As Estratégias de Ação das Mulheres Transgressoras … · 2 S586 Silva, Talita Nunes. As...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
MESTRADO
NEREIDA NCLEO DE ESTUDOS DE REPRESENTAES E DE IMAGE NS
DA ANTIGUIDADE
TALITA NUNES SILVA
As Estratgias de Ao das Mulheres
Transgressoras em Atenas no V sculo a.C.
NITERI
2011
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S586 Silva, Talita Nunes.
As estratgias de ao das mulheres transgressoras em Atenas no V sculo a.C. / Talita Nunes Silva. 2011.
187 f. ; il.
Orientador: Alexandre Carneiro Cerqueira Lima.
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2011.
Bibliografia: f. 153-159.
1. Atenas (Grcia). 2. Aeschylus (squilo). 3. Democracia. 4. Teatro grego (Tragdia). I. Lima, Alexandre Carneiro Cerqueira. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.
CDD 938.04
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TALITA NUNES SILVA
As Estratgias de Ao das Mulheres
Transgressoras em Atenas no V sculo a.C.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. ALEXANDRE CARNEIRO CERQUEIRA LIMA
NITERI 2011
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TALITA NUNES SILVA
As Estratgias de Ao das Mulheres
Transgressoras em Atenas no V sculo a.C.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
Universidade Federal Fluminense UFF
______________________________________________________________________
Professor Doutor Fbio de Souza Lessa
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Snia Regina Rebel de Arajo
Universidade Federal Fluminense UFF
NITERI
2011
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DEDICATRIA Aos meus pais, meu porto seguro.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Alexandre Carneiro Cerqueira Lima que ao longo destes
anos contribuiu com suas indicaes de leituras e orientaes para o aprimoramento
deste trabalho. Alm de sua colaborao inestimvel como orientador, no poderia
deixar de mencionar o apoio, pacincia e amizade que ele dedica aos seus orientandos
tornando mais suave o angustiante processo de escrita da dissertao. Ao Professor
Doutor Fbio de Souza Lessa e Professora Doutora Snia Rebel de Arajo, pelas
profcuas sugestes e bibliografia fornecidas no exame de qualificao. Ao Professor
Mestre Jos Roberto de Paiva Gomes que nos forneceu leituras valiosas sobre as
personagens trgicas por ns estudadas.
Aos queridos amigos Jorge e Amanda que nos apoiaram desde o processo de
seleo para o Mestrado, acompanhando cada progresso de nosso trabalho e nos
incentivando nos momentos difceis. Aos amigos e colegas na trajetria da Histria
Antiga Thiago e Mrcio, cuja estima e amizade ultrapassam o mbito da academia. E a
todos os amigos que compreenderam nossas ausncias.
Aos tios Isaias e Tnia Helena que com amor abriram mo de sua privacidade e
nos receberam em sua casa como uma filha. Aos tios Wallace e Mrcia que igualmente
nos acolheram com carinho nas horas difceis. Aos avs Evandro e Laci que todos os
dias nos concedem o privilgio de conviver ao seu lado. Aos pais Snia e Zilmar, sem
os quais no teria sido possvel concluir este trabalho. Seu apoio no s financeiro, mas
principalmente o amor, confiana e tranqilidade que passam nos ajudaram a continuar
nessa caminhada. irmo Thas pela amizade, carinho e incentivo. Ao Assis -
companheiro e amigo - que com amor esteve ao nosso lado durante esse perodo,
ouvindo com pacincia as nossas angstias e nos tranqilizando com palavras afetuosas.
E por ltimo, mas sobretudo Deus que nos permitiu obter realizaes que no
teramos capacidade de alcanar. Ele que em todos os momentos se faz presente em
nossa vida.
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Sumrio
Resumo .........................................................................................................................p.8 Abstract .........................................................................................................................p.9 Introduo ..................................................................................................................p.10
Captulo I. Um balano sobre a Histria das Mulheres na Atenas da
Antiguidade.................................................................................................................p.17
1.Pela emergncia do objeto Mulher............................................................................p.17 2. Democracia e Feminino em squilo.........................................................................p.24
3. Um breve debate acerca da condio da Mulher bem-nascida na Atenas
Clssica.........................................................................................................................p.36
3.a. A vida da Mulher Ateniense..................................................................................p.36
3.b.O discurso historiogrfico tradicional: afirmao do papel passivo da
mlissa..........................................................................................................................p.45
3.c. Pela desconstruo do modelo da mulher-abelha..................................................p.56
4. Nosso enfoque: o papel transgressor do feminino....................................................p.64
Captulo II. As Aes Transgressoras das personagens femininas da Orstia de
squilo e suas Estratgias de Ao.........................................................................p.70
1.Clitemnestra: a anttese da mulher ideal.................................................................p.73
2. Cassandra: de princesa troiana koino/lektrov do basileu
argivo.....................p.108
3.Electra: co-responsvel pela vendeta intrafamiliar.................................................p.117
Cap.III. As Representaes dos Signos transgressores das Personagens Esquilianas................................................................................................................p.122
Concluso ..................................................................................................................p.150 Bibliografia ...............................................................................................................p.153 Anexos.......................................................................................................................p.160
Anexo I. Grades de Leitura da Orstia.......................................................................p.161
Anexo II. Documentao Imagtica .........................................................................p.185
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Resumo
Durante o Perodo Clssico (sculos V e IV a.C.) a plis de Atenas adotou um
modelo ideal de comportamento feminino que prescrevia um conjunto de virtudes s
mulheres dos cidados atenienses (e mais especificamente as mulheres bem-nascidas,
ou seja, as esposas, filhas e mes dos cidados mais abastados). A adoo deste ideal
de comportamento feminino foi fruto do desenvolvimento da plis e da consolidao
democrtica, j que os direitos cvicos s se transmitiam aos cidados legtimos.
Contudo, buscamos demonstrar atravs das personagens (Clitemnestra,
Cassandra e Electra) da Orstia (458 a.C.) de squilo que assim como estas heronas
trgicas as mulheres bem-nascidas atenienses transgrediam por meio das estratgias
produzidas pelo habitus este modelo de comportamento feminil. Ao analisarmos as
transgresses cometidas por estas personagens, utilizamos o mtodo de Franoise
Frontisi-Ducroux procurando os significados dos termos que se referem a elas e nos
permitem design-las como mulheres transgressoras. Quanto documentao imagtica
(corpus com imagens com datao entre 480-440 a.C.) por intermdio das unidades
formais mninas (signos que representam as personagens como mulheres bem-nascidas
e transgressoras) observamos que tanto na Orstia como nas imagens de figuras
vermelhas ocorre a caracterizao de duas das personagens (Clitemnestra e Electra)
como transgressoras ao modelo mlissa.
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Abstract
During the Classical Period (fifth and fourth centuries BC) the polis of Athens
adopted an 'ideal model of feminine behavior' that prescribed a set of virtues to the
wives of athenian citizens (and more specifically, the well-born women, in other words,
the wives, daughters and mothers of the wealthier citizens). The adoption of this 'ideal
of feminine behavior' was the result of the development of the polis and democratic
consolidation, since the civil rights can only be transmitted to the legitimate citizens.
However, we sought demonstrate through the characters (Klytemnestra,
Cassandra and Electra) of the Aeschylus Oresteia (458 BC) that as these tragic
heroines, well-born athenians women 'transgressed' by means of strategies produced by
the habitus this 'model of feminine behavior'. Analyzing the 'transgressions' committed
by these characters, we used the method of Franoise-Frontisi Ducroux looking for the
meanings of terms that refer to them and allow us to designate them as transgressive
women. With respect to image documentation (corpus with images dating from 480-440
BC) through the minimum formal units (signs that represent the characters as well-born
women and transgressive) we observed that both in Oresteia as in images of red figures
there is a characterization of the two characters (Klytemnestra and Electra) as
'transgressors' to melissa model.
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Introduo
notrio, entre os helenistas, que a maioria das fontes relativas Grcia Antiga
deriva da plis de Atenas, particularmente quando o perodo abordado a Idade
Clssica (sculos V a IV a.C.).1 Deste modo, a maior parte da informao que dispomos
acerca das mulheres gregas se refere igualmente s mulheres atenienses. Esta
preponderncia de informao atinente Atenas leva a que os estudos relativos Grcia
e suas mulheres sejam grandemente efetuados com respeito a plis ateniense. Outro
elemento que contribui para a delimitao de nosso estudo o fato das mulheres
comumente retratadas pelas fontes pertencerem aos grupos abastados de Atenas, as
esposas e filhas dos kalo kagatho (os belos e bons) freqentemente referidas na
documentao textual antiga como bem-nascidas.2 Tais mulheres pertencem ao
segmento feminino sobre o qual recaiu mais rigidamente a ideologia masculina que
reservou s mulheres dos cidados um modelo ideal de comportamento que lhes
prescrevia um conjunto de virtudes (tais como o silncio, a castidade, a submisso e a
fidelidade) a ser seguido, assim como a rigorosa separao das esferas pblica e
privada, estando a atuao feminina restringida ao espao do okos.3 Este modelo de
1 Por Idade Clssica compreendemos os sculos V e IV a.C. perodo no qual a Grcia se viu as voltas com o confronto contra os persas e posteriormente entre os helenos (Guerra do Peloponeso). Nosso estudo se insere dentro da temporalidade do V sc. a.C. perodo no qual a democracia tornou-se o regime poltico adotado pelos atenienses. 2 LESSA, Fbio de Souza. Mulheres de Atenas: Mlissa do Gineceu Agor. Rio de Janeiro: LHIA-
IFCS, 2001, p.22. 3 O Liddell and Scotts Greek-English Lexicon define oi]kov primeiramente como casa, habitao, mas tambm confere ao vocbulo outros significados como assuntos e bens domsticos, propriedade familiar e mesmo como um sinnimo de famlia.
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comportamento feminino que pertence as sociedades do Mediterrneo foi aplicado pela
sociedade ateniense do Perodo Clssico em decorrncia do desenvolvimento da plis e
da consolidao democrtica. A aplicao deste ideal se deve a importncia da produo
de cidados e da manuteno da propriedade familiar (fator fundamental tambm para a
integridade e sobrevivncia do okos) para a estabilidade da plis, o que gerou uma
crescente ansiedade acerca do comportamento feminino e levou a necessidade de um
maior controle sobre as mulheres (entende-se aqui o grupo das esposas legtimas dos
cidados e mais especificamente o das esposas legtimas dos cidados atenienses mais
abastados); devido a ser indispensvel para a transmisso da herana e dos direitos
cvicos a concepo de filhos legtimos.
Isto posto, buscaremos ao longo de nossa exposio desconstruir tal idealizao
do comportamento feminino comumente chamada pela historiografia de modelo mlissa
devido ao sistema polade representar a mulher ideal (a esposa ideal) atravs da
comparao com a abelha: vida pura e casta (atividade sexual discreta); hostilidade aos
odores, seduo; fidelidade conjugal. Partindo desse princpio, nos ateremos a anlise
das atuaes transgressoras das personagens bem-nascidas da Orstia (458 a.C.) de
squilo e a comparao destas atitudes com as cenas presentes na cermica tica de
figuras vermelhas que condigam com as atitudes transgressoras a elas atribudas pela
trilogia. Procuramos atravs do exame de imagens presentes em vasos ticos do V sc.
a.C. comparar a caracterizao das personagens Clitemnestra, Cassandra e Electra feita
pelos pintores com as caractersticas que lhes foram atribudas por squilo na Orstia e
que nos permitem design-las como mulheres transgressoras ao ideal feminino
presente na sociedade ateniense do V sc. a.C.
A trilogia esquiliana representa um documento valioso para a anlise desta
sociedade e de suas prticas democrticas. Ela composta dentro do sculo no qual o
regime democrtico ateniense se organiza, e pode mesmo ser encarada como uma
aluso s reformas feitas por Efialtes em 462 a.C. ao centrar seu enredo no tema da
justia e da instituio do Arepago como um tribunal cuja funo consistia em julgar
os delitos de sangue. A trilogia retrata assim a passagem de uma justia centrada no
okos para uma justia centrada na plis e que tem por base no a deciso individual,
mas a resoluo tomada atravs do debate e do consenso entre os cidados. A obra
delineia, ento, a instituio de um regime democrtico aonde os interesses da
comunidade polade se sobrepe aos interesses individuais, o que pode ser confirmado
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pela aluso que a mesma faz ao governo/poder feminino como tirnico (o governo de
Clitemnestra e Egisto em Argos) e a sua superao e domnio pelo poder (democrtico)
que se institui com a fundao do Arepago e a absolvio de Orestes. Deste modo,
pode-se compreender - numa plis aonde o regime democrtico torna necessrio a
integridade e a preservao do okos para a manuteno do corpo de cidados - a
misoginia presente na Orstia. A mulher caracterizada ao longo da trilogia como
ardilosa, dissimulada, dissoluta e perigosa. Seu poder visto como uma ameaa ordem
estabelecida, o que torna o controle e o domnio do feminino uma questo fundamental
para a conservao da sociedade. Entende-se, portanto, a negao por Apolo da
primazia do papel feminino na procriao, papel no qual residia a base do poder feminil.
Por conseguinte, nossa escolha pela Orstia como documentao textual se deve ao fato
dela se constituir num importante recurso para a anlise da sociedade democrtica
ateniense, e por seu enredo centrar-se no conflito homem-mulher apresentando a
maioria de suas personagens femininas como transgressoras ao ideal de comportamento
feminil adotado pela sociedade ateniense do V sc. a.C..
As personagens que falam, agem e decidem na trilogia tem caractersticas que
nos permitem design-las como mulheres bem-nascidas: Clitemnestra; rainha de Argos,
Cassandra; princesa Troiana e Electra; filha do rei Agammnon. Tais personagens
podem igualmente ser caracterizadas como mulheres transgressoras. Clitemnestra a
cunaiti/a fo/nou [co-autora do massacre (Ag. v.1116)] de Agammnon,
uma mulher que espera como um homem, ou seja, com calma e pacincia [poder do
viril corao expectante da mulher/ kratei~ gunaiko\v a0ndro/boulon
e0lpi/zon ke/ar (Ag.vv.10-11)]. A ela so dadas tambm designaes que nos
remetem ao crime por ela cometido e a sua caracterizao como dissimulada e ardilosa:
mishth~~v kuno/v [odiosa cadela (Ag. v.1228)], a0mfi/sbainan
[bicfala vbora (Ag. v.1233)], panto/tolmov [insolente (Ag. v. 1237)].
Cassandra a desgraada [ta/laina (Ag. v.1247)] que suporta com pacincia
[tlh/mwn (Ag. v.1302)] e com nimo audaz [ eu0to\lmou freno/v (Ag. v,
1302)] a iminncia de sua morte pelas mos da mulher de quem o marido a profetisa era
amante [filh/twr ( Ag. v. 1446)]. E por ltimo Electra, a filha que nutre dio e
desejo de vingana por sua me: e o meu carinho me para ti (Orestes) pende, e ela
com toda justia odeio/ kai\ to\ mhtro\v e0v se/ moi r9e/pei
ste/rghqon, h9 de\ pandi/kwv e0xqai/retai (Co. vv. 240-241). Ao
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analisar tais personagens bem-nascidas tendo atitudes masculinas ou agindo
dissimuladamente atravs da tpica astcia feminina, procuramos mostrar que - assim
como as heronas trgicas - as mulheres bem-nascidas atenienses do V sc. a.C.
subvertiam no seu cotidiano o ideal de comportamento feminino.
Com tal intuito, para a anlise de nosso objeto de estudo, nos basearemos nas
noes criadas por Pierre Bourdieu, centrando-nos em sua idia de que a prtica no a
obedincia mecnica s regras, e na perspectiva de gnero que fomenta o debate acerca
da consonncia entre o discurso social e sua prtica. Acreditamos que squilo, ao
atribuir a algumas de suas personagens atitudes transgressoras ao modelo mlissa,
discute as falhas desse modelo assim como afirma a importncia do controle e
domnio do feminino. Deste modo, supomos que se o teatro de squilo, leva cena tais
transgresses porque o comportamento feminino no s freqentemente fugia ao
esperado como era motivo de preocupao na Atenas do V sc. a.C.. Portanto, em nossa
anlise da Orstia (458 a.C.) de squilo (o primeiro dos grandes tragedigrafos gregos)
buscaremos identificar as estratgias4 de ao exercidas pelas personagens
Clitemnestra, Cassandra e Electra que as permitem transgredir pressupostos do
modelo mlissa a fim de atingirem seus intentos. Para tal correlacionaremos a palavra
transgresso noo de hbris, tendo em vista que na tragdia a transgresso
consiste em um ato no qual se realiza a ultrapassagem do mtrion (justa medida) pela
personagem, ocasionando uma agresso ordem social e aos deuses.
Como metodologia aplicaremos trilogia o mtodo desenvolvido por Franoise
Frontisi-Ducroux que em seu livro Ddale: Mythologie de lArtisan en Grce Ancienne,
verifica na documentao textual - atravs de uma anlise dos verbos, substantivos e
adjetivos relacionados a seu objeto de estudo, Ddalos - os significados dos termos
referentes ao personagem por ela examinado, encontrando assim o domnio da
representao no qual eles estavam inseridos, reconhecendo as idias, os temas, e as
imagens que deles faziam, consciente ou inconscientemente, seus usurios.5 Deste
modo, ao utilizarmos esta metodologia, efetuaremos uma anlise dos termos presentes
na Orstia concernentes s heronas trgicas por ns abordadas que nos permitem 4 Segundo Pierre Bourdieu, as estratgias - produzidas pelo habitus - permitem enfrentar situaes
imprevistas e renovadas tomando por base as estruturas internalizadas. No entanto, estas estratgias permitem tambm escolher dentro do leque de respostas/aes possveis aquelas que melhor atendem os interesses do agente dentro de uma determinada situao. (BOURDIEU, 2002, pp.164-168)
5 FRONTISI-DUCROUX, F. Ddale: Mythologie de lArtisan en Grce Ancienne. Paris: Franois
Maspero, pp.26, 1975.
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design-las como transgressoras (ex. Clitemnestra, caracterizada ao longo da obra
como uma mulher forte, inteligente, adltera e sacrificadora), assim como analisaremos
as estratgias de ao exercidas por elas que nos permitem questionar a relao entre a
ideologia da submisso feminina, modelo mlissa, e a prtica social na sociedade
ateniense do perodo clssico (ex. ardilosa, Clitemnestra recebe Agammnom com
fingida alegria para depois, sob a cumplicidade de seu amante Egisto, assassin-lo).
Supomos assim que o tragedigrafo squilo elaborou um modelo de mulher
transgressora em sua trilogia Orstia, o que nos permite inferir que do mesmo modo
que estas personagens no se pautavam unicamente pelos pressupostos do modelo
mlissa, as aes das mulheres de Atenas no eram um reflexo dos atributos valorizados
pelos homens atenienses do V sculo a.C.
Quanto documentao imagtica analisaremos imagens coletadas em volumes do
Corpus Vasorum Antiquorum (CVA) e do Lexicon Iconographicum Mythologiae
Classical (LIMC) que representem as personagens em cenas que, embora possam no se
referir diretamente representao da trilogia esquiliana,6 as representem em atitudes
que condigam com as atribudas a elas pela Orstia. Destarte, procuraremos identificar
nestas imagens os tipos de transgresses praticadas por estas heronas trgicas
(impiedade aos deuses, postura masculina, papel de sacrificadora, etc.) tendo em vista
que as consideramos como mulheres bem-nascidas:7 Clitemnestra (rainha do palcio de
Agammnon), Electra (princesa de Argos) e Cassandra (princesa troiana). Como
metodologia, utilizaremos o mtodo de Claude Brard exposto no artigo Iconographie,
Iconologie, Iconologuique e que se atm a observao de elementos estveis e
constantes (unidades formais mnimas) presentes nas imagens da cermica grega,
elementos que no seu conjunto formam o que intitula de sintagma mnimo. No caso das
cenas que analisamos, imagens que apresentam as heronas em atitudes transgressoras,
as unidades formais mnimas so elementos que aparecem nas personagens e que as
designam como mulheres bem-nascidas e igualmente como transgressoras.
6 Na maioria dos casos as mais antigas cenas esquilianas presentes na cermica tica de figuras
vermelhas parecem pertencer ou se situar prximo das dcadas de 450-440 a.C. 7 Cabe ressaltar que, embora o modelo ideal de mulher esteja associado esposa legtima e principalmente esposa legtima do cidado bem-nascido, acreditamos que os atributos do modelo mlissa referem-se no apenas s mulheres casadas. Mas, tambm quelas mulheres que, embora ainda no sejam esposas, so mulheres bem-nascidas que receberam desde a infncia, de suas mes e amas, uma educao voltada para o casamento. Sendo assim esperado que observem as qualidades prescritas pelo referido modelo (submisso, recato, silncio, sobriedade, etc.) e que um dia contraiam matrimnio.
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Deste modo, buscaremos analisar tanto na Orstia como nas cenas dos vasos
ticos de figuras vermelhas do V sc. a.C. coletados no CVA e no LIMC, os tipos de
desvios ao modelo mlissa cometidos pelas personagens e que nos possibilitam cham-
las de transgressoras. Com tal objetivo, dividiremos nossa exposio em trs captulos.
O primeiro intitulado Um balano sobre a Histria das Mulheres na Atenas da
Antiguidade, discorrer inicialmente sobre a emergncia da Histria das Mulheres e da
Histria de Gnero, procurando situar a Histria da Grcia Antiga e mais
especificamente de Atenas dentro desse contexto, para posteriormente empreendermos
um panorama sobre a condio da mulher bem-nascida na sociedade ateniense do
Perodo Clssico e situarmos o enfoque de nossa pesquisa. No segundo captulo, As
Aes Transgressoras das personagens femininas da Orstia de squilo e suas
Estratgias de Ao, faremos uma rpida referncia acerca da representao das
personagens Clitemnestra, Cassandra e Electra na literatura antiga at a sua apario na
Orstia de squilo e, analisaremos as peas observando os termos e as passagens
relativas a cada uma das personagens por ns estudadas que permitem observar os
desvios cometidos por elas ao modelo mlissa. Quanto ao terceiro e ltimo captulo, As
representaes dos signos transgressores das personagens esquilianas, nos
dedicaremos anlise da documentao iconogrfica procurando identificar nas
imagens presentes nos vasos, cenas nas quais as personagens bem-nascidas apaream
cometendo desvios ao ideal de comportamento feminino implementado pela Atenas da
Idade Clssica.
Isto posto, antes de iniciarmos o primeiro captulo gostaramos de apresentar as
hipteses de nossa pesquisa: 1) squilo elaborou um modelo de mulher transgressora
na Orstia. Tal modelo pode ser compreendido devido a trilogia estar inserida em uma
tradio misgina do pensamento grego, que v o domnio do feminino como uma
necessidade em resposta a constante ameaa representada pelo poder e pela natureza das
mulheres. Alm disto, por ser um gnero trgico, a trilogia aborda tambm algo que era
motivo de angstia na sociedade ateniense do V sc.a.C.; o comportamento das
mulheres bem-nascidas atenienses; 2) As representaes das personagens, tanto em
squilo como nas imagens da cermica tica de figuras vermelhas, enfatizam seu
carter transgressor. Clitemnestra adltera e manipula o plekus, faco sacrificial
(artefato tipicamente da esfera masculina); Cassandra, a concubina de Agammnon,
paga com a morte a hbris cometida contra o deus Apolo; Electra, a filha tratada como
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escrava, que desobedece e deseja a morte de sua me e senhora assumindo - como as
demais personagens - uma atitude transgressora; e 3) As cenas dos vasos ticos do V
sc. a.C. apresentam as personagens Clitemnestra, Cassandra e Electra com atributos e
atitudes que condizem com a caracterizao feita por squilo das heronas como
mulheres bem-nascidas e transgressoras.
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Cap.I. Um balano sobre a Histria das Mulheres na Atenas da Antiguidade.
1.Pela emergncia do objeto Mulher
Em Histria das Mulheres no Ocidente Georges Duby e Michelle Perrot abrem a
introduo geral da obra com a seguinte indagao; tero mesmo as mulheres uma
histria?8 Durante muito tempo a resposta pareceu ser negativa. Pelo menos no
sentido coletivo do termo: no se trata de biografias, de vidas de mulheres especficas,
mas das mulheres em seu conjunto, abrangendo um longo perodo 9. Excludas do
espao pblico - monoplio dos homens - ou quando presentes aparecendo de forma
marginal, as mulheres foram lanadas ao silncio do relato histrico. Tal silncio se
explica pela preponderncia que o espao pblico teve como lcus gerador da base
sobre a qual durante sculos se considerou possvel construir o conhecimento histrico,
os documentos oficiais.10 Deste modo, excludas da esfera pblica - a nica considerada
digna de relato - as mulheres estavam ausentes dos documentos oficiais, o que somado a
escassez de vestgios diretos, escritos ou materiais 11 deixados por elas explica o
silncio das fontes acerca do feminino. A relao dos sexos imprime a sua marca nas
fontes histricas e condiciona a sua desigual densidade. 12 Em oposio a este silncio
existe uma abundncia de representaes e discursos acerca da mulher, acerca do que
ela ou deveria ser. Assim, da Antiguidade at aos nossos dias a imagem que temos
acerca deste segundo sexo para parafrasear Simone de Beauvoir nos transmitida
8 DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Escrever a histria das mulheres. In: DUBY, Georges e
PERROT, Michelle (orgs.) Histria das Mulheres no Ocidente, vol.1. Porto: Edies Afrontamento, 1990, p.7.
9 PERROT, Michelle. Escrever a histria das mulheres. In: Minha histria das mulheres. So Paulo: Contexto, 2007, p.13.
10 SILVA, M. M. R. S. A Histria das Mulheres: Esboo de uma genealogia. In: CANDIDO, Maria Regina et ali (orgs). A mulher na Antiguidade: Anais da III Jornada de Histria Antiga. Rio de Janeiro: NEA, 2006, p.73.
11 PERROT, M. Op.cit., p.16. 12 DUBY, G. e PERROT, M. Op.cit., p.7.
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pelos homens, que ao longo do tempo no s escreveram como decidiram o que era
digno de ser registrado como parte da histria.13
Deste modo,
a histria na cultura ocidental desde h longa data, se constituiu como um saber centrado em torno do Homem, considerado como um sujeito universal, personificao de toda a humanidade, onde o outro (...) silenciado, uma vez que passa a dissolver-se numa unidade genrica e indefinida.14
No entanto, segundo Rachel Soihet, alguns historiadores chegam a desenvolver estudos
sobre as mulheres antes dos acontecimentos que constituram a Histria das Mulheres
como campo especfico de estudo. Jules Michelet, ainda no sculo XIX, fala das
mulheres na histria da Frana. Embora sua viso seja permeada pelas concepes de
sua poca acerca do feminino, o autor v na relao dos sexos um dos motores da
histria. 15
Contudo, a temtica ficaria silenciada com a abordagem historicista no final do
sculo XIX, j que esta ao se ater a histria poltica e ao domnio pblico exclua as
mulheres de seus interesses. Contra esse exclusivismo poltico surge na dcada de 1930
a Escola dos Annales que buscando desprender a historiografia de interesses
puramente abstratos volta-se para a histria de seres vivos, concretos e trama de seu
cotidiano.16 Portanto, embora no considerassem a diferena entre os sexos como
categoria de anlise, os Annales contribuiriam assim para que no futuro as mulheres
fossem incorporadas historiografia. Futuro este que aos poucos ia se delineando.
Com as profundas e drsticas mudanas ocorridas nas sociedades ocidentais do
ps-guerras, sacudidas por violentos traumas polticos, sociais e culturais17 as relaes
entre homens e mulheres ganharam uma complexidade jamais vista. Estas cresceram em
visibilidade ampliando de forma considervel sua participao no mercado de trabalho,
13 Fbio de Souza Lessa referindo-se a antiguidade menciona que Lin Foxhall ao analisar a histria da
Antiguidade Clssica, conclui que esta uma histria de homens e a documentao para reconstru-la, independentemente de sua natureza, um produto do pensamento e das aes masculinas (LESSA, 2004, p.15).
14 SILVA, M. M. R. S. Op.cit., p.73. 15 SOIHET, Rachel. Histria das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo
(orgs.). Domnios da histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p.276. 16 Ibid. 17 SILVA, M. M. R. S. Op.cit., pp.75-76.
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inclusive no meio acadmico.18 A presena feminina cada vez maior nas universidades,
como alunas ou docentes, conjugada onda do movimento feminista ocorrida nos anos
60 levou a uma demanda por informaes a respeito das questes que estavam sendo
discutidas e a um interesse sobre o objeto mulher. Havendo assim uma demanda
renovada e uma escuta favorvel emergncia da Histria das Mulheres.
Dentro desse quadro apto a ecloso do novo campo de estudo, podemos apontar
a renovao das questes como um dos fatores que propiciaram o seu estabelecimento.
A partir da dcada de 1960, correntes revisionistas marxistas, engajadas no movimento da histria social, apresentam uma postura diversa ao assumirem como objeto de estudo os grupos ultrapassados pela histria, as massas populares sem um nvel significativo de organizao, e, tambm, as mulheres do povo.19
Tais correntes, juntamente com as jovens Histria das Mentalidades e Histria Cultural
- com suas temticas novas e recurso a outras disciplinas - contriburam para que as
mulheres fossem aladas condio de objeto e sujeito da histria.20 Surge assim a
Histria das Mulheres, primeiramente nos EUA e na Gr-Bretanha nos anos 1960 e na
Frana na dcada de 1970, movimento acompanhado pela maior parte dos pases
europeus e hoje presente para alm das fronteiras deste continente.
Em seu incio a Histria das Mulheres se caracterizou por buscar dar
visibilidade ao seu objeto de estudo. Segundo, Pauline Schmitt Pantel,
Como sublinhava Sarah Pomeroy, tratava-se de conhecer melhor os sentimentos, a sexualidade, o mundo privado das mulheres; eu diria que se tratava de lhes dar ao mesmo tempo um lugar na histria e uma histria que lhes fosse prpria.21
Neste perodo inicial da disciplina, os historiadores sociais supuseram as mulheres como
uma categoria homognea. Tal idia de uma identidade coletiva feminina no s
distinguiu os primeiros estudos acerca do tema como tambm ajudou a firmar o
antagonismo homem versus mulher, vindo a favorecer a mobilizao poltica do 18 MATOS, Maria Izilda Santos De. Histria, mulher e poder: da invisibilidade ao gnero. In: SILVA,
Gilvan Ventura Da; NADER, Maria Beatriz e FRANCO, Sebastio Pimentel (orgs.). Histria, Mulher e Poder. Vitria: Edufes, 2006, p.10.
19 SOIHET, R. Op.cit., p.276. 20 SOIHET, R. Op.cit., p.275. 21 SCHMITT PANTEL, Pauline. A histria das mulheres na histria da antiguidade, hoje. In: DUBY,
Georges e PERROT, Michelle (orgs.) Histria das Mulheres no Ocidente, Vol.1. Porto: Edies Afrontamento, 1990, p.590.
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20
movimento feminista na dcada de 70.22 Alm desta crena na categoria das mulheres
outro aspecto a ressaltar deste incio das investigaes, consiste no predomnio de
imagens que as caracterizavam como vtimas ou rebeldes. Destarte, dentro desta
configurao inicial um vasto trabalho comea a ser empreendido com o objetivo de
construir uma histria que respondesse, de acordo com Pantel, simultaneamente aos
critrios da investigao e aspirao militante. Proliferam assim estudos buscando
dar s mulheres um lugar na histria em todas as temporalidades e em todas as culturas,
inclusive para a Antiguidade.
Antes de existir uma Histria das Mulheres propriamente dita o que se dar -
como visto - apenas na dcada de 60, grande parte da discusso acadmica em torno das
mulheres na Atenas Clssica girava em torno da sua condio de reclusas ou no.23 A
historiadora Sarah Pomeroy faz um claro resumo das principais opinies dentro deste
debate: I) Como F.A.Wright, em uma posio extremada se encontravam estudiosos que
afirmavam que as mulheres eram desprezadas e que permaneciam reclusas ao estilo
oriental24; II) outros, como A.W. Gomme, acreditavam que alm de serem respeitadas
as mulheres Atenienses eram livres como a maior parte de suas congneres ao longo dos
sculos; III) e a terceira e ltima posio, se divide entre aqueles que como Vctor
Ehrenberg acreditavam que embora reclusas as mulheres Atenienses eram estimadas e
governavam a casa.25 No entanto, segundo Pauline Schmitt Pantel tal temtica
juntamente com outras inquiries fazem parte de uma pr-histria da Histria das
mulheres na Antiguidade, o que permite consider-las como pertencentes a um outro
tempo.26
A emergncia deste campo de estudo no que tange a histria antiga27 se d a
partir da dcada de 70, tendo como marco principal a publicao em 1973 do livro
22 SOIHET, R. Op.cit., p.277. 23 BLUNDELL, Sue. Women in Ancient Greece. Harvard University Press: 1995, p.135. 24 POMEROY, Sarah B. Goddesses, whores, wives, and slaves: women in Classical Antiquity. New
York: Schocken Books, 1976, 3 ed., p.58. 25 Ibid. 26 SCHMITT PANTEL, P. Op.cit., p.590. 27 A Histria das Mulheres na antiguidade tem nos trabalhos de Sarah Pomeroy, Goddesses, whores,
wives, and slaves: women in Classical Antiquity, e de Claude Moss, La Femme dans la Grce antique, dois marcos significativos segundo Fbio de Souza Lessa. Nesta obra, Claude Moss orienta a sua pesquisa em primeiro lugar de forma a no tirar o estudo da condio das mulheres na Grcia antiga do contexto econmico, social, poltico e cultural, p.12, e em segundo lugar, deixar de emitir qualquer tipo de juzo de valor preconcebido sobre o carter positivo ou negativo da mulher. No se trata aqui de saber se a mulher era mais livre, mais feliz, mais poderosa na Grcia antiga do que na atualidade, mas sim de valorizar o lugar que era o das mulheres num certo tipo de sociedade, p.12.
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21
Goddesses, whores, wives, and slaves: women in Classical Antiquity de Sarah B.
Pomeroy. Na introduo desta obra a autora lembra o ostracismo ao qual a memria dos
excludos, seja pelo sexo ou pela classe, da vida poltica e intelectual de suas sociedades
tem se submetido.28 Com o objetivo de dar voz aos excludos pelo sexo e motivada pela
ausncia de um livro abrangente - em lngua inglesa - sobre o assunto mulher na
Antiguidade, ela ir escrever uma histria social das mulheres atravs dos sculos nos
mundos Grego e Romano 29 abrangendo um perodo de mais de 1500 anos. Perodo
este que vai desde a Idade do Bronze passando pelo perodo Clssico at o mundo
Helenstico no que se refere Grcia; iniciando-se com a Repblica e se estendendo
transio para o Imprio e o seu fim no mundo Romano. O trabalho de Pomeroy pode
ser considerado como uma quebra de paradigmas, no s porque a partir dele houve
uma proliferao de estudos examinando diversos aspectos das vidas e representaes
das mulheres no mundo antigo, como por romper - ao nosso ver - com a idia das
mulheres como uma categoria homognea. Ao abordar o debate acerca da condio
feminina na Atenas Clssica ela assenta que o tema tem sido mal colocado, e que o
amplo leque de opinies dos eruditos se deve a mulher ser tratada como uma massa
indiferenciada. Afastando-se dessa perspectiva uniformizadora do segundo sexo a
historiadora, rejeitando a nfase tradicional da histria antiga no estudo das classes
governantes e, portanto das elites, busca examinar a histria de todas as mulheres, e
evitar a nfase nas classes mais elevadas e sua literatura. 30
No entanto, Aps a fase inicial da necessidade de tornar visveis as mulheres,
vinculada a uma certa obsesso pela denncia, que teria caracterizado uma primeira
gerao de pesquisadoras31 surge no final da dcada de 1970 tenses dentro do
movimento feminista e da disciplina. Coloca-se o questionamento da idia de uma
identidade nica entre as mulheres assim como desponta a necessidade de focar a
complexidade da atuao feminina, abandonando as abordagens que as caracterizavam
como vtimas ou rebeldes. Introduz-se ento a diferena como um problema a ser
analisado, dando nfase s mltiplas identidades das mulheres assim como abrindo
espao para a perspectiva relacional entre os sexos e a percepo da instituio cultural
das distines entre o masculino e o feminino. Emerge assim a necessidade de um
28 POMEROY, S. B. Op.cit., p.IX. 29 POMEROY, S. B. Op.cit., p.X. 30 POMEROY, S. B. Op.cit., p.XI. 31 MATOS, M.I.S. Op.cit., p.14.
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22
aprimoramento metodolgico que permita recuperar os mecanismos das tramas de
relaes entre os sexos e as contribuies de cada qual ao processo histrico e aes
presentes. 32 Nascia, dessa forma, a Histria de gnero, que teria na noo de gnero
o carro chefe de sua abordagem terica.
Tal desdobramento da Histria das Mulheres teria como foco principal o
aspecto relacional das definies de homem e mulher, pois segundo Maria Izilda Santos
de Matos, devido a
sua caracterstica basicamente relacional, a categoria gnero procura destacar que a construo do feminino e masculino define-se um em funo do outro, uma vez que se constituram social, cultural e historicamente em um tempo, espao e cultura determinados.33
Deste modo, a noo de gnero procede a uma desnaturalizao das diferenas,
no vendo as disparidades entre masculino e feminino como frutos de uma essncia
distinta, mas sim como resultantes de uma naturalizao do arbitrrio sem a qual o uso
da diferena, para fins discriminatrios, no alcana eficcia poltica.34 Portanto, a
noo de gnero vem possibilitar o questionamento dos universalismos e do natural, nos
permitindo indagar a representao que ao longo do tempo, e em particular na Grcia
Antiga, fez-se do feminino como um ser frgil, dcil, passivo, enfim, inferior. Isto
posto, iremos esboar rapidamente como os estudos sobre as mulheres na Antiguidade
se inserem dentro desta passagem da problemtica da Histria das Mulheres para a da
Histria do gnero.
Seguindo a mudana dos questionamentos operada dentro da disciplina, as
investigaes sobre a mulher antiga transpuseram a preocupao inicial com a
visibilidade e a constituio de uma identidade das mulheres na Histria da Antiguidade
para o estudo da relao entre os sexos, e assim s divises entre masculino e feminino
nas prticas sociais e nos discursos, procurando enxergar a diviso sexual no mundo
antigo e a forma como os espaos se organizavam em funo dela. 35 Deste modo,
colocavam-se novas indagaes como; o questionamento da utilizao demasiado
32 Ibid. 33 MATOS, M.I.S. Op.cit., pp.14-15. 34 SAFFIOTI, Heleieth I.B. Posfcio: Conceituando o Gnero. In: SAFFIOTI, H.I.B e Munz-Vargas, N. Mulher Brasileira assim. Braslia: UNICEF, Rosa dos Tempos, 1994, p.277. 35 SCHMITT PANTEL, P. Op.cit., p.593.
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sistemtica de pares de oposies para descrever a diviso entre os sexos36 e da
correspondncia entre o discurso e as prticas sociais.
Dentre as sries de investigaes suscitadas podemos citar como exemplo, o
tema da organizao dos espaos nas cidades segundo os sexos que levava a distino
entre um domnio pblico e um domnio privado. Em A histria das mulheres na
histria da antiguidade, hoje, a historiadora Pauline Schmitt Pantel apresenta a viso de
alguns estudiosos sobre o tema. Pantel lembra que ela mesma defendeu que esta
investigao contribuiria para uma melhor compreenso da articulao dos papis
sexuais na cidade assim como para um exame do modelo que define o espao domstico
como feminino e o pblico como masculino. Enquanto, Phyllis Culham prope o estudo
do uso do espao pblico feito pelas mulheres e Beate Wagner mostra a impossibilidade
de se identificar estritamente o domnio privado como feminino e o domnio pblico
como masculino - opinio compartilhada por Franois Lissarrague - j que os espaos
femininos e masculinos nas pleis estavam coligados e que o okos no era s um
espao de mulheres. A historiadora pontua ainda que por detrs dessa questo da diviso
sexual dos espaos delineia-se o debate antigo sobre a recluso das mulheres.
No entanto, os estudos de gnero no se restringem unicamente ao feminino.
Hoje h uma emergncia, embora ainda tmida, de estudos sobre o masculino tanto no
mundo antigo como no mundo contemporneo, destacando-se com relao
Antiguidade os nomes de autores como L.Foxhall e J.Salmon que em parceria
organizaram as obras When Men Were Men: Masculinity, Power & Identity in Classical
Antiquity e Thinking Men: Masculinity and its Self-Representation in the Classical
Tradition. Isto posto, tendo em vista tudo o que aqui foi exposto passaremos a situar
como nossa pesquisa se insere dentro das abordagens propostas pela Histria de
gnero.
Como visto, o conceito de gnero procede a uma desconstruo das diferenas -
o que possibilita o questionamento dos papis fixados e naturalizados pela sociedade - e
promove o debate acerca da correspondncia entre o discurso e as prticas sociais. O
trabalho aqui empreendido tem por objetivo realizar uma anlise sobre as mulheres
pertencentes elite da Atenas do V a.C.; as esposas dos cidados bem-nascidos. Neste
estudo iremos empreender uma busca pela desconstruo do discurso ideolgico
36 Ibid.
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masculino predominante na documentao 37, discurso este que estabelece as virtudes a
serem observadas pelas mulheres e demarca o papel e o lugar feminino dentro da
sociedade Ateniense. Deste modo, propomos que o modelo de comportamento feminino
idealizado, o modelo mlissa, no era plenamente vivenciado pelas mulheres bem-
nascidas no seu cotidiano, ou seja, que as prticas sociais se distanciavam do discurso
da documentao. Acreditamos assim que squilo ao atribuir a algumas de suas
personagens atitudes transgressoras a este modelo, desejava discutir as falhas ao
mesmo indicando que a conduta das mulheres bem-nascidas no se pautava sempre pelo
mesmo. Portanto, supomos que se o teatro esquiliano colocava em cena mulheres que
agiam em desacordo com o ideal de comportamento feminino porque o mesmo era
objeto de debate e preocupao na Atenas do Perodo Clssico. E, segundo Pierre
Bourdieu, devido prtica nunca ser uma obedincia cega s regras (normas) e estas s
serem afirmadas explicitamente quando os indivduos deixam de pautar suas aes por
elas,38 podemos supor que o fato do ideal de feminino ser to insistentemente
reafirmado pela documentao se deve ao mesmo no ser posto plenamente em prtica.
2. Democracia e Feminino em squilo
squilo (525-456 a.C.), o dramaturgo cuja obra utilizamos como documentao
textual, testemunhou os principais fatos da histria ateniense. 39 Vivenciou o fim da
tirania, a instaurao da democracia atravs das reformas de Clstenes, as Guerras
Mdicas, a reduo das atribuies do Arepago e os primeiros anos da ascenso
poltica de Pricles. Suas obras inserem-se assim dentro deste contexto da plis
democrtica e pode-se supor que haja alguma relao entre elas e o contexto histrico
no qual estavam inseridas. Partindo desta perspectiva, o historiador Julin Gallego
supe que a trilogia Orstia (458 a.C.) poderia estar ligada a reforma de Efialtes que em
462 a.C. retirou do Arepago seu poder poltico remanescente para limit-lo a seus
37 Ibid. 38BOURDIEU, Pierre. Esboo de uma teoria da prtica: precedidos de trs estudos de etnologia cabila.
Oeiras: Celta Editora, 2002, p.197. 39 DUARTE, Adriane da Silva. squilo, o mais premiado. In: Revista Biblioteca entre linhas. Duetto editorial, So Paulo, (n.1), p.45, julho, 2008.
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atributos judicirios. No entanto, apesar da possvel relao de suas obras com o
contexto histrico no qual viveu, no se sabe ao certo o posicionamento do dramaturgo
com relao s transformaes ocorridas na plis democrtica. Para Gallego, no que se
refere relao entre a obra esquiliana e a poltica ateniense, a questo no consiste em
procurar saber se os textos trgicos traduzem as opes polticas do poeta ou fazem
aluses a personagens ou acontecimentos concretos da histria da comunidade polade,
mas sim em olhar a produo dramtica de squilo como uma forma de pensamento
poltico sobre a democracia ateniense.40
O discurso trgico permitia assim desenvolver formas de pensamento
diretamente ligadas a construo dos poderes polticos da plis ateniense.41 Deste
modo, a plis mesma se constitua no objeto prprio da formao discursiva trgica.42
Tal discurso - por intermdio da recorrncia ao mito - colocava em cena o cotidiano, as
angstias e os valores da Atenas democrtica com o intuito de levar a sociedade polade
a refletir sobre sua realidade. Logo, o heri trgico servia tanto de anttese como de
metfora do cidado democrtico. Ambos passam pela angstia de ter que tomar
decises. Porm, ao contrrio do heri a tomada de decises da comunidade ateniense
no so prticas individuais (tirnicas), mas sim prticas democrticas coletivas. Pode-
se afirmar, ento, que a Atenas democrtica se faz presente nas representaes trgicas.
A tragdia apresenta - como j dito - as angstias, os valores e os conflitos que tem sua
emergncia dentro do perodo histrico da plis democrtica. No entanto, embora esteja
imersa na realidade social, a tragdia no um reflexo desta. Ela no se compromete a
narrar a histria da sociedade na qual est inserida.
Por conseguinte, embora, se possa supor que haja alguma relao entre a
produo esquiliana e seu contexto, no possvel estabelecer uma correspondncia
direta entre cada texto e os acontecimentos de sua poca. Como Lucien Goldmann
pontua a repetio pelo escritor dos elementos de contedo da conscincia coletiva, ou, muito simplesmente, do aspecto emprico imediato da realidade social que a cerca, quase nunca sistemtica nem geral, e apenas se encontra em certos pontos de sua obra. 43
40 GALLEGO, Julin. La democracia em tiempos de tragdia: Asamblea ateniense y subjetividad poltica. Buenos Aires: Mio y Dvila editores, 2003, p.399. 41 GALLEGO, J. Op. cit., p.394. 42 GALLEGO, J. Op. cit., p.398. 43 GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance. Paz e Terra, p.207.
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26
Sendo o reflexo imediato da realidade na produo literria inversamente proporcional a
fora criadora do escritor.
squilo no est, portanto, interessado nas relaes entre os homens, mas sim na
relao entre estes e os deuses. A temtica central que perpassa toda a sua obra a
busca pela justia divina, a busca por uma ordem justa e grandiosa do mundo.44 Seus
enredos no tm, portanto, o intuito de narrar fatos histricos, mas de ressaltar o
entrelaamento de todo acontecer humano no divino de modo que o destino do homem
deva ser explicado em decorrncia do veredito divino e da vontade humana. Devido a
sua vaidade e arrogncia o ser humano, embora guiado em seu cego proceder pelos
deuses, recai em hbris ao desenvolver suas aes. Em resposta a hbris cometida, os
deuses lhe enviam infortnios que lhe permitiro expiar seus atos e alcanar o
conhecimento necessrio para reconhecer a eterna validade das leis divinas.
No entanto, embora a finalidade ltima de sua arte no seja narrar
acontecimentos histricos, sua obra enquanto discurso trgico faz uma leitura do
acontecimento da democracia e das prticas de deciso polticas postas em prtica pelo
dmos. 45 squilo tem assim um lugar na construo do pensamento sobre o poder
popular, uma vez que induz a uma reflexo sobre a situao da plis marcada pela
irrupo do dmos como sujeito de seu destino. 46 Por conseguinte, nas Eumnides a
prpria deusa da cidade (Athen) quem por meio da fundao do Arepago, deposita o
direito nas mos dos homens, (...). 47 Para Julin Gallego, o dramaturgo ao fazer da
deusa a fundadora do tribunal poderia estar atribuindo um carter sagrado ao conselho,
o que poderia representar a impossibilidade de qualquer modificao de suas atribuies
sem a ameaa de desencadear o despotismo e a anarquia. No entanto, em outro plano
da construo trgica parece se perceber que as funes com as que Athen o investe
so estreitamente judiciais em torno aos delitos de sangue e no polticas como
guardio das leis. 48 Dentro desta perspectiva, a reforma empreendida por Efialtes no
teria modificado as atribuies do Arepago conferidas pela deusa, j que estas se
remeteriam apenas a funo do conselho como tribunal. Todavia, no podemos tirar
maiores concluses a respeito da posio de squilo frente a modificao das funes
44 LESKY, Albin. A tragdia grega. So Paulo: Perspectiva, 2006, 4 ed, p.138. 45 GALLEGO, J. Op. cit., p.394. 46 Ibid. 47 LESKY, A. Op. cit., p.126. 48 GALLEGO, J. Op. cit., p.479.
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do Arepago, apenas podemos fazer suposies. Contudo, a Orstia permanece um
testemunho de inquestionvel validade quando se pensa nas conseqncias das reformas
de Efialtes, sendo o conselho do Arepago o elemento que permite relacionar a situao
histrica com o texto trgico.49 Como C.M. Bowra observa, embora a maioria de suas
obras tenha se dedicado a temas atemporais, sua produo est ligada ao mundo no qual
vivia e aplicvel a ele.
Infelizmente o nmero de tragdias por ele compostas que chegou at ns
nfimo se comparado com a vastido de sua obra, cerca de 80 tragdias. A mais antiga
das peas remanescentes os Persas (472 a.C.), seguida pelas tragdias os Sete contra
Tebas (467 a.C.), as Suplicantes (464 a.C.), e pela nica trilogia sobrevivente; a Orstia
(458 a.C.). Quanto ltima pea, Prometeu acorrentado, no h certeza quanto a sua
datao correta. Todas estas obras apresentam valores, debates e prticas constitutivas
da sociedade polade, assim como trazem reflexes sobre as prticas polticas da
democracia ateniense. A democracia que Clstenes havia fundado e que em seus anos estava sendo remodelada por Efialtes e Pricles suscitava numerosas questes. squilo acha nestas questes a matria de seus dramas e, portanto, capacita a sua poca para refletir sobre si mesma de uma maneira adequada. 50
Dentre as sete tragdias remanescentes, os Persas a nica que baseia o seu
enredo em um acontecimento histrico: a derrota persa na batalha de Salamina (480
a.C.). A trama, que faz os prprios vencidos relatarem a sua desastrosa derrota frente
Atenas, ope gregos (atenienses) e brbaros (persas). No desenrolar do enredo vemos a
Hbris (desmedida) e a Monarquia desptica (tirania) ser remetida aos persas, enquanto
a democracia (igualdade) associada aos atenienses. Os Sete contra Tebas, a segunda
na cronologia, a ltima tragdia sobrevivente de uma trilogia que contava a maldio
da linhagem de Laio. Os Sete terminava com o fim trgico da disputa sangrenta entre os
irmos Etecles e Polinices pelo trono de Tebas. O tema central desta tragdia a
guerra, que apresenta igualmente a questo da morte na batalha tema recorrente na
Atenas do V sculo que via como um valor os cidados se apresentarem corajosos
diante da eminncia da morte. J as Suplicantes, a primeira pea da trilogia as
49 GALLEGO, J. Op. cit., p.462. 50 BOWRA, C.M. La Atenas de Pricles. Madrid: Alianza Editorial, p.136.
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Danaides, retrata a fuga das cinqenta filhas de Danao de seus pretendentes - os filhos
de Egito - que querem unir-se a elas em matrimnio atravs do uso da fora. As
donzelas juntamente com seu pai fogem ento para Argos, onde pedem proteo a
cidade e a seus dirigentes. Aps a deliberao na Assemblia o povo argivo resolve
conceder-lhes asilo. O asilo, a ajuda aos oprimidos, se constitua em um dever da
democracia sendo um tema vivo na sociedade polade daquele momento. Outra questo
apresentada pela trilogia a interrogao da verdadeira natureza do poder,
questionamento que vemos resumido nas seguintes indagaes de Froma Zeitlin:
O que autoridade, aquela do homem sobre a mulher, do marido sobre a esposa, do chefe de Estado sobre seus cidados, da cidade sobre os estranhos e os metecos, dos deuses sobre os mortais? O kratos reside na lei, isto , no acordo mtuo, doce persuao, peitho? Ou reside na dominao, na fora pura, violncia bruta, bia? 51
De todas as sete tragdias de squilo que chegaram at ns, apenas Prometeu
acorrentado permanece sem datao. Esta pea que alguns estudiosos julgam ser uma
produo tardia do autor, narra o desentendimento entre Zeus e Prometeu por este ter
roubado o fogo dos deuses e ter lhe dado aos homens. Irado Zeus castiga o tit
prendendo-o a uma rocha do Cucaso. Prometeu chama o rei dos deuses de tirano e
ameaa no lhe revelar o segredo do qual depende a sua permanncia no poder. O poder
e o que custa lhe manter so o foco da tragdia. Embora no haja nenhuma aluso ao
poder Imperial que Atenas exercia sobre seus aliados, C.M.Bowra acha possvel
estabelecer uma relao entre o tema central da pea e o drama vivido pela poderosa
Atenas que tendo obtido o poder pela fora vivia com medo de perd-lo.
A ltima composio esquiliana a qual temos acesso a Orstia,52 a nica
trilogia do dramaturgo que se preservou completa. Sua trama centra-se nos infortnios
que acometem a famlia real dos tridas. Aps o retorno vitorioso da guerra de Tria o
rei Agammnon assassinado por sua esposa Clitemnestra que vinga atravs do
assassnio a morte de sua filha Ifignia. Orestes retorna ento a terra natal com a misso
de vingar o pai dando aos seus assassinos o mesmo fim cruento. Na ltima pea da
trilogia (as Eumnides) o enredo se desenvolve em torno do debate acerca da
condenao/absolvio de Orestes pelo crime cometido. Aps o assassinato de 51 ZEITLIN, Froma I. Playing the other: gender and society in classical Greek literature. University of Chicago: 1996, p.126. 52 A Orstia composta pelas peas Agammnon, Coforas e Eumnides.
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Clitemnestra as frias vingadoras da me, as Ernias deusas punidoras dos crimes
cometidos por pessoas contra seus consangneos,53 perseguem o matricida. No
entanto, Orestes est sob a proteo de Apolo que o aconselha a recorrer deusa Athen
como suplicante. A divindade institui ento um tribunal, o Arepago, composto pelos
melhores cidados de Atenas para deliberar acerca da questo. O conselho aps a
votao chega a um empate e a deusa Palas, segundo medida previamente estabelecida,
vota pelo desempate a favor da absolvio de Orestes. O drama termina com o retorno
do trida a Argos e a transformao das Ernias em Eumnides, divindades benfazejas.
Ao ser a nica trilogia esquiliana que se conservou intacta ao longo do tempo a
Orstia merece uma ateno especial, pois - como se sabe - squilo compunha suas
obras na forma de trilogias de modo que o sentido completo do drama s era obtido com
a encenao da ltima tragdia da trade. Entretanto, seu valor no se esgota na
preservao inclume de sua forma. A Orstia se constitui em um importante
instrumento de anlise da sociedade ateniense do V sculo a.C. Seu tema governante
consiste na justia, ou melhor dizendo, na passagem de uma justia centrada no okos -
estabelecida nas mos dos familiares e das divindades arcaicas - para uma justia
centrada na plis que visa no mais os interesses particulares, mas o bem da
comunidade polade. Por baixo deste tema, so abordadas outras questes e conceitos
concernentes a plis democrtica como a concepo acerca do matrimnio e do
feminino, a valorizao da comunidade poltica masculina e a desvalorizao da tirania.
A trilogia contribui assim para a reflexo sobre os valores desta Atenas democrtica e
mais especificamente para o pensamento acerca das prticas polticas atinentes a ela. E
devido a importncia da Orstia para a compreenso da sociedade ateniense do V sc.
a.C. que a escolhemos como documentao textual. Pois ao tecer consideraes acerca
da democracia ateniense e do feminino, a trilogia se apresenta como um recurso de
grande valor para o estudo por ns empreendido acerca da correspondncia entre a
prtica e a idealizao do feminino implementada na Atenas democrtica.
Segundo alguns estudiosos, podemos ver - como dito anteriormente - a
instituio do tribunal de justia pela deusa Athen como uma referncia as reformas de
Efialtes que diminuram os poderes do Arepago, ltimo baluarte da democracia, e
limitaram suas atribuies ao cuidado dos casos de homicdio. Como visto, ora
podemos ver essa trama como uma demonstrao da simpatia do poeta pelas mudanas 53 BRANDO, Junito de Souza. Dicionrio Mtico-Etimolgico da Mitologia Grega. Petrpolis: Editora vozes, 2000, p.352.
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implementadas por Efialtes, ora como uma crtica a estas mesmas modificaes. No
entanto, a indagao atinente sob qual lado se inclinava a simpatia de squilo no
imperiosa. O que se faz necessrio observar a Orstia como um pensamento acerca da
poltica da democracia ateniense. Com a absolvio de Orestes nas Eumnides, vemos a
passagem de um pr-direito para o direito da plis, centrado nas mos dos cidados.54
Antes da instituio do tribunal pela deusa imperava o direito arcaico exercido pelas
famlias juntamente com o auxlio das divindades antigas. Contudo, com a deciso do
tribunal a favor da liberao de Orestes de sua culpa um novo direito e uma nova forma
de governo se institui. At ento a tirania havia imperado em Argos, seja sobre as mos
de Clitemnestra e Egisto que usurpam o poder por intermdio da associao entre
adultrio e violncia, seja sobre as mos de Agammnon que em suas aes cai
recorrentemente em hbris. Todavia, a tirania ao longo da obra associada por
excelncia com o feminino, a anttese mxima do cidado ateniense. Assim, na Orstia
vemos na interao do masculino e do feminino a construo da figura do tirano na
Atenas democrtica. O dramaturgo mostra o tirano e a mulher como fundidos um no
outro com o objetivo de apontar aos cidados os benefcios de uma poltica decidida
coletivamente pela comunidade masculina. 55 Para defender Orestes diante do tribunal,
Apolo minimiza o papel feminino na procriao. Segundo o deus, a mulher era
meramente o recipiente no qual se depositava a semente da vida sendo o pai o nico
parente verdadeiro da criana. Com este argumento Apolo isenta Orestes de culpa ao
desvincul-lo dos laos que o prendiam a sua me. O crime cometido pelo trida
(matricdio) seria menor se comparado ao de sua me (o assassnio de seu esposo e rei).
A deusa Palas igualmente se coloca do lado do masculino ao depositar seu voto em
favor de Orestes:
Depositarei meu voto a favor de Orestes. Pois no tenho me que me gerou e me coloco ao lado do masculino (com exceo do matrimnio) com todo o meu corao. Estou inteiramente do lado do pai. Assim no darei mais valor a morte de uma mulher que matou o seu marido, o guardio da casa.56
54 Em Atenas, no perodo de Slon (VI a.C.), os cidados tiveram acesso Dke e aos tribunais.
55 GALLEGO, J. Op. cit., p.450. 56 SQUILO.Eumnides,vv.735-739.
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Pode-se observar ento que o matrimnio est acima de qualquer lao de
parentesco, se colocando mesmo sob qualquer outra lei. Diante dessa afirmao da
primazia do casamento transparece uma concepo que o considera como um dos
maiores pr-requisitos da vida civilizada devido a sua importncia em manter o corpo
poltico.
Quem transgride essa lei, como o faz Clitemnestra, se encontrar em uma situao perniciosa; quem tratando de remediar um delito contra a lei matrimonial comete um crime, como o faz Orestes, poder ser absolvido. 57
A absolvio de Orestes afirma esta preponderncia dando fim ao poder da mulher
(tirania) e instaurando o regime democrtico (masculino) ao depositar o direito nas
mos do Dmos. Portanto, ao caracterizar o governo de Clitemnestra e Egisto (Homem
feminizado) como uma tirania, squilo permite a cidade democrtica refletir sobre sua
prpria condio atravs da visualizao de seus opostos extremos, a tirania e o
feminino.
Quanto a este curioso observar que embora a sociedade ateniense do V a.C. lhe
relegasse a um papel passivo e subalterno, a sua predominncia no teatro diverge do
silncio destinado as mulheres na vida social e poltica da plis. Tal discrepncia pode
ser explicada ao se observar que no teatro Grego, (...) o eu que est realmente em jogo
est para ser identificado com o homem, enquanto a mulher atribudo o papel do outro
radical.58 A mulher desempenha assim, segundo Froma Zeitlin, o papel de
catalisadorada do masculino ao atuar como antimodelo - como agente que conduz ou
retira os homens da runa - ou ainda ao ampliar o masculino levando o ator e os
espectadores a entrarem em contato com emoes freqentemente banidas de seu
universo como o medo e a piedade. Portanto,
Mesmo quando os personagens femininos lutam com os conflitos gerados pelas particularidades de sua posio social subordinada, suas demandas por identidade e auto-estima so ainda concebidas principalmente como um meio de explorar o projeto masculino de individualidade no mundo mais amplo. (...) funcionalmente as mulheres nunca so um fim nelas mesmas, e nada muda para elas uma vez que tenham vivido seu drama em cena. 59
57 GALLEGO, J. Op. cit., p.403. 58 ZEITLIN, F. Op. cit., p.345. 59 ZEITLIN, F. Op. cit., p.347.
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Segundo Helene Foley, devido posio marginal que as mulheres ocupam as questes
concernentes a identidade masculina, assim como os conflitos, so comumente
explorados na tragdia por meio delas.60 A mulher ao ser representada em cena tem
assim como uma de suas funes, o papel de reforar a identidade masculina, pois ao
ser o outro radical sua imagem reflete o contrrio do que o cidado deveria ser. Deste
modo, as suas transgresses e as constantes inverses de papis que se do nas
representaes teatrais podem ser pensadas como uma forma de reforar a diferena
sexual.61
O teatro como espao onde os valores sociais eram discutidos, reafirmados e
transmitidos mostrava a plis o que estava em conflito com seus ideais e, por
conseguinte, o que devia excluir ou reprimir. Desta forma, as inverses de papis e as
transgresses recorrentes nas dramatizaes evidenciam o que a sociedade dos homens
no desejava para si. 62 Segundo Severina Ramos, entende-se assim o porqu da
tragdia representar freqentemente o poder e a fria das mulheres no mbito
domstico. A ao das personagens femininas no teatro pode assim ser encarada no
apenas como um instrumento que ao causar estranhamento levava o pblico masculino a
reforar sua identidade, mas tambm como uma demonstrao do temor que a ameaa
do poder das mulheres causava. Tal ameaa requeria o reforo das normas masculinas
e estratgias previsveis de conter modos de auto-afirmao feminina, que muito
ameaam as demandas pela conduo ordenada e racional (leia-se, masculina) da
sociedade. 63 Conseqentemente, em seu desfecho a tragdia freqentemente reafirma
a estrutura de autoridade masculina. Entretanto, como Zeitlin assevera, os esforos dos
homens para subordinar o papel, a funo e a influncia da mulher so apenas
60 FOLEY, Helene. Female acts in Greek tragedy. New Jersey: Princeton University Press, 2003, p.4. 61 Se tomarmos a perspectiva de Froma Zeitlin, a predominncia do feminino no teatro pode ser observada at mesmo em seus elementos estruturais. A autora prope quatro elementos principais como traos indispensveis da experincia teatral: o corpo, o espao teatral, o enredo e a mimesis. Todos estes elementos encontrariam no feminino o seu referente cultural mais radical. Ver (ZEITLIN, 1996, pp.349-363). 62 RAMOS, S.O. Teatro e o Feminino na Atenas Clssica. In: Gaia - Revista Eletrnica de Histria Antiga, 2001 - , p.9. 63 ZEITLIN, F. Op. cit., p.5.
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parcialmente bem sucedidos.64 O que nos permite pensar que a dramatizao de
mulheres transgressoras ao ideal feminino adotado pela sociedade ateniense poderia
indicar que no seu cotidiano as mulheres, ainda que no pudessem se desvencilhar
totalmente dos costumes e da tradio de sua poca, cometiam desvios ao referido ideal.
Os dramaturgos squilo, Eurpides e Sfocles apresentam em suas encenaes
mulheres que transgridem o modelo ideal de feminino criado pela sociedade ateniense.
Obras como As Traqunias de Sfocles, Media e Hiplito de Eurpides, e a Orstia de
squilo, mostram mulheres que no s infringem o comportamento desejvel a uma
mulher bem-nascida como assumem muitas vezes posturas masculinas. Na tragdia
Traqunias de Sfocles, o tema centra-se na vontade humana, convertida em seu
contrrio por obra daquela disposio impenetrvel inteligncia humana.65 Dejanira,
mulher de Hracles, tomada pelo cime e pelo medo de perder o amor de seu esposo
para outra mulher lhe d um manto embebido num filtro que, segundo Nesso, teria o
poder de reavivar o amor dele por ela. No entanto, Dejanira havia sido ludibriada pelo
centauro. A poo com a qual ela encharcou o pplos era na realidade um lquido
mortfero. Ao descobrir que ela havia levado, mesmo que inconscientemente, seu amado
morte Dejanira se suicida. A personagem pode ento ser considerada como uma
mulher transgressora, pois ainda que motivada pelo amor ao cnjuge no aceita
passivamente o seu desejo de contrair laos matrimoniais com uma segunda esposa e
utiliza de ardis para conseguir mant-lo ao seu lado. Nas peas Hiplito e Media de
Eurpides - dramaturgo que segundo Maria Regina Cndido personificou mulheres
adlteras, assassinas e dissimuladas, como seres ativos, atuando em espaos de
predomnio exclusivo dos homens 66 - as personagens Fedra e Media assim como
Dejanira acabam ocasionando com seus delitos a desestruturao de suas famlias. Fedra
motivada pelo amor incontrolvel que sentia por seu enteado se mata diante da
impossibilidade de ver consumado seu desejo. Contudo, antes de morrer deixa escrito
uma mensagem a Teseu acusando Hiplito de t-lo trado e de ser o causador da morte
de sua esposa. Em Mdeia, a personagem homnima ao ttulo da tragdia apresentada
como uma mulher de atitudes masculinas, atuando com iniciativa, inteligncia e
coragem. A protagonista se envolve numa srie de crimes e transgresses em nome do
64 ZEITLIN, F. Op. cit., p.8. 65 LESKY, A. Op. cit., pp.158-159. 66 CANDIDO, Maria Regina. Media, Mito e Magia: a imagem atravs do tempo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ. Fbrica do Livro,2006/2007, p.10.
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amor que sentia por Jaso. 67 Trai seu pai ao ajudar o heri a roubar o Velocino de
Ouro, na fuga para Corinto com o amante mata e esquarteja o corpo de seu irmo
Absirto jogando os pedaos ao mar para atrasar a perseguio paterna, abandonada por
seu cnjuge assassina sua noiva e seu futuro sogro assim como esgorja seus prprios
filhos numa vingana cruel contra o homem que a abandonou. Neste desfile de mulheres
assassinas ou que ocasionam a runa dos homens nos deparamos ainda com a
Clitemnestra e as Suplicantes de squilo (sobre as quais discorreremos a seguir) e com a
Hcuba de Eurpides (rainha Troiana e me, que sob a nova condio de cativa lana-se
numa vingana sangrenta ao ter os dois filhos assassinados), mulheres que esto prontas
a matar os homens em retribuio a violncia corporal exercida contra elas ou contra
os seus. 68 Destarte, squilo no foi o nico a apresentar em suas encenaes
dramticas mulheres que ultrapassaram os limites do permitido ao feminino pela
comunidade polade.
No entanto, segundo Froma Zeitlin,
Para squilo, a civilizao o ltimo produto do conflito entre foras opostas, obtida (...) atravs de uma hierarquizao de valores. A soluo, portanto, coloca Olimpianos sobre ctnicos no nvel divino, Gregos sobre brbaros no nvel cultural, e homens sobre mulheres no nvel social. Mas o conflito homem-mulher subordina os outros dois (...). 69
A polarizao homem-mulher pode-ser vista assim como um importante fio condutor de
duas de suas obras, as Danaides e a Orstia, servindo para abordar no s o lugar do
feminino e do masculino na sociedade ateniense do V a.C., mas tambm para explorar,
atravs dessa bipolarizao, uma srie de questes problemticas.
De todas as peas esquilianas remanescentes, a Orstia e as Danaides se
constituem nas tragdias cujos personagens femininos, assim como o conflito
masculino-feminino ganham mais destaque. O conflito entre os sexos o tema
governante das duas trilogias, que mostram mulheres que se rebelam contra a instituio
do casamento e, por conseguinte contra a autoridade masculina. Na Orstia,
Clitemnestra assassina seu esposo Agammnon numa clara retaliao ao assassnio de
sua filha Ifignia, nas Danaides (trilogia a qual apenas a primeira peca, as Suplicantes,
67 CANDIDO, M. Op. cit.,p.21. 68 ZEITLIN, F. Op. cit., p.12. 69 ZEITLIN, F. Op. cit., p.87.
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chegou intacta at nos) as filhas de Danao, obrigadas a se casarem contra seu desejo
matam seus noivos na noite de npcias sob a injuno de seu pai.70 A rejeio dos
vnculos matrimoniais leva assim, em cada caso, a matana dos maridos e a uma
sobrevalorizao dos laos primrios de parentesco sob os laos implicados com o
matrimnio. Deste modo, o fim de ambas as trilogias a completa aceitao da mulher
do lao marital como necessrio, natural e justo. 71 No entanto, porque a Orstia
sobreviveu na sua forma completa e desfruta de um prestgio inquestionvel no estudo
da Atenas do quinto sculo, ela tem monopolizado o debate acerca das questes do
masculino e do feminino no teatro de squilo. Devido a isto, e ao fato do dramaturgo
representar a maioria das personagens femininas da trilogia como transgressoras ao
modelo ideal de comportamento feminino criado pela plis ateniense do V sec. a.C., ns
adotamos a Orstia como documentao textual.
As personagens com voz ativa na referida trilogia agem, traem, decidem e
questionam. Clitemnestra, a du/sqeov guna/ [mpia mulher (Co.v.44)], trai seu
esposo ao se associar a Egisto numa unio licenciosa, assassina Agammnon
[cunaiti/a fo/nou, co-autora do massacre (Ag.v.1116)] e usurpa o poder
estabelecendo juntamente com seu amante um governo tirnico em Argos,
kelaino/frwn (...) mh/thr [me de corao negro, (Eum. v.459)],
patroktonousa [matadora do pai, parricida (Co.v.909)], ao matar Agammnon
deixa seus filhos rfos. Cassandra, a profetisa [profh/tav, profeta (Ag. v.1099)]
que enganou o deus Apolo [Loci/an e0yeusa/mhn, enganei Lxias (Ag.
v.1208)] capturada e trazida a Argos pelo rei argivo como um esplio da guerra de
Tria. De princesa troiana ela se torna concubina [koino/lektrov, concubina (Ag.
v.1441); filh/twr, amante (Ag.v.1446)] de Agammnon, e morrer juntamente
com ele sob as mos de Clitemnestra. Sua morte pode ser vista como uma resposta a
hbris cometida ao ludibriar o deus que havia lhe concedido o dom da adivinhao.
Electra, a princesa argiva que apesar de ser tratada como escrava
[a0nti/doulov, (Co. v.135)] por sua me a desobedece ao fazer libaes no para
apaziguar o morto, mas para pedir-lhe auxlio na vingana contra seus assassinos. O
70 Atravs de fragmentos podemos supor que na ltima pea da referida trilogia os filhos de Egito foram assassinados por suas jovens esposas. 71 ZEITLIN, F. Op. cit., p.91.
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carinho que devia nutrir pela me se converte em dio, e o meu carinho me para ti
(Orestes) pende, e ela com toda justia odeio (e0xqai/retai) (Co. vv.240-241).
Na Orstia Cada assunto, cada ao origina-se do feminino, assim ele serve
como o catalisador dos eventos mesmo quando ele o principal objeto de investigao. 72 Tanto assim que na trilogia a base para fundar um tribunal em Atenas o impasse
jurdico criado quando Orestes mata sua me para vingar a morte do pai. Por trs desta
questo se coloca o embate entre o feminino e o masculino, que termina com a criao
do Arepago e a conseqente instaurao do regime democrtico e o fim da tirania.
Neste confronto o masculino surge como o grande vitorioso, estando associado com a
democracia enquanto o feminino (sob a figura de Clitemnestra) aparece ligado ao
governo tirnico. O feminino assim ao longo da trilogia, e principalmente na pea
Eumnides, associado com o arcaico, primitivo e regressivo, enquanto o masculino
est ligado ao matrimnio, a sociedade, e ao progresso. Tais associaes so
percebidas na figura das Ernias, as frias vingativas de Clitemnestra que defendem sob
a forma do direito da me a velha justia, e na dos deuses olmpicos Apolo e Athen que
defendem o direito do pai, a nova justia. Deste modo, a evoluo social colocada ao
longo da pea como um movimento do domnio feminino para o domnio masculino,
ou, como se costuma dizer do matriarcado para o patriarcado. 73 A diminuio do
poder gerativo feminino por Apolo mina a fonte de poder da mulher, e institui o
matrimnio como o mais importante de todos os laos de parentesco, julgando o crime
cometido por Clitemnestra (marrcidio) como mais grave do que o perpetrado por
Orestes (matricdio). A negao da primazia da mulher na procriao e do conseqente
poder feminino concretizada pela absolvio de Orestes pelo tribunal, instituindo o
domnio do feminino pelo masculino. A trilogia insere-se assim na tradio misgina do
pensamento Grego que relaciona o domnio do feminino s mais elevadas metas
sociais,74 domnio este que se torna de grande importncia para a plis democrtica
ateniense que para sua constituio necessita da integridade e da preservao do okos.
Porquanto, nossa escolha pela Orstia se pautou na relao entre a obra trgica e
as prticas democrticas. A trilogia se refere a instituio do Arepago como tribunal de
sangue o que pode ser interpretado como uma provvel meno a reduo dos seus
poderes por Efialtes (462 a.C.), medida esta que representou uma grande conquista para 72 ZEITLIN, F. Op. cit., p.87. 73 ZEITLIN, F. Op. cit., p.89. 74 ZEITLIN, F. Op. cit., p.88.
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o fortalecimento da democracia ateniense. Juntamente com a importncia da trilogia
para a anlise do contexto poltico da Atenas do V a.C., nossa seleo da Orstia como
documentao se deve igualmente a ela representar em quase todas as suas personagens
femininas mulheres transgressoras a ordem masculina. Atravs destas personagens a
trilogia nos mostra o temor que o feminino despertava na sociedade ateniense e a
ameaa constante que seu poder representava.
3. Um breve debate acerca da condio da Mulher bem-nascida na Atenas Clssica
3.a. A vida da Mulher Ateniense
No Perodo Clssico o principal valor de uma mulher era sua capacidade de
gerar crianas, o que fazia da maternidade e conseqentemente do casamento os
objetivos mais importantes de toda cidad. 75 Deste modo, a educao da menina
ateniense estava completamente direcionada a lhe preparar para o desempenho do papel
mais importante de sua vida; o de esposa e me de cidados. Enquanto seus irmos por
volta dos seis anos comeavam a ter lies com pedagogos, as meninas ficavam em casa
recebendo de suas mes instrues relativas ao servio domstico. Ao ajudarem as
mulheres da casa com suas tarefas elas aprendiam a cozinhar, limpar, tecer e a cuidar
das crianas mais jovens. Embora algumas mulheres paream ter sido alfabetizadas 76 e
meninas da elite possam ter sido iniciadas na arte da dana e da msica, a educao
feminina se constituiu principalmente da aprendizagem destes afazeres ligados a esfera
domstica. A jovem adquiria assim as habilidades necessrias para o desempenho de
sua futura funo de esposa e administradora do okos. Entretanto, a educao feminina
no se constitua apenas da aprendizagem dos trabalhos manuais a serem executados no
dia a dia pelas mulheres da famlia, mas tambm na apreenso de qualidades prprias da
mulher abelha;77 tais como sobriedade, silncio e submisso.
75 POMEROY, S.B. Op.cit., p.62. 76 BLUNDELL,S. Op. cit., p.132. 77 Tipo ideal do feminino.
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Tanto meninas quanto meninos ao atingirem a puberdade eram considerados
preparados para o incio da atividade sexual.78 As meninas casavam cedo, entre 15 e 18
anos.79 O casamento precoce era justificado com base na crena de que as mulheres
eram lascivas e pouco hbeis em conter seus impulsos sexuais, o que - juntamente com
a necessidade de que se cassassem virgens - tornava iminente a sua realizao. A jovem
passava assim de forma abrupta da infncia ao mundo da sexualidade adulta. No de
se estranhar, portanto, que o casamento seja no s traumtico, mas tambm o choque
mais brutal na vida de uma mulher grega. 80 Ao contrrio de seu irmo que, segundo
Pierre Brul, ao sair da infncia atravessa uma espcie de adolescncia prolongada para
se acostumar a existncia masculina, a menina deixa seus brinquedos para logo em
seguida assumir - como me e esposa - o seu lugar na vida adulta.
A educao da menina estava assim voltada a lhe preparar para o destino de toda
mulher cidad81, o casamento. Embora ele no trouxesse nenhuma alterao no seu
status legal ou poltico; simbolicamente, socialmente e emocionalmente ele era a
transio mais importante pela qual ela iria passar.82 Em Atenas, o casamento no
consistia unicamente num simples evento legal, mas em um processo envolvendo certo
nmero de aes e eventos.83 Alm do engue,84 a celebrao do casamento (gamos),
coabitao (sunoikein), e a produo de crianas podem ter sido considerados como
78 No entanto, casamentos com meninas impberes parecem ter ocorrido na Grcia Antiga. 79 BRESSON, A. L conomie de La Grce des Cits I: les Structures et la Production. Paris: Armand Colin, 2008, p.56. 80 Ibid. 81 Entendemos aqui como cidads todas aquelas mulheres filhas e esposas de cidados atenienses,
estando, portanto, excludas dessa categoria as escravas, estrangeiras, concubinas e prostitutas. Como pontua Claude Moss, devemos empregar com prudncia o termo cidad. Sue Blundell chama ateno para o fato de que As mulheres Atenienses no eram consideras como politai uma palavra que normalmente traduzida como cidados, mas que mais especificamente significa cidados com todos os direitos polticos, que eram sempre homens. Ao invs disso, a palavra astai era aplicada as mulheres, e pode ser tomada como se referindo a posse de direitos civis por elas (...) para as mulheres Atenienses cidadania significa apenas que elas tinham uma parte na ordem religiosa, legal e econmica da comunidade Ateniense. (BLUNDELL, 1995, p.128)
82 BLUNDELL, S. Op.cit., p.128.
83 Segundo Sarah Pomeroy a escolha do noivo por parte do tutor da jovem, assim como a da noiva pelo
futuro esposo levava em considerao razes polticas e econmicas. A historiadora Sue Blundell, ao se referir instituio do casamento na Idade Clssica, afirma igualmente que a riqueza era certamente um fator a ser levado em considerao por ambas as partes (ao menos pelas famlias socialmente favorecidas). Contudo, com relao s alianas polticas ela diz haver dvidas quanto ao seu papel na escolha dos cnjuges. Mas, baseando-se nos argumentos de S.C.Humphreys, expe que o casamento parece ter sido mais uma forma de as consolidar do que de estabelec-las.
84 Contrato verbal estabelecido entre o pai da noiva e o noivo. (BLUNDELL, S. Op.cit., p.122.) 85 BLUNDELL, S. Op.cit., p.122. 86 Ibid.
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indicadores da existncia de um casamento. 85 Contudo, dentre todo este conjunto de
aes que tornavam um casamento autntico, a produo de crianas - e mais
especificamente o nascimento de um filho do sexo masculino - era sem dvida a mais
importante.86 Isto se verifica devido ao objetivo principal do casamento ser a
procriao de filhos legtimos destinados a herdar os bens paternos 87 e os direitos
cvicos, o que garantia no s a sobrevivncia do okos como a estabilidade da plis
democrtica. O casamento tornava-se assim um dos alicerces da legitimidade cvica e a
instituio sobre a qual se fundava a reproduo da sociedade.
Desta forma, o casamento pode ser tomado como a associao entre um homem
e uma mulher cuja finalidade repousa na gerao e criao de filhos, mas que tem
tambm por fim a boa administrao e o desenvolvimento da casa de tal forma que os
bens transmitidos aos herdeiros, por ocasio da morte do krios, estejam no s
conservados como tambm tenham crescido em volume.88 O marido cuida de alimentar
e proteger sua esposa assim como de acumular bens para seus filhos, e a mulher garante
a transmisso do patrimnio graas procriao de filhos legtimos e a conservao
desse graas a uma boa gesto dos assuntos domsticos. 89 Deste esboo pode-se ento
concluir o duplo papel da gyn, como reprodutora e administradora do okos. No
entanto, como j dito anteriormente, era a maternidade o principal objetivo de toda
mulher cidad e as relaes sexuais mantidas por ela tinham unicamente a finalidade de
satisfazer tal propsito. As relaes matrimoniais tinham assim um intuito estritamente
utilitrio, o prazer que duas pessoas sentem ao dormirem juntas e a sua atrao
pessoal no tinham nenhum valor. 90 Os homens casavam-se no para satisfazer seus
desejos, mas para criar uma famlia.91 Com relao ao sexo s mulheres casadas se viam
87 Tanto assim que o motivo mais recorrente para o divrcio era a falta de filhos. 88 Contudo, o casamento tambm tem outros propsitos com relao filiao. Ter filhos era uma forma de garantir o amparo na velhice. 89 MOSS, Cl. Op.cit., p.89. 90 BRUL, P. Op.cit., p.193.
91 Os impulsos masculinos poderiam ser saciados por meio de um amplo leque de relaes sexuais
extraconjugais autorizadas a eles pela sociedade. O orador do discurso Contra Neera nos permite entrever alguns destes relacionamentos, assim como o fim unicamente reprodutivo do sexo praticado com as esposas: Ns temos cortess (hetaerae) para o prazer,