensa nas pedras lisas, as narinas abertas ao txico das plantas pendentes de muros e janelas. A essa altura a visibilidade era quase nula e as cibras paralisavam os dedos em volta do punhal; no entanto no afrouxei nem um pouco a presso. Isso no me impediu de estremecer ao surpreend-lo sentado no cho. De fato a vontade de golpe-lo enquanto ele estava anestesiado era muito grande: s a custo me contive. Por isso esperei que ele voltasse a si para vencer a distncia que me separava do seu pescoo. Ao enterrar a lmina na carne desprotegida percebi que as lgrimas me subiam aos olhos; pois eu o odiava a ponto de saber que obedecia passivamente a uma realizao de desejo.

2Senti que Ernia estava por perto Quando cheguei ao centro comercial de Paraty. Embora fosse maio a chuva caa sem parar; as pedras lisas impediam que os turistas se aventurassem pelas ruas; alm do mais faltava luz em toda parte e as sereias dos barcos soavam desoladas ao largo da costa. Eu tinha armado o guarda-chuva de plstico e caminhava em direo ao mar; surpreendido pelo nevoeiro percebi que no chegaria praia; tanto que depois de andar mais de uma hora estava no ponto de partida. Foi nesse lance que desviei o olhar para o beco: parecia um jardim suspenso. Os tufos de ores despencavam pelos muros e janelas; a primeira vez que os vi pensei que fossem restaurantes; as casas no entanto estavam fechadas por causa do mau tempo. Atrado pelo silncio entrei no beco como quem sobe num navio iluminado. O perfume das plantas era muito mais forte do que eu imaginava em poucos segundos sentei-me intoxicado no cho. Creio que s nesse instante Ernia apareceu de corpo inteiro diante de mim: a tnica branca escondia as sandlias de couro e uma luz de vinho vazava dos seus olhos. Movido pela surpresa eu lhe disse alguma coisa amvel; no tive resposta. Lembro-me apenas de que ela avanou pisando nas poas e enterrou o punhal no meu pescoo. Enquanto o sangue ensopava o colarinho eu mantinha a calma; pois o crime de Ernia tinha as marcas usuais da alucinao satisfatria.

Histrias Fantsticas. So Paulo, tica, 1995, p. 141-142. (Coleo para gostar de ler 21).