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GESTOS MÍNIMOS: A POTÊNCIA DO FILOSOFAR COM CRIANÇAS Beatriz Fabiana Olarieta Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Resumo A presente comunicação sustém que a prática da filosofia na escola adquire sustento nos gestos mínimos que irrompem nos encontros com as crianças. Um olhar, uma pergunta, um surpreender-se perante as palavras ditas ou escritas por alguém, a impossibilidade de achar palavras para colocar um pensamento, um silêncio, um sussurro que atravessa uma sala e obriga a pensar todo de novo são exemplos dos pequenos gestos nos que se colocam em jogo as experiências filosóficas na escola. A partir do trabalho do filósofo italiano Giorgio Agamben, se apresenta o gesto como um tipo de ação humana que escapa da clássica divisão aristotélica entre poiesis e práxis e se o coloca como um terceiro gênero de ação que se distingue por não fazer e não agir, mas por suportar (sustinet), por sustentar, por ter sobre si, por assumir. Esse suportar é caracterizado pelo filósofo como um meio sem fim e como uma profanação, que restitui ao uso comum dos homens o que era considerado próprio dos deuses. A partir da apresentação da “pintura de gênero”, que surge nos Países Baixos durante o século XVII e que traz a novidade de dar realce aos gestos da vida cotidiana, pretende-se mostrar como não só o mínimo, mas também o modo de tratamento que dele se faça pode abrir a possibilidade de que a força do imanente se torne evidente. Não se trata de um desvelamento do que se apresenta, mas do estabelecimento de uma distância certa, de uma proximidade que permita estabelecer uma relação com o mínimo e que abra a percepção do que temos enfrente. Agamben afirma que o gesto, de alguma forma, mostra o que não pode ser dito; aquilo que permanece “inexpressado”, mas que, mesmo assim, comunica; aquilo que se mostra em toda sua potência, mas que não obedece a um fim; aquilo que se exibe em sua medialidade. Nas pinturas de gênero há coisas ditas, não informações passadas. Esses quadros portam algo que neles permanece “inexpressado”, mas é exibido. Essas pinturas dizem, significam, desde esse lugar onde não há nada a dizer. Os olhares, a luz, os detalhes expõem essa estranha habilidade de comunicar uma comunicabilidade, de expor sua medialidade sem fim. Como nelas, pequenos gestos encarnados em corpos e em palavras, abrem a possibilidade de tornar evidente o ponto que dá sustento ao que acontece quando um grupo de crianças se encontra para filosofar. Palavras-chave: Filosofia com Crianças, gestos mínimos, Agamben, pintura de gênero. Resumen La presente comunicación sostiene que la práctica de la filosofía en la escuela adquiere sustento en los gestos mínimos que irrumpen en los encuentros con los niños. Una mirada, una pregunta, un sorprenderse ante las palabras dichas o escritas por alguien, la imposibilidad de encontrar palabras para plantear un pensamiento, un silencio, un susurro que atraviesa un aula y obliga a pensar todo de nuevo son ejemplos de los pequeños gestos en los que se ponen en juego las experiencias filosóficas en la escuela. A partir del trabajo del filósofo italiano Giorgio Agamben, se presenta el gesto como un tipo de acción humana que escapa a la clásica división aristotélica entre poiesis y práxis y se lo coloca como un tercer género de acción que se caracteriza por un no hacer y un no actuar, sino por soportar (sustinet), por sustentar, por tener sobre sí, por asumir. Ese soportar es caracterizado por el filósofo como un medio sin fin y como una profanación, que restituye al uso común de los hombres lo que era considerado propio de los dioses.

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GESTOS MÍNIMOS: A POTÊNCIA DO FILOSOFAR COM CRIANÇAS

Beatriz Fabiana OlarietaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

ResumoA presente comunicação sustém que a prática da filosofia na escola adquire sustento nosgestos mínimos que irrompem nos encontros com as crianças. Um olhar, uma pergunta, umsurpreender-se perante as palavras ditas ou escritas por alguém, a impossibilidade de acharpalavras para colocar um pensamento, um silêncio, um sussurro que atravessa uma sala eobriga a pensar todo de novo são exemplos dos pequenos gestos nos que se colocam em jogoas experiências filosóficas na escola. A partir do trabalho do filósofo italiano Giorgio Agamben, se apresenta o gesto como um tipode ação humana que escapa da clássica divisão aristotélica entre poiesis e práxis e se o colocacomo um terceiro gênero de ação que se distingue por não fazer e não agir, mas por suportar(sustinet), por sustentar, por ter sobre si, por assumir. Esse suportar é caracterizado pelofilósofo como um meio sem fim e como uma profanação, que restitui ao uso comum doshomens o que era considerado próprio dos deuses.A partir da apresentação da “pintura de gênero”, que surge nos Países Baixos durante o séculoXVII e que traz a novidade de dar realce aos gestos da vida cotidiana, pretende-se mostrarcomo não só o mínimo, mas também o modo de tratamento que dele se faça pode abrir apossibilidade de que a força do imanente se torne evidente. Não se trata de um desvelamentodo que se apresenta, mas do estabelecimento de uma distância certa, de uma proximidade quepermita estabelecer uma relação com o mínimo e que abra a percepção do que temos enfrente.Agamben afirma que o gesto, de alguma forma, mostra o que não pode ser dito; aquilo quepermanece “inexpressado”, mas que, mesmo assim, comunica; aquilo que se mostra em todasua potência, mas que não obedece a um fim; aquilo que se exibe em sua medialidade. Naspinturas de gênero há coisas ditas, não informações passadas. Esses quadros portam algo queneles permanece “inexpressado”, mas é exibido. Essas pinturas dizem, significam, desde esselugar onde não há nada a dizer. Os olhares, a luz, os detalhes expõem essa estranha habilidadede comunicar uma comunicabilidade, de expor sua medialidade sem fim. Como nelas,pequenos gestos encarnados em corpos e em palavras, abrem a possibilidade de tornarevidente o ponto que dá sustento ao que acontece quando um grupo de crianças se encontrapara filosofar.Palavras-chave: Filosofia com Crianças, gestos mínimos, Agamben, pintura de gênero.

ResumenLa presente comunicación sostiene que la práctica de la filosofía en la escuela adquieresustento en los gestos mínimos que irrumpen en los encuentros con los niños. Una mirada,una pregunta, un sorprenderse ante las palabras dichas o escritas por alguien, la imposibilidadde encontrar palabras para plantear un pensamiento, un silencio, un susurro que atraviesa unaula y obliga a pensar todo de nuevo son ejemplos de los pequeños gestos en los que se ponenen juego las experiencias filosóficas en la escuela. A partir del trabajo del filósofo italiano Giorgio Agamben, se presenta el gesto como un tipode acción humana que escapa a la clásica división aristotélica entre poiesis y práxis y se locoloca como un tercer género de acción que se caracteriza por un no hacer y un no actuar,sino por soportar (sustinet), por sustentar, por tener sobre sí, por asumir. Ese soportar escaracterizado por el filósofo como un medio sin fin y como una profanación, que restituye aluso común de los hombres lo que era considerado propio de los dioses.

II SIFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015

A partir de la presentación de la “pintura de género”, que surge en los Países Bajos durante elsiglo XVII y que trae la novedad de dar realce a los gestos de la vida cotidiana, se pretendemostrar cómo no sólo lo mínimo, sino también el modo de tratamiento que de él se hagapuede abrir la posibilidad de que la fuerza de lo inmanente se haga evidente. No se trata deldevelamiento de lo que se presenta sino del establecimiento de una distancia adecuada, de unaproximidad que permita establecer una relación con lo mínimo y que se abra la percepción delo que tenemos en frente.Agamben afirma que el gesto, de alguna forma, muestra lo que no puede ser dicho; aquelloque permanece “inexpresado”, pero que, incluso así, comunica; aquello que se muestra entoda su potencia, pero que no obedece a un fin; aquello que se exhibe en su medialidad. En laspinturas de género hay cosas dichas, no informaciones transportadas. Esos cuadros portanalgo que en ellos permanece “inexpresado”, pero que es exhibido. Esas pinturas dicen,significan, desde ese lugar donde no hay nada que decir. Las miradas, la luz, los detallesexponen esa extraña habilidad de comunicar una comunicabilidad, de exponer su medialidadsin fin. Como en ellas, pequeños gestos encarnados en cuerpos y en palabras, abren laposibilidad de hacer evidente el punto que da sustento a lo que acontece cuando un grupo deniños se encuentra en la escuela para filosofar.Palabras-clave: Filosofía con Niños, gestos mínimos, Agamben, pintura de género.

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Para começar, e a modo de exemplo, trazemos duas cenas acontecidas em uma

escola pública durante a prática do filosofar com crianças:

- Matheus se atrapalha com as palavras que não conseguem dizer o que ele

pensa sobre as imagens que refletem os espelhos. Enquanto ele tenta se esclarecer,

seus colegas continuam discutindo e defendendo suas posições. Matheus não

compartilha essas ideias. Nada do que eles dizem faz sentido para ele, mas não

encontra o modo de colocar seu pensamento na roda. Finalmente, enquanto as mãos

de Matheus ainda seguram um espelho, as palavras encontram um ponto de

condensação, aceitam ordenar-se e saem de sua boca. A imagem que aparece no

espelho não pode ser algo morto, mas também não é algo vivo, afirma Matheus,

porque “o espelho é uma alma sem coração”. A frase está prolixamente ordenada, as

palavras são compreensíveis, mas algo nelas não se deixa capturar facilmente: “o

espelho é uma alma sem coração”. Matheus conseguiu pronunciar suas palavras e nos

deixou sem palavras. Depois de uns segundos de forçoso e esforçado silêncio por

pensar sua afirmação, timidamente as vozes vão reaparecendo, mas, esta vez só são

portadoras de perguntas que pipocam daqui para lá.

- Conversávamos sobre se é possível escrever sobre o que não sabemos.

Alguém menciona “o nada” como um exemplo de algo desconhecido sobre o que,

hipoteticamente, seria impossível escrever. Lucas levanta de sua cadeira, atravessa a

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roda e sussurra algo no ouvido de sua professora de português. Ele lhe pediu para

fazer o exercício de, efetivamente, tentar escrever sobre o nada. Esse pedido se faz

público e acabamos pegando lápis e papel para entregar-nos à tarefa. Lucas Daniel

quer ser o primeiro a ler: “O nada pode ser um quarto vazio, um deserto sem areia, um

rio sem água. O nada simplesmente é o nada”. Sua professora de português, aquela

que foi arduamente treinada para ensinar o domínio da língua a seus alunos, não

conseguiu escrever. Só pôde traçar as linhas de um precário desenho em seu papel.

Lucas Daniel é o primeiro aluno que, em sua vida profissional, a convidou a escrever.

Não só isso. É o primeiro que a fez deparar-se com sua impossibilidade de escrever,

com sua falta de palavra. Com um tímido sussurro, Lucas Daniel subvertendo os

papéis que instituição escolar assigna, obriga a sua professora repensar-se.

Estas duas cenas tentam apresentar instantes nos que a experiência de filosofar

com crianças na escola força ao pensamento e parece adquirir consistência. Tentam

mostrar que todas as palavras ditas ou escritas durante as conversas com as crianças,

quando condensam em pequenos gestos, cobram uma potência capaz de questionar as

ideias que se têm e até toda uma vida. Esses pequenos gestos das palavras e dos

corpos são os que fazem sentir que a vida desses encontros merece ser vivida.

Junto com Roland Barthes, poderíamos chamar a esses pequenos momentos de

“biografemas”.

Se eu fosse escritor, e estivesse morto, gostaria muito que a minhavida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amistoso eperspicaz, a alguns detalhes, a alguns gostos, a algumas inflexões,digamos “biografemas” cuja distinção e mobilidade pudessem viajaralém de qualquer destino e chegar a tocar, à maneira de átomosepicúreos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão [...](BARTHES, 1977, p.13, tradução nossa).

Para Barthes o que merece perdurar de uma vida vivida são só “alguns

detalhes”. De toda uma vida são esses detalhes, capturados nas páginas de uma

biografia, os que teriam a capacidade de tocar algum “corpo futuro” se seus olhos se

pousassem, em algum momento, sobre as linhas que os contam.

Com o auxilio de Giorgio Agamben (2008a), os “biografemas” de Barthes,

poderiam ser pensados como pequenos gestos.

O filosofo italiano, apoiado na De lingua Latina de Varrão, resgata o gesto

como um tipo de ação humana que escapa da clássica divisão aristotélica entre poiesis

e práxis. O gesto não teria a ver nem com aquele fazer (facere) próprio do poeta, que

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traz sua obra do não ser ao ser, nem com aquele agir (agere) próprio do ator que atua,

mas não faz o drama. Entre estas duas possibilidades, para o gramático latino, existe

um terceiro género na esfera da ação: o gesto. Ele é próprio do imperador. O

imperator (gerit), com respeito ao qual se usa a expressão res gerere, realiza algo, o

coloca sobre si, no sentido de assumir completamente a responsabilidade, de

apreendê-lo. É o suportar (sustinet) o que caracteriza o gesto, o sustentar, o ter sobre

si, o assumir. Nele nem se produz algo nem se age. O gesto, simplesmente, suporta. O

gesto não tem a ver com fazer algo nem com criar alguma coisa, nem com produzir. O

gesto não faz nada, somente sustenta, suporta, coloca sobre si como o imperador sua

investidura. Contudo, esse não fazer nada, esse suportar ou esse sustentar é capaz de

instaurar um reino.

Consideramos aqui que são precisamente os gestos os que dão sustento à

experiência de filosofar na escola. Gestos como o de Matheus ou de Lucas e sua

professora acontecem o tempo todo na prática do filosofar com as crianças. Esses

gestos compartilham uma espécie de miudeza. Não guardam a grandiloquência dos

heróis. Pelo contrário, desde uma existência mínima suportam algo difícil de esgotar

com as palavras. Eles são pequenos e potentes espaços de profanação, de restituição.

Para Agamben, os gestos são da ordem do profano. Profano, para o autor, é aquilo que

“[...] é restituído ao uso comum dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65), aquilo que

tendo sido propriedade dos deuses, foi tirado deles e devolvido aos homens.

Essa restituição pode acontecer de duas maneiras. Por uma parte, a profanação

se produz pelo contato: quando a carne da vítima oferecida aos deuses é tocada, perde

seu caráter sagrado. Profana quem toca e é profanado o que é tocado por alguém.

Profana quem faz, de algum modo, parte de si aquilo que era sagrado, quem rouba dos

deuses o que eles se apropriaram, quem restitui ao uso comum, quem faz parte de sua

carne, essa carne que era sagrada. Por outra parte, a profanação se produz por uso, ou

como prefere dizer Agamben, por reuso: a criança que brinca com um objeto sagrado,

o dar-lhe outro uso, o neutraliza. Ao negligenciar aquilo para o que tinha sido

destinado, o tira do mundo dos deuses, do mundo da necessidade, do mundo da lei e o

restitui.

Os “biografemas” de Barthes adquirem a capacidade de viajar no tempo e

afetar a alguém “pelos cuidados de um biógrafo amistoso e perspicaz”. Poderíamos

dizer que esses pequenos detalhes se tornam gestos quando são profanados, quando

alguém os toca e quando alguém se deixa tocar por eles, quando, ao modo de uma

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criança que brinca, alguém os “reusa” e permite que eles adquiram outras vidas. A

força dessa miudeza que habita nos gestos depende do tratamento que deles façamos,

do modo em que permitamos que eles nos toquem e da delicadeza com os que os

toquemos a fim de poder perceber que é sobre eles que uma vida se sustenta, que são

eles os que suportam e dão suporte ao que vale a pena conservar na memória, ao que

vale a pena restituir a uma vida.

Para pensar na sutileza desse tratamento (ou desse “uso”, se queremos

conservar o termo de Agamben), no modo em que um gesto pode ser abordado e

mostrar sua força, a arte pode nos oferecer algumas pistas.

Víctor Erice (2008), instigado pelo cinema de Abbas Kiarostami, sustenta que

nos filmes do cineasta iraniano não é a realidade empírica, já dada, a que está em

questão, mas o modo atento de estabelecer com ela uma relação. “Nem olhar sobre a

representação nem olhar representativo, mas algo mais singelo: mobilização do olhar”

(ERICE, 2008, p. 26, tradução nossa). Não se trata de desvelar o que se apresenta,

mas do estabelecimento de uma distância certa, de uma proximidade que permite

estabelecer uma relação, que possibilita que essa relação tenha lugar e que, nesse

sentido, se abre à percepção do que temos em frente, do evidente.

Nancy gosta da força da palavra “evidência” e aloja sua etimologia na

energeia grega que faz referência ao relâmpago, a sua brancura poderosa e

instantânea, dado que argos indica tanto o resplendor quanto a rapidez, nos diz.

A evidência, em seu sentido forte, não é aquilo que cai sob osentido, mas aquilo que chicota nele e cujo azote abre uma ocasiãopara o sentido. É uma verdade, não como correspondência com umcritério dado, mas como sobressalto. Também não é umdesvelamento, porque a evidência mantém sempre um segredo ouuma reserva essencial: a reserva de sua própria luz, do lugar de ondeprovém (NANCY, 2008, p. 94).

Os detalhes que, de alguma forma, apresentam uma vida e mostram o que fez

que ela tenha valido a pena ser vivida, os gestos que sustentam, que profanam, que

restituem, que se oferecem gratuitamente, como um meio sem fim, são evidentes.

Mas, essa evidência não demanda a reconstrução dos dados empíricos em que se

produziu, senão “a reserva de sua própria luz”, dessa que dá uma chicotada no olhar e

o obriga a ver uma nova forma.

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Além dos cineastas, os pintores conhecem da tarefa de “movilizar o olhar”, de

estabelecer a distância certa para permitir que o gesto se torne evidente. Vamos nos

deter nos artistas que formaram parte da chamada “pintura de gênero” nos Países

Baixos durante o século XVII, dado que eles trouxeram a novidade de tornar centrais

gestos mínimos da vida cotidiana em seus quadros. Em suas pinturas não aparecem

nem santos nem deuses gregos, nem heróis, nem reis, nem personagens ilustres. Com

cuidado e atenção esses pintores mostram pessoas realizando humildes atividades

cotidianas que, em seus quadros, adquirem um ar monumental. Nessas pinturas

profanas

[...] cortar nabos e descascar maçãs se transforma pela primeira vezem uma atividade tão digna de figurar no centro de um quadro comoa coroação de um monarca ou os amores de uma deusa. Se coloca asmulheres fazendo suas tarefas domésticas no pedestal dos santos edos heróis antigos. Já não tem nada de estranho pintar uma mãedespiolhando seu filho, ou um homem no torno [...] (TODOROV,2013, p. 73-74, tradução nossa).

Todorov, ao embarcar na tarefa de desentranhar esses quadros, observa como

as pessoas que aparecem neles “[...] parecem gostar do que fazem. Mas, sobretudo, os

pintores parecem gostar das pessoas que pintam e do mundo material que as rodeia”

(Ibidem, p. 71). Esse gosto é o que os leva a “[...] elevar os detalhes à dignidade dos

heróis [...]” (Idem). Esse particular modo de atenção ao cotidiano é o que transformou

a maneira de pintar.

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Fig. 5. Mucama ordenhando uma vaca num celeiro. Gerard Ter Borch

Todorov (2013) nos mostra a singularidade dos quadros de gênero

contrastando-a com outros tipos de pinturas. Não é a primeira vez que pessoas são

retratadas realizando atividades cotidianas. Em quadros que abordam temas religiosos

é possível encontrar um santo realizando alguma atividade corrente, mas essa

atividade não aparece por si mesma, senão que adquire relevância pela investidura do

personagem. Na pintura de gênero o íntimo e o cotidiano se tornam sagrados, mas não

porque guardem alguma conotação alegórica com o mundo religioso. Coincidindo

com isso, Zumthor (1989, p. 241) observa como “[...] a alegoria, a mitologia, o

símbolo e os procedimentos ditos acadêmicos desempenham na pintura holandesa um

papel muito secundário, muitas vezes nulo”. Nos quadros de gênero o ato de uma

mulher qualquer amamentando seu filho é nobre em si mesmo, não porque tenha

alguma reminiscência da Virgem Maria amamentando Jesus. Enquanto em um quadro

religioso essa atividade fica subsumida à sacralidade dos personagens, nesta nova

forma de pintar é a própria atividade cotidiana que se torna o princípio organizador do

quadro. “O acessório tem adquirido o status do essencial, e o que estava subordinado

tem se transformado em autônomo” (TODOROV, 2013, p. 11). A pintura de gênero

se concentra nesses gestos mínimos, simples e corriqueiros e negligencia aquilo que

escapa do comum, que é alheio ao comum dos mortais. Não há nela grandes gestos

dramáticos, mas um clima calmo em que todos os elementos têm a mesma relevância.

Esta forma de se relacionar com o que pintam estabelece um abismo entre os

pintores de gênero e os do Renascimento (sobretudo o italiano). Mesmo quando

muitos pintores holandeses viajavam a Roma para aprender, “nas telas que trazem da

Itália, veem-se uma camponesa e seu cântaro, um mascate, um pastor, um rebanho:

tipos vivos, saídos do espetáculo da rua, e sobre os quais concentram o calor daquele

sol que lhes faltava na Holanda” (ZUMTHOR, 1989, p. 241).

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Fig. 6. Mulher descascando maçãs. Pieter de Hooch

Por outra parte, a pintura de gênero apresenta pessoas comuns realizando

alguma atividade também comum, mas não pode ser considerada retrato, ainda que

tenha com ele algumas semelhanças. Há aqui outra sutil característica desta pintura. O

retrato trabalha com modelos, indivíduos concretos representados em um tempo e

espaço determinados, que pagam para serem retratados e que esperam que a imagem

pintada se pareça com eles. “Mas, enquanto o retrato se afasta do modelo, começa a

ser valorado com os cânones da pintura de gênero, dado que já não buscará nele o

indivíduo, senão um tipo de homem ou tipo de atitude perante a vida” (TODOROV,

2013, p. 19). No retrato, a atividade realizada ou a circunstância em que aparece está a

serviço do retratado, mas no quadro de gênero essa relação se inverte e o importante

passa a ser o que se faz e não a pessoa. Em um aparece a pessoa individualizada em

um tempo estático, no outro ela está inserida na engrenagem narrativa do universo do

quadro. Em um, o indivíduo está pousando, no outro, uma pessoa está envolvida em

uma atividade.

Todorov destaca também uma diferença interessante, que o próprio

Michelangelo assinala, entre a pintura flamenca do século XVI (que fora o

antecedente da pintura de gênero) e a pintura do Renascimento1. Por um lado, a

1 Todorov se baseia nos diálogos do português Francisco de Holanda, que têm como personagem aMichelangelo assinalando que há acordo em considerar que o que neles aparece é fiel ao pensamentodo artista renascentista (Cf. TODOROV, 2013, p. 20-21).

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pintura renascentista se dirige aos entendidos, depreciando àqueles que não entendem

o valor que há na arte. Por outro, se ocupa de temas que tem um valor moral

indiscutível (santos e profetas) e, para isso, a partir das regras da beleza, realiza uma

construção artística em torno do ideal. Em outro estremo, se encontra o gênero da

pintura flamenca, um gênero inferior que, fora de se submeter ao real, à fiel

representação das coisas que existem, é portador de mensagens morais.

Todorov rebate Michelangelo e considera que essa distinção não é tão contundente.

Embora seja verdade que os quadros de gênero se preocupam em representar pessoas

reais de forma realista, não significa que renunciem ao ideal. “Mas esse ideal é

imanente às coisas em si, tal como existem” (Ibidem, p. 35). Além disso, Todorov

mostrará como essas pinturas não se esgotam na evidente conotação moral, indo

muito além.

Analisando quadros representativos do movimento, Todorov irá ensinando

como a pintura de gênero não se limita ao retrato da realidade. Nela encontramos

elementos alegóricos ou que, por evocação, intentam induzir a uma interpretação

convencional. Muitos dos elementos que aparecem retratados não são a fiel

representação do que o pintor tem ante seus olhos, mas elementos que cumprem esta

função e que vemos repetidos em diversos quadros. Considerando isso, aparece uma

disjuntiva sobre como pensar esses quadros: “Retratos edificantes ou fragmentos da

vida? Máscaras morais ou espelhos do mundo?” (Ibidem, p. 39). Para Todorov, não

há por que escolher uma ou outra opção. O autor considera que todo realismo é

aparente e que, portanto, encontrar elementos alegóricos colocados ex profeso nos

quadros, não tira deles o valor da atenção que eles dão às coisas e à aparência física

das pessoas. Estas pinturas não podem ser interpretadas exclusivamente como meros

reflexos que tentam se corresponder com a realidade externa, mas que em si mesmas

encerram um universo que guarda o código que permite seu desdobramento. “É

possível que sejam os quadros os que devam nos ensinar a interpretar o que

consideramos chaves para sua interpretação” (TODOROV, 2013, p. 40).

O pensador búlgaro não se interessa por tratar de desentranhar fielmente o

sentido que esses quadros possam ter tido para seus contemporâneos (tanto para o

pintor quanto para o público da época). Não se propõe a realizar um trabalho

estritamente histórico nem desvelar os segredos escondidos nessas alegorias. Elas,

insiste, não são um ponto de chegada, mas um ponto de partida para tentar abarcar o

quadro em sua totalidade. Todorov, com seu trabalho, vai fazendo falar esses quadros.

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Na medida em que vai passando por essas pinturas, paulatinamente, elas vão nos

mostrando a riqueza escondida dentro desses universos que retratam. Para ele, o fato

de que esses quadros ainda tenham algo a nos dizer demonstra que ainda estão vivos.

Nisso reside seu valor. Eles ainda nos indicam um caminho que poderíamos seguir.

Fig. 7. Casal na cama. Jan Steen

Apesar de autores, como Fromentin, sustentarem o contrário, para Todorov os

significados que se descobrem nos quadros estão, claramente, relacionados com

valores morais. Podemos achar neles referências a virtudes e a vícios, elogios e

censura de condutas. As mulheres realizando as tarefas domésticas (preparando a

comida, ensinando os filhos a ler, costurando etc.), geralmente no espaço interior, são

sacralizadas nestas imagens. Mas o universo masculino, concentrado mais no mundo

exterior, raramente é merecedor de elogios, dado que os homens estão ameaçados

pelos prazeres da carne, da bebida, da gula, dos jogos de azar etc. Embora isso não

seja excludente e existam quadros que mostram homens realizando alguns trabalhos

manuais (ferreiros, padeiros etc).

Mas, como dizíamos, para Todorov a evocação de virtudes e vícios está longe

de exaurir estas pinturas. Para pensar nisso o autor resgata a distinção romântica entre

alegoria e símbolo. Enquanto a primeira consiste na evocação de outra coisa por

contraste, o segundo é a presença do geral no particular, do abstrato no concreto.

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“Segundo os românticos, esse sentido geral nunca se esgota totalmente no símbolo, e

também não se expõe nunca em primeiro plano. É uma presença discreta, mas

inquestionável” (TODOROV, 2013, p. 41).

É possível pensar a pintura holandesa com base nesse caráter mediador. A

sentença moral (o geral) não é o que domina nesses quadros. “É tão grande a atenção

ao concreto que não pode se considerar um simples suporte da lição moral. Mas, no

outro estremo [...], essa intenção geral nunca desaparece” (Idem).

Como podemos ver, Todorov não fica só na caracterização dessa pintura

(temas cotidianos, mensagem moral, a relação interior-exterior etc). Ele vê que a força

dessa pintura está no tipo de tratamento dos gestos dado por alguns pintores, que pela

fenda do moral, exploram exaustiva e sistematicamente situações cotidianas e nos

abrem a infinita variedade desse mundo.

O pintor constata que a beleza pode ser albergada no objeto maisinsignificante, no gesto mais comum, desde que ele, o pintor, o plasme emtoda sua qualidade. Descobre em si mesmo um poder insuspeitado: porobra e graça de seus pinceis pode mostrar que os objetos são dignos deuma admiração não só estética, mas também ética. A autorização moralinicial, que fazia possível representar a vida, retrocede a um segundoplano. Ao ter descoberto sua beleza, os pintores se tornam agora emlegisladores da virtude. A pintura já não é o espelho da beleza, mas a fontede luz que a põe a descoberto (Ibidem, p. 74).

Fig. 8. Mãe penteando o cabelo de sua filha. Gerard Ter Borch

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A beleza desses quadros brota de sua imersão na vida cotidiana e contingente,

do cuidado com que pintam cada detalhe. Valendo-nos do conceito de Nancy,

poderíamos sustentar que esses pintores constroem uma “evidência” do cotidiano e do

mínimo em que se aloja a vida. Recorrendo a Barthes, poderíamos afirmar que esses

pintores são biógrafos amistosos e perspicazes. Apelando a Agamben, poderíamos

afirmar que, ao modo de um imperador, esses quadros mostram aquilo que dá sustento

às vidas que retratam, exibem os pequenos gestos cotidianos que suportam essas

vidas. Todorov chama essa atitude de “amor ao mundo”. Em quadros como os de De

Hooch “[...] o pintor pode decidir por si mesmo mostrar a beleza de um gesto que

ninguém tinha magnificado até então: um homem que observa pela janela ou uma

menina que nos mira com os olhos cansados” (TODOROV, 2013, p. 75).

Todorov considera que nem todos os artistas catalogados como pintores de

gênero reúnem as condições necessárias para pertencer a este movimento. Não basta

pintar pessoas comuns realizando atividades cotidianas. Não é suficiente fazê-lo

muito bem. Ao contrário, isso pode chegar a estragar a possibilidade de que essas

pinturas tenham vida. Há entre esses artistas, pintores como Vermeer, que “[...] logra

uma representação tão perfeita que não dá a impressão de pintar pessoas, senão

quadros. O que interessa a este mestre não é o mundo dos homens, mas o da pintura”

(Ibidem, p. 86). Seus quadros não se colocam a serviço de uma temática, mas se

servem dela.

Mas, no tratamento que alguém como Gerard Ter Borch dá aos temas e as

pessoas, se faz perceptível a vulnerabilidade destas. Nas cenas de bordel que ele pinta,

“[...] em lugar de clientes e de prostitutas encontramos os homens e mulheres que

desejam, sofrem, esperam” (TODOROV, 2013, p. 88). Nas situações que ele retrata,

os olhares nos deixam entrever que o que sustentam os corpos dessas crianças, desses

homens e dessas mulheres vai além da cena concreta que o quadro apresenta. “Essas

mães que despiolham seus filhos ou lhes ensinam a ler, ou que descascam uma maçã

perante seu olhar atento cumprem com seus deveres maternos da limpeza, da

alimentação e da educação das crianças, mas podemos dizer que essa mulher de olhar

sonhador que nem escuta o balbucio de seu filho, é uma encarnação da virtude

doméstica?” (Ibidem, p. 88).

Estes pintores holandeses se aproximam amorosamente desse mundo cotidiano

sem depositar sobre ele nem uma condenação nem uma ilusão, ou seja, não se

aproximam com intenções prévias às quais gostaria de afastá-lo ou aproximá-lo.

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GESTOS MÍNIMOS: A POTÊNCIA DO FILOSOFAR COM CRIANÇAS

Todo este percurso da mão de Todorov, pela pintura de gênero poderia ser

considerado um grande desvio na abordagem dos gestos que aqui estamos tentando

desenvolver. Mas, como afirma Benjamin (1984, p.50), “método é caminho indireto, é

desvio”. São as margens as que possibilitam que vislumbremos um caminho.

É inevitável perceber o poder de ressonância que tem este belo texto do autor

búlgaro para quem se entrega à tarefa de filosofar com as crianças na escola e percebe

a força dos pequenos gestos que fugazmente se apresentam e demandam cuidado e

atenção porque neles essa prática encontra sustento. Despois de lê-lo, depois de deixar

que ele nos mostre a força do cotidiano, do mínimo, do detalhe na pintura flamenca

do século XVII, os gestos (ou os “biografemas”) como o de Matheus ou de Lucas

Daniel parecem adquirir uma nova roupagem, uma nova ambientação, uma nova

luminosidade. Depois de olhar esses quadros é fácil perceber como “[...] a beleza não

está além ou por cima das coisas vulgares, mas em seu interior, e basta observá-las

para tirá-la delas e mostrá-la a todo o mundo” (TODOROV, 2013, p. 100).

Fig. 9. Menino bebendo. Frans Hals

Estes artistas flamencos foram capazes de se alegrar com “[...] a mera

existência das coisas [...] e por tanto encontrar o sentido da vida na própria vida [...].

Descobriram que a beleza podia impregnar a totalidade da existência” (Ibidem, p.

100-101). O Elogio do cotidiano estrai destes pintores uma intensa lição: eles “nos

ensinam a ver melhor o mundo e não ficar entusiasmados com doces ilusões. Não

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II SIFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015

inventam a beleza, mas a descobrem e nos permitem descobri-la também a nós”

(Ibidem, p. 100).

Como afirma Montaigne em seus Ensaios (1972, p. 489): “[...] pois entendo

que as coisas mais vulgares e comuns poderão, se soubemos esclarecê-las, colocar-

nos em presença dos maiores milagres da natureza e fornecer-nos os mais

maravilhosos exemplos, em particular se nos referirmos às ações humanas”.

Todorov entende que a vida cotidiana não e povoada só de momentos felizes.

Sabemos que os encontros com as crianças na escola também não o são. Mas,

precisamente por isso, é que “[...] somos tentados tão frequentemente pelo sonho e a

evasão e o êxtase do heroico ou místico, soluções que, no entanto, resultam totalmente

artificiais. O que teríamos que fazer não é abandonar a vida cotidiana (ao desprezo,

aos demais), mas transformá-la desde dentro para que renascesse iluminada de sentido

e beleza” (TODOROV, 2013, p. 101).

O autor nos exorta, sob a inspiração dos pintores flamencos, a apreciar a

beleza de todo gesto. Essa beleza só poderá ser percebida se aprendermos “[...] a

imprimir lentidão, não a nossos gestos [...], mas a impressão que eles nos deixam na

consciência, e assim conceder-nos tempo para vivê-los e saboreá-los. Deste modo, a

vida cotidiana deixaria de se opor às obras de arte, às obras do espírito, e passaria a ter

toda ela um sentido tão belo e rico como uma obra” (Ibidem, p. 101-102).

Na pintura holandesa do século XVII há fundamentalmente uma forma de

tratar os gestos mínimos. Agamben (1993, 2008a, 2008b) afirma que o gesto de

alguma forma mostra o que não pode ser dito; aquilo que permanece inexpressivo,

mas que, mesmo assim, comunica; aquilo que se mostra em toda sua potência, mas

que não obedece a um fim; aquilo que se exibe em sua medialidade. Nessas pinturas

há coisas ditas, não informações passadas. Elas passam algo que nelas está

“inexpressado”, mas exibido. Essas pinturas dizem, significam, desde esse lugar onde

não há nada a dizer. Os olhares, a luz, os detalhes expõem essa estranha habilidade de

comunicar uma comunicabilidade, de expor sua medialidade sem fim. Esses pintores

nos oferecem gestos e encarnam um gesto, o mesmo que Nancy (2007) vê na pintura

de Colette Deblé. “Não a pintura, mas sua oferenda, e pela oferenda tendida para nós

o além da figura. Seu além ou seu aquém, que não é nem outra figura, nem uma

ausência de figura, mas o gesto da oferenda [...]. É um gesto que mostra sem designar,

que oferece sem destinar, que propõe sem impor, expõe sem depor” (Ibidem, p. 10,

tradução nossa).

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GESTOS MÍNIMOS: A POTÊNCIA DO FILOSOFAR COM CRIANÇAS

Ser parte da experiência de pensar com as crianças na escola e poder perceber

a beleza e a força de pensamento dos gestos mínimos que irrompem nela implica

cultivar a atitude, a distância e o tipo de uso (ou de reuso) à qual os pintores de gênero

se entregaram.

É em um olhar, em uma pergunta, em um surpreender-se perante as palavras

ditas ou escritas por alguém, na impossibilidade de poder colocar em palavras um

pensamento, em um silêncio que provocam umas poucas palavras pronunciadas por

alguém, em um sussurro que atravessa uma sala para depositar-se no ouvido de uma

professora de português onde se colocam em jogo as experiências filosóficas na

escola. Quem somos parte dessa prática sabemos que a potência das coisas que

acontecem nessas experiências se aloja nesses gestos mínimos que como imperadores

são capazes de instaurar um reino e de sustentar o desejo de encontrar-se cada semana

na escola. Qualquer que tenha se entregue a essa prática sabe que o que tem para

contar são pequenos gestos que ainda permanecem vivos e conservam seu poder de

ecoar e abrir outros mundos neste mundo.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. “Teoría del gesto: los medios puros”. In: Instituto de Estética y Teoría de la Artes, Universidad de Madrid. La modernidad como estética: XII Congreso Internacional de Estética. Madri: Instituto de Estética y Teoría de la Artes, Universidad de Madrid, 1993, p. 101-106.______. “Elogio da profanação”. In: ______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 65-79.______. “Notas sobre o gesto”. Artefilosofia. Ouro Preto: Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto; Tessitura, n. 4, jan. 2008a. p. 9-14. ______. “Kommerell o del gesto”. In: ______. La potencia del pensamiento. Barcelona: Anagrama: 2008b. p. 248-260.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Caracas: Monte Ávila, 1977.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1984.

ERICE, Víctor. “La vida y nada más”. In: La evidencia del filme: el cine de Abbas Kiarostami. Madri: Errata Naturae, 2008. p. 21-29.

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MONTAIGNE Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

NANCY, Jean-Luc. “El gesto suspendido de la pintura”. In ______. El peso de un pensamiento. Pontevedra: Ellago, 2007. p. 9-12.

______. La evidencia del filme: el cine de Abbas Kiarostami. Madri: Errata Naurae, 2008.

TODOROV, T. Elogio de lo cotidiano. Barcelona: Galaxia Gutenberg, Círculo de lectores, 2013.

ZUMTHOR, Paul. A Holanda no tempo de Rembrandt. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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