Alexandre Dumas - Vinte Anos Depois - Volume 3

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Alexandre Dumas

Vinte anos depois3º volume

Título do original francês: VINGT ANS APRÉS

Ilustrações - NICO ROSSO

Tradução e notas de OCTAVIO MENDES CAJADO

1963

A propriedade literária desta tradução, realizada na íntegra do texto original francês, foi adquirida por

SARAIVA S, A. LIVREIROS EDITORES — SÃO PAULO

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ROMANCES DE ALEXANDRE DUMAS

Volumes Publicados:SÉRIE D’ARTAGNAN

1 — Os Três Mosqueteiros — 1º volume2 — Os Três Mosqueteiros — 2º volume3 — Vinte Anos Depois — 1º volume4 — Vinte Anos Depois — 2º volume5 — Vinte Anos Depois — 3º volume6 — O Visconde de Bragelonne — 1º volume7 — O Visconde de Bragelonne — 2º volume8 — O Visconde de Bragelonne — 3º volume9 — O Visconde de Bragelonne — 4º volume10 — O Visconde de Bragelonne — 5º volume11 — O Visconde de Bragelonne — 6º volume

SÉRIE ROBIN HOOD

12 — Aventuras de Robin Hood13 — Robin Hood, o Proscrito

SÉRIE MEMÓRIAS DE UM MÉDICO

14 — José Bálsamo — 1º volume15 — José Bálsamo — 2º volume16 — José Bálsamo — 3º volume17 — José Bálsamo — 4º volume18 — O Colar da Rainha — 1º volume19 — O Colar da Rainha — 2.º volume20 — Ângelo Pitou — 1.º volume21 — Ângelo Pitou — 2.º volume22 — A Condessa de Charny — 1º volume23 — A Condessa de Charny — 2º volume24 — A Condessa de Charny — 3º volume25 — A Condessa de Charny — 4º volume26 — O Cavaleiro da Capa Vermelha

A Publicar:O Conde do Monte Cristo Luísa de San-FellceEma Lyonna

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CAPÍTULO I

SAUDAÇÃO À MAJESTADE CAÍDA

À proporção que se aproximavam da casa, viam os nossos fugitivos a terra revolvida como se uma tropa considerável de cavaleiros os tivesse precedido; diante da porta eram ainda mais visíveis os traços: a tropa, fosse ela qual fosse, ali se detivera.

— Por Deus! — disse d'Artagnan — a coisa é clara, o Rei e sua escolta passaram por aqui.

— Diabo! — reguingou Porthos — nesse caso terão devorado tudo.— Ora! — tornou d'Artagnan — hão de ter deixado uma galinha.E, apeando do cavalo, bateu; ninguém respondeu. Empurrou a porta, que

não estava fechada, e encontrou a primeira sala vazia e deserta.— E então? — perguntou Porthos.— Não vejo ninguém — respondeu d'Artagnan. — Ah! ah!— O quê?— Sangue!A essa palavra, os três amigos saltaram dos cavalos e entraram na

primeira sala; mas d'Artagnan já empurrara a porta da segunda e, pela expressão de seu rosto, era manifesto que via algum objeto extraordinário.

Os três amigos aproximaram-se e depararam um homem ainda moço estendido no chão e mergulhado num charco de sangue.

Via-se que tentara chegar-se ao leito mas, falecendo-lhe as forças, caíra antes de consegui-lo.

Foi Athos o primeiro que se abeirou do desgraçado: cuidara vê-lo fazer um movimento.

— E então? — perguntou d'Artagnan.— Então — respondeu Athos — se morreu, não deve fazer muito tempo,

pois ainda está quente. Não, não, o coração palpita! Eh! amigo!O ferido suspirou; d'Artagnan reuniu uma pouca de água no côncavo Ha

mão e atirou-lhe ao rosto.O homem reabriu os olhos, fez menção de soerguer a cabeça e tornou a

cair.Athos tentou depô-la sobre o joelho, mas notou que o ferimento era um

pouco acima do cerebelo e lhe fendera o crânio; dele corria o sangue a jorros.

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Aramis mergulhou um guardanapo na água e aplicou-o na chaga; o frescor devolveu os sentidos ao ferido, que abriu os olhos por segunda vez.

Examinou com espanto aqueles homens que pareciam compadecê-lo e que, na medida de suas forças, buscavam socorrê-lo.

— Estais entre amigos — disse Athos em inglês; — tranqüilizai-vos e, se tiverdes forças para tanto, contai-nos o que aconteceu.

— O Rei — murmurou o ferido — o Rei foi preso.— Viste-lo? — perguntou Aramis no mesmo idioma. O homem não

respondeu.— Ficai descansado — volveu Athos — somos fiéis servidores de Sua

Majestade.— É verdade o que dizeis? — perguntou o ferido. — Palavra de

cavaleiros.— Então, posso falar?— Falai.— Sou irmão de Parry, o camarista de Sua Majestade. Lembraram-se

Athos e Aramis de que por esse nome chamara de Winter o lacaio que haviam encontrado no corredor da tenda real.

— Conhecemo-lo — disse Athos; — ele nunca deixava o Rei!— Isso mesmo — confirmou o ferido. — Pois bem, vendo o Rei

prisioneiro, ele se lembrou de mim; ao passarem defronte da casa, pediu, em nome do Rei, que parassem. O pedido foi satisfeito. O Rei, dizia ele, estava com fome; fizeram-no entrar nesta sala, a fim de que comesse alguma coisa, e colocaram sentinelas nas portas e nas janelas. Parry conhecia esta sala porque, diversas vezes, quando Sua Majestade ia a Newcastle, viera visitar-me. Sabia que nela havia um alçapão, que o alçapão levava à adega e que, da adega, se podia chegar ao pomar. Fez-me um sinal. Eu o compreendi. Mas o sinal, sem dúvida, foi interceptado pelos guardas do Rei e pô-los de sobreaviso. Ignorando que desconfiassem de alguma coisa, tive apenas um desejo, o de salvar Sua Majestade. Por conseguinte, fingi sair para ir buscar lenha, imaginando que não houvesse tempo para perder. Entrei na passagem subterrânea que conduzia à adega e à qual correspondia o alçapão. Levantei a prancha com a cabeça; e enquanto Parry fechava mansamente a porta à chave, fiz sinal ao Rei que me seguisse. Ele não quis; dir-se-ia que a fuga lhe repugnasse. Mas Parry juntou as mãos, suplicando; implorei-lhe também, de minha parte, que não perdesse a ocasião. Por fim, determinou seguir-me. Eu, felizmente, ia na frente; o Rei acompanhava-me, a alguns passos de distância, quando, de repente, na passagem subterrânea, vi erguer-se como uma sombra. Eu quis gritar para prevenir El-Rei, mas não tive tempo. Senti uma pancada como se a casa desabasse sobre mim e perdi os sentidos.

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— Bom e leal inglês! Fiel servidor! — murmurou Athos.— Quando os recobrei, jazia no mesmo lugar. Arrastei-me até ao pátio; o

Rei e sua escolta haviam partido. Levei uma hora talvez para vir do pátio até aqui; mas faltaram-me as forças e desfaleci pela segunda vez.

— E agora, como vos sentis?— Muito mal — respondeu o ferido.— Podemos fazer por vós alguma coisa? — perguntou Athos.— Ajudai-me a ir para a cama; creio que isso me aliviará.— Tendes alguém que possa socorrer-vos?— Minha mulher está em Durham e deve voltar de um momento para

outro. Mas vós, não precisais de nada, não desejais alguma coisa?— Tínhamos vindo com a intenção de pedir-vos comida.— Ai! que me levaram tudo; não deixaram sequer um pedaço de pão.— Ouviste, d'Artagnan? — acudiu Athos — temos de procurar comida

em outro lugar.— Isso, agora, me é indiferente — respondeu d’Artagnan; — já não

sinto fome.— Nem eu — sobreveio Porthos.E transportaram o homem para a cama. Chamaram Grimaud, que lhe

pensou a ferida. Durante o tempo em que servira os quatro amigos, Grimaud tivera tantas ocasiões de fazer compressas e ataduras, que acabara adquirindo uns conhecimentos de cirurgia.

Nesse em meio, os fugitivos tinham voltado à primeira sala e confabulavam.

— Agora — disse Aramis — já sabemos em que pé estamos; foram, de fato, o Rei e sua escolta que passaram por aqui; devemos ir para o lado oposto. Não é esse o teu parecer, Athos?

Athos, que refletia, não respondeu.— Sim — concordou Porthos — vamos para o lado oposto. Se

acompanharmos a escolta, encontraremos tudo devorado e acabaremos morrendo de fome; maldito país, esta Inglaterra! É a primeira vez que deixo de jantar. E o jantar é a minha principal refeição.

— Qual é a tua opinião, d'Artagnan? — perguntou Athos; — a mesma de Aramis,

— Não — replicou d'Artagnan — a minha, pelo contrário, é inteiramente contrária.

— Como! queres seguir a escolta? — acudiu Porthos, assustado.Não, mas quero viajar com ela.Os olhos de Athos brilharam de alegria.— Viajar com a escolta! — exclamou Aramis.

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— Deixa falar d'Artagnan; sabes que é o homem dos bons conselhos — disse Athos.

— Sem dúvida — continuou d'Artagnan — devemos ir aonde não nos procuram. Como é evidente que não nos procurarão entre os puritanos, vamos para o meio deles.

— Bem, amigo, bem! excelente conselho — voltou Athos;— eu ia dá-lo quando tu te antecipaste.— É essa também a tua opinião? — perguntou Aramis.— Sim. Supondo que tencionamos deixar a Inglaterra, mandarão

procurar-nos nos portos; entrementes, chegaremos a Londres com o Rei; em Londres, ninguém nos encontrará; no meio de um milhão de homens a gente se esconde com facilidade; sem falarmos — ajuntou Athos lançando um olhar a Aramis — nas oportunidades que nos oferece a viagem.

— Sim — disse Aramis — compreendo.— Eu não compreendo — confessou Porthos — mas não faz mal; se o

parecer é de d'Artagnan e de Athos ao mesmo tempo, deve de ser' o melhor.— Mas — atalhou Aramis — não pareceremos suspeitos ao Coronel

Harrison?— Pois se é precisamente com ele que estou contando!— replicou d’Artagnan; — o Coronel Harrison é amigo nosso; vimo-lo

duas vezes em companhia do General Cromwell; sabe que lhe fomos enviados de França pelo Seu Mazarino. tratar-nos-á como a irmãos. Além disso, não é filho de um carniceiro? É. Porthos lhe mostrará como se mata um boi com um murro e eu, como se derruba um touro pelos chifres; isso lhe captará a confiança.

Athos sorriu.— És o melhor companheiro que conheço, d'Artagnan — disse ele

estendendo-lhe a mão — e sinto-me felicíssimo por haver-te encontrado de novo, meu querido filho.

Era esse, como se sabe, o nome que dava Athos a d’Artagnan nas suas grandes efusões sentimentais.

Nesse momento Grimaud saiu do quarto. Pensado, o ferido já estava melhor.

Os quatro amigos despediram-se e perguntaram-lhe se não tinha algum recado para o irmão.

— Dizei-lhe — respondeu o bravo homem — que informe o Rei de que não me mataram; por mais insignificante que eu seja, tenho certeza de que Sua Majestade me lastima e se julga causador de minha morte.

— Tranqüilizai-vos — prometeu d'Artagnan — ele o saberá antes desta noite.

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A tropazinha pôs-se em marcha; fora impossível errar o caminho, visivelmente traçado pela escolta através da planície.

Ao cabo de duas horas, d'Artagnan, que ia na frente, parou na volta de uma estrada.

— Ah! ah! — disse ele — aqui está a nossa gente. Com efeito, uma tropa considerável de cavaleiros caminhavam a meia légua de distância.

— Meus caros amigos — disse d'Artagnan — entregai as vossas espadas ao Sr. Mouston, que vo-las devolverá oportunamente, e lembrai-vos de que sois nossos prisioneiros.

Em seguida puseram a trote os cavalos, que começaram a cansar-se, e pouco depois alcançavam a escolta.

Colocado na frente, cercado de parte do regimento do Coronel Harrison, caminhava El-Rei impassível, sempre digno, e com aparente boa vontade.

Avistando Athos e Aramis, dos quais não pudera sequer despedir-se e, lendo nos olhos dos dois fidalgos que ainda tinham amigos a alguns passos de si, embora os julgasse prisioneiros, coloriram-se de gosto as faces pálidas do Rei.

D'Artagnan chegou à frente da coluna e, deixando os amigos sob a guarda de Porthos, foi diretamente a Harrison, que efetivamente o reconheceu por tê-lo visto em casa de Cromwell e o acolheu com tanta polidez quanta poderia demonstrar um homem de sua condição e caráter. O que d’Artagnan previra aconteceu; o coronel não tinha nem poderia ter suspeita alguma.

A coluna estacou: nessa parada devia jantar o Rei. Dessa feita, porém, tomaram-se precauções para que não tentasse fugir. Na sala principal da hospedaria arrumou-se uma mesinha para ele e uma mesa grande para os oficiais.

— Jantais comigo? — perguntou Harrison a d'Artagnan.— Diabo! — redargüiu o gascão — isso me daria imenso prazer; tenho,

porém, um companheiro, o Sr. du Vallon e meus dois prisioneiros, que não posso deixar, e que tomariam muito lugar na vossa mesa. Mas façamos uma coisa: ordenai que arrumem uma mesa num canto e mandai-nos o que quiserdes da vossa, pois, a não ser assim, corremos grande perigo de morrer de fome. Jantaremos juntos da mesma forma, pois jantaremos na mesma sala.

— Seja — anuiu Harrison.Tudo se fez consoante os desejos de d'Artagnan e, quando este voltou

para ao pé do Coronel, encontrou o Rei já sentado à sua mesinha, servido por Parry, o Coronel e seus oficiais abancados em comum e, num canto, os lugares reservados para ele e os companheiros.

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A mesa a que se haviam sentado os oficiais puritanos era redonda e, fosse por acaso, fosse por cálculo, Harrison dava as costas para o Rei.

El-Rei viu entrarem os quatro fidalgos, mas não pareceu notá-los.Sentaram-se nos lugares que lhes tinham sido reservados e colocaram-se

de modo que não dessem as costas a ninguém. Tinham diante de si a mesa dos oficiais e a do Rei.

Desejando honrar os hóspedes, Harrison, mandava-lhes os melhores pratos; desgraçadamente para os quatro amigos, porém, não se via uma garrafa de vinho. Isso parecia indiferente a Athos, mas d'Artagnan, Porthos e Aramis faziam caretas sempre que tomavam um gole de cerveja, a bebida puritana.

— À minha fé, Coronel, — disse d'Artagnan, — que vos ficamos muito gratos pelo gracioso convite, pois, sem ele, correríamos o risco de perder o jantar, como já perdemos o almoço; e aqui o meu amigo, o Sr. du Vallon, partilha do meu reconhecimento, pois estava com uma fome danada.

— Ainda estou — disse Porthos, cumprimentando o Coronel Harrison.— E como vos sucedeu a desgraça de perderdes o almoço? — perguntou

o Coronel, rindo.— Por uma razão muito simples, Coronel — retrucou d'Artagnan. — Eu

tinha pressa de alcançar o vosso regimento e, para fazê-lo, segui o vosso caminho, erro que não devia cometer um veterano como eu, pois é sabido que per onde passa um belo e bravo regimento como o vosso não sobram nem migalhas. Compreendereis, portanto, a nossa decepção quando, ao chegarmos a uma linda casinha situada na ourela de um bosque, e que, de longe, com o teto vermelho e as persianas verdes, tinha um arzinho de festa que dava gosto ver, em vez de encontrar as galinhas que já nos preparávamos para assar e os presuntos que pretendíamos grelhar, vimos apenas um pobre diabo banhado... Ah! com seiscentos diabos, Coronel, transmiti os meus cumprimentos ao oficial que aplicou aquele golpe, muito bem dado; tão bem dado, que provocou a admiração do Sr. du Vallon, meu amigo, que sabe dá-los também com muita graça.

— Sim — disse Harrison, a rir e erguendo os olhos para um oficial sentado à sua mesa — quando Groslow se encarrega desse servicinho, não precisa de ajuda.

— Ah! foi este senhor — exclamou d'Artagnan, mesurando o oficial; — lamento que não fale francês para receber os meus cumprimentos.

— Estou pronto para recebê-los e retribuí-los, senhor; — respondeu o oficial em muito bom francês — morei três anos em Paris.

— Pois apresso-me em dizer-vos, senhor — continuou d'Artagnan — que o golpe foi tão bem aplicado que quase matastes o homem.

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— Eu supunha tê-lo matado — disse Groslow.— Não. Pouco faltou, é verdade, mas ele não morreu. Pronunciando

essas palavras, d'Artagnan dirigiu um olhar a Parry, em pé diante do Rei, mortalmente pálido, para indicar-lhe que a notícia lhe era dirigida.

Quanto ao Rei, escutara toda a conversa com o coração oprimido por indizível angústia, pois ignorava aonde queria chegar o oficial francês, e aqueles pormenores cruéis, disfarçados por aparente displicência, revoltavam-no.

Só às últimas palavras que pronunciou o gascão, respirou, aliviado.— Oh! diabo! — disse Groslow — cuidei que tivesse sido mais bem

sucedido. Se não fosse tão grande a distância que nos separa da casa do miserável eu voltaria para liquidá-lo.

— E faríeis bem, se receais que se restabeleça — replicou d'Artagnan — pois, como sabeis, quando os ferimentos na cabeça não matam instantaneamente, curam-se em oito dias.

E d'Artagnan lançou segundo olhar a Parry, cujo rosto iluminou tamanha expressão de alegria, que Carlos lhe estendeu a mão com um sorriso.

Parry inclinou-se sobre a mão do amo e beijou-a, reverente.— Em verdade, d'Artagnan — disse Athos — és ao mesmo tempo

homem de palavra e de espírito. Mas que dizes do Rei?— Gosto muito da sua fisionomia — respondeu d’Artagnan; — tem uma

expressão nobre e boa a um tempo.— Sim, mas deixa-se prender; — observou Porthos — é um erro.— Tenho muita vontade de beber-lhe à saúde — confessou Athos.— Deixa-me então propor o brinde — pediu d’Artagnan.— Propõe-no — disse Aramis.Porthos considerava d’Artagnan, pasmado dos recursos que o espírito

gascão proporcionava sem cessar ao companheiro.D’Artagnan pegou no copo de estanho, encheu-o e levantou-se.— Senhores — propôs aos companheiros — bebamos, se vos apraz, à

saúde de quem preside ao jantar. Ao nosso Coronel. E saiba que estamos a seu serviço até Londres, e mais além.

E como, ao pronunciar essas palavras, d’Artagnan tivesse os olhos fitos em Harrison, este supôs que o brinde lhe fosse dirigido, levantou-se e cumprimentou os quatro amigos, que, com os olhos pregados no Rei, beberam juntos, ao passo que Harrison, de seu lado, emborcava o copo sem nenhuma desconfiança.

Carlos, por sua vez, estendeu o seu ao camarista, que nele deitou algumas gotas de cerveja, pois ao Rei se impusera o regime de todos; e, levando-o aos lábios e fitando por seu turno os quatro fidalgos, bebeu com

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um sorriso cheio de nobreza e reconhecimento.— Vamos, senhores — bradou Harrison, sem demonstrar a mínima

consideração pelo' ilustre prisioneiro que conduzia — a caminho!— Onde dormiremos, Coronel?— Em Tirsk — respondeu Harrison.— Parry...— disse o Rei erguendo-se também e voltando-se para

o'criado — o meu cavalo. Quero ir a Tirsk.•

— Palavra — confessou d'Artagnan a Athos — que o vosso Rei me seduziu completamente e que estou ao seu inteiro dispor.

— Se o que dizes é sincero — respondeu Athos — ele não chegará a Londres.

— Como assim?— Antes disso conseguiremos salvá-lo.— Ah! desta vez, Athos — exclamou d'Artagnan — dou-te a minha

palavra de honra de que estás louco.— Tens algum plano traçado? — perguntou Aramis.— A coisa não seria impossível se tivéssemos um bom plano —

observou Porthos.— Não tenho — confessou Athos; — mas d'Artagnan acabará achando

um.D'Artagnan encolheu os ombros e todos puseram-se a caminho.

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CAPÍTULO II

D'ARTAGNAN ACHA UM PLANO

ATHOS conhecia d'Artagnan melhor talvez do que d’Artagnan se conhecia a si mesmo. Sabia que, num espírito aventuroso como o do gascão, bastava plantar uma idéia, como em terra vigorosa e rica basta plantar uma semente. Por conseguinte, deixara tranqüilamente que o amigo encolhesse os ombros, e continuara o caminho falando-lhe de Raul, assunto a que ele, como vimos, em outra oportunidade, fugira completamente.

Era noite fechada quando chegaram a Tirsk. Os quatro amigos pareceram de todo em todo estranhos e indiferentes às medidas de precaução que tomavam para guardar a pessoa do Rei. Retiraram-se para uma casa particular e, como temessem ver ameaçada a qualquer momento a própria segurança, instalaram-se num quarto só, preparando a retirada para o caso de um ataque. Distribuiram-se os criados por diferentes postos; Grimaud deitou-se num feixe de palha atravessado na porta.

D’Artagnan ficara pensativo e parecia haver perdido a costumeira loquacidade. Não dizia uma palavra, assobiava sem cessar e passeava entre a cama e a janela. Porthos, que não via senão as coisas exteriores, falava como sempre. D’Artagnan respondia por monossílabos. Athos e Aramis entreolhavam-se, sorrindo.

O dia fora cansativo, mas, a não ser Porthos, cujo sono era tão inflexível quanto o apetite, os amigos dormiam mal.

Na manhã seguinte, d'Artagnan foi o primeiro que se levantou. Desceu às cocheiras, examinou os cavalos e deu todas as ordens necessárias à jornada antes que Athos e Aramis se levantassem. Porthos ainda roncava.

Às oito da manhã iniciou-se a marcha, na mesma ordem da véspera. D'Artagnan, porém, separou-se dos amigos e foi reencetar com o Sr. Groslow as relações entabuladas na véspera.

Este, deliciosamente insensado pelos elogios do mosqueteiro, recebeu-o com gracioso sorriso.

— Em realidade, senhor — disse-lhe d'Artagnan — sinto-me feliz por encontrar alguém com quem possa falar a minha pobre língua. O Sr. du Vallon, meu amigo, tem um temperamento extremamente melancólico, e ninguém lhe arranca mais de quatro palavras por dia; os nossos dois prisioneiros, como haveis de compreender, não se acham muito dispostos a sustentar uma conversação.

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— São realistas ferrenhos — disse Groslow.— Mais uma razão para que não nos perdoem a prisão do Stuart, para o

qual espero que tenhais preparado um bom e belo processo.— De certo! — disse Groslow. — Para isso o levamos a Londres.— E, naturalmente, não o perdeis de vista?— Hom'essa! Está claro que não! Como vedes — acrescentou o oficial

dando risada — ele tem uma escolta verdadeiramente real.— Sim, durante o dia não há perigo de que escape; mas de noite...— De noite redobram as precauções.— Que processo de vigilância empregais?— Oito homens ficam constantemente em seu quarto.— Diabo! — exclamou d'Artagnan — está bem guardado. Mas, além dos

oito homens, sem dúvida colocais uma guarda fora? Todas as precauções são poucas com'um prisioneiro desses.

— Oh! não. Pensai um pouco: que quereis que façam dois homens sem armas contra oito homens armados?

— Dois homens, como?— O Rei e o criado.— Permitiram ao criado que ficasse com ele?— Sim, Stuart pediu que lhe concedessem esse favor, e o Coronel

Harrison consentiu. Com o pretexto de que é rei, parece que não se pode vestir nem despir sozinho.

— Em verdade, Capitão — disse d'Artagnan, decidido a persistir, em relação ao oficial inglês, no sistema lauda-tório que tão bons resultados lhe dera — quanto mais vos ouço tanto mais me espantam a fluência e a elegância com que falais o francês. Morastes em Paris três anos, está certo; mas eu poderia morar em Londres a vida inteira e nunca chegaria ao grau a que chegastes. Que fazíeis em Paris?

— Meu pai, que era comerciante, colocara-me em casa do seu correspondente, o qual, de seu lado, colocara o filho em casa de meu pai; entre negociantes são muito usadas essas trocas.

— E Paris agradou-vos?— Sim, mas tendes também grande necessidade de uma revolução no

gênero da nossa; não contra o vosso Rei, que é uma criança, mas contra aquele italiano sem-vergonha que é amante da vossa Rainha.

— Concordo plenamente convosco, e isso não demoraria se tivéssemos uma dúzia de oficiais como vós, sem preconceitos, vigilantes, intratáveis! Ah! não tardaríamos em dar cabo do Mazarino e lhe prepararíamos um bom processozinho como o que preparais para o vosso Rei.

— Mas — tornou o oficial — eu supunha que estáveis a seu serviço!

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Não foi ele quem vos enviou ao General Cromwell?— Foi, mas estou a serviço do Rei. Sabendo que ele pretendia mandar

alguém à Inglaterra, pedi que me fosse confiada a missão, tão grande era o meu desejo de conhecer o homem de gênio que, neste momento, governa os três reinos. Por isso mesmo, quando este nos propôs, ao Sr. du Vallon e a mim, sacarmos da espada em honra da velha Inglaterra, logo aceitamos a proposta.

— Sim, sei que atacastes ao lado do Sr. Mordaunt.— À sua direita e à sua esquerda. Sim, senhor! Que corajoso e excelente

rapaz! Como deu cabo do tio! Vistes?— Conhecei-lo? — perguntou o oficial.— Muito; posso até dizer que somos íntimos: o Sr. du Vallon e eu

viemos com ele de França.— Dizem até que o fizestes esperar muito tempo em Bolonha...— Que remédio! — replicou d'Artagnan — eu estava na vossa situação,

precisava guardar um rei.— Ah! ah! — sobreveio Groslow — e que rei?— O nosso, hom'essa! o pequeno king, Luís XIV.E d'Artagnan descobriu-se. O inglês imitou-o por polidez.— E quanto tempo o guardastes?— Três noites; e palavra que me lembrarei sempre com prazer dessas

três noites.— É muito amável o reizinho?— O rei? dormia a sono solto.— Mas, então, que quereis dizer?— Quero dizer que os meus amigos, oficiais dos guardas e dos

mosqueteiros, vinham fazer-me companhia e passávamos as noites bebendo e jogando.

— Ah! sim — condescendeu o inglês com um suspiro — é verdade, os franceses são alegres companheiros.

— Não jogais também quando estais de guarda?— Nunca.— Nesse caso deveis aborrecer-vos supinamente, e eu vos lastimo.— O fato — volveu o inglês — é que vejo chegar a minha vez com certo

terror. É muito comprida uma noite inteira de vigília.— Sim, quando se vela sozinho ou com soldados estúpidos; mas quando

se vela com um partner alegre, quando se fazem rolar o ouro e os dados sobre uma mesa, passa-se a noite como um sonho. Não vos agrada o jogo?

— Pelo contrário.— O lansquenete, por exemplo?

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— Adoro-o; jogava-o quase todas as noites em França.— E depois que voltastes à Inglaterra?— Ainda não vi um copo de dados nem uma carta.— Tenho pena de vós — disse d'Artagnan com ar de profunda

compaixão.— Escutai — tornou o inglês — façamos uma coisa.— Qual?— Amanhã estou de guarda.— Junto de Stuart?— Sim. Vinde passar a noite comigo.— Impossível.— Impossível?— Absolutamente impossível.— Por quê?— Porque jogo todas as noites com o Sr. du Vallon. Às vezes, nem nos

deitamos... Hoje cedo, por exemplo, já era dia claro e ainda estávamos jogando.

— E que é que tem isso?— Ele se aborrecia se não jogássemos.— É bom parceiro?— Já o vi perder duas mil pistolas dando grandes gargalhadas.— Trazei-o, então.— Como? E os nossos prisioneiros?— Oh! diabo! é verdade — concedeu o oficial. — Entregai-lhes a guarda

aos criados.— Sim, para que nos fujam! — disse d'Artagnan. — De maneira

nenhuma.— São homens importantes assim para fazerdes tanto caso deles?— Se são! Um deles é um rico fidalgo da Turena; o outro, cavaleiro de

Malta de nobilíssima estirpe. Já tratamos do resgate: duas mil libras esterlinas ao chegarmos à França. Por conseguinte, não podemos deixar um instante sequer dois homens que os nossos criados sabem milionários. Revistamo-los um pouquinho quando os prendemos e é até com a bolsa deles que jogamos, o Sr. du Vallon e eu, todas as noites; mas podem ter-nos ocultado alguma pedra preciosa, algum brilhante de valor, de sorte que somos como os avarentos, que não deixam o seu tesouro; nós nos constituímos guardas permanentes dos nossos homens e, quando durmo, vela o Sr. du Vallon.

— Ah! ah! — fez Groslow.— Agora, portanto, compreendereis por que sou obrigado a recusar-vos

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o convite, que tanto mais me sensibiliza quanto é a coisa mais enfadonha do mundo jogar sempre com a mesma pessoa; as oportunidades se compensam constantemente e, ao termo de um mês, chega-se à conclusão de que ninguém ganhou e ninguém perdeu.

— Ah! — disse Groslow com um suspiro — há uma coisa ainda mais enfadonha: é não jogar.

— Compreendo-o perfeitamente — concordou d’Artagnan.— Mas, vejamos — tornou o inglês — são perigosos os vossos homens?— Em que sentido?— Seriam capazes de tentar um golpe de força? D’Artagnan desfechou a

rir.— Jesus! — exclamou; — um vive tremendo de febre, pois não há meio

de habituar-se ao clima do encantador país que habitais; o outro é um cavaleiro de Malta, tímido como uma rapariga; e, para maior segurança, até lhes tiramos os canivetes e as tesouras de bolso.

— Pois bem — propôs Groslow — trazei-os.— Como? — perguntou d’Artagnan.— Tenho oito homens.— E daí?— Quatro os guardarão e quatro guardarão o Rei.— De fato, a coisa pode arrumar-se assim, embora eu vos proporcione,

com isso, grande incômodo.— Incômodo nenhum! ide; vereis como se arranja a coisa.— Oh! nesse particular, não me preocupo; a um homem como vós,

entrego-me de olhos fechados.A última lisonja arrancou do oficial um desses risinhos que nos tornam

amigos dos que no-los provocam, pois são uma evaporação da vaidade acariciada.

— Mas — acudiu d'Artagnan — a propósito, que nos impede de começar esta noite?

— O quê?— A partida.— Nada — respondeu Groslow.— Vinde, então, esta noite à nossa casa e amanhã iremos retribuir a

visita. Se alguma coisa vos inquietar em relação aos nossos homens, que, como o sabeis, são realistas ferrenhos, daremos o assunto por encerrado e sempre teremos passado uma noite agradável.

— Esplêndido! Esta noite em vossa casa, amanhã na de Stuart e depois de amanhã na minha.

— E nos outros dias em Londres. Com todos os diabos! — exclamou

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d'Artagnan — como vedes, pode-se levar vida regalada em toda a parte.— Sim, quando se encontram franceses e franceses como vós — disse

Groslow.— E como o Sr. du Vallon; vereis que grande sujeito! frondista roxo,

homem que quase esmagou Mazarino entre duas portas; empregam-no porque o temem.

— De fato — conveio Groslow — tem boa cara, e se bem eu não o conheça, simpatizo imensamente com ele.

— Simpatizareis ainda mais quando o conhecerdes. A propósito, ei-lo que me chama! Perdão, somos tão íntimos que não pode passar sem mim. Com licença.

— Pois não.— Até à noite.— Em vossa casa?— Em minha casa.Os dois homens trocaram um cumprimento e d'Artagnan voltou para

junto dos companheiros.— Que diabo poderias conversar com esse buldogue? — Perguntou

Porthos.— Meu caro amigo, não fales assim do Sr. Groslow, que e um dos meus

amigos mais íntimos.— Amigo teu — acudiu Porthos — esse matador de camponeses?— Pssiu! meu caro Porthos. É verdade que o Sr. Groslow é meio

violento, mas eu lhe descobri, no íntimo, duas Qualidades: burrice e orgulho.Porthos escancarou os olhos assombrados, Athos e Ara-mis

entreolharam-se com um sorriso; conheciam d'Artagnan e sabiam-no incapaz de dar ponto sem nó.

— Mas — continuou d'Artagnan — tu mesmo o apreciarás.— Como assim?— Vou apresentar-to esta noite: ele virá jogar conosco.— Oh! oh! — exclamou Porthos, cujos olhos faiscaram ao ouvir essa

palavra — e é rico?— É filho de um dos mais opulentos negociantes de Londres.— Conhece o lansquenete?— Adora-o.. — O bacará?— Tem loucura por ele.— O biribi? (61)(61) Jogo parecido com o loto, que se jogava com um quadro dividido em casas

numeradas e bolas que traziam os números correspondentes. (N. do T.)

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— Pior ainda.— Passaremos, então, uma noite agradável.— Tanto mais agradável que ele nos prometeu outra melhor.— Quando?— Hoje o convidamos para jogar; amanhã é ele quem nos convida.— Onde?— Dir-te-ei daqui a pouco. Agora ocupemo-nos apenas de uma coisa:

receber dignamente a honra que nos faz o Sr. Groslow. Faremos alto esta noite em Derby; avie-se Mousqueton e, se houver uma garrafa de vinho em toda a cidade, compre-a. Também não haverá mal nenhum em que prepare um jantarzinho, do qual não poderás participar, Athos, porque estás com febre, nem tu, Aramis, porque és cavaleiro de Malta e conversas de soldados como nós te desagradam e fazem corar. Está entendido?

— Está — disse Porthos; — mas macacos me mordam se compreendo.— Porthos, meu amigo, sabes que descendo dos profetas por parte de pai

e das sibilas por parte de mãe e, conseqüentemente, só falo por parábolas e enigmas; escutem os que têm ouvidos e os que têm olhos vejam; por enquanto não posso dizer mais nada.

— Faze como quiseres, meu amigo — atalhou Athos — tenho a certeza de que o que fizeres será bem feito.

— E tu, Aramis, és da mesma opinião?— Exatamente, meu caro d'Artagnan.— Ainda bem — disse d'Artagnan — assim é que são os verdadeiros

crentes e dá gosto obrar milagres para eles; não como esse incrédulo Porthos, que está sempre querendo ver e tocar para crer.

— O fato — observou Porthos com ar sagaz — é que sou muito incrédulo.

D'Artagnan deu-lhe uma palmada no ombro e como, naquele momento, chegassem à parada para o almoço, a conversa ficou nisso.

Cerca das cinco horas da tarde, como fora combinado, mandaram Mousqueton na frente. Mousqueton não falava inglês, mas, depois de chegar à Inglaterra, observara uma coisa, a saber, que Grimaud substituíra perfeitamente a palavra pelo gesto. Pusera-se, portanto, a estudar os gestos de Grimaud e, depois de algumas lições, mercê da superioridade do mestre, chegara a adquirir certo desembaraço. Blaisois acompanhou-o.

Ao cruzarem a rua principal de Derby, os quatro amigos avistaram Blaisois parado à porta de uma casa de formosa aparência; lá se preparara o seu alojamento.

Durante todo o dia não se tinham aproximado do Rei, receosos de despertar suspeitas, e em vez de jantarem à mesa do Coronel Harrison, como

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haviam feito na véspera, jantaram sós.À hora aprazada, chegou Groslow. D'Artagnan recebeu-o como receberia

um amigo de vinte anos. Porthos examinou-o dos pés à cabeça e sorriu ao reconhecer que, a despeito do murro notável que ele pespegara no irmão de Parry, não tinha a sua força. Athos e Aramis fizeram o possível para disfarçar a repugnância que lhes causava a criatura grosseira e brutal.

Em suma, Groslow pareceu satisfeito com a recepção.Athos e Aramis mantiveram-se em seus papéis. À meia-noite recolheram

ao quarto, cuja porta, a pretexto de benevolência, ficou aberta. D'Artagnan acompanhou-os, deixando Porthos às voltas com Groslow.

Porthos ganhou cinqüenta pistolas de Groslow e achou, quando este se retirou, que a sua companhia era mais agradável do que a princípio imaginara.

Quanto a Groslow, jurou desforrar-se no dia seguinte, à custa de d'Artagnan, da derrota que lhe infligira Porthos, e despediu-se do gascão recordando-lhe o encontro daquela noite.

Dizemos daquela noite porque os jogadores se separaram às quatro da madrugada.

Passou-se o dia como de costume; d'Artagnan ia do Capitão Groslow ao Coronel Harrison e do Coronel Harrison aos amigos. Quem não o conhecesse julgá-lo-ia em seu elemento; mas os amigos, isto é, Athos e Aramis, perceberem que a sua alegria era febre.

— Que andará maquinando? — perguntava Aramis.— Esperemos — respondia Athos.Porthos não dizia nada, limitando-se a contar, uma por uma, no bolso

com manifesta satisfação, as cinqüenta pistolas que ganhara de Groslow.Ao chegarem, à noite, a Ryston, d'Artagnan reuniu os amigos. O seu

rosto perdera a máscara de alegria sem cuidados com que andara o dia inteiro; Athos apertou a mão de Aramis.

— Aproxima-se o momento? — perguntou.— Sim — respondeu d'Artagnan, que o ouvira — aproxima-se o

momento: esta noite, senhores, salvaremos o Rei.Athos estremeceu, faiscaram-lhe os olhos.— D'Artagnan — indagou ele, duvidando depois de ter esperado — isso

não é brincadeira, não é verdade? Se fosse, me seria penosíssimo.— É estranho, Athos — disse d'Artagnan — que assim duvides de mim.

Onde e quando me viste gracejar com o coração de um amigo e a vida de um rei? Eu te disse e repito: esta noite salvaremos Carlos I. Tu me encarregaste de encontrar um meio: pois o meio foi encontrado.

Porthos contemplava d'Artagnan com um sentimento de admiração

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profunda. Aramis sorria como um homem que espera. Mortalmente pálido, Athos tremia com todos os seus membros.

— Fala — disse Athos.Porthos arregalou os olhos, Aramis pendurou-se, por assim dizer, aos

lábios de d'Artagnan.— Sabias que fomos convidados a passar a noite em companhia do Sr.

Groslow?— Eu sabia — sobreveio Porthos. — Ele nos fez prometer que lhe

daríamos uma desforra.— Muito bem. Mas sabes onde lhe daremos a desforra?— Não.— Nos aposentos do Rei.— Nos aposentos do Rei! — exclamou Athos.— Sim, senhores, nos aposentos do Rei. Esta noite, o Sr. Groslow está

de guarda junto de Sua Majestade e, para distrair-se, convida-nos a fazer-lhe companhia.

— Os quatro? — perguntou Athos.— Naturalmente, os quatro; não podemos largar os prisioneiros.— Ah! ah! — casquinou Aramis.— Vejamos — disse Athos, palpitante.— Vamos, portanto, à procura de Groslow, nós com as nossas espadas e

vós com os vossos punhais; os quatro tomaremos conta daqueles oito imbecis e do seu estúpido comandante. Que vos parece, Sr. Porthos?

— Parece-me facílimo — redargüiu Porthos.— Vestiremos o Rei com os trajos de Groslow; Mousqueton, Grimaud e

Blaisois ficarão segurando os cavalos, aparelhados, na esquina da primeira rua; saltaremos neles e antes de despontar o dia estaremos a vinte léguas daqui.,. Hein? Está ou não está bem pensado isso, Athos?

Athos pousou ambas as mãos nos ombros de d'Artagnan e considerou-o com o seu olhar doce e calmo.

— Declaro, amigo — disse ele — que não há debaixo do céu criatura que te iguale em nobreza e coragem; enquanto te julgávamos indiferentes às nossas dores, que pode-rias, sem crime, não compartir, és o único dentre nós que encontra o que procuramos. Torno a repetir-te, portanto, d'Artagnan, és o melhor dentre nós, e eu te abençôo e te quero, meu querido filho.

— E dizer-se que não fui capaz de pensar nisso! — exclamou Porthos, dando uma palmada na testa. — Uma coisa tão simples!

— Mas — acudiu Aramis — se entendi direito, mataremos todos, não é verdade?

Athos estremeceu e ficou lívido.

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— Com a breca! — exclamou d'Artagnan — será preciso. Dei tratos à bola para encontrar um meio de evitá-lo, roas confesso que não o encontrei.

— Não se trata aqui de discutir o assunto; como faremos? — perguntou Aramis.

— Imaginei dois planos — respondeu d'Artagnan.— Vejamos o primeiro.— Se estivermos reunidos os quatro, ao meu sinal, e esse sinal será a

palavra enfim, cada um de vós enterrará o punhal no coração do soldado que se achar mais próximo e nós, do nosso lado, faremos o mesmo; estarão, portanto, quatro homens fora de combate; ficaremos em igualdade de condições, porque seremos quatro contra cinco; ou esses cinco se rendem e os amordaçamos, ou defendem-se e os matamos; se, por acaso, o nosso anfitrião mudar de idéia e só nos admitir a nós, isto é, a Porthos e a mim, paciência! para grandes males, grandes remédios; a coisa levará mais tempo e será um pouco mais bulhenta, mas ficareis de fora com a espada em punho e acorrereis quando ouvirdes barulho.

— E se fordes feridos em lugar de ferirdes? — perguntou Athos.— Impossível! — retrucou d'Artagnan — esses bebedores de cerveja são

pesadões e desastrados; aliás, visarás a garganta, Porthos, para matar mais depressa e evitar que a vítima se esgoele.

— Muito bem! — disse Porthos — será uma linda degolazinha.— Horrível! horrível — murmurou Athos.— Ora! senhor homem sensível — acudiu d'Artagnan — farias o mesmo

numa batalha. De mais a mais, amigo, se achas que a vida do Rei não vale o que deve custar, nada feito, e eu avisarei o Sr. Groslow de que estou doente.

— Não replicou Athos — tens razão, perdoa-me. Nesse momento a porta se abriu e surgiu um soldado.

— O Sr. Capitão Groslow — disse ele em mau francês — avisa o Sr. d'Artagnan e o Sr. du Vallon de que está à espera.

— Onde? — perguntou d'Artagnan.— No quarto do Nabucodonosor inglês — respondeu o soldado, puritano

às direitas.— Está bem — retorquiu em excelente inglês Athos, que se purpureara

ao ouvir o insulto dirigido à majestade real — está bem; dizei ao Capitão Groslow que vamos já.

Saiu o puritano; os criados tinham recebido ordem de arrear oito cavalos e esperar, sem se separarem uns dos outros e sem apearem, na esquina de uma rua situada a uns vinte passos, mais ou menos, da casa em que estava El-Rei.

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CAPÍTULO III

A PARTIDA DE LANSQUENETE

ERAM, de fato, nove horas da noite; as sentinelas tinham sido rendidas às oito e fazia uma hora que principiara a guarda do Capitão Groslow. D'Artagnan e Porthos armados de suas espadas e Athos e Aramis levando cada qual um punhal escondido no seio, encaminharam-se para a casa que nessa noite servia de prisão a Carlos Stuart. Os dois últimos seguiam os captores, aparentemente humildes e desarmados, como cativos.

— À minha fé — disse Groslow ao vê-los — eu quase já não contava convosco.

D'Artagnan aproximou-se dele e disse-lhe baixinho:— Com efeito, o Sr. du Vallon e eu hesitamos um pouco.— Por quê?D'Artagnan indicou, com os olhos, Athos e Aramis.— Ah! ah! — tornou Groslow — por causa das opiniões? Pouco

importa. Pelo contrário — ajuntou, dando risada — se querem ver o seu Stuart, hão de vê-lo.

— Passaremos a noite no quarto do Rei? — perguntou d'Artagnan.— Não, no quarto pegado; mas como a porta ficará aberta, é como se

estivéssemos no mesmo. Trouxestes dinheiro? Declaro-vos que pretendo jogar esta noite um jogo infernal.

— Ouvis? — perguntou d'Artagnan fazendo tilintar o ouro no bolso.— Very good! — disse Groslow, e abriu a porta do quarto. — Para

mostrar-vos o caminho, senhores — acrescentou.E entrou na frente.D'Artagnan voltou-se para os amigos. Porthos mostrava-se indiferente

como se se tratasse de uma partida comum; Athos, pálido mas resoluto; Aramis enxugava com um lenço a testa úmida de suor.

Os oito guardas estavam em seus postos: quatro no quarto do Rei, dois na porta de comunicação, dois na porta pela qual entraram os recém-chegados. À vista das espadas nuas, Athos sorriu: não seria, pois, uma carniçaria, mas um combate.

A partir desse momento pareceu reassumir todo o seu bom humor.Visível através de uma porta aberta, jazia Carlos, vestido, sobre a cama e

estendeu sobre o corpo uma simples coberta de lã.

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À cabeceira, Parry, sentado, lia em voz baixa, mas suficientemente alta para que Carlos, que escutava com os olhos cerrados, pudesse ouvi-lo, um capítulo de uma Bíblia católica.

Sobre uma mesa preta, uma vela grosseira de sebo alumiava o rosto resignado do Rei e o rosto infinitamente menos calmo do fiel servidor.

De tempos a tempos Parry se interrompia, imaginando que o Rei dormisse; mas este reabria os olhos e dizia-lhe sorrindo:

— Continua, meu bom Parry, estou ouvindo. Groslow adiantou-se até o limiar do quarto do Rei, repôs com afetação na cabeça o chapéu que tirara para receber os hóspedes, contemplou por um instante com desdém o quadro simples e tocante de um velho servidor lendo a Bíblia para o rei prisioneiro, certificou-se de que cada homem se encontrava no posto que ele designara, e, voltando-se para d'Artagnan, considerou com expressão triunfal o francês, como que a mendigar um elogio pela sua estratégia.

— Magnífico — disse o gascão; — com a fortuna! Sereis um distinto general.

— E acreditais — perguntou Groslow — que enquanto eu estiver de guarda possa muscar-se o Stuart?

— Está visto que não — respondeu d’Artagnan — a menos que lhe caiam amigos do céu.

Iluminou-se o semblante de Groslow.Como Carlos Stuart houvesse conservado durante toda a cena os olhos

fechados, não se poderia dizer que tivesse ou não dado tino da insolência do capitão puritano. Mas assim que ouviu o timbre acentuado da voz de d’Artagnan, reabriram-se-lhe as pálpebras.

Parry, de seu lado, estremeceu e interrompeu a leitura.— A troco de que te interrompeste? — perguntou o Rei. — Continua,

meu bom Parry, continua, a menos que estejais cansado.— Não, Sire — retorquiu o criado. E reencetou a leitura.Preparara-se uma mesa no primeiro quarto e, sobre essa mesa, recoberta

com um pano, viam-se dois castiçais acesos, cartas, copos e dados.— Senhores — disse Groslow — assentai-vos, por obséquio; eu,

defronte do Stuart, que gosto tanto de ver, sobretudo no lugar em que ele está; vós, Sr. d'Artagnan, diante de mim.

Athos fez-se vermelho de cólera e d'Artagnan encarou-o franzindo o cenho.

— Isso mesmo — disse d'Artagnan; — vós, Sr. Conde de La Fere, à direita do Sr. Groslow; vós, Sr. Cavaleiro d'Herblay, à sua esquerda; tu, du Vallon, perto de mim. Apostarás por mim e aqueles senhores pelo Sr. Groslow.

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D'Artagnan dispusera os amigos de forma que, tendo Porthos à esquerda, pudesse falar-lhe com o joelho, e tendo Athos e Aramis à frente, pudesse dominá-los com a vista.

Ouvindo os nomes do Conde de La Fere e do Cavaleiro d'Herblay, Carlos descerrou os olhos e, mau grado seu, erguendo a nobre cabeça, abrangeu com o olhar todos os atores da cena.

Nesse momento Parry virou algumas folhas da Bíblia e" leu, em voz alta, este versículo de Jeremias: "Isto diz o Senhor: Escutai as palavras dos profetas meus servos, que eu vos tenho enviado, com grande cuidado, e dirigido para vós."

Os quatro amigos entreolharam-se. As palavras que Parry acabava de pronunciar eram indício de que o Rei atribuía a presença deles ao seu verdadeiro motivo.

Os olhos de d'Artagnan cintilaram de alegria.— Vós me perguntastes há pouco se eu trouxe dinheiro?— inquiriu d'Artagnan colocando uma vintena de pistolas sobro a mesa.— Perguntei — respondeu Groslow.— E eu vos digo por meu turno — volveu d'Artagnan: — guardai bem o

vosso tesouro, meu caro Sr. Groslow, pois garanto que não sairemos daqui sem levá-lo.

— E não o levareis sem que eu o defenda — refutou Groslow.— Tanto melhor — tornou d'Artagnan. — Batalha, meu caro Capitão,

batalha! Como sabeis, ou não sabeis, é precisamente o que desejamos.— Ah! sim, eu sei — disse Groslow, desfechando a rir estrepitosamente

— vós, os franceses, não pensais senão em gaios e feridas.Carlos, com efeito, ouvira e compreendera tudo. Leve rubor coloriu-lhe o

rosto. Os soldados que o guardavam viram-no, a pouco e pouco, esticar os membros fatigados e, a pretexto do calor excessivo, provocado pela lareira muito quente, lançar de si a coberta escocesa sob a qual, como dissemos, se deitara vestido.

Athos e Aramis estremeceram de alegria ao ver que o Rei já estava pronto.

Principiou o jogo. Nessa noite a sorte mudara e favorecia Groslow, que ganhava sempre. Uma centena de pistolas passou-se assim de um lado para o outro da mesa. Groslow não cabia em si de contente.

Porthos, que perdera as cinqüenta pistolas ganhas na véspera e, além disso, cerca de trinta pistolas suas, estava de muito mau humor e interrogava d'Artagnan com o joelho, como que a perguntar-lhe se já não era tempo de passarem a outro jogo; de seu lado, Athos e Aramis o consideravam com olhos perscrutadores, mas d'Artagnan permanecia impassível.

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Soaram dez horas. Ouviu-se a ronda que passava.— Quantas rondas fazeis como esta? — perguntou d’Artagnan tirando

novas pistolas do bolso.— Cinco — disse Groslow — uma de duas em duas horas.— Bem — tornou d'Artagnan — é prudente.E, por sua vez, dirigiu um olhar a Athos e a Aramis.Ouviram-se os passos da patrulha, que se distanciava.D'Artagnan respondeu pela primeira vez à joelhada de Porthos com uma

joelhada semelhante.Entretanto, levados pela atração do jogo e pela vista do ouro, tão

poderosa em todos os homens, os soldados, que tinham recebido ordem para ficar no quarto do Rei, haviam-se, aos poucos, aproximado da porta e, erguendo-se na ponta dos pés, olhavam por cima do ombro de d'Artagnan e de Porthos; os da porta também se tinham avizinhado, secundando os desejos dos quatro amigos, que preferiam tê-los à mão a correr-lhes no encalço pelos quatro cantos do quarto. As duas sentinelas da porta conservavam as espadas desembainhadas, mas apoiavam-se nelas e contemplavam os jogadores.

Athos parecia acalmar-se à proporção que se avizinhava o momento; as suas mãos brancas e aristocráticas brincavam com luíses, que ele entortava e desentortava com facilidade, como se fossem de estanho e não de ouro; menos senhor de si, Aramis apalpava constantemente a camisa; perdendo a paciência com o dinheiro que perdia, Porthos distribuía joelhadas frenéticas.

D'Artagnan voltou-se, olhando maquinalmente para trás, e viu, entre dois soldados, Parry em pé e Carlos apoiado sobre o cotovelo, com as mãos juntas, como se dirigisse a Deus fervorosa oração. Compreendeu que chegara o momento, que cada qual estava em seu posto e seu posto e só esperava palavra: "Enfim!", isto é, o sinal convencionado.

Dirigiu um olhar preparatório a Athos e a Aramis, e ambos afastaram levemente a cadeira para ter maior liberdade de movimentos.

Pespegou segunda joelhada em Porthos, e este se ergueu, como se quisesse desentorpecer as pernas; mas, ao fazê-lo, certificou-se de que poderia arrancar facilmente a espada da bainha.

— Com a breca! — disse d'Artagnan — mais vinte pistolas perdidas! Na verdade, Capitão Groslow, tendes muita sorte e isso não pode durar.

E tirou outras vinte pistolas do bolso.— Uma derradeira volta, Capitão. Vinte pistolas de uma vez só, a última.— Seja — concordou Groslow.E virou duas cartas, como é costume, um rei para d’Artagnan, um ás para

si.

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— Um rei — disse d'Artagnan — é de bom augúrio. Mestre Groslow — ajuntou ele — cuidado com o rei.

E, a despeito do domínio que exercia sobre si mesmo, não conseguiu abafar a estranha vibração de sua voz, que fez estremecer o parceiro.

Groslow principiou a virar as cartas, umas depois das outras. Se virasse primeiro um ás, ganharia; se virasse um rei, teria perdido.

Virou um rei.— Enfim! — exclamou d'Artagnan.A essa palavra, Athos e Aramis se levantaram, Porthos recuou um passo.Punhais e espadas iam brilhar, quando, de repente, a porta se abriu e

Harrison apareceu, acompanhado de um homem encapuçado.Atrás desse homem viam-se brilhar os mosquetes de cinco ou seis

soldados.Ergueu-se Groslow rapidamente, correndo-se de ser surpreendido entre

garrafas de vinho, cartas e dados. Mas Harrison não pôs reparo nele e, entrando no quarto do Rei, seguido do companheiro:

— Carlos Stuart — declarou — temos ordem para conduzir-vos a Londres numa etapa só, sem paradas. Aprestai-vos, portanto, para partir neste instante.

— E da parte de quem recebestes a ordem? — perguntou o Rei. — Da parte do General Olivério Cromwell?

— Sim — disse Harrison — e aqui está o Sr. Mordaunt, que acaba de trazê-la e foi encarregado de pô-la em execução.

— Mordaunt! — murmuraram os quatro amigos, entreolhando-se.D'Artagnan levantou da mesa todo o dinheiro que Porthos e ele haviam

perdido e meteu-o na vastíssima algibeira; Athos e Aramis postaram-se atrás deles. A esse movimento voltou-se Mordaunt, reconheceu-os e soltou uma exclamação de alegria selvagem.

— Creio que fomos apanhados — disse d'Artagnan baixinho aos amigos.— Ainda não — retrucou Porthos.— Coronel! coronel! — exclamou Mordaunt — mandai cercar este

quarto, fostes traído. Esses franceses fugiram de Newcastle e querem, de certo, raptar o Rei. Mandai prendê-los.

— Oh! rapazinho — disse d'Artagnan puxando da espada— aí está uma ordem mais fácil de dar que de executar.

E, descrevendo à sua volta um terrível molinete:— Retirar, amigos — gritou — retirar!Ao mesmo tempo, correu para a porta, derrubou dois soldados que a

guardavam, sem lhes dar tempo de armarem os mosquetes; Athos e Aramis seguiram-no; Porthos fechava a retaguarda, e antes que os soldados, oficiais

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e o Coronel tivessem podido precatar-se, os quatro amigos já estavam na rua.— Fogo! — gritou Mordaunt — fogo sobre eles! Soaram, efetivamente,

dois ou três tiros de mosquete, mas não surtiram outro efeito que o de mostrar os quatro fugitivos virando, sãos e salvos, a esquina da rua.

...fogo sobre eles!

Encontravam-se os cavalos no lugar designado; aos criados bastou atirar as rédeas aos amos, que se viram montados com a ligeireza de consumados cavaleiros.

— Para a frente! — bradou d'Artagnan — a toda brida! Assim correram

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seguindo d'Artagnan e retomando o caminho que já haviam percorrido durante o dia, isto é, na direção da Escócia. A aldeia não tinha portas nem muros, de sorte que puderam sair sem dificuldades.

A cinqüenta passos da última casa, d'Artagnan parou.—Alto! — disse ele.— Alto por quê? — exclamou Porthos. —Sebo nas canelas, é o que

queres dizer.— De forma nenhuma — respondeu d'Artagnan. — Desta vez vão

perseguir-nos; deixemo-los sair da aldeia e correr atrás de nós pela estrada; e quando tiverem passado a galope, tomaremos a direção oposta.

A alguns passos de lá fluía um ribeirão, sobre o qual se estendia uma ponte; d'Artagnan conduziu o cavalo para baixo do arco da ponte; os amigos seguiram-no.

Não fazia dez minutos que lá estavam quando ouviram aproximar-se o rápido tropel de uma cavalgata. Cinco minutos depois passavam os cavaleiros sobre as suas cabeças, muito longe de suspeitarem que dos perseguidos só os separava a espessura da abóbada da ponte.

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CAPÍTULO IV

LONDRES

QUANDO se perdeu ao longe o ruído dos cavalos, d’Artagnan voltou à ribanceira do riacho e pôs-se a galopar pela planície fora, procurando seguir quanto possível a direção de Londres. Os três amigos acompanharam-no em silêncio, até que, depois de descreverem largo semicírculo, deixaram a cidadezinha bem distante.

— Desta vez — disse d'Artagnan quando, afinal, se julgou suficientemente afastado do ponto de partida para passar do galope ao trote — creio, decididamente, que tudo está perdido, e que o melhor que nos resta fazer é voltarmos à França. Que dizes do alvitre, Athos? Não te parece sensato?

— Sim, caro amigo — respondeu Athos; — mas tu pronunciaste outro dia uma frase mais do que sensata, uma frase nobre e generosa; disseste: "Morreremos aqui!" Quero lembrar-te essas palavras.

— Oh! — acudiu Porthos — a morte não é nada, e não ê a morte que deve inquietar-nos, pois sabemos o que é; mas a idéia de uma derrota me atormenta. No pé em que estão as coisas vejo que teremos de combater em Londres, nas províncias, em toda a Inglaterra, e, mais cedo ou mais tarde, acabaremos vencidos.

— Devemos assistir a essa grande tragédia até o fim. — disse Athos; — seja ele qual for, só deixaremos a Inglaterra após o desfecho. Não pensas como eu, Aramis?

— Exatamente, meu caro Conde; além disso, confesso que não me desgostaria encontrar de novo o Mordaunt; parece-me que temos contas que ajustar com ele, e não é costume nosso sair sem pagar essa espécie de dívida.

— Ah! isso é outra coisa — acudiu d'Artagnan — e o argumento me parece plausível. Enquanto a mim, confesso que ficaria um ano inteiro em Londres, se preciso fosse, para reencontrar o tal Mordaunt. Entretanto, é mister que nos alojemos em casa de um homem de confiança e sem despertarmos suspeitas, porque a esta hora o Sr. Cromwell deve estar-nos procurando, e, pelo que já me foi dado observar, o Sr. Cromwell não brinca. Conheces, acaso, Athos, em toda a cidade uma estalagem em que se encontrem lençóis brancos, rosbifes razoavelmente passados e vinho que não seja feito de lúpulo ou genebra?

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— Creio que tenho o que nos convém — replicou Athos. ,— De Winter conduziu-nos à casa de um homem que se diz antigo espanhol naturalizado inglês pelos guinéus dos novos compatriotas. Que achas, Aramis?

— Acho que o projeto de ficarmos em casa do senor Perez me parece dos mais razoáveis e, por conseguinte, adoto-o por meu. Invocaremos a lembrança do pobre de Winter, a que ele parecia votar grande veneração; dir-lhe-emos que desejamos assistir, como amadores, ao que se passa; gastaremos em sua casa um guinéu por dia cada um, e creio que, com todas essas precauções, poderemos ficar tranqüilos.

— Esqueceste uma precaução importantíssima, Aramis.— Qual?— A de mudarmos de trajos.— Ora! — atalhou Porthos — para que, se estamos tão bem com os

nossos?— Para não sermos reconhecidos — retrucou d’Artagnan. — As nossas

roupas têm um corte e uma cor quase uniformes, que à primeira vista denunciam o Frenchman. Ora, não aprecio tanto o corte do meu gibão nem a cor de minhas calças que me arrisque, por amor deles, a ser enforcado em Tyburn ou a dar um passeio pelas Índias. Vou comprar para mim um fato castanho. Já notei que todos esses puritanos idiotas adoram o castanho.

— Mas serás capaz de encontrar o homem? — perguntou Aramis.— Oh! sem dúvida! Ele morava em Green-Hall Street, na Bedford's

Tavern; aliás, oriento-me na cidade com olhos fechados.— Eu quisera já estar lá — confessou d’Artagnan — e sou de opinião

que deveríamos chegar a Londres antes do romper do dia, ainda que, para isso, precisássemos rebentar os cavalos.

— Então vamos — disse Athos — pois se não erro nos cálculos, devemos estar a umas oito ou dez léguas da capital.

Os amigos esporearam as montadas e, efetivamente, chegaram a Londres às cinco da madrugada. À porta pela qual entraram deteve-os uma sentinela; mas Athos respondeu em inglês excelente que tinham sido enviados pelo Coronel Harrison para prevenir o seu colega, o Sr. Pridge, da próxima chegada do Rei. A resposta provocou algumas perguntas sobre a prisão do Rei, e Athos forneceu pormenores tão precisos e positivos que, se as sentinelas nutriam algumas suspeitas, estas se desvaneceram de todo em todo. Puderam, assim, passar livremente os quatro amigos, acompanhados de toda a sorte de congratulações puritanas.

Athos dissera verdade; encaminhou-se diretamente para a Bedford's Tavern e fez-se reconhecer do estalajadeiro, que ficou encantado ao vê-lo voltar em tão numerosa e bela companhia e mandou preparar imediatamente

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os melhores aposentos.Ao chegarem, se bem não houvesse ainda despontado o dia, tinham os

nossos quatro viajantes encontrado Londres alvorotada. A notícia de que o Rei, trazido pelo Coronel Harrison, se aproximava da capital, propalara-se desde a véspera, e muita gente não se deitara ainda com medo de que o Stuart, como lhe chamava, chegasse durante a noite e ninguém pudesse assistir à sua entrada.

O projeto da troca de roupas fora, como o leitor estará lembrado, unanimemente adotado, a não ser a leve oposição de Porthos. Cuidaram, portanto, de pô-lo por obra. O estalajadeiro mandou buscar vestimentas de toda a casta, como se pretendesse renovar o seu guarda-roupa. Athos escolheu um fato novo, que lhe dava o aspecto de honrado burguês; Aramis, que não queria largar a espada, preferiu uma andaina escura, de corte militar; Porthos sentiu-se seduzido por um gibão vermelho e calças verdes; d'Artagnan, que já escolhera de antemão a cor da sua farpeia, limitou-se a escolher-lhe o tom, e, assim vestido, parecia exatamente um negociante de açúcar aposentado.

Quanto a Grimaud e a Mousqueton, que não traziam libré, já estavam naturalmente disfarçados; Grimaud, aliás, oferecia o tipo calmo, seco e teso do inglês circunspecto; Mousqueton, o do inglês ventrudo, papudo e preguiçoso.

— Agora — disse d'Artagnan — vamos ao principal; cortemos os cabelos para não sermos insultados pela ralé. Visto que já não somos fidalgos pela espada, sejamos puritanos pelo corte de cabelo. Como sabeis, é esse o ponto importante que distingue o convencional do cavaleiro.

Nesse ponto de tamanha relevância, d'Artagnan encontrou Aramis sumamente renitente, pois queria, a todo custo, conservar a cabeleira, formosa e muito bem cuidada, e foi preciso que Athos, indiferente a todas essas questões, lhe desse o exemplo. Porthos entregou sem dificuldade a cabeça a Mousqueton, que lhe tosou, com grandes tesouradas, a espessa e rude gaforinha. D'Artagnan compôs para si um penteado de fantasia, que lembrava uma medalha do tempo de Francisco I ou de Carlos IX.

— Estamos medonhos — observou Athos.— E cheiramos de longe a puritanos — ajuntou Aramis.— Agora — volveu Athos — que nem sequer nos reconhecemos a nós

mesmos, e, por conseguinte, não temos receio de que outros nos reconheçam, vamos assistir à entrada do Rei: se caminhou a noite toda, não deve estar longe.

De feito, menos de duas horas depois de se haverem os quatro amigos misturado à multidão, terrível gritaria e um grande movimento anunciaram a

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chegada de Carlos. Tinham mandado um carro na frente dele e, de longe, o gigantesco Porthos, cuja cabeça ultrapassava todas as outras, afirmou que via aproximar-se o coche real. Ergueu-se' d'Artagnan na ponta dos pés, ao passo que Athos e Aramis escutavam para auscultar a opinião popular. Passou o carro e d'Artagnan reconheceu Harrison numa das portinholas e Mordaunt na outra. O povo, cujas impressões estudavam Athos e Aramis, imprecava contra o soberano.

Athos voltou desesperado para casa.— Meu caro — disse-lhe d'Artagnan — teimas inutilmente e eu te

afianço que a situação é má. Só me interesso por ela por tua causa e por certa curiosidade de artista amante da política à mosqueteira; acho que seria uma delícia furtar a presa de todos esses berradores e achincalhá-los. Pensarei no caso.

Desde o dia seguinte, assomando à janela, que dava para os bairros mais populosos da City, ouviu Athos apregoado o bil do Parlamento, que ordenava fosse apresentado à barra do tribunal o ex-Rei Carlos I, acusado de traição e de abuso de poder.

D'Artagnan estava ao seu lado. Aramis consultava um mapa, Porthos absorvia-se nas últimas delícias de suculento almoço.

— O Parlamento! — bradou Athos — não é possível Que o Parlamento tenha promulgado um bil assim.

— Escuta — disse d'Artagnan; — pouco entendo inglês; mas como o inglês não é mais que o francês mal pronunciado, eis o que entendo: Parliaments bill quer dizer bil do Parlamento, ou Deus me dane, como dizem por aqui.

Nesse momento entrava o hospedeiro; Athos fez-lhe sinal que se acercasse.

— O Parlamento promulgou esse bil? — perguntou-lhe.— Sim, Milorde, o Parlamento puro.— O Parlamento puro? Como? Há, então, dois parlamentos?— Meu amigo — interrompeu-o d'Artagnan — como não entendo

inglês, mas todos entendemos castelhano, fazei-nos o favor de falar nessa língua, que é a vossa, e que, por conseqüência, deveis falar com prazer sempre que se apresenta a ocasião.

— Perfeito! — emendou Aramis.Quanto a Porthos, como dissemos, toda a sua atenção concentrava-se

numa costeleta, cuja carne tasquinhava até o último fiapo.— Perguntáveis, então? — volveu o estalajadeiro em castelhano.— Eu perguntava — repetiu Athos na mesma língua — se havia dois

parlamentos, o puro e o impuro.

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— Que coisa esquisita! — exclamou Porthos erguendo lentamente a cabeça e considerando os amigos com espanto — será que já estou compreendendo inglês? Entendo tudo o que dizeis.

— Estamos falando castelhano, meu caro amigo — replicou Athos com o costumeiro sangue-frio.

— Oh! diabo! — volveu Porthos; — é pena porque, assim, eu ficaria conhecendo mais uma língua.

— Quando digo Parlamento puro, senor — continuou o locandeiro — refiro-me ao que o Sr. Coronel Pridge purgou.

— Com efeito — acudiu d'Artagnan — essa gente daqui é bem engenhosa; quando eu voltar à França, ensinarei esse processo ao Sr. de Mazarino e ao Sr. Coadjutor. Um purgará em nome da Corte,- o outro em nome do povo, e assim acabará de uma vez o Parlamento.

— Quem é esse Coronel Pridge? — perguntou Aramis — e como se houve ele para purgar o Parlamento?

— O Coronel Pridge — respondeu o espanhol — é um antigo carroceiro, homem de muito espírito, que observara uma coisa ao guiar a sua carroça: quando encontrava uma pedra no caminho, era mais fácil remover a pedra do que obrigar a roda a passar por cima. Ora, dos duzentos e cinqüenta e um membros de que se compunha o Parlamento, cento e noventa e um o estorvavam e poderiam ter-lhe derrubado a carroça política. Ergueu-os como outrora erguia as pedras e atirou-os fora da Câmara.

— Lindo! — exclamou d'Artagnan, que, como homem de espírito, sabia admirar o espírito onde o encontrava.

— E todos os expulsos eram partidário de El-Rei? — perguntou Athos.— Sem dúvida alguma, senor, e o teriam, naturalmente, salvado.— Naturalmente! — sobreveio, majestoso, Porthos — pois se eram

maioria!— E cuidais — atalhou Aramis — que ele consinta em comparecer

perante tal tribunal?— Terá que fazê-lo — respondeu o espanhol; — se tentasse recusar, o

povo o obrigaria.— Obrigado, mestre Perez — disse Athos; — estou agora

suficientemente esclarecido.— Começas, afinal, a compreender que a causa está perdida, Athos? —

acudiu d’Artagnan — e que com os Harrisons, os Joyces, os Pridges e os Cromwells, nunca poderemos ser bem sucedidos?

— O Rei será libertado pelo tribunal — disse Athos; — o próprio silêncio de seus partidários indica uma conjuração.

D’Artagnan deu de ombros.

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— E se se atreverem a condenar o Rei — volveu Aramis— poderão, quando muito, condená-lo ao exílio ou à prisão.D’Artagnan principiou a assobiar com um arzinho de incredulidade.— Veremos — disse Athos; — pois imagino que assistiremos às sessões.— Não tereis que esperar muito tempo — tornou o estalajadeiro; — elas

iniciam-se amanhã.— Ah! — exclamou Athos — quer dizer que o processo foi instaurado

antes que o Rei fosse preso?— Sem dúvida — acudiu d’Artagnan — foi iniciado no dia em que o

compraram.— Sabeis — disse Aramis — que foi o nosso amigo Mordaunt quem

realizou, senão o negócio, pelo menos os preparativos?— Sabeis — emendou d’Artagnan — que, onde quer que ele me caia nas

mãos, eu mato o Sr. Mordaunt?— Ora! — exclamou Athos — um miserável daqueles!— Mas é precisamente por ser um miserável que o mato— volveu d'Artagnan. — Ah! meu caro amigo, faço tanto as tuas

vontades que bem podes ser indulgente para com as minhas; aliás, desta vez, quer te agrade quer não, declaro que esse Mordaunt só será morto por mim.

— E por mim — ajuntou Porthos.— E por mim — acrescentou Aramis.— Tocante unanimidade — exclamou d'Artagnan — e que convém

perfeitamente a bons burgueses como nós. Vamos dar uma volta pela cidade; nem o próprio Mordaunt seria capaz de reconhecer-nos no meio de tanta neblina. Vamos beber um pouco de neblina.

— Vamos — disse Porthos — que isso, pelo menos, nos descansará da cerveja.

E os quatro amigos saíram para tomar, como se diz vulgarmente, os ares da terra.

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CAPÍTULO V

O PROCESSO

No dia seguinte, numerosa guarda conduziu Carlos I à presença da alta corte que deveria julgá-lo.

A multidão invadia as ruas e as casas vizinhas do palácio; desde os primeiros passos que deram, viram-se os quatro amigos detidos pelo obstáculo quase intransponível daquele muro vivo; robustos e rixosos, alguns homens do povo chegaram a empurrar Aramis com tanta força, que Porthos ergueu o punho formidável e deixou-o cair sobre o rosto farinhento de um padeiro, que mudou imediatamente de cor e cobriu-se de sangue, esborrachado como se fosse um cacho de uvas maduras. O caso provocou tumulto; três homens quiseram precipitar-se sobre Porthos; mas Athos afastou um deles, d’Artagnan outro e Porthos atirou o terceiro por cima da cabeça. Alguns ingleses amantes do pugilismo apreciaram a maneira rápida e fácil com que se operara a manobra, e bateram palmas. Pouco faltou para que, em vez de serem escorchados, fossem Porthos e seus amigos carregados em triunfo; mas os quatro companheiros, que temiam tudo o que pudesse colocá-los em evidência, lograram fugir à ovação. Uma coisa, porém, ganharam com a demonstração hercúlea: a multidão abriu-se diante deles e assim chegaram ao resultado que, pouco antes, lhes parecera impossível, a saber, aproximar-se do palácio.

Londres inteira aglomerava-se nas portas das galerias, de tal sorte que, ao penetrarem numa delas, os quatro amigos encontraram ocupados os três primeiros bancos, o que, aliás, não representava grande inconveniente para eles, que não desejavam ser reconhecidos; tomaram, portanto, os seus lugares, satisfeitíssimos pelo simples fato de haverem chegado até lá, exceto Porthos, que desejava estadear o gibão vermelho e as calças verdes e lamentava não figurar na primeira fila.

Dispunham-se os bancos a modo de anfiteatro, e de seus lugares dominavam os quatro franceses toda a assembléia. O acaso levara-os precisamente a entrar na tribuna do meio, defronte da poltrona preparada para Carlos I.

Cerca das onze horas da manhã entrou o Rei na sala, cercado de guardas, mas com a cabeça coberta e aspecto calmo, e relanceou por todos os lados um olhar cheio de confiança, como se tivesse vindo presidir uma assembléia de súditos submissos e não responder às acusações de um tribunal

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revolucionário.Orgulhosos por terem um rei para humilhar, preparavam-se

manifestamente os juizes para usar do direito que se tinham arrogado. Por conseguinte, um meirinho foi dizer a Carlos I que os acusados costumavam descobrir-se diante do tribunal.

Sem responder uma palavra, Carlos enfiou ainda mais o chapéu na cabeça, que virou para outro lado; depois, quando o meirinho se arredou, sentou-se na poltrona colocada defronte do presidente, fustigando a bota com uma haste de junco que trazia.

Parry, que o acompanhava, permaneceu em pé atrás dele.Em vez de observar o cerimonial, d'Artagnan fitara os olhos de Athos,

cujo rosto refletia todas as emoções que o Rei, pelo domínio que tinha sobre si, alcançava expulsar do seu. Essa agitação de Athos, homem frio e calmo, assustou-o.

— Espero — disse, inclinando-se-lhe ao ouvido — que seguirás o exemplo de Sua Majestade e não deixarás que te matem nesta gaiola.

— Fica descansado — prometeu Athos.— Ah! ah! — continuou d'Artagnan — parece que receiam alguma

coisa, pois a guarda está sendo reforçada; só tínhamos alabardas, agora já temos mosquetes. E todos recebem o seu quinhão: as alabardas são para o auditório, os mosquetes para nós.

— Trinta, quarenta, cinqüenta, setenta homens — disse Porthos, contando os recém-chegados.

— Eh! — acudiu Aramis — esqueceste o oficial, Porthos; parece-me, entretanto, que bem vale a pena de ser contado.

— Sim, senhor! — sobreveio d'Artagnan.E ficou pálido de raiva, pois reconhecera Mordaunt, que, com a espada

desembainhada, colocava os mosqueteiros atrás do Rei, isto é, na frente das tribunas.

— Ter-nos-á reconhecido? — continuou d'Artagnan; — nesse caso, baterei prestissimamente em retirada; não quero de maneira alguma que me imponham um gênero de morte e desejo morrer a meu gosto. Ora, não gosto de ser fuzilado numa gaiola.

— Não — retorquiu Aramis — não nos viu. Tem olhos apenas para El-Rei. Irra! e como o encara, o insolente! Terá tanto ódio ao Rei como nos tem a nós?

— Pudera! — disse Athos — nós só lhe tiramos a mãe. e o Rei despojou-o do nome e dos bens.

— É justo — disse Aramis; — mas, silêncio! O Presidente está falando ao Rei.

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De fato, o Presidente Bradshaw (62) interpelava o augusto acusado.62) John Bradshaw, advogado, amigo de Milton, foi nomeado, após a condenação de

Carlos I, Presidente do Parlamento, obteve uma guarda para a sua segurança pessoal, alojamento em Westminster, uma soma de 5.000 libras esterlinas e domínios consideráveis. (N. do T.)

— Stuart — disse-lhe — escutai a chamada nominal de vossos juizes e dirigi ao tribunal as observações que tiverdes de fazer.

Como se essas palavras não lhe fossem dirigidas, o Rei virou a cabeça para outro lado.

O Presidente esperou e, não obtendo resposta, permaneceu um momento em silêncio.

Dos cento e sessenta e três membros designados só setenta e três podiam responder, pois os outros, aterrados com a cumplicidade de semelhante ato, não haviam comparecido.

— Procederei à chamada — disse Bradshaw, sem parecer notar a ausência de três quintos da assembléia.

E principiou a nomear, um depois do outro, os membros presentes e ausentes. Os presentes respondiam com voz fraca ou forte, segundo tinham ou não a coragem das próprias opiniões. Curto silêncio seguia o nome dos ausentes, repetido duas vezes.

O nome do Coronel Fairfax (63) foi pronunciado e seguido de um desses silêncios curtos, mas solenes, que indicavam a ausência dos membros que não tinham querido participar pessoalmente do julgamento.

(63) Lorde Thomas Fairfax foi general em chefe das tropas parlamentares que venceram os realistas em Marston-Moor e Naseby. Quando, porém, Cromwell quis enforcar o infeliz Carlos I, Fairfax negou-se a participar do tribunal que o condenou. Após a morte de Cromwell, contribuiu para a restauração de Carlos II. (N. do T.)

— Coronel Fairfax? — repetiu Bradshaw.— Fairfax? — respondeu uma voz chocarreira, que, pelo timbre

argentino, só podia ser de mulher — tem espírito demais para estar aqui.Imensa gargalhada acolheu essas palavras, pronunciadas com a audácia

que as mulheres tiram da própria fraqueza, fraqueza que as defende de qualquer vingança.

— É voz de mulher — bradou Aramis. — Eu daria tudo para que fosse jovem e bonita!

E subiu no banco para examinar a tribuna de onde partira a voz.— Por minha alma — disse Aramis — é encantadora! Olha para ela,

d’Artagnan! Toda a gente a contempla e, apesar do olhar de Bradshaw, não se intimida.

— É a própria Lady Fairfax — disse d'Artagnan; — não te lembras,

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Porthos? Vimo-la com o marido em casa do General Cromwell.Ao cabo de um instante, restabeleceu-se a calma perturbada pelo

estranho episódio, e a chamada continuou.— Esses patifes levantarão a sessão quando perceberem que não têm

quorum — afirmou o Conde de La Fere.— Não os conheces, Athos; repara no sorriso de Mordaunt, vê como

olha para o Rei. Será, acaso, o olhar de um homem temeroso de que a vítima lhe escape? Não, não, é o sorriso do ódio satisfeito, da vingança certa de saciar-se. Ah! basilismo maldito, será para mim feliz o dia em que eu puder cruzar contigo algo mais do que o olhar!

— O Rei é realmente belo — disse Porthos; — vede, como, apesar de prisioneiro, está bem vestido. A pluma do chapéu vale, pelo menos, cinqüenta pistolas; observa-a, Aramis.

Concluída a chamada, ordenou o Presidente que se procedesse à leitura do libelo.

Athos empalideceu; enganara-se de novo em suas previsões. Embora fosse insuficiente o número de juizes, não se adiaria o processo; o Rei, portanto, estava condenado de antemão.

— Eu te havia dito, Athos — acudiu d’Artagnan, encolhendo os ombros. — Mas duvidas sempre. Agora, coragem e ouve, sem te exasperares demasiado, por favor, as barbaridadezinhas que esse senhor de preto dirá de seu rei com licença e privilégio.

Com efeito, tão brutal acusação, injúrias tão baixas, tão sangrento requisitório ainda não tinham infamado a majestade real. Até aquele momento se haviam contentado os povos em assassinar os reis, mas só lhes insultavam os cadáveres.

Carlos I ouviu o discurso do acusador com suma atenção, deixando passar as injúrias, anotando as acusações, e, quando o ódio transbordava demais, quando o acusador se convertia antecipadamente em carrasco, respondia com um sorriso de desdém. Era, afinal de contas, uma obra capital e terrível aquela em que o desgraçado monarca encontrava todas as suas imprudências convertidas em ciladas, todos os erros transformados em crimes.

D'Artagnan, que deixava correr a torrente de injúrias com o desprezo que mereciam, fixou, entretanto, o espírito judicioso em certas incriminações do acusador.

— O fato — disse ele — é que, se devem ser castigadas a imprudência e a leviandade, esse pobre rei merece castigo; mas tenho para mim que o seu sofrimento neste instante já é bastante cruel.

— Em todo o caso — respondeu Aramis — a punição não poderia

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atingir o rei, senão os ministros, pois a primeira lei da constituição reza: O rei é infalível.

— Por mim — pensava Porthos com os olhos fitos em Mordaunt o ocupando-se apenas dele — se não fosse perturbar a majestade da situação, eu pulava desta tribuna, caía sobre o Sr. Mordaunt, estrangulava-o e, pegando-o pelos pés, derrubava com ele todos esses maus mosqueteiros que parodiam os mosqueteiros de França. Enquanto isso, d'Artagnan, que é esperto e engenhoso, achava talvez um meio de salvar o Rei. Preciso falar-lhe sobre o caso.

Com o rosto afogueado, os punhos crispados, os lábios ensangüentados pelas próprias mordidas, Athos escumava no banco, exasperado ante o eterno insulto parlamentar e a longa paciência real; e o braço inflexível e o coração inabalável tinham-se-lhe mudado em mão trêmula e corpo convulso.

Naquele momento concluía o acusador o libelo com estas palavras:"A presente acusação é feita por nós em nome do povo inglês."Ouviu-se um murmúrio nas tribunas, e outra voz, que já não era de

mulher, senão de homem, máscula e furiosa, trovejou atrás de d'Artagnan.— Mentes! — bradou a voz — e os nove décimos do povo inglês têm

horror do que dizes!A voz era de Athos, que, fora de si, em pé, com o braço estendido,

interpelava o acusador público.A essa apóstrofe, Rei, juizes, espectadores, todos voltavam os olhos para

a tribuna em que se achavam os quatro amigos. Mordaunt fez como os mais e reconheceu o gentil-homem à cuja volta se tinham erguido os três outros franceses, pálidos e ameaçadores. Cintilaram-lhe os olhos de alegria, pois acabava de reencontrar aqueles à cuja procura e à cuja morte votara a vida. Com gesto frenético chamou para perto de si vinte mosqueteiros e, mostrando com o dedo a tribuna em que estavam os inimigos:

— Fogo sobre aquela tribuna! — ordenou.Entretanto, rápidos como o pensamento, d'Artagnan erguendo Athos pelo

meio do corpo, Porthos carregando Ara-mis, saltaram os degraus do anfiteatro, atiraram-se pelos corredores, desceram rapidamente as escadas e perderam-se no meio da multidão; ao passo que no interior da sala os mosquetes abaixados ameaçavam três mil espectadores, cujos gritos de misericórdia e cujos terrores tumultuosos atenuaram o impulso já impresso à carnificina.

Carlos reconhecera também os quatro franceses; pôs uma das mãos no coração para comprimir-lhe as pulsações e com a outra tapou os olhos para não ver degolados os fiéis amigos.

Pálido e trêmulo de raiva, precipitou-se Mordaunt para fora da sala,

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espada na mão, com dez alabardeiros, vasculhando o povo, interrogando, ofegante; mas pouco depois voltava sem ter achado coisa alguma.

A confusão era inexprimível. Mais de meia hora se passou sem que alguém pudesse fazer-se ouvir. Criam os juizes que cada tribuna estivesse prestes a estourar. As tribunas viam os mosquetes apontados para elas e, divididas entre o medo e a curiosidade, continuavam tumultuosas e agitadas.

Afinal, restabeleceu-se a calma.— Que tendes a dizer em vossa defesa? — perguntou Bradshaw ao Rei.Em tom de juiz e não de acusado, com a cabeça sempre coberta,

erguendo-se, não por humildade mas por altivez:— Antes de interrogar-me — disse Carlos — respondei-me. Eu estava

livre em Newcastle, onde havia concluído um tratado com as duas câmaras. Em vez de cumprirdes a vossa parte do tratado, como eu cumpria a minha, vós me comprastes aos escoceses, e sei que o fizestes barato, o que faz honra à economia de vosso governo. Mas por terdes pago por mim o preço de um escravo, cuidais que eu tenha deixado de ser o vosso rei? Não. Responder-vos seria esquecê-lo. Por conseguinte, não vos responderei enquanto não me tiverdes demonstrado os vossos direitos a interrogar-me. Responder-vos seria reconhecer-vos como meus juizes, e eu só vos reconheço como meus carrascos.

E no meio de um silêncio de morte, calmo, sobranceiro e sempre coberto, voltou Carlos a sentar-se na poltrona.

— Não estarem aqui os meus franceses! — murmurou com orgulho e voltando os olhos para a tribuna onde eles tinham surgido um instante; — veriam que o seu amigo, vivo, é digno de ser defendido; morto, de ser chorado.

Mas por mais que sondasse as profundezas da multidão e, de certo modo, pedisse a Deus as doces e consoladoras presenças, só viu fisionomias estúpidas e medrosas; sentiu-se entre as mãos do ódio e da ferocidade.

— Pois bem — disse o Presidente vendo Carlos decidido a calar-se sistematicamente — seja, nós vos julgaremos a despeito do vosso silêncio; sois acusado de traição, abuso de poder e assassínio. As testemunhas farão fé. Ide, e a na próxima sessão se fará o que recusais fazer nesta.

Carlos levantou-se e, voltando-se para Parry, que viu pálido e com as têmporas molhadas de suor:

— E então, meu caro Parry — perguntou-lhe — que tens e que pode agitar-te assim?

— Oh! Sire — respondeu Parry com lágrimas nos olhos e com voz suplicante — Sire, ao sair da sala, não olhe Vossa Majestade para a esquerda.

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— Por que, Parry?— Não olhe, eu lhe suplico, meu Rei!— Mas que há? Fala — insistiu Carlos, tentando enxergar através dos

guardas postados atrás deles.— Há ali, mas Vossa Majestade não olhará, não é verdade? há ali, sobre

uma mesa, o cutelo com que se executam os criminosos. É um espetáculo medonho; não olhe, eu lhe suplico.

— Idiotas! — disse Carlos — julgar-me-ão, acaso, covarde como eles? Fizeste bem em prevenir-me; obrigado Parry.

E como houvesse chegado o momento de retirar-se, o Rei saiu, seguindo os guardas.

À esquerda da porta, com efeito, sobre a mesa em que fora colocado, brilhava o cutelo branco, de longo cabo polido pela mão do verdugo, refletindo sinistramente a toalha vermelha.

Chegado diante dele, deteve-se Carlos; e, voltando-se:— Ah! ah! — disse, rindo — o cutelo! Espantalho engenhoso e digno

dos que não sabem o que é um gentil-homem; não me causas medo, cutelo do carrasco — acrescentou fustigando-o com a haste flexível e delgada de junco que empunhava, e eu bato-te, esperando paciente e cristãmente que me faças o mesmo.

E encolhendo os ombros com desdém real, continuou a caminhar, deixando estupefactos os que se haviam apinhado em torno da mesa para ver a expressão do Rei ao dar com o cutelo que deveria separar-lhe a cabeça do corpo.

— Em verdade, Parry — continuou o Rei afastando-se — toda essa gente me toma, Deus me perdoe! por um mercador de algodão das Índias, e não por um gentil-homem habituado a ver brilhar o ferro; pensarão, acaso, que valho menos do que um magarefe?

Ao dizer essas palavras, chegava à porta. Acorrera uma longa fila de povo, que, não encontrando lugar nas tribunas, queria assistir pelo menos ao fim do espetáculo, cuja parte mais interessante não pudera ver. A multidão sem número, cujas fileiras pareciam semeadas de fisionomias ameaçadoras, arrancou do Rei um leve suspiro.

— Quanta gente — pensou ele — e nem um amigo dedicado!Mas quando dizia entre si essas palavras de dúvida e desalento, uma voz

que a elas respondia, bradou a seu lado:— Salve, majestade caída!Voltou-se, rápido, o Rei, com lágrimas nos olhos e no coração.Era um velho soldado de sua guarda que não quisera ver passar o rei

cativo sem lhe prestar essa derradeira homenagem.

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Mas no mesmo instante o desgraçado foi quase morto a punhos de espada.

Entre os atacantes, reconheceu o Rei o Capitão Groslow.— Ai! — disse Carlos — é bem grande o castigo para tão pequena falta.E, com o coração alanceado, continuou o caminho quando, uns cem

passos adiante, um furioso, inclinando-se entre dois soldados, lhe cuspiu no rosto, como outrora cuspiu no rosto de Jesus, o Nazareno, um maldito e infame judeu.

Estrondosas gargalhadas e sombrios murmúrios ressoaram ao mesmo tempo; a multidão afastou-se, tornou a aproximar-se, ondulou como oceano tempestuoso, e o Rei cuidou ver, no meio da vaga viva, os olhos fuzilantes de Athos.

Carlos enxugou o rosto e disse, com um triste sorriso:— Infeliz! por meia coroa faria o mesmo ao próprio pai.Não se enganara o soberano; vira, com efeito, Athos e os amigos, que,

tendo-se de novo misturado aos grupos, escoltavam com um derradeiro olhar o rei mártir.

Quando o soldado saudou Carlos, pulsou de alegria o coração de Athos; e quando o coitado tornou em si, encontrou no bolso dez guinéus que nele deixara cair o gentil-homem francês. Mas quando o covarde insultador escarrou no rosto do rei prisioneiro, Athos levou a mão ao punhal.

— D'Artagnan, porém, deteve-lhe a mão e, com voz rouca:— Espera! — disse ele. Sobresteve Athos.D'Artagnan se apoiou no Conde, fez sinal a Porthos e a Aramis que não

se afastassem, e foi colocar-se atrás do homem de braços nus, que ainda se ria do infame gracejo e era felicitado por outros furiosos como ele.

O homem dirigiu-se para a City. Sempre apoiado em Athos, seguiu-o d'Artagnan, fazendo sinal a Porthos e a Aramis que também os seguissem.

O homem de braços nus, que parecia um criado de açougue, desceu com dois companheiros uma ruela rápida e isolada, que desembocava no rio.

D'Artagnan largara o braço de Athos e caminhava atrás do outro.Chegados à beira do rio, perceberam os três homens que estavam sendo

seguidos; pararam e, encarando com insolência os franceses, trocaram alguns ditos entre eles.

— Não sei inglês, Athos — disse d'Artagnan — mas tu sabes e me servirás de intérprete.

E, proferidas essas palavras, estugando o passo, passaram à frente dos três homens. Mas, voltando-se de repente, d’Artagnan foi direito ao carniceiro, que parou, e, tocando-lhe o peito com a ponta do dedo indicador:

— Repete-lhe isto, Athos — disse ao amigo: — "Foste covarde,

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insultaste um homem sem defesa, manchaste o rosto de teu rei, vais morrer!..."

Pálido como um espectro e seguro pelo punho de d’Artagnan, Athos traduziu as estranhas palavras para o homem, que, vendo os preparativos sinistros e o olhar terrível de d’Artagnan, quis por-se em guarda; a esse movimento, levou Aramis a mão à espada.

— A espada, não! a espada, não! — exclamou d'Artagnan; — a espada é para fidalgos.

E, segurando o carniceiro pela garganta:— Porthos — disse d'Artagnan — mata-me este miserável com um

murro.Porthos ergueu o braço terrível, fê-lo sibilar no ar como uma funda, e a

massa pesada se abateu, com ruído surdo, sobre o crânio do covarde, que se abriu.

O homem caiu como cai um boi debaixo da marreta.Os companheiros quiseram gritar, quiseram fugir, mas faltou-lhes a voz,

e as pernas, trêmulas, recusaram-se a obedecer-lhes.— Dize-lhes ainda isto, Athos — continuou d'Artagnan: — "Assim

morrerão os que se esquecerem de que um homem cativo é uma cabeça sagrada, que um rei prisioneiro é duas vezes o representante do Senhor."

Athos repetiu as palavras de d'Artagnan.Mudos, com os cabelos em pé, contemplavam os dois homens o corpo

do companheiro, que nadava num mar de sangue preto; em seguida, recobrando a voz e as forças, deram às de Vila-Diogo com um grito, juntando as mãos.

— Fez-se justiça! — declarou Porthos, enxugando a fronte.— E agora — disse d'Artagnan a Athos — não duvides de mim e fica

descansado, que me encarrego de quanto se refere ao Rei.

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CAPÍTULO VI

WHITE-HALL

O PARLAMENTO condenou Carlos Stuart à morte, como era fácil prever. Os julgamentos políticos sempre constituem formalidades vãs, pois as mesmas paixões que levam a acusar levam também a condenar. Tal é a lógica terrível das revoluções.

Embora os nossos amigos esperassem a condenação, a notícia encheu-os de dor. D'Artagnan, cujo espírito tanto mais fértil de recursos se mostrava quanto mais difícil era a situação, jurou de novo que tudo tentaria para obviar ao desfecho da tragédia sangrenta. Mas por que meio? Era o que só muito vagamente entrevia. Tudo dependeria da natureza das circunstâncias. Enquanto esperavam que se pudesse traçar um plano completo, cumpria, a todo o transe, para ganhar tempo, impedir que a execução se verificasse no dia seguinte, como haviam decidido os juizes. O único meio consistia em fazer desaparecer o carrasco de Londres.

Desaparecido o carrasco, não se poderia executar a sentença. Mandar-se-ia, sem dúvida, buscar o da cidade mais próxima, e com isso ganhava-se pelo menos um dia. Ora, um dia naquelas circunstâncias era talvez a salvação! D’Artagnan encarregou-se da dificílima tarefa.

Outra coisa não menos essencial era prevenir Carlos Stuart de que tentariam salvá-lo, a fim de que secundasse quanto possível os esforços dos defensores, ou pelo menos, não fizesse coisa alguma para contrariá-los. Encarregou-se Aramis desse perigoso cuidado. Carlos Stuart pedira permissão para que o Bispo Juxon fosse visitá-lo na prisão de White-Hall. Mordaunt procurara o Bispo nessa mesma noite a fim de inteirá-lo do religioso desejo expresso pelo Rei e da competente autorização de Cromwell. Aramis decidiu obter do Bispo, pelo terror ou pela persuasão, que o deixasse entrar em seu lugar e revestido das insígnias episcopais no palácio de White-Hall.

Finalmente, Athos encarregou-se de preparar, fosse qual fosse o resultado da empresa, os meios de deixar a Inglaterra.

Tendo descido a noite, marcou-se um encontro na estalagem às onze horas e cada qual partiu para executar a sua tarefa.

O palácio de White-Hall era guardado por três regimentos de cavalaria e, sobretudo, pelas incessantes inquietações de Cromwell, que ia, vinha,

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enviava seus generais ou seus agentes.Só, na câmara habitual, alumiado pela luz de duas velas, o monarca

condenado à morte considerava tristemente o luxo da grandeza passada, como vemos, à última hora, a imagem da vida mais brilhante e mais suave do que nunca.

Parry não se arredara do amo e, desde a condenação, não cessara de chorar.

Com os cotovelos fincados sobre a mesa, Carlos Stuart contemplava um medalhão em que se viam, emparelhados, os retratos da mulher e da filha. Esperava primeiro Juxon; depois de Juxon, o martírio.

Por vezes detinha-se-lhe o espírito nos bravos gentis-homens franceses, que já imaginava a cem léguas de distância, fabulosos, quiméricos, semelhantes a essas figuras que vemos em sonhos e que desaparecem ao despertarmos.

A trechos, de fato, perguntava Carlos a si mesmo se tudo o que acabava de suceder-lhe não era um sonho ou, pelo menos, o delírio da febre.

A esse pensamento, levantava-se, dava alguns passos como que para desvencilhar-se de um torpor, ia à janela; mas logo, embaixo da janela, reverberavam os mosquetes dos guardas. Via-se então obrigado a reconhecer que estava acordado e que era bem real o sonho sangrento.

Carlos retornava silencioso à poltrona, fincava de novo os cotovelos sobre a mesa, deixava recair a cabeça entre as mãos e sonhava.

— Ai! — dizia de si para consigo — se eu tivesse ao menos por confessor.um desses luminares da Igreja cuja alma sondou todos os mistérios da vida, todas as fraquezas dos grandes, talvez a sua voz sufocasse a voz que se lamenta em minha alma! Mas terei um padre de espírito vulgar, cuja carreira e cuja fortuna cortarei com a minha desgraça. Ele me falará de Deus e da morte como o tem feito a outros moribundos, sem compreender que este moribundo real deixa um trono ao usurpador quando seus filhos já não têm pão.

Em seguida, aproximando o retrato dos lábios, murmurava sucessivamente o nome de cada um dos filhos.

A noite, como dissemos, era nublada e sombria. O relógio da igreja vizinha dava lentamente as horas. As pálidas claridades das duas velas punham na sala grande e alta fantasmas alumiados por estranhos reflexos. Esses fantasmas eram os antepassados do Rei Carlos, que se destacavam das molduras de ouro; esses reflexos eram os últimos clarões azulados e cintilantes de uma lareira que se extinguia.

Imensa tristeza apoderou-se de Carlos. Enterrou a fronte entre as mãos, pensou no mundo, que nos parece tão belo quando o deixamos, ou melhor,

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quando ele nos deixa, nas carícias dos filhos, tão suaves e tão doces, sobretudo quando estamos separados deles para sempre; depois na mulher, nobre e corajosa criatura, que o amparara até ao último momento. Tirou do peito a cruz de brilhantes e a placa da Jarreteira que ela lhe mandara por intermédio dos generosos franceses, e beijou-as; em seguida, lembrando-se de que ela só voltaria a ver aqueles objetos quando ele já estivesse deitado, mutilado e frio, num túmulo, sentiu percorrer-lhe os membros um desses frêmitos gelados que a morte nos atira como o seu primeiro manto.

E na sala que lhe despertava tantas lembranças reais, por onde haviam perpassado tantos cortesãos e tantas lisonjas, na só companhia de um servidor desolado cuja alma fraca não poderia sustentar a sua, o Rei deixou cair a sua coragem' ao nível dessa fraqueza, dessas trevas, desse frio de inverno; e, força é dizê-lo, esse rei que morreu tão grande, tão sublime, com o sorriso da resignação nos lábios, enxugou na sombra uma lágrima que caíra sobre a mesa e que tremulava sobre a toalha bordada de ouro.

Súbito se ouviram passos nos corredores, a porta se abriu, tochas encheram a sala de luz fumarenta, e um eclesiástico, revestido das insígnias episcopais, entrou seguido de dois guardas a que Carlos fez com a mão um gesto imperioso.

Retiraram-se os guardas; a sala voltou à obscuridade.— Juxon! — exclamou Carlos — Juxon! Obrigado, meu último amigo,

chegastes a propósito.O Bispo lançou um olhar oblíquo e inquieto ao homem Que soluçava no

canto da lareira.— Vamos, Parry — disse o Rei — não chores mais, eis aqui Deus que

vem ter conosco.— Se é Parry — disse o Bispo — já não tenho o que temer; por

conseguinte, Sire, permita-me saudar Vossa Majestade e dizer-lhe quem sou e por que vim.

Àquela vista e àquela voz, Carlos, sem dúvida, ia gritar, quando Aramis pôs um dedo nos lábios e saudou profundamente o Rei de Inglaterra.

— O Cavaleiro — murmurou Carlos.— Sim, Sire — interrompeu Aramis erguendo a voz — sim, o Bispo

Juxon, fiel cavaleiro do Cristo, às ordens de Vossa Majestade.Carlos juntou as mãos; reconhecera d'Herblay e sentia-se estupefato,

atônito, diante daqueles homens que, estrangeiros, sem outro motivo que um dever imposto pela própria consciência, lutavam assim contra a vontade de um povo e contra o destino de um rei.

— Vós — disse ele — vós! Como chegastes aqui? Meu Deus, se vos reconhecerem estareis perdido.

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Parry levantara-se em pé, e toda a sua pessoa exprimia o sentimento de uma ingênua e profunda admiração.

— Não pense em mim, Sire — replicou Aramis, recomendando silêncio ao Rei com o gesto — pense apenas em si; como vê, velam os amigos de Vossa Majestade; não sei ainda o que faremos, mas quatro homens resolutos podem fazer muita coisa. E enquanto espera, não durma Vossa Majestade durante a noite, não se espante de nada e espere por tudo.

Carlos sacudiu a cabeça.— Amigo — disse ele — sabeis que não tendes tempo para perder e que

se quiserdes agir, tereis de apressar-vos? Sabeis que amanhã, às dez horas, devo morrer?

— Sire, alguma coisa acontecerá nesse meio tempo e tornará impossível a execução.

O Rei fitou os olhos pasmados em Aramis.Nesse momento se ouviu, embaixo da janela, um barulho estranho, como

o de uma carroça de madeira que se descarrega.— Ouvistes? — perguntou o Rei.O ruído foi seguido de um grito de dor.— Ouvi — respondeu Aramis — mas não compreendo o rumor e muito

menos o grito.— O grito, ignoro quem possa tê-lo soltado — disse o Rei — mas o

rumor vou explicar-vos. Sabeis que devo ser executado do lado de fora desta janela? — ajuntou, estendendo a mão para a praça sombria e deserta, apenas povoada de soldados e sentinelas.

— Sim, Sire, eu sei.— Pois bem! as madeiras que trazem são as trevas e as vigas com as

quais será construído o meu cadafalso. Algum operário ter-se-á ferido ao descarregá-las.

Aramis estremeceu mau grado seu.— Como vedes — prosseguiu Carlos — será inútil que continueis a

obstinar-vos; estou condenado, deixai que se cumpra o meu destino.— Sire — volveu Aramis, reassumindo a tranqüilidade

momentaneamente perturbada — eles poderão armar o cadafalso, mas não encontrarão o executor.

— Que quereis dizer?— Quero dizer que, a esta hora, o carrasco já deve ter sido peitado ou

raptado; amanhã estará pronto o cadafalso, mas, faltando o carrasco, a execução será adiada para depois de amanhã.

— E então?— Então, amanhã, durante a noite salvaremos Vossa Majestade.

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— Como? — exclamou o Rei, em cujo rosto luziu, mau grado seu, um brilho de alegria.

— Oh! senhor — murmurou Parry juntando as mãos — benditos sede, vós e os vossos.

— Mas como? — insistiu o Rei; — preciso sabê-lo, para poder ajudar-vos, se for o caso.

— Não sei de nada, Sire; — retrucou Aramis; — mas o mais hábil, o mais corajoso, o mais dedicado de nós quatro disse-me ao deixar-me: "Cavaleiro, dize a El-Rei que amanhã, às dez horas da noite, o salvaremos." E se ele o disse, há de fazê-lo.

— Dizei-me o nome desse generoso amigo — tornou o Rei — para que eu lhe vote eterno reconhecimento, seja ou não bem sucedido.

— D'Artagnan, Sire, o mesmo que quase salvou Vossa Majestade quando o Coronel Harrison entrou tão inoportunamente.

— Sois, em verdade, homens maravilhosos! — exclamou o Rei. — E se me tivessem contado coisas como essas eu não teria acreditado.

— Agora, Sire — continuou Aramis — ouça-me. Não esqueça por um momento que velamos pela salvação de Vossa Majestade; observe tudo, ouça tudo, aprecie tudo, o menor gesto, o mais disfarçado trautear, o mínimo sinal de quantos se aproximarem de Vossa Majestade.

— Oh! Cavaleiro! — exclamou o Rei — que posso dizermos? Nenhuma palavra, ainda que viesse do mais profundo de meu coração, exprimiria o meu reconhecimento. Se fordes bem sucedido, não direi que salvais um rei; não, vista do cadafalso tal e qual a vejo, a realeza é muito pouca coisa; mas restituireis um marido à sua esposa, um pai a seus filhos. Cavaleiro, apertai-me a mão, é a de um amigo que vos amará até ao último suspiro.

Aramis quis beijar a mão do Rei, mas este pegou na dele e apertou-a ao coração.

Nesse momento entrou um homem sem sequer bater à porta; Aramis quis retirar a mão, o Rei a reteve.

O recém-chegado era um desses puritanos meio padres, meio soldados, que então pululavam à roda de Cromwell.

— Que desejais, senhor? — perguntou o Rei.— Desejo saber se já terminou a confissão de Carlos Stuart — replicou o

recém-chegado.— Que vos importa? — tornou o Rei. — Não somos da mesma religião.— Todos os homens são irmãos — volveu o puritano. — Um dos meus

irmãos vai morrer, e venho exortá-lo à morte.— Basta — acudiu Parry — o Rei dispensa as vossas exortações.— Sire — disse baixinho Aramis — não o hostilize, que há de ser algum

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espião.— Depois do Reverendo Dr. Bispo — disse o Rei — eu vos ouvirei com

prazer, senhor.O homem de olhar suspeitoso retirou-se, não sem ter observado Juxon

com uma atenção que não escapou ao soberano.— Cavaleiro — acudiu Carlos, quando voltou a fechar-se a porta —

creio que tínheis razão e que esse homem aqui veio com segundas intenções; acautelai-vos, ao sairdes, para que não vos suceda alguma desgraça.

— Sire — voltou Aramis — agradeço-lhe; mas tranqüilize-se Vossa Majestade, porque debaixo desta sotaina trago uma cota de malhas e um punhal.

— Ide, senhor, e Deus vos tenha em sua santa guarda, como eu dizia no tempo em que era rei.

Saiu Aramis; Carlos levou-o até à porta. Aramis lançou a sua bênção, que fez inclinarem-se os presentes, passou majestoso pelas antecâmaras cheias de soldados, tornou a subir no carro, em que o seguiram os dois guardas e fez-se conduzir ao palácio episcopal, onde eles o deixaram.

Juxon esperava com ansiedade.— E então? — perguntou, avistando Aramis.— Então — respondeu este último — tudo correu segundo os meus

desejos; espiões, guardas, satélites, todos me tomaram por vós, e El-Rei vos abençoa, esperando que o abençoeis também.

— Deus vos proteja, meu filho, pois o vosso exemplo deu-me esperança e coragem a um tempo.

Aramis tornou a vestir o seu fato, envolveu-se na capa e saiu, prevenindo Juxon de que tornaria a recorrer a ele.

Mal dera dez passos na rua quando percebeu que o seguia um homem embuçado em amplíssimo capote; pôs a mão no punhal e parou. O homem foi direito a ele. Era Porthos.

— Querido amigo! — exclamou Aramis estendendo-lhe a mão.— Como vês, meu caro — disse Porthos — cada um de nós tinha a sua

missão; a minha era a de guardar-te, e eu te guardava. Viste o Rei?— Vi, e vai tudo bem. Onde estão os nossos amigos?— Temos reunião às onze, na estalagem.— Nesse caso, não podemos perder tempo.De feito, soavam dez horas e meia na igreja de São Paulo. Entretanto,

como os dois amigos estugassem o passo, foram os primeiros que chegaram. Depois deles, entrou Athos.

— Tudo vai bem — anunciou, antes que os outros tivessem tempo de interrogá-lo.

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— Que fizeste? — perguntou Aramis.— Aluguei uma faluazinha, estreita como uma piroga, leve como uma

andorinha; ela espera-nos em Greenwich, diante da Ilha dos Cães; é tripulada por um patrão e quatro homens, que, mediante cinqüenta libras esterlinas, ficarão inteiramente ao nosso dispor durante três noites seguidas. Uma vez a bordo com El-Rei, aproveitamos a maré, descemos o Tâmisa, e, duas horas depois, estamos em pleno mar. Depois, como verdadeiros piratas, bordejamos o litoral, escondemo-nos entre as arribas, ou, estando livre o mar, aproamos para Bolonha. Se eu for morto, o patrão chama-se Roger, e a falua, O Relâmpago. Com essas informações encontrareis um e outra. O sinal de reconhecimento é um lenço atado nas quatro pontas.

Instantes depois entrava também d'Artagnan.— Esvaziai os bolsos — disse ele — até reunirmos cem libras esterlinas,

pois quanto às minhas...E virou as algibeiras no avesso, inteiramente vazias. A soma juntou-se

num ápice; d'Artagnan saiu e voltou Pouco depois.— Pronto! — disse ele — está tudo liquidado. Safa, que não foi sem

custo!— O carrasco saiu de Londres? — perguntou Athos.— Pois sim! Isso não seria tão garantido assim. Podia sair por uma porta

e entrar por outra.— E onde está ele?— Na adega.— Em que adega?— Na adega do nosso hospedeiro! Mousqueton ficou de sentinela à porta

e aqui está a chave.— Bravo! — exclamou Aramis. — Mas como persuadiste o homem a

desaparecer?— Como se persuade toda a gente, com dinheiro; caro custou, mas ele

acabou concordando.— Quanto, meu amigo? — perguntou Athos; — pois, como hás de

compreender, agora que já não somos uns pobres mosqueteiros sem eira nem beira, todas as despesas devem ser comuns.

— Doze mil libras — confessou d'Artagnan.— E onde as encontraste? — volveu Athos — Possuías tanto dinheiro?— E o famoso brilhante da Rainha? — retrucou d’Artagnan com um

suspiro.— Ah! é verdade — acudiu Aramis — eu já o reconhecera em teu dedo.— Tornaste a comprá-lo do Sr. des Essarts? — perguntou Porthos.— Tornei, tornei — respondeu d'Artagnan; — mas está escrito lá em

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cima que não poderei conservá-lo. Que quereis! Os brilhantes, segundo tudo leva a crer, têm as suas simpatias e antipatias, como os homens; parece que esse me detesta.

— Muito bem — sobreveio Athos — o caso do carrasco está resolvido; mas, infelizmente, todo carrasco tem um ajudante, um criado, sei lá.

— E esse também tinha; mas estamos com sorte.— Como?— Quando eu já -me preparava para realizar um segundo negócio,

trouxeram-me o rapaz com a coxa quebrada. Por excesso de zelo, acompanhou a carroça que transportava a madeira até ao pé da janela do Rei; uma das vigas lhe caiu sobre a perna e quebrou-lha.

— Ah! — exclamou Aramis — foi ele, então, quem soltou o grito que ouvi do quarto do Rei?

— É provável — disse d'Artagnan; — mas como é bem intencionado, prometeu, ao retirar-se, mandar em seu lugar quatro operários competentes e hábeis para ajudar os que já começaram o serviço; e ao voltar para a casa do patrão, embora malferido, escreveu incontinenti a Mestre Tom Low, carpinteiro seu amigo, pedindo-lhe que fosse a White-Hall cumprir-lhe a promessa. Eis a carta que ele mandou por um portador, que devia levá-la por dez pences e que ma vendeu por um luís.

— E que diabo queres fazer com esta carta? — perguntou Athos.— Não adivinhas? — tornou d'Artagnan com os olhos brilhantes.— Não, palavra!— Pois bem, meu caro Athos, tu que falas o inglês como o próprio John

Buli, és Mestre Tom Low, e nós somos os teus companheiros; compreendes agora?

Athos despediu um grito de alegria e admiração, correu para o gabinete, retirou dele trajos de operários, que os quatro amigos vestiram imediatamente; logo depois, ao saírem da estalagem, Athos carregava uma serra, Porthos uma alavanca, Aramis um machado e d'Artagnan um martelo e pregos.

A carta do criado do carrasco provaria ao mestre carpinteiro que eram aqueles os homens esperados.

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...Athos carregava uma serra, Porthos uma alavanca...

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CAPÍTULO VIIOS OPERÁRIOS

Já a noite em meio quando Carlos ouviu um barulhão debaixo da janela: marteladas, machadadas, rangidos de serra e golpes de alavanca.

Como se tivesse deitado completamente vestido e principiasse a adormecer, o ruído sobressaltou-o; e como, além do fragor material, o estridar tivesse um eco moral e terrível em sua alma, os horríveis pensamentos da véspera tornaram a salteá-lo. Só, diante das trevas e do isolamento, faleceram-lhe as forças para resistir à nova tortura, que não constava do programa do suplício, e mandou Parry dizer à sentinela que pedisse aos operários batessem com menos força e tivessem piedade do último sono daquele que fora o seu rei.

A sentinela não quis afastar do posto, mas deixou passar o criado.Aproximando-se da janela, depois de ter dado a volta do palácio, Parry

avistou, ao nível do balcão, cuja grade fora removida, enorme cadafalso inacabado, sobre o qual já começavam a pregar um pano de sarja preta.

Erguido ao nível da janela, isto é, a uma altura de vinte pés, mais ou menos, tinha o cadafalso dois andares inferiores. Por mais odioso que lhe fosse o espetáculo, Parry procurou, entre oito ou dez operários que construíam a máquina' sinistra, aqueles cujo ruído deveria ser mais incômodo para o Rei e, no segundo, pavimento, viu dois homens que arrancavam, com o auxílio de uma alavanca, os últimos varões do balcão de ferro; um deles, verdadeiro colosso, fazia o ofício do aríete de antanho, encarregado, de derrubar os muros. A cada golpe do seu instrumento voavam estilhaços. De joelhos, o outro puxava para si as pedras deslocadas.

Eram aqueles, evidentemente, os que faziam o barulho de que se queixara El-Rei.

Parry subiu a escada e aproximou-se.— Meus amigos — disse ele — tende a bondade de trabalhar um pouco

mais suavemente. O Rei está dormindo e precisa descansar.O homem que brandia a alavanca interrompeu-se e virou metade do

corpo; mas, como estivesse em pé, Parry não pôde ver-lhe o rosto perdido nas trevas, ainda mais espessas à altura do estrado.

O homem que estava de joelhos voltou-se também; e como, mais baixo do que o companheiro, tivesse o rosto alumiado pela lanterna, Parry pôde vê-lo.

Esse homem olhou-o fixamente e pôs um dedo nos lábios.

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Estupefacto, Parry recuou.— Está bem, está bem — respondeu o operário em excelente inglês —

volta e dize ao Rei que, se ele dorme mal esta noite, dormirá melhor na outra.

Essas palavras grosseiras, que, tomadas ao pé da letra, encerravam um sentido tão horrível, foram acolhidas pelos operários que trabalhavam ao lado no pavimento inferior com uma explosão medonha de alegria.

Parry afastou-se, cuidando que sonhava.Carlos, impaciente, esperava-o.No momento em que ele entrou, a sentinela que vigiava à porta, passou

curiosamente a cabeça pela abertura para ver o que fazia o Rei.O Rei estava na cama, apoiado sobre os cotovelos.Parry fechou a porta e, dirigindo-se para o soberano com o rosto radiante

de alegria:— Sire — disse ele em voz baixa — sabe Vossa Majestade quem são os

operários que fazem tanto barulho?— Não — retorquiu Carlos, meneando melancòlicamente a cabeça; —

como queres tu que o saiba? Não conheço esses homens.— Sire — prosseguiu Parry, com voz mais baixa ainda e inclinando-se

sobre o leito do amo — Sire, são o Conde de La Fere e seu companheiro.— Que levantam o meu cadafalso? — perguntou o Rei, espantado.— Sim, e que, ao levantá-lo, fazem um buraco na parede.— Pssiu! — disse o Rei, olhando à sua volta com terror. — Viste-os?— Falei com eles.O Rei juntou as mãos e ergueu os olhos para o céu; a seguir, depois de

curta e fervorosa oração, saltou da cama, dirigiu-se à janela e descerrou-lhe as cortinas; lá estavam ainda as sentinelas do balcão; mas, adiante do balcão, estendia-se urna sombria plataforma sobre a qual passavam os guardas como sombras.

Não pôde distinguir coisa alguma, mas sentiu debaixo dos pés a comoção dos golpes desferidos pelos amigos. E cada um desses golpes lhe ecoava agora no coração.

Parry não se enganara: reconhecera efetivamente Athos. Era ele quem, ajudado de Porthos, fazia um buraco sobre o qual repousaria uma das vigas transversais.

Esse buraco comunicava com uma espécie de cavidade praticada sob o soalho do próprio quarto real. Atingindo a cavidade, uma pessoa poderia, com uma alavanca e um par de ombros robustos, e isso era com Porthos, desprender uma tábua do assoalho; o Rei passaria por essa abertura, entraria com os salvadores num dos compartimentos do cadafalso, inteiramente

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coberto de pano preto, vestiria também um trajo de operário já preparado e, sem afetação, sem medo, sairia com os quatro companheiros.

Vendo operários que acabavam de trabalhar no cadafalso, as sentinelas, sem nenhuma suspeita, lhes dariam passagem.

Como já o dissemos, a falua estava pronta para zarpar.O plano era grande, simples e fácil, como tudo o que nasce de uma

resolução atrevida.Athos, portanto, esfolava as mãos, tão brancas e tão finas, erguendo as

pedras arrancadas da base por Porthos. Já conseguia passar a cabeça por baixo dos ornatos que decoravam a credencia do balcão. Mais duas horas e passaria o corpo todo. Antes de raiar o dia, estaria terminado o buraco, que ninguém veria sob as dobras da cortina interior, que seria oportunamente colocada. D'Artagnan fizera-se passar por um operário francês e batia pregos com a regularidade do mais hábil tapeceiro. Aramis cortava as sobras da sarja, que chegava até ao chão, e atrás da qual se erguia o madeiramento do cadafalso.

Despontou o dia no telhado das casas. Grande fogueira de turfa e de carvão ajudara os operários a passarem a noite tão fria de 29 para' 30 de janeiro; a todo momento os mais ativos interrompiam o serviço para se aquecerem. Somente Athos e Porthos não tinham largado o trabalho. Por isso mesmo, aos primeiros albores da manhã, o buraco estava pronto. Athos meteu-se por ele, levando consigo os trajos destinados ao Rei, embrulhados num pedaço de sarja preta. Porthos passou-lhe uma alavanca; e d'Artagnan pregou, luxo demasiado mas oportuno, uma cortina interna de sarja, atrás da qual desapareceram o buraco e seu ocupante.

Com mais duas horas de trabalho Athos poderia comunicar-se com o Rei; e, segundo a previsão dos quatro amigos, teriam o dia inteiro diante de si, pois, em faltando o carrasco, seria preciso ir buscar o de Bristol.

D'Artagnan vestiu novamente o fato castanho, Porthos o gibão vermelho e Aramis voltou à casa de Juxon, a fim de entrar com ele, se possível, na câmara do Rei.

Combinaram os três reunir-se ao meio-dia na praça de White-Hall para aguardar os acontecimentos.

Antes de deixar o cadafalso, Aramis aproximara-se da abertura em que se ocultara Athos a fim de anunciar-lhe que tentaria rever Carlos.

— Adeus, então, e coragem — disse Athos; — conta ao Rei o estado em que estão as coisas; dize-lhe que, ficando só, bata no soalho, para que eu possa continuar com segurança a minha tarefa. Se Parry pudesse ajudar-me arrancando já a placa inferior da lareira, que deve ser uma laje de mármore, tanto melhor. Tu, Aramis, conserva-te ao pé do Rei. Fala alto, bem alto,

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porque serás ouvido da porta. Se houver uma sentinela no interior do quarto, mata-a sem hesitar; se houver duas, Parry matará uma e tu a outra; se houver três, deixai-vos matar, mas salvai o Rei.

— Fica tranqüilo — disse Aramis — levarei dois punhais, a fim de dar um a Parry. É só?

— Sim, vai; mas recomenda ao Rei que se deixe de falsas generosidades. Enquanto vos baterdes, se houver combate, ele que fuja; recolocada a placa no lugar, sobre a cabeça dele, e tu, morto ou vivo, sobre essa placa, levarão dez minutos pelo menos para encontrarem o buraco pelo qual Sua Majestade terá fugido. Durante esses dez minutos estaremos longe e o Rei será salvo.

— Será como dizes, Athos. Tua mão, pois é possível que não tornemos a ver-nos.

Athos passou os braços em torno do pescoço de Aramis e conchegou-o de si:

— Para ti — disse ele. — Agora, se eu morrer, dize a d'Artagnan que lhe quero como a um filho e abraça-o por mim. Abraça também o nosso bom e corajoso Porthos. Adeus.

— Adeus — volveu Aramis. — Tenho tanta certeza agora de que o Rei se salvará quanto de estar apertando a mão mais leal que existe no mundo.

Aramis separou-se de Athos, desceu do cadafalso por seu turno e voltou à estalagem assobiando uma canção em louvor de Cromwell. Encontrou os dois amigos amesendados ao pé de bom lume, bebendo uma garrafa de vinho do Porto e devorando um frango frio. Porthos comia e, ao mesmo tem-P°> resmungava as maiores injúrias aos infames parlamentares; d'Artagnan mastigava em silêncio, mas revolvia na mente os planos mais temerários.

Aramis contou-lhes tudo o que ficara combinado; d’Artagnan aprovou com a cabeça e Porthos com a voz.

— Bravo! — disse ele; — de mais a mais, estaremos lá no momento da fuga; fica-se muito bem escondido debaixo daquele cadafalso e lá poderemos morar o tempo que for preciso. Entre d'Artagnan, eu, Grimaud e Mousqueton, daremos cabo de uns oito; não falo de Blaisois, que só serve para segurar os cavalos. A dois minutos por homem, são quatro minutos; Mousqueton perderá mais um, são cinco; durante esses cinco minutos podereis percorrer um quarto de légua.

Aramis comeu rapidamente um pedaço, bebeu um copo de vinho e mudou de roupa.

— Agora — disse ele — vou ao Palácio Episcopal. Encarrega-te das armas, Porthos; vigia bem o teu carrasco, d'Artagnan.

— Não há perigo; Grimaud já rendeu Mousqueton e tem-no debaixo dos pés.

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— Não importa, redobra de vigilância e não fiques um instante inativo.— Inativo! Meu caro, pergunta a Porthos: já não vivo, estou sempre em

cima das pernas, pareço um dançarino. Com seiscentos diabos! Como gosto da França neste momento, e como é bom ter a gente a sua pátria, quando se sente tão mal na dos outros!

Aramis deixou-os como deixara Athos, isto é, abraçando-os; em seguida, foi à procura do Bispo Juxon, ao qual transmitiu o seu pedido. Juxon consentiu tanto mais facilmente em levar Aramis quanto já declarara precisar de um padre, no caso de querer o Rei comungar, o que era certo, e sobretudo no caso de querer o Rei ouvir missa, o que era provável.

Vestido como se vestira na véspera Aramis, entrou o Bispo no carro. Mais disfarçado ainda pela palidez e pela tristeza do que pelas vestes de diácono, Aramis entrou com ele. O carro parou à porta de White-Hall; eram cerca de nove horas da manhã. Nada parecia mudado; as antecâmaras e corredores, como na véspera, estavam repletos de guardas. Duas sentinelas guardavam a porta do Rei, duas outras passeavam diante do balcão sobre a plataforma do cadafalso, onde já fora colocado o cepo.

O Rei estava cheio de esperança e, ao ver Aramis, a esperança mudou-se em alegria. Abraçou Juxon, apertou a mão de Aramis. O Bispo referiu-se em voz alta e diante de todos ao encontro da véspera. Respondeu-lhe o Rei que as palavras que ouvira naquela entrevista tinham produzido efeito e ele desejava outra prática semelhante. Juxon voltou-se para os assistentes e rogou-lhes que o deixassem a sós com o Rei. Toda a gente retirou-se.

Desde que a porta voltou a fechar-se:— Sire — disse Aramis, com rapidez — Vossa Majestade está salvo! O

carrasco de Londres desapareceu; o seu ajudante quebrou a perna ontem, debaixo das janelas de Vossa Majestade. Aquele grito que ouvimos, era o dele. Com certeza já foi notado o desaparecimento do executor; mas só há carrasco em Bristol e é preciso tempo para ir buscá-lo. Por conseguinte, temos, pelo menos, até amanhã.

— Mas o Conde de La Fere? — perguntou o Rei.— A dois pés de Vossa Majestade. Pegue no atiçador de lume e bata três

vezes; Vossa Majestade ouvirá a resposta.Com mão trêmula, o Rei tomou do instrumento e deu três pancadas em

intervalos iguais. Imediatamente soaram, debaixo do assoalho, respondendo ao sinal dado, uns golpes surdos e espaçados.

— Isso quer dizer — volveu o Rei — que quem me responde...— É o Conde de La Fere, Sire — emendou Aramis. — Está preparando

o caminho pelo qual Vossa Majestade poderá fugir. Parry, de seu lado, erguerá esta laje de mármore e assim se abrirá uma passagem.

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— Mas — disse Parry — não tenho instrumento algum.— Toma este punhal — disse Aramis; — mas cuidado para não o

embotares demais, pois pode dar-se que o precises para furar outra coisa além da pedra.

— Oh! Juxon — disse Carlos, voltando-se para o Bispo e travando-lhe as mãos — Juxon, guardai os rogos deste que foi o vosso rei...

— Que ainda o é e que sempre o será — disse Juxon, beijando a mão do Príncipe.

— Orai durante toda a vida por este gentil-homem que vedes, pelo outro que ouvis debaixo de nossos pés, e por mais dois que, onde quer que estejam, velam com certeza pela minha salvação.

— Sire — respondeu Juxon — Vossa Majestade será obedecido. Todos os dias oferecerei, enquanto viver, uma prece a Deus pelos fiéis amigos de Vossa Majestade.

O mineiro continuou por algum tempo o seu trabalho, que parecia aproximar-se cada vez mais. Súbito, porém, um ruído inesperado se ouviu na galeria. Aramis empunhou o atiçador e deu o sinal de interrupção.

Avizinhava-se o ruído; era o de certo número de passos iguais e regulares. Os quatro homens permaneceram imóveis, olhos cravados na porta, que se abriu lentamente e com certa solenidade.

Tinham-se enfileirado os guardas na sala que precedia a do Rei. Vestido de preto e cheio de uma gravidade de mau agouro, entrou um comissário do Parlamento, cumprimentou o soberano e, desdobrando um pergaminho, leu-lhe a sentença como é costume fazer aos condenados que vão para o patíbulo.

— Que significa isto? — perguntou Aramis a Juxon. Juxon fez um sinal indicando que ignorava tanto quanto ele o que se

passava.— É, então, para hoje? — perguntou o Rei com emoção apenas

perceptível para Juxon e Aramis.— Não estava prevenido, Sire, de que era para hoje cedo?— replicou o homem vestido de preto.— E devo morrer como um criminoso comum, pelas mãos do carrasco

de Londres?— O carrasco de Londres desapareceu, Sire — respondeu o comissário

do Parlamento; — mas em lugar dele ofereceu-se um homem. A execução, por conseguinte, só será retardada o tempo que for necessário a Vossa Majestade para por em ordem os seus negócios temporais e espirituais.

Leve suor, que emperlou os cabelos de Carlos ao nível da raiz, foi o único vestígio de emoção que ele deixou transparecer.

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.. leu-lhe a sentença.

Aramis, porém, tornou-se lívido. Já não lhe batia o coração: cerrou os olhos e apoiou a mão sobre a mesa. Diante dessa dor profunda, Carlos pareceu esquecer-se da sua.

Dirigiu-se a ele, tomou-lhe a mão e abraçou-o.— Vamos, amigo — disse-lhe com doce e triste sorriso — coragem.

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E, voltando-se para o comissário:— Senhor — prosseguiu — estou pronto. Desejo apenas duas coisas,

que, segundo penso, não vos retardarão demasiado: primeiro, comungar; segundo, beijar meus filhos e dizer-lhes adeus pela derradeira vez. Isso me será permitido?

— Sim, Sire — respondeu o comissário do Parlamento. E saiu.Tornando em si, Aramis enterrava as unhas na carne e um gemido

imenso lhe saiu do peito.— Oh! Monsenhor — bradou ele, empolgando as mãos de Juxon —

onde está Deus? Onde está Deus?— Meu filho — tornou com firmeza o Bispo — não o vedes porque o

escondem as paixões da terra.— Meu filho — disse o Rei a Aramis — não te desesperes assim.

Perguntas o que faz Deus? Deus contempla a tua dedicação e o meu martírio, e, podes crer, uma e outro terão a sua recompensa; avém-te, portanto, com os homens e não com Deus pelo que está acontecendo. São os homens que me fazem morrer, são os homens que te fazem chorar.

— Sim, Sire — volveu Aramis — sim, Vossa Majestade tem razão; é com os homens que preciso avir-me e é com eles que me avirei.

— Sentai-vos, Juxon — pediu o Rei, caindo de joelhos — pois ainda precisais ouvir-me e eu preciso confessar-me. Ficai, senhor — pediu a Aramis, que fazia menção de retirar-se; — fica, Parry, não tenho nada para dizer, nem sequer no segredo da Penitência, que eu não possa repetir diante de todos; e só sinto uma coisa: que o mundo inteiro não possa ouvir-me como vós e convosco.

Assentou-se Juxon, e o Rei, ajoelhado diante dele como o mais humilde dos fiéis, iniciou a confissão.

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CAPÍTULO VIII

REMEMBER

TERMINADA a confissão real, Carlos comungou e depois pediu para ver os filhos. Dez horas soavam, como dissera o Rei, não provocara, de fato, um grande atraso,

O povo, porém, já estava pronto; sabia que a execução tinha sido marcada para as dez e achusmava as ruas vizinhas do palácio; já principiava o soberano a distinguir o ruído longínquo que fazem a multidão e o mar, quando uma é agitada pelas paixões e o outro pelas tempestades.

Chegaram os filhos do Rei: primeiro a Princesa Carlota, depois o Duque de Glocester, isto é, uma menininha loira, linda, de olhos marejados de lágrimas e um menininho de oito a nove anos, cujos olhos secos e cujo lábio desdenhosamente erguido já lhe acusavam a nascente altivez. O menino chorara a noite inteira, mas diante daquela gente não queria chorar.

Carlos sentiu apertar-se-lhe o coração à vista dos dois filhos que vira, pela última vez, dois anos antes e só revia no momento de morrer. Uma lágrima assomou-lhe aos olhos e ele se voltou para enxugá-la, pois queria mostrar-se forte diante daqueles a quem legava uma herança tão pesada de sofrimento e desgraça.

Falou primeiro à menina; conchegando-o de si, recomendou-lhe piedade, resignação e amor filial; depois, passando de um a outro pegou no jovem Duque de Glocester e, sentando-o sobre os joelhos, para poder apertá-lo ao peito e beijar-lhe o rosto:

— Meu filho — disse ele — ao vires para cá, viste muita gente nas ruas e nas antecâmaras; essa gente vai cortar a cabeça de teu pai, nunca te esqueças disso. Pode ser que um dia, vendo-te perto deles e tendo-te em seu poder, queiram fazer-te rei, com exclusão do Príncipe de Gales e ou do Duque de Iorque, teus irmãos mais velhos, que estão, um em França e outro não sei onde; mas tu não és o rei, meu filho, e só o poderás ser por morte deles. Jura-me, portanto, que nunca deixarás que te ponham a coroa na cabeça enquanto não tiveres, legitimamente, direito a essa coroa; pois um dia, ouve bem, meu filho, um dia, se consentires nisso, eles te derrubariam tudo, a cabeça e a coroa, e nesse dia não poderias morrer calmo e sem remorsos, como eu morro. Jura, filho. O menino estendeu a mãozinha sobre a do pai, e disse:

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— Sire, juro a Vossa Majestade... Carlos interrompeu-o.— Henrique — disse ele — chama-me pai.— Meu pai — tornou o menino — juro-lhe que me matarão antes de me

fazerem rei.— Bem, meu filho — disse Carlos. — Agora dá-me um beijo, e tu

também, Carlota. E não vos esqueçais de mim.— Oh! não, nunca! nunca! — bradaram as duas crianças, atirando os

braços em torno do pescoço do Rei.— Adeus — disse Carlos; — adeus, meus filhos. Levai-os, Juxon; as

suas lágrimas me tirariam a coragem de morrer.Juxon arrancou as pobres crianças dos braços paternos e entregou-as

àqueles que as tinham trazido.Atrás deles se abriram as portas e toda a gente pôde-entrar.Vendo-o sozinho no meio da multidão de guardas e curiosos que

começavam a invadir o quarto, lembrou-se o Rei de que o Conde de La Fere estava lá pertinho, debaixo do assoalho do aposento, sem poder ver o que se passava e talvez esperando ainda.

Temia que o menor ruído parecesse um sinal para Athos, e que este, voltando ao trabalho, se acabasse traindo. Ficou, portanto, imóvel e, com o seu exemplo, manteve em silêncio todos os assistentes.

Não se enganava El-Rei: Athos se achava, realmente, debaixo de seus pés: escutava, desesperava-se por não ouvir o sinal; começava, às vezes, na sua impaciência, a bambear a pedra; mas, temendo ser ouvido, parava logo.

Essa horrível inação durou duas horas. Reinava na câmara real um silêncio de morte.

Determinou-se então o Conde a pesquisar a causa da muda e sombria tranqüilidade, somente perturbada pelo imenso rumor da multidão. Entreabriu a cortina que ocultava o buraco debaixo do balcão e desceu ao primeiro andar do cadafalso. Acima de sua cabeça, a umas quatro polegadas quando muito, estendia-se o pavimento, que continuava ao nível da plataforma.

O ruído que ele, até então, só ouvira surdamente, quando lhe chegou aos ouvidos, sombrio e ameaçador, fê-lo estremecer, aterrado. Aproximou-se do bordo do cadafalso, entreabriu o pano preto à altura dos olhos e viu cavaleiros rodeando a máquina terrível; adiante dos cavaleiros, uma fila de alabardeiros; adiante dos alabardeiros, uma filha de mosqueteiros; e adiante dos mosqueteiros, as primeiras filas de povo, que, semelhante a um oceano sombrio, borbulhava e mugia.

— Que terá acontecido? — dizia consigo só, mais trêmulo que o pano, cujas pregas amarrotava. — Comprime-se o povo, os soldados empunham

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armas, e entre os espectadores, cujos olhos estão todos voltados para a janela, vejo d'Artagnan! Que espera ele? Para onde está olhando? Céus! Terão, acaso, deixado fugir o carrasco?

De repente se ouviu na praça o fúnebre rufar do tambor; um ruído de passos surdos e prolongados ressoou-lhe por cima da cabeça. Dir-se-ia que uma como procissão imensa calcava os pavimentos de White-Hall; logo ouviu estalarem as mesmas pranchas do patíbulo. Lançou um último olhar à praça e a atitude dos espectadores mostrou-lhe o que uma derradeira esperança aninhada no fundo do coração não lhe deixara adivinhar.

Cessara completamente o murmurejar da praça. Todas as vistas tinham-se pregado na janela de White-Hall, ao passo que as bocas entreabertas e as respirações contidas denotavam a espera de algum terrível espetáculo.

O rumor de passos que, do seu esconderijo debaixo do soalho dos aposentos do Rei, Athos ouvira acima da cabeça, reproduziu-se no cadafalso, que vergou sob o peso, de sorte que as pranchas quase tocaram a cabeça do desgraçado fidalgo. Eram, evidentemente, duas filas de soldados que ocupavam o seu posto.

No mesmo instante, uma voz bem conhecida do gentil-homem, uma nobre- voz pronunciou estas palavras acima de sua cabeça:

— Sr. Coronel, desejo falar ao povo.Athos estremeceu da cabeça aos pés: era, de fato, o Rei que falava sobre

o patíbulo.Efetivamente, depois de haver provado algumas gotas de vinho e cortado

um pão, cansado de esperar a morte, Carlos, de repente, resolvera ir ao encontro dela e dera o sinal da marcha.

Fora então escancarada a janela que dava para a praça e, do fundo da sala enorme, vira o povo adiantar-se primeiro, em silêncio, um homem mascarado, que, pelo cutelo, conhecera ser o verdugo. Esse homem aproximara-se do cepo e nele pousara o cutelo.

Fora esse o primeiro ruído que ouvira Athos.Em seguida, atrás do homem, pálido de certo, mas calmo, com passo

firme, surgiu Carlos Stuart, ladeado por dois padres, seguido de alguns oficiais superiores, encarregados de presidirem à execução, e escoltado por duas filas de alabardeiros, que se postaram dos dois lados do cadafalso.

A vista do homem mascarado provocara longo rumor. Todos ferviam de curiosidade por saber quem era o carrasco desconhecido que tão oportunamente se apresentara, a fim de que o espetáculo prometido ao povo pudesse realizar-se, quando o povo já o supunha adiado para o dia seguinte. Cada qual, por conseguinte, o devorara com os olhos; mas a única coisa evidente era que se tratava de um homem de estatura meã, todo vestido de

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preto, e já de certa idade, pois uma ponta de barba grisalha surgia por baixo da máscara que lhe tapava o rosto.

Mas à vista do Rei, tão calmo, tão nobre, tão digno, restabelecera-se instantaneamente o silêncio, de forma que todos lhe ouviram o pedido para falar.

A essa pergunta, o homem a quem fora dirigido havia, sem dúvida, respondido por um sinal afirmativo, pois com voz firme e sonora, que vibrou nos mais íntimos recessos do coração de Athos, El-Rei principiou o discurso.

O monarca explicou ao povo o seu procedimento e deu-lhe conselhos para o bem da Inglaterra.

— Oh! — dizia Athos entre si — será possível que eu ouça o que estou ouvindo e veja o que estou vendo? Será possível que Deus tenha desamparado o seu representante na terra a ponto de deixá-lo morrer tão miseravelmente!... E eu que não o vi! E eu que não lhe disse adeus!

Um ruído semelhante ao que faria o instrumento de morte remexido sobre o cepo fez-se ouvir. Interrompeu-se o Rei.

— Não toqueis no cutelo.E reiniciou o discurso no ponto em que o deixara.Terminado o discurso, desceu sobre a cabeça do Conde um silêncio de

gelo. Levara a mão à testa e entre a mão e a testa escorriam gotas de suor, muito embora a atmosfera fosse frigida.

Esse silêncio indicava os últimos preparativos.Concluído o discurso, relanceara El-Rei pelo povo um olhar cheio de

misericórdia; e, tirando a insígnia da ordem que ostentava, e que era a mesma placa de brilhante que lhe enviara a Rainha, entregou-a ao sacerdote que acompanhava Juxon. A seguir, tirou do peito um cruzinha também de brilhantes. Esta, como a placa, também fora dádiva de Henriqueta.

— Senhor — disse ele dirigindo-se ao padre que acompanhava Juxon — ficarei com esta cruz na mão até o derradeiro momento; vós ma tirareis quando eu estiver morto.

— Sim, Sire — disse uma voz que Athos percebeu ser a de Aramis.Carlos, que até então permanecera com a cabeça coberta, descobriu-se e

atirou o chapéu para o lado; depois, um por um, desabotoou todos os botões do gibão, despiu-o e jogou-o ao lado do chapéu. Como sentisse frio, pediu um roupão, que lhe deram.

Todos esses preparativos tinham sido feitos com calma aterradora.Dir-se-ia que o Rei fosse deitar-se em seu leito e não em seu esquife.Afinal, erguendo os cabelos com a mão:— Poderão estorvar-vos, senhor? — perguntou ao carrasco. — Nesse

caso, posso prendê-los com um cordão.

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O soberano acompanhou as palavras com um olhar que parecia querer penetrar sob a máscara do desconhecido. Aquele olhar tão nobre, tão calmo e tão confiante obrigou o homem a virar a cabeça, mas atrás do olhar profundo do Rei ele encontrou o olhar ardente de Aramis.

Vendo que o interpelado não respondia, Carlos repetiu a pergunta.— Bastará — disse o homem com voz surda — que os separeis ao nível

do pescoço.O Rei separou os cabelos com as duas mãos e, contemplando o cepo:— Este cepo é muito baixo — disse ele; — não haverá outro mais alto?— É o cepo do costume — respondeu o homem mascarado.— Cortar-me-eis a cabeça com um golpe só? — perguntou o Rei.— Espero que sim — respondeu o executor.Havia nessas três palavras: Espero que sim, tão estranha entonação, que

toda a gente sentiu um calafrio, exceto o Rei.— Está bem — disse o Rei; — e, agora, carrasco, escuta.O homem mascarado deu um passo na direção do Rei e apoiou-se sobre

o cutelo.— Não quero que me surpreendas — disse-lhe Carlos. — Vou ajoelhar-

me para rezar, por isso não golpeies ainda.— E quando golpearei? — perguntou o embuçado.— Quando eu colocar o pescoço sobre o cepo e estender o braço

dizendo: Remember (64), golpeia com força.(64) Imperativo do verbo to remember, que significa lembrar-se. (N. do T.)

O verdugo inclinou-se levemente.— Eis o momento de deixar o mundo — disse o Rei aos que o cercavam.

— Deixo-vos, senhores, no meio da tempestade e vos precedo na pátria que não conhece borrascas. Adeus.

Fitou os olhos em Aramis e fez-lhe um sinal com a cabeça.— Agora — continuou — afastai-vos e deixai-me dizer baixinho a

minha oração, por favor. Afasta-te também — disse ao algoz; — é um momento apenas e sei que te pertenço; mas não te esqueças de que só deveras ferir quando eu der o sinal.

Carlos ajoelhou-se, fez o sinal da cruz, aproximou os lábios das pranchas como se quisesse beijar o estrado; em seguida, com uma das mãos sobre o tablado e a outra sobre o cepo:

— Conde de La Fere — perguntou em francês — estais aí e posso falar-vos?

Essa voz foi direita ao coração de Athos e penetrou-o como ferro gelado.— Estou, Majestade — respondeu ele, a tremer.

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— Amigo fiel, coração generoso — disse o Rei — não pude ser salvo, não devia sê-lo. Agora, ainda que cometa um sacrilégio, eu te direi: Sim, falei aos homens, falei a Deus e falo a ti per último. Para sustentar uma causa que imaginei sagrada, perdi o trono de meus pais e alienei a herança de meus filhos. Resta-me um milhão de ouro, que enterrei nas adegas do castelo de Newscatle no momento de deixar a cidade. Só tu sabes que existe esse dinheiro; utiliza-o quando cuidares oportuno para o maior bem de meu filho mais velho; e, agora, Conde de La Fere, dize-me adeus.

— Adeus, Majestade santa e mártir — balbuciou Athos, transido de terror.

Seguiu-se um instante de silêncio, durante o qual pareceu Athos que o Rei se reerguia e mudava de posição.

Depois, com voz firme e sonora, de modo que fosse ouvido não só sobre o patíbulo mas em toda a praça:

— Remember — disse o Rei.Mal pronunciara essa palavra e uma pancada horrível sacudiu o tablado;

destacando-se do forro, o pó cegou o infeliz gentil-homem. De repente, como por um movimento maquinai, ele ergueu os olhos e a cabeça e uma gota quente lhe caiu sobre a testa. Athos recuou, com um frêmito de pavor e, no mesmo instante, as gotas se mudaram em negra catadupa, que esguichou sobre o pavimento.

Caindo de joelhos, Athos permaneceu alguns instantes como fulminado de insânia e de impotência. Pouco depois, pelo seu murmúrio decrescente, percebeu que a multidão se afastava; quedou ainda por um momento imóvel, mudo e consternado. Depois, voltando, foi molhar a ponta do lenço no sangue do rei mártir; e, como o populacho se afastasse cada vez mais, desceu, rasgou o pano, esgueirou-se entre dois cavalos, misturou-se ao povo, cujos trajos envergava, e foi o primeiro que chegou à estalagem.

Subindo ao quarto, mirou-se a um espelho, viu na testa uma grande mancha vermelha, passou a mão sobre ela, retirou-a molhada de sangue do Rei e perdeu os sentidos.

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CAPÍTULO IX

O MASCARADO

EMBORA fossem apenas quatro horas da tarde, já era noite fechada; caía a neve, espessa e gelada. Aramis regressou também e encontrou Athos, senão sem sentidos, pelo menos aniquilado.

Às primeiras palavras do amigo, saiu o Conde da espécie de letargia em que caíra.

— Vencidos pela fatalidade! — murmurou Aramis.— Vencidos! — repetiu Athos. — Nobre e desgraçado Rei!— Estás ferido?— Não, este sangue é o dele. O Conde enxugou a fronte.— Mas, afinal, onde estavas?— Onde me deixaste, debaixo do patíbulo.— E viste tudo?— Não, mas ouvi; Deus me livre de outra hora parecida com a que acabo

de passar! Não estou com os cabelos brancos?— Sabes, então, que o não desamparei?— Ouvi a tua voz até o último momento.— Eis a placa que ele me deu — disse Aramis — e eis a cruz que lhe

tirei da mão; ele desejava que fossem devolvidas à Rainha.— Aqui está um lenço para embrulhá-las — tornou Athos. E tirou do

bolso o lenço que molhara no sangue do Rei.— Agora — perguntou Athos — que fizeram do pobre cadáver?— Por ordem de Cromwell, ser-lhe-ão prestadas honras reais.

Colocamos o corpo num esquife de chumbo; tratam os médicos de embalsamar-lhe os pobres restos e, terminada a sua obra, o Rei será colocado em capela ardente.

— Irrisão! Honras reais ao soberano que assassinaram!— Isso prova que pode morrer o rei, mas que a realeza não morre.— Ai! — suspirou Athos — será talvez o último rei cavaleiro que teve o

mundo.— Vamos, não te desesperes, Conde — acudiu uma voz grossa na

escada, onde soavam os passos largos de Porthos — somos todos mortais, meus pobres amigos.

— Chegas tarde, meu caro Porthos — disse o Conde de La Fere.

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— Sim — respondeu Porthos. — Havia uns canalhas no caminho que me atrasaram. Dançavam, os miseráveis! Agarrei um pelo pescoço e creio que o estrangulei um pouquinho. Nesse momento chegou uma patrulha. Felizmente a pessoa com quem eu me havia ficou alguns minutos sem poder falar. Aproveitei-me disso para embarafustar por uma viela. Essa viela me conduziu a outra, ainda menor. Então, vi-me perdido. Não conheço Londres, não entendo inglês, supus que nunca mais daria com a estalagem; mas, afinal, cheguei.

— E d'Artagnan? — perguntou Aramis. — Não o viste e não lhe terá sucedido alguma coisa?

— Fomos separados pela multidão — disse Porthos — e por mais esforços que fizesse, não pude encontrá-lo.

— Oh! — disse Athos com azedume — eu o vi; estava na primeira fila de povo, muito bem colocado para não perder coisa alguma; e como o espetáculo era realmente curioso, ele, de certo, quis presenciá-lo até ao fim.

— Ah! Conde de La Fere — disse uma voz calma, posto que sufocada pela precipitação da corrida — és tu quem calunia os ausentes?

A censura atingiu Athos em pleno coração. Entretanto, como a impressão que lhe produzira d'Artagnan nas primeiras filas do povo estúpido e feroz tivesse sido profunda, contentou-se de responder:

— Não te calunio, meu amigo. Estavam todos preocupados contigo e eu disse onde estavas. Não conhecias o Rei Carlos, que, para ti, era apenas um estrangeiro, e não tinhas obrigação de amá-lo.

Dizendo essas palavras, estendeu a mão ao amigo. Mas d'Artagnan fingiu não ter visto o gesto e guardou a sua debaixo da capa.

Athos deixou pender vagarosamente a mão ao lado do corpo.— Uf! estou cansado — disse d'Artagnan, e sentou-se.— Bebe um copo de vinho do Porto — sugeriu Aramis pegando numa

garrafa sobre a mesa e enchendo um copo; — bebe, que te fará bem.— Sim, bebamos — disse Athos, que, sensível ao descontentamento do

gascão, queria tocar-lhe o copo com o seu — bebamos e deixemos este país abominável. A falua espera-nos, como sabeis; partamos esta noite, que já não temos o que fazer aqui.

— Estais muito apressado, Sr. Conde — observou d’Artagnan.— Este solo sangrento queima-me os pés — retorquiu Athos.— Pois a neve não me produz o mesmo efeito — volveu tranqüilamente

o gascão.— Mas que queres, então, que façamos — tornou Athos —. agora que o

Rei está morto?— Então, Sr. Conde — confinou d'Artagnan com negligência — não

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vedes que vos resta alguma coisa para fazer na Inglaterra?— Nada, nada — respondeu Athos — senão duvidar da bondade divina e

desprezar as minhas próprias forças.— Pois bem! eu — declarou d'Artagnan — eu, o mesquinho, o basbaque

sanguinário, que foi colocar-me a trinta passos do patíbulo para ver cair a cabeça desse rei que eu não conhecia, e que, segundo parece, me era indiferente, penso de maneira diversa da do Sr. Conde... e fico!

Athos empalideceu extremamente; cada reproche do amigo lhe sacudia as fibras mais íntimas do coração.

— Ah! ficas em Londres? — perguntou Porthos a d’Artagnan.— Fico — respondeu o interpelado. — e tu?— Ué! — retrucou Porthos um tanto enleado diante de Athos e de

Aramis — se ficas, como vim contigo, só voltarei contigo; não te deixarei sozinho neste país horroroso.

— Obrigado, meu excelente amigo. Tenho, então, uma pequena empresa para propor-te, que poremos em execução depois que o Sr. Conde tiver partido, e cuja idéia me acudiu enquanto assistia ao espetáculo que sabes.

— Qual? — perguntou Porthos.— A de descobrir quem é o homem mascarado que tão obsequiosamente

se ofereceu para cortar o pescoço do Rei.— Um homem mascarado! — exclamou Athos. — Então não deixaste

fugir o carrasco?— O carrasco? — repetiu d'Artagnan — continua na adega, onde

imagino que esteja dizendo algumas palavrinhas às garrafas do nosso estalajadeiro. Mas tu me fizeste pensar no caso...

E foi até à porta.— Mousqueton! — chamou.— Senhor? — respondeu uma voz que parecia sair das profundezas da

terra.— Soltai o vosso prisioneiro — ordenou d'Artagnan — está tudo

acabado.— Mas — acudiu Athos — quem é então o miserável que levantou a

mão contra o Rei?— Um carrasco amador, que, aliás, maneja o cutelo com facilidade, pois,

assim como ele o esperava — disse Aramis — bastou-lhe um golpe.— Não lhe viste o rosto? — perguntou Athos.— Trazia máscara — disse d’Artagnan.— Mas tu, que estavas perto dele, Aramis?— Vi apenas a ponta de uma barba grisalha debaixo da máscara.— Será, então, um homem de certa idade?

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— Isso não quer dizer nada — volveu d'Artagnan. — Quem põe máscara pode por barba também.

— Sinto não o haver seguido — disse Porthos.— Pois bem, meu caro Porthos — acudiu d'Artagnan— foi essa precisamente a idéia que me ocorreu.Athos compreendeu tudo; levantou-se.— Perdoa-me, d'Artagnan — disse ele; — duvidei de Deus, podia

duvidar de ti. Perdoa-me, amigo.— Veremos isso daqui a pouco — disse d'Artagnan com um meio

sorriso.— E então? — sobreveio Aramis.— Então — continuou d'Artagnan — enquanto eu contemplava, não ò

Rei, como supõe o Sr. Conde, pois sei que é um homem que vai morrer, e, embora já devesse estar habituado a essa espécie de cenas, elas sempre me fazem mal, mas o carrasco mascarado, acudiu-me a idéia, como eu já vos disse de saber quem era. Ora, como temos o hábito de completar-nos uns aos outros e de mutuamente socorrer-nos como se socorrem as nossas mãos, relanceei maquinalmente os olhos à minha volta para ver se Porthos não estaria por lá; pois eu te reconheci ao pé do Rei, Aramis, e sabia que tu, Conde, devias estar debaixo do cadafalso. O que faz que eu te perdoe

— ajuntou, estendendo a mão a Athos — pelo muito que deves ter sofrido. Olhei, portanto, em derredor quando dei com uma cabeça que tinha sido quebrada e que, bem ou mal, fora consertada com tafetá preto. "Diabo!" disse eu com os meus botões, "isso até parece uma costura à minha moda e eu devo ter costurado este crânio em algum lugar." De fato, era aquele infeliz escocês, o irmão de Parry, sobre o qual Groslow se divertiu em experimentar as suas forças, e que só tinha metade da cabeça quando o encontramos.

— Perfeitamente — acudiu Porthos — o homem das galinhas pretas.— Tu o disseste; ele fazia sinais a outro homem, que se encontrava à

minha esquerda; voltei-me e reconheci o honrado Grimaud, ocupado como eu em devorar com os olhos o carrasco mascarado.

"— Oh! — disse-lhe eu. E como essa sílaba é a abreviatura de que se serve o Sr. Conde nos dias em que lhe fala, Grimaud compreendeu que estava sendo chamado e voltou-se, como se o movesse uma mola; ele também me reconheceu e, apontando o dedo para o homem mascarado:

"— Hein? — perguntou. O que significava: Vistes?"— Ora! — respondi."Tínhamo-nos compreendido perfeitamente."Voltei-me para o escocês; os seus olhos também eram falantes.

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"Em resumo, tudo se acabou, como sabeis, da maneira mais lúgubre possível. Afastou-se o povo; manso e manso descia a noite; eu me havia retirado para um canto afastado da praça com Grimaud e o escocês, ao qual fiz sinal que ficasse conosco, e de lá examinei o carrasco, que, tendo voltado à câmara real, mudava de roupa; a sua devia estar ensangüentada. Depois, enfiou um chapéu preto na cabeça, envolveu-se numa capa e sumiu. Adivinhei que ia sair e corri para a porta. Com efeito, cinco minutos depois vimo-lo descer a escada.

— E não o seguiste? — bradou Athos.— Está visto que sim! — replicou d'Artagnan; — mas não foi sem custo.

A cada instante, voltava-se; éramos obrigados a esconder-nos ou a assumir ares indiferentes. Eu, por mim, tê-lo-ia atacado e matado; mas não sou egoísta e quis reservar-vos um prazer, a ti Aramis e a ti, Athos, para consolar-vos um pouco. Por fim, após meia hora de marcha através das ruas mais tortuosas da cidade, ele chegou a uma casinha isolada, onde nenhum ruído e nenhuma luz anunciavam a presença de alguém.

"Grimaud tirou uma pistola de suas vastíssimas calças. "— Hein? — perguntou, mostrando-a. "— Não — respondi. E segurei-lhe o braço. "Como eu vos disse, tinha uma idéia. "O embuçado parou diante de uma porta baixa e pegou numa chave; antes, porém, de metê-la na fechadura, voltou-se para ver se não fora seguido. Eu me acaçapara atrás de uma árvore; Grimaud, atrás de um marco; o escocês, que não encontrara o que o escondesse, deitara-se no chão.

"O homem que perseguíamos se julgou, sem dúvida, completamente só, pois ouvi o ranger da chave; abriu-se a porta e ele desapareceu.

— O miserável! — disse Aramis — enquanto voltaste para cá, ele terá fugido e não tornaremos a encontrá-lo.

— Francamente, Aramis — recalcitrou d'Artagnan — tu me tomas por outro.

— Entretanto — disse Athos — durante a tua ausência...— Durante a minha ausência não tinha eu para me substituírem Grimaud

e o escocês? Antes que ele tivesse tido tempo de dar dez passos no interior, eu já dera a volta da casa. Numa das portas, a que lhe servira de entrada, coloquei o escocês dizendo-lhe, por meio de sinais, que, se o homem da máscara preta saísse, deveria segui-lo aonde quer que fosse, enquanto Grimaud seguiria o escocês e viria depois ter conosco. Por fim, coloquei Grimaud na segunda saída, fazendo-lhe as mesmíssimas recomendações, e aqui estou. A fera está cercada; e agora, quem quer assistir ao halali?

Athos precipitou-se nos braços de d'Artagnan, que enxugava a testa.— Amigo — disse ele — foi muita bondade tua perdoar-me; fiz mal,

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cem vezes mal, pois já devia conhecer-te; mas há dentro em nós mesmos alguma coisa de mau que duvida sempre.

— Hum! — sobreveio Porthos — não seria o carrasco, porventura, o próprio Sr. Cromwell, que, para ter um serviço bem feito, quis fazê-lo pessoalmente?

— Pois sim! O Sr. Cromwell é baixo e atarracado, ao passo que o nosso homem é magro, esbelto e mais alto que baixo.

— Será algum soldado condenado a quem terão oferecido a liberdade em troca do serviço — disse Athos — como no caso do infeliz Chalais (65).

(65) Com efeito, no dia fixado para a execução do Conde de Chalais não se encontrou o carrasco. Os amigos do fidalgo tinham-no raptado na esperança de retardar a execução e obter o perdão real. Funesta idéia, pois nessa tarde o verdugo oficial foi substituído por um criminoso condenado à forca, ao qual haviam prometido a liberdade se consentisse em substituir o carrasco. Ao subir ao cadafalso, Chalais pediu ao executor: "Não me faças sofrer." Como faltasse o cutelo, o algoz munira-se de uma espada. Golpeou diversas vezes a nuca sem conseguir decepá-la. Foi preciso que o confessor o ensinasse a colocar melhor a cabeça da vítima sobre o cepo. Largando a espada, o carrasco improvisado lançou mão de um enxó de tanoeiro, espécie de cutelo de cabo curto, e tornou a golpear diversas vezes a nuca. Como ainda dessa vez não lograsse destacar a cabeça do tronco, virou o corpo de Chalais para ferir a garganta por outro lado. Só depois do trigésimo golpe rolou a cabeça. Até ao vigésimo se ouviram os estertores do supliciado. E a mãe de Chalais, que em vão suplicara perdão ao Rei, quase fora assistir à execução, para levar ao filho o conforto de sua presença! (N. do T.)

— Não, não — continuou d'Artagnan — o seu andar não é a marcha compassada de um infante nem o passo largo de um cavalariano. Há em tudo isso uma perna fina, um porte distinto. Ou muito me engano ou estamos no rasto de um fidalgo.

— Um fidalgo! — exclamou Athos — impossível! Seria uma desonra para toda a fidalguia.

— Bela caçada! — disse Porthos com uma gargalhada que fez estremecerem as vidraças; — bela caçada, com todos os diabos!

— Ainda partes, Athos? — perguntou d'Artagnan.— Não, fico — respondeu o gentil-homem com um gesto de ameaça que

não prometia nada de bom à pessoa a que fora dirigido.— Então, às espadas! — bradou Aramis — às espadas! e não percamos

um instante.Os quatro amigos tornaram a envergar rapidamente os trajos de

cavaleiros, cingiram as espadas, fizeram Mousqueton e Blaisois montarem e ordenaram-lhes que acertassem as contas com o estalajadeiro e tivessem tudo pronto para a partida, visto que, segundo todas as probabilidades, deixariam Londres naquela mesma noite.

Tornara-se a noite ainda mais escura, a neve continuava a cair e parecia

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um vasto lençol estendido sobre a cidade regicida; seriam umas sete horas da noite e raros transeuntes passavam pelas ruas; todos comentavam em secreto e baixinho os terríveis sucessos do dia.

Envoltos em suas capas, atravessaram os quatro amigos todas as praças e ruas da cidade, tão freqüentadas durante o dia e tão desertas aquela noite. Conduzia-os d'Artagnan, tentando identificar de tempos a tempos as cruzes que fizera nos muros com o punhal; mas tão sombria era a noite que só a muito custo se reconheciam os vestígios indicadores. Entretanto, d'Artagnan feixara tão bem no espírito cada mar-

co, cada fonte e cada tabuleta, que, ao cabo de meia hora de marcha, se viu com os três companheiros, diante da casa isolada.

Supôs d'Artagnan por um instante que o irmão de Parry houvesse desaparecido; mas enganava-se: o robusto escocês, acostumado às geleiras de suas montanhas, encostara-se a um marco e, como estátua arrancada do pedestal, insensível às intempéries, deixara-se cobrir de neve; entretanto, à aproximação dos quatro homens, levantou-se.

— Bem — disse Athos — eis aqui outro bom servidor. Justos céus! A gente boa é menos rara do que se imagina. Isso dá coragem.

— Não nos apressemos em deitar boas ao nosso escocês — acudiu d'Artagnan; — creio que o patife está aqui por conta própria. Já ouvi dizer que estes senhores que viram a luz do dia do outro lado do Tweed são muito rancorosos. Mestre Groslow que se acautele! Poderá passar um mau quarto de hora se topar com ele.

E, arredando-se dos amigos, aproximou-se do escocês e deu-se a conhecer. Em seguida, fez sinal aos outros que se aproximassem.

— E então? — perguntou Athos em inglês.— Ninguém saiu — respondeu o irmão de Parry.— Bem, fica com este homem, Porthos, e tu também, Aramis.

D'Artagnan vai conduzir-me a Grimaud.Não menos hábil do que o escocês, cosera-se Grimaud com um salgueiro

oco, do qual fizera uma guarita. Por um instante, como já lhe sucedera com a outra sentinela, cuidou d'Artagnan que o mascarado saíra e Grimaud o havia seguido.

De repente surgiu uma cabeça e ouviu-se leve assobio.— Oh! — disse Athos.— Sim — respondeu Grimaud. Acercaram-se do salgueiro.— E então? — perguntou d'Artagnan. — Saiu alguém?— Não, mas alguém entrou — redargüiu Grimaud.— Homem ou mulher?— Homem.

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— Ah! ah! — disse d'Artagnan; — são dois, então.— Eu quisera que fossem quatro — disse Athos; — a partida, pelo

menos, seria igual.— Talvez sejam quatro.— Como?— Não poderia haver nesta casa outros homens esperando?— Pode-se ver — disse Grimaud, indicando uma janela, através de cujas

persianas se coavam alguns raios de luz.— De fato — conveio d'Artagnan. — Chamemos os outros.E deram a volta da casa para fazer sinal a Porthos e Aramis.Estes acorreram pressurosos.— Vistes alguma coisa? — perguntaram.— Não, mas vamos ver — respondeu d'Artagnan mostrando Grimaud,

que, agarrado às asperezas da parede, já trepara uns cinco ou seis pés.Avizinharam-se os quatro. Grimaud continuava a subir com a destreza de

um gato; por fim, conseguiu segurar um dos ganchos que servem de firmar as persianas quando abertas; ao mesmo tempo, o seu pé encontrou uma moldura que pareceu apresentar-lhe ponto de apoio suficiente, pois fez sinal que chegara ao ponto desejado. Em seguida aproximou os olhos da fresta da janela.

— E então? — perguntou d'Artagnan.Grimaud mostrou a mão fechada com apenas dois dedos abertos.— Fala — disse Athos — não se vêm os teus sinais. Quantos são?Grimaud fez um esforço sobre si mesmo.— Dois — disse ele; — um diante de mim; o outro, de costas.— Bem. E quem está diante de ti?— O homem que vi passar.— Não o conheces?— Supus reconhecê-lo e não me enganei: baixo e gordo.— Quem é? — perguntaram ao mesmo tempo e em voz baixa os quatro

amigos.— O General Olivério Cromwell. Os quatro amigos entreolharam-se.— E o outro? — perguntou Athos.— Magro e esbelto.— É o carrasco — disseram, a um tempo, d’Artagnan e Aramis.— Só lhe vejo as costas — continuou Grimaud; — mas esperais, ele está

fazendo um movimento, vai virar-se; e se Dá tirou a máscara, poderei ver... Ah!

Como se lhe tivessem traspassado o coração, Grimaud largou o gancho de ferro e jogou-se para trás, despedindo um gemido surdo. Porthos recebeu-

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o nos braços.— Conseguiste vê-lo? — perguntaram os quatro.— Sim — respondeu Grimaud, com os cabelos em pé e a fronte molhada

de suor.— O homem magro e esbelto? — insistiu d'Artagnan.— O carrasco, enfim? — disse Aramis.— Sim.— E quem é? — perguntou Porthos.— Ele! ele! — balbuciou Grimaud, pálido como um cadáver e segurando

com mãos trêmulas as mãos do amo.— Ele, quem? — inquiriu Athos.— Mordaunt!... — respondeu Grimaud. D'Artagnan, Porthos e Aramis

soltaram uma exclamação de alegria.Athos deu um passo para trás e passou a mão pela testa:— Fatalidade! — murmurou.

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CAPÍTULO X

A CASA DE CROMWELL

ERA efetivamente Mordaunt que d’Artagnan seguira sem reconhecer.Ao entrar na casa retirara a máscara e a barba grisalha, que pusera para

disfarçar-se, subira a escada, abrira uma porta e, num quarto alumiado pela claridade de uma lâmpada e forrado de escuro, vira-se diante de um homem sentado a uma secretária, que escrevia. Esse homem era Cromwell.

Sabe-se que Cromwell possuía em Londres dois ou três desses retiros, desconhecidos até para o comum dos amigos, e cujo segredo só revelava aos mais íntimos. Ora, Mordaunt, -como o leitor deve estar lembrado, podia incluir-se entre os últimos.

Quando ele entrou, Cromwell ergueu a cabeça:— Sois vós, Mordaunt? Chegastes tarde.— General — respondeu Mordaunt — eu quis ver a cerimônia até ao

fim, e isso me retardou.— Ah! — observou Cromwell — eu não vos sabia de ordinário tão

curioso.— Sempre tenho curiosidade de assistir à queda de um dos inimigos de

Vossa Honra, e este não estava no rol dos mais insignificantes. Mas vós, General, não estáveis em White-Hall?

— Não — respondeu Cromwell. Houve um momento de silêncio.— Soubestes dos pormenores? — perguntou Mordaunt.— Não. Estou aqui desde cedo. Sei apenas que havia uma conspiração

para salvar o Rei.— Ah! sabíeis disso?— Pouco importa. Quatro homens disfarçados em operários deviam tirar

o Rei da prisão e conduzi-lo a Greenwich, onde um barco os esperava.— E, sabendo-o, Vossa Honra permanecia aqui, longe da cidade,

tranqüilo e inativo?— Tranqüilo, sim — redargüiu Cromwell; — mas quem vos disse

inativo?— E se a conjuração fosse bem sucedida?— Era o que eu desejava.— Eu supunha que Vossa Honra considerasse a morte de Carlos I como

uma desgraça necessária à felicidade da Inglaterra.

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— Pois eu — disse Cromwell — continuo a pensar assim. Mas o importante era que ele morresse; e melhor fora, talvez, que não morresse no patíbulo.

— Por que, senhor? Cromwell sorriu.— Perdão — atalhou Mordaunt — mas Vossa Honra sabe que sou um

principiante em política e desejo aproveitar em todas as circunstâncias as lições que haja por bem ministrar-me o meu mestre.

— Porque diriam que o fiz condenar por justiça e que o deixei fugir por misericórdia.

— E se ele tivesse efetivamente fugido?— Impossível.— Impossível?— Sim, as minhas precauções estavam tomadas.— E Vossa Honra conhece os quatro homens que tinham decidido salvar

o Rei?— São os quatro franceses, dois dos quais foram enviados pela Sra.

Henriqueta ao marido e dois por Mazarino a mim.— E acreditais, senhor, que Mazarino os tenha encarregado de fazer o

que fizeram?— É possível, mas ele os renegará.— Parece-vos?— Tenho certeza.— Por quê?— Porque foram mal sucedidos.— Vossa Honra me dera dois desses franceses quando eram apenas

culpados de haver pegado em armas em favor de Carlos I. Agora que são culpados de conspirar contra a Inglaterra, quer Vossa Honra dar-me os quatro?

— São vossos — disse Cromwell.Inclinou-se Mordaunt com um sorriso de ferocidade triunfal.— Mas — prosseguiu Cromwell ao ver que Mordaunt se preparava para

agradecer-lhe — voltemos, se vos praz, ao infeliz Carlos. Ouviram-se gritos no meio do povo?

— Muito poucos, a não ser: "Viva Cromwell!"— Onde estáveis colocado?Mordaunt considerou por um instante o General para tentar ler-lhe nos

olhos se ele fazia uma pergunta inútil e se já se inteirara de tudo.Mas o olhar ardente de Mordaunt não alcançou penetrar as sombrias

profundezas do olhar de Cromwell.— Eu estava colocado de modo que podia ver e ouvir tudo — redargüiu

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Mordaunt.Cromwell, por seu turno, olhou fixamente para Mordaunt e foi

Mordaunt, dessa feita, quem se fez impenetrável. Depois de alguns segundos de exame, desviou os olhos com indiferença.

— Parece — disse Cromwell — que o carrasco improvisado soube fazer o seu ofício. O golpe segundo me contaram, foi aplicado por mão de mestre.

Lembrou-se Mordaunt de que Cromwell lhe dissera não ter sabido de pormenor algum, e convenceu-se que o General assistira à execução escondido atrás de alguma cortina ou de alguma gelosia.

— De fato — confirmou Mordaunt, com voz calma e rosto impassível — bastou um golpe.

— Talvez — disse Cromwell — fosse um homem do ofício.— Parece-vos, senhor?— E por que não?— Porque o homem não tinha aspecto de carrasco.— E quem, senão um carrasco — perguntou Cromwell — se sujeitaria a

exercer esse horrível mister?— Talvez — disse Mordaunt — algum inimigo pessoal do Rei Carlos,

que tenha jurado vingar-se e haja cumprido o juramento; algum gentil-homem que tivesse sobejas razões para odiar o rei destronado, e que, sabedor de que ele ia fugir e escapar-lhe, assim se colocou em seu caminho, com o rosto mascarado e o cutelo na mão, não como substituto do carrasco, senão como mandatário da fatalidade.

— É possível — anuiu Cromwell.— E a ser esse o caso — tornou Mordaunt — condenaria Vossa Honra o

seu procedimento?— Não me compete julgar — disse Cromwell. — É uma questão entre

ele e Deus.— Mas se Vossa Honra conhecesse o gentil-homem... ?— Não o conheço, senhor — respondeu Cromwell — nem quero

conhecê-lo. Que me faz que seja este ou aquele? Desde que Carlos foi condenado, não foi um homem que lhe decepou a cabeça, mas um cutelo.

— Mas sem esse homem, no entanto — atalhou Mordaunt — o Rei se teria salvado.

Cromwell sorriu.— Sem dúvida, vós mesmo o dissestes. Seria raptado.— Seria raptado até Greenwich. Lá se embarcaria numa falua com os

quatro salvadores. Mas na falua estavam quatro homens meus e cinco tonéis de pólvora da nação. Em pleno mar, os quatro homens saltariam para uma canoa, e já sois político suficientemente hábil, Mordaunt, para que me seja

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preciso explicar-vos o resto.— Sim, em pleno mar iriam todos pelos ares.— Precisamente. A explosão faria o que não fizera o cutelo. O Rei

Carlos desapareceria da face da terra. Dir-se-ia que, tendo fugido à justiça humana, fora perseguido e alcançado pela justiça divina; seríamos, então, apenas os juizes e seria Deus o verdugo. Eis o que me fez perder o vosso fidalgo mascarado, Mordaunt. Como vedes, eu tinha razão quando me recusei a conhecê-lo; pois, em verdade, a despeito de suas excelentes intenções, não lhe poderia ser grato pelo que fez.

— Senhor — disse Mordaunt — como sempre, eu me inclino e humilho diante de vós; sois um pensador profundo e — continuou — a vossa idéia da falua minada é sublime.

— Absurda — disse Cromwell — visto que se tornou inútil. Só é sublime em política a idéia que produz frutos; toda idéia que aborta é árida e vã. Ireis, portanto, esta noite a Greenwich, Mordaunt — disse Cromwell levantando-se; — procurareis o patrão da falua O Relâmpago, mostrar-lhe-eis um lenço branco amarrado nas quatro pontas, que é o sinal convencionado; direis à tripulação que desembarque e mandareis conduzir a pólvora ao Arsenal, a menos que...

— A menos que... — repetiu Mordaunt, em cujo rosto transluziu uma alegria selvagem enquanto Cromwell falava.

— A menos que essa falua, nas condições em que se encontra, possa servir aos vossos desígnios pessoais.

— Ah! Milorde!.Milorde! — exclamou Mordaunt — fazendo de vós o seu eleito, Deus vos emprestou o seu olhar, de que nada escapa.

— Creio que me chamastes Milorde! — atalhou Cromwell, dando risada. — Está bem, porque estamos sós, mas é preciso cautela para que não vos fuja a palavra diante dos nossos puritanos imbecis.

— Não é assim que Vossa Honra será logo mais chamado?— É, pelo menos, o que espero — disse Cromwell — mas ainda não

chegou o momento.Cromwell levantou-se e pegou na capa.— Retirai-vos, senhor? — perguntou Mordaunt.— Sim — respondeu Cromwell — dormi aqui ontem e anteontem, e

sabeis que não tenho por hábito dormir três vezes na mesma cama.— Portanto — disse Mordaunt — dá-me Vossa Honra toda a liberdade

para esta noite?— E até para o dia de amanhã, se for preciso — con-descendeu

Cromwell. — Desde ontem à noite — acrescentou, sorrindo — fizestes muito por meu serviço, e se tendes alguns negócios particulares para atender,

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é justo que eu vos conceda o tempo suficiente.— Obrigado, senhor; será bem empregado, assim o espero. Cromwell fez

a Mordaunt um sinal com a cabeça; logo, voltando-se:— Estais armado? — perguntou.— Tenho a espada.— E ninguém para acompanhar-vos?— Ninguém.— Deveríeis vir comigo, Mordaunt.— Obrigado, senhor; os rodeios que sois obrigado a fazer percorrendo o

subterrâneo me tomariam muito tempo e, pelo que acabastes de dizer, eu talvez já esteja muito atrasado. Sairei pela outra porta.

— Ide, então — disse Cromwell.E, colocando a mão sobre um botão oculto, abriu uma porta tão bem

escondida na tapeçaria que nem sequer a vista mais exercitada lograria reconhecê-la.

Movida por uma mola de aço, a porta voltou a fechar-se sobre ele.Era uma dessas saídas secretas, que, como no-lo revela a história,

existiam em todas as casas misteriosas em que morava Cromwell.Aquela passava por baixo da rua deserta e ia abrir-se no fundo de uma

gruta, no jardim de outra casa situada a cem passos da que o futuro protetor acabava de deixar.

Fora durante a última parte da cena, que, pela abertura deixada por uma cortina mal corrida, Grimaud distinguira os dois homens e reconhecera sucessivamente Cromwell e Mordaunt.

Vimos o efeito que produziu nos quatro amigos a notícia.Foi d'Artagnan o primeiro que recobrou a plenitude de suas faculdades.— Mordaunt — exclamou; — ah! pelo céu! é Deus quem no-lo manda.— Sim — disse Porthos — arrombemos a porta e caiamos sobre ele.— Pelo contrário — volveu d'Artagnan — não arrombemos coisa

alguma; nada de barulho, que o barulho chama gente; pois, se ele está, como diz Grimaud, com o digno amo, deve de haver, escondido a uns cinqüenta passos daqui, algum posto de ilhargas de ferro. Olá, Grimaud, aproxima-te e procura agüentar-te nas pernas.

Avizinhou-se Grimaud. Voltara-lhe o furor com o sentimento, mas ele se mantinha firme.

— Bem — continuou d'Artagnan. — Torna agora a subir a esse balcão e dize-nos se o Mordaunt ainda tem companhia, se se prepara para sair ou para deitar-se; se estiver acompanhado, esperaremos que fique só, se sair, apanhá-lo-emos à saída; se ficar, arrombaremos a janela. É sempre menos barulhenta e menos difícil do que uma porta.

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Grimaud pegou a escalar silenciosamente a janela.— Guardai a outra saída, Athos e Aramis: nós ficaremos aqui com

Porthos.Os dois amigos obedeceram.— E então, Grimaud? — perguntou d'Artagnan.— Está só — respondeu Grimaud.— Tens certeza?— Tenho.— Não vimos sair o companheiro.— Talvez tenha saído pela outra porta.— Que está fazendo?— Pondo a capa e calçando as luvas.— A nós! — murmurou d'Artagnan.Porthos levou a mão ao punhal, que tirou maquinal-mente da bainha.— Guarda isso, amigo Porthos — disse d'Artagnan — agora não se trata

de ferir. Temo-lo seguro, procedamos com ordem. Há ainda umas explicações mútuas que precisamos trocar e esta é uma continuação da cena de Armentières; esperemos apenas que esse camarada não tenha deixado descendentes e que, esmagando-o, esmaguemos tudo com ele.

— Pssiu! — disse Grimaud; — ele está-se preparando para sair. Aproxima-se da lâmpada. Apaga-a. Não enxergo mais nada.

— Desce, então, desce.Grimaud saltou para trás e caiu em pé. A neve abafava o som. Não se

ouviu ruído nenhum.— Vai prevenir Athos e Aramis para que se coloquem de cada lado da

porta, como Porthos e eu; se o pegarem, batam palmas; faremos o mesmo se o agarrarmos.

Grimaud sumiu.— Porthos, Porthos — disse d'Artagnan — esconde melhor o teu

corpanzil, caro amigo; é preciso que ele não veja nada ao sair.— Contanto que ele saia por aqui!— Pssiu!Porthos coseu-se com o muro como se quisesse entrar por ele.

D'Artagnan fez o mesmo.Ouviu-se então soar o passo de Mordaunt na escada sonora. Um postigo

oculto correu, rangendo, na respectiva corrediça. Mordaunt olhou para fora e, mercê das precauções tomadas pelos dois amigos, não viu coisa alguma. Introduziu a chave na fechadura; abriu-se a porta e ele surgiu no limiar.

No mesmo instante se achou frente a frente com d’Artagnan.Quis fechar de novo a porta, mas Porthos se atirou sobre a maçaneta e

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tornou a abri-la de par em par.Porthos bateu palmas três vezes. Athos e Aramis acorreram.Mordaunt fez-se lívido, mas não soltou um grito nem bradou por

socorro.D’Artagnan marchou direito sobre Mordaunt e, empurrando-o, por assim

dizer, com o peito, fê-lo subir às recuadas a escada, alumbrada por uma lâmpada que permitia ao gascão não perder vista das mãos de Mordaunt; mas Mordaunt compreendeu que, se matasse d'Artagnan, precisaria desfazer-se ainda dos três outros inimigos. Não fez, portanto, um só movimento de defesa, não esboçou sequer um gesto de ameaça. Chegado à porta, sentiu-se acuado contra ela e julgou, sem dúvida, que ali se acabaria tudo para ele; mas enganava-se, pois d'Artagnan estendeu a mão e abriu a porta. Mordaunt e ele viram-se, por conseguinte, no mesmo quarto em que, dez minutos antes, o rapaz conversava com Cromwell.

Porthos entrou atrás dele; estendeu o braço e arrancou & lâmpada que pendia do teto; com a ajuda da primeira, acendeu a segunda.

Athos e Aramis assomaram ao limiar da porta, que voltaram a fechar à chave.

— Tende a bondade de assentar-vos — disse d'Artagnan apresentando uma cadeira ao rapaz.

Este tomou a cadeira das mãos de d'Artagnan e sentou-se, pálido mas calmo. A três passos dele, Aramis puxou três cadeiras, para si, para d'Artagnan e para Porthos.

Athos foi sentar-se num canto, no ângulo mais afastado do quarto, aparentemente decidido a manter-se como espectador imóvel do que ia passar-se.

Porthos sentou-se à esquerda e Aramis à direita de d’Artagnan.Athos parecia acabrunhado. Porthos esfregava a palma das mãos com

impaciência febril.Embora sorrisse, Aramis mordia os lábios a ponto de deitarem sangue.Somente d'Artagnan se reportava, pelo menos na aparência.— Sr. Mordaunt — disse ele ao rapaz — visto que, depois de tantos dias

perdidos em corrermos uns atrás dos outros, torna a juntar-nos o acaso, conversemos um pouco, por favor.

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CAPÍTULO XI

CONVERSAÇÃO

MORDAUNT fora tão inopinadamente surpreendido, subira a escada sob a impressão de um sentimento tão confuso, que não pudera raciocinar direito; o seu primeiro sentimento era o misto de comoção, de surpresa e de invencível terror que se apodera de nós diante de um inimigo mortal e superior em forças prestes a ferir-nos, quando o supomos em outro lugar e entregue a outras ocupações.

Mas tanto que se assentou e percebeu que lhe concediam um sursis, fosse qual fosse a intenção dos adversários, concentrou todas as idéias e reuniu todas as forças.

Em vez de intimidá-lo, o fulgor do olhar de d'Artagnan eletrizou-o, por assim dizer, pois esse olhar, a despeito das ameaças que encerrava, era franco no ódio e na cólera. Pronto para aproveitar-se de toda e qualquer ocasião que se lhe antolhasse para sair da enrascada, quer pela força, quer pela astúcia, Mordaunt fez um desesperado esforço sobre si mesmo, como o urso acossado em seu covil a seguir com o olhar aparentemente imóvel, todos os gestos do caçador que o persegue.

Por um movimento rápido, porém, esse olhar se dirigiu para a espada comprida e forte que lhe pendia do cinto e lhe batia na coxa; pousou sem afetação a mão esquerda no punho, colocou-o de modo que pudesse alcançá-lo com a direita e sentou-se, como lhe pedira d'Artagnan.

Este esperava, sem dúvida, alguma palavra agressiva para encetar uma dessas conversações zombeteiras ou terríveis, que tão bem sustentava. Aramis dizia entre si: "Vamos ouvir sensaborias." Porthos mordia o bigode, resmungando: "Tanta cerimônia para esmagar a cobrinha!" Athos procurava apagar-se no ângulo do quarto, imóvel e pálido como um baixo-relevo de mármore, e sentindo, apesar da imobilidade, a fronte molhar-se de suor.

Mordaunt não falava; mas quando se certificou de que a espada continuava à sua disposição, cruzou imperturbavelmente as pernas e esperou.

O silêncio não poderia prolongar-se por mais tempo sem se tornar ridículo; d'Artagnan compreendeu-o; e como convidara Mordaunt a sentar-se para conversarem, entendeu que lhe cabia dar início à conversação.

— Parece-me, senhor — principiou com a sua polidez mortal — que mudais de roupa quase tão rapidamente quanto os bonecos italianos que o Sr.

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Cardeal de Mazarino mandou vir de Bérgamo, e que ele, sem dúvida, vos mostrou durante a vossa viagem à França.

Mordaunt não respondeu.— Ainda há pouco — prosseguiu d'Artagnan — estáveis fantasiado,

quero dizer, vestido de assassino, e agora...— E agora, pelo contrário, pareço vestir as roupas de um homem que vai

ser assassinado, não é verdade? — revidou Mordaunt com voz calma e breve.

— Oh! senhor — respondeu d'Artagnan — como podeis dizer uma coisa dessas estando em companhia de cavaleiros e tendo à cinta uma espada tão bonita?

— Não há espada, por bonita que seja, que valha quatro espadas e quatro punhais; sem contar as espadas e os punhais dos vossos acólitos, que esperam à porta.

— Perdão, senhor — voltou d'Artagnan — laborais em erro: os homens que nos esperam à porta não são nossos acólitos, mas nossos lacaios. Faço questão de por escrupulosamente os pontos nos ii.

Mordaunt respondeu apenas por um sorriso que lhe crispou ironicamente os lábios.

— Mas não é disso que se trata — tornou d'Artagnan — e volto à minha pergunta. Tinha eu a honra de perguntar-vos por que mudastes de roupa? Parece-me que a máscara vos quadrava; a barba grisalha vos dizia às mil maravilhas, e quanto ao cutelo com o qual desferistes tão ilustre golpe, creio que também não vos ficaria mal neste momento. Por que mudastes de roupa?

— Porque, lembrando-me da cena de Armentières, pensei encontrar quatro cutelos contra um, visto que me veria entre quatro carrascos.

— Senhor — respondeu d'Artagnan com a maior calma, se bem um leve movimento de sobrancelhas denunciasse que ele principiava a esquentar-se — embora profundamente vicioso e corrupto, sois excessivamente jovem, o que me leva a passar por alto os vossos frívolos discursos. Frívolos, sim, porque o que acabais de dizer a respeito de Armentières não tem a menor relação com a situação presente. De fato, não podíamos oferecer uma espada à senhora vossa mãe e convidá-la a bater-se conosco; mas a vós, senhor, a um jovem cavaleiro que maneja o punhal e a pistola como já vos vimos fazer, e que carrega uma espada do tamanho da que trazeis, não há quem não tenha o direito de pedir o favor de um encontro.

— Ah! ah! — bradou Mordaunt — é então um duelo que quereis?E levantou-se, com os olhos fuzilantes, como se estivesse disposto a

responder no mesmo instante à provocação.Porthos levantou-se também, pronto como sempre para esse gênero de

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aventuras.— Perdão, perdão — atalhou d'Artagnan com o mesmo sangue-frio; —

não nos apressemos, pois cada um de nós há de desejar que as coisas se passem segundo todas as regras. Torna a sentar-te, portanto, caro Porthos, e vós, Sr. Mordaunt, tende a bondade de ficar tranqüilo. Vamos acertar o melhor possível esse negócio, e eu serei franco convosco. Confessai que tendes muita vontade de matar-nos, a uns ou a outros?

— A uns e a outros — respondeu Mordaunt. Voltou-se d'Artagnan para Aramis e disse-lhe:

— É uma grande felicidade, caro Aramis, que o Sr. Mordaunt conheça tão bem as sutilezas da língua francesa; pelo menos não haverá malentendidos entre nós, e tudo se arranjará maravilhosamente.

Logo, voltando-se para Mordaunt:— Caro Sr. Mordaunt — continuou — eu vos direi que estes senhores

pagam com a mesmíssima moeda os bons sentimentos que lhes votais, e gostariam imenso de matar-vos também. Direi mais, provavelmente vos matarão; mas saberão fazê-lo como fidalgos leais, e a melhor prova disso é a seguinte.

Dizendo essas palavras, d'Artagnan atirou o chapéu sobre o tapete, empurrou a cadeira para a parede, fez sinal aos amigos que o imitassem, e, cumprimentando Mordaunt com uma graça muito francesa:

— Às vossas ordens, senhor — continuou; — pois se não tendes nada que objetar à honra que reclamo, começarei eu, se vos apraz. Minha espada é mais curta que a vossa, é verdade, mas não faz mal! espero que o braço compense a espada.

— Alto lá! — bradou Porthos, adiantando-se; — quem começa sou eu, e sem retórica.

— Com licença, Porthos — disse Aramis.Athos não fez um gesto; dir-se-ia uma estátua; até a sua respiração

parecia suspensa.— Senhores, senhores — sobreveio d'Artagnan — descansai, tereis a

vossa vez. Contemplai os olhos deste senhor e lede neles o bendito ódio que lhe inspiramos; vedes com quanta habilidade desembainhou a espada; admirai a circunspecção com que procura à sua volta algum obstáculo que o impeça de investir. Pois bem, não será prova tudo isso de que o Sr. Mordaunt é um belo espadachim e que vós me sucedereis dentro em pouco, se eu o permitir? Conservai-vos, portanto, em vossos lugares como Athos, cuja calma nunca será demasiado recomendar, e deixai-me a iniciativa que tomei. Aliás — prosseguiu, puxando da espada com gesto terrível — tenho um assunto particular para resolver cem este senhor e vou começar. Desejo-o,

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quero-o.Era a primeira vez que d'Artagnan pronunciava essa palavra dirigindo-se

aos amigos. Até então contentara-se em pensá-la.Porthos recuou, Aramis enfiou a espada debaixo do braço; Athos

permaneceu imóvel no canto escuro em que ficara, não calmo, como dissera d'Artagnan, mas abafado, ofegante.

— Embainhai de novo a espada, Cavaleiro — disse d’Artagnan a Aramis — este senhor poderia atribuir-vos intenções que não tendes.

E, logo, voltando-se para Mordaunt:— Senhor, eu vos espero.— E eu, senhores, vos admiro. Discutis sobre quem se há de bater

primeiro comigo, e nem sequer me consultais, a mim, que sou um dos principais interessados, se não me engano. Odeio os quatro, é verdade, mas em graus diferentes. Espero matá-los, mas tenho maiores possibilidades de matar o primeiro que o segundo, o segundo que o terceiro, o terceiro que o último. Reclamo, portanto, o direito de escolher o adversário. Se me negardes esse direito, matai-me, que não me bato.

Entreolharam-se os quatro amigos.— É justo — disseram Porthos e Aramis, esperando que neles recaísse a

escolha.Athos e d'Artagnan não disseram nada; mas o seu próprio silêncio era

um assentimento.— Pois bem! — declarou Mordaunt no meio do silêncio profundo e

solene que reinava na casa misteriosa; — pois bem! escolho por primeiro adversário aquele dentre vós que, já não se julgando digno de chamar-se Conde de La Fere, adotou o nome de Athos!

Athos levantou-se da cadeira como impulsionado por uma mola; mas, para assombro dos amigos, após um momento de imobilidade e silêncio:

— Sr. Mordaunt — disse ele meneando a cabeça — qualquer duelo entre nós dois é impossível; concedei a outrem a honra que me destináveis.

E voltou a sentar-se.— Ah! — observou Mordaunt — aqui já está um que tem medo.— Com mil raios! — trovejou d'Artagnan, dando um salto para o rapaz

— quem foi que disse que Athos tem medo?— Deixa-o dizer, d’Artagnan — volveu Athos com um sorriso cheio de

tristeza e de desdém.— É essa a tua decisão, Athos? — perguntou o gascão.— Irrevogável.— Está bem, não se fala mais nisso. Depois, dirigindo-se a Mordaunt:— Ouvistes, senhor, o Conde de La Fere não quer dar-vos a honra de

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bater-se convosco. Escolhei entre nós alguém que o substitua.— Já que não me bato com ele — disse Mordaunt — pouco me faz o

adversário. Ponde os vossos nomes num chapéu e eu escolherei ao acaso.— É uma idéia — conveio d’Artagnan.— De fato, esse meio concilia tudo — afirmou Aramis.— Não me lembrei disso — acudiu Porthos — e é tão simples!— Vejamos, Aramis — pediu d’Artagnan — escreve os nomes com a

letrinha bonita com que escrevias a Maria Michon para preveni-la de que a mãe deste senhor queria mandar assassinar Milorde Buckingham.

Mordaunt suportou o novo ataque sem pestanejar; estava em pé, com os braços cruzados, e parecia tão calmo quanto poderia estar um homem nessas circunstâncias. Se não era a coragem que o sustinha, era, pelo menos, o orgulho, e ambos se parecem.

Aramis abeirou-se da secretária de Cromwell, rasgou três Pedaços de papel de tamanho igual, escreveu no primeiro o seu nome e nos dois outros os nomes dos companheiros, apresentou-os abertos a Mordaunt, que, sem se dar ao trabalho de lê-los fez um sinal com a cabeça indicando que se fiava inteiramente dele; em seguida, tendo-os enrolado, pô-los num chapéu e apresentou-os ao rapaz.

Este mergulhou a mão no chapéu e dele retirou um dos três papéis, que deixou cair desdenhosamente, sem ler, sobre a mesa.

— Ah! víbora! — murmurou d'Artagnan — eu desistiria de bom grado da minha patente de capitão para que esse papelucho levasse o meu nome!

Aramis desdobrou o papel; mas, apesar da calma e da frieza que afetava, tremia-lhe a voz de ódio e desejo.

— D'Artagnan! — leu em voz alta. D'Artagnan soltou um grito de alegria.

— Ah! — disse ele — sempre há justiça no céu! E, voltando-se para Mordaunt:

— Espero, senhor, que não tenhais objeções que fazer?— Nenhuma, senhor — respondeu Mordaunt, desembainhando por seu

turno a espada e apoiando-lhe a ponta na bota.A partir do momento em que d'Artagnan teve a certeza de que o seu

desejo fora satisfeito e de que o homem não lhe escaparia, reassumiu toda a tranqüilidade, toda a calma até a lentidão com que de hábito fazia os preparativos para esse grave negócio que se chama um duelo (66). Arregaçou as mangas, esfregou a sola da bota direita no soalho e notou que, pela segunda vez, Mordaunt lançava à sua volta o singularíssimo olhar que já lhe surpreendera antes.

(66) Os duelos, nesse tempo, continuavam em moda. Durante o reinado de Henrique IV,

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em menos de dez anos, mais de quatro mil fidalgos morreram em encontros dessa natureza. A despeito dos éditos promulgados por Luís XIII, que cominavam a pena capital aos infratores, os combates singulares continuaram e, durante a regência de Ana d'Áustria chegaram até a recrudescer. 940 fidalgos morreram em duelos nesse período, afirma o Marechal de Grammont. Não se passava semana em que se não travasse um duelo na Corte. Puxava-se da espada por qualquer coisa, por um dá cá aquela palha, e, muita vez, à toa, pela simples beleza do gesto. "Asseguraram-me que sois corajoso, senhor," dizia Boutteville aos duelistas cuja reputação ameaçava a sua, "precisamos bater-nos." O próprio Boutteville, antes de ser executado, já travara uma vintena de duelos. O Cavaleiro d'Andrieux, segundo se dizia, matara, em combates singulares, 72 pessoas. E nem o cair da noite impedia os encontros: quando não enxergavam direito, os combatentes manejavam a espada com a mão direita e, com a esquerda, empunhavam um archote. (N. do T.)

— Estais pronto, senhor? — disse afinal.— Sou eu quem vos espera — retrucou Mordaunt, erguendo a cabeça e

considerando d'Artagnan com um olhar de intraduzível expressão.— Acautelai-vos, então — disse o gascão — porque manejo muito bem

a espada.— E eu também — replicou Mordaunt.— Tanto melhor; isso me tranqüiliza a consciência; em guarda!— Um momento — atalhou o rapaz — dai-me a vossa palavra, senhores,

de que não me atacareis ao mesmo tempo.— É para teres o prazer de insultar-nos, cobrinha, que nos perguntas

isso? — bradou Porthos.— Não, é para ter, como dizia há pouco este senhor, a consciência

tranqüila.— Há de ser por outra coisa — murmurou d'Artagnan bamboando a

cabeça e relanceando os olhos em torno de si com certa inquietude.— Palavra de gentil-homem! — disseram, ao mesmo tempo, Aramis e

Porthos.— Nesse caso, senhores, colocai-vos num canto, como fez o Sr. Conde

de La Fere, que, se não quer bater-se, parece-me, pelo menos, conhecer as regras do combate, e dai-nos espaço; precisaremos dele.

— Seja — disse Aramis.— Quanta cerimônia !— observou Porthos.— Arredai-vos, senhores — disse d'Artagnan; — é preciso não dar a este

cavalheiro o menor pretexto para proceder mal, o que ele, salvo o respeito que lhe devo, me parece muito desejoso de fazer.

A nova zombaria não alterou a fisionomia impassível de Mordaunt.Porthos e Aramis colocaram-se no canto paralelo àquele em que Athos

se deixara ficar, de sorte que os dois campeões se viram no meio do quarto, isto é, em plena luz, pois as duas lâmpadas que alumiavam a cena tinham

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sido colocadas sobre a escrivaninha de Cromwell. É escusado dizer que a luz tanto mais se entibiava quanto mais aumentava a distância do centro de irradiação.

— Vamos — disse d'Artagnan — estais pronto, afinal?— Estou — respondeu Mordaunt.Deram os dois ao mesmo tempo um passo à frente, e, graças a esse

mesmo e único movimento, os ferros se cruzaram.D'Artagnan esgrimia muito bem para perder tempo, como se diz em

termos acadêmicos, experimentando o adversário. Atirou um bote rápido e brilhante; Mordaunt parou-o.

— Ah! ah! — exclamou o francês com um sorriso de satisfação.E, sem perder tempo, julgando distinguir uma abertura, desferiu um

golpe direito, ligeiro e flamejante como um raio.Mordaunt aparou-o também, com suma perfeição.— Começo a crer que vamos divertir-nos — disse d'Artagnan.— Sim — murmurou Aramis — mas enquanto te divertes, cuidado.— Cáspite! meu amigo, presta atenção — gritou Porthos. Mordaunt

sorriu por seu turno.— Ah! senhor — disse d'Artagnan — tendes um feio sorriso. Foi o diabo

que vos ensinou a sorrir assim, não foi?Como única resposta, Mordaunt tentou desviar a espada do gascão com

uma força que este não esperava encontrar naquele corpo de franzina aparência; graças, porém, a uma parada não menos hábil que a do adversário, encontrou a tempo o ferro de Mordaunt, que deslizou ao longo do seu sem lhe tocar no peito.

Mordaunt deu um passo rápido para trás.— Ah! investis — disse d'Artagnan — e desviai-vos? Como quiserdes,

quem sai ganhando sou eu: não preciso ver o vosso feio sorriso. Eis-me agora inteiramente na sombra; tanto melhor. Não fazeis idéia do quanto é falso o vosso olhar, senhor, principalmente quando tendes medo. Olhai um pouco para os meus olhos, e vereis uma coisa que nunca vos mostrará o espelho, isto é, um olhar franco e leal.

A esse fluxo de palavras, que não seria talvez de muito bom tom, mas que era habitual a d'Artagnan, cujo princípio consistia em preocupar o adversário, não respondeu Mordaunt uma única sílaba; mas investia e, virando sempre, conseguiu, volvido algum tempo, trocar de lugar com d'Artagnan.

Sorria cada vez mais. O sorriso principiou a inquietar o gascão.— Vamos, vamos, é preciso acabar — disse d’Artagnan — o safardana

tem tornozelos de ferro. Vamos aos grandes botes!

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E, por seu turno, acometeu Mordaunt, que continuava a atacar, mas evidentemente por tática, sem cometer um erro de que d’Artagnan pudesse aproveitar-se, sem que a sua espada se afastasse um instante da linha. Entretanto, como o combate se realizava num quarto e os combates não tinham espaço, o pé de Mordaunt logo tocou a parede, em que ele apoiou a mão esquerda.

— Ah! — exclamou d'Artagnan — desta feita não atacareis mais, meu belo amigo! Senhores — continuou, apertando os lábios e franzindo o cenho — já vistes um escorpião pregado numa parede? Não. Pois bem! vereis...

E, num segundo, d'Artagnan lançou três golpes terríveis a Mordaunt. Os três o tocaram, mas apenas de leve. D’Artagnan não compreendia aquele poder. Os três amigos assistiam à cena ofegantes, a testa marejada de suor.

Afinal d'Artagnan, que se aproximara muito, deu por sua vez um passo para trás, a fim de preparar o quarto golpe, ou melhor, a fim de executá-lo; pois, para d'Artagnan, o jogo das armas como o jogo de xadrez, era uma vasta combinação cujos pormenores se ligavam uns aos outros. Mas no momento em que, após uma finta rápida e apertada, atacou com a rapidez do relâmpago, a parede pareceu abrir-se: Mordaunt sumiu pela abertura hiante, e a espada de d'Artagnan, presa entre a porta e a parede, partiu-se como se fosse de vidro.

D'Artagnan deu um passo para trás. A parede voltou a fechar-se.Soltou o gascão uma imprecação furiosa, à qual, do outro lado da porta

de ferro, respondeu uma risada selvagem, uma fúnebre risada, que fez passar um calafrio até as veias do cétimo Aramis.

— A mim, senhores! — gritou d'Artagnan — arrombemos a porta.— É o demônio em pessoa! — disse Aramis, acorrendo à chamada do

amigo.— Ele nos foge, com a breca! ele nos foge — urrou Porthos, metendo os

ombros à porta, que, segura por alguma mola secreta, não se mexeu.— Tanto melhor — murmurou surdamente Athos.— Eu já desconfiava, peste! — bradou d'Artagnan, esgotando-se em

esforços inúteis — eu já desconfiava; quando o miserável deu a volta do quarto, previ alguma infame manobra, adivinhei que ele tramava qualquer coisa; mas quem poderia desconfiar de uma tramóia dessas?

— É uma terrível desgraça que nos manda o diabo, amigo dele! — exclamou Aramis.

— É uma felicidade manifesta que nos envia Deus! — disse Athos com evidente alegria.

— Em verdade — acudiu d'Artagnan encolhendo os ombros e deixando a porta que decididamente não queria abrir-se fraquejas, Athos! Que diabo!

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como podes dizer isso a gente como nós! Não compreendes a situação?— O quê? Que situação? — perguntou Porthos.— Neste jogo, quem não mata morre — tornou d’Artagnan. — Vejamos,

meu caro, estará na lógica de tuas jeremíadas expiatórias que o Sr. Mordaunt nos sacrifique à sua piedade filial? Se é esse o teu parecer, dize-o francamente.

— Oh! d'Artagnan, meu amigo!— Mas é que, em realidade, dá pena ver as coisas a essa luz! O

miserável vai mandar-me cem ilhargas de ferro, que nos pilarão como sementes neste almofariz do Sr. Cromwell. Vamos! vamos! a caminho! se ficarmos cinco minutos aqui, estaremos fritos.

— Sim, tens razão, a caminho! — tornaram Athos e Aramis.— E aonde vamos? — perguntou Porthos.— À hospedaria, caro amigo, para buscar as nossas roupas e os nossos

cavalos; de lá, se Deus quiser, voltaremos à França, onde, pelo menos, conheço a arquitetura das casas. O barco espera-nos; ainda é uma felicidade.

E, juntando o exemplo às palavras, d'Artagnan devolveu à bainha o toco de espada, pegou no chapéu, abriu a porta que dava a escada, e desceu-a rapidamente, seguido dos três companheiros.

à porta encontraram os fugitivos os lacaios e pediram-lhes notícias de Mordaunt; mas eles não tinham visto sair ninguém.

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CAPÍTULO XII

A FALUA "O RELÂMPAGO"

D'ARTAGNAN adivinhara: Mordaunt não tinha tempo para perder e não o perdera. Conhecendo a rapidez de decisão e ação dos inimigos, resolvera proceder de acordo com ela. Desta feita haviam encontrado os mosqueteiros um adversário digno deles.

Depois de ter fechado a porta com cuidado atrás de si, esgueirou-se pelo subterrâneo, ao mesmo passo que tornava a embainhar a espada, já inútil; chegando à casa vizinha, estacou para apalpar-se e tomar fôlego.

— Bem! — murmurou — quase nada: uns arranhões, apenas; dois no braço, outro no peito. Eu, as feridas que faço são melhores! Perguntem ao carrasco de Béthune, a meu tio de Winter e ao Rei Carlos! Agora não há um segundo a perder, pois um segundo perdido pode salvá-los talvez, e é preciso que morram os quatro juntos, num golpe só, devorados pelo raio dos homens à falta do raio de Deus. É preciso que desapareçam, espedaçados, aniquilados, dispersos. Corramos enquanto as pernas puderem suportar-me, até que estoure o coração no peito, mas cheguemos antes deles.

E pôs-se a caminhar com passo rápido, porém mais cadenciado, na direção do primeiro quartel de cavalaria, que distava obra de um quarto de légua. Percorreu o quarto de légua em quatro ou cinco minutos.

Chegado à caserna, deu-se a conhecer, escolheu o melhor cavalo que havia nas cocheiras, montou e partiu. Quinze minutos depois estava em Greenwich.

— Aqui está o porto — cuidou entre si; — aquele ponto escuro lá embaixo é a Ilha dos Cães. Bem! Tenho meia hora de vantagem sobre eles... uma hora, talvez. Idiota que fui! Quase sufoquei de tanta precipitação. Agora — ajuntou, erguendo-se sobre os estribos como se quisesse identificar, ao longe, todas aquelas cordas e mastros — O Relâmpago, onde estará O Relâmpago?

No momento em que pronunciava mentalmente essas palavras, como que respondendo ao seu pensamento um homem deitado sobre um montão de amarras levantou-se e deu alguns passos para ele.

Mordaunt tirou um lenço do bolso e agitou-o um instante no ar. O homem pareceu prestar atenção, mas continuou no mesmo lugar, sem dar um passo, nem para a frente, nem para trás.

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Mordaunt deu um nó em cada uma das pontas do lenço; o homem aproximou-se. Era, como o leitor estará lembrado, o sinal combinado. Envolvera-se o marinheiro em ampla capa de lã que lhe ocultava o corpo e encobria o rosto.

— O cavaleiro — perguntou o marujo — não viria acaso de Londres para dar um passeio pelo mar?

— Exatamente — respondeu Mordaunt — do lado da Ilha dos Cães.— É isso mesmo. E o cavalheiro, sem dúvida, tem as suas preferências.

Talvez prefira um barco a outro. Quer um barco vagaroso, um barco rápido?...

— Como o relâmpago — respondeu Mordaunt.— Bem, nesse caso, é o meu barco que procura o cavalheiro, e sou eu o

patrão que lhe convém.— Começo a crê-lo — volveu Mordaunt — sobretudo se não esqueceste

certo sinal de reconhecimento.— Ei-lo, senhor — disse o marinheiro tirando do bolso da capa um lenço

amarrado nas quatro pontas.— Bom! bom! — exclamou, apeando, Mordaunt. — Não temos tempo

para perder. Fazei que conduzam o meu cavalo ao primeiro albergue e levai-me ao vosso barco.

— E os vossos companheiros? — tornou o marujo; — eu cuidava que fósseis quatro, sem contar os lacaios.

— Escutai — disse Mordaunt aproximando-se do marinheiro — não sou eu o homem que esperais, como vós não sois o homem que eles imaginam achar. Tomastes o lugar do Capitão Rogers, nãó é verdade? Estais aqui por ordem do General Cromwell, e eu venho da parte dele.

— Com efeito — disse o patrão — eu vos reconheço, sois o Capitão Mordaunt.

Mordaunt estremeceu.— Oh! não temais — disse o patrão abaixando o capuz e descobrindo a

cabeça — sou um amigo.— O Capitão Groslow! — exclamou Mordaunt.— Em pessoa. O General lembrou-se de que fui antanho oficial de

marinha e encarregou-me da expedição. Modificou-se alguma coisa?— Nada, nada. Pelo contrário, continua tudo no mesmo pé.— É que pensei um momento que a morte do Rei...— A morte do Rei só lhes apressou a fuga; daqui a um quarto de hora,

daqui a dez minutos talvez, estarão aqui.— Então, que viestes fazer?— Embarcar-me convosco.

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— Ah! ah! Duvidará acaso o General do meu zelo?— Não; mas quero assistir à minha vingança. Não tendes alguém que

possa encarregar-se do meu cavalo?Groslow assobiou, surgiu um marinheiro.— Patrick — disse Groslow — leva este cavalo à estalagem mais

próxima. Se te perguntarem a quem pertence, dize que é de um fidalgo irlandês.

O marinheiro afastou-se sem fazer qualquer observação.— Agora — perguntou Mordaunt — não receais que eles vos

reconheçam?— Com estes trajos, coberto por esta capa, numa noite escura como a de

hoje, não há perigo; de mais a mais, não me reconhecestes; com muito maior razão, eles também não me reconhecerão.

— É verdade — anuiu Mordaunt; — aliás, estarão longe de pensar em vós. Está tudo pronto?

— Está.— A carga já foi embarcada?— Já.— Cinco tonéis cheios?— E cinqüenta vazios.— Isso.— Transportamos vinho do Porto a Antuérpia.— Ótimo. Agora levai-me a bordo e tornai ao vosso posto, que eles não

tardam.— Estou pronto.— É indispensável que ninguém me veja entrar.— Só tenho um homem a bordo, e fio-me dele como de mim mesmo. De

resto, esse homem não vos conhece, e ele, como os companheiros, está pronto a obedecer às nossas ordens, mas ignora tudo.

— Está bem. Vamos.Desceram para o Tâmisa. Uma barquinha achava-se amarrada à margem

por uma corrente de ferro presa a uma estaca. Groslow puxou a barca para junto de si, segurou-a enquanto Mordaunt saltava, saltou também e, empunhando Quase ao mesmo tempo os remos, entrou a remar de maneira que provava a Mordaunt a verdade do que ele afirmara, a saber, que ainda não lhe esquecera o ofício de marinheiro.

Ao cabo de cinco minutos afastavam-se do mundo de embarcações, que, já nesse tempo, atulhavam as imediações de Londres, e Mordaunt pôde ver, como um ponto escuro, a faluazinha balouçando, ancorada, a umas quatrocentas ou quinhentas braças da Ilha dos Cães.

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Ao aproximar-se do Relâmpago, Groslow emitiu um silvo especial e viu surgir a cabeça de um homem acima da amurada.

— Sois vós, Capitão? — perguntou o homem.— Sim, joga a escada.E, passando rápida e levemente sob o gurupés, foi colocar-se bordo a

bordo com ele.— Subi — disse Groslow ao companheiro.Sem responder, Mordaunt agarrou a corda e subiu ao longo do costado

do navio com uma agilidade e um desembaraço pouco comuns na gente de terra; mas o desejo de vingança substituía nele o hábito e o habilitava a tudo.

Como o previra Groslow, o marinheiro que estava de guarda a bordo na falua nem pareceu notar que o patrão voltava acompanhado.

Mordaunt e Groslow dirigiram-se para o quarto do Capitão. Era uma espécie de camarote provisório, construído com pranchas sobre a coberta.

O camarote de honra fora cedido pelo Capitão Rogers aos passageiros.— E eles — perguntou Mordaunt — onde ficarão?— No extremo oposto do barco — respondeu Groslow.— E não têm nada que fazer deste lado?— Absolutamente nada.— Magnífico! Escondo-me no vosso camarote. Voltai a Greenwich e

trazei-os. Tendes uma chalupa?— Aquela em que viemos.— Pareceu-me leve e bem talhada.— Verdadeira piroga.— Amarrai-a à popa com um cabo de linho e deixai nela os remos para

que siga na esteira e tenhamos apenas que cortar o cabo. Apercebei-a de rum e biscoitos. Se, por acaso, o mar estiver agitado, os vossos homens gostarão de encontrar à mão algum conforto.

— Far-se-á como dizeis. Quereis visitar o paiol?— Não, quando voltardes. Quero colocar pessoalmente a mecha, para ter

certeza de que não demorará em arder.Sobretudo escondei bem o rosto, para que não vos reconheçam.— Ficai descansado.— Ide, já soam dez horas em Greenwich.Com efeito, as vibrações de um sino dez vezes repetidas atravessaram

tristemente o ar carregado de grossas nuvens, que rolavam no céu como vagas silenciosas.

Groslow empurrou a porta, que Mordaunt fechou por dentro, e, depois de ter dado ordem ao marinheiro de quarto que vigiasse com a máxima atenção, desceu para a lancha, que se afastou ligeira, fazendo espumar a água com os

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dois remos.O vento era frio e o cais estava deserto quando Groslow abicou em

Greenwich; vários barcos tinham partido aproveitando a maré. No momento em que pôs o pé em terra, ouviu Groslow como um galope de cavalos sobre as pedras do pavimento.

— Oh! oh! — disse ele — Mordaunt tinha razão em apressar-me. Não havia mesmo tempo para perder; ei-los aí.

Com efeito, eram os nossos amigos, ou melhor, a sua vanguarda, composta de d'Artagnan e de Athos. Chegados ao lugar em que se achava Groslow, estacaram, como se tivessem adivinhado que o homem que buscavam lá estava. Athos apeou e desenrolou tranqüilamente um lenço com as quatro pontas atadas e agitou-o no ar, ao passo que d'Artagnan, sempre prudente, continuava meio inclinado sobre a montaria, com uma das mãos mergulhada nos coldres.

Groslow, que, não tendo certeza de que os cavaleiros fossem os que esperava, se acaçapara atrás de um dos canhões fincados no solo, que servem de enrolar cabos, levantou-se ao ver o sinal convencionado e caminhou direito aos cavaleiros. De tal maneira se embuçara que fora impossível distinguir-lhe o rosto. A noite, aliás, era tão escura que tornava supérflua a precaução.

Entretanto, o olhar penetrante de Athos adivinhou, a despeito da escuridão, que aquele homem não era o Capitão Rogers.

— Que quereis? — perguntou a Groslow dando um passo Para trás.— Quero dizer-vos, Milorde — respondeu Groslow imitando o sotaque

irlandês — que procurais o patrão Rogers, mas debalde o procurais.— Por quê? ' Porque hoje cedo caiu do cesto da gávea e quebrou Perna.

Mas, como sou primo dele, contou-me o negócio e encarregou-me de reconhecer e levar aonde queiram ir, em seu nome, os fidalgos que me trouxessem um lenço amarrado nos quatro cantos como o que tendes na mão e como o que trago no bolso.

E, dizendo essas palavras, tirou do bolso o lenço que já mostrara a Mordaunt.

— É só? — perguntou Athos.— Não, Milorde; pois há ainda setenta e cinco libras prometidas se eu

vos desembarcar sãos e salvos em Bolonha ou em qualquer outro ponto de França que me indicardes.

— Que dizes disso, d'Artagnan? — perguntou Athos em francês.— Em primeiro lugar, que foi o que ele disse? — volveu d'Artagnan.— Ah! é verdade — disse Athos; — esquecia-me de que não entendes

inglês.

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E repetiu a conversação que acabara de travar com o patrão.— Parece-me verossímil — disse o gascão.— E a mim também — tornou Athos.— Aliás — voltou d’Artagnan — se esse homem está nos enganando,

sempre poderemos estourar-lhe os miolos.— E quem nos levará?— Tu, Athos; sabes tanta coisa que, sem dúvida, sabes também dirigir

um barco.— O fato — disse Athos com um sorriso — é que, brincando, quase

acertaste, amigo: meu pai havia-me destinado a servir na marinha e tenho umas vagas noções de pilotagem.

— Eu não disse? — bradou d'Artagnan.— Vai, então, buscar os amigos, d'Artagnan, e volta; são onze horas, não

temos tempo para perder.Dirigiu-se d’Artagnan para dois cavaleiros, que, de pistola em punho,

estavam de sentinela perto das primeiras casas da cidade, esperando- e vigiando à beira da estrada, encostados numa espécie de telheiro; três outros cavaleiros, de atalaia, pareciam esperar também.

As duas sentinelas eram Porthos e Aramis.Os três cavaleiros de atalaia eram Mousqueton, Blaisois e Grimaud; este

último, porém, examinado de mais perto, parecia duplo, pois trazia na garupa Parry, que deveria levar de volta a Londres os cavalos dos fidalgos e dos lacaios, vendidos ao estalajadeiro em pagamento das dívidas que tinham contraído na estalagem. Graças a esse negócio, os quatro amigos podiam embolsar uma soma, senão considerável, pelo menos suficiente para fazer face a quaisquer atrasos ou eventualidades.

D'Artagnan convidou Porthos e Aramis a segui-lo e estes fizeram sinal aos criados que apeassem e carregassem a bagagem.

Parry separou-se, não sem pesar, dos amigos; tinham-no convidado a ir para a França, mas ele recusara obstinadamente.

— É muito simples — dissera Mousqueton — ele tem lá as suas idéias a respeito de Groslow.

Como o leitor há de estar lembrado, fora o Capitão Groslow quem quebrara a cabeça de seu irmão.

A tropazinha juntou-se a Athos. Mas d'Artagnan principiava a sentir-se desconfiado; o cais lhe parecia muito deserto, a noite muito escura, o patrão muito fácil.

Referira a Aramis o incidente que narramos, e Aramis, não menos desconfiado do que ele, também contribuíra para aumentar-lhe as suspeitas.

Um pequeno estalo da língua contra os dentes traduziu para Athos as

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inquietudes do gascão.— Não temos tempo para desconfianças — disse Athos; — a barca nos

espera, entremos. /— De mais a mais — acudiu Aramis — quem nos impede de desconfiar

e entrar ao mesmo tempo? Vigiaremos o patrão.— E se ele não andar direito, vou-lhe às fuças. Pronto.— Bem dito, Porthos — acudiu d'Artagnan. — Entremos. Passa,

Mousqueton.E d'Artagnan deteve os amigos, fazendo os criados passarem primeiro, a

fim de experimentarem a prancha que conduzia do cais à barca.Embarcaram os três criados sem incidentes.Athos seguiu-os, depois Porthos, depois Aramis. D’Artagnan, que

passou por último, continuava a sacudir a cabeça.— Que diabo tens, meu amigo? — perguntou Porthos;— palavra, que meterias medo a César.— Tenho — respondeu d'Artagnan — que não vejo neste Porto nem

inspetor, nem sentinela, nem fiscal.— E ainda te queixas? — tornou Porthos. — Pois se vamos como num

mar de rosas!— Vai tudo bem demais, Porthos. Mas não faz mal. Estamos à mercê de

Deus.Tanto que se retirou a prancha, sentou-se o patrão ao leme e fez sinal a

um dos marinheiros, que, armado de um croque, principiou a manobrar para sair do dédalo de embarcações em cujo meio se metera o escaler.

O outro marinheiro já se achava a bombordo, com o remo na mão.Quando foi possível utilizar os remos, o companheiro foi juntar-se a ele e

a canoa começou a deslizar mais depressa.— Afinal, partimos! — disse Porthos.— Ai! — respondeu o Conde de La Fere — partimos sós!— Sim, mas partimos juntos, e sem um arranhão; já é um consolo.— Ainda não chegamos — sobreveio d'Artagnan; — cuidado com os

encontros!— Oh! meu caro — disse Porthos — estás hoje como os corvos, que só

cantam desgraças! Com quem poderemos encontrar-nos por uma noite escura como esta, em que não se enxerga a vinte passos de distância?

— E amanhã cedo?— Amanhã cedo estaremos em Bolonha.— Desejo-o de todo o coração — disse o mosqueteiro — e confesso a

minha fraqueza. Ouve, Athos, que isso te fará rir: enquanto estivemos a um tiro de fuzil do cais ou das embarcações que o rodeavam, não cessei de temer

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que uma fuzilaria medonha desse cabo de todos nós.— Mas — reconveio Porthos, com o seu pesado bom-senso — isso seria

impossível, pois matariam, ao mesmo tempo, o patrão e os marinheiros.— Como se uma coisa dessas pudesse atrapalhar o Sr. Mordaunt! Pois

sim!— Enfim — disse Porthos — gostei de ver d'Artagnan confessar que

teve medo.— Não somente o confesso, mas orgulho-me disso. Não sou um

rinoceronte como tu. Ué! que é isto?— O Relâmpago — disse o patrão.— Então, chegamos? — perguntou Athos em inglês?— Estamos chegando.Realmente, depois de três remadas o escaler abordava a falua.O marinheiro esperava, a escada estava pronta; ele reconhecera o escaler.Athos subiu primeiro com destreza maruja; Aramis, com o hábito

inveterado das escadas de corda e outros meios mais ou menos engenhosos que existem para cruzar os espaços proibidos; d'Artagnan, como um caçador de camurças e cabritos monteses; Porthos, com o potencial de força que nele supria tudo.

Para os criados, foi mais difícil a operação; não para Grimaud, espécie de gato de telhados, magro e esguio, que sempre achava jeito de escalar o que quer que fosse, mas para Mousqueton e Blaisois, que os marinheiros foram obrigados a guindar com os braços à altura das mãos de Porthos, que os agarrou pela gola dos gibões e os colocou em pé sobre a coberto.

O Capitão conduziu os passageiros ao camarote que lhes fora destinado, e que se compunha de uma única peça, que habitariam em comum; em seguida, tentou afastar-se, a pretexto de dar algumas ordens.

— Um instante — disse d'Artagnan; — quantos homens tendes a bordo, patrão?

— Não compreendo — respondeu em inglês o interpelado.— Pergunta-lhe isso na língua dele, Athos. Athos fez a pergunta.— Três — respondeu Groslow; — sem mim, bem entendido.D'Artagnan compreendeu pois, ao responder, o patrão erguera três dedos.— Três — disse d'Artagnan; — começo a tranqüilizar-me. Não obstante,

enquanto vos instalais, vou dar uma volta pelo navio.— E eu — sobreveio Porthos — vou-me ocupar do jantar.— Belo e generoso projeto, Porthos, executa-o. Tu, Athos, empresta-me

Grimaud, que, em companhia de seu amigo Parry, aprendeu a mastigar um pouco o inglês; ele me servirá de intérprete.

— Vai, Grimaud — ordenou Athos.

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Brilhava na coberta uma lanterna; d'Artagnan pegou-a, ergueu-a numa das mãos, empunhou com a outra uma pistola e disse ao patrão:

— Come.Era, além de Goddam, tudo o que pudera reter da língua inglesa.D’Artagnan chegou à escotilha e desceu a entreponte.

D'Artagnan chegou à escotilha e desceu a entreponte.

Dividia-se a entreponte em três compartimentos: aquele ao qual descia d'Artagnan, e que podia estender-se do terceiro mastaréu à extremidade da popa, e, por conseguinte, era coberto pelo soalho do camarote em que Athos, Porthos e Aramis se preparavam para passar a noite; o segundo, que ocupava o meio do navio, destinado ao alojamento dos criados; o terceiro, que se

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estendia debaixo da proa, isto é, debaixo do camarote improvisado pelo Capitão e no qual se escondera Mordaunt.

— Oh! oh! — disse d'Artagnan, descendo a escada da escotilha e fazendo-se preceder da lanterna, que segurava com o braço esticado em todo o comprimento — quantos tonéis! Parece a caverna de Ali-Babá.

As Mil e uma noites acabavam de ser traduzidas pela primeira vez e estavam muito em moda naquela ocasião. — Que dizeis? — perguntou em inglês o Capitão. D’Artagnan compreendeu-o pela entonação.

— Desejo saber o que há nesse tonéis? — perguntou d’Artagnan colocando a lanterna sobre um deles.

O patrão fez um movimento para subir a escada, mas reportou-se.— Porto — respondeu ele.— Ah! vinho do Porto? — volveu d’Artagnan — é sempre um sossego;

de sede não morreremos.Logo, voltando-se para Groslow, que enxugava na testa grossas gotas de

suor:— E estão cheios? — perguntou. Grimaud traduziu a pergunta.— Uns cheios, outros vazios, — respondeu Groslow com voz em que,

mau grado seu, se traía a inquietude que o dominava.D’Artagnan bateu com o dedo nos tonéis e, pelo som, reconheceu cinco

cheios; os restantes estavam vazios; depois introduziu, para terror cada vez maior do inglês, a lanterna nos intervalos das barricas e, vendo que não estavam ocupados:

— Vamos adiante — ordenou. E caminhou-se para a porta que se abria no segundo compartimento.

— Esperai — disse o inglês, que ficara para trás, presa ainda de violenta emoção; — esperai, que está comigo a chave da porta.

E passando, ligeiro, por d'Artagnan e Grimaud, introduziu com mão trêmula a chave na fechadura e os três se viram no segundo compartimento, onde Mousqueton e Blaisois se preparavam para jantar.

Nesse não havia evidentemente o que procurar: viam-se-Ihe todos os cantos e recantos à luz da lanterna, que alumiava os dignos companheiros.

Passaram, pois rapidamente, ao terceiro compartimento.Era o sítio em que se alojavam os marinheiros.Três ou quatro redes pendentes do teto, uma mesa segura por uma corda

dupla amarrada em cada uma das extremidades, dois bancos carunchosos e manquitolas representavam todo o mobiliário. D’Artagnan ergueu duas ou três velas usadas encostadas à parede e, não vendo nada de suspeito, voltou pela escotilha à coberta.

— E esse quarto? — perguntou.

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Grimaud repetiu, em inglês, a pergunta do mosqueteiro.— É o meu — respondeu o patrão; — quereis entrar?— Abri a porta — disse d'Artagnan.O inglês obedeceu: d'Artagnan esticou o braço armado da lanterna,

passou a cabeça pela porta semi-cerrada e, verificando que a câmara era um verdadeiro cacifo:

— Bom — disse ele — se houver um exército a bordo não se esconderá por aqui. Vamos ver se Porthos achou o que comer.

Agradecendo ao patrão com uma inclinação de cabeça, voltou ao camarote principal, onde estavam os amigos.

Porthos não encontrara coisa alguma, segundo parecia, ou, se encontrara, o cansaço vencera a fome; deitado sobre a capa, dormia profundamente quando d'Artagnan entrou.

Embalados pelos macios movimentos das primeiras vagas do mar, Athos e Aramis principiavam, de seu lado, a fechar os olhos; abriram-nos ao ruído que fez o companheiro.

— E então? — perguntou Aramis.— Vai tudo bem — declarou d'Artagnan — e podemos' dormir

sossegados.Tranqüilizado, Aramis deixou pender novamente a cabeça; Athos fez

com a sua um sinal afetuoso; e d'Artagnan, que precisava, como Porthos, ainda mais de dormir que de comer, dispensou Grimaud e deitou-se sobre a capa com a espada desembainhada de tal sorte que o seu corpo impedia a passagem e ninguém poderia entrar no camarote sem o empurrar.

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CAPÍTULO XIII

O VINHO DO PORTO

Ao cabo de dez minutos, dormiam os amos. O mesmo, todavia, não se dava com os criados, famintos e sobretudo sedentos. Blaisois e Mousqueton já se dispunham a preparar a cama, que consistia numa tábua e numa mala. Sobre a mesa, suspensa como a do quarto vizinho, oscilavam, ao balanço do navio, um pote de cerveja e três copos.

— Maldito balanço! — dizia Blaisois. — Sinto que vou enjoar, como na vinda.

— E não ter, para combater o enjôo de mar — respondeu Mousqueton — mais do que pão de cevada e vinho de lúpulo! Francamente!

— Mas o vosso garrafão de vinho, Sr. Mousqueton? — perguntou Blaisois, que, tendo preparado a cama, aproximava-se, cambaleante, da mesa a que Mousqueton já se assentara e a que ele, afinal, conseguiu sentar-se também. — O vosso garrafão, acaso o perdestes?

— Não perdi — respondeu Mousqueton — mas Parry ficou com ele. Esses diabos de escoceses vivem com sede. E tu, Grimaud — perguntou Mousqueton ao companheiro, que acabava de entrar depois de haver acompanhado d'Artagnan em sua digressão — tens sede?

— Como um.escocês — respondeu, lacônico, Grimaud. Sentou-se perto de Blaisois e Mousqueton, tirou um caderninho do bolso e pôs-se a fazer as contas da sociedade, cujo ecônomo era.

— Oh! diabo! — exclamou Blaisois — lá se vai o meu estômago!— Nesse caso — disse Mousqueton em tom doutorai — alimenta-te um

pouco.— Chamais a isto alimento? — perguntou Blaisois acompanhando com

gesto lastimoso o dedo com que apontava para o pão de cevada e o pote de cerveja.

— Blaisois — sobreveio Mousqueton — não te esqueças de que o pão é o verdadeiro alimento do francês; e o francês nem sempre o tem; Grimaud que o diga.

— Sim, mas a cerveja — replicou Blaisois com uma presteza que fazia honra à sua presença de espírito — mas a cerveja, será a verdadeira bebida?

— Quanto a isso — tornou Mousqueton, atrapalhado pelo dilema e vendo-se em papos de aranha para responder-lhe — devo confessar que não,

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e que a cerveja lhe é tão antipática quanto o vinho ao inglês.— Como, Sr. Mouston — acudiu Blaisois, que, desta feita, duvidava dos

profundos conhecimentos de Mousqueton, aos quais, nas circunstâncias ordinárias da vida, votava a mais completa admiração — os ingleses não gostam de vinho?

— Detestam-no.— Mas eu os vi beber.— Por penitência; e a prova — continuou Mousqueton pavoneando-se

todo — é que um príncipe inglês morreu, um dia, porque o meteram num tonel de malvasia. Ouvi esse fato contado pelo Sr. Pe. d'Herb!ay.

— Que idiota — observou Blaisois — eu quisera estar no lugar dele!— Não seria impossível — disse Grimaud, alinhando algarismos.— Não seria impossível, como? — tornou Blaisois.— Sim — continuou Grimaud, retendo quatro unidades e somando-as

com a coluna seguinte.— Explicai-vos, Sr. Grimaud.Mousqueton permanecia em silêncio durante o interrogatório de Blaisois,

mas via-se-lhe pela expressão do rosto que não o fazia por indiferença.Grimaud prosseguiu no cálculo e enunciou o total.— Porto — disse ele estendendo a mão na direção do primeiro

compartimento visitado por d'Artagnan e por ele em companhia do patrão.— Os tonéis que vi através da porta entreaberta?— Porto — repetiu Grimaud, que encetou nova operação aritmética.— Ouvi dizer — tornou Blaisois, dirigindo-se a Mousqueton — que o

Porto é um excelente vinho espanhol.— Excelente — confirmou Mousqueton passando a ponta da língua

sobre os lábios — excelente. Encontra-se na adega do Sr. Barão de Bracieux.— E se pedíssemos aos ingleses que nos vendessem uma Sarrafa? —

sugeriu o honrado Blaisois.— Vender! — respingou Mousqueton, que sentia renascerem os seus

velhos instintos de ratoneiro. — Bem se vê, rapaz, que ainda não tens experiência das coisas da vida. Por que se há de comprar quando se pode tirar?

— Tirar! — exclamou Blaisois — cobiçar o bem do próximo! Parece-me que é coisa proibida.

— Onde? — perguntou Mousqueton.— Nos mandamentos de Deus ou da Igreja, não sei. Mas sei que está

escrito:O bem do próximo não cobiçarás Nem a mulher dele.

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— Mais uma razão infantil, Sr. Blaisois — voltou Mousqueton no tom mais protetor; — infantil, repito-o. Em que passo das Escrituras lestes, fazei-me a fineza de dizê-lo, que os ingleses são vosso próximo?

— Em parte alguma, é verdade — concordou Blaisois; — pelo menos, não me recordo.

— Razão infantil, torno a repeti-lo — prosseguiu Mousqueton. — Se tivesses combatido dez anos, como Grimaud e eu, meu caro Blaisois, compreenderias a diferença que existe entre o bem do próximo e o do inimigo. Ora, o inglês é o inimigo, creio eu, e esse vinho do Porto pertence aos ingleses. Por conseguinte nos pertence, visto que somos franceses. Não conheces o provérbio: Inimigos não se poupam?

Tamanha facúndia, estribada na autoridade que tirava Mousqueton de sua longa experiência, estupeficou Blaisois. Abaixou a cabeça como se quisesse concentrar-se, e, a súbitas, erguendo-a como um homem armado de um argumento irretorquível:

— E os amos — perguntou — serão do vosso parecer, Sr. Mouston?Mousqueton sorriu com desdém.— Teria muita graça — disse ele — ir eu perturbar o sono desses ilustres

fidalgos para dizer-lhes: "Senhores, o vosso servidor Mousqueton está com sede; permitis que beba?" Que importa, pergunto, ao Sr. de Bracieux que eu esteja sedento ou não?

— É vinho muito caro — tornou Blaisois bamboando a cabeça.— Ainda que fosse ouro potável, Sr. Blaisois — disse Mousqueton — os

nossos amos não se privariam dele. Fica sabendo que o Sr. Barão de Bracieux é, só ele, tão rico que poderia tomar um tonel de vinho do Porto, ainda que precisasse pagar uma pistola por gota. Ora, não vejo por que — prosseguiu Mousqueton cada vez mais esplêndido em seu orgulho — haveriam de privar-se os criados, se os amos não se privariam.

E, levantando-se, tomou o pote de cerveja, despejou-o por uma vigia até à última gota e acercou-se majestosamente da porta que abria para o outro compartimento.

— Ah! ah! fechada — exclamou. — Como são desconfiados os diabos dos ingleses!

— Fechada! — repetiu Blaisois em tom não menos decepcionado que o de Mousqueton. — Ah! peste! que desgraça! sinto, com isso, que se me revolta cada vez mais o estômago.

Mousqueton voltou-se para Blaisois com um semblante tão compungido, que manifestamente compartia em alto grau da decepção do bravo rapaz.

— Fechada! — repetiu.

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— Mas — aventurou Blaisois — já vos- ouvi contar que, uma vez, na vossa mocidade, em Chantilly, se não me engano, vós vos alimentastes e alimentastes o vosso amo com perdizes pilhadas em armadilhas, carpas pescadas no anzol e garrafas apanhadas no laço.

— Sem dúvida — respondeu Mousqueton — é a verdade verdadeira, e aí está Grimaud que pode confirmá-la. Mas havia um respiradouro na adega, e o vinho era engarrafado. Não posso atirar o laço através desse tabique, nem erguer com um pedacinho de barbante um tonel de vinho que pesa, talvez, dois quintais.

— Não, mas podeis erguer duas ou três pranchas do tabique — disse Blaisois — e furar um dos tonéis com uma verruma.

Mousqueton arregalou desmedidamente os olhos redondos e, considerando Blaisois como assombrado por encontrar em outro qualidades que não imaginava:

— De fato — assentiu — isso é possível; — mas onde está o escopo para arrancar as tábuas e a verruma para furar o tonel?

— Estojo — acudiu Grimaud, sem interromper as contas.— Ah! sim, o estojo! — disse Mousqueton. — Nem pensei nisso!Grimaud, efetivamente, era não apenas o ecônomo da tropa senão

também o seu armeiro; além de um registro, Possuía um estojo. Ora, como fosse homem de suma precaução, o estojo, cuidadosamente acomodado na mala, continha todos os instrumentos de primeira necessidade.

Nele havia, portanto, uma verruma de razoável grossura.Mousqueton apanhou-a.Quanto ao escopro, não precisou procurar por muito tempo, pois o

punhal que trazia à cintura poderia substituí-lo com vantagem. Descobriu um canto em que as tábuas não estavam bem unidas e pôs imediatamente mãos à obra.

Blaisois via-o trabalhar entre admirado e impaciente, arriscando, de tempos a tempos, observações cheias de inteligência e lucidez, sobre o modo de arrancar um prego ou de forçar as pranchas.

Ao cabo de um instante, Mousqueton despregara três tábuas.— Pronto — disse Blaisois.Mousqueton era o oposto da rã da fábula, que se cuidava mais gorda do

que de fato era. Infelizmente, porém, se conseguira diminuir um terço do nome, não lograra repetir a proeza em relação ao ventre. Tentou passar pela abertura que fizera e viu, com pesar, que lhe seria preciso arrancar ainda duas ou três tábuas, pelo menos, para poder passar.

Soltou um suspiro e recuou, para continuar a obra.Mas Grimaud, que terminara as contas, levantara-se, e, seguindo com

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profundo interesse a operação aproximara-se dos dois companheiros e vira os esforços inúteis de Mousqueton para chegar à terra prometida.

— Eu — disse Grimaud.Essa palavra, para ele, valia um soneto inteiro, que, como se sabe, vale

todo um poema. Voltou-se Mousqueton.— O quê? — perguntou.— Eu passarei.— É verdade — conveio o outro, lançando um olhar ao corpo comprido

e fino do amigo — pássaras, e até com certa facilidade.— É justo, pois ele conhece os tonéis cheios — atalhou Blaisois; — já

esteve na adega com o Sr. Cavaleiro d’Artagnan. Deixai passar o Sr. Grimaud, Sr. Mouston.

— Eu teria passado tão bem quanto ele — disse Mousqueton, algum tanto picado.

— Sim, mas levaríeis mais tempo, e eu estou com muita sede. Sinto que se me embrulha o estômago cada vez mais.

— Passa, então, Grimaud — tornou Mousqueton entregando ao que ia tentar a expedição em seu lugar o canjirão de cerveja e a verruma.

— Lavai os copos — disse Grimaud.Depois fez um gesto amistoso a Mousqueton, a fim de que este lhe

perdoasse a conclusão de uma obra tão brilhantemente iniciada, e, como uma cobra, esgueirou-se pela frincha aberta e desapareceu.

Blaisois parecia enlevado, extático. De todas as proezas praticadas desde a sua chegada à Inglaterra pelos homens extraordinários a que tivera a suprema felicidade de associar-se, aquela lhe parecia, sem dúvida, a mais milagrosa.

— Verás — disse então Mousqueton considerando Blaisois com uma superioridade a que este nem sequer tentou furtar-se — verás, Blaisois, como nós, antigos soldados, bebemos quando temos sede.

— A capa — pediu Grimaud do fundo da adega.— É justo — disse Mousqueton.— Que é que ele quer? — perguntou Blaisois.— Que tapemos o buraco com uma capa.— Para quê?— Inocente! — volveu Mousqueton — e se alguém entrasse?— Ah! é verdade! — exclamou Blaisois com uma admiração cada vez

mais evidente. — Mas ele não enxergará direito.— Grimaud enxerga sempre direito — respondeu Mousqueton — tanto

de noite quanto de dia.— É um felizardo — observou Blaisois; — pois eu, quando não tenho

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vela, não posso dar um passo sem tropeçar.— Porque não serviste no exército — volveu Mousqueton; — se

houvesse servido, saberias pegar uma agulha num forno. Mas caluda! vem vindo gente, se não me engano.

Mousqueton emitiu um assobiozinho, familiar aos lacaios nos dias da mocidade, tornou a sentar-se à mesa e fez sinal a Blaisois que o imitasse.

Blaisois obedeceu.Abriu-se a porta. Surgiram dois homens envoltos em suas capas.— Oh! oh! — disse um deles — ainda em pé às onze e um quarto? Isso é

contra o regulamento. Daqui a quinze minutos esteja tudo apagado e toca a roncar.

Encaminharam-se os dois homens para a porta do compartimento em que entrara Grimaud, abriram-na, entraram e tornaram a fechá-la.

— Ah! — disse Blaisois fremindo — ele está perdido.— É uma raposa muito fina Mestre Grimaud — murmurou Mousqueton.E esperaram, de ouvidos fitos e respiração suspensa.Dez minutos se escoaram, durante os quais não se ouviu ruído nenhum

que indicasse o descobrimento de Grimaud.Volvido esse tempo, Mousqueton e Blaisois viram reabrir-se a porta,

saírem os dois homens embuçados, tornarem a fechá-la com extrema precaução e afastarem-se, repetindo a ordem de se deitarem e apagarem as luzes.

— Obedeceremos? — perguntou Blaisois; — tudo isso me parece esquisito.

— Eles disseram um quarto de hora; ainda temos cinco minutos — replicou Mousqueton.

— E se avisássemos os amos?— Esperemos Grimaud.— Podem tê-lo matado.— Grimaud teria gritado.— Ele é quase mudo.— Mas, pelo menos, teríamos ouvido a pancada.— E se ele não voltar?— Já voltou.Efetivamente, nesse instante afastava Grimaud a capa que escondia o

buraco e passava por ele uma cabeça lívida, cujos olhos arregalados pelo terror deixavam ver uma pupilazinha num vasto círculo branco. Empunhava o canjirão de cerveja cheio de uma substância qualquer. Aproximou-a do raio de luz projetado pela lâmpada fumosa, e murmurou este simples monossílabo: Oh! com uma expressão de tão profundo terror, que

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Mousqueton recuou, espavorido, e Blaisois teve a impressão de que ia desmaiar.

Os dois, não obstante, lançaram os olhos curiosos ao canjirão de cerveja: estava cheio de pólvora.

Quando se convenceu de que o navio ia carregado de pólvora em vez de ir carregado de vinho, precipitou-se Grimaud para a escotilha e, num salto, chegou ao camarote em que dormia os quatro amigos. Empurrou levemente a porta e esta, ao abrir-se, despertou incontinenti d'Artagnan, deitado atrás dela.

Assim que viu o semblante transtornado de Grimaud, compreendeu o gascão que algo extraordinário estava acontecendo, e quis gritar; mas Grimaud, com um gesto mais rápido que a própria palavra, pôs um dedo nos lábios, e, com um sopro que ninguém teria imaginado pudesse sair de corpo tão franzino, apagou a lamparina que ardia a três passos de distância.

Soergueu-se d'Artagnan, Grimaud pôs um joelho em terra, e, esticando o pescoço, com todos os sentidos sobreexcitados, murmurou-lhe ao ouvido um relato tão dramático que, a rigor, não poderia dispensar a gesticulação e o jogo fisionômico.

Durante o relato, Athos, Porthos e Aramis dormiam como se não tivessem dormido durante oito dias e na entreponte Mousqueton, precavido, atava os seus atacadores e Blaisois, transido de horror, com o cabelo eriçado na cabeça, tentava fazer o mesmo.

Eis o que se tinha passado.Logo que desaparecera pela abertura e se vira no primeiro

compartimento, pusera-se Grimaud a tactear até encontrar um tonel. Percutiu-lhe a tampa: o tonel estava vazio. Passou a outro, vazio também; mas o terceiro que experimentou produziu um som tão surdo que não havia engano possível. Grimaud compreendeu que aquele estava cheio.

Parou diante dele, procurando um lugar conveniente para furá-lo com a verruma, e, enquanto procurava, topou com uma torneira.

— Bom! — murmurou Grimaud — isso poupa-me trabalho.Aproximou o canjirão de cerveja, abriu a torneira e sentiu que o

conteúdo passava suavemente de um recipiente para outro.Depois de fechar a torneira, ia levar o canjirão aos lábios, pois a

consciência não lhe permitia oferecer aos companheiros uma bebida pela qual não pudesse responder, quando ouviu o assobio de Mousqueton; desconfiou de alguma ronda noturna, enfiou-se no meio de dois tonéis e escondeu-se atrás de um terceiro.

Segundos depois a porta se abria e tornava-se a fechar após ter dado passagem aos dois homens embuçados que vimos passar e repassar diante de

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Blaisois e Mousqueton, ordenando-lhes que apagassem as luzes.Um dos dois levava uma lanterna envidraçada, cuidadosamente fechada

e tão alta que a chama não poderia chegar ao tampo. De mais a mais, os próprios vidros eram recobertos de uma folha de papel branco que atenuava, ou melhor, absolvia a luz e o calor.

Esse homem era Groslow.O outro segurava na mão um objeto comprido, flexível « enrolado como

corda esbranquiçada. Tinha o rosto coberto de um chapéu de abas largas. Imaginando que um sentimento análogo ao seu os atraísse para a adega e que, como ele, viessem os dois fazer uma visita ao vinho do Porto, escondeu-se Grimaud ainda mais atrás do tonel, dizendo com os seus botões que, se fosse descoberto, o crime não seria tão grande assim.

Chegados ao tonel que escondia Grimaud, os dois homens estacaram.— Trouxeste a mecha? — perguntou em inglês o que segurava a

lanterna.— Está aqui — disse o outro.À voz do último, Grimaud estremeceu e sentiu um calafrio percorrer-lhe

a medula dos ossos; ergueu-se lentamente, até colocar o rosto acima do círculo de tonéis e, debaixo do chapéu de abas largas, reconheceu o pálido semblante de Mordaunt.

— Quanto tempo pode durar essa mecha? — perguntou ele.— Uns... uns cinco minutos, mais ou menos — respondeu o patrão.Essa voz também não era estranha a Grimaud. Os seus olhos passaram

de um para outro e, ao lado de Mordaunt, reconheceu Groslow.— Então — disse Mordaunt — avisai os vossos homens que se

conservem pronto, sem lhes dizer por quê. A chalupa vem atrás do navio?— Como um cão atrás do amo na ponta de uma corda de cânhamo.— Quando o relógio der meia-noite e um quarto, reunireis os vossos

homens, descereis sem ruído para a chalupa...— Depois de ter posto fogo à mecha?— Isso é comigo. Quero ter certeza da minha vingança. Os remos estão

na lancha?— Está tudo preparado.— Bem.— Então, combinado.Mordaunt ajoelhou-se e enfiou uma ponta da mecha na torneira para

assim não ter mais que acender a extremidade oposta.Concluída a operação, tirou o relógio.— Ouvistes? À meia-noite e um quarto — disse, tornando a erguer-se —

isto é...

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Consultou o relógio.— Daqui a vinte minutos.— Perfeitamente, senhor — respondeu Groslow; — entretanto, devo

observar-vos pela última vez que é meio arriscada a missão de que pretendeis incumbir-vos, e que seria melhor encarregar um de nossos homens de acender o estopim.

— Meu caro Groslow — disse Mordaunt — conheceis o provérbio francês: On n'est bien servi que par soi-même (67). Hei de pô-lo em prática.

(67) Corresponde ao nosso Quem quer vai, quem não quer manda (N. do T.)

Se não entendera Grimaud, pelo menos, ouvira tudo; mas a vista supria nele a falta de compreensão perfeita da língua; avistara e reconhecera os dois inimigos mortais dos mosqueteiros; vira Mordaunt enfiar a mecha na torneira; ouvira o provérbio, que, para sua maior facilidade, Mordaunt dissera em francês. Finalmente, apalpava e tornava a apalpar o conteúdo do canjirão que segurava e, em vez de líquido que esperavam Mousqueton e Blaisois, triturava com os dedos grãos de pólvora ordinária.

Mordaunt afastou-se com o patrão. À porta, parou, atento.— Ouvis como dormem? — perguntou.De fato, ouvia-se roncar Porthos através do tabique.— É Deus quem no-los entrega — disse Groslow.— E, desta vez, nem o diabo os salvaria! — ajuntou Mordaunt.E saíram os dois.

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CAPÍTULO XIV

O VINHO DO PORTO(Continuação)

GRIMAUD esperou ouvir a lingüeta da porta ranger na fechadura, e, quando teve certeza de que estava só, ergueu-se lentamente ao longo da parede.

Ah! — murmurou, enxugando com a manga as grossas gotas de suor que lhe escorriam da testa; — como foi bom que Mousqueton tivesse sede!

Deu-se pressa em passar pela abertura, cuidando ainda que sonhava; mas a vista da pólvora no canjirão demonstrou-lhe que o sonho era um pesadelo mortal.

D’Artagnan ouviu, naturalmente, todos os pormenores com crescente interesse e, sem esperar que Grimaud terminasse, ergueu-se em silêncio, aproximou a boca do ouvido de Aramis, que dormia à sua esquerda e, tocando-lhe o ombro ao mesmo tempo para impedir-lhe todo e qualquer movimento repentino.

— Cavaleiro — disse ele — levanta-te e não faças barulho.Aramis acordou. D'Artagnan repetiu-lhe o convite apertando-lhe a mão.

Aramis obedeceu.— Tens Athos à esquerda — disse d'Artagnan — avisa-o como eu te

avisei.Aramis despertou facilmente Athos, cujo sono era leve como é, de

ordinário, o de todas as naturezas finas e nervosas; mas já foi mais difícil acordar Porthos, já disposto a perguntar as causas e razões daquele despertar, que lhe parecia importuníssimo, quando d’Artagnan, por única explicação, lhe tapou a boca com a mão.

E o nosso mosqueteiro, estendendo os braços e reaproximando-os de si, encerrou-lhes no círculo as cabeças dos amigos, de modo que elas, por assim dizer, se tocassem.

— Amigos — disse ele — vamos sair imediatamente deste navio ou seremos todos mortos.

— Ora! — disse Athos — outra vez?— Sabeis quem era o comandante do navio?— Não.— O Capitão Groslow.Um frêmito dos três mosqueteiros indicou a d'Artagnan que o seu

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discurso principiava a causar impressão.— Groslow! — murmurou Aramis — diabo!— Que negócio de Groslow é esse? — perguntou Porthos — já não

lembro o que é.— O homem que quebrou a cabeça do irmão de Parry e que neste

momento se dispõe a quebrar as nossas.— Oh! oh!— E o seu imediato, sabeis quem é?— Imediato? Ele não tem — disse Athos. — Não há imediato numa

falua tripulada por quatro homens.— Sim, mas o Sr. Groslow não é um capitão como outro qualquer; tem

um imediato, e esse imediato é o Sr. Mordaunt.Dessa vez não fremiram os mosqueteiros, quase deram um grito.

Aqueles homens invencíveis estavam sujeitos à influência misteriosa e fatal que sobre eles exercia aquele nome, e sentiam-se aterrados só de ouvi-lo pronunciar.

— Que fazer? — inquiriu Athos.— Tomarmos a falua — alvitrou Aramis.— E matá-lo — ajuntou Porthos.— A falua está minada — disse d'Artagnan. — Os tonéis que supus

cheios de vinho do Porto são tonéis de pólvora. Quanto se vir descoberto, Mordaunt mandará tudo pelos ares, amigos e inimigos, e confesso que o considero muito má companhia para apresentar-me ao seu lado, seja no céu, seja no inferno.

— Tens, então, um plano? — perguntou Athos.— Tenho.— Qual?— Confiais em mim?— Ordena — disseram, a um tempo, os três mosqueteiros.— Pois bem, vinde!D’Artagnan foi a uma janela baixa como um embornal, mas que bastava

para dar passagem a um homem; abriu-a silenciosamente.— Eis o caminho — disse ele.— Diabo! — retrucou Aramis — faz bastante frio, caro amigo!— Fica, se quiseres, mas eu te previno que fará muito calor daqui a

pouco.— Mas não podemos alcançar a terra a nado.— A chalupa segue na esteira; atingiremos a chalupa e cortaremos o

cabo. Mais nada. Vamos, senhores.— Um instante — atalhou Athos; — e os criados?

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— Estamos aqui — disseram Mousqueton e Blaisois, que Grimaud fora buscar para concentrar todas as suas forças no camarote, e que, pela escotilha próxima da porta, tinham entrado sem serem vistos.

Os três amigos, no entanto, haviam se imobilizado diante do terrível espetáculo que lhes descobrira d'Artagnan ao abrir a janela e que enxergavam pela estreita abertura.

Com efeito, quem já presenciou alguma vez cena semelhante sabe que nada é mais aterrador do que um mar agitado, rolando com surdos murmúrios as ondas negras, à pálida claridade de uma lua hibernai.

— Com a breca! — disse d'Artagnan — parece-me que hesitamos! Se nós hesitamos, que farão os criados?

— Eu não hesito — afirmou Grimaud.— Senhor — acudiu Blaisois — comunico-vos que só sei nadar em rios.— E eu não sei nadar em lugar nenhum — ajuntou Mousqueton.Enquanto isso, d'Artagnan esgueirara-se pela janela.— Estás decidido, amigo? — perguntou Athos.— Sim — respondeu o gascão. — Vamos, Athos, tu que és o homem

perfeito, dize ao espírito que domine a matéria. Tu, Aramis, anima os criados. Tu, Porthos, mata quem quer que tente deter-nos.

E, depois de haver apertado a mão de Athos, d'Artagnan escolheu um momento em que, num balanço, a falua se inclinava para trás; de sorte que lhe foi apenas preciso deixar-se escorregar dentro da água, que já lhe envolvia a cintura.

Seguiu-o Athos antes mesmo que a falua se reerguesse; depois que Athos saltou, ela tornou a erguer-se e viu-se surdir da água, esticado, o cabo que prendia a chalupa.

D'Artagnan nadou na direção do cabo e atingiu-o.Lá esperou, segurando-o com uma das mãos e tendo apenas a cabeça à

flor da água.Volvido um segundo, Athos juntava-se a ele.Viram-se depois, do lado da falua, mais duas cabeças. Eram as de

Aramis e de Grimaud.— Blaisois inquieta-me — disse Athos. — Não o ouviste dizer,

d'Artagnan, que só sabe nadar em rios?— Quem sabe nadar nada em qualquer lugar — bradou d'Artagnan. — À

chalupa! à chalupa!— E Porthos? Não o vejo.— Porthos não demora, fica descansado. Nada como o próprio Leviatã.De fato, Porthos não aparecia; pois uma cena semi-burlesca e semi-

dramática se passava entre ele, Mousqueton e Blaisois.

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Estes, espavoridos pelo rumor da água, pelos silvos do vento, aterrados pela vista da água negra que fervia no abismo, recuavam em lugar de avançar.

— Vamos! vamos! — ordenou Porthos — à água!— Mas, senhor — implorou Mousqueton — eu não sei nadar, deixai-me

aqui.— Nem eu, senhor — acrescentou Blaisois.— Garanto que vos estorvarei na barquinha — declarou Mousqueton.— E eu me afogarei com toda certeza antes de alcançá-la — continuou

Blaisois.— Ah! sim? Pois eu esganarei os dois se não sairdes daqui — ameaçou

Porthos, segurando-os pelo gasganete. — Vamos, Blaisois.Um gemido abafado pela mão de ferro de Porthos foi a única resposta de

Blaisois, pois o gigante, segurando-o pelo pescoço e pelos pés, fê-lo deslizar como uma tábua pela janela e atirou-o de ponta cabeça dentro da água.

— Agora, Mouston — disse Porthos — espero que não abandonareis o vosso amo.

— Ah! senhor — respondeu Mousqueton com lágrimas nos olhos — por que voltastes à ativa? Estávamos tão bem no castelo de Pierrefonds!

E sem outra censura, pensativo e obediente, fosse por dedicação real, fosse pelo exemplo de Blaisois, Mousqueton atirou-se ao mar de ponta cabeça. Sublime gesto, pois Mousqueton se cria morto.

Mas Porthos não era homem que assim desamparasse o fiel companheiro. O amo seguiu o criado tão de perto, que a queda dos dois corpos fez um ruído só; e no momento em Que Mousqueton, cego, voltou à tona, viu-se seguro pela manopla de Porthos, e pôde, sem que lhe fosse preciso fazer um movimento, aproximar-se da corda com a majestade de um deus marinho.

No mesmo instante, Porthos viu turbilhonar qualquer coisa ao alcance do braço. Segurou essa qualquer coisa pela cabeleira: era Blaisois, em cujo auxílio já acudia Athos.

— Vai, vai, Conde — disse Porthos — não preciso de ti. E, de fato, com um esforço vigoroso, ergueu-se Porthos como o gigante Adamastor sobre as ondas e, em três arrancos, chegou ao pé dos companheiros.

D'Artagnan, Aramis e Grimaud ajudaram Mousqueton e Blaisois a subir; depois chegou a vez de Porthos, que, ao passar uma perna por cima da lancha, quase a fez virar.

— E Athos? — perguntou d’Artagnan.— Eis-me aqui! — disse Athos, que, como general garantindo a retirada,

só quisera subir em último lugar, vindo a reboque da lancha. — Estais todos

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reunidos?— Todos — respondeu d’Artagnan. — E tu, Athos, tens o teu punhal?— Tenho.— Então, corta o cabo e vem.Athos arrancou da cintura um punhal afiado e cortou a corda; a falua

afastou-se; a lancha ficou no mesmo lugar, sem outro movimento que o que lhe imprimiam as vagas.

— Vem, Athos! — disse d’Artagnan.E estendeu a mão ao Conde de La Fere, que, por sua vez, se acomodou

na barca.— Já era tempo — disse o gascão; — assistir ás a uma cena curiosa.

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CAPÍTULO XV

FATALIDADE

REALMENTE, mal acabara d'Artagnan de pronunciar essas palavras quando se ouviu um apito a bordo da falua, que principiava a mergulhar na bruma e na escuridão.

— Isso, como haveis de compreender — observou o gascão — significa alguma coisa.

Nesse momento surgiu na coberta uma lanterna e umas sombras se desenharam na popa.

Súbito um grito terrível, um grito de desespero cruzou o espaço; e, como se esse grito houvesse espantado as nuvens, afastou-se o véu que escondia a lua e viram-se desenhados no céu, prateado por uma pálida claridade, o velame cinzento e o negro cordame da falua.

Sombras corriam desvairadas sobre a coberta, e gritos lamentáveis acompanhavam as correrias insensatas.

No meio desses gritos viu-se surgir, na popa, Mordaunt com uma tocha na mão.

As sombras que corriam, alucinadas, eram Groslow e os seus homens, que ele reunira na hora marcada por Mordaunt; ao passo que este, depois de ter escutado à porta do camarote para certificar-se de que os mosqueteiros continuavam dormindo, descera ao porão, tranqüilizado pelo silêncio.

Com efeito, quem poderia desconfiar do que se passara?Mordaunt, por conseguinte, abrira a porta e correra para a mecha;

ardente como um homem sequioso de vingança e seguro de si como os que Deus cega, deitara fogo ao estopim.

Durante esse tempo, Groslow e os marinheiros tinham-se reunido na popa.

— Puxai a corda — disse Groslow — e aproximai a chalupa.Um dos marinheiros escarranchou-se na amurada, empunhou o cabo e

puxou-o; o cabo não ofereceu resistência.— O cabo está cortado! — gritou o marinheiro: — não há mais lancha!— Como! não há mais lancha! — exclamou Groslow correndo também

para a amurada — é impossível!— É impossível, mas é verdade — tornou o marujo; — vede; já não há

nada na esteira e aqui está a ponta do cabo.

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Foi nesse momento que Groslow despediu o rugido que tinham ouvido os mosqueteiros.

— Que foi? — perguntou Mordaunt, que, saindo da escotilha, também correu para a popa com a tocha na mão.

— Os nossos inimigos escaparam; cortaram o cabo e fugiram com a canoa.

Num salto, Mordaunt chegou ao camarote, cuja porta arrombou com um pontapé.

— Vazio! — gritou ele. — oh! demônios!— Vamos persegui-los — disse Groslow; — eles não podem estar longe,

e nós os poremos a pique.— Sim, mas o fogo! — disse Mordaunt — eu já pus fogo!— Onde? Na mecha!— Com um milhão de diabos! — urrou Groslow, precipitando-se para a

escotilha. — Talvez ainda haja tempo.Mordaunt respondeu apenas por uma terrível gargalhada; e, com os

traços transtornados de ódio ainda mais que de terror, buscando os céus com os olhos esgazeados para atirar-lhe uma derradeira blasfêmia, jogou primeiro a tocha no mar e, em seguida, saltou.

No mesmo instante, quando Groslow punha o pé na escada da escotilha, abriu-se o navio como cratera de vulcão; um jacto de fogo subiu para o céu com explosão semelhante à de cem peças de canhão que atirassem ao mesmo tempo; abrasou-se o ar, enchendo-se de destroços ardentes também, depois o medonho relâmpago se apagou, os destroços caíram, um depois do outro, fremindo no abismo, onde se extinguiram, e a não ser uma vibração no ar, dir-se-ia, ao cabo de um instante, que nada acontecera.

Mas a falua desaparecera da superfície do mar, e Groslow e seus três homens tinham sido aniquilados.

Os quatro amigos haviam assistido a tudo, e nenhum dos pormenores do drama terrível lhes escapara. Inundados repentinamente pela ofuscante claridade que iluminara o mar por mais de uma légua, poderiam ter sido vistos, cada qual numa atitude diversa, mas todos exprimindo o pavor que, apesar de seus corações de bronze, não podiam deixar de sentir. Logo depois a chuva de chamas caía à volta deles; afinal, apagou-se o vulcão, como já contamos, e tudo voltou à escuridão, a lancha flutuante e o mar revolto.

Permaneceram um momento silenciosos e abatidos. Porthos e d'Artagnan que tinham pegado num remo, seguravam-no maquinalmente acima dágua, apoiados nele e apertando-o com mãos crispadas.

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... abriu-se o navio como cratera de vulcão...

— À minha fé — disse Aramis, o primeiro que quebrou o silêncio — desta vez acredito que tudo se acabou.

— A mim, senhores! ajudai-me! socorrei-me! — gritou uma voz lastimosa, que chegou aos ouvidos dos quatro amigos, semelhante à de algum espírito marinho.

Os amigos se entreolharam. O próprio Athos estremeceu.— É ele! é a voz dele! — disse.Todos permaneceram em silêncio, pois todos, como Athos, tinham

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reconhecido a voz. Mas os seus olhos, de pupilas dilatadas, voltaram-se na direção em que soçobrara o navio, fazendo esforços tremendos para devassar a escuridão.

Volvido um instante, principiaram a distinguir um homem, que se aproximava nadando com vigor.

Athos estendeu, devagar, o braço para ele, mostrando-o com o dedo aos companheiros.

— Sim, sim — disse d'Artagnan — bem o vejo.— Ainda ele! — exclamou Porthos, resfolegando como um fole de

ferreiro. — Mas esse homem será de ferro?— Ó meu Deus! — murmurou Athos. Aramis e d'Artagnan

cochichavam.Mordaunt deu mais algumas braçadas e, erguendo a mão acima da

superfície do mar, em sinal de desespero:— Piedade! senhores, piedade, em nome do céu! sinto que as forças me

abandonam, vou morrer!A voz que pedia socorro era tão vibrante que foi despertar a compaixão

no fundo do coração de Athos.— Coitado! — murmurou.— Bom! — disse d'Artagnan — só nos faltava agora que tivesses pena

dele! E, se não me engano, está nadando em nossa direção. Pensará, acaso, que vamos recolhê-lo? Rema, Porthos, rema.

E, dando o exemplo, d'Artagnan mergulhou o remo no mar e duas remadas afastaram a barca mais umas vinte braças.

— Oh! não me deixareis! não permitireis que eu morra! não sereis tão impiedosos! — gritou Mordaunt.

— Ah! ah! — disse Porthos a Mordaunt — creio que afinal vos pegamos, meu valente, e as únicas portas que tendes para sair daqui são as portas do inferno!

— Oh! Porthos! — murmurou o Conde de La Fere.— Deixa-me em paz, Athos! A verdade é que te tornas ridículo com as

tuas eternas generosidades! Garanto que se ele chegar a dez pés desta barca, eu lhe parto a cabeça com uma remada.

— Oh! misericórdia... não fujais, senhores... por misericórdia... tende compaixão de mim! — gritou o rapaz, cuja respiração ofegante fazia, às vezes, quando a cabeça lhe sumia debaixo das ondas, borbulhar a água gelada.

D'Artagnan, que, seguindo sempre com a vista os movimentos de Mordaunt, terminara o colóquio com Aramis, levantou-se:

— Senhor — disse ele, dirigindo-se ao nadador — afastai-vos, por favor.

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O vosso arrependimento é demasiado recente para que possamos ter confiança nele; o barco onde quisestes assar-nos ainda fumega a alguns pés da superfície do mar, e a situação em que vos encontrais é um mar de rosas comparada com aquela em que nos queríeis meter e em que metestes o Sr. Groslow e os companheiros.

— Senhores — respondeu Mordaunt em tom ainda mais desesperado — eu vos juro que o meu arrependimento é verdadeiro. Senhores, sou tão moço, tenho apenas vinte e três anos! Fui levado por um ressentimento muito natural, quis vingar minha mãe, e todos vós teríeis feito o que fiz.

— Ora! — exclamou d'Artagnan, vendo que Athos se enternecia cada vez mais; — isso depende.

Mordaunt se encontrava apenas a umas três ou quatro braçadas da lancha, pois a aproximação da morte parecia emprestar-lhe um vigor sobrenatural.

— Ai! — tornou — vou morrer, então! Matareis o filho como matastes a mãe! E, no entanto, eu não era culpado; segundo todas as leis divinas e humanas, um filho deve vingar sua mãe. Aliás — acrescentou, juntando as mãos — se isso é crime, já que me arrependo dele, já que peço perdão, devo ser perdoado.

— E como se lhe faltassem as forças, pareceu incapaz de sustentar-se à tona dágua, e uma onda cobriu-lhe a cabeça, abafando-lhe a voz.

— Oh! isso me despedaça o coração! — disse Athos. Reapareceu Mordaunt.

— E eu — respondeu d’Artagnan — digo que precisamos acabar com isto; senhor assassino de vosso tio, senhor carrasco do Rei Carlos, senhor incendiário, insisto em que afundeis; e se vos aproximardes um pouco mais da barca, parto-vos a cabeça com o remo.

Desvairado, Mordaunt deu mais uma braçada. D’Artagnan pegou no remo com as duas mãos, Athos levantou-se.

— D'Artagnan! d'Artagnan! — exclamou; — d'Artagnan! meu filho, eu te suplico! O desgraçado vai morrer, e é horrível deixar morrer um homem assim, sem lhe estender a mão, quando basta estender-lhe a mão para salvá-lo. Oh! o meu coração não consente nisso; não posso resistir, é preciso que ele viva!

— Com mil diabos! — replicou d'Artagnan — por que não te entregas de mãos e pés atados, agora mesmo, a esse miserável? Será mais rápido ainda. Ah! Conde de La Fere, queres morrer por ele; pois bem! eu, teu filho, como me chamas, não o permito.

Era a primeira vez que d'Artagnan resistia a um pedido. de Athos quando este lhe chamava seu filho.

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Aramis empunhou friamente a espada, que carregara entre os dentes ao nadar.

— Se ele puser a mão na borda — ameaçou — corto-lha como a um regicida que é.

— E eu — disse Porthos — esperai...— Que queres fazer? — perguntou Aramis.— Vou estrangulá-lo dentro da água.— Oh! senhores — bradou Athos, com um sentimento irresistível —

sejamos homens, sejamos cristãos!D'Artagnan soltou um suspiro que parecia um gemido, Aramis abaixou a

espada, Porthos voltou a sentar-se.— Vede — continuou Athos — vede, estampa-se-lhe a morte no rosto;

já lhe faltam as forças, um minuto mais e ele cairá no fundo do abismo. Ah! não me deis esse horrível remorso, não me obriguei a morrer de vergonha; meus amigos, concedei-me a vida do desgraçado, eu vos bendirei, eu...

— Eu morro! — murmurou Mordaunt; — a mim!... a mim!...— Ganhemos um minuto — disse Aramis, inclinando-se para a esquerda

e dirigindo-se a d'Artagnan. — Uma remada — ajuntou, inclinando-se à direita, para Porthos.

D'Artagnan não fez um gesto, não disse uma palavra; principiava a sentir-se comovido, em parte pelas súplicas de Athos, em parte pelo espetáculo que se desenrolava a seus olhos. Só Porthos deu uma remada, e, como não tivesse contrapeso, a lancha apenas girou sobre si mesmo e esse movimento reaproximou Athos do moribundo.

— Sr. Conde de La Fere — gritou Mordaunt — Sr. Conde de La Fere! é a vós que me dirijo, a vós suplico, tende piedade de mim!... Onde estais, Sr. Conde de La Fere? Já não enxergo... estou morrendo... a mim! a mim!

— Estou aqui, senhor — disse Athos inclinando-se e estendendo o braço para Mordaunt com o ar de nobreza e dignidade que lhe era habitual — estou aqui; pegai a minha mão e entrai em nossa barca.

— Prefiro não olhar — disse d'Artagnan — essa fraqueza me repugna.Voltou-se para os dois amigos, que, de seu lado, se comprimiam no

fundo da lancha, como se temessem tocar o homem a quem Athos não receava estender a mão.

Mordaunt fez um esforço supremo, ergueu-se, empolgou va mão que se estendia para ele e agarrou-se a ela com a veemência da última esperança.

— Bem! — disse Athos — ponde aqui a outra mão.E ofereceu o ombro como segundo ponto de apoio, de sorte que a sua

cabeça quase tocava a de Mordaunt e os dois inimigos mortais parecia estarem abraçados como dois irmãos.

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Mordaunt apertou com os dedos crispados o pescoço de Athos.— Bem, senhor — disse o Conde — agora estais salvo, tranqüilizai-vos.— Ah! minha mãe — gritou Mordaunt com olhar chamejante e um tom

de ódio indescritível — só posso oferecer-te uma vítima, mas essa, pelo menos, será a que terias escolhido!

E ao passo que d'Artagnan soltava um grito, Porthos levantava o remo e Aramis procurava um lugar para ferir, tremendo abalo dado à barca arrastou Athos para dentro da água, enquanto Mordaunt, despedindo um grito de triunfo, apertava o pescoço da vítima e envolvia, a fim de paralisar-lhe os movimentos, as pernas com a suas, como o teria feito uma serpente.

Sem dar um grito, sem bradar por socorro, Athos procurou manter-se à superfície do mar; arrastado, porém, pelo próprio peso, foi desaparecendo a pouco e pouco; viram-se ainda, por um momento, os seus longos cabelos flutuantes; depois tudo desapareceu, e um vasto remoinho, que também se dissipou, foi o único marco do lugar em que os dois tinham afundado.

Mudos de horror, imóveis, sufocados de indignação e de pavor, quedaram os três amigos boquiabertos, olhos arregalados, braços estendidos; pareciam estátuas, embora se ouvisse, apesar da imobilidade, o pulsar de seus corações. Foi Porthos o primeiro que tornou em si e, arrancando os cabelos com ambas as mãos:

— Oh! — bradou, com um soluço lancinante sobretudo num homem como aquele — oh! Athos, Athos! nobre coração! Desgraça! desgraça sobre nós que te deixamos morrer!

— Sim, desgraça! — repetiu d'Artagnan — desgraça!— Desgraça! — murmurou Aramis.Nesse momento, no meio do vasto círculo aclarado pelos raios da lua, a

quatro ou cinco braças da lancha, o mesmo remoinho que indicara o afundamento se repetiu, e os presentes viram reaparecer primeiro o cabelo, depois um rosto pálido de olhos abertos, porém mortos, e, finalmente, um corpo que, após erguer todo o busto acima da superfície das águas, caiu molemente de costas, à mercê das ondas.

No peito do cadáver estava enterrado um punhal, cujo cabo de ouro refulgia.

— Mordaunt! Mordaunt! Mordaunt! — bradaram os três amigos — é Mordaunt!

— E Athos? — perguntou d'Artagnan.De repente a chalupa se inclinou para a esquerda sob um peso novo e

inesperado, e Grimaud soltou um berro de alegria; todos se voltaram e viram Athos, lívido, com o olhar apagado e a mão trêmula, descansar na borda da lancha. Oito braços nervosos ergueram-no imediatamente e colocaram-no

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dentro da canoa, onde, instantes depois, Athos era aquecido e reanimado, ressuscitando entre as carícias e abraços dos amigos bêbedos de alegria.

— Não estás ferido, pelo menos? — perguntou d’Artagnan.— Não — respondeu Athos... — E ele?— Oh! ele, desta vez, graças a Deus, está bem morto. Vê! E d'Artagnan,

obrigando Athos a olhar para a direçãoque indicava, mostrou-lhe o corpo de Mordaunt flutuando sobre o dorso

das vagas, e que, ora submerso, ora ressurgindo à tona, ainda parecia perseguir os quatro amigos com um olhar carregado de insultos e de ódio mortal.

Afinal, submergiu. Athos acompanhou-o com o olhar repassado de melancolia e tristeza.

— Bravo, Athos! — exclamou Aramis com uma efusão raríssima nele.— Belo golpe! — acudiu Porthos.— Eu tinha um filho — disse Athos — e quis viver.— Enfim — atalhou d’Artagnan — aí está o pronunciamento de Deus.— Não fui eu quem o matou — murmurou Athos — foi o destino.

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CAPÍTULO XVI

EM QUE, DEPOIS DE TER SIDO QUASE ASSADO, MOUSQUETON QUASE FOI COMIDO

PROFUNDO silêncio imperou por muito tempo na chalupa depois da cena terrível que acabamos de referir. A lua, que se mostrara fugazmente, como se Deus tivesse querido que nenhum pormenor do acontecimento escapasse aos olhos dos espectadores, desapareceu atrás das nuvens; tudo voltou a mergulhar na treva tão apavorante em todos os desertos e, sobretudo, no deserto líquido que se chama Oceano, e só se ouviram os silvos do vento do Oeste sacudindo a grimpa das ondas.

Foi Porthos o primeiro que rompeu o silêncio.— Já vi muitas coisas — disse ele; — nenhuma, porém, me comoveu

tanto como a que acabo de ver. E apesar de toda a minha perturbação, eu vos declaro que me sinto felicíssimo. Tenho cem libras menos sobre o peito e afinal respiro livremente.

Com efeito, Porthos respirou com um ruído que fazia honra ao vigoroso maquinismo de seus pulmões.

— Enquanto a mim — disse Aramis — já não direi o mesmo, Porthos; ainda me sinto apavorado, a ponto de não acreditar nos meus próprios olhos, de duvidar do que vi, de olhar constantemente à volta da lancha, esperando, a cada minuto, ver ressurgir esse miserável empunhando o punhal que levou enterrado no coração.

— Pois disso não tenho medo — volveu Porthos; — o golpe foi desferido ao nível da sexta costela e o punhal fincado até o cabo. E não cuides que vai nisso uma censura, Athos, pelo contrário. Quando se dá um golpe é assim que se deve dar. Por isso mesmo torno a viver, respiro, estou feliz.

— Não te apresses em cantar vitórias, Porthos! — atalhou d'Artagnan. — Nunca estivemos em perigo tão grande quanto agora; pois um homem pode vencer outro homem, mas não um elemento. Ora, achamo-nos em pleno mar, de noite, sem guia, numa barca fragílima; basta que uma rajada de vento vire a canoa, e estamos perdidos. Mousqueton soltou profundíssimo suspiro.

— És ingrato, d'Artagnan — disse Athos; — ingrato, sim, de duvidar da Providência no momento em que ela acaba de salvar-nos de tão milagrosa maneira. Acreditas que ela nos tenha feito passar, conduzindo-nos pela mão,

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por tantos perigos, para depois desamparar-nos? Não. Partimos com um vento de oeste e esse vento sopra ainda. — Athos orientou-se pela estrela polar. — Aqui está a Ursa Maior; por conseguinte, lá está a França. Deixemo-nos ir com o vento e, enquanto ele não mudar, há de empurrar-nos para as costas de Calais ou de Bolonha. Se a barca virar, somos bastante fortes e bons nadadores, pelo menos os cinco, para endireitá-la, ou agarrar-nos a ela se o esforço for superior às nossas forças. Ora, nós nos encontramos na rota de todos os navios que vão de Dover a Calais e de Portsmouth a Bolonha; se a água lhes conservasse o rasto, a sua passagem teria cavado um vale exatamente no lugar em que estamos. Por conseguinte, é impossível que, ao romper do dia, não encontremos algum barco de pescador, que nos recolherá.

— Mas suponhamos que não o encontremos e que o vento"— Então — disse Athos — a coisa mudaria de figura e só

encontraríamos terra do outro lado do Atlântico.— O que quer dizer que morreríamos de fome — observou Aramis.— É mais do que provável — disse o Conde de La Fere. Mousqueton

desferiu segundo suspiro, ainda mais doloroso que o primeiro.— Ora essa, Mouston — perguntou Porthos — por que tanto gemido?

Isso já está ficando cacete!— É que estou com frio, senhor — disse Mousqueton.— Impossível — revidou Porthos.— Impossível? — repetiu Mousqueton espantado.— Claro. Tendes o corpo recoberto de uma camada de gordura, que o

torna impenetrável ao ar. A causa há de ser outra, falai francamente.— Pois bem, tendes razão, senhor, e é essa mesma camada de gordura,

que tanto elogiais, que me apavora!— E por que, Mouston? Falai sem rebuços, que estes senhores o

permitem.— Porque, senhor, me lembrei de que na biblioteca do castelo de

Bracieux há uma porção de livros de viagens, e sopre do norte!entre eles os de João Mocquet, o famoso viajante do Rei Henrique IV.— E daí?— Nesses livros, senhor — prosseguiu Mousqueton — se contam

muitíssimas aventuras marítimas e sucessos semelhantes ao que nos ameaça neste momento!

— Continuai, Mouston — disse Porthos — a analogia é interessantíssima.

— E em casos como este, os viajantes famintos, segundo diz João Mocquet, têm o hábito medonho de se entredevorarem, começando pelo...

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— Pelo mais gordo! — emendou d'Artagnan, que não pôde menos de rir, apesar da gravidade da situação.

— Sim, senhor — respondeu Mousqueton, algum tanto aturdido com aquela hilaridade — e permiti-me dizer que não vejo nada de risível em tudo isso.

— É a dedicação personificada o bravo Mouston! — tornou Porthos. — Já vos víeis, de certo, feito postas e comido por vosso amo?

— Sim, senhor, embora eu deva confessar que essa alegria que adivinhais em mim não é totalmente isenta de tristeza. Entretanto, eu não o sentiria tanto, senhor, se, ao morrer, tivesse a certeza de vos ser útil ainda.

— Mouston — disse Porthos comovido — se voltarmos algum dia ao meu castelo de Pierrefonds, eu vos darei, a vós e a vossos descendentes, a posse da vinha situada a cavaleiro da quinta.

— E vós lhe chamareis a vinha da Dedicação, Mouston — acudiu Aramis — para que ela transmita até às últimas gerações a lembrança de vosso sacrifício.

— Cavaleiro — disse d'Artagnan rindo por seu turno — terias comido um bocado de Mouston sem muita repugnância, não é verdade, principalmente depois de dois ou três dias de dieta?

— Oh! palavra que não — tornou Aramis — eu teria preferido Blaisois: faz menos tempo que o conhecemos.

Como o leitor há de imaginar, durante essa troca de gracejos, cuja finalidade principal era desviar do espírito de Athos a cena que acabara de passar-se, com exceção de Grimaud, que sabia que o perigo, fosse ele qual fosse, lhe passaria por cima da cabeça, os criados não se sentiam tranqüilos.

Por isso mesmo Grimaud, sem participar da conversação, e mudo, como de hábito, não poupava esforços, com um remo em cada mão.

— Estás remando? — perguntou Athos.— Grimaud fez sinal que sim.— Para quê?— Para aquecer-me.Efetivamente, ao passo que os outros náufragos tremiam de frio, o

silencioso Grimaud suava por todos os poros.De repente Mousqueton soltou um grito de alegria erguendo sobre a

cabeça a mão armada de uma garrafa.— Oh! — disse ele passando a garrafa a Porthos — oh! senhor, estamos

salvos! Há víveres na barca!E esquadrinhando o chão debaixo do barco, de onde já tirara o precioso

espécime, exibiu sucessivamente uma dúzia de garrafas semelhantes, pão e um bocado de carne salgada.

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Não é preciso dizer que a notícia restituiu a alegria a todos, exceto a Athos.

— Com seiscentos diabos! — disse Porthos, que já se queixara de fome ao por o pé na falua — é espantoso como as comoções esvaziam o estômago da gente!

E emborcou de golpe uma garrafa e comeu, sozinho, a terça parte do pão e da carne salgada.

— Agora — disse Athos — dormi ou procurai dormir; eu velarei.Para outros homens que não fossem os nossos atrevidos aventureiros,

uma sugestão dessa ordem teria sido irrisória. Estavam todos, de fato, molhados até aos ossos, soprava um vento glacial e as emoções que acabavam de experimentar pareciam impedi-los de fechar os olhos; mas, para aquelas naturezas privilegiadas, para aqueles temperamentos de ferro, para aqueles corpos afeitos a todas as fadigas, o sono, em quaisquer circunstâncias, chegava à sua hora e nunca faltava à chamada.

Daí que, volvido um instante, cheio de confiança no piloto, cada qual se acomodasse da melhor maneira possível e procurasse aproveitar o conselho dado por Athos, que, sentado ao pé do leme e com os olhos fitos no céu, onde, sem dúvida, procurava não só o caminho de França mas também o rosto de Deus, ficou só, conforme prometera, reflexivo e insone, dirigindo a embarcaçãozinha pela rota que devia seguir.

Depois de algumas horas de sono, os viajantes foram acordados por Athos.

Os primeiros albores do dia acabavam de refletir-se no mar azulado; a uns dez tiros de mosquete, na direção da proa, distinguia-se uma massa negra acima da qual tremulava uma vela triangular e fina como asa de andorinha.

— Uma barca! — disseram ao mesmo tempo os quatro amigos, enquanto os lacaios, de seu lado, expressavam também a sua alegria em tons diferentes.

Era, de fato, um navio de Dunquerque que aproava para Bolonha.Os quatro amos, Blaisois e Mousqueton uniram as suas vozes num grito

só, que vibrou sobre a superfície elástica das águas, enquanto Grimaud, sem dizer uma palavra, pendurava o chapéu na ponta do remo, para atrair os olhares dos que ouvissem o grito.

Um quarto de hora depois, o escaler do navio rebocava-os; chegados a bordo, Grimaud ofereceu, incumbido pelo amo, vinte guinéus ao comandante e, às nove da manhã, favorecidos por um bom vento, os nossos franceses pisavam o solo pátrio.

— Com a breca! Como a gente se sente forte em cima disto! — disse

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Porthos, enfiando na areia os pés enormes. — Venham agora provocar-me, olhar-me de través ou fazer-me cócegas, e verão quem sou. Por Deus! Eu desafiaria um reino inteiro!

— E eu — acudiu d'Artagnan — aconselho-te a não lançares muito alto o desafio, Porthos! pois me parece que somos bem observados por aqui.

— Pudera! — exclamou Porthos — é porque nos admiram.— Pois eu — respondeu d'Artagnan — juro que não ponho nisso o meu

amor-próprio. Mas vejo homens de toga e confesso que, em nossa situação os homens de toga me apavoram.

— São os fiscais da alfândega — atalhou Aramis.— No tempo do outro Cardeal, o grande — disse Athos— despertaríamos maior atenção na alfândega que as próprias

mercadorias, mas no tempo deste, tranqüilizai-vos, amigos, as mercadorias receberão maior atenção do que nós.

— Não me fio nisso — disse d'Artagnan — e musco-me para as dunas.— E por que não para a cidade? — alvitrou Porthos.— Eu preferiria uma boa estalagem a esses horríveis desertos de areia

que Deus criou somente para as lebres. De mais a mais, estou com fome.— Faze como quiseres, Porthos! — replicou d'Artagnan;— mas estou convencido de que o mais seguro para homens na nossa

situação é o campo raso.E, certo de obter maioria, embarafustou d'Artagnan pelas dunas, sem

esperar a resposta de Porthos.Seguiu-o a tropazinha e logo desapareceu com ele atrás dos montículos

de areia, sem haver atraído sobre si a atenção pública.— Agora — disse Aramis depois de terem andado coisa de um quarto de

légua — conversemos.— Não — replicou d'Artagnan — fujamos. Escapamos de Cromwell, de

Mordaunt, do mar, três abismos que nos queriam tragar; mas não escaparemos do Seu Mazarino.

— Tens razão, d'Artagnan — conveio Aramis — e sou de parecer que, para maior segurança ainda, nos separemos.

— Sim, sim, Aramis — disse d’Artagnan — separemo-nos.Porthos quis falar para se opor a essa resolução, mas d’Artagnan fê-lo

compreender, apertando-lhe a mão, que devia calar. Porthos era muito obediente aos sinais do companheiro, cuja superioridade intelectual reconhecia com a costumeira bonomia. Engoliu, portanto, as palavras que iam sair-lhe da boca.

— Mas por que separar-nos? — perguntou Athos.— Porque — disse d’Artagnan — fomos enviados a Cromwell pelo Sr.

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de Mazarino, Porthos e eu, e, em vez de servirmos Cromwell, servimos o Rei Carlos I, o que não é bem ar mesma coisa. Voltando com os senhores de La Fere e d'Herblay, fica mais do que provado o nosso crime; voltando sós, o crime permanece na dúvida, e com a dúvida se levam os homens muito longe. Ora, eu tenho muito que conversar com o Sr. de Mazarino.

— Está ai — disse Porthos — isso é verdade!— Esqueceis — volveu Athos — que somos vossos prisioneiros, que

não nos consideramos de forma alguma desobrigados de nossa palavra e que, levando-nos prisioneiros a Paris...

— Ora, Athos — interrompeu-o d’Artagnan — é lamentável que um homem de espírito como tu esteja sempre a dizer tolices de que se correriam alunos do terceiro ano. Cavaleiro — continuou d'Artagnan dirigindo-se a Aramis, que, apoiando-se com sobranceria na espada, parecia, embora tivesse emitido a princípio uma opinião contrária, ter concordado, desde a primeira palavra, com a do companheiro — Cavaleiro, compreende que aqui, como sempre, a minha natural desconfiança exagera. Porthos e eu não arriscamos nada, afinal de contas. Mas se, por acaso, tentassem prender-nos diante de vós, seria bem mais difícil prender sete homens do que três; as espadas sairiam das bainhas, e o caso, que já está feio para nós, se converteria numa enormidade, que nos acabaria perdendo a todos. De mais disso, se suceder alguma desgraça a dois dentre nós, não será melhor que os outros estejam em liberdade para ajudar os primeiros, para rojar, minar, solapar, libertá-los, enfim?. E depois, quem sabe se não conseguiremos separadamente, vós da Rainha, nós de Mazarino, um perdão que nos recusariam aos quatro reunidos? Vamos, Athos e Aramis, tomai pela esquerda; tu, Porthos, toma à direito comigo; deixa que estes senhores se dirijam para a Normandia e nós, pelo caminho mais curto, vamos a Paris.

— Mas se formos presos no caminho, como poderemos prevenir-nos mutuamente dessa catástrofe? — perguntou Aramis.

— Nada mais fácil — respondeu d'Artagnan; — estabeleçamos um itinerário do qual não nos afastaremos. Ide a Saint-Valery, depois a Dieppe, depois segui a estrada direta de Dieppe a Paris; nós iremos por Abbeville, Amiens, Péronne, Compiègne e Senlis, e em cada estalagem, em cada casa em que pararmos, escreveremos na parede, com a ponta de uma faca, ou na vidraça com um diamante, uma informação que possa dirigir as buscas dos que ficarem livres.

— Ah! meu amigo, como eu adoraria os recursos de tua cabeça, se não me detivesse, para adorá-los, ante os de teu coração — exclamou Athos.

E estendeu a mão a d'Artagnan.— Terá gênio a raposa, Athos? — perguntou o gascão com um

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movimento de ombros. — Não, sabe comer galinhas, despistar caçadores e encontrar o caminho de dia ou de noite, mais nada. E então: combinado?

— Combinado.— Nesse caso, repartamos o dinheiro — tornou d’Artagnan — que

devem sobrar ainda umas duzentas pistolas. Quanto resta, Grimaud?— Cento e oitenta meios luíses, senhor.— Isso mesmo. Ah! viva! aí está o sol! Bom-dia, amigo sol! Embora não

sejas igual ao da Gasconha, eu te reconheço ou faço conta que te reconheço. Bom-dia. Fazia tempo já que eu não te via.

— Vamos, vamos, d’Artagnan — acudiu Athos — não simules fortaleza de espírito! Tens lágrimas nos olhos. Sejamos sempre francos entre nós, ainda que essa franqueza nos revele as boas qualidades.

— Mas acreditas, então, Athos — volveu d'Artagnan — que a gente se separa, friamente e num momento de perigo, de dois amigos como tu e Aramis?

— Não — disse Athos; — por isso mesmo vem aos meus braços, meu filho!

— Com a breca! — bradou Porthos, soluçando — acho que estou chorando; que estupidez!

E os quatro amigos formaram um grupo só, atirando-se nos braços uns dos outros. Esses quatro homens, reunidos pelo abraço fraternal, tiveram, sem dúvida, uma alma só naquele momento.

Blaisois e Grimaud deveriam seguir Athos e Aramis.Mousqueton bastava a Porthos e a d'Artagnan.Repartiram, como sempre, o dinheiro com fraterna regularidade; e depois

de se terem apertado individualmente as mãos e de haverem mutuamente reiterado protestos de eterna amizade, separaram-se os quatro fidalgos para tomar cada qual o caminho combinado, não sem se voltarem, não sem se dirigirem ainda palavras de afeto que os ecos das dunas repetiam.

Afinal, perderam-se de vista.— Com mil raios! d'Artagnan — disse Porthos — preciso dizer-te isso

imediatamente, pois eu nunca saberia guardar no coração alguma coisa contra ti; confesso que não te reconheci nesta circunstância!

— Por quê? — perguntou d'Artagnan com o seu sorriso sagaz.— Porque se Athos e Aramis, como dizes, correm um perigo verdadeiro,

não é este o momento de deixá-los. Confesso que eu estava pronto para segui-los e que ainda estou, apesar de todos os Mazarinos da terra.

— Terias razão, Porthos, se as coisas fossem assim — tornou d'Artagnan; — entretanto, fica sabendo de uma coisa, uma coisa à-toa, mas que, apesar disso, mudará o curso das tuas idéias: não são eles os que correm

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o maior perigo, somos nós; e não foi para desampará-los que os deixamos, mas para não os comprometer.

— Verdade? — perguntou Porthos arregalando os olhos espantados.— Naturalmente! Se eles forem presos, irão, quando muito, para a

Bastilha; mas se nós formos presos, poderemos acabar na Place de Greve (68).

(68) Praça em que eram executados os condenados à morte. (N. do T.)

— Oh! oh! — disse Porthos — e essa praça fica bem longe da coroa de barão que me havias prometido, d’Artagnan!

— Talvez não esteja tão longe quanto supões! Não conheces o provérbio: "Todos os caminhos levam a Roma"?

— Mas por que corremos maiores perigos que Athos e Aramis? — perguntou Porthos.

— Porque eles apenas executaram a missão que lhes confiou a Rainha Henriqueta ao passo que nós traímos a que recebemos de Mazarino; porque, partindo como mensageiros junto de Cromwell, tornamo-nos partidários do Rei Carlos; porque, em lugar de ajudar a derrubar-lhe a cabeça real, condenada por aqueles safardanas que se chamam Mazarino, Cromwell, Joyce, Pridge, Fairfax, etc, por pouco não o salvamos.

— Isso, de fato, é verdade — concordou Porthos; — mas como queres, meu caro amigo, que, no meio de tantas preocupações, o General Cromwell tenha tido tempo de pensar...

— Cromwell pensa em tudo, Cromwell tem tempo para tudo; e crê no que te digo, meu caro, não percamos o nosso, que é precioso. Só estaremos seguros depois de termos visto Mazarino, e ainda assim...

— Diabo! — acudiu Porthos — e que diremos nós a Mazarino ?— Deixa tudo por minha conta, que eu tenho meu plano; ri melhor quem

ri por último. O Sr. Cromwell é forte; o Sr. Mazarino é astuto, mas prefiro lutar diplomaticamente contra eles do que contra o finado Sr. Mordaunt.

— Vê! — observou Porthos — é agradável dizer o finado Sr. Mordaunt.— É mesmo — concordou d'Artagnan; — mas toca a andar!E, sem perderem um instante, dirigiram-se para o caminho de Paris,

seguidos de Mousqueton, que, depois de ter sentido muito frio toda a noite, começou a sentir um calor infernal ao cabo de quinze minutos.

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CAPÍTULO XVII

REGRESSO

ATHOS e Aramis tinham tomado o itinerário que lhes indicara d'Artagnan, caminhando tão depressa quanto puderam. Parecia-lhes menos arriscado serem presos perto de Paris do que longe da capital.

Todas as noites, com o receio de serem surpreendidos durante o sono, traçavam ora na parede ora nas vidraças o sinal convencionado de reconhecimento; mas todas as manhãs despertavam livres, para seu grande assombro.

À proporção que se acercavam de Paris, os grandes sucessos a que haviam assistido e que acabavam de subverter a Inglaterra se desvaneciam como sonhos; ao passo que, pelo" contrário, os que tinham agitado a capital durante a sua ausência acudiam ao encontro deles.

Nas seis semanas em que tinham estado fora tantos incidentezinhos haviam ocorrido em França que, reunidos, quase constituíam um grande acontecimento. Despertando uma bela manhã sem Rainha e sem Rei, afligiram-se os parisienses com o abandono; e a ausência de Mazarino, tão ardentemente desejada, não compensou a dos augustos fugitivos.

O primeiro sentimento que agitou Paris quando soube da fuga para Saint-Germain, fuga que relatamos aos leitores, foi, portanto, a espécie de pavor que senhoreia as crianças quando acordam de noite ou na solidão. Comoveu-se o Parlamento, e ficou decidido que uma deputação iria à presença da Rainha a fim de rogar-lhe não privasse por mais tempo a capital de sua real presença.

Mas a Rainha ainda se achava sob a dupla impressão do triunfo de Lens e do orgulho da fuga tão felizmente executada. Não só foi negada aos deputados a honra de serem recebidos por ela mas ainda tiveram de esperar na estrada, onde o Chanceler, o mesmo Chanceler Seguier que vimos, na primeira parte desta obra, buscar tão obstinadamente uma carta no próprio espartilho da Rainha, foi levar-lhes o ultimato da Corte, segundo o qual, se o Parlamento não se humilhasse ante a majestade real, abrindo mão de todas as questões causadoras da briga que os separava, Paris seria assediada no dia seguinte; e já, na previsão do assédio, o Duque de Orléans ocupara a Ponte de Saint-Cloud, e o Sr. Príncipe, a refulgir ainda com as glórias da vitória de Lens, tomara Charenton e Saint-Denis.

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Infelizmente para a Corte, à qual uma resposta moderada teria conciliado talvez grande número de adeptos, as ameaças produziram efeito contrário ao esperado. Feriram o orgulho do Parlamento, e este, sentindo-se vigorosamente apoiado pela burguesia, à qual a libertação de Broussel dera a medida de sua força, respondeu que, sendo o Cardeal Mazarino o autor notório de todas as desordens, declarava-o inimigo do Rei e do Estado e ordenava-lhe deixasse a Corte naquele mesmo dia e a França numa semana; esgotado o prazo e não tendo sido a ordem cumprida, determinava-se a todos os súditos do Rei que o perseguissem.

A enérgica resposta, que a Corte estava muito longe de esperar, punha, ao mesmo tempo, Paris e Mazarino fora da lei. Restava apenas saber quem levaria a melhor, se o Parlamento, se a Corte.

Iniciou, então, a Corte os preparativos de ataque e Paris os de defesa. Estavam, pois, os burgueses entretidos na tarefa comum dos burgueses em tempo de revolta, isto é, estendendo correntes e descalçando ruas, quando, no dia 10 de janeiro, viram chegar inesperadamente em seu auxílio, conduzidos pelo Coadjutor, o Sr. Príncipe de Conti, irmão do Sr. Príncipe de Conde e o Sr. Duque de Longueville, seu cunhado. A partir desse momento sentiram-se tranqüilos, pois tinham por si dois príncipes de sangue e a superioridade numérica.

Depois de tempestuosa discussão, o Sr. Príncipe de Conti foi nomeado generalíssimo dos exércitos do Rei fora de Paris (69), tendo como tenentes-generais os Srs. Duques d'Elbeuf e de Bouillon e o Marechal de La Mothe (70). Sem cargo e sem título, contentava-se o Duque de Longueville com o ofício de assistente do cunhado.

(69) Quando soube que era contra o próprio irmão que teria de lutar, Conde caiu na gargalhada: "Ao generalíssimo da Fronda, minha reverência!" exclamou, desbarretando-se diante do macaquinho da Rainha. Embora tivesse um rosto agradável, o Príncipe de Conti era franzino, delicado e até meio corcunda; e se bem não lhe faltasse inteligência, faltavam-lhe autoridade e firmeza. (N. do T.)

(70) O Duque d'Elbeuf tinha muitos filhos e pouco dinheiro; era um homem destituído de personalidade e nenhum de seus pares o levava a sério; mas, como fosse príncipe da casa de Lorena, recebeu também o comando do exército parlamentar, que, aliás, ainda nem existia. Já o Duque de Bouillon (Frederico-Maurício de la Tour-d'Auvergne), irmão do grande Turenne, era homem de valor e estadista de mérito, que a ambição levara a aliar-se à Fronda, pois pretendia recuperar o Principado de Sedan, que Richelieu lhe tirara por haver Conspirado com Cinq-Mars. O Marechal de Ia Mothe era corajoso, pouco inteligente e muito maleável, o que o tornava "muito útil num partido" (Retz). (N. do T.)

Quanto ao Sr. de Beaufort, chegara do Vendômois trazendo, diz a crônica, o porte sobranceiro, os formosos e longos cabelos e a popularidade que lhe valeu a realeza do mercado.

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Organizara-se o exército parisiense com a presteza com que os burgueses se fantasiam de soldados, quando levados a essa transformação por um sentimento qualquer. No dia 19, o exército improvisado tentara uma investida, mais para certificar-se e certificar os outros de sua própria existência do que para tentar algo de sério, ostentando uma bandeira, em que se lia esta divisa singular: Procuramos o nosso Rei.

Os dias seguintes foram ocupados em operaçõezinhas parciais, que tiveram como único resultado o apresamento de alguns rebanhos e o incêndio de duas ou três casas.

Chegaram assim os primeiros dias de fevereiro. Ora, no dia primeiro desse mês os nossos quatro companheiros haviam abicado em Bolonha tomando, cada qual o seu lado, a caminho de Paris.

Cerca do quarto dia de marcha evitaram Nanterre com precaução, a fim de não topar com partidários da Rainha.

Muito a contragosto cervava-se Athos de todas essas precauções, mas Aramis, judicioso, lhe fizera ver que não tinham o direito de ser imprudentes enquanto incumbidos, da parte do Rei Carlos, de uma missão suprema e sagrada, que, recebida ao pé do cadafalso, só terminaria aos pés da Rainha.

Athos cedeu.Nos subúrbios, encontraram os nossos viajantes boa guarda; Paris inteira

se armara. A sentinela não quis deixar passar os dois gentis-homens e chamou o sargento.

O sargento apareceu imediatamente e, assumindo toda a importância que assumem de hábito os burgueses quando têm a felicidade de se revestirem de uma dignidade militar:

— Quem sois, senhores? — perguntou.— Dois fidalgos — respondeu Athos.— De onde vindes?— De Londres.— Que vi estes fazer em Paris?— Cumprir uma missão junto de Sua Majestade a Rainha de Inglaterra.— Hom'essa! Mas toda a gente, então, vai hoje visitar a Rainha de

Inglaterra! — tornou o sargento. — Já temos no posto três fidalgos cujos salvo-condutos estão sendo visados e que vão visitar Sua Majestade. Onde estão os vossos?

— Não os temos.— Como! Não os tendes?— Não, chegamos de Inglaterra, como já dissemos; ignoramos

completamente o estado em que estão os negócios políticos, pois deixamos Paris antes da saída do Rei.

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— Ah! — tornou o sargento com expressão maliciosa — sois mazarinistas e pretendeis entrar para espiar-nos.

— Meu caro amigo — disse Athos, que até então deixara a Aramis o cuidado de responder — se fôssemos mazarinistas teríamos, pelo contrário, todos os salvo-condutos imagináveis. Na vossa situação, desconfiai antes dos que trazem os papéis perfeitamente em ordem.

— Entrai no corpo da guarda — ordenou o sargento; — exporeis ao chefe do posto as vossas razões.

Fez um sinal à sentinela, que se perfilou; o sargento passou primeiro e os dois fidalgos entraram com ele no corpo da guarda.

Esse corpo da guarda era inteiramente ocupado por burgueses e gente do povo; alguns jogavam, outros bebiam, outros peroravam.

Num canto e quase guardados à vista se achavam os três fidalgos que os tinham precedido e cujos salvo-condutos visava o oficial, instalado no aposento vizinho, pois a importância de suas funções lhe concedia a honra de uma sala particular.

O primeiro movimento dos recém-chegados e dos outros três, nos dois extremos do corpo da guarda, foi o de se dirigirem mutuamente um olhar rápido e perscrutador. Os que tinham chegado primeiro estavam cobertos de compridas capas em cujas dobras se tinham envolvido cautelosamente. Um deles, menor do que os companheiros, conservava-se atrás, na sombra.

à declaração que fez o sargento ao entrar, de que, segundo todas as probabilidades, trazia dois mazarinistas, puseram-se os fidalgos à escuta e prestaram atenção. O menor dos três, que dera dois passos para a frente, deu um para trás e mergulhou de novo na sombra.

E quando soube que os recém-chegados não tinham salvo-condutos, todo o corpo da guarda foi de parecer que não entrariam.

— Pelo contrário — disse Athos — é provável que entremos, pois, segundo parece, tratamos com pessoas sensatas. Ora, o que se pode fazer é simplíssimo: levar os nossos nomes a Sua Majestade a Rainha de Inglaterra; e se ela responder por nós, espero que não tenhais inconveniente em deixar-nos passar.

A essas palavras, redobrou a atenção do gentil-homem escondido na sombra e foi acompanhada de tamanho gesto de surpresa que o seu chapéu, empurrado pela capa em que procurara ocultar-se ainda mais cautamente do que antes, caiu; ele abaixou-se e presto o apanhou.

— Oh! meu Deus! — disse Aramis acotovelando Athos — vistes?— O quê? — perguntou Athos.— A cara do menor dos três?— Não.

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— É que me pareceu... mas é impossível...Nesse momento o sargento, que se dirigira à sala particular a fim de

receber ordens do oficial do posto, saiu, e,' indicando os três fidalgos, aos quais entregou um papel:

— Os salvo-condutos estão em ordem — declarou — deixai passar esses três senhores.

Os três cavaleiros fizeram um sinal com a cabeça e deram-se pressa em aproveitar a permissão e o caminho que, à ordem do sargento, se abrira diante deles.

Aramis seguiu-os com a vista; e no momento em que o menorzinho passou diante dele, apertou com força a mão de Athos.

— Que tens, meu caro? — perguntou este último.— Tenho... tenho uma visão, sem dúvida. E, dirigindo-se ao sargento:— Dizei-me, senhor — acrescentou — conheceis os três fidalgos que

acabam de sair daqui?— Conheço-os pelo salvo-conduto: são os Srs. de Flamarens, de

Châtillon e de Bruy, três fidalgos frondistas que vieram juntar-se ao Sr. Duque de Longueville.

— È estranho — disse Aramis respondendo antes às próprias idéias que ao sargento — tive a impressão de reconhecer o Mazarino.

O sargento deu uma gargalhada.— Ele arriscar-se a surgir assim entre nós para ser enforcado? Não seria

tão estúpido!— Ah! — murmurou Aramis — posso muito bem ter-me enganado, não

tenho os olhos infalíveis de d'Artagnan.— Quem falou aqui em d'Artagnan? — perguntou o oficial, que, nesse

momento, assomou à porta da sala.— Oh! — fez Grimaud, arregalando os olhos.— Que foi? — perguntaram ao mesmo tempo Aramis e Athos.— Planchet! — volveu Grimaud; — Planchet de gola de oficial!— Senhores de La Fere e d'Herblay — bradou o oficial — de volta a

Paris! Oh! que alegria para mim, senhores! Pois, sem dúvida, viestes juntar-vos aos Srs. Príncipes!

— É como vês, meu caro Planchet — disse Aramis, ao passo que Athos sorria vendo a posição importante que ocupava na milícia burguesa o antigo companheiro de Mousqueton, Bazin e Grimaud.

— E quanto ao Sr. d'Artagnan, de que faláveis há pouco, Sr. d'Herblay, posso perguntar-vos se tendes notícias dele?

— Deixamo-lo há quatro dias, meu caro amigo, e tudo nos fazia crer que já tivesse chegado a Paris.

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— Não, senhor, tenho certeza de que não voltou à capital; pode ser que, depois disso, tenha ficado em Saint-Germain.

— Não creio, pois marcamos encontro na Chevrette.— Hoje mesmo passei por lá.— E a formosa Madalena não tinha notícias? — perguntou, sorrindo,

Aramis.— Não, senhor, e até vos direi que me pareceu muito preocupada.— De fato — disse Aramis — não perdemos tempo e viemos muito

depressa. Permite, portanto, meu caro Athos, sem pedir novas informações sobre o nosso amigo, que eu apresente os meus cumprimentos ao Sr. Planchet.

— Ah! Sr. Cavaleiro! — exclamou Planchet, inclinando-se.— Tenente! — disse Aramis.— E com promessa de promoção.— Muito bem! '— volveu Aramis; — e como chegastes a todas essas

honrarias?— Em primeiro lugar deveis saber, senhores, que fui eu quem salvou o

Sr. de Rochefort...— Sim, como não! Ele mesmo nos contou.— Escapei, nessa ocasião, de ser enforcado pelo Mazarino, o que,

naturalmente, me tornou ainda mais popular.— E graças à popularidade...— Não, graças a coisa melhor. Sabeis também que servi no regimento do

Piemonte, onde tive a honra de ser sargento.— Sim.— Pois bem! um dia em que ninguém conseguia alinhar uma caterva de

burgueses armados, que marchavam uns com 0 pé direito e outros com o esquerdo, consegui que marchassem todos com o mesmo pé. Resultado: fizeram-me tenente no campo de... manobras.

— Aí está a explicação.— De modo que tendes convosco grande número de nobres? — acudiu

Athos.— Naturalmente! Temos primeiro, como sem dúvida sabeis, o Sr.

Príncipe de Conti, o Sr. Duque de Longueville, o Sr. Duque de Beaufort, o Sr. Duque d'Elbeuf, o Duque de Bouillon, o Duque de Chevreuse, o Sr. de Brissac, o Marechal de Ia Mothe, o Sr. de Luynes, o Marquês de Vitry, o Príncipe de Marcillac, o Marquês de Noirmoutiers, o Conde de Fiesque, o Marquês de Laigues, o Conde de Montrésor, o Marquês de Sevigné e mais uma porção de gente.

— E o Sr. Raul de Bragelonne — perguntou Athos com voz comovida;

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— d'Artagnan me disse que vo-lo recomendou ao partir, meu bom Planchet.— Sim, Sr. Conde, como se fosse seu próprio filho, e devo dizer que não

o perdi de vista um instante sequer.— Então — volveu Athos com voz vibrante de alegria — ele está

passando bem? Não lhe sucedeu acidente nenhum?— Nenhum, senhor.— E onde está morando?— Ainda no Grand-Charlemagne.— E passa os dias?...— Ora ao pé da Rainha de Inglaterra, ora em casa da Sra. de Chevreuse.

Ele e o Conde de Guiche não se largam.— Obrigado, Planchet, obrigado! — disse Athos estendendo-lhe a mão.— Oh! Sr. Conde — tornou Planchet, tocando-lhe a mão com a ponta

dos dedos.— Então! Que fazes, Conde? A um antigo criado! — observou Aramis.— Amigo — disse Athos — ele me dá notícias de Raul.— E agora, senhores — perguntou Planchet, que não ouvira a

observação — que pretendeis fazer?— Entrar novamente em Paris, se no-lo permitirdes, meu caro Sr.

Plancet — disse Athos.— Como! Se eu vos permitir! Gracejais comigo, Sr. Conde! Sou apenas

um criado vosso.E inclinou-se.Logo, voltando-se para os seus homens:— Deixai passar estes senhores — disse ele; — eu os conheço, são

amigos do Sr. de Beaufort.— Viva o Sr. de Beaufort! — gritou em uníssono todo o posto, abrindo

alas para a passagem de Athos e Aramis.Só o sargento se aproximou de Planchet.— Como! Sem salvo-conduto? — murmurou.— Sem salvo-conduto — confirmou Planchet.— Cuidado, Capitão — continuou o sargento, dando antecipadamente a

Planchet o título que lhe fora prometido — cuidado! Um dos três homens que saíram há pouco daqui me disse baixinho que desconfiasse destes senhores.

— Pois eu — tornou Planchet com majestade — eu os conheço e respondo por eles.

E, dizendo isso, apertou a mão de Grimaud, que pareceu honradíssimo com a distinção.

— Adeus, Capitão — volveu Aramis com o seu tom chocarreiro; — se

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nos acontecer alguma coisa viremos comunicá-la.— Senhor — redargüiu Planchet — nisso como em tudo sou um criado

vosso.— O maroto tem espírito, e muito — disse Aramis montando a cavalo.— E como não o teria — volveu Athos cavalgando também — se

escovou durante tanto tempo os chapéus do amo?

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CAPÍTULO XVIII

OS EMBAIXADORES

Os dois amigos puseram-se incontinenti a caminho, descendo a íngreme ladeira do subúrbio; mas, chegados ao fim da ladeira, viram com assombro que as ruas de Paris se tinham mudado em rios e os largos em lagos. Como conseqüências das chuvas torrenciais que tinham caído durante o mês de janeiro, o Sena transbordara e o rio acabara invadindo metade da capital.

Athos e Aramis enfrentaram bravamente a cavalo a inundação; mas, pouco depois, a água chegava aos peitos dos pobres animais, e foi preciso que os dois cavaleiros decidissem desmontá-los e tomar um barco; o que fizeram após recomendarem aos lacaios que fossem esperá-los no mercado.

Foi, portanto, de barco que chegaram ao Louvre. Era noite fechada, e Paris, vista assim à luz de algumas pálidas lanternas que bruxuleavam no meio dos charcos, entre barcos carregados de patrulhas de armas refulgentes, e gritos de sentinelas, Paris apresentava um aspecto que deslumbrou Aramis, o homem mais accessível aos sentimentos belicosos que era possível encontrar.

Chegaram aos aposentos da Rainha; mas precisavam esperar na antecâmara, pois Sua Majestade dava nesse instante audiência a fidalgos que lhe traziam novas de Inglaterra.

— E nós também — disse Athos ao servidor que lhes transmitira a resposta — nós também, não só trazemos novas de Inglaterra senão chegamos de lá.

— Como vos chamais, senhores? — perguntou o servidor.— O Sr. Conde de La Fere e o Sr. Cavaleiro d'Herblay— disse Aramis.— Ah! nesse caso, senhores — disse o servidor ouvindo os nomes que

tantas vezes pronunciara, esperançosa, a Rainha— a coisa muda de figura, e creio que Sua Majestade não me perdoaria

se vos fizesse esperar um só minuto. Acompanhai-me, por favor.E foi adiante, seguido de Athos e de Aramis. Chegados à sala em que se

encontrava a Rainha, fez-lhes sinal que esperassem; e, abrindo a porta:— Senhora — declarou — espero que Vossa Majestade me perdoe por

haver desobedecido às suas ordens, quando souber que os senhores que venho anunciar são o Conde de La Fere e o Cavaleiro d'Herblay.

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Ouvindo os dois nomes, despediu a Rainha um grito de alegria, que os dois gentis-homens escutaram do lugar em que tinham parado.

— Pobre Rainha! — murmurou Athos.— Oh! que entrem! que entrem! — exclamou, por sua vez, a

Princesinha, precipitando-se para a porta.A pobre menina não saía de ao pé da mãe, tentando fazê-la esquecer com

cuidados filiais, a ausência dos dois irmãos e da irmã.— Entrai, entrai, senhores — disse ela, abrindo pessoalmente a porta.Athos e Aramis apresentaram-se. A Rainha estava sentada numa

poltrona e diante dela, em pé, se mantinham dois dos três cavaleiros que haviam encontrado no corpo da guarda.

Eram os senhores de Flamarens e Gaspar de Coligny, Duque de Châtillon, irmão do que fora morto sete ou oito anos antes num duelo na Place Royale, duelo que se travara por causa da Sra. de Longueville (71).

(71) Esse duelo provocou um escândalo tremendo. Um dia, em casa da Sra. de Longueville, a bela Duquesa de Montbazon viu cair do bolso da dona da casa uma carta, que se apressou em apanhar. Era uma carta de amor do Conde Maurício de Coligny. A Sra. de Montbazon não perdeu a oportunidade para contar a história a meio mundo, e o caso alvorotou a nobreza de França. A Sra. de Longueville foi queixar-se à Rainha, que lhe deu razão e obrigou a Sra. de Montbazon a humilhar-se, desculpando-se publicamente. Mas o Conde de Coligny, que se considerava ofendido, provocou o Duque de Guise, da casa de Lorena, que tomara as dores da Sra. de Montbazon. A briga, aliás, só servira de acirrar os velhos ódios entre as duas famílias, de Coligny e de Guise. Encontraram-se, portanto, os dois rivais sob as arcadas da Place Royale. Antes do combate, o Duque de Guise cumprimentou com muita civilidade o adversário e disse-lhe: "Sr. Conde, vamos decidir hoje as antigas pendências de nossas duas casas." Às primeiras escaramuças, Guise desarmou Coligny, pôs o pé sobre a espada do contendor e esbofeteou-o com a lâmina da sua. Reiniciado o combate, feriram-se os dois antagonistas; Guise segurou, com uma das mãos, a espada de Coligny e, com a outra, desferiu-lhe violenta estocada, que o derrubou e que, dez meses depois, o levou à morte. (N. do T.)

Ouvindo pronunciar o nome dos dois amigos, recuaram um passo e trocaram, inquietos, algumas palavras em voz baixa.

— Então, senhores? — exclamou a Rainha de Inglaterra avistando Athos e Aramis. — Eis-vos enfim, amigos fiéis! Mas os correios de Estado andam mais depressa do que vós. A Corte foi inteirada dos negócios de Londres no momento em que batíeis às portas de Paris, e aqui estão os Srs. de Flamarens e de Châtillon que me trazem, da parte de Sua Majestade, a Rainha Ana d'Áustria, as mais recentes informações.

Aramis e Athos entreolharam-se; aquela tranqüilidade, aquela verdadeira alegria, que se liam no olhar da Rainha, deixavam-nos estupefactos.

— Tende a bondade de continuar — disse ela, dirigindo-se aos Srs. de Flamarens e de Châtillon; dizíeis, pois, que Sua Majestade Carlos I, meu

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augusto amo, fora condenado à morte contra a vontade da maioria dos súditos ingleses?

— Sim, senhora — balbuciou Châtillon (72). (72) Gaspar de Coligny, Duque de Châtillon, irmão de Maurício de Coligny, morto em

duelo pelo Duque de Guise. Amigo íntimo e companheiro de armas do Grande Conde, era um dos elementos mais turbulentos do bando farrista do Sr. Príncipe. (N. do T.)

Athos e Aramis entreolhavam-se cada vez mais admirados.— E que, conduzido ao cadafalso — continuou a Rainha — ao

cadafalso! ó meu senhor! ó meu rei!... conduzido ao cadafalso, foi salvo pelo povo indignado?

— Sim, senhora — respondeu Châtillon, com voz tão baixa que só a muito custo, embora estivessem profundamente atentos, puderam os dois gentis-homens ouvir a afirmação.

A Rainha juntou as mãos com generoso reconhecimento, ao passo que a filha lhe passava um braço em torno do pescoço e beijava-a com olhos molhados de lágrimas jubilosas.

— Agora, só nos resta apresentar a Vossa Majestade os nossos humildes respeitos — disse Châtillon, a quem parecia pesar o papel e que corava manifestamente sob o olhar fixo e penetrante de Athos.

— Um momento ainda, senhores — disse a Rainha retendo-os com um sinal. — Um momento, por favor! pois aqui estão os Srs. de La Fere e d'Herblay que, como pudestes ouvir, chegam de Londres e talvez possam dar- vos, como testemunhas oculares, pormenores que não conheceis. Levareis esses pormenores à Rainha, minha boa irmã. Falai, senhores, falai, que vos ouço. Não me oculteis nada; nada poupeis. Já que Sua Majestade ainda vive e está salva a honra real, tudo o mais me é indiferente.

Athos empalideceu e levou a mão ao coração.— Então! — continuou a Rainha, que lhe notou o movimento e a palidez

— falai, senhor, eu vos peço.— Perdão, senhora — disse Athos; — mas não acrescentarei coisa

alguma ao relato destes senhores enquanto não reconhecerem que talvez se tenham enganado.

— Enganado! — bradou a Rainha quase sufocada; — enganado!... Mas que aconteceu, então? Ó meu Deus!

— Senhor — disse o Sr. de Flamarens a Athos — se nós nos enganamos, da parte da Rainha procede o engano, e imagino que não tereis a pretensão de retificá-lo, pois seria desmentir Sua Majestade.

— Da Rainha, senhor? — tornou Athos com voz calma e vibrante.— Sim — murmurou Flamarens abaixando os olhos. Athos suspirou

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tristemente.— Não seria antes da parte de quem vos acompanhava, e que vimos

convosco no corpo da guarda na barreira do Roule, que procede o engano? — acudiu Aramis com sua polidez insultante. — Pois, se não nos equivocamos, o Conde de La Fere e eu, éreis três ao entrar em Paris.

Châtillon e Flamarens estremeceram.— Mas explicai-vos, Conde! — bradou a Rainha, cuja angústia

aumentava de momento a momento; — em vossa fronte leio o desespero, a vossa boca hesita em anunciar-me alguma notícia terrível, tremem as vossas mãos... Oh! meu Deus! meu Deus! que aconteceu, então?

— Senhor! — exclamou a Princesinha caindo de joelhos perto da mãe — tende piedade de nós!

— Senhor — acudiu Châtillon — se sois portador de uma notícia funesta, procedeis com crueldade transmitindo-a à Rainha.

Aramis aproximou-se de Châtillon quase a ponto de tocá-lo.— Senhor — disse ele, com os lábios cerrados e o olhar fuzilante —

suponho que não tereis a pretensão de ensinar ao Sr. Conde de La Fere e a mim o que devemos fazer aqui?

Durante essa curta altercação, Athos, que conservara a mão no coração e a cabeça inclinada, aproximara-se da Rainha e, com voz comovida:

— Senhora — começou ele — os príncipes, que, por sua natureza, estão acima dos outros homens, receberam do céu um coração feito para suportar infortúnios maiores que os do vulgo; pois o seu coração participa da sua superioridade, parece-me, pois, que não se deve proceder em relação a uma grande rainha como Vossa Majestade como se procederia em relação a uma mulher da nossa condição. Rainha, destinada a todos os martírios sobre a terra, eis aqui o resultado da missão com que Vossa Majestade nos honrou.

E, ajoelhando-se diante de Henriqueta palpitante e gelada, tirou Athos do seio, fechados na mesma caixa, a ordem de brilhantes que, antes de sua partida, confiara a Rainha a Lorde de Winter, e o anel nupcial que, antes de sua morte, Carlos entregara a Aramis; depois que os recebera, Athos não se apartara mais dos dois objetos.

Abriu a caixa e apresentou-os com expressão de dor muda e profunda.A Rainha estendeu a mão, pegou o anel, levou-o convulsivamente aos

lábios e, sem poder soltar um suspiro, sem poder articular um soluço, esticou os braços, empalideceu e caiu sem sentidos, amparada pelas aias e pela filha.

Athos beijou a fímbria do vestido da desditosa viúva e, erguendo-se com uma majestade que produziu nos assistentes profunda impressão:

— Eu, Conde de La Fere — disse ele — gentil-homem que nunca menti, juro, primeiro diante de Deus e depois diante desta pobre rainha, que tudo o

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que era possível fazer para salvar o Rei nós o fizemos em solo inglês. Agora, Cavaleiro — ajuntou, voltando-se para d'Herblay — partamos, que a nossa missão está cumprida.

— Ainda não — disse Aramis; — ainda temos que dizer uma palavrinha a estes senhores.

E, voltando-se para Châtillon:— Senhor — disse ele — rogo-vos a fineza de sairdes, nem que seja por

um instante, a fim de ouvirdes a palavrinha que não posso pronunciar diante de Sua Majestade.

Sem responder, inclinou-se Châtillon em sinal de assentimento; Athos e Aramis saíram na frente, Châtillon e Flamarens logo depois; atravessaram o vestíbulo sem articular uma palavra; mas, chegados a um eirado ao nível de uma janela, dirigiu-se Aramis para o terraço, completamente solitário; ao pé da janela se deteve e, voltando-se para o Duque de Châtillon:

— Senhor — disse ele — há pouco, segundo me parece, tomastes a liberdade de tratar-nos com muita insolência. Isso não fica bem em circunstância alguma e muito menos da parte de pessoas que vinham trazer à Rainha a mensagem de um mentiroso.

— Senhor! — exclamou Châtillon.— Que fizestes do Sr. de Bruy? — perguntou ironicamente Aramis. —

Não teria ido, por acaso, trocar de rosto, já que o dele se parece demais com o do Sr. Mazarino? É sabido que há no Palais-Royale grande número de máscaras italianas de reserva, desde a de Arlequim até a de Pantalon.

— Creio que nos estais provocando! — atalhou Flamarens.— Credes apenas, senhores?— Cavaleiro! Cavaleiro! — acudiu Athos.— Ora, deixa-me — tornou Aramis mal-humorado — sabes muito bem

que não gosto de ver as coisas pela metade.— Acabai, então, senhor — disse Châtillon com uma sobranceria que

nada ficava a dever à de Aramis.Aramis inclinou-se.— Senhores — disse ele — outro que não fosse eu nem o Sr. Conde de

La Fere vos mandaria prender, pois temos amigos em Paris; mas nós vos oferecemos um meio de partirdes sem serdes inquietados. Vinde conversar comigo, durante cinco minutos, com a espada na mão, naquele terraço solitário.

— Com muito prazer — aceitou Châtillon.— Um momento, senhores — sobreveio Flamarens. — Sei perfeitamente

que a proposta é tentadora, mas neste momento é impossível aceitá-la.— E por quê? — perguntou Aramis com o seu tom zombeteiro; — será,

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porventura, a proximidade de Mazarino que vos torna tão prudentes?— Ouviste, Flamarens! — bradou Châtillon. — Não responder a isso

seria -manchar o meu nome e a minha honra.— É o que eu acho — disse Aramis.— Entretanto não respondereis, e estes senhores, dentro em pouco, serão

do meu parecer.Aramis sacudiu a cabeça com um gesto de incrível insolência.Châtillon viu o gesto e levou a mão à espada.— Duque — insistiu Flamarens — esquecestes que amanhã comandareis

uma expedição importantíssima, designada pelo Sr. Príncipe e aprovada pela Rainha, e que, até amanhã à noite, não vos pertenceis.

— Seja. Portanto, até depois de amanhã cedo — volveu Aramis.— Depois de amanhã cedo é muito tarde — disse Châtillon.— Não sou eu — tornou Aramis — quem marca o prazo nem pede o

adiamento; tanto mais — acrescentou — que, segundo me parece, poderemos encontrar-nos nessa expedição.

— Sim, senhor, tendes razão — exclamou Châtillon — e com imenso prazer, se vos derdes ao trabalho de ir até às portas de Charenton.

— Como não! Para ter a honra de encontrar-vos eu iria ao fim do mundo; com muito mais razão caminharei uma ou duas léguas.

— Pois bem! Até amanhã, senhor.— Até amanhã. Voltai para junto do vosso cardeal. Mas, antes, dai-nos a

vossa palavra de honra de que não o avisa-reis de nosso regresso.— Condições!— E por que não?— Porque só aos vencedores cabe impô-las, e vós o não sois.— Nesse caso, batamo-nos agora mesmo. Isso, para nós, tanto faz, pois

não comandamos a expedição de amanhã.Châtillon e Flamarens entreolharam-se; havia tanta ironia na frase e no

gesto de Aramis, que Châtillon só a muito custo se continha. Mas a uma palavra de Flamarens, reportou-se.

— Pois bem, seja — conveio ele. — O nosso companheiro, seja lá quem for, nada saberá do que se passou. Mas vós me prometeis estar amanhã em Charenton?

— Ah! — respondeu Aramis — ficai descansados, senhores.Cumprimentaram-se os quatro cavaleiros, mas dessa feita foram

Châtillon e Flamarens que primeiro saíram do Louvre e Athos e Aramis que os seguiram.

— Mas quem te causou tamanho furor, Aramis? — perguntou Athos.— Hom'essa! aqueles a quem acabo de provocar.

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— Que te fizeram eles?— Eles me fizeram... Então não viste?— Não.— Riram quando juramos ter cumprido o nosso dever na Inglaterra. Ora,

ou acreditaram ou não acreditaram; se acreditaram, riram para insultar-nos; se não acreditaram, insultaram-nos também, e precisamos provar-lhes urgentemente que prestamos para alguma coisa. De mais a mais, não me desgostou que adiassem o negócio, pois creio que temos coisa melhor para fazer esta noite do que puxar da espada.

— O quê?— Ora essa! Mandar prender o Mazarino. Athos protraiu

desdenhosamente os lábios.— Sabes que não aprecio esse gênero de expedições, Aramis.— Por quê?— Porque se parecem muito com surpresas.— Francamente, Athos, serias um estranho general; só combaterias

durante o dia; mandarias prevenir o inimigo da hora certa do ataque e nunca tentarias coisa alguma contra ele durante a noite, com receio de que te acusassem de haveres aproveitado a escuridão.

Athos sorriu.— Ninguém pode modificar a própria natureza — disse ele; — além do

mais, sabes acaso em que pés estão as coisas e se a prisão de Mazarino não seria antes um mal do que um bem, antes um embaraço que um triunfo?

— Dize, Athos, que não aprovas a minha proposta.— Não digo; creio, pelo contrário, que é de boa guerra; entretanto...— Entretanto?— Acho que não deverias ter feito aqueles senhores jurarem não dizer

nada ao Mazarino; pois, fazendo-os jurar, de certo modo te comprometeste a ficar de braços cruzados.

— Não me comprometi a coisíssima nenhuma; considero-me perfeitamente livre. Vamos, vamos, Athos! Vamos!

— Aonde?— À casa do Sr. de Beaufort ou do Sr. de Bouillon; diremos a eles o que

está acontecendo.— Sim, mas com uma condição: começaremos pelo Coadjutor. Como

padre, é entendido em casos de consciência e nós lhe contaremos o nosso.— Ah! — exclamou Aramis — ele vai estragar tudo, vai apropriar-se de

tudo; em vez de começar por ele, deixemo-lo por último.Athos sorriu. Percebia-se que tinha no fundo do coração um pensamento,

que não revelava.

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— Está bem, seja — concordou; — por quem começaremos ?— Pelo Sr. de Bouillon, se quiseres; é o que se apresenta primeiro em

nosso caminho.— Mas tu me permitirás uma coisa, não é assim?— Qual?— Passar pela hospedaria do Grand-Empereur-Charlemagne, e abraçar

Raul.— Como não! irei contigo e ambos o abraçaremos.Retomaram os dois o barco que os havia trazido e dirigiram-se ao

Mercado. Lá encontraram Grimaud e Blaisois, que lhes seguravam os cavalos, e os quatro se tocaram para a rue Guénégaud.

Mas Raul não se achava no albergue; recebera, durante o dia, um recado do Sr. Príncipe e partira incontinenti com Olivain.

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CAPÍTULO XIX

OS TRÊS TENENTES DO GENERALÍSSIMO

CONSOANTE haviam combinado e conforme o programa já traçado entre eles, ao saírem da hospedaria do Grand-Empereur-Charlemagne, Athos e Aramis se encaminharam para o palácio do Sr. Duque de Bouillon.

A noite estava escura, e se bem já principiassem a soar as horas silenciosas e solitárias, ainda se ouviam os mil rumores que despertam em sobressalto uma cidade obsidiada. A cada passo se encontravam barricadas, em cada esquina correntes esticadas, bivaques em cada encruzilhada; cruzavam-se as patrulhas, trocando senhas; enviados pelos diferentes chefes, mensageiros percorriam a cidade; enfim, diálogos animados, traindo a agitação dos espíritos, se estabeleciam entre os habitantes pacíficos debruçados nas janelas e seus concidadãos mais belicosos, que atravessavam as ruas com parta-sana ao ombro e arcabuz debaixo do braço.

Athos e Aramis não tinham dado cem passos quando os detiveram as sentinelas das barricadas, que lhes pediram a senha; mas eles responderam que iam à casa do Sr. de Bouillon para transmitir-lhe uma notícia importante, e as sentinelas se contentaram de dar-lhes um guia, que, a pretexto de acompanhá-los e facilitar-lhes a passagem, ia encarregado de vigiá-los. Este partira na frente, cantando:

O bravo Sr. de Bouillon Está sofrendo de gota.

Era uma redondilha das mais recentes e que se compunha de não sei quantas copias, em que cada personagem tinha a sua parte.

Nas proximidades do palácio de Bouillon, os dois amigos encontraram três cavaleiros, que conheciam todas as senhas do mundo, pois andavam sem guia e sem escolta; chegando às barricadas, trocavam algumas palavras com os respectivos guardas, que logo os deixavam passar com todas as deferências devidas, sem dúvida, à sua posição. À vista deles, Athos e Aramis estacaram.

— Oh! oh! — disse Aramis — estás vendo, Conde?— Estou — respondeu Athos.— Que te parecem os três cavaleiros?

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— E a ti, Aramis?— Parece-me que são os nossos homens.— Não te enganaste; reconheci perfeitamente o Sr. de Flamarens.— E eu, o Sr. de Châtillon.— Quanto ao cavaleiro da capa castanha...— Era o Cardeal.— Em pessoa.— Como diabo se aventuram eles a aproximar-se tanto do palácio de

Bouillon? — perguntou Aramis.Athos sorriu, mas não respondeu. Cinco minutos depois batiam à porta

do Príncipe.A porta estava guardada por uma sentinela, como é uso nas casas das

pessoas revestidas de funções superiores; havia até um postozinho no pátio, pronto para obedecer às ordens do tenente do Sr. Príncipe de Conti.

Como dizia a canção, o Sr. d*» Bouillon sofria de gota e não saía da cama; mas Ta despeito da grave indisposição, que o impedia de montar a cavalo havia mais de um mês, isto é, desde que Paris fora cercada, nem por isso deixou de declarar que estava pronto para receber os Srs. Conde de La Fere e Cavaleiro d'Herblay.

Foram os dois amigos levados à presença do Sr. Duque de Bouillon. Achava-se o doente no quarto, deitado, mas cercado do aparato mais belicoso que se possa imaginar. Viam-se em toda a parte, penduradas nas paredes, espadas, pistolas, couraças e arcabuzes, e era perfeitamente óbvio que, assim que se visse livre da gota, daria muito que fazer aos inimigos do Parlamento. Entrementes, para seu grande pesar, dizia, era obrigado a ficar de cama.

— Ah! senhores — exclamou ele ao ver os dois visitantes e fazendo, para erguer-se sobre o leito, um esforço que lhe arrancou uma careta de dor — sois bem felizes; podeis montar a cavalo, ir, vir, combater pela causa do povo. Mas eu, como vedes, estou pregado na cama. Ah! diabo de gota! — ajuntou, com nova careta — diabo de gota!

— Monsenhor — disse Athos — estamos chegando da Inglaterra, e o nosso primeiro cuidado, ao entrar em Paris, foi o de vir saber notícias da vossa saúde.

— Muito agradecido, senhores, muito agradecido! — volveu o Duque. — Anda má, como vedes, a minha saúde... Diabo de gota! Ah! chegastes de Inglaterra? E o Rei Caries está passando bem, como acabo de saber?

— Morreu, Monsenhor — disse Aramis.— Não! — bradou o Duque, espantado.— Morreu num cadafalso, condenado pelo Parlamento.

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— Impossível!— Foi executado em nossa presença.— Mas que me disse, então, o Sr. de Flamarens? — O Sr. de Flamarens?

— tornou Aramis.— Sim, ele acaba de sair daqui. Athos sorriu.— Com dois companheiros? — perguntou.— Com dois companheiros — confirmou o Duque; e, logo, com certa

inquietude: — Acaso os encontrastes?— Sim, parece-me tê-los encontrado na rua — disse Athos. E olhou

sorrindo para Aramis, que, por seu turno, fitou nele dois olhos espantados.— Diabo de gota! — exclamou o Sr. de Bouillon, manifestamente

encalistrado.— Monsenhor — acudiu Athos — cumpre que seja, com efeito, muito

grande a vossa dedicação à causa parisiense para continuardes, apesar dos vossos padecimentos, à testa dos exércitos, e nós, o Sr. d'Herblay e eu, não nos cansamos de admirar a vossa perseverança.

— Que quereis, senhores! é preciso, e sois um exemplo, vós tão bravos e tão dedicados, vós a quem o meu caro colega o Duque de Beaufort deve a liberdade e talvez a vida, de que é preciso sacrificar-se a gente pela coisa pública. Por isso, como vedes, eu me sacrifico; mas, confesso que as minhas forças estão se acabando. O coração é bom, a cabeça é boa, mas o diabo da gota está dando cabo de mim, e confesso que, se a Corte acedesse aos meus pedidos, como seria de justiça, pois limito-me a pedir a indenização prometida pelo antigo Cardeal pessoalmente, quando me tiraram o principado de Sedan... Sim, se me dessem domínios do mesmo valor; se me indenizassem do que deixei de ganhar com essa propriedade desde que ma tiraram, isto é, de oito anos a esta parte; se aos de minha casa fosse concedido o título de príncipe e se o mano de Turenne fosse reintegrado em seu comando, eu me retiraria incontinenti para as minhas terras e deixaria que a Corte e o Parlamento se arrumassem como bem o entendessem.

— E teríeis muita razão, Monsenhor — disse Athos.— É essa a vossa opinião, não é, Sr. Conde de La Fere?— Sem tirar nem por.— E é a vossa também, Sr. Cavaleiro d'Herblay?— Perfeitamente.— Pois eu vos afianço, senhores — volveu o Duque — que, segundo

todas as probabilidades, será essa a norma de proceder que adotarei. A Corte acaba de fazer-me propostas; só depende de mim o aceitá-las ou não. Eu as havia rejeitado até agora, mas visto que homens como vós me afiançam que faço mal, e visto, sobretudo, que o diabo da gota me coloca na

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impossibilidade de prestar qualquer serviço à causa parisiense, palavra que sinto muita vontade de seguir o vosso conselho e aceitar a oferta que acaba de fazer-me o Sr. de Châtillon.

— Aceitai, Príncipe — aconselhou Aramis — aceitai.— À minha fé que sim. Estou até aborrecido, agora, de havê-la quase

recusado... mas haverá uma conferência amanhã. Veremos...Os dois amigos cumprimentaram o Duque.— Ide, senhores — disse-lhes este último — ide, que deveis estar

cansadíssimos da viagem. Pobre Rei Carlos! Mas, enfim, ele também teve alguma culpa em tudo isso, e deve consolar-nos a lembrança de que ninguém pode dirigir à França o mínimo reproche nesta ocasião, pois ela fez o possível para salvá-lo.

— Oh! quanto a isso — disse Aramis — somos testemunhas. Principalmente o Sr. de Mazarino...

— Ora, aí está! Estimo até que o reconheçais; intimamente é bom, o Cardeal, e se não fosse estrangeiro... far-lhe-iam completa justiça. Ai! diabo de gota!

Athos e Aramis saíram, acompanhados até à antecâmara pelos gritos do Sr. de Bouillon; era evidente que o pobre príncipe sofria como um condenado.

Chegados à porta da rua:— E então? — perguntou Aramis a Athos — que pensas?— De quem?— Ora, de quem! Do Sr. de Bouillon!— Meu amigo, eu penso o que pensa a copia do nosso guia:

O bravo Sr. de Bouillon Está sofrendo de gota.

— Também, como viste — tornou Aramis — eu não lhe disse nada do assunto que nos trazia.

— E procedeste com prudência, pois, do contrário, lhe terias provocado um acesso. Vamos à casa do Sr. de Beaufort.

E guiaram os dois para o palácio de Vondôme.Batiam dez horas quando chegaram.O palácio de Vendôme não se achava menos bem guardado e

apresentava um aspecto não menos belicoso que o de Bouillon. Havia sentinelas, um posto no pátio, armas aos montes, cavalos ajaezados presos em argolas. Dois cavaleiros, que saíam ao entrarem Athos e Aramis, foram obrigados a sofrear as montarias para deixá-los passar.

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— Ah! ah! senhores — disse Aramis — esta, decididamente, é a noite dos encontros; e confesso que seríamos muito infelizes se, depois de nos termos tantas vezes encontrado esta noite, não conseguíssemos encontrar-nos amanhã.

— Oh! quanto a isso, senhor — replicou Châtillon (pois era ele mesmo quem saía com Flamarens da casa do Duque de Beaufort) — podeis ficar tranqüilo; se nos encontrarmos à noite sem nos buscarmos, com muito maior razão nos encontraremos de dia se o quisermos.

— Espero-o, senhor — disse Aramis.— E eu tenho certeza — disse o Duque.Os Srs. de Flamarens e de Châtillon prosseguiram e Athos e Aramis

apearam.Mal haviam passado as rédeas dos cavalos aos braços dos lacaios e se

tinham desvencilhado das capas, quando um homem se aproximou e, depois de havê-los examinado por um instante à dúbia claridade de uma lanterna suspensa no meio do pátio, soltou um grito de surpresa e foi atirar-se-lhes nos braços.

— Conde de La Fere! — exclamou o homem — Cavaleiro d'Herblay! Como! Estais aqui, em Paris?

— Rochefort! — disseram, ao mesmo tempo, os dois amigos.— Eu mesmo. Chegamos, como deveis saber, há quatro ou cinco dias do

Vendômois e já nos preparamos para dar que fazer ao Mazarino. Continuais do nosso lado, presumo eu?

— Mais do que nunca. E o Duque?— Está danado contra o Cardeal. Já soubestes do sucesso que tem feito o

nosso querido Duque? É o verdadeiro rei de Paris; não pode sair de casa sem arriscar-se a que o sufoquem.

— Ah! tanto melhor — disse Aramis; — mas, dizei-me. não foram os Srs. de Flamarens e de Châtillon que acabaram de sair daqui?

— Foram; tiveram audiência com o Duque; vieram, sem dúvida, de parte do Mazarino, mas eu vos garanto que devem ter encontrado um adversário de respeito.

— Ainda bem! — disse Athos. — E poderíamos ter a honra de falar com Sua Alteza?

— Como não! Agora mesmo. Sabeis que, para vós, ele está sempre visível. Acompanhai-me, reclamo a honra de apresentar-vos.

Rochefort pôs-se a caminhar na frente. Todas as portas se abriram diante dele e dos dois amigos. Encontraram o Sr. de Beaufort pronto para amesendar-se. As mil ocupações da noite lhe haviam retardado o jantar até aquele momento; mas, apesar da gravidade da circunstância, assim que o

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Príncipe ouviu os dois nomes que lhe anunciava Rochefort, levantou-se da cadeira que ia chegar para a mesa e, dirigindo-se ligeiro ao encontro dos amigos:

— Ah! por Deus — disse ele — sede bem-vindos, senhores. Viestes jantar comigo, não é verdade? Boisjoli, avisa Noirmont que tenho dois convidados. Conheceis Noirmont, não conheceis? É o meu mordomo, o sucessor do tio Marteau, que faz os magníficos pastéis que sabeis. Boisjoli, dize-lhe que mande um da sua marca, mas não do gênero daquele que fez para La Ramée. Graças a Deus, já não temos precisão de cordas, punhais, nem pêras amargas.

— Monsenhor — disse Athos — não incomode por nossa causa o seu ilustre mordomo, cujos talentos inúmeros e vários já conhecemos. Esta noite, com licença de Vossa Alteza, teremos somente a honra de pedir-lhe notícias de sua saúde e receber as suas ordens.

— Oh! a minha saúde, como vedes, senhores, é excelente. Uma saúde que resistiu a cinco anos de Bastilha acompanhados do Sr. de Chavigny é capaz de tudo. Quanto às minhas ordens, confesso que me veria atrapalhadíssimo para dar-vo-las, visto que cada um dá as suas de seu lado, e, a continuarem as coisas nesse andar, acabarei não dando nenhuma.

— Deveras? — tornou Athos; — pois eu imaginava que era com a união dos príncipes que contava o Parlamento.

— Ah! sim, a nossa união! Fresca união! Com o Duque de Bouillon ainda vai, porque sofre de gota e não sai da cama, e é sempre possível a gente entender-se com ele; mas com o Sr. d'Elbeuf e os elefantes dos filhos... Conheceis a redondilha sobre o Duque d'Elbeuf?

— Não, Monsenhor.— Não?E o Duque pôs-se a cantar:

O Sr. d'Elbeuf e seus filhos Deblateram na Place Royale, Vão os quatro batendo os pés, O Sr. d'Elbeuf e seus filhos. Mas assim que é preciso lutar. Perdem todo o humor marcial. O Sr. d'Elbeuf e seus filhos Deblateram na Place Royale.

— Mas — tornou Athos — espero que não suceda o mesmo com o Coadjutor?

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— Pois sim! O Coadjutor é pior ainda. Deus vos livre de prelados trapalhões, mormente quando levam couraça debaixo da batina! Em vez de ficar quietinho em seu bispado, cantando Te Deums pelas vitórias que não obtemos, ou pelas vitórias em que somos derrotados, sabeis o que faz?

— Não.— Organiza um regimento ao qual dá o seu nome, o regimento de

Corinto. Nomeia tenentes e capitães como se fosse um Marechal de França, e coronéis como se fosse o Rei.

— Sim — disse Aramis; — mas, pelo menos, quando chega a hora de lutar, com certeza não sai do arcebispado.

— Não sai? Pois nisso é que estais enganado, meu caro d’Herblay! Quando chega a hora de combater, combate; de modo que, tendo assento no Parlamento por morte do tio, vive metido entre as pernas da gente; no Parlamento, no conselho, no campo de batalha. O Príncipe de Conti é um general de pintura, e que pintura! Um príncipe corcunda! Ah! tudo isso vai mal, senhores, vai muito mal!

— De sorte, Monsenhor, que Vossa Alteza está descontente? — perguntou Athos trocando um olhar com Aramis.

— Descontente, Conde? Dizei que a Minha Alteza está furiosa. A tal ponto (cuidado, só a vós o confesso e a mais ninguém), a tal ponto que, se a Rainha, reconhecendo as injustiças que me fez, chamasse minha mãe do exílio e me desse a sucessão do almirantado, que pertence ao senhor meu pai e me foi prometida depois de sua morte, eu até seria capaz de ensinar cachorros a dizerem que ainda há em França maiores ladrões que o Sr. de Mazarino.

Não foi apenas um olhar, foi um olhar e um sorriso que trocaram Athos e Aramis; e ainda que os não tivessem encontrado, teriam adivinhado que os Srs. de Châtillon e Flamarens haviam passado por lá. Por isso mesmo não disseram uma palavra da presença do Sr. de Mazarino em Paris.

— Monsenhor — acudiu Athos — estamos satisfeitos. Não tínhamos, vindo a esta hora à casa de Vossa Alteza, outro fito que o de provar-lhe a nossa dedicação e dizer-lhe que estamos inteiramente ao seu dispor como os servidores mais fiéis.

— Como os amigos mais fiéis, senhores, como os amigos mais fiéis! Já o provastes; e se eu, algum dia, voltar às boas com a Corte, espero poder demonstrar-vos que também continuo vosso amigo e amigo daqueles senhores... como diabo os chamais? D'Artagnan e Porthos?

— D'Artagnan e Porthos.— Isso mesmo. Compreendeis, então, Conde de La Fere, compreendeis,

Cavaleiro d'Herblay, à vossa disposição em tudo e para sempre.

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Athos e Aramis inclinaram-se e saíram.— Meu caro Athos — disse Aramis — creio que con-, sentiste em

acompanhar-me, Deus me perdoe! só para dar-me uma lição!— Espera, espera, meu caro — disse Athos — terás ocasião de

certificar-te quando sairmos da casa do Coadjutor.E dirigiram-se os dois para a cidade.Ao se avizinharem do berço de Paris, Athos e Aramis encontraram as

ruas inundadas e foi-lhes preciso entrar novamente num barco.Passava das onze, mas sabia-se que o Coadjutor não tinha hora para

receber os que o procuravam; a sua incrível atividade mudava, segunda as necessidades, a noite em dia e o dia em noite.

O palácio arquiepiscopal surgia do seio da água e a gente chegava a pensar, diante da quantidade de embarcações amarradas à sua volta, que estava em Veneza e não em Paris. Os barcos iam e vinham, cruzavam-se em todos os sentidos, embarafustavam pelo dédalo das ruas da cidade, ou afastavam-se na direção do Arsenal ou do cais de Saint-Victor e então vogavam como sobre um lago. Desses barcos, alguns eram mudos e misteriosos, outros ruidosos e brilhantes. Os dois amigos meteram-se no meio daquele mundo de embarcações e, pouco depois, chegavam ao seu destino.

Todo o rés-do-chão do arcebispado fora inundado, mas tinham-se adaptado às paredes umas espécies de escadas; e a única alteração provocada pela inundação era que, em vez de entrar pelas portas, a gente entrava pelas janelas.

Foi assim que Athos e Aramis chegaram à antecâmara do prelado, atulhada de lacaios, visto que uma dúzia de fidalgos se amontoavam na sala de espera.

— Meu Deus! — disse Aramis — vê, Athos! Dar-se-á o caso que esse Coadjutor presunçoso quer ter o prazer de fazer-nos esperar na antecâmara?

Athos sorriu.— Meu caro amigo — disse ele — devemos aceitar as pessoas com

todos os inconvenientes de sua posição; o Coadjutor é, neste momento, um dos sete ou oito reis de Paris; como tal, tem a sua corte.

— Sim — volveu Aramis; — mas nós não somos cortesãos.— Por isso mesmo far-lhe-emos anunciar os nossos nomes e se ele, ao

ouvi-los, não der uma resposta satisfatória, pronto! deixá-lo-emos entretido com os negócios de França e os seus. Trata-se apenas de chamar um lacaio e meter-lhe meia pistola na mão.

— Oh! precisamente — bradou Aramis — não me engano... sim... não... sim, sim, Bazin! Vem cá, tratante!

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Bazin, que, nesse momento atravessava a antecâmara, majestosamente revestido de seus hábitos eclesiásticos, voltou-se, com sobrecenho, para identificar o impertinente que o apostrofava daquela maneira. Mas tanto que reconheceu Aramis, transformou-se o tigre em cordeiro e, aproximando-se dos dois fidalgos:

— Como! — disse ele — sois vós, Sr. Cavaleiro! sois vós, Sr. Conde! Chegastes no momento em que estávamos tão preocupados convosco! Oh! quanta alegria em ver-vos!

— Está bem, está bem, Mestre Bazin — disse Aramis; — chega de cumprimentos. Viemos falar com o Sr. Coadjutor, mas estamos com pressa, e precisamos vê-lo agora mesmo.

— Como não! — disse Bazin — agora mesmo, sem dúvida; não se faz esperarem senhores como vós. Só que neste momento ele está em conferência secreta com um tal Sr. de Bruy.

— De Bruy! — exclamaram, ao mesmo tempo, Athos e Aramis.— Sim, fui eu que o anunciei, e lembro-me perfeitamente do nome. Já o

conheceis, senhor? — ajuntou Bazin voltando-se para Aramis.— Creio que sim.— Pois já não posso dizer o mesmo; veio tão bem embuçado na capa

que, apesar dos meus esforços, não lhe pude ver nem uma nesga de rosto. Mas vou entrar para anunciar-vos e, desta vez, eu talvez seja mais feliz.

— É inútil — atalhou Aramis. — Desistimos de ver o Sr. Coadjutor esta noite, não é verdade, Athos?

— Como quiseres — disse o Conde.— Sim, ele tem negócios importantíssimos para tratar com o tal Sr. de

Bruy.— E devo dizer-lhe que estivestes aqui?— Não, não vale a pena — respondeu Aramis; — vem, Athos.E, rompendo a multidão dos lacaios, saíram os dois amigos do

arcebispado seguidos de Razin, que lhes ressaltava a importância fazendo-lhes inúmeros rapapés.

— E então? — perguntou Athos quando Aramis e ele voltaram à barca — ainda não começaste a compreender que teríamos pregado uma peça a toda essa gente se tivéssemos prendido o Sr. de Mazarino?

— És a sabedoria encarnada, Athos — respondeu Aramis. O que mais impressionava os dois amigos era a pouca importância atribuída na Corte de França aos sucessos terríveis desenrolados na Inglaterra e que, na opinião deles, deveria centralizar a atenção de toda a Europa.

Com efeito, à parte uma pobre viúva e uma órfã real que choravam num canto do Louvre, ninguém parecia saber que existira um Rei Carlos I e que

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esse rei acabava de morrer no patíbulo.Os dois amigos combinaram encontrar-se no dia seguinte às dez horas da

manhã, pois, se bem já estivesse a noite muito adiantada quando chegaram à porta do albergue, Aramis alegara que tinha ainda algumas visitas importantes para fazer e deixara Athos sozinho.

No dia seguinte, ao soarem as dez horas, estavam reunidos. Desde as seis da manhã Athos saíra também.

— E então? Tiveste notícias? — perguntou o Conde de La Fere.— Nenhuma; d'Artagnan não foi visto e Porthos ainda não apareceu. E

tu?— Nada.— Diabo! — exclamou Aramis.— De fato, o atraso não é natural; eles tomaram o caminho mais direto e,

por conseguinte, deveriam chegar antes de nós.— Acrescenta a isso — observou Aramis — que d’Artagnan se

caracteriza pela rapidez das manobras e não é homem para perder uma hora, sabendo que o esperamos...

— Ele contava estar aqui no dia cinco.— E já estamos no dia nove. Hoje termina o prazo marcado.— Que imaginas fazer — perguntou Athos — se até à noite não tivermos

notícias?— Hom'essa! Sair à procura deles.— Bem.— E Raul? — perguntou Aramis.Uma nuvem toldou o semblante do Conde.— Raul preocupa-me bastante — respondeu; — recebeu ontem um

recado do Príncipe de Conde, foi encontrar-se com ele em Saint-Cloud e ainda não voltou.

— Não viste a Sra. de Chevreuse?— Ela não estava em casa. E tu, Aramis, devias passar, se não me

engano, por casa da Sra. de Longueville?— E realmente passei.— E daí?— Ela também não estava em casa; mas, pelo menos, deixou o endereço

da nova residência.— Onde estava ela?— Adivinha, se és capaz.— Como queres que eu adivinhe onde está à meia-noite (pois imagino

que ao deixar-me foste à casa dela), a mais bela e a mais ativa de todas as frondistas?

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— No Paço Municipal, meu caro!— Como, no Paço Municipal! Foi, acaso, nomeada preboste dos

mercadores?— Não, mas fez-se rainha interina de Paris, e como não se atreveu a

instalar-se logo no Palais-Royal ou nas Tulherias, instalou-se no Paço Municipal, onde dará brevemente um herdeiro ou uma herdeira àquele caro Duque.

— Não me tinhas informado dessa circunstância, Aramis.— Não? Então foi esquecimento meu, perdoa-me.— E agora — perguntou Athos — que vamos fazer até à noite? Parece-

me que estamos inteiramente desocupados.— Esqueces, meu amigo, que já temos uma ocupação aprazada.— Onde?— Dos lados de Charenton, ora essa! Espero, segundo o que me

prometeu, encontrar por lá certo Sr. de Châtillon, que detesto há muito tempo.

— Por quê?— Porque é irmão de certo Sr. de Coligny.— Ah! é verdade, eu me esquecia... o qual pretendeu ter a honra de ser

teu rival. Ele foi bem cruelmente castigado da audácia, meu caro, e isso, na verdade, deveria bastar-te.

— Sim; mas que queres? Não me basta. Sou rancoroso; é a única coisa que há em comum entre mim e a Igreja. Aliás, como vês, Athos, não tens nenhuma obrigação de seguir-me.

— Ora — disse Athos — estás brincando!— Nesse caso, meu caro, se queres mesmo acompanhar-me, não

podemos perder tempo. Já rufou o tambor, encontrei canhões que partiam, vi burgueses alinhados em ordem de batalha na praça do Paço Municipal; é evidente que haverá combate nas redondezas de Charenton, como disse ontem o Duque de Châtillon.

— Eu imaginaria — disse Athos — que as conferências desta noite houvessem modificado as disposições belicosas.

— Mas nem por isso deixará de haver combates, ainda que para melhor disfarçar as conferências.

— Pobre gente! — murmurou Athos — que vai matar-se para que devolvam Sedan ao Sr. de Bouillon, para que dêem a sucessão do almirantado ao Sr. de Beaufort e para que o Coadjutor seja cardeal.

— Vamos, vamos, meu caro — tornou Aramis — confessa que não serias tão filósofo se o teu Raul não estivesse metido nessa trapalhada.

— Talvez, Aramis.

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— Vamos ao teatro dos combates; é. meio certo de encontrarmos d’Artagnan, Porthos e quiçá o próprio Raul.

—Ai! — suspirou Athos.— Meu bom amigo — tornou Aramis — agora que estamos em Paris,

deves perder esse hábito de suspirar à-toa. Na guerra, que diabo! como na guerra, Athos! Deixaste de ser guerreiro para converter-te em frade? Vê, aí estão os belos burgueses que marcham; é tentador, com a breca! E aquele capitão, observa, tem um porte quase militar!

— Estão saindo da rue du Mouton.— Tambores à frente, como verdadeiros soldados! Mas repara no

pândego, como se bamboleia, como se empertiga!— Ué! — fez Grimaud.— O quê? — perguntou Athos.— Planchet.— Tenente ontem — disse Aramis — hoje capitão, amanhã, sem dúvida,

coronel; daqui a oito dias será marechal de França.— Vamos pedir-lhe informações — sugeriu Athos.E os dois amigos aproximaram-se de Planchet, que, mais orgulhoso do

que nunca de ser visto em plena atividade, houve por bem explicar aos dois fidalgos que recebera ordens para tomar posição na Place Royale com duzentos homens, formando a retaguarda do exército parisiense, e de lá dirigir-se para Charenton em caso de necessidade.

Como Athos e Aramis se encaminhassem para o mesmo lado, escoltaram Planchet até o seu destino.

Planchet fez manobrarem com muita habilidade os seus homens na Place Royale, e alinhou-os atrás de uma longa fila de burgueses, que se estendia pela rua e pelo bairro de Saint-Antoine, esperando o sinal de combate.

— O dia será quente — disse Planchet em tom belicoso.— Sim, não há dúvida — respondeu Aramis; — mas o inimigo está

longe daqui. ,— Encurtaremos a distância, senhor — acudiu um anspeçada.Aramis cumprimentou e, voltando-se para Athos:— Não faço nenhuma questão de acampar na Place Royale com toda

essa gente — disse ele; — que tal se fôssemos para a frente? Veríamos melhor as coisas.

— Além disso, o Sr. Châtillon não viria procurar-te na Place Royale, não é verdade? Vamos para a frente, meu amigo.

— Não queres também dizer duas palavrinhas ao Sr. de Flamarens?— Amigo — declarou Athos — tomei uma resolução: nunca mais

puxarei da espada, a não ser que me veja absolutamente obrigado a fazê-lo.

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— Desde quando?— Desde que puxei do punhal.— Ah! bom! mais uma lembrancinha do Sr. Mordaunt! Pois bem, meu

caro, só te faltaria sentir remorsos por haver matado aquele traste.— Pssiu! — disse Athos levando um dedo à boca com o sorriso triste

que era só dele — não falemos mais de Mordaunt, que nos daria azar.E atirou o cavalo na direção de Charenton, percorrendo o subúrbio e

depois o vale de Fécamp, cheio de burgueses armados.Não será preciso dizer que Aramis o seguia a meio corpo de distância.

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CAPÍTULO XX

O COMBATE DE CHARENTON

A proporção que avançavam Athos e Aramis e, avançando, alcançavam os diversos corpos escalonados na estrada, viam couraças polidas e reluzentes sucederem às armas enferrujadas e os mosquetes fulgentes às betadas partazanas.

— Creio que é aqui o verdadeiro campo de batalha — disse Aramis; — vês aquele corpo de cavalaria que se postou na frente da ponte? Eh! cuidado, aí vem o canhão.

— Ah! meu caro — observou Athos — mas onde nos trouxeste? Parece-me que só vejo à minha volta rostos de oficiais do exército real. Não é o próprio Sr. de Châtillon que se aproxima com os dois brigadeiros?

E Athos desembainhou a espada, ao passo que Aramis, julgando haver, com efeito, ultrapassado os limites do campo parisiense, levava a mão aos coldres.

— Bom-dia, senhores — disse o Duque aproximando-se — vejo que não compreendeis absolutamente nada do que se passa, mas uma palavrinha vos explicará tudo. Por ora estamos em tréguas; realiza-se uma conferência: o Sr. Príncipe, o Sr. de Retz, o Sr. de Beaufort e o Sr. de Bouillon tratam, neste momento, de política. Ora, de duas uma: ou as coisas não se arranjam, e tornaremos a encontrar-nos, Cavaleiro; ou elas se arranjam e, livrando-me eu do meu comando, tornaremos a encontrar-nos da mesma forma.

— Senhor — disse Aramis — falais admiràvelmente. Permiti, portanto, que eu vos faça uma pergunta.

— Fazei-a.— Onde estão os plenipotenciários?— Em Charenton mesmo, na segunda casa à direita de quem vem de

Paris.— E essa conferência não fora prevista!— Não, senhores. Segundo parece, é o resultado de novas propostas que

o Sr. de Mazarino fez ontem à noite aos parisienses.Athos e Aramis entreolharam-se a rir; sabiam melhor do que ninguém

que propostas eram aquelas, a quem tinham sido feitas e quem as fizera.— E essa casa onde estão os plenipotenciários — perguntou Athos —

pertence a... ?

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— Ao Sr. de Chanleu, que comanda as vossas tropas em Charenton. Digo vossas tropas porque suponho que sejais frondistas.

— Hum... mais ou menos — respondeu Aramis.— Como mais ou menos?— Naturalmente, senhor; sabeis melhor do que ninguém que, nos tempos

que correm, não podemos dizer com precisão o que somos.— Somos pelo Rei e pelos Srs. Príncipes — declarou Athos.— Primeiro devemos entender-nos — acudiu Châtillon: — o Rei está

conosco e tem por generalíssimos os Srs. de Orleans e de Conde.— Sim — refutou Athos — mas o lugar dele é em nossas fileiras, ao

lado dos Srs. de Conti, de Beaufort, d'Elbeuf e de Bouillon.— Pode ser — volveu Châtillon — e toda a gente sabe que, enquanto a

mim, simpatizo muito pouco com o Sr. de Mazarino; até os meus interesses estão em Paris; tenho lá uma grande causa, de que depende toda a minha fortuna, e, aqui onde me vedes, acabo de consultar meu advogado...

— Em Paris?— Não, em Charenton... O Sr. Viole, que conheceis de nome, homem

excelente, mas um tanto cabeçudo; não é à-toa que pertence ao Parlamento. Eu pretendia vê-lo ontem à noite, mas o nosso encontro não me deixou ocupar-me de meus negócios. Ora, como é preciso que os negócios se façam, aproveitei a trégua, e aí está por que me acho entre vós.

— O Sr. Viole dá consultas ao ar livre? — perguntou, rindo, Aramis.— Sim, senhor e a cavalo. Comanda hoje quinhentos pistoleiros e, em

sua homenagem fui visitá-lo acompanhado desses dois canhõezinhos, à cuja frente parecestes tão espantados de ver-me. Devo confessar que, a princípio, não o reconheci; ele traz uma durindana comprida sobre a garnacha e pistolas no cinto, o que lhe empresta um ar formidável, que vos agradaria muito se tivésseis a felicidade de encontrá-lo.

— Se é tão curioso de ver-se, merece que o procuremos de propósito — disse Aramis.

— Mas seria preciso que vos apressásseis, senhor, pois as conferências não podem durar por muito tempo ainda.

— E se terminarem sem resultado — perguntou Athos — tentareis tomar Charenton?

— São as minhas ordens; comando as tropas de ataque, e farei o possível para ser bem sucedido.

— Senhor — disse Athos — visto que comandais a cavalaria...— Perdão! Comando tudo.— Melhor ainda!... deveis conhecer todos os oficiais, isto é, os de maior

projeção.

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— Mais ou menos.— Fazei-me então o favor de dizer se não tendes sot» as vossas ordens o

Sr. Cavaleiro d'Artagnan, tenente dos mosqueteiros.— Não senhor, não está conosco; faz mais de seis semanas que saiu de

Paris e, segundo dizem, foi à Inglaterra, em missão especial.— Eu sabia disso, mas já o supunha de volta.— Não, senhor, e não sei de ninguém que o tenha visto. Posso informar-

vos tanto melhor sobre o assunto quanto os mosqueteiros são nossos e é o Sr. Cambon quem substitui inteiramente o Sr. d’Artagnan.

Entreolharam-se os dois amigos.— Estás vendo? — disse Athos.— É estranho — observou Aramis.— Aconteceu-lhe, forçosamente, alguma desgraça no caminho.— Estamos no dia 8 e hoje à noite termina o prazo marcado. Se até à

noite não tivermos notícias, partiremos amanhã cedo.Athos fez com a cabeça um sinal afirmativo e, logo, voltando-se:— E o Sr. de Bragelonne, um rapaz de quinze anos, adido ao Sr. Príncipe

— perguntou, quase enleado por deixar transparecer assim, diante do cético Aramis, as suas preocupações paternais — terá a honra de ser conhecido de vós, Sr. Duque?

— De certo — replicou Châtillon; — chegou-nos hoje cedo em companhia do Sr. Príncipe. Um moço encantador! É amigo vosso, Sr. Conde?

— Sim, senhor — respondeu Athos, docemente comovido; — tão amigo que tenho até vontade de vê-lo. Seria possível?

— Muito possível. Tende a bondade de acompanhar-me e eu vos levarei ao quartel-general.

— Olá! — exclamou Aramis — parece-me ouvir um barulhão atrás de nós.

— De fato, um troço de cavaleiros se aproxima — disse Châtillon.— Reconheço o Sr. Coadjutor pelo chapéu à moda da Fronda.— E eu, o Sr. de Beaufort pelas plumas brancas.— Vêm a galope. O Sr. Príncipe está com eles. Não, separam-se.— Estão tocando a reunir — exclamou Châtillon. — Ouvistes?

Precisamos informar-nos.Efetivamente, viam-se soldados que corriam às armas, cavaleiros que

montavam, apressados; trombetas soavam, rufavam tambores; o Sr. de Beaufort puxou da espada.

O Sr. Príncipe fez, por seu turno, um sinal e todos os oficiais do exército real, momentaneamente misturados às tropas parisienses, correram para eles.

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— Senhores — disse Châtillon — romperam-se as tréguas, é evidente; vamos bater-nos. Voltai, portanto a Charenton, que eu atacarei daqui a pouco. Eis o sinal que me dá o Sr. Príncipe.

Com efeito, um porta-estandarte erguia por três vezes no ar o guião de Conde!

— Até à vista, Sr. Cavaleiro! — gritou Châtillon. E partiu a galope para reunir-se à escolta.

Athos e Aramis deram também meia volta e foram cumprimentar o Coadjutor e o Sr. de Beaufort. Quanto ao Sr. de Bouillon, sofrerá no fim da conferência um acesso de gota tão terrível que fora reconduzido em maça a Paris.

Em compensação, o Sr. Duque d'Elbeuf, cercado dos quatro filhos como de um estado-maior, percorria as fileiras do exército parisiense.

Durante esse tempo, entre Charenton e o exército real se formara um longo espaço vazio, que parecia preparar-se para servir de último leito aos cadáveres.

— Esse Mazarino é, de fato, uma vergonha para a França — dizia o Coadjutor, apertando o cinturão da espada que trazia, a exemplo dos antigos prelados militares, sobre a samarra arquiepiscopal. — É um pedante que gostaria de governar a França como se fosse uma quinta. Por isso mesmo a França não pode esperar felicidade nem sossego enquanto ele estiver aqui.

— Parece-me que não se chegou a um acordo no tocante à cor do chapéu — observou Aramis.

No mesmo instante, o Sr. de Beaufort ergueu a espada.— Senhores — proclamou — toda a nossa diplomacia deu em droga;

queríamos livrar-nos desse salafrário do Mazarino; mas a Rainha embeiçada por ele, teima em tê-lo por ministro, de sorte que só nos resta um recurso: dar-lhe uma surra de criar bicho.

— Bom! — comentou o Coadjutor — aí está a costumeira eloqüência do Sr. de Beaufort.

— Felizmente — disse Aramis — ele corrige com a ponta da espada os deslizes da gramática.

— Pois sim! — tornou o Coadjutor com desdém — eu vos garanto que em toda esta guerra ele tem andado bem pálido.

E desembainhando a espada por seu turno:— Senhores, o inimigo vem ao nosso encontro; espero que lhe

poupemos, pelo menos, metade do caminho.E sem verificar se era seguido ou não, abalou. O seu regimento,

denominado regimento de Corinto, segundo o nome do seu arcebispado, disparou-lhe no encalço e a refrega principiou.

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De seu lado, o Sr. de Beaufort lançava a cavalaria, comandada pelo Sr. de Noirmoutiers, na direção de Étampes, onde deveria encontrar um comboio de víveres, impaciente-mente aguardado pelos parisienses. O Sr. de Beaufort preparava-se para sustentá-lo.

O Sr. de Chanleu, que comandava a praça, dispunha-se, com o grosso das tropas, a resistir ao assalto, e até, no caso de repelir o inimigo, a tentar uma sortida.

...da artilharia de Chanlen deteve o exército real...

Ao cabo de meia hora travava-se o combate em todos os pontos. Exasperado pela reputação de coragem do Sr. de Beaufort, o Coadjutor atirara-se para a frente e fazia, pessoalmente, prodígios de heroísmo. A sua vocação, como se sabe, era a espada, e ele sentia-se feliz sempre que podia arrancá-la da bainha e brandi-la, fosse por quem ou por que fosse. Mas, naquelas circunstâncias, se bem desempenhara o papel de soldado desempenhara muito mal o ofício de coronel. Com setecentos ou oitocentos homens fora ao encontro de três mil, os quais, por sua vez, tinham avançado em massa e davam sobre os soldados do Coadjutor, que voltaram em

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desordem para as trincheiras. Mas o fogo da artilharia de Chanlen deteve o exército real e, por um instante, fê-lo vacilar. Isso, no entanto, durou pouco e as tropas do Rei foram arregimentar-se atrás de um grupo de casas e de um bosquezinho.

Cuidou Chanleu chegado o momento; precipitou-se à frente de dois regimentos no encalço do exército real; mas este, como já dissemos, reorganizara-se e voltava à carga, dirigido pelo próprio Sr. de Châtillon. A carga foi tão áspera e habilmente conduzida, que Chanleu e seus homens se viram quase cercados. Chanleu ordenou a retirada, que principiou a executar-se passo a passo. Infelizmente, porém, ao cabo de um instante, Chanleu caiu mortalmente ferido.

O Sr. de Châtillon viu-o cair e anunciou-lhe a morte em voz alta; a notícia redobrou a coragem do exército real e desmoralizou completamente os dois regimentos que haviam tentado a sortida. Em conseqüência disso, cada qual se preocupou apenas em salvar a pele e alcançar de novo as trincheiras, ao pé das quais o Coadjutor tentava reorganizar os seus homens desbaratados.

A súbitas, um esquadrão de cavalaria saiu ao encontro dos vencedores, que entravam de roldão com os fugitivos nas trincheiras. Athos e Aramis vinham na frente, Aramis com a espada e a pistola na mão, Athos com a espada na bainha e as pistolas nos coldres. Athos, calmo e frio como se participasse de uma parada; apenas o seu belo e nobre olhar se atristava ao ver trucidarem-se tantos homens, sacrificados de um lado pela teimosia real e de outro pelo rancor dos príncipes. Aramis, pelo contrário, matava e embriagava-se a pouco e pouco, segundo o seu hábito. Os olhos vivos tornavam-se ardentes; a boca, tão finamente desenhada, sorria um sorriso lúgubre; as narinas, dilatadas, aspiravam o cheiro do sangue; cada uma de suas estocadas era certeira, e a coronha da sua pistola dava cabo do ferido que tentasse reerguer-se.

Do lado oposto, nas fileiras do exército real, dois cavaleiros, um recoberto de couraça dourada e outro de simples pele de búfalo, do qual saíam as mangas de um gibão de veludo azul, carregavam na primeira fila. O cavaleiro de couraça dourada correu para Aramis e desferiu-lhe uma espadeirada, que Aramis parou com a destreza de sempre.

— Ah! sois vós, Sr. de Châtillon! — exclamou o Cavaleiro; — sede benvindo, eu vos esperava!

— Quero crer que não vos fiz esperar muito tempo, senhor — respondeu o Duque; — em todo o caso, eis-me aqui.

— Sr. de Châtillon — disse Aramis tirando dos coldres uma segunda pistola, que reservara para a ocasião — se a vossa pistola estiver

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descarregada sois um homem morto.— Graças a Deus, não está! — revidou Châtillon.E apontando a arma para o adversário, atirou. Mas Ara-mis inclinou a

cabeça no momento em que viu o Duque apoiar o dedo no gatilho, e a bala passou-lhe por cima da cabeça, sem atingi-lo.

— Não me acertastes — gritou Aramis. — Mas eu, juro por Deus, hei de acertar-vos.

— Se eu vos der tempo! — ripostou o Sr. de Châtillon esporeando o cavalo e saltando sobre ele com a espada erguida.

Aramis esperou-o com o sorriso terrível que lhe era próprio em semelhantes ocasiões; e Athos, que via o Sr. de Châtillon atirar-se sobre Aramis com a rapidez do raio, abria a boca para gritar: "Atira! Atira de uma vez!" quando o tiro partiu. O Sr. de Châtillon abriu os braços e caiu de costas sobre a garupa do cavalo.

A bala penetrara-lhe o peito pela chanfradura da couraça.— Estou morto! — murmurou o Duque. E caiu do animal.— Eu bem vos dizia, senhor, e agora lamento have? cumprido tão à risca

a minha palavra. Posso servir-vos em alguma coisa?Châtillon fez um sinal com a mão; e Aramis já se dispunha a apear,

quando, de repente, recebeu um choque violento na ilharga; era uma cutilada, mas a couraça parou-lhe o golpe.

Voltou-se rapidamente, segurou o novo antagonista pelo pulso, quando dois gritos partiram ao mesmo tempo, um desferido por ele e o outro por Athos:

O rapaz reconheceu ao mesmo tempo o rosto do Cavaleiro d'Herblay e a voz do pai, e deixou cair a espada. Vários cavaleiros se atiraram nesse momento sobre Raul, mas Aramis cobriu-o com a espada.

— O prisioneiro é meu! Passai de largo! — gritou. Durante esse tempo, Athos puxava o cavalo do filho pela rédea e afastava-o da refrega.

Nesse momento o Sr. Príncipe, que apoiava o Sr. de Châtillon na segunda linha, surgiu no meio da refrega; viram-lhe fuzilar o olhar de águia e reconheceram-no pelos golpes.

Ao avistá-lo, o regimento do Arcebispo de Corinto, que o Coadjutor, a despeito de todos os esforços, não pudera reorganizar, precipitou-se no meio das tropas parisienses, derrubou tudo e voltou, em fuga desabalada, para Charenton, que atravessou sem parar. Arrastado por ele, passou de novo o Coadjutor pelo grupo que formavam Athos, Aramis e Raul.

— Ah! ah! — disse Aramis, cujo ciúme o levava a regozijar-se com o infortúnio do Coadjutor — como arcebispo que sois, Monsenhor, devíeis conhecer as Escrituras.

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— E que tem de comum as Escrituras com o que está me acontecendo? — perguntou o Coadjutor.

— Que o Sr. Príncipe vos trata hoje como São Paulo: a primeira aos coríntios.

— Vamos! vamos — acudiu Athos — o trocadilho é bom, mas não devemos esperar aqui os cumprimentos. Para a frente, para a frente, ou melhor, para trás, pois ou muito me engano ou a batalha me parece perdida para os frondistas.

— Isso me é indiferente! — declarou Aramis — só vim aqui para encontrar o Sr. de Châtillon. Já o encontrei, estou satisfeito; um duelo com um Châtillon é de lisonjear!

— Além de um prisioneiro — disse Athos mostrando Raul.E os três cavaleiros continuaram o caminho a galope.O rapaz sentira um frêmito de alegria ao ver o pai. Galopavam lado a

lado, a mão esquerda do mancebo na mão direita de Athos.Quando se viram longe do campo de batalha:— Que pretendias fazer no mais aceso da refrega, meu amigo? —

perguntou Athos a Raul; — parece-me que não devia ser o teu lugar, visto que não estavas armado para o combate.

— É que eu também não devia bater-me hoje, senhor. Fui encarregado de uma missão para o Cardeal, e partia para Rueil, quando, ao ver carregar o Sr. de Châtillon, me veio a vontade de carregar ao seu lado. Foi quando ele me disse que dois cavaleiros do exército parisiense me procuravam e pronunciou o nome do Conde de La Fere.

— Como! sabias que estávamos lá e quisestes matar o teu amigo, o Cavaleiro?

— Eu não havia reconhecido o Sr. Cavaleiro sob a armadura — respondeu, corando, Raul — mas devia tê-lo reconhecido pela destreza e pelo sangue frio.

— Obrigado pelo cumprimento, meu jovem amigo — disse Aramis — e por aí se conhece o teu mestre de cortesia. Mas disseste que vais a Rueil?

— Sim.— Ã presença do Cardeal?— Exatamente. Tenho um ofício do Sr. Príncipe para Sua Eminência.— É preciso levá-la — disse Athos.— Oh! quanto a isso, um momento, nada de falsas generosidades,

Conde! Que diabo! A nossa sorte, e, o que é mais importante, a sorte de nossos amigos talvez dependa desse ofício.

— Mas o rapaz não pode faltar ao dever — reconveio Athos.— Em primeiro lugar, Conde, o rapaz é prisioneiro, como deves estar

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lembrado. O que fazemos é de boa guerra. Aliás, os vencidos não devem ser muito escrupulosos na escolha dos meios. Dá-me o ofício, Raul.

Raul hesitou, olhando para Athos como se lhe procurasse nos olhos uma norma de proceder.

— Entrega o ofício, Raul — ordenou Athos; — és prisioneiro do Cavaleiro d'Herblay.

Raul cedeu com repugnância, mas Aramis, menos escrupuloso do que o Conde de La Fere, apoderou-se do despacho, levou-o e, entregando-o a Athos:

— Tu, que és crente — disse ele — lê e vê nesta carta, ponderando-a, algo que a Providência julga importante que saibamos.

Athos pegou na carta, franzindo o cenho, mas a idéia de que havia nela referências a d'Artagnan ajudou-o a vencer a repugnância.

Eis o que dizia:

"Monsenhor, mandarei esta noite a Vossa Eminência, para reforçar a tropa do Sr. de Comminges, os dez homens que me pede. São bons soldados, capazes de fazer frente aos dois rudes adversários cuja habilidade e cuja resolução receia Vossa Eminência."

— Oh! oh! — murmurou Athos.— E então? — perguntou Aramis — que me dizes desses dois

adversários para cuja guarda são precisos, além da tropa do Sr. de Comminges, dez bons soldados? Não se parecem, como duas gotas de água, com d'Artagnan e Porthos?

— Passaremos o dia dando uma busca em Paris — disse Athos — e se não tivermos notícias esta noite, retomaremos o caminho da Picardia e garanto que não tardaremos a encontrar graças à imaginação de d'Artagnan, alguma indicação que nos tire todas as dúvidas.

— Vasculhemos Paris e perguntemos primeiro a Planchet se não teve notícias do antigo amo.

— Pobre Planchet! Falar é fácil, Aramis; o coitado, a esta hora, já deve ter sido trucidado. Todos esses burgueses belicosos hão de ter tomado parte na sortida e, com certeza, foram chacinados.

Como fosse a hipótese muito provável, foi com um sentimento de inquietude que os dois amigos reentraram em Paris pela porta do Templo e dirigiram-se â Place Royale, onde esperavam ter notícias dos pobres burgueses. Mas, para enorme assombro dos dois, encontraram-nos bebendo e fanfarreando, eles e o seu capitão, sempre acampados na Place Royale e chorados sem dúvida por suas famílias, que ouviam o barulho do canhão de

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Charenton e os imaginavam debaixo do fogo.Athos e Aramis tornaram a pedir informações a Planchet; este, porém,

nada soubera de d'Artagnan. Quiseram levá-lo, mas Planchet declarou que não poderia deixar o posto sem ordem superior.

Só às cinco horas voltaram os burgueses para as respectivas casas dizendo que regressavam da batalha; não tinham perdido vista do cavalo de bronze de Luís XIII.

— Com seiscentos diabos! — praguejou Planchet, tornando à loja da rue des Lombards — fomos completamente derrotados. Nunca me consolarei disso...

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CAPÍTULO XXI

A ESTRADA DA PICARDIA

ATHOS e Aramis, que se achavam absolutamente seguros em Paris, não ignoravam que, saindo da capital, correriam os maiores riscos; mas já sabemos como encaravam o perigo aqueles homens. Aliás, sentiam aproximar-se o desfecho da segunda odisséia, a que só faltava, como se costuma dizer, a última arrancada.

De resto, a própria capital não estava tranqüila; começavam a faltar víveres e quando algum general do Sr. Príncipe de Conti queria recuperar prestígio, provocava um pequeno motim, que ele mesmo abafava e, por um instante, lhe dava ascendência sobre os colegas.

Num desses motins, o Sr. de Beaufort mandara saquear a casa e a biblioteca do Sr. de Mazarino, para dar, dizia ele, algo que roer ao pobre povo.

Athos e Aramis saíram de Paris logo após esse golpe de Estado, ocorrido na noite do dia em que os parisienses foram derrotados em Charenton.

Ambos deixavam a cidade na miséria, ameaçada pela fome, agitada pelo medo, dividida por facções. Parisienses e frondistas esperavam encontrar a mesma miséria, os mesmos receios, as mesmas intrigas no campo inimigo. Qual não foi, portanto, a surpresa dos dois quando, ao passarem por Saint-Denis, souberam que em Saint-Germain toda a gente ria, cantava e levava vida regalada.

Tomaram por caminhos desviados, primeiro para não caírem nas mãos dos mazarinistas espalhados pela Ilha de França e, segundo, para fugirem aos frondistas que ocupavam a Normandia, que os teriam fatalmente conduzido à presença do Sr. de Longueville para que o Sr. de Longueville os identificasse. Assim que escaparam dos dois perigos, seguiram a estrada que vai de Bolonha a Abbeville e perlustraram-na passo a passo, traço por traço.

Entretanto, ficaram algum tempo indecisos; dois ou três estalajadeiros tinham sido interrogados, sem que um único indício lhes esclarecesse as dúvidas ou lhes guiasse as buscas, quando, em Montreuil, Athos sentiu alguma coisa áspera ao toque dos dedos delicados. Ergueu a toalha da mesa e leu os seguintes hieróglifos profundamente talhados na madeira com a lâmina de uma faca:

Port... — d'Art... — 2 de fevereiro.

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— Esplêndido — exclamou, mostrando a inscrição a Ara-mis; — queríamos pousar aqui, mas é inútil. Vamos adiante.

Tornaram a cavalgar e chegaram a Abbeville. Lá se quedaram perplexos diante da grande quantidade de albergues. Não poderiam visitar todos eles. Como descobrir o que hospedara os amigos?

— Não te iludas, Athos — observou Aramis — não esperemos encontrar coisa alguma em Abbeville. Se ficamos atrapalhados, o mesmo deve ter acontecido aos nossos amigos. Se Porthos estivesse sozinho, ter-se-ia instalado na melhor hospedaria e nela teríamos certeza de encontrar vestígios da sua passagem. Mas d’Artagnan não tem dessas fraquezas; por mais que Porthos se tenha queixado de morrer de fome, d’Artagnan terá prosseguido, inexorável como o destino, e não é aqui que devemos procurá-lo.

Continuaram, portanto, a caminhar, mas nada se apresentou. Era das mais penosas e sobretudo das mais fastidiosas a missão em que ambos se tinham empenhado, e não fora o tríplice motivo da honra, da amizade e do reconhecimento incrustado em sua alma, os dois viajantes teriam cem vezes desistido de revolver a areia, interrogar transeuntes, interpretar sinais, espiar rostos.

Foram assim até Péronne.Athos principiava a desesperar. O seu nobre e interessante caráter

atribuía-se a culpa da escuridão em que Aramis e ele se encontravam. Haviam, sem dúvida, procurado mal; sem dúvida haviam deixado de por nas perguntas persistência suficiente e suficiente perspicácia nas investigações. Já se dispunham a desandar o caminho percorrido quando, ao atravessarem o arrebalde que conduzia às portas da cidade, num muro branco, que formava a esquina de uma rua, ladeando a muralha, Athos lançou a vista a um desenho feito com uma pedra preta e que representava, com a ingenuidade das primeiras tentativas de uma criança, dois cavaleiros em carreira desabalada; um dos dois cavaleiros tinha na mão um cartaz em que se liam em espanhol estas palavras:

"Seguem-nos."— Oh! oh! — disse Athos — eis uma coisa que é clara como o dia.

Embora seguido, d'Artagnan terá parado aqui uns cinco minutos; o que demonstra, aliás, que não estava sendo seguido muito de perto; talvez tenha conseguido escapar.

Aramis sacudiu a cabeça.— Se tivesse escapado, tê-lo-íamos revisto ou, pelo menos, teríamos tido

notícias suas por intermédio de alguém.— Tens razão, Aramis, continuemos.

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Descrever a inquietude e a impaciência dos dois fidalgos fora impossível. A inquietude dominava o coração terno e amigo de Athos; a impaciência atenazava o espírito nervoso e exaltado de Aramis. Por isso mesmo galoparam os dois com o desespero dos dois cavaleiros do muro. De repente, numa passagem estreita, entre dois taludes, viram a estrada meio obstruída por enorme pedra. O seu leito primitivo estava marcado num dos lados do talude, e a espécie de alvéolo que lá deixara ao sair demonstrava que não poderia ter rolado sozinha, ao passo que o peso evidenciava a necessidade, para movê-la, do braço de um Encélado ou de um Briareu.

Sobresteve Aramis.— Oh! — exclamou, considerando a pedra — há nisso algo de Ajax, de

Télamon ou de Porthos. Desçamos, por favor, Conde, e examinemos o rochedo.

Apearam os dois. A pedra Já fora colocada com o propósito evidente de impedir a passagem de cavaleiros. Por conseguinte, havia sido posta no meio da estrada; e, encontrando o obstáculo, os cavaleiros deviam ter apeado e afastado a pedra.

Os dois amigos examinaram-na de todos os lados expostos à luz: não encontraram nada de extraordinário. Chamaram Blaisois e Grimaud e conseguiram virá-la. No lado que repousava na terra estava escrito:

"Oito soldados de cavalaria ligeira nos perseguem. Se chegarmos a Compiègne, pousaremos no Pavão Coroado; o estalajadeiro é amigo nosso."

— Eis alguma coisa de positivo — disse Athos — e seja qual for o caso saberemos o que fazer. Vamos, pois, ao Pavão Coroado.

— Sim — tornou Aramis — mas se quisermos chegar, precisamos dar algum descanso aos cavalos; estão quase aguados.

Aramis falava verdade. Na primeira taberna, pararam; deram a cada animal ração dupla de aveia molhada no vinho

e três horas de repouso. Decorrido esse tempo, reencetaram a jornada. Os próprios homens estavam exaustos, mas sustentava-os a esperança.

Seis horas depois, Athos e Aramis entravam em Compiègne e perguntavam pelo Pavão Coroado. Mostraram-lhes uma tabuleta em que se via a figura do deus Pan com uma coroa na cabeça (73).

(73) Pavão, em francês, é Paon. Não se advertindo da diferença entre o deus mitológico, Pan, e a ave, Paon, coroara o primeiro e dera-lhe o nome da segunda. (N. do T.)

Apearam os dois amigos sem por muito reparo na pretensão da tabuleta, que, em outra ocasião, teria criticado Aramis. Encontraram um honrado

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estalajadeiro, careca e pançudo como um bonzo chinês, ao qual perguntaram se não hospedara a dois fidalgos perseguidos por soldados da cavalaria ligeira. Sem responder, o locandeiro foi buscar num baú a metade da folha de uma espada.

— Conhecei-la? — perguntou.Athos limitou-se a correr a lâmina com os olhos.— É a espada de d'Artagnan.— Do grande ou do pequeno? — perguntou o estalajadeiro.— Do pequeno — respondeu Athos.— Vejo que sois amigos daqueles senhores.— E então? Que lhes sucedeu?— Sucedeu-lhes que entraram em meu pátio com cavalos aguados e

antes de poderem fechar o portão, oito soldados de cavalaria, que os perseguiam, entraram com eles.

— Oito! — disse Aramis. — Pois muito me espanta que d'Artagnan e Porthos, valentes como são, se tenham deixado prender por oito homens.

— Sem dúvida, senhor, e os oito homens nada teriam conseguido se não tivessem recrutado na cidade uns vinte soldados do regimento Real-Italiano, aquartelados aqui, de sorte que os vossos dois amigos foram literalmente esmagados pelo número.

— Presos! — disse Athos — e sabe-se por quê?— Não, senhor, foram levados imediatamente e não tiveram tempo de

dizer-me coisa alguma; mas, depois que saíram, encontrei este fragmento de espada no campo de batalha, quando ajudava a recolher dois mortos e cinco ou seis feridos.

— E a eles — perguntou Aramis — não lhes aconteceu nada?— Não, senhor, não creio.— Ainda bem — volveu Aramis; — é sempre um consolo.— E sabeis para onde os conduziram? — perguntou Athos.— Para os lados de Louvres.— Deixemos Blaisois e Grimaud aqui — alvitrou Athos;— voltarão amanhã a Paris com os cavalos, que hoje nos deixariam no

meio do caminho, e tomemos a posta.— Tomemos a posta — concordou Aramis.Mandaram buscar cavalos. Enquanto esperavam, jantaram depressa;

pretendiam, se obtivessem em Louvres alguma informação, continuar viagem.

Chegaram a Louvres. Havia lá apenas uma estalagem, onde se bebia um licor que até hoje conservou a sua reputação e que já se fabricava nessa ocasião.

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— Desçamos aqui — propôs Athos — d'Artagnan não terá perdido a oportunidade, não para tomar um copo de licor, mas para deixar-nos algum indício.

Entraram e pediram dois copos de licor no balcão, como deviam tê-los pedido d'Artagnan e Porthos. O balcão sobre o qual costumavam beber os fregueses era recoberto de uma, placa de estanho. Sobre a placa fora escrito com a ponta de um alfinete grosso: "Rueil, D."

— Estão em Rueil! — disse Aramis, que viu primeiro a inscrição.— Vamos a Rueil — decidiu Athos.— Isso é metermo-nos na boca do lobo — ponderou Aramis.— Se eu fosse amigo de Jonas como sou de d'Artagnan— volveu Athos — tê-lo-ia seguido até ao ventre da baleia e tu farias o

mesmo.— Positivamente, meu caro Conde, creio que me fazes melhor do que

sou. Se eu estivesse sozinho não sei se iria assim a Rueil sem grandes precauções; mas aonde fores, irei.

Arranjaram cavalos e partiram para Rueil.Sem o saber, dera Athos a Aramis o melhor conselho que se poderia

seguir. Os deputados do Parlamento acabavam de chegar a Rueil para as célebres conferências que durariam três semanas e acarretariam a paz desastrada em conseqüência da qual o Sr. Príncipe foi preso. Rueil achava-se atulhada, da parte dos parisienses, de advogados, presidentes, conselheiros e rábulas de toda a sorte; e, da parte da Corte, de fidalgos, oficiais e guardas; era, portanto, muito fácil, no meio de tamanha confusão, conservar-se alguém incógnito. De mais disso, as conferências tinham resultado numa trégua, e prender dois fidalgos naquele momento, ainda que fossem declaradamente frondistas, seria atentar contra o direito das gentes.

Criam os dois amigos que todo o mundo andasse preocupado com a idéia que os atormentava. Misturaram-se aos grupos, imaginando que assim teriam notícias de d'Artagnan e de Porthos; mas ninguém se ocupava senão de artigos e emendas. Athos foi de parecer que procurassem diretamente o Ministro.

— Meu amigo — objetou Aramis — o que dizes é muito bonito, mas cuidado, que a nossa segurança depende da nossa obscuridade. Se nos dermos a conhecer, seja como for, iremos juntar-nos imediatamente aos nossos amigos em algum calabouço de onde nem o diabo será capaz de tirar-nos. Procuremos não os encontrar por acaso, mas na ocasião que nos for mais conveniente. Presos em Compiègne, foram levados a Rueil, como verificamos em Louvres; conduzidos a Rueil, foram interrogados pelo Cardeal, que, após o interrogatório, os conservou ao pé de si ou os mandou

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para Saint-Germain. Na Bastilha não estão, pois a Bastilha está nas mãos dos frondistas e é dirigida pelo filho de Broussel. Não estão mortos, pois a morte de d'Artagnan teria dado que falar. Quanto a Porthos, creio-o eterno como Deus, embora menos paciente. Não desesperemos, esperemos e fiquemos em Rueil, pois tenho a convicção de que não saíram daqui. Mas que tens? Estás tão pálido!

— Tenho — respondeu Athos com voz quase trêmula — que me lembrei de que no castelo de Rueil o Sr. de Richelieu mandara fabricar um medonho alçapão...

— Oh! fica descansado — volveu Aramis — o Sr. de Richelieu era um fidalgo, nosso igual pelo nascimento, nosso superior pela posição. Podia, como um rei, ferir a cabeça dos maiores dentre nós e, ferindo-a, fazê-la vacilar sobre os ombros. Mas o Sr. de Mazarino é um cafajeste que pode, quando muito, agarrar-nos pela gola, como um arqueiro. Tranqüiliza-te, amigo, que persisto em dizer que d'Artagnan e Porthos estão em Rueil, vivos e bem vivos.

— Não importa — voltou Athos — devíamos obter do Coadjutor permissão para participar das conferências e, assim, entraríamos em Rueil.

— Com toda essa cambada de rábulas? Já pensaste nisso, meu caro? E acreditas que se lembre alguém de discutir a liberdade e a prisão de d'Artagnan e de Porthos? Não, sou de parecer que procuremos outro meio qualquer.

— Pois bem! — tornou Athos — volto à primeira idéia; o melhor meio que conheço é proceder com franqueza e lealdade. Irei à presença, não de Mazarino, mas da Rainha, e lhe direi: "Senhora, devolva-nos Vossa Majestade os seus dois servidores e nossos dois amigos."

Aramis sacudiu a cabeça.— É um recurso extremo que sempre poderás utilizar, Athos; mas,

acredita, não o utilizes senão em último caso: sempre terás ocasião de fazê-lo. Enquanto isso, continuemos as nossas buscas.

Continuaram, portanto, a investigar, e tomaram tantas informações, fizeram falar com mil pretextos, qual mais engenhoso, tantas pessoas, que acabaram encontrando um cavalariano que lhes confessou ter pertencido à escolta que conduzira d'Artagnan e Porthos de Compiègne a Rueil. Não fossem os cavalarianos e ninguém saberia sequer que eles haviam voltado.

Athos não cessava de ruminar a idéia de ver a Rainha.— Para ver a Rainha — dizia Aramis — é preciso primeiro ver o

Cardeal, e assim que tivermos visto o Cardeal, não esqueças o que te digo, Athos, iremos fazer companhia aos nossos amigos, mas não da maneira como o desejamos. Ora, confesso que essa maneira de fazer-lhes companhia

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pouco me seduz. Trabalhemos em liberdade para podermos trabalhar bem e depressa.

— Pois eu verei a Rainha — declarou Athos.— Nesse caso, meu amigo, se estás decidido a cometer tamanha loucura,

avisa-me com um dia de antecedência, por favor.— Por quê?— Porque aproveitarei a circunstância para fazer uma visita em Paris.— A quem?— Hom'essa! que sei eu? Talvez à Sra. de Longueville, que lá é

onipotente e poderá ajudar-me. Mas, se fores preso, manda-me recado por alguém. Voltarei como puder.

— Por que não te arriscas a seres preso comigo, Aramis?— Não, muito obrigado.— Presos e reunidos os quatro, não correremos risco nenhum e ao termo

de vinte e quatro horas estaremos todos livres.— Meu caro, depois que matei Châtillon, o aí-Jesus das damas de Saint-

Germain, fiquei em demasiada evidência para não temer duplamente a prisão. A Rainha seria capaz de seguir os conselhos de Mazarino, e o conselho de Mazarino seria mandar-me julgar.

— Mas cuidas, então, Aramis, que ela ame esse italiano tanto quanto se diz?

— Se amou um inglês...— Ora, meu caro, é mulher.— Não; tu te enganas, Athos, é rainha!— Pois eu sacrifico-me e vou pedir audiência a Ana d'Áustria.— Adeus, Athos, vou levantar um exército.— Para quê?— Para assediar Rueil outra vez.— Onde nos encontraremos?— Ao pé da forca do Cardeal.E os dois amigos separaram-se, Aramis para voltar a Paris, Athos para

iniciar os preparativos que o levassem à presença da Rainha.

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CAPÍTULO XXII

O RECONHECIMENTO DE ANA D'ÁUSTRIA

ATHOS encontrou muito menos dificuldade do que supunha para falar com Ana d'Áustria; ao primeiro passo que deu nesse sentido, tudo, pelo contrário, se aplainou e a audiência solicitada foi-lhe marcada para o dia seguinte, após o levantar-se de Sua Majestade, a que a sua linhagem lhe dava o direito de assistir.

Grande multidão achusmava os aposentos de Saint-Germain; nunca no Louvre nem no Palais-Royal tivera Ana d'Áustria maior número do cortesãos. Com uma diferença apenas: toda aquela multidão pertencia à nobre secundária, ao passo que os primeiros fidalgos de França estavam com' o Sr. de Conti, o Sr. de Beaufort e o Coadjutor.

De resto, grande alegria reinava na Corte. A característica particular dessa guerra foi que se ouviram mais redondilhas que tiros de canhão. A Corte debicava os parisienses, que chalaceavam a Corte, e as feridas, se bem não fossem mortais, não deixavam por isso de ser menos dolorosas, pois eram produzidas com a arma do ridículo.

Mas no meio da hilaridade geral e da aparente frivolidade, vivia no fundo de todos os pensamentos uma grande preocupação. Mazarino continuaria ministro ou Mazarino, vindo do Sul como uma nuvem, seria levado pelo mesmo vento que o trouxera? Toda a gente o esperava, toda a gente o desejava; e o Ministro percebia que à sua roda todas as homenagens, todas as cortesanices recobriam um fundo de ódio mal dissimulado sob o medo e sob o interesse. Sentia-se mal, não sabendo em quem se fiar ou arrimar.

O próprio S. Príncipe, que combatia por ele, não perdia vaza de o motejar ou humilhar; e, em duas ou três ocasiões, como quisesse Mazarino, diante do vencedor de Rocroy, fazer prevalecer a sua vontade, este o olhara de modo que lhe dera a entender que, se o defendia, não era por convicção nem entusiasmo.

Voltava-se então o Cardeal para a Rainha, seu único apoio. Mas em duas ou três circunstâncias tivera a impressão de que esse apoio lhe vacilava debaixo da mão.

Chegada que foi a hora da audiência, comunicaram ao Conde de La Fere que teria de esperar alguns instantes, pois a Rainha conferenciava com o

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Ministro.De fato. Paris acabava de mandar nova deputação, encarregada de

imprimir aos negócios um rumo favorável, e a Rainha estudava com Mazarino a acolhida que conviria dispensar aos deputados.

Era grande a preocupação entre as altas personagens do Estado. Athos, por conseguinte, não poderia ter escolhido pior momento para falar de seus amigos, pobres átomos perdidos no infrene turbilhão.

Mas Athos era um homem inflexível, que nunca vacilava depois de tomar uma decisão que lhe parecesse emanada da consciência e ditada pelo dever; insistiu em ser recebido, dizendo que, posto não fosse deputado nem do Sr. de Conti, nem do Sr. de Beaufort, nem do Sr. de Bouillon, nem do Sr. d'Elbeuf, nem do Coadjutor, nem da Sra. de Longueville, nem de Broussel, nem do Parlamento, e viesse por conta própria, tinha coisas importantíssimas para dizer a Sua Majestade.

Terminada a conferência, a Rainha mandou chamá-lo ao gabinete.Athos foi introduzido e declinou o seu nome. Era um nome que ressoara

muitas vezes aos ouvidos de Sua Majestade e muitas vezes lhe vibrara no coração para que Ana d'Áustria não o reconhecesse; ela, entretanto, permaneceu impassível, limitando-se a encarar no fidalgo com a fixidez só permitida às rainhas pela beleza ou às rainhas pelo sangue.

— Vindes, então, oferecer-nos um serviço, Conde? — perguntou Ana d'Áustria depois de um instante de silêncio.

— Sim, senhora, mais um serviço — respondeu Athos, ressentindo ao ver que a Rainha não parecia reconhecê-lo.

Era uma grande alma Athos e, por conseguinte, péssimo cortesão.Ana franziu o cenho. Mazarino, que, sentado a uma mesa, folheava

papéis como um simples Secretário de Estado, ergueu a cabeça.— Falai — disse a Rainha. Mazarino voltou aos papéis.— Senhora — continuou Athos — dois amigos nossos, dois dos mais

intrépidos servidores de Vossa Majestade, o Sr. d’Artagnan e o Sr. du Vallon, enviados à Inglaterra pelo Sr. Cardeal, desapareceram repentinamente no momento em que punham o pé em solo francês, e ninguém sabe o que foi feito deles.

— E daí? — atalhou a Rainha.— Daí — redargüiu Athos — eu me dirijo à benevolência de Vossa

Majestade para saber o que foi feito dos dois fidalgos, reservando-me o direito, se necessário, de dirigir-me à sua justiça.

— Senhor — replicou Ana d'Áustria com uma sobranceria que, diante de certos homens, tocava as raias da impertinência — por isso vindes perturbar-me no meio das grandes preocupações que nos agitam? Um caso de polícia!

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Ora, sabeis muito bem, ou devíeis sabê-lo, que já não temos polícia desde que não estamos em Paris.

— Creio que Vossa Majestade — disse Athos inclinando-se com um frio respeito — não teria precisão de pedir informações à polícia para saber o que foi feito dos Srs. d’Artagnan e du Vallon; e, se se desse ao trabalho de interrogar o Sr. Cardeal a respeito desses dois fidalgos, Sua Eminência poderia informá-la interrogando apenas as suas lembranças.

— Mas, Deus me perdoe! — acudiu Ana d'Áustria com o desdenhoso movimento dos lábios que lhe era peculiar — parece-me que vós mesmo o interrogais!

— Sim, senhora, e tenho quase o direito de fazê-lo, pois trata-se do Sr. d'Artagnan, do Sr. d'Artagnan, ouviu bem, senhora? — disse ele de maneira que fizesse curvar, sob o peso das recordações da mulher, a fronte da rainha.

Mazarino compreendeu que já era tempo de intervir.— Sr. Conde — disse ele — estou disposto a inteirar-vos de uma coisa

que Sua Majestade ignora, isto é, o que foi feito dos dois fidalgos. Desobedeceram e foram presos.

— Suplico, então, a Vossa Majestade — disse Athos sempre impassível e sem responder a Mazarino — que mande soltar os Srs. d’Artagnan e du Vallon.

— O que me pedis é uma questão de disciplina, em que não me envolvo, senhor — retrucou a Rainha.

— O Sr. d'Artagnan nunca teve essa resposta quando se tratava do serviço de Vossa Majestade — disse Athos cumprimentando com dignidade.

E deu dois passos para trás, na direção da porta. Mazarino deteve-o.— Vindes também de Inglaterra, senhor? — perguntou, fazendo um

sinal à Rainha, que empalidecia visivelmente e preparava-se para dar uma ordem rigorosa.

— Assisti aos derradeiros momento do Rei Carlos I — respondeu Athos. — Pobre rei! culpado, quando muito, de fraqueza, e severissimamente punido pelos súditos! Andam os tronos bem vacilantes neste momento, e não há vantagem, para os corações dedicados, em servirem os interesses dos príncipes. Era a segunda vez que o Sr. d'Artagnan ia à Inglaterra: fez a primeira viagem pela honra de uma grande rainha; e a segunda pela vida de um grande rei.

— Senhor — disse Ana d'Áustria a Mazarino, com um tom cuja verdadeira expressão nem o seu hábito de dissimular conseguiria disfarçar — vede se se pode fazer alguma coisa por esses cavaleiros.

— Senhora — respondeu Mazarino — farei quanto aprouver a Vossa Majestade.

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— Fazei o que pede o Sr. Conde de La Fere. Não é assim que vos chamais, senhor?

— Tenho outro nome ainda, senhora; — chamo-me Athos.— Senhora — acudiu Mazarino com um sorriso que indicava a

facilidade com que entendia as meias palavras — pode ficar descansada Vossa Majestade, que os seus desejos serão satisfeitos.

— Ouvistes, senhor? — tornou a Rainha.— Sim, senhora, e eu não esperava outra coisa da justiça de Vossa

Majestade. Por conseguinte, vou rever os meus amigos, não é verdade? É isso o que Vossa Majestade quer dizer?

— Sim, ides revê-los, senhor. Mas, a propósito, sois da Fronda, não sois?— Senhora, eu sirvo o Rei.— À vossa maneira.— A minha maneira é a de todos os verdadeiros fidalgos, e não conheço

duas — respondeu Athos com altivez.— Ide, pois, senhor — ordenou a Rainha, despedindo Athos com o

gesto; — obtivestes o que queríeis obter, e nós sabemos tudo o que desejávamos saber.

Logo, dirigindo-se a Mazarino, assim que se fechou o reposteiro:— Cardeal — disse ela — mandai prender esse insolente gentil-homem

antes que saia do pátio.— Eu estava pensando nisso — retrucou o Ministro — e folgo em

receber de Vossa Majestade uma ordem que ia solicitar-lhe. Esses tranca-ruas que trazem à nossa época as tradições do outro reinado são muito incômodos; e visto que dois já estão presos, prendamos o terceiro.

Athos não se deixara enganar inteiramente pela Rainha. Algo no tom por ela empregado o impressionara e lhe parecera, ao mesmo tempo, prometer e ameaçar. Mas não era homem que recuasse à primeira suspeita, mormente depois de lhe dizerem textualmente que ia rever os amigos. Esperou, portanto, numa das salas vizinhas do gabinete em que se realizara a audiência, que lhe trouxessem d'Artagnan e Porthos ou que viessem buscá-lo para o conduzir ao sítio em que estes se encontravam.

Enquanto esperava, aproximara-se da janela e relanceava maquinalmente os olhos pelo pátio. Viu entrar a deputação dos parisienses, que vinha acertar o lugar definitivo das conferências e cumprimentar a Rainha. Havia conselheiros do Parlamento, presidentes, advogados e, entre, alguns homens de espada. Uma escolta imponente esperava-os do outro lado das grades.

Athos olhava com mais atenção, pois entre a multidão julgara reconhecer alguém, quando sentiu que lhe tocavam levemente no ombro.

Voltou-se.

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— Ah! Sr. de Comminges! — disse ele.— Sim, Sr. Conde, eu mesmo, e encarregado de uma missão pela qual

vos rogo aceiteis todas as minhas desculpas.— Qual, senhor? — perguntou Athos.— Fazei-me a gentileza de entregar a espada, Conde. Athos sorriu e,

abrindo a janela:— Aramis! — gritou.Um fidalgo voltou-se: era o mesmo que Athos julgara reconhecer: o

Cavaleiro d'Herblay, que cumprimentou amigavelmente o Conde.— Aramis — anunciou Athos — acabam de prender-me.— Está certo — respondeu fleumàticamente Aramis.— Senhor — disse Athos voltando-se para Comminges e apresentando-

lhe polidamente o punho da espada — aqui está a minha espada; fazei-me o favor de guardá-la cem cuidado, para devolver-ma quando eu sair da prisão. Prezo-a muito, pois foi dada pelo Rei Francisco I a meu avô. No seu tempo se armavam os cavaleiros, não se desarmavam. E, agora, aonde me conduzis?

— Primeiro... primeiro ao meu quarto — respondeu Comminges. — A Rainha indicará depois o vosso domicílio.

Athos seguiu Comminges sem acrescentar uma palavra.

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CAPÍTULO XXIII

A REALEZA DO SR. DE MAZARINO

A prisão não fizera barulho algum, não causara escândalo e passara até despercebida. Portanto, não atrapalhara a marcha dos acontecimentos, e a deputação enviada pela cidade de Paris foi solenemente avisada de que ia comparecer perante a Rainha.

Ana d'Áustria recebeu-a, muda e altiva como sempre; ouviu as queixas e súplicas dos deputados; mas, quando estes terminaram os seus espiches, ninguém teria podido dizer que ela os ouvira, tão indiferente se lhe conservara o rosto.

Em compensação, presente à audiência, Mazarino entendera muito bem o que pediam os deputados: a sua exoneração pura e simples em termos claros e precisos.

Terminados os discursos, a Rainha permaneceu em silêncio.— Senhores — disse Mazarino — eu me unirei a vós para suplicar à

Rainha que ponha fim aos males de seus súditos. Fiz quanto me foi possível para mitigá-los, e, no entanto, crê o povo, segundo me dizeis, que eles vêm a mim, pobre estrangeiro que não conseguiu agradar aos franceses. Ai! não me compreenderam, e com razão: eu sucedia ao homem mais sublime que já sustentou o cetro dos reis de França. As lembranças do Sr. de Richelieu esmagam-me. Em vão, se eu fosse ambicioso, lutaria contra elas; mas não o sou, e quero demonstrá-lo. Declaro-me vencido. Farei o que pede o povo. Se os parisienses cometeram alguns erros, e quem os não comete, senhores? Paris já foi bastante castigada; já correu muito sangue e muitas misérias atormentam uma cidade privada de seu rei e da justiça. Não me cabe a mim, simples particular, assumir a responsabilidade de separar uma rainha de seu reino. E já que exigis que eu me retire, pois bem! retirar-me-ei.

— Então — disse Aramis ao ouvido do vizinho — a paz está feita e as conferências são inúteis. Só nos resta mandar Mazarino com uma boa escolta à fronteira mais afastada e vigiar para que não torne a entrar por ela nem por outra qualquer.

— Um instante, senhor, um instante — respondeu o homem togado a que Aramis se dirigia. — Diabo! com quanta simplicidade resolveis as coisas! Bem se vê que sois homem de espada. Há ainda o capítulo das remunerações e das indenizações que é mister esclarecer.

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— Sr. Chanceler — disse a Rainha voltando-se para o mesmo Séguier, nosso velho conhecido — iniciareis as conferências; ela se realizarão em Rueil. O Sr. Cardeal disse coisas que me comoveram profundamente. Eis porque não vos respondo mais circunstanciadamente. Quanto a ficar ou a partir, sou tão reconhecida ao Sr. Cardeal que lhe darei inteira liberdade de ação. O Sr. Cardeal fará o que quiser.

Fugitiva palidez descoloriu o rosto inteligente do Primeiro Ministro. Considerou a Rainha com inquietação. Mas o rosto dela se conservara tão impassível que ele, como os outros, não pôde ler o que lhe ia no coração.

— Mas — ajuntou a Rainha — enquanto esperamos a decisão do Sr. de Mazarino, peço-vos só se discutam assuntos relativos a El-Rei.

Os deputados inclinaram-se e saíram.— Como! — exclamou a Rainha quando o último dentre eles deixou a

sala — serieis capaz de ceder às imposições desses rábulas e chicanistas?— Pela felicidade de Vossa Majestade — respondeu Mazarino fitando

na Rainha o olhar penetrante — não há sacrifício que eu não esteja disposto a fazer.

Ana abaixou a cabeça e caiu num daqueles devaneios que lhe eram tão habituais. A lembrança de Athos voltou-lhe ao espírito. O atrevido porte do gentil-homem, a sua palavra firme e digna ao mesmo tempo, os fantasmas por ele evocados com uma simples frase, recordavam-lhe um passado de embriagadora poesia: a juventude, a beleza, o brilho dos amores de vinte anos, os rudes combates de seus defensores, o fim sangrento de Buckingham, o único homem que ela realmente amara, e o heroísmo dos obscuros defensores, que a tinham salvo do duplo ódio de Richelieu e do Rei.

Mazarino contemplava-a, e naquele momento em que ela se julgava só, sem inimigos para espiá-la, seguia-lhe no rosto os pensamentos, como se vêm passar as nuvens nos lagos transparentes, reflexo do céu como os pensamentos.

— Seria, então, preciso — murmurou Ana d'Áustria — ceder ante a tempestade, comprar a paz, esperar paciente e religiosamente tempos melhores?

Mazarino sorriu com amargura a essas palavras, prova manifesta de que a Rainha levara a sério a proposta do Ministro.

Ana inclinara a cabeça e não viu o sorriso; mas, notando que a sua pergunta não obtinha resposta, ergueu a fronte.

— E então ? Não me respondeis, Cardeal ? Em que pensais ?— Penso, senhora, que o insolente fidalgo que mandamos prender por

intermédio de Comminges aludiu ao Sr. de Buckingham, que Vossa

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Majestade deixou assassinar; à Sra. de Chevreuse, que Vossa Majestade deixou exilar; ao Sr. de Beaufort, que Vossa Majestade mandou prender. Mas, se aludiu a mim, não sabe o que represento para Vossa Majestade.

Ana d'Áustria estremeceu como lhe sucedia quando ferida em seu orgulho; corou e enterrou, para não responder, as unhas aceradas nas mãos esculturais.

— É um homem judicioso, honrado e inteligente, e é um homem resoluto. Vossa Majestade sabe alguma coisa a esse respeito, não é verdade? Quero portanto mostrar a ele, e é uma graça pessoal que lhe faço, onde reside o seu engano a meu respeito. O que, na verdade, me propõem é quase uma abdicação, e uma abdicação merece ser refletida.

— Uma abdicação! — recalcitrou Ana; — eu cria, senhor, que só os reis abdicassem.

— Pois muito bem! — tornou Mazarino — e não sou quase rei, e até rei de França? Jogada aos pés de um leito real, garanto a Vossa Majestade que a minha samarra de ministro se parece muito, de noite, com o manto de um monarca.

Era essa uma das humilhações que mais a miúdo lhe infligia Mazarino, e sob as quais ela constantemente se curvava. Só Elisabete e Catarina II foram, ao mesmo tempo, amantes e rainhas para os seus favoritos.

Ana d'Áustria considerou, portanto, com uma espécie de terror a fisionomia ameaçadora do Cardeal, a que, nesses momentos, não faltava certa grandeza.

— Senhor — disse ela — não disse eu, e não me ouvistes dizer a essa gente, que faríeis o que vos aprouvesse?

— Nesse caso — tornou Mazarino — creio que me apraz ficar. É não só o meu interesse mas atrevo-me a dizer que é também a salvação de Vossa Majestade.

— Ficai, então, senhor, que não desejo outra coisa; mas não permitais que me insultem.

— Vossa Majestade se refere às pretensões dos revoltosos e ao tom com que as expressam? Paciência! Escolheram um terreno em que sou general mais hábil do que eles, as conferências. Para vencê-los, basta-nos contemporizar. Já começaram a sentir fome. Daqui a oito dias, será muito pior.

— Oh! meu Deus! sei que as coisas acabarão assim. Mas não é só deles que se trata; não são eles que me dirigem os insultos que mais me ferem.

— Compreendo. Vossa Majestade se refere às lembranças que evocam perpetuamente esses três ou quatro gentis-homens. Mas nós os temos prisioneiros, e eles são suficientemente culpados para que os conservemos

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presos durante todo o tempo que nos convier; só um continua longe do nosso poder e nos desafia. Mas, que diabo! ainda conseguiremos reuni-lo aos companheiros. Parece-me que já fizemos coisas muito mais difíceis do que essa. Em primeiro lugar, e por precaução, mandei prender em Rueil, isto é, perto de mim, debaixo de minha vista, ao alcance de minha mão, os dois menos tratáveis. Hoje mesmo irá o terceiro juntar-se a eles.

— Enquanto forem prisioneiros — disse Ana — tudo correrá bem; mas, um dia, sairão.

— Só se Vossa Majestade os puser em liberdade.— Ah! — continuou Ana d'Áustria respondendo aos próprios

pensamentos — nisso é que sentimos a falta de Paris.— E por quê?— Por causa da Bastilha, tão forte e tão discreta.— Senhora, com as conferências teremos a paz; com a paz, teremos

Paris; com Paris, teremos a Bastilha! E lá poderão apodrecer os quatro matamouros.

Ana d'Áustria franziu levemente o cenho, ao passo que Mazarino lhe beijava a mão para despedir-se dela.

Mazarino saiu depois desse gesto, entre humilde e galante. Ana d'Áustria seguiu-o com os olhos e, à proporção que ele se afastava, um sorriso desdenhoso lhe contraiu os lábios.

— Desprezei — murmurou ela — o amor de um Cardeal que nunca dizia "eu farei", mas "eu fiz". Aquele conhecia prisões mais seguras que Rueil, mais sombrias e mais mudas ainda que a Bastilha! Oh! como degenera o mundo!

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CAPÍTULO XXIV

PRECAUÇÕES

DEIXANDO Ana d'Áustria, Mazarino retomou o caminho de Rueil, onde ficava sua casa. Andava sempre bem acompanhado, naqueles tempos agitadíssimos, e muitas vezes até disfarçado. E, como já dissemos, vestido de cavaleiro, era o Cardeal um fidalgo muito bem parecido.

No pátio do velho castelo tomou um coche e alcançou o Sena em Chatou. Fornecera-lhe o Sr. Príncipe uma escolta de cinqüenta soldados de cavalaria ligeira, não tanto para guardá-lo quanto para mostrar aos deputados a facilidade com que os generais da Rainha dispunham de suas tropas e espalhavam-nas a seu bel-prazer.

Guardado à vista por Comminges, a cavalo e sem espada, Athos seguia o Cardeal sem dizer palavra. Grimaud, deixado à porta do castelo pelo amo, ouvira a notícia de sua prisão quando Athos a anunciara a Aramis e, a um sinal do Conde, fora silenciosamente postar-se ao lado de Aramis, como se nada tivesse acontecido.

É verdade que, depois de passar vinte e dois anos a serviço de seu amo, Grimaud vira Athos safar-se de tantas dificuldades que nada mais o inquietava.

Logo após a audiência, haviam os deputados retomado o caminho de Paris, precedendo o Cardeal a uma distância de uns quinhentos passos, mais ou menos. Athos, por conseguinte, olhando para a frente, podia ver as costas de Aramis, cujo cinturão dourada e cujo porte altaneiro fixaram os seus olhares no meio da multidão, tanto quanto a esperança "de libertação que nele incutiam o hábito, o convívio e a espécie de atração que resultam de toda amizade.

Aramis, pelo contrário, nem parecia interessado em saber se Athos o seguia. Só uma vez se voltou, ao chegarem ao castelo. Supunha que Mazarino talvez deixasse o novo prisioneiro no pequeno alcáçar, sentinela que guardava a ponte e que um capitão governava em nome da Rainha. Mas isso não aconteceu. Athos passou Chatou na esteira do Cardeal.

Na encruzilhada do caminho de Paris a Rueil, Aramis voltou-se de novo. Dessa feita as suas previsões não o haviam enganado. Mazarino tomou à direita e ele pôde ver o prisioneiro desaparecer entre as árvores. No mesmo instante, movido de idêntico pensamento, Athos também olhou para trás. Os

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dois amigos trocaram um simples sinal com a cabeça, e Aramis levou o dedo ao chapéu como para cumprimentar. Somente Athos compreendeu que o companheiro lhe dizia, semafòricamente, que tinha uma idéia.

Dez minutos depois, Mazarino entrava no pátio do castelo que o seu predecessor mandara construir em Rueil.

No momento em que punha o pé no chão, no primeiro degrau da escada, Comminges aproximou-se.

— Monsenhor — perguntou ele — onde deseja Vossa Eminência que alojemos o Sr. de La Fere?

— No pavilhão da estufa, diante do pavilhão da guarda. Quero que se prestem honras ao Sr. Conde de La Fere, embora seja um prisioneiro de Sua Majestade a Rainha.

— Monsenhor — arriscou-se Comminges — ele solicita o favor de ser conduzido para junto do Sr. d'Artagnan, que ocupa, segundo as ordens de Vossa Eminência, o pavilhão de caça diante da estufa.

Mazarino refletiu um instante. Comminges percebeu-o.— É um posto muito forte — acrescentou; — quarenta homens seguros,

soldados fraquejados, quase todos alemães, e, por isso mesmo, sem nenhuma relação com os frondistas e sem nenhum interesse pela Fronda.

— Se puséssemos juntos esses três homens, Sr. de Comminges — disse Mazarino — ser-nos-ia preciso dobrar a guarda; ora, não estamos tão ricos de defensores que possamos fazer prodigalidades desse gênero.

Comminges sorriu. Mazarino viu o sorriso e compreendeu-o.— Não os conheceis, Sr. Comminges, mas eu os conheço, primeiro por

eles mesmos e depois por tradição. Eu os havia encarregado de levar socorro ao Rei Carlos, e eles fizeram, para salvá-lo, coisas milagrosas; foi preciso que interviesse o destino para que o querido Rei Carlos não pudesse estar, neste momento, são e salvo entre nós.

— Mas se o serviram tão bem, por que os conserva presos Vossas Eminência?

— Presos! — retorquiu Mazarino; — e desde quando Rueil é prisão?— Desde que tem prisioneiros — respondeu Comminges.— Esses senhores não são meus prisioneiros, Comminges — disse

Mazarino com o sorriso malicioso — são meus hóspedes; hóspedes tão preciosos que mandei por grades nas janelas e ferrolhos nas portas dos quartos que habitam, tanto receio que se cansem de fazer-me companhia. Embora pareçam prisioneiros, estimo-os muitíssimo; prova disso é que desejo fazer uma visita ao Sr. de La Fere para conversar com ele em particular. Portanto, a fim de que a nossa conferência não seja perturbada, vós o conduzireis, como eu já disse, ao pavilhão da estufa; sabeis que é esse

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o meu passeio costumeiro; pois bem, ao dá-lo, farei uma visita ao Conde e nós conversaremos. Embora se diga meu inimigo, tenho simpatia por ele, e, se for razoável, talvez cheguemos a um acordo.

Comminges inclinou-se e voltou para junto de Athos, que esperava, aparentemente calmo, mas em realidade inquieto, o resultado da conferência.

— E então? — perguntou ele ao tenente dos guardas.— Senhor — respondeu Comminges — parece que é impossível.— Sr. de Comminges — disse Athos — fui soldado a vida inteira e sei,

por conseguinte, o que é uma ordem; mas fora dessa ordem poderíeis fazer-me um obséquio.

— Com o máximo prazer — respondeu Comminges; — sabendo quem sois, os serviços que prestastes outrora a Sua Majestade e o quanto vos é caro o rapaz que tão valentemente me socorreu no dia da prisão do velho Broussel, declaro-me inteiramente à vossa disposição, em tudo o que não contrarie as ordens recebidas.

— Obrigado, senhor. Isso me basta e vou pedir-vos uma coisa que não vos comprometerá de maneira alguma.

— E ainda que me comprometa um pouquinho — tornou, a sorrir, o Sr. de Comminges — podereis pedi-la da mesma forma. Não consagro muito maior estima do que vós ao Sr. Mazarino: sirvo a Rainha, e isso, naturalmente, leva-me a servir o Cardeal; mas sirvo a primeira com alegria e o segundo a contragosto. Tende, pois, a bondade de falar; sou todo ouvidos.

— Já que não há inconveniente algum — disse Athos — em que eu saiba que o Sr. d'Artagnan está aqui, suponho que o não haja em que ele saiba que eu também estou.

— Não recebi instruções a esse respeito.— Pois bem! fazei-me então a fineza de apresentar-lhe os meus

cumprimentos e dizer-lhe que sou seu vizinho. Anunciar-lhe-eis, ao mesmo tempo, o que acabastes de anunciar-me, isto é, que o Sr. Mazarino me colocou no pavilhão da estufa para poder visitar-me, e dir-lhe-eis que aproveitarei essa honra para obter alguma atenuação do nosso cativeiro.

— Que não pode durar — emendou Comminges; — o próprio Sr. Cardeal me dizia: aqui não há prisão.

— Mas há alçapões — ajuntou, sorrindo, Athos.— Isso é outra coisa — retorquiu Comminges; — sim, conheço as

tradições a respeito; mas um homem de baixa origem como o Cardeal, um italiano que veio tentar fortuna em França, não se atreveria a praticar tais excessos em relação a homens como nós; seria uma enormidade. Isso era possível no tempo do outro Cardeal, um grão-senhor; mas o Seu Mazarino! Ora! os alçapões são vinganças reais, em que não deve tocar um bisbórria

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como ele. Já se sabe da vossa prisão, logo será conhecida a de vossos amigos, e toda a nobreza de França lhe pediria contas do vosso desaparecimento. Não, não, tranqüilizai-vos, os alçapões de Rueil há dez anos que se converteram em tradições para uso das crianças. Portanto, ficai descansado nesse ponto. De minha parte, avisarei o Sr. d'Artagnan da vossa chegada. Quem sabe se nestes quinze dias não me prestareis algum serviço semelhante!

— Eu, senhor?— Vós, naturalmente! Não poderei, acaso, vir a ser prisioneiro do

Coadjutor?— Nesse caso — tornou Athos, inclinando-se — eu faria o possível para

agradar-vos.— Dar-me-eis a honra de jantar comigo, Sr. Conde? — perguntou

Comminges.— Obrigado, senhor, mas estou aborrecido e far-vos-ia passar uma triste

noite. Muito agradecido.Comminges conduziu o Conde a um quarto do rés-do-chão de um

pavilhão que era um prolongamento da estufa e ficava no mesmo plano. Para chegar à estufa tornava-se preciso atravessar um pátio enorme, cheio de soldados e cortesãos, em forma de ferradura, tendo no centro o edifício habitado pelo Sr. de Mazarino e em cada uma das alas o pavilhão de caça, onde se achava d'Artagnan, e o pavilhão da estufa, onde Athos acabava de entrar. No fundo das duas alas estendia-se o parque.

Chegando ao quarto que devia habitar, Athos lobrigou, através da janela, cuidadosamente gradeada, muros e tetos.

— Que edifício é esse? — perguntou.— É a continuação do pavilhão de caça, em que se encontram detidos os

vossos amigos — disse Comminges. — Infelizmente, as janelas que dão para este lado foram fechadas no tempo do outro Cardeal, pois mais de uma vez os edifícios serviram de prisão, e o Sr. de Mazarino, ao encerrar-vos neles, não faz senão restituir-lhes o primitivo destino. Se as janelas não estivessem fechadas teríeis o consolo de corresponder por meio de sinais com os vossos amigos.

— E tendes certeza, Sr. de Comminges — volveu Athos — que o Cardeal me fará a honra de visitar-me?

— Foi isso, pelo menos, o que ele me assegurou. Athos suspirou considerando as janelas gradeadas.

— Sim, é verdade — disse Comminges — é quase uma prisão, a que nada falta, nem sequer as grades. Mas, também, que singular idéia tivestes, vós, uma flor da nobreza, de fazer praça de bravura e lealdade entre aqueles

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cogumelos da Fronda! Em verdade, Conde, se me desse na telha, um dia, escolher um amigo nas fileiras do exército realista, pensaria em vós. Mas o Conde de La Fere amaltando-se com um Broussel, um Blancmesnil, um Viole! Francamente! isso levaria a crer que a senhora vossa mãe rarbulejasse no seu tempo. Vós, um frondista!

— Ora, meu caro senhor — respondeu Athos — eu tinha de ser mazarinista ou frondista. Durante muito tempo fiz ressoarem as duas palavras ao meu ouvido e acabei optando pela última; pelo menos é palavra francesa. E demais disso, não sou frondista com o Sr. Broussel, com o Sr. Blancmesnil e com o Sr. Viole, mas com o Sr. de Beaufort, com o Sr. de Bouillon e com o Sr. d'Elbeuf, com príncipes e não com presidentes, conselheiros, magistrados. Aliás, agradáveis resultados proporcionam os serviços prestados ao Sr. Cardeal! Vede essa parede sem janelas, Sr. de Comminges, e ela vos dirá lindas coisas sobre o reconhecimento mazarínico.

— Sim — tornou, rindo, Comminges — principalmente se pudesse repetir as imprecações que lhe dirige, há oito dias, o Sr. de d’Artagnan.

— Pobre d'Artagnan! — disse Athos com a encantadora melancolia que era um dos traços do seu caráter — tão corajoso, tão bom, tão horrível para os que não apreciam os que ele aprecia! Tendes aí dois tremendos prisioneiros, Sr. de Comminges, e eu vos lastimo se estiverem sob a vossa responsabilidade esses dois homens indomáveis.

— Indomáveis! — volveu, a sorrir, o Sr. de Comminges;— quereis amedrontar-me. No primeiro dia, o Sr. d'Artagnan provocou

todos os soldados e suboficiais, esperando, com certeza, que lhe dessem uma espada; isso durou o dia seguinte e até o outro dia; mas, depois, mostrou-se dócil e calmo

como um cordeiro. Agora, entretém-se em cantar canções da Gasconha, que nos fazem morrer de riso.

— E o Sr. du Vallon? — perguntou Athos.— Esse, já é outra coisa. Confesso que é um gentil-homem temível. No

primeiro dia, arrombou todas as portas com um simples movimento de ombros, e eu esperei vê-lo sair de Rueil como Sansão de Gaza. Mas o seu estado de espírito seguiu a mesma marcha que a do Sr. d'Artagnan. Agora, não somente se habituou ao cativeiro mas ainda faz troça dele.

— Tanto melhor — disse Athos — tanto melhor.— Esperáveis, então, outra coisa? — perguntou Comminges, que,

associando o que dissera Mazarino dos prisioneiros do que deles dizia o Conde de La Fere, começava a nutrir alguns receios.

De seu lado ponderava Athos que aquela melhoria do moral de seus amigos provinha, sem dúvida, de algum plano formado por d'Artagnan. Não

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quis, portanto, prejudicá-los exaltando-os em demasia.— Deles? — respondeu; — são cabeças inflamáveis; um é gascão e o

outro, picardo; ambos se acendem facilmente, mas logo se apagam. Tivestes a prova disso e tudo o que acabastes de contar-me confirma o que vos digo.

Era o opinião de Comminges; por isso mesmo retirou-se mais tranqüilo e Athos ficou só no vasto quarto, onde, segundo as ordens do Cardeal, foi tratado com a consideração devida a um gentil-homem.

De resto, esperava, para ter uma idéia precisa da situação, a célebre visita prometida pelo próprio Mazarino.

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CAPÍTULO XXV

O ESPÍRITO E O BRAÇO

AGORA, passemos da estufa ao pavilhão de caça. No fundo do pátio, onde, por um pórtico fechado por colunas jônicas, se avistavam os canis, erguia-se um edifício oblongo que parecia estender-se como um braço diante do outro braço formado pelo pavilhão da estufa, semicírculo que fechava o pátio principal.

Fora nesse pavilhão, no rés-do-chão, que se tinham encerrado Porthos e d'Artagnan, obrigando-os a compartir das longas horas de um cativeiro antipático àqueles dois temperamentos.

D'Artagnan passeava como um tigre, com o olhar fixo, rugindo, de quando em quando, surdamente ao longo das grades de um janelão que dava para o pátio de serviço.

Porthos ruminava em silêncio um saboroso jantar cujos restos acabavam de levantar.

Um parecia privado da razão, e meditava; o outro parecia meditar profundamente, e dormia. Mas o sono era pesadelo, a julgar pelo modo incoerente e entrecortado como roncava.

— Aí está — disse d'Artagnan — o dia que morre. Devem ser umas quatro horas, mais ou menos. Daqui a pouco fará cento e oitenta e três horas que estamos nesta jaula.

— Hum! — resmungou Porthos para dar a impressão de que respondia.— Entendes, eterno dorminhoco? — perguntou d’Artagnan,

impacientado ao ver que alguém podia dormir de dia quando ele sentia as maiores dificuldades para dormir de noite.

— O quê? — perguntou Porthos.— O que estou dizendo.— Que dizes?— Digo — tornou d'Artagnan — que vai fazer cento e oitenta e três

horas que estamos aqui.— A culpa é tua — disse Porthos.— Como! A culpa é minha?...— É. Eu te propus fugirmos.— Arrancando uma grade ou arrombando uma porta?— Claro.

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— Porthos, gente como nós não foge assim, pura e simplesmente.— Pois eu — tornou Porthos — seria capaz de fugir com essa pureza e

essa simplicidade que tanto desdenhas.D'Artagnan deu de ombros.— De mais a mais — disse ele — não basta sair do quarto.— Meu caro amigo — atalhou Porthos — tu me pareces hoje mais bem-

humorado que ontem. Explica-me por que não basta sair do quarto.— Não basta porque, não tendo armas nem senha, não daremos

cinqüenta passos no pátio sem topar com uma sentinela.— Muito bem! Mataremos a sentinela e tomaremos as suas armas.— Sim, mas antes de morrer completamente, pois esses suíços são duros

como o diabo, a sentinela soltará um grito r ou, pelo menos, um gemido, que despertará os guardas; seremos acuados e presos como raposas, nós que somos leões, e depois nos jogarão no fundo de alguma masmorra, onde não teremos sequer o consolo de ver esse horrível céu cor de cinza de Rueil, que se parece tanto com o céu de Tarbes como a lua com o sol. Com seiscentos diabos! se tivéssemos alguém do lado de fora, alguém que pudesse dar-nos informes sobre a topografia moral e física deste castelo, sobre o que César denominava os costumes e os lugares, pelo menos segundo me disseram... Oh! quando penso que durante vinte anos, em que eu não sabia o que fazer, não tive sequer a idéia de passar uma hora estudando Rueil!

— Que é que tem isso? — acudiu Porthos — fujamos de qualquer maneira.

— Meu caro — volveu d'Artagnan — sabes por que os mestres pasteleiros nunca trabalham com as próprias mãos?

— Não — confessou Porthos; — mas gostaria de saber.— Porque, diante dos alunos, receiam queimar os pastéis ou talhar o

creme.— E daí?— Daí, zombariam deles, e nunca se deve zombar dos mestres

pasteleiros.— E que é que têm conosco os mestres pasteleiros?— Têm que não devemos, em matéria de aventuras, conhecer malogros

nem dar-nos ao desfrute. Ora, na Inglaterra, ultimamente, malogramos, fomos vencidos, e isso é uma nódoa em nossa reputação.

— Por quem fomos vencidos?— Por Mordaunt.— Sim, mas acabamos afogando o Sr. Mordaunt.— Eu sei, e isso nos reabilitará um bocadinho no espírito da posteridade,

se a posteridade vier, um dia, a ocupar-se de nós. Mas ouve, Porthos; embora

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o Sr. Mordaunt não fosse para desprezar, o Sr. Mazarino me parece muito mais forte que o Sr. Mordaunt, e não o afogaremos com a mesma facilidade. Estudemos bem o caso e procedamos com cautela; pois — acrescentou d'Artagnan com um suspiro — nós dois valemos por oito dos outros, talvez, mas não valemos pelos quatro que sabes.

— Isso é verdade — concordou Porthos, respondendo com um suspiro ao suspiro de d'Artagnan.

— Faze como eu, Porthos, passeia de um lado para outro até que nos cheguem notícias dos amigos ou nos acuda uma boa idéia; mas não durmas sempre, que não há o que tanto embote o espírito quanto o sono. Tocante ao que nos espera, será talvez menos grave do que a princípio imaginamos. Não creio que o Sr. Mazarino pense em mandar cortar-nos a cabeça, porque não nos cortariam a cabeça sem processo, o processo faria barulho, o barulho atrairia os nossos amigos, e estes dariam trabalho ao Sr. de Mazarino.

— Como raciocinas bem! — exclamou Porthos, enlevado.— Não raciocino mal — concedeu d'Artagnan. — Por outro lado, presta

atenção, se não nos processarem, se não nos cortarem a cabeça, terão que deixar-nos aqui ou terão que levar-nos para outro lugar.

— Necessariamente — conveio Porthos.— Pois bem, é impossível que mestre Aramis, finíssimo sabujo, e Athos,

gentil-homem sábios, não descubram o nosso paradeiro; aí, então, será a oportunidade.

— Sim, tanto mais que não estamos absolutamente mal aqui; exceto uma coisa, naturalmente.

— Qual?— Já notaste, d'Artagnan, que nos deram carneiro assado três dias

seguidos?— Não, mas se o fizerem pela quarta vez, sossega, que eu me queixarei.— Além disso, tenho, às vezes, saudades de minha casa; há muito que

não visito os meus castelos.— Ora! esquece-os por enquanto; tornaremos a encontrá-los, a não ser

que o Sr. de Mazarino os tenha mandado arrasar.— Crês que seria permitida essa tirania? — perguntou Porthos, inquieto.— Não; tais decisões só eram possíveis para o outro Cardeal. O nosso é

tão mesquinho que não arriscaria uma coisa dessas.— Ainda bem.— Mostra boa cara, como eu; brinquemos com os guardas; interessemos

os soldados, visto que não podemos corrompê-los; agrada-os mais do que costumas fazê-lo, Porthos, quando se aproximam da nossa janela. Até agora a única coisa que lhes fizeste foi mostrar-lhes o punho, e quanto mais

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respeitável é o teu punho, Porthos, tanto menos seduz. Ah! eu daria muita coisa para ter apenas quinhentos luíses.

— E eu também — disse Porthos, que não queria mostrar-se menos generoso do que d'Artagnan — eu daria cem pistolas.

Os dois prisioneiros haviam chegado a esse ponto da conversação, quando Comminges entrou, precedido de um sargento e de dois homens, que traziam o jantar num cesto cheio de pratos e terrinas.

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CAPÍTULO XXVI

O ESPÍRITO E O BRAÇO(Continuação)

PRONTO! — disse Porthos — carneiro outra vez! — Meu caro Sr. de Comminges — acudiu d'Artagnan — sabereis que meu amigo, o Sr. du Vallon, está decidido a chegar aos últimos extremos se o Sr. de Mazarino insistir em alimentá-lo com essa espécie de carne.

— Declaro até — disse Porthos — que não comerei mais nada se não a levarem de volta.

— Levai o carneiro — ordenou Comminges — quero que o Sr. du Vallon jante agradavelmente, tanto mais que trago uma notícia que, sem dúvida nenhuma, lhe abrirá o apetite.

— Teria falecido o Sr. de Mazarino ? — perguntou Porthos.— Não, sinto mesmo anunciar-vos que ele está passando

admiràvelmente.— Paciência...— E que notícia é essa? — perguntou d'Artagnan. — É fruta tão rara

uma notícia na prisão, que me relevareis, segundo espero, a ansiedade. Tanto mais que nos destes a entender que é uma boa notícia.

— Gostaríeis de saber que o Sr. Conde de La Fere está passando bem?Os olhinhos de d'Artagnan abriram-se desmesuradamente.— Se gostaria! — exclamou. — Mais do que isso! Eu me sentiria feliz!— Pois fui encarregado por ele mesmo de apresentar-vos os seus

cumprimentos e dizer-vos que goza de boa saúde.D'Artagnan quase deu um salto de alegria. Um rápido olhar traduziu a

Porthos o seu pensamento: "Se Athos sabe onde estamos," dizia o olhar, "se nos manda notícias, não tardará que entre em ação."

Porthos não era muito hábil em compreender olhares; mas, dessa feita, como sentira, ouvindo o nome de Athos, a mesma impressão de d'Artagnan, compreendeu.

— Dizeis — perguntou timidamente o gascão — que o Sr. Conde de La Fere vos encarregou de transmitir os seus cumprimentos ao Sr. du Vallon e a mim?

— Sim, senhor.— Então, estivestes com ele?— Naturalmente.

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— Onde, se não for indiscrição?— Pertinho daqui — respondeu Comminges, sorrindo.— Pertinho daqui! — repetiu d'Artagnan, cujos olhos fuzilaram.— Tão perto que, se as janelas que dão para a estufa não estivessem

tapadas, poderíeis vê-lo do lugar em que estais."Ele anda rondando nas proximidades do castelo," pensou d'Artagnan. E,

em voz alta:— Estivestes com ele numa caçada? No parque, talvez?— Não, mais perto, mais perto ainda. Atrás desta parede — disse

Comminges batendo na parede.— Atrás desta parede? Mas que é que há atrás dessa parede? Trouxeram-

me para cá durante a noite, e o diabo me leve se sei onde estou.— Pois bem — tornou Comminges — suponde uma coisa.— Suporei o que quiserdes.— Suponde que haja uma janela nessa parede.— Já supus. E agora?— Dessa janela veríeis o Sr. de La Fere à sua.— O Sr. de La Fere está no castelo?— Está.— Por que motivo?— Pelo mesmo motivo que vós.— Athos é prisioneiro?— Sabeis muito bem — disse Comminges rindo — que não há

prisioneiros em Rueil, visto que não há prisão.— Não brinquemos com palavras, senhor; Athos foi preso?— Ontem, em Saint-Germain, ao sair dos aposentos da Rainha.Os braços de d'Artagnan recaíram-lhe inertes ao lado do corpo. Dir-se-ia

que o tivesse fulminado um raio.Mortal palidez, como nuvem branca, lhe correu pelo rosto abaçanado,

mas desapareceu quase imediatamente.— Preso! — repetiu.— Preso! — ecoou Porthos, abatido.De repente d'Artagnan ergueu a cabeça e luziu-lhe nos olhos um clarão

imperceptível até para Porthos, mas logo seguido do mesmo abatimento que o precedera.

— Vamos, vamos — acudiu Comminges, que sentia verdadeira afeição por d'Artagnan desde o assinalado serviço que este lhe prestara no dia da prisão de Broussel ao arrancá-lo das mãos dos parisienses; — não vos aflijais, que a minha intenção não era de trazer-vos uma notícia triste. Muito pelo contrário. Por esta guerra que corre somos todos seres inseguros. Ride,

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pois, e não desespereis do acaso que aproxima de vós e do Sr. du Vallon o vosso amigo.

A exortação, porém, não surtiu efeito nenhum em d’Artagnan, que conservou o seu lúgubre aspecto.

— E que cara mostrava ele? — perguntou Porthos, que, vendo d'Artagnan desinteressado da conversação, aproveitou o silêncio para dizer a sua palavrinha.

— Até que muito boa — replicou Comminges. — Primeiro, como vós, pareceu desesperado; mas quando soube que o Sr. Cardeal ia visitá-lo esta noite mesma...

— Ah! — exclamou d'Artagnan — o Sr. Cardeal vai visitar o Conde de La Fere?

— Vai e já mandou avisá-lo; e o Sr. Conde de La Fere, ao receber a notícia, encarregou-me de dizer-vos que aproveitaria o favor do Cardeal para advogar a vossa causa e a dele.

— Ah! querido Conde! — disse d'Artagnan.— Belo negócio — resmungou Porthos — grande favor! Pois sim! O Sr.

Conde de La Fere, cuja família foi aparentada com os Montmorencys e os Rohans bem vale o Sr. de Mazarino. '

— Não importa — sobreveio d'Artagnan no tom mais dulçoroso — refletindo bem, meu caro du Vallon, é muita honra para o Sr. Conde de La Fere, é sobretudo uma grande esperança que proporciona a tal visita! E até, na minha opinião, é tão grande honra para um prisioneiro que, segundo creio, o Sr. de Comminges está equivocado.

— Como! Equivocado, eu?— Em vez de ir o Sr. de Mazarino visitar o Conde de La Fere, não será o

Conde de La Fere chamado pelo Sr. de Mazarino ?— Não, não, não — refutou Comminges, que fazia timbre de

restabelecer a perfeita exatidão dos fatos. — Ouvi perfeitamente o que disse o Cardeal. Ele irá visitar o Sr. Conde de La Fere.

D'Artagnan tentou surpreender um olhar de Porthos para saber se o companheiro compreendia a importância da visita, mas Porthos nem sequer olhava para ele.

— Então o Sr. Cardeal costuma passear na estufa? — perguntou d'Artagnan.

— Todas as noites vai para lá. Parece que lá medita sobre os negócios do Estado.

— Então — disse d'Artagnan — começo a crer que o Sr. de La Fere receberá a visita de Sua Eminência, que, aliás, de certo se fará acompanhar.

— Sim, de dois soldados.

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— E falará de negócios diante de dois estrangeiros?— Os soldados são suíços dos pequenos cantões e só falam alemão.

Muito provavelmente, ficarão esperando à porta.D'Artagnan enterrava as unhas nas palmas das mãos para que o rosto só

exprimisse o que ele queria deixá-lo exprimir.— O Sr. de Mazarino que não entre sozinho no quarto do Sr. Conde de

La Fere — disse d'Artagnan — pois o Conde de La Fere deve estar furioso.Comminges pegou a rir.— Essa é muito boa! Quem vos ouvisse diria que sois antropófagos! O

Sr. de La Fere é cortês e, de mais a mais, não tem armas; ao primeiro grito de Sua Eminência, acudi-riam os dois soldados que o acompanham.

— Dois soldados — disse d'Artagnan fingindo despertar as lembranças — dois soldados... ah! é por isso, então, que ouço chamar dois homens e os vejo passear, às vezes, cerca de meia hora, debaixo de minha janela.

— Exatamente, esperam o Cardeal, ou melhor, esperam Bernouin, que vem chamá-los quando sai o Cardeal.

— Belos tipos de homens! — observou d'Artagnan.— É o regimento que estava em Lens, e que o Sr. Príncipe deu ao

Cardeal em sua homenagem.— Ah! senhor — disse d'Artagnan, como que para resumir numa palavra

toda a longa conversação — oxalá se abrande Sua Eminência e conceda a nossa liberdade ao Sr. de La Fere.

— É o que desejo de todo o coração — declarou Comminges.— Então, se lhe esquecer a visita, não veríeis inconvenientes em

relembrar-lha?— Nenhum, pelo contrário.— Isso já me tranqüiliza um pouco.A hábil mudança de assunto teria parecido uma sublime manobra a quem

pudesse ler na alma do gascão.— Um último favor — continuou ele — meu caro Sr. de Comminges.— Às vossas ordens.— Tomareis a ver o Sr. Conde de La Fere?— Amanhã cedo.— Tende a bondade de desejar-lhe bons-dias por nós e dizer-lhe que

solicite para mim idêntica mercê à que tiver recebido.— Desejais que o Sr. Cardeal venha aqui?— Não; conheço a minha posição e não sou tão exigente. Dê-me Sua

Eminência a honra de ouvir-me, é quanto desejo.— Oh! — murmurou Porthos sacudindo a cabeça — nunca imaginei isso

da parte de d'Artagnan. Como o infortúnio abate um homem!

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— Tudo isso se fará — prometeu Comminges.— Dizei também ao Conde que estou passando muito bem, e que me

vistes triste, mas resignado.— Gosto de ouvi-lo.— Direis a mesma coisa da parte do Sr. du Vallon.— Da minha, não! — recalcitrou Porthos. — Não estou resignado

coisíssima nenhuma.— Mas haverás de resignar-te, meu amigo.— Nunca!— Haverá, haverá, Sr. de Comminges. Conheço-o melhor do que ele

mesmo, e sei que possui excelentes qualidades de que nem sequer suspeita. Cala-te, caro du Vallon, e resigna-te.

— Adeus, senhores — disse Comminges. — Boa-noite!— Tentaremos suportá-la.Comminges cumprimentou e saiu. D'Artagnan seguiu-o com os olhos na

mesma humilde posição e com a mesma expressão resignada. Mas tanto que a porta se fechou sobre o tenente dos guardas, atirou-se nos braços de Porthos e apertou-o nos seus com tamanha explosão de alegria, que não dava margem a enganos.

— Oh! oh! — disse Porthos — que aconteceu? Enlouqueceste, meu pobre amigo?

— Aconteceu — disse d'Artagnan — que estamos salvos!— Pois eu não vejo nada disso — acudiu Porthos; — vejo, pelo

contrário, que estamos todos presos, com exceção de Aramis, e que as nossas possibilidades de fuga diminuíram muito depois que Athos caiu na ratoeira do Sr. de Mazarino.

— Absolutamente, Porthos, meu amigo, essa ratoeira era suficiente para dois; mas já é muito fraca para três.

— Não compreendo patavina.— Não faz mal — tornou d'Artagnan — sentemo-nos à mesa e

restauremos as forças, que precisaremos delas para a noite.— Mas que faremos esta noite? — perguntou Porthos, cada vez mais

intrigado.— Provavelmente viajaremos.— Mas...— Vamos para a mesa, caro amigo, que as idéias me açodem enquanto

como. Depois do jantar, quando estiverem completas, eu tas contarei.Por mais que desejasse Porthos conhecer o projeto de d'Artagnan, como

estivesse habituado às manias deste último, pôs-se à mesa sem maiores insistências e comeu com um apetite que fazia honra à confiança que lhe

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inspirava o poder imaginativo do gascão.

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CAPÍTULO XXVII

O BRAÇO E O ESPÍRITO(Continuação)

O jantar foi silencioso, mas não foi triste; pois, a trechos, um daqueles sorrisos maliciosos que lhe eram habituais nos momentos de bom humor iluminava o rosto de d'Artagnan. Porthos não perdia nenhum e, a cada um deles, soltava uma exclamação indicando ao amigo que, se bem não a compreendesse, não perdia vista da idéia que lhe fervia no cérebro.

À sobremesa, d'Artagnan refestelou-se numa cadeira, cruzou uma perna sobre a outra e principiou a bambolear-se com o ar de um homem perfeitamente satisfeito consigo mesmo.

Porthos apoiou o queixo sobre as duas mãos, colocou os dois cotovelos sobre a mesa e fitou em d'Artagnan o olhar confiante que emprestava ao colosso tão admirável expressão de bonomia.

— E então? — perguntou d'Artagnan, volvido um instante.— E então? — repetiu Porthos.— Dizias, caro amigo ?...— Eu? Eu não dizia nada.— Como não! Dizias que tinhas vontade de sair daqui.— Ah! quanto a isso, não é vontade que me falta.— E acrescentavas que, para sair daqui, bastava arrombar uma porta ou

derrubar uma parede.— É verdade, eu disse isso e torno a dizê-lo.— E eu te respondia, Porthos, que era um péssimo meio, e que não

daríamos cem passos sem sermos novamente presos e mortos, a menos que tivéssemos roupas para disfarçar-nos e armas para defender-nos.

— É verdade, precisaríamos de roupas e de armas.— Pois bem! — anunciou d'Artagnan, erguendo-se — já as temos,

amigo Porthos, e até coisa melhor.— Ora! — refutou Porthos relanceando os olhos à sua volta.— Não procures que é inútil; tudo isso chegará às nossas mãos no

momento azado. A que horas, mais ou menos, vimos passear ontem os dois guardas suíços?

— Creio que uma hora depois do anoitecer.— Se saírem hoje como ontem, daqui a menos de quinze minutos

teremos o prazer de vê-los.

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— Mais ou menos.— Ainda tens os braços rijos, não é verdade, Porthos?Porthos desabotoou a manga, ergueu a camisa, e considerou,

complacente, os braços musculosos da grossura da coxa de um homem comum.

— Como não — disse ele — bem rijos.— De sorte que poderias fazer, sem muito esforço, um arco desta tenaz e

um saca-rolhas desta pá?— Naturalmente.— Vejamos.O gigante pegou nos dois objetos mencionados e operou com a maior

facilidade e sem nenhum esforço aparente as metamorfoses sugeridas pelo companheiro.

— Pronto! — disse ele.— Magnífico! — bradou d'Artagnan; — és, sem dúvida, um homem

prendado, Porthos.— Já ouvi falar — volveu Porthos — de um certo Mílon de Crotona, que

fazia coisas muito extraordinárias, tais como apertar a cabeça com uma corda e rebentar a corda, matar um boi com um murro e levá-lo para casa nas costas, segurar um cavalo pelas pernas traseiras, etc, etc. Mandei que me contassem todas as suas proezas, lá em Pierrefonds, e fiz tudo o que ele fazia, menos rebentar uma corda inchando as minhas têmporas.

— É que a tua força não está na cabeça.— Não, está nos braços e nos ombros — condescendeu o ingênuo

Porthos.— Pois bem, meu amigo, cheguemos à janela e serve-te dela para

arrancar um varão. Espera que eu apague a luz.

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CAPÍTULO XXVIII

O BRAÇO E O ESPÍRITO

(Continuação)PORTHOS aproximou-se da janela, pegou num varão com as duas mãos,

puxou-o para si e dobrou-o em arco, de jeito que as duas pontas saíram do alvéolo de pedra em que, havia trinta anos, o cimento as incrustara.

— Aí está, meu amigo — disse d’Artagnan — o que nunca poderia ter feito o Cardeal, embora seja um homem de gênio.

— Preciso arrancar mais? — perguntou Porthos.— Não, esse chega; um homem, agora, pode passar pelo vão.Porthos experimentou e fez passar o tronco enorme.— Pode — afirmou.— De fato, é uma linda abertura. Agora passa o braço.— Por onde?— Pela abertura.— Para quê?— Saberás daqui a pouco. Passa.Porthos obedeceu, dócil como um soldado, e passou o braço através das

grades.— Ótimo! — exclamou d'Artagnan.— Vai indo o negócio?— Às mil maravilhas, caro amigo.— Bom. E que devo fazer agora?— Nada.— Está tudo pronto?— Ainda não.— Mas eu bem gostaria de compreender — confessou Porthos.— Escuta, meu caro, e em duas palavras compreenderás tudo. Como vês,

está-se abrindo a porta do posto.— Estou vendo.— Mandarão ao nosso pátio, pelo qual tem de passar o Sr. de Mazarino

para ir à estufa, os dois guardas que o acompanham.— Lá vêm eles.— Tomara que fechem a porta do posto. Bom! Estão-na fechando.— E depois?

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— Silêncio! Poderiam ouvir-nos.— Então não ficarei sabendo nada.— Ficarás; à proporção que trabalhares compreenderás.— Mas eu teria preferido...— Terás o prazer da surpresa.— É verdade! — conveio Porthos.— Quieto!Porthos imobilizou-se.Os dois soldados, efetivamente, se dirigiam para os lados da janela

esfregando as mãos, pois corria, como dissemos, o mês de fevereiro e fazia frio.

Nesse momento se abriu a porta do corpo da guarda e um dos soldados foi chamado. Deixando o companheiro, obedeceu ao chamamento.

— Vai ou não vai? — perguntou Porthos.— Cada vez melhor — respondeu d'Artagnan. — Agora, escuta. Vou

chamar aquele soldado e conversar com ele, como fiz ontem com um de seus camaradas, não te lembras?

— Sim; só que não entendi uma palavra do que ele dizia.— O fato é que ele tinha um sotaque um tanto carregado. Mas não percas

uma palavra do que vou dizer-te; tudo reside na execução, Porthos.— Bom; a execução é o meu forte.— Eu sei; por isso mesmo conto contigo.— Fala.— Vou chamar o soldado e conversar com ele.— Já o disseste uma vez.— Virarei para a esquerda, de modo que ele ficará colocado à tua direita

no momento em que trepar no banco.— E se ele não trepar?— Trepará, descansa. No momento em que trepar no banco, esticarás o

braço formidável e pegá-lo-ás pelo pescoço. Depois, suspendendo-o, como Tobias suspendeu o peixe pelas guelras, tu o introduzirás em nosso quarto, tomando o cuidado de apertá-lo com força que ele não grite.

— Sim — disse Porthos; — e se eu o esganar?— Seria apenas um suíço de menos; mas espero que não o esganes.

Depositá-lo-ás delicadamente aqui, nós o amordaçaremos e o amarraremos, pouco importa onde, em qualquer lugar. Teremos assim um uniforme e uma espada.

— Maravilhoso! — disse Porthos olhando para d’Artagnan com a mais profunda admiração.

— Hein! — fez o gascão.

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— Sim — continuou Porthos, reportando-se; — mas um uniforme e uma espada não chegam para dois.

— E ele não tem um companheiro?— É verdade.— Portanto, quando eu tossir, estica o braço, que está na hora.— Certo.Os dois amigos assumiram os respectivos postos. Colocado em sua

posição, Porthos ficava inteiramente escondido no ângulo da janela.— Boa-noite, camarada — disse d'Artagnan com a voz mais encantadora

e o diapasão mais moderado.— Boa-noite, senhorrr — respondeu o soldado.— Não está muito quente para um passeio — disse d’Artagnan.— Brrrrrrroun — fez o soldado.— E creio que um copo de vinho não vos seria desagradável, hein?— Um copo de finho serria benfindo.— O peixe está mordendo! o peixe está mordendo! — murmurou

d'Artagnan a Porthos.— Compreendo — respondeu Porthos.— Tenho aqui uma garrafa — disse d'Artagnan.— Uma carrafa!— È.— Uma carrafa cheia?— Até o gargalo. Será vossa se quiserdes beber à minha saúde.— Ehé! eu querrer sim — aceitou o soldado, aproximando-se.— Então, vinde buscá-la, meu amigo — disse o gascão.— Com muito brazer. Creio que há um panco.— Oh! meu Deus, até parece colocado de propósito. Trepai nele... Isso,

muito bem, meu amigo.E d'Artagnan tossiu.Nesse momento se abateu o braço de Porthos; o punho de aço mordeu,

rápido como o raio e firme como a tenaz, o pescoço do soldado, suspendeu-o sufocando-o, aproximou-o de si pela abertura com risco de esfolá-lo ao passar, e colocou-o sobre o soalho, onde d'Artagnan, deixando-lhe apenas o tempo suficiente para retomar fôlego, amordaçou-o com a charpa e, vendo-o amordaçado, principiou a despi-lo com a celeridade e a destreza de um homem que aprendeu o seu ofício no campo de batalha.

Em seguida, o soldado açaimado e arrochado foi levado para a lareira, cujo lume os nossos amigos haviam apagado previamente.

— Aqui estão uma espada e um uniforme — disse Porthos.

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... suspendeu-o sufocando-o...

— Estes são meus — acudiu d'Artagnan. — Se quiseres outro fato e outra espada, teremos de repetir a manobra. Atenção! Estou vendo justamente o outro soldado que sai do corpo da guarda e vem para cá.

— Creio — disse Porthos — que seria imprudente recomeçar a manobra. Ninguém é bem sucedido, segundo dizem, duas vezes com o mesmo processo. Se eu errasse, estaria tudo perdido. Vou descer, agarrá-lo no momento em que menos espere e entregá-lo já amordaçado.

— É melhor — concordou o gascão.— Fica de prontidão — disse Porthos, esgueirando-se pela abertura.

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Realizou-se a coisa como prometera Porthos. O gigante escondeu-se no caminho do soldado e, quando este passou, agarrou-o pelo pescoço, amordaçou-o, empurrou-o como se fosse uma múmia pelos varões alargados da janela e tornou a entrar depois dele.

Despiram o segundo prisioneiro como haviam despido o primeiro. Deitaram-no sobre uma cama, ataram-no com correias, e como a cama fosse de carvalho maciço e as correias fossem duplas, não se sentiram menos tranqüilos a respeito deste do que a respeito do outro.

— Pronto — disse d'Artagnan — vai tudo às mil maravilhas. Agora, experimenta-me o uniforme desse camarada, Porthos; duvido que te sirva; mas se for muito apertado, não te preocupes, o boldrié te bastará e, sobretudo, o chapéu de plumas vermelhas.

Quis o acaso que o segundo suíço fosse um gigante, de modo que, excetuados alguns pontos, que estalaram nas costuras, a farda serviu como uma luva.

Durante algum tempo só se ouviu o roçagar do pano. Porthos e d'Artagnan vestiam-se à pressa.

— Pronto — disseram ao mesmo tempo. — Quanto a vós, companheiros — ajuntaram, voltando-se para os dois soldados — nada vos acontecerá, se fordes bonzinhos; mas.se vos mexerdes, estais mortos.

Os soldados não deram um pio. Tinham compreendido, pelo punho de Porthos, que a coisa era das mais séries e que não havia motivo nenhum para brincadeiras.

— Agora — exclamou d'Artagnan — gostarias de compreender, não é verdade, Porthos?

— É verdade.— Pois bem, desceremos ao pátio.— Sei.— Tomaremos o lugar desses dois pândegos.— Sei.— Ficaremos passeando de um lado para outro.— E não será mau, com o frio que está fazendo.— Daqui a pouco o criado chamará, como fez ontem e anteontem.— Responderemos?— Não, não responderemos, pelo contrário.— Como quiseres. Não faço questão nenhuma de responder.— Portanto, não responderemos; enterraremos apenas o chapéu na

cabeça e escoltaremos Sua Eminência.— Aonde?— Aonde ele for, ao quarto de Athos. Crês que Athos ficará zangado se

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nos vir?— Oh! — exclamou Porthos — oh! compreendo!— Espera um pouco para gritar, Porthos; pois à minha fé que ainda não

chegaste ao fim — disse o gascão, zombeteiro.— Mas que é que vai acontecer? — perguntou Porthos.— Segue-me — respondeu d'Artagnan. — Quem viver verá.E, passando pela abertura, desceu com ligeireza ao pátio. Porthos seguiu-

o pelo mesmo caminho, embora com mais esforço e menos diligência.Fremiam de medo os dois soldados amarrados no quarto.Mal haviam d'Artagnan e Porthos colocado o pé em terra, uma porta se

abriu e a voz do criado se ouviu:— A patrulha!Ao mesmo tempo se abriu também o posto e outra voz gritou:— La Bruyère e du Barthois, parti!— Parece que eu me chamo La Bruyère — disse d’Artagnan.— E eu, du Barthois — disse Porthos.— Onde estais? — perguntou o criado, cujos olhos, ofuscados pela

claridade, não podiam evidentemente distinguir os nossos dois heróis na escuridão.

— Aqui — respondeu d'Artagnan. Logo, voltando-se para Porthos:— Que dizes disso, Sr. du Vallon?— Digo que, enquanto durar, não há coisa mais linda! Os dois soldados

improvisados marcharam gravemente atrás do criado; este abriu-lhes uma porta do vestíbulo, depois outra que parecia a de uma sala de espera, e, mostrando-lhes dois mochos:

— A ordem é simples; — disse ele — só uma pessoa pode entrar aqui, entendestes? uma só; a essa pessoa, obedecei em tudo. Quanto à volta, não há engano possível, esperareis que eu vos renda.

D'Artagnan era muito conhecido do criado, ou seja, de Bernouin, que, de uns seis ou oito meses àquela parte, o conduzira uma dezena de vezes à presença do Cardeal. Por conseguinte, em vez de responder, limitou-se a resmungar o ia menos gascão e mais tudesco possível.

Quanto a Porthos, d'Artagnan exigira e obtivera dele a promessa de que não abriria a boca em hipótese alguma. Se não pudesse mais agüentar, só lhe seria permitido proferir, como única resposta, o tarteifle solene e proverbial.

Bernouin afastou-se fechando a porta.— Oh! oh ! — disse Porthos, ouvindo o ruído da chave na fechadura —

parece que aqui está na moda fechar os outros. Na minha opinião, não fizemos outra coisa senão trocar de cadeia; em' vez de sermos prisioneiros lá embaixo, somos prisioneiros na estufa. E não sei se ganhamos com a troca.

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— Porthos, meu amigo — disse baixinho d'Artagnan — não duvides da Providência e deixa-me refletir e meditar.

— Medita e reflete, então — disse Porthos mal-humorado ao ver o rumo inesperado que tomavam as coisas.

— Demos oitenta passos — murmurou d'Artagnan — subimos seis degraus; é portanto aqui, como disse há pouco o meu ilustre amigo Sr. de Comminges, que fica o outro pavilhão paralelo ao nosso e a que dão o nome de pavilhão da estufa. O Conde de La Fere não deve estar longe; só que as portas estão fechadas.

— Bela dificuldade! — acudiu Porthos — com um golpe de ombros...— Por Deus! Porthos, meu amigo — disse d'Artagnan — poupa os teus

músculos, pois, do contrário, no momento necessário, não terão o valor que merecem; não ouviste que daqui a pouco virá alguém?

— Ouvi.— Pois então! Esse alguém nos abrirá as portas.— Mas, meu caro — volveu Porthos — se esse alguém nos reconhece,

se esse alguém, ao reconhecer-nos, se põe a gritar, estamos perdidos; porque, afinal de contas, imagino que não pretendas obrigar-me a matar ou estrangular o Cardeal. Isso é bom para se fazer com ingleses e alemães.

— Deus me livre, e a ti também! — exclamou d’Artagnan. — O Reizinho talvez nos agradecesse um pouco; mas a Rainha não nos perdoaria, e ela é que devemos poupar; de mais a mais, seria sangue inútil! Nunca! Nunca! Tenho o meu plano. Deixa tudo por minha conta que ainda daremos boas gargalhadas.

— Tanto melhor — disse Porthos; — estou precisando disso.— Pssiu! — fez d'Artagnan — aí vem o alguém anunciado.Ouviu-se na sala precedente, isto é, no vestíbulo, o soar de um passo

leve. Gritaram os gonzos da porta e um homem surgiu vestido de cavaleiro, envolto numa capa castanha, um chapelão derrubado sobre os olhos e uma lanterna na mão.

Porthos coseu-se com a parede, mas não conseguiu ficar tão invisível que o homem da capa não o visse; este lhe entregou a lanterna e ordenou:

— Acendei a lâmpada do teto. Logo, dirigindo-se a d'Artagnan:— Conheceis as ordens.— Ia — retrucou o gascão, resolvido a limitar-se a essa amostra da

língua alemã.— Tedesco — tornou o cavaleiro — va bene.E, adiantando-se para a porta fronteira àquela pela qual entrara, abriu-a,

desapareceu atrás dela e tornou a fechá-la.— E agora — perguntou Porthos — que faremos?

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— Agora nós nos serviremos do teu ombro se essa porta estiver fechada, amigo Porthos. Cada coisa a seu tempo, e tudo vem na hora para quem sabe esperar. Mas primeiro entrincheiremos a primeira porta convenientemente e, depois, sigamos o cavaleiro.

Os dois amigos puseram imediatamente mãos à obra e encostaram na porta todos os móveis que se achavam na sala, obstáculo que tornava a passagem tanto menos praticável quanto a porta se abria para dentro.

— Pronto — disse d'Artagnan — eis-nos certos de não sermos surpreendidos pela retaguarda. Vamos para a frente.

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CAPÍTULO XXIX

OS ALÇAPÕES DO SR. MAZARINO

CHEGARAM à porta pela qual saíra Mazarino; estava fechada; d'Artagnan tentou inutilmente abri-la.

— Eis o momento oportuno para entrarem em ação os teus ombros — disse d'Artagnan; — empurra, amigo Porthos, mas devagar, sem ruído; não arrombes nada, desloca apenas os batentes.

Porthos apoiou o ombro robusto contra uma das folhas, que cedeu, e d'Artagnan introduziu a ponta da espada entre a lingüeta e a chapa da fechadura. A chapa cedeu e a porta se abriu.

— Eu não te disse, amigo Porthos, que se obtinha tudo das mulheres e das portas tratando-as com brandura?

— O fato — asseverou Porthos — é que tu és um grande moralista.— Entremos.Entraram. Atrás de uma galeria envidraçada, à luz da lanterna do

Cardeal, colocada no chão, no meio da galeria, viam-se as laranjeiras e romãzeiras do castelo de Rueil dispostas em longas filas, que formavam uma grande alameda e duas aléias laterais menores.

— Nada de Cardeal — disse d'Artagnan — só a lâmpada dele. Onde diabo estará o homem?

E como explorasse uma das aléias laterais, depois de ter feito sinal a Porthos para explorar a outra, viu, de repente, à esquerda, o caixote de uma laranjeira arredado do alinhamento e, no lugar do caixote, um buraco aberto.

Dez homens teriam movido com dificuldade o caixote, mas, por um mecanismo qualquer, fora afastado com a lájea que o sustentava.

D'Artagnan, como dissemos, viu um buraco nesse lugar e, no buraco, os degraus de uma escada espiral.

Chamou Porthos com a mão e mostrou-lhe o buraco e os degraus.Entreolharam-se os dois com expressão de assombro.— Se quiséssemos só ouro — disse baixinho d'Artagnan— teríamos encontrado o que buscávamos e estaríamos ricos para o resto

da vida.— Como assim?— Não compreendes, Porthos, que, embaixo dessa escada, muito

provavelmente, está o famoso tesouro do Cardeal, de que tanto se fala, e nos

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bastaria descer, esvaziar uma caixa, fechar nela o Cardeal a chave e sair levando todo o ouro que pudéssemos carregar, recolocando a laranjeira no lugar? Ninguém no mundo viria perguntar-nos de onde nos vem o dinheiro, nem sequer o Cardeal.

— Seria uma bela façanha para vilões — disse Porthos— mas indigna, segundo me parece, de dois gentis-homens.— É o que me parece também — concordou d'Artagnan;— e foi por isso que eu disse: "Se quiséssemos só ouro..." Mas nós

queremos outra coisa.No mesmo instante, e como d'Artagnan inclinasse a cabeça na direção do

buraco para escutar, um som metálico e seco como o de um saco de moedas tilintando lhe chegou aos ouvidos; estremeceu. Imediatamente se fechou uma porta e os primeiros reflexos de luz surgiram na escada.

Mazarino deixara a lâmpada na estufa para dar a impressão de que estava passeando. Mas levara uma vela de cera a fim de explorar o misterioso cofre-forte.

— Hé! — disse ele em italiano ao passo que subia os degraus com os olhos fitos num saco pançudo de moedas; — hé! aqui tenho com que pagar cinco conselheiros do Parlamento e dois generais de Paris. Também sou um grande capitão, mas faço guerra à minha moda...

D'Artagnan e Porthos se haviam escondido cada um numa aléia lateral e, atrás de um caixote, esperavam.

Mazarino chegou a uma distância de três passos de d’Artagnan, a fim de comprimir a mola escondida na parede. A lájea virou e a laranjeira suportada por ela voltou ao lugar primitivo.

Em seguida, o Cardeal apagou a vela, que enfiou no bolso; e, tornando a pegar na lâmpada:

— Vamos ver o Sr. de La Fere — disse ele.— É o nosso caminho — pensou d'Artagnan — iremos juntos.Puseram-se em marcha os três, o Sr. de Mazarino seguindo a alameda do

meio, e Porthos e d'Artagnan as paralelas. Os dois últimos evitavam com cuidado as compridas linhas luminosas que traçava a cada passo entre os caixotes a lâmpada do Cardeal.

Este chegou a uma segunda porta envidraçada sem dar tento de que estava sendo seguido, pois a areia fofa abafava o ruído dos passos dos dois acompanhantes.

Depois virou à esquerda, tomou por um corredor em que Porthos e d'Artagnan ainda não tinham reparado; mas, no momento de abrir-lhe a porta, estacou, reflexivo.

— Ah! diavolo! — exclamou — esquecia-me a recomendação de

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Comminges. Preciso ir buscar os soldados e colocá-los diante desta porta, a fim de não ficar à mercê desse ferrabrás. Vamos.

E, com um gesto de impaciência, voltou-se para desandar o caminho percorrido.

— Vossa Eminência não precisa dar-se a esse trabalho — disse d'Artagnan dando um passo à frente, com o chapéu na mão e o semblante risonho — seguimo-lo quedo a quedo e aqui estamos.

— Sim, aqui estamos — confirmou Porthos. E fez o mesmo gesto amável de cortesia.

Mazarino alternou os olhos sarapantados entre um e outro, reconheceu-os, e deixou cair a lanterna soltando um gemido de pavor.

D'Artagnan apanhou-a; por felicidade não se apagara na queda.— Que imprudência, Monsenhor! — disse d'Artagnan; — não se deve

andar por aqui sem luz! Vossa Eminência poderia esbarrar em algum caixote ou cair nalgum buraco.

— Sr. d'Artagnan! — murmurou Mazarino, que não tornava em si do pasmo.

— Sim, Monsenhor, eu mesmo, e tenho a honra de apresentar-lhe o Sr. du Vallon, excelente amigo meu, pelo qual Vossa Eminência teve a bondade de interessar-se tanto em outro tempo.

E d'Artagnan dirigiu a claridade da lâmpada para o rosto alegre de Porthos, que começava a compreender e disso se envaidecia.

— Vossa Eminência ia ter com o Sr. de La Fere — continuou d'Artagnan. — Não queremos estorvá-lo, Monsenhor. Queira mostrar-nos o caminho e nós o seguiremos.

Mazarino readquiria, a pouco e pouco, a lucidez.— Faz muito tempo que estais na estufa, senhores? — perguntou com

voz trêmula, recordando a visita que acabava de fazer ao seu tesouro.Porthos abriu a boca para responder, mas d'Artagnan fez-lhe um sinal e a

boca de Porthos, emudecendo, voltou a fechar-se gradativamente.— Estamos chegando neste instante, Monsenhor — disse d'Artagnan.Mazarino respirou; já não receava pelo tesouro; temia apenas por si

mesmo. Uma espécie de sorriso aflorou-lhe aos lábios.— Vamos — disse ele — vós me apanhastes no laço e eu me declaro

vencido. Quereis pedir-me a liberdade, não é isso? Eu vo-la dou.— Oh! Monsenhor — tornou d'Artagnan — Vossa Eminência é muito

bom; mas nós já temos a liberdade e preferimos pedir-lhe outra coisa.— Tendes a liberdade? — perguntou Mazarino amedrontado.— Claro! É Vossa Eminência, pelo contrário, quem perdeu a sua, e

agora... que se há de fazer? É a lei da guerra... Vossa Eminência precisa

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comprá-la.Mazarino estremeceu dos pés à cabeça. O olhar penetrante em vão se

fitou no rosto zombeteiro do gascão e no gesto impassível de Porthos. Estavam os dois escondidos na sombra e nem a própria sibila de Cumos leria neles o que quer que fosse.

— Comprar a minha liberdade! — repetiu Mazarino.— Sim, Monsenhor.— E quanto me custará ela, Sr. d'Artagnan?— Homem, ainda não sei, Monsenhor. Se Vossa Eminência o permitir

iremos perguntá-lo ao Conde de La Fere. Digne-se, portanto, abrir a porta que conduz a ele e daqui a dez minutos ficará sabendo.

Mazarino estremeceu.— Monsenhor — continuou d'Artagnan — Vossa Eminência está vendo

quantas formalidades empregamos, mas somos obrigados a preveni-lo de que não podemos perder tempo; abra, pois, a porta, por obséquio, e queira lembrar-se, de uma vez por todas, que ao menor movimento que fizer para fugir, ao menor grito que possa escapar-lhe, como a nossa posição é absolutamente excepcional, Vossa Eminência não deverá zangar-se se formos levados a um extremo qualquer.

— Ficai descansados, senhores — disse Mazarino — não tentarei nada, dou-vos a minha palavra de honra.

D'Artagnan fez sinal a Porthos que redobrasse de vigilância; depois, voltando-se para Mazarino:

— Agora, Monsenhor, entremos, se lhe praz.

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CAPÍTULO XXX

CONFERÊNCIAS

MAZARINO abriu uma porta dupla, em cujo limiar se encontrava Athos, pronto para receber o ilustre visitante, conforme o aviso que lhe dera Comminges. Vendo Mazarino, inclinou-se.

— Vossa Eminência — disse ele — podia dispensar-se de vir acompanhado; a honra que recebo é muito grande para que eu possa esquecê-la.

— Por isso mesmo, meu caro Conde — disse d'Artagnan — Sua Eminência não queria absolutamente saber de nós; mas du Vallon e eu insistimos, talvez até de maneira inconveniente, tamanho era o nosso desejo de ver-te.

A essa voz, ao tom escarninho, ao gesto tão conhecido que acompanhava o tom e a voz, Athos deu um salto de surpresa.

— D'Artagnan! Porthos! — exclamou.— Em pessoa, caro amigo.— Em pessoa — repetiu Porthos.— Que significa isto? — perguntou o Conde.— Significa — respondeu Mazarino, tentando sorrir, como já o fizera, e

mordendo os lábios ao sorrir — significa que os papéis mudaram e que em vez de serem esses senhores meus prisioneiros, sou eu o prisioneiro desses senhores, e tanto é assim que me vedes aqui obrigado a aceitar a lei em vez de ditá-la. Mas, senhores, eu vos previno de que, a menos de me estrangulares, a vossa vitória será de pouca dura; chegará. a minha vez, virá gente...

— Ah! Monsenhor — disse d'Artagnan — não ameace; é mau exemplo. Somos tão amáveis e encantadores com Vossa Eminência! Ponhamos de parte todo mau humor, afastemos a raiva e conversemos como bons amigos.

— Não peço outra coisa, senhores — disse Mazarino; — mas no momento de discutir o meu resgate, não quero que imagineis a vossa posição melhor do que realmente é; apanhando-me no laço, nele caístes comigo. Como saireis daqui?

Vede as grades, vede as portas, vede ou melhor adivinhai as sentinelas que rondam atrás das portas e das grades, os soldados que atulham esses pátios, e entremos num acordo. Aí está, vou mostrar-vos que sou leal.

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— Bom! — pensou d'Artagnan — olho nele, que quer pregar-nos uma peça!

— Eu vos oferecia a liberdade — continuou o Ministro— torno a oferecê-la. Ainda a quereis? Em menos de uma hora sereis

descobertos, presos, obrigados a matar-me, o que seria um crime nefando e absolutamente indigno de leais cavaleiros como vós.

— Ele tem razão — pensou Athos.E como tudo o que se passava nessa alma, que só tinha pensamentos

nobres, o pensamento refletiu-se-lhe nos olhos.— Por isso mesmo — acudiu d'Artagnan para corrigir a esperança que a

adesão tácita de Athos dera a Mazarino — só recorremos à violência na derradeira extremidade.

— Se, pelo contrário — prosseguiu Mazarino — me soltardes, aceitando a vossa liberdade...

— Como quer Vossa Eminência que aceitemos a liberdade se Vossa Eminência pode retomá-la, como acaba de dizer, cinco minutos depois de outorgá-la? — interrompeu d'Artagnan. — E se bem o conheço, Vossa Eminência a retomará.

— Não, palavra de Cardeal... Não me acreditais?— Monsenhor, não creio em cardeais que não são padres.— Pois bem! palavra de ministro.— Vossa Eminência já não é ministro, é prisioneiro.— Então, palavra de Mazarino! Sou-o e hei de sê-lo sempre, segundo

espero.— Hum! — tornou d'Artagnan — já ouvi falar num Mazarino pouco

religioso nos juramentos e temo que seja um dos antepassados de Vossa Eminência.

— Sr. d'Artagnan — disse Mazarino — tendes muito espírito, e estou arrependidíssimo de me haver zangado convosco.

— Façamos as pazes, Monsenhor; não desejo outra coisa.— Pois bem! — disse Mazarino — e se eu vos puser em liberdade de

maneira evidente, palpável?...— Ah! isso é outra coisa — disse Porthos.— Vejamos — disse Athos.— Vejamos — disse d'Artagnan.— Mas dizei-me primeiro se aceitais — insistiu o Cardeal.— Explique-nos o plano, Monsenhor, e veremos.— Lembrai-vos de que estais encerrados, presos.— Sabe muito bem Vossa Eminência — disse d'Artagnan — que nos

restará sempre um último recurso.

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— Qual?— O de morrermos juntos. Mazarino estremeceu.— Ouvi — disse ele: — no fim do corredor há uma porta, cuja chave

está comigo; essa porta se abre para o parque. Levai a chave. Sois expeditos, vigorosos e estais armados. A cem passos, virando à esquerda, encontrareis o muro do parque, que escalareis, e em três saltos estareis na estrada e livres. Agora vos conheço o suficiente para saber que, se fordes atacados, o ataque não impedirá a vossa fuga.

— Ah! por Deus! Monsenhor — atalhou d'Artagnan — ainda bem, isso é que é falar! Onde está a chave que Vossa Eminência teve a bondade de oferecer-nos?

— Ei-la.— Ah! Monsenhor — volveu d'Artagnan — Vossa Eminência nos

conduzirá pessoalmente até à porta.— Com muito prazer — anuiu o Ministro — se for preciso para

tranqüilizar-vos.Mazarino, que não esperava livrar-se com tão pouco, dirigiu-se radiante

para o corredor e abriu a porta.Ela dava realmente para o parque, e os três fugitivos o perceberam pelo

vento que se precipitou no corredor e lhes atirou neve no rosto.— Diabo! diabo! — disse d’Artagnan — a noite está horrível,

Monsenhor. Não conhecemos o lugar e nunca seríamos capazes de encontrar o caminho. Já que Vossa Eminência se deu ao trabalho de vir até aqui, dê mais alguns passos... leve-nos até ao muro, Monsenhor.

— Seja — acedeu o Cardeal.E seguindo em linha reta, aproximou-se com passos rápidos do muro, ao

pé do qual se viram os quatro num abrir e fechar de olhos.— Estais contentes, senhores? — perguntou Mazarino. Pudera! Já seria

exigir demais! Puxa! Quanta honra!Três pobres cavaleiros escoltados por um príncipe da Igreja! Ah! a

propósito, Monsenhor, Vossa Eminência dizia, há pouco, que éramos expeditos, corajosos e que estávamos armados?

— Disse.— Pois engana-se Vossa Eminência: armados estamos apenas o Sr. du

Vallon e eu; não o está o Sr. Conde, e se topássemos com alguma patrulha seria preciso que pudéssemos defender-nos.

— É muito justo.— Onde encontraremos uma espada? — perguntou Porthos.— Monsenhor — disse d'Artagnan — emprestará ao Conde a sua, que

lhe é inútil.

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— Com muito gosto — anuiu o Cardeal; — rogo até ao Sr. Conde que fique com ela como lembrança minha.

— Isso é que é galanteza, Conde! — disse d'Artagnan.— Por isso mesmo — respondeu Athos — prometo a Vossa Eminência

que nunca me apartarei dela.— Bonito! — chasqueou d'Artagnan. — Como é tocante essa troca de

gentilezas! Não estás com lágrimas nos olhos, Porthos?— Estou — respondeu Porthos; — mas não sei se é isso ou se é o vento

que me faz chorar. Acho que é o vento.— Agora sobe Athos — disse d'Artagnan — e avia-te. Ajudado de

Porthos, que o levantou como a uma pluma,Athos escalou o muro. — Salta, Athos. Athos saltou e desapareceu do

outro lado.— Estás no chão? — perguntou d'Artagnan.— Estou.— Sem novidades?— Perfeitamente são e salvo.— Porthos, vigia o Sr. Cardeal enquanto eu subo; não, não preciso de ti,

subo sozinho. Só quero que vigies o Sr. Cardeal.— Eu vigio. E então ?...— Tens razão, é mais difícil do que eu supunha, empresta-me as tuas

costas, mas sem largares o Sr. Cardeal.— Não o largo.Porthos emprestou as costas a d'Artagnan, que, num ápice, graças a esse

apoio, se viu a cavalo sobre o muro. Mazarino fingia rir.— Chegastes? — perguntou Porthos.— Cheguei, meu amigo, e agora...— Agora o quê?— Agora, passa-me o Sr. Cardeal, e ao menor grito que ele soltar,

esgana-o.Mazarino quis reclamar; mas Porthos apertou-o com as duas mãos e

ergueu-o até d'Artagnan, que, por sua vez, o segurou pela gola e o sentou ao pé de si. Depois em tom ameaçador:

— Senhor, salte imediatamente para perto do Sr. de La Fere, ou mato-o, palavra de gentil-homem!

— Senhor, senhor — exclamou Mazarino — faltais à palavra empenhada.

— Eu? Quando lhe prometi alguma coisa, Monsenhor? Mazarino despediu um gemido.

— Estais livre por mim, senhor — disse ele — e a vossa liberdade era o

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meu resgate.— De acordo, mas o resgate daquele imenso tesouro escondido na

galeria e para o qual se desce comprimindo uma mola escondida na parede, a qual faz virar um caixote, que, virando, descobre uma escada, não merece que nos ocupemos um pouco dele, Monsenhor?

— Jesus! — bradou Mazarino, quase sufocado e juntando as mãos — Jesus meu Deus! Sou um homem perdido.

Mas, sem lhe dar atenção às lamúrias, d'Artagnan pegou-o por baixo do braço e deixou-o cair levemente nos braços de Athos, que permanecera impassível ao pé do muro.

Em seguida, voltando-se para Porthos:— Pega na minha mão — disse d'Artagnan; — estou segurando no muro.Porthos fez um esforço que sacudiu o muro e, por seu turno, chegou-lhe

ao topo.— Eu não tinha compreendido direito — disse ele — mas agora

compreendo; é muito engraçado.— Achas? — perguntou d’Artagnan; — tanto melhor! Mas para que

continue engraçado até o fim, não percamos tempo.E saltou.Porthos fez o mesmo.— Acompanhai o Sr. Cardeal, senhores, enquanto sondo o terreno —

disse d'Artagnan.O gascão puxou da espada e pôs-se a caminhar na frente.— Monsenhor — perguntou ele — que direção devemos tomar para

chegar à estrada? Reflita bem antes de responder; pois um equívoco de Vossa Eminência poderia ter gravíssimas conseqüências, não só para nós, mas também para si.

— Costeai o muro, senhor — disse Mazarino — e não podereis perder-vos.

Os três amigos apertaram o passo, mas, ao cabo de alguns instantes, se viram obrigados a diminuir a marcha; pois apesar de toda a boa vontade, o Cardeal não podia segui-los.

Súbito esbarrou d'Artagnan numa coisa morna, que fez um movimento.— Ué! um cavalo — disse ele; — acabo de achar um cavalo, senhores!— E eu também! — disse Athos.— E eu também! — disse Porthos, que, fiel à ordem recebida, segurava

o Cardeal pelo braço.— Eis o que se chama sorte, Monsenhor — continuou d'Artagnan; — no

momento em que Vossa Eminência se queixava de ser obrigado a ir a pé...Mas enquanto pronunciava essas palavras, um cano de pistola encostou-

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se-lhe ao peito e ele ouviu estas palavras pronunciadas gravemente:— Arredai-vos!— Grimaud! — exclamou — Grimaud! Que fazes aqui? É o céu que te

envia?— Não, senhor — retrucou o honesto criado — foi o Sr. Aramis que me

disse para tomar conta dos cavalos.— Aramis está aqui?— Desde ontem.— E que fazeis?— Estamos à espreita.— Que! Aramis está aqui? — repetiu Athos.— Ã porta pequena do castelo. Era lá o posto dele.— Mas, então, sois numerosos?— Somos sessenta.— Manda avisá-lo.— Já, já, senhor.E julgando que ninguém faria o recado melhor do que ele, partiu

Grimaud a correr, ao passo que, reunidos, os três amigos esperavam.Em todo o grupo, só o Sr. de Mazarino estava de muito mau humor.

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CAPÍTULO XXXI

EM QUE SE COMEÇA A ACREDITAR QUE PORTHOS SERÁ FINALMENTE BARÃO, E D'ARTAGNAN CAPITÃO

Ao cabo de dez minutos, chegou Aramis acompanhado de Grimaud e de oito ou dez cavaleiros. Radiante, atirou-se nos braços dos amigos. - Então estais livres, irmãos! Livres sem a minha ajuda! Não pude fazer nada por vós a despeito de todos os meus esforços!

— Não te aflijas, caro amigo. O que se adia não se perde. Se não pudeste fazer, ainda o farás.

— Entretanto, eu já tinha tomado as minhas precauções — disse Aramis. — Consegui sessenta homens do Sr. Coadjutor; vinte guardam os muros do parque, vinte a estrada de Rueil a Saint-Germain e vinte estão espalhados pelos bosques. Interceptei assim, e graças a essas disposições estratégicas, dois correios de Mazarino à Rainha.

Mazarino fitou os ouvidos.— Mas — sobreveio d'Artagnan — espero que os tenhas honestamente

devolvido ao Sr. Cardeal!— Pois sim! — tornou Aramis — logo com ele é que eu me lembraria de

semelhante delicadeza! Num dos ofícios declara o Cardeal à Rainha que os cofres estão vazios e que Sua Majestade já não tem dinheiro; no outro, anuncia que mandará transportar os prisioneiros a Melun, pois Rueil não lhe parece lugar muito seguro. Hás de compreender, caro amigo, que essa última carta me deixou esperançoso. Embosquei-me com os sessenta homens, cerquei o castelo, mandei aparelhar cavalos que confiei ao inteligente Grimaud, e esperei a vossa saída; supus que ela só se verificasse amanhã cedo e não esperava libertar-vos sem algumas escaramuças. Mas estais livres esta noite, livres sem combate, tanto melhor! Como fizestes para fugir ao salafrário do Mazarino? Deveis ter muitas queixas dele.

— Nem tantas — disse d'Artagnan.— Deveras?— Direi até que lhe devemos favores.— Impossível!— Pois é a pura verdade; é graças a ele que estamos livres.— Graças a ele?

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— Sim, ele nos fez conduzir à estufa pelo Sr. Bernouin, seu criado de quarto, e de lá o seguimos até ao quarto do Conde de La Fere. Ofereceu-se então para devolver-nos a liberdade, nós aceitamos, e ele levou a gentileza a ponto de mostrar-nos o caminho e conduzir-nos ao muro do parque, que acabávamos de escalar com a maior felicidade, quando encontramos Grimaud.

— Pois aí está uma coisa — disse Aramis — que me reconcilia com ele; eu gostaria de encontrá-lo aqui para poder dizer-lhe que não o cria capaz de tão boa ação.

— Monsenhor — disse d'Artagnan, incapaz de conter-se por mais tempo — permita que eu lhe apresente o Sr. Cavaleiro d'Herblay, que deseja apresentar, como há de ter ouvido, as suas respeitosas felicitações a Vossa Eminência.

E afastou-se, desmascarando Mazarino, confuso, aos olhos esparvados de Aramis.

— Oh! oh! — exclamou este último — o Cardeal? Que bela presa! Olá! Olá! amigos! os cavalos! os cavalos!

Alguns cavaleiros se aproximaram.— Por Deus! — disse Aramis — ainda acabei prestando para alguma

coisa. Monsenhor, digne-se Vossa Eminência receber todas as minhas homenagens! Aposto que foi aquele São Cristóvão o autor de mais essa façanha? A propósito, esquecia-me.

E deu, em voz baixa, uma ordem a um cavaleiro.— Creio que seria prudente partir — disse d'Artagnan.— Sim, mas eu espero alguém... um amigo de Athos.— Um amigo? — perguntou o Conde.— Pronto, ei-lo que vem a galope pelo meio das sarças.— Sr. Conde! Sr. Conde! — gritou uma voz moça que fez estremecer

Athos.— Raul! Raul! — exclamou o Conde de La Fere.Por um instante esqueceu o rapaz o respeito habitual; precipitou-se nos

braços do pai.— Veja, Sr. Cardeal: seria uma crueldade separar pessoas que se querem

como nos queremos! Senhores — continuou Aramis dirigindo-se aos cavaleiros cujo número aumentava a cada instante — senhores, cercai Sua Eminência para render-lhe homenagem; ele se digna conceder-nos o favor de sua companhia; espero que lhe sereis gratos. Porthos, não percas vista de Sua Eminência.

E Aramis juntou-se a d'Artagnan e Athos, que conferenciavam, e conferenciou com eles.

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— Vamos — disse d'Artagnan depois de cinco minutos de conferência — a caminho!

— Aonde? — perguntou Porthos.— À tua casa, caro amigo, a Pierrefonds; o teu formoso castelo é digno

de oferecer hospitalidade a Sua Eminência. De mais a mais, estando magnificamente situado, nem muito perto nem muito longe de Paris, poderemos estabelecer comunicações fáceis com a capital. Venha, Monsenhor, lá se sentirá Vossa Eminência como um príncipe, que é.

— Príncipe decaído — observou com lastimosa expressão Mazarino.— A guerra tem os seus altos e baixos, Monsenhor — respondeu Athos

— mas Vossa Eminência pode ter certeza de que não abusaremos deles.— Não, mas saberemos usá-los — prometeu d'Artagnan.Durante todo o resto da noite correram os raptores com a rapidez

infatigável de antanho; sombrio e pensativo, Mazarino deixava-se arrastar no meio daquela corrida de fantasmas.

De madrugada, tinham percorrido doze léguas sem descansar; a metade da escolta estava exausta, alguns cavales caíram.

— Os cavalos de hoje não são como os de outrora — observou Porthos; — tudo degenera.

— Mandei Grimaud a Dammartin — disse Aramis; — ele deve trazer-nos cinco cavalos descansados, um para Sua Eminência, quatro para nós. O principal é não deixarmos Sua Eminência; o resto da escolta nos alcançará depois; se passarmos Saint-Denis já não teremos nada que temer.

Grimaud trouxe, efetivamente, cinco cavalos; o senhor a que ele se dirigira, amigo de Porthos, apressara-se não em vendê-los, como lhe propuseram, mas em oferecê-los. Dez minutos depois, parava a escolta em Ermenonville; mas os quatro amigos corriam com novo ardor, escoltando o Sr. de Mazarino.

Ao meio-dia chegavam à entrada do castelo de Porthos.— Ah! — disse Mousqueton, colocado próximo a d’Artagnan e que não

dissera uma palavra durante todo o per-' curso; — acreditareis se quiserdes, senhor, mas esta é a primeira vez que respiro desde que saí de Pierrefonds.

E esporeou o cavalo para anunciar aos outros criados a chegada do Sr. du Vallon e seus amigos.

— Somos quatro — disse d'Artagnan aos companheiros; — poderemos revezar-nos para guardar Sua Eminência, e cada um de nós velará três horas. Athos vai visitar o castelo, que é preciso tornar inexpugnável em caso de cerco, Porthos cuidará dos abastecimentos e Aramis das entradas das guarnições; quer dizer, Athos será engenheiro-chefe, Porthos provedor-mor e Aramis governador da praça.

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Entrementes, instalaram Mazarino nos melhores aposentos do castelo.— Senhores — disse ele, terminada a instalação — imagino que não

pretendeis conservar-me incógnito aqui por muito tempo?— Não, Monsenhor — respondeu d'Artagnan; — muito pelo contrário,

tencionamos publicar logo que o temos prisioneiro.— Sereis cercados.— É o que esperamos. — E que fareis?— Defender-nos-emos. Se o finado Sr. Cardeal de Richelieu ainda fosse

vivo, contaria a Vossa Eminência certa história de um bastião de Saint-Gervais, onde nós quatro, com quatro criados e doze mortos, resistimos a um exército inteiro.

— Essas proezas só se fazem uma vez, senhor, e não se repetem.— Por isso mesmo não teremos hoje necessidade de ser tão heróicos;

amanhã será avisado o exército parisiense e depois de amanhã estará aqui. E a batalha, em vez de se travar em Saint-Denis ou em Charenton, travar-se-á cerca de Compiègne ou de Villers-Cotterets.

— O Sr. Príncipe vos derrotará, como sempre vos derrotou.— É possível, Monsenhor, mas antes da batalha conduziremos Vossa

Eminência a outro castelo do nosso amigo du Vallon, que tem mais três como este. Não queremos expor Vossa Eminência aos riscos da guerra.

— Vamos — disse Mazarino — vejo que me será preciso capitular.— Antes do cerco?— Sim, as condições talvez sejam melhores.— Ah! Monsenhor, no tocante às condições, Vossa Eminência verá

como somos razoáveis.— Quais são, afinal, as condições?— Descanse primeiro Vossa Eminência; entrementes, refletiremos.— Não tenho necessidade de descanso, senhores, tenho necessidade de

saber se estou entre mãos amigas ou inimigas.— Amigas, Monsenhor, amigas!— Pois bem, dizei-me logo, então, o que desejais a fim de que eu veja se

é possível um acordo entre nós. Falai, Sr. Conde de La Fere.— Monsenhor — disse Athos — não tenho nada que pedir para mim e

teria muito que pedir para a França. Recuso-me, portanto, e passo a palavra ao Sr. Cavaleiro d'Herblay.

Inclinando-se, Athos deu um passo para trás e permaneceu em pé, encostado à lareira, como simples espectador da conferência.

— Falai, então, Sr. Cavaleiro d'Herblay — disse o Cardeal. — Que desejais? Nada de ambages, nada de ambigüidades. Sede claro, conciso e explícito.

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— Porei as cartas na mesa, Monsenhor.— Mostrai o vosso jogo.— Tenho no bolso — disse Aramis — o programa das condições

impostas ontem em Saint-Germain pela deputação de que eu fazia parte. Respeitemos primeiro os direitos antigos; as exigências expressas no programa serão satisfeitas.

— Já estávamos quase de acordo sobre elas — afirmou Mazarino; — passemos às condições particulares.

— Acredita Vossa Eminência que as haverá? — perguntou, sorrindo, Aramis.

— Acredito que não tereis todos o mesmo desinteresse do Sr. Conde de La Fere — respondeu Mazarino voltando-se para Athos e cumprimentando-o.

— Ah! Monsenhor — disse Aramis — Vossa Eminência tem razão e folgo em ver que, finalmente, faz justiça ao Conde. O Sr. de La Fere é um espírito superior, que paira acima dos desejos vulgares e das paixões humanas; é uma alma antiga e sobranceira. O Sr. Conde é um homem à parte. Vossa Eminência tem razão, não lhe chegamos aos pés e somos os primeiros a confessá-lo.

— Aramis — acudiu Athos — estás caçoando?— Não, meu caro Conde, não, digo o que pensamos e o que pensam

todos os que te conhecem. Mas tens razão, não é de ti que se trata, é de Monsenhor e de seu indigno servidor, o Cavaleiro d'Herblay.

— E então? Que desejais, senhor, além das condições gerais a cujo respeito voltaremos a falar?

— Desejo, Monsenhor, que a Normandia seja entregue à Sra. de Longueville, com plena e inteira absolvição, e quinhentas mil libras. Desejo que Sua Majestade o Rei haja por bem apadrinhar o filho que ela acaba de dar à luz; e desejo que Vossa Eminência, depois de ter assistido ao batismo, vá apresentar as suas homenagens ao nosso Santo Padre, o Papa.

— Em outras palavras, desejais que eu me demita das funções de ministro, que deixe a França, que me exile?

— Quero que Vossa Eminência seja Papa na primeira vaga, reservando-me eu o direito de pedir-lhe então indulgências plenárias para mim e para os meus amigos.

Mazarino fez uma careta intraduzível.— E vós, senhor? — perguntou a d'Artagnan.— Eu, Monsenhor — respondeu o gascão — estou inteiramente de

acordo com o Sr. Cavaleiro d'Herblay, exceto no que concerne ao último artigo, em que discordo inteiramente dele. Longe de querer que Vossa

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Eminência deixe a França, quero que fique em Paris; longe de desejar que Vossa Eminência seja Papa, desejo que continue Primeiro Ministro, pois Vossa Eminência é um grande político. Procurarei até, na medida de minhas forças, fazer que Vossa Eminência derrote a Fronda; mas com a condição de que se lembre um pouco dos fiéis servidores do Rei e dê a primeira companhia de mosqueteiros a uma pessoa que indicarei. E tu, du Vallon?

— Sim, por vosso turno, senhor — disse Mazarino — falai.— Eu — declarou Porthos — quisera que o Sr. Cardeal, para honrar

minha casa que lhe deu asilo, houvesse por bom, em memória desta aventura, elevar a minha propriedade a baronia, e conferir a ordem do Espírito Santo a um amigo meu na primeira promoção autorizada por Sua Majestade.

— Sabeis, senhor, que para receber a ordem é preciso ter as suas provas feitas.

— Esse amigo as terá. Aliás, se fosse absolutamente necessário, Vossa Eminência lhe diria como se evita a formalidade.

Mazarino mordeu os lábios, pois o golpe era direto, e disse, seco:— A meu ver, senhores, tudo isso se concilia muito mal; se satisfaço

uns, descontento necessariamente os outros. Se fico em Paris, não posso ir a Roma, se sou Papa, não sou Ministro, se não sou Ministro não posso fazer o Sr. d’Artagnan capitão nem o Sr. du Vallon barão.

— É verdade — concordou Aramis. — Por isso mesmo, como estou em minoria, retiro a proposta da viagem a Roma e da demissão de Vossa Eminência.

— Continuo Ministro? — perguntou Mazarino.— Continua Ministro, está combinado, Monsenhor — disse d'Artagnan;

— a Franca precisa de Vossa Eminência.— E eu desisto de minhas pretensões — tornou Aramis — Vossa

Eminência continuará Primeiro Ministro e até favorito de Sua Majestade, se quiser conceder-me, a mim e a meus amigos, o que pedimos para a França e para nós.

— Ocupai-vos de vós, senhores, e deixai que a França se arrume comigo como entender — redargüiu Mazarino.

— Nada disso! nada disso! — volveu Aramis — é preciso fazer um tratado com os frondistas e Vossa Eminência terá a bondade de redigi-lo e assiná-lo em nossa presença, comprometendo-se, pelo mesmo tratado, a obter a ratificação da Rainha.

— Só posso responder por mim — disse Mazarino — não posso responder pela Rainha. E se Sua Majestade recusar?

— Oh! — acudiu d'Artagnan — Vossa Eminência sabe muito bem que

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Sua Majestade não pode recusar-lhe coisa alguma.— Pronto, Monsenhor — disse Aramis — eis aqui o tratado proposto

pela deputação dos frondistas; tenha Vossa Eminência a bondade de o ler e examinar.

— Já o conheço — respondeu Mazarino.— Queira, então, assiná-lo.— Refleti, senhores, que uma assinatura dada nestas circunstâncias

poderia ser considerada como arrancada à força.— Dirá Vossa Eminência que foi dada voluntariamente.— Mas, afinal, e se eu recusar?— Nesse caso, Monsenhor — disse d'Artagnan — será Vossa Eminência

o único responsável pelas conseqüências da recusa.— Ousaríeis levantar a mão para um Cardeal?— Vossa Eminência bem que a levantou para mosqueteiros de Sua

Majestade!— A Rainha me vingará, senhores!— Não creio, embora não lhe falte vontade; mas iremos a Paris com

Vossa Eminência, e os parisienses saberão defender-nos...— Como não estarão inquietos, neste momento, em Rueil e em Saint-

Germain! — sobreveio Aramis; — como hão de perguntar onde está o Cardeal, o que foi feito do Ministro, por onde terá passado o favorito! Como devem estar à procura de Vossa Eminência em todos os cantos e recantos! Como devem fervilhar os comentários, e se a Fronda já sabe do desaparecimento de Vossa Eminência, como deve triunfar!

— É horrível — murmurou Mazarino.— Pois assine o tratado, Monsenhor — disse Aramis.— E se eu o assinar e a Rainha não quiser ratificá-lo?— Encarrego-me de ir à presença de Sua Majestade — declarou

d'Artagnan — e conseguir-lhe a assinatura.— Cuidado! — volveu Mazarino — podereis não receber em Saint-

Germain a acolhida que cuidais ter o direito de esperar.— Ora! — tornou d'Artagnan — darei um jeito de ser bem recebido;

conheço um meio.— Qual?— Levarei a Sua Majestade a carta em que Vossa Eminência lhe anuncia

o completo esgotamento das finanças.— E depois? — continuou Mazarino, empalidecendo.— Depois, quando eu vir Sua Majestade no auge do enleio, levá-la-ei a

Rueil, fá-la-ei entrar na estufa e lhe indicarei certa mola que faz mover um caixote.

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— Basta, senhor — murmurou o Cardeal — basta! Onde está o tratado?— Ei-lo — disse Aramis.— Como vedes, somos generosos — volveu d'Artagnan — pois

poderíamos fazer muita coisa com um segredo desses.— Assine, Eminência — acudiu Aramis, apresentando-lhe a pena.Ergueu-se Mazarino, deu alguns passos, mais pensativo que abatido.

Logo, estacando de golpe:— E quando eu tiver assinado, senhores, qual será a minha garantia?— A minha palavra de honra — disse Athos. Mazarino estremeceu,

voltou-se para o Conde de La Fere, examinou-lhe por um instante o rosto nobre e leal e, pegando na pena:

— Isso me basta, Sr. Conde. E assinou.— E, agora, Sr. d'Artagnan — acrescentou — preparai-vos para ir a

Saint-Germain e levar uma carta minha a Sua Majestade.

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CAPÍTULO XXXII

ONDE SE VÊ QUE COM UMA PENA E UMA AMEAÇA SE FAZ MAIS E MAIS DEPRESSA QUE COM A ESPADA E DEDICAÇÃO

D'ARTAGNAN conhecia a sua mitologia; não ignorava que a ocasião tem uns poucos fios de cabelo pela qual pode ser agarrada, e não era homem que a deixasse passar sem lhe empolgar o topete. Organizou um sistema de viagem rápido e seguro, mandando de antemão cavalos de muda a Chantilly, a fim de poder chegar a Paris em cinco ou seis horas. Mas, antes de partir, refletiu que, para um rapaz inteligente e experimentado, era singular a idéia de buscar o incerto deixando o certo atrás de si.

— Com efeito — disse consigo mesmo ao montar a cavalo para executar a perigosa missão — Athos é um herói de romance pela generosidade; Porthos, uma criatura excelente, mas muito influenciável; Aramis, um rosto hieroglífico, isto é, sempre ilegível. Que produzirão esses três elementos quando eu não estiver presente para congraçá-los?... talvez a libertação, do Cardeal. Ora, a libertação do Cardeal é a ruína de nossas esperanças, e as nossas esperanças são, até agora, a única recompensa de vinte anos de serviços, diante dos quais são obra de pigmeus os trabalhos de Hércules.

Foi ter com Aramis.— Tu és, meu caro Cavaleiro d'Herblay — disse-lhe ele — a encarnação

da Fronda. Por conseguinte, desconfia de Athos, que não trata dos interesses de ninguém, nem sequer dos seus. Desconfia, sobretudo, de Porthos, que, para agradar ao Conde, que ele considera como a Divindade sobre a terra, o ajudará a libertar Mazarino, se Mazarino tiver a inteligência de chorar ou de mostrar-se gentil-homem.

Aramis sorriu o seu sorriso malicioso e resoluto.— Não temas — disse ele — tenho condições a impor. Não trabalho

para mim, mas para os outros. É preciso que a minha ambiçãozinha resulte em benefício de quem de direito.

— Bom — pensou d'Artagnan — por esse lado estou tranqüilo.Apertou a mão de Aramis e saiu em busca de Porthos.— Amigo — disse-lhe — trabalhaste tanto comigo para edificar a nossa

fortuna, que, no momento em que estamos para colher o fruto de nossos trabalhos, cairias num logro ridículo se te deixasses dominar por Aramis,

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cuja sagacidade conheces, sagacidade que, podemos dizer entre nós, nem sempre é isenta de egoísmo; ou por Athos, homem nobre e desinteressado, mas indiferente a tudo e que, não desejando mais nada para si, não compreende que os outros possam ter desejos. Que dirias se um ou outro dos nossos amigos te propusesse deixar fugir Mazarino?

— Eu diria que nos custou muito agarrá-lo para largá-lo assim.— Bravo! Porthos, meu amigo; pois, com ele, largarias a tua baronia,

que já tens nas mãos; sem contar que, fora daqui, Mazarino te mandaria enforcar.

— Bom! Imaginas isso?— Tenho certeza.— Nesse caso, mato tudo mas não o deixo fugir.— E terias razão. Não podemos, como hás de compreender, no momento

de vermos realizadas as nossas aspirações, deixar que se realizem as dos frondistas, que não entendem de política como nós, velhos soldados.

— Não tenhas medo, caro amigo — disse Porthos; — vejo-te pela janela montar a cavalo, acompanho-te com a vista até desapareceres e volto a instalar-me à porta do Cardeal, uma porta envidraçada que dá para o quarto. De lá verei tudo, e, ao menor gesto suspeito, extermino-o.

— Bravo! — pensou d'Artagnan — creio que, por esse lado, o Cardeal ficará bem guardado.

E, apertando a mão do senhor de Pierrefonds foi à procura de Athos.— Meu caro Athos — disse ele — vou partir. Só te digo uma coisa:

conheces Ana d'Áustria, e o cativeiro do Sr. de Mazarino é a garantia única de minha vida, se o largas, estou morto.

— Só uma consideração dessa monta, meu caro d’Artagnan, seria capaz de decidir-me a fazer o ofício de carcereiro. Dou-te a minha palavra de que tornarás a encontrar o Cardeal onde o deixas.

— Eis o que me tranqüiliza mais do que todas as assinaturas reais — pensou d'Artagnan. — Agora que tenho a palavra de Athos, posso partir.

E partiu, sem outra escolta que a sua espada e um salvo-conduto de Mazarino para chegar à Rainha.

Seis horas depois, estava em Saint-Germain.O desaparecimento de Mazarino ainda era ignorado; somente Ana

d'Áustria o sabia e escondia dos mais íntimos a sua inquietação. Tinham sido encontrados no quarto de d’Artagnan e de Porthos os dois soldados amarrados e amordaçados. Fora-lhes imediatamente devolvido o uso dos membros e da palavra; mas eles não tinham outra coisa para dizer senão o que sabiam, isto é, a maneira como haviam sido fisgados, atados e despojados. Mas o que tinham feito Porthos e d’Artagnan depois de saírem,

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por onde haviam entrado os soldados, era o que ignoravam tanto quanto os mais habitantes do castelo.

Só Bernouin sabia um pouco mais do que os outros. Não vendo voltar o amo e ouvindo bater meia-noite, decidira, por sua conta e risco, ir à estufa. A primeira porta, barricada com os móveis, já lhe inspirara desconfianças; entretanto, não quisera comunicá-las a ninguém e, paciente, abrira caminho pelo meio de toda aquela barafunda. Em seguida chegara ao corredor, cujas portas encontrara abertas. O mesmo acontecera com a porta do quarto de Athos e a do parque. Lá, não lhe fora difícil seguir as passadas sobre a neve. Vira que elas terminavam ao pé do muro; do outro lado, encontrara as mesmas pegadas, logo rastos de cavalo e, por fim, vestígios de uma tropa de cavalaria, que se afastara na direção de Enghien. Desde então não tivera dúvida nenhuma de que o Cardeal fora raptado pelos três prisioneiros, visto que os prisioneiros haviam desaparecido com ele, e correra a Saint-Germain a fim de inteirar a Rainha do sucedido.

Ana d'Áustria recomendara-lhe silêncio, e Bernouin guardara-o escrupulosamente; mas ela mandara avisar o Sr. Príncipe, ao qual contara tudo, e o Sr. Príncipe ordenara imediatamente a quinhentos ou seiscentos cavaleiros que esquadrinhassem os arredores e trouxessem de volta a Saint-Germain toda e qualquer tropa suspeita que se afastasse de Rueil, fosse qual fosse a direção tomada.

Ora, como d'Artagnan não formasse urna tropa, visto que ia sozinho, como não se afastasse de Rueil, visto que ia a Saint-Germain, ninguém lhe prestou atenção, e a sua viagem terminou sem dificuldades.

Ao entrar no pátio do velho castelo, a primeira pessoa que viu o nosso embaixador foi mestre Bernouin, que, de pé, na soleira, esperava notícias do amo desaparecido.

À vista de d'Artagnan, que entrava a cavalo no pátio principal, Bernouin esfregou os olhos e cuidou que se enganava. Mas d'Artagnan fez-lhe com a cabeça um sinalzinho amistoso, apeou e, atirando as rédeas do cavalo nos braços de um lacaio que passava, aproximou-se do escudeiro com um sorriso nos lábios.

— Sr. d'Artagnan! — exclamou este último, como um homem que sofre um pesadelo e fala dormindo; — Sr. d’Artagnan!

— Em pessoa, Sr. Bernouin.— E que vindes fazer aqui?— Trazer notícias do Sr. de Mazarino, e das mais frescas. — Que é feito

dele?— Está passando como vós e eu.— Não lhe sucedeu nada de mal?

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— Absolutamente nada. Apenas sentiu a necessidade de dar um giro pela Ilha de França e nos pediu, ao Sr. Conde de La Fere, ao Sr. du Vallon e a mim, que o acompanhássemos. Ora, nós lhe somos tão afeiçoados que não podíamos recusar semelhante pedido. Saímos, portanto, ontem à noite e eis-nos aqui.

— Eis-vos aqui.— Sua Eminência tinha qualquer coisa para comunicar a Sua Majestade,

qualquer coisa de muito secreto e muito íntimo, uma missão que só podia cometer a um homem de confiança, de sorte que me mandou a Saint-Germain. Por conseguinte, meu caro Sr. Bernouin, se desejais fazer alguma coisa agradável a vosso amo, avisai Sua Majestade da minha chegada e do propósito que me trouxe.

Estivesse ou não falando sério, era d'Artagnan, manifestamente, naquelas circunstâncias, o único homem capaz de serenar as inquietações de Ana d'Áustria. Bernouin, por isso mesmo, apressou-se em participar-lhe a singular embaixada e, como previra, a Rainha lhe ordenou levasse incontinenti o mosqueteiro à sua presença.

D'Artagnan aproximou-se da soberana com todos os sinais do mais profundo respeito.

Chegado a três passos dela, pôs um joelho em terra e apresentou-lhe a carta.

Era, como já dissemos, uma simples carta, metade de apresentação, metade de credenciais. A Rainha leu-a, reconheceu perfeitamente a letra do Cardeal, se bem um pouco tremida; e como a carta não lhe dissesse nada do que se passara, pediu pormenores.

D'Artagnan contou-lhe tudo com o ar ingênuo e simples que tão bem sabia assumir em certas conjunturas.

À proporção que ele falava, a Rainha considerava-o com pasmo progressivo; não compreendia que um homem ousasse conceber tal empresa e muito menos tivesse a audácia de contá-la a quem desejaria e até deveria castigá-lo.

— Como, senhor! — exclamou, rubra de indignação, quando d'Artagnan concluiu a narrativa — ousais confessar-me o vosso crime! contar-me a vossa traição!

— Perdão, senhora, mas parece-me que eu não soube explicar-me ou que Vossa Majestade não me compreendeu; não há nisso crime nem traição. O Sr. de Mazarino nos conservava presos, ao Sr. du Vallon e a mim, porque não pudemos crer que ele nos enviasse à Inglaterra para vermos tranqüilamente decapitarem o Rei Carlos I, cunhado do finado e real esposo de Vossa Majestade, marido da Sra. Henriqueta, irmã e hóspede de Vossa

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Majestade, e fizemos quanto se achava ao nosso alcance para salvar a vida do mártir real. Estávamos, portanto, convencidos, meu amigo e eu, de que havia nisso tudo algum equívoco de que éramos vítimas, e de que urgia uma explicação entre Sua Eminência e nós. Ora, para que uma explicação produza frutos, cumpre que se faça tranqüilamente, longe do arruído dos importunos. Conseqüentemente, levamos o Sr. Cardeal ao castelo do meu amigo e lá nos explicamos. Pois bem! Senhora, o que tínhamos previsto aconteceu, havia um equívoco. O Sr. de Mazarino pensara que tínhamos servido o General Cromwell, em vez de servirmos o Rei Carlos, o que teria sido uma vergonha, que de nós se refletiria nele, e dele em Vossa Majestade, uma covardia capaz de manchar em sua haste a realeza do ilustre filho de Vossa Majestade. Nós lhe demos a prova do contrário, e estamos prontos a dá-la também a Vossa Majestade, apelando para a augusta viúva que chora no Louvre, onde a alojou a real munificência de Vossa Majestade. E essa prova satisfê-lo tão bem que, em sinal de contentamento me enviou, como Vossa Majestade pode ver, para conversar com Vossa Majestade sobre as reparações naturalmente devidas a cavaleiros mal apreciados e injustamente perseguidos.

— Eu vos ouço e admiro, senhor — disse Ana d'Áustria. — Em realidade, raro tenho visto tamanho excesso de impudência.

— Aí está Vossa Majestade enganando-se também acerca das nossas intenções, como fez o Sr. de Mazarino — volveu d'Artagnan.

— Não há tal, senhor — disse a Rainha — e tanto não estou enganada que daqui a dez minutos estareis preso e eu partirei, à frente do meu exército, para libertar o meu Ministro.

— Tenho certeza de que Vossa Majestade não cometerá semelhante imprudência — voltou d'Artagnan — porque seria inútil e acarretaria os mais graves resultados. Antes de ser libertado, o Sr. Cardeal seria morto, e Sua Eminência está tão convencido da verdade do que digo que, pelo contrário, me pediu, caso eu visse Vossa Majestade nessas disposições, que fizesse o possível para despersuadi-la.

— Muito bem! contentar-me-ei, então, com mandar-vos prender.— Também não, senhora, pois a hipótese da minha prisão foi tão bem

prevista quanto a da libertação do Cardeal. Se amanhã, a uma certa hora, eu não tiver voltado, depois de amanhã cedo o Sr. Cardeal será conduzido a Paris.

— Vê-se bem, senhor, que viveis, pela vossa posição, longe dos homens e das coisas; pois do contrário saberíeis que o Sr. Cardeal esteve umas cinco ou seis vezes em Paris, depois que deixamos a capital, onde conferenciou com o Sr. de Beaufort, o Sr. de Bouillon, o Sr. Coadjutor, o Sr. d'Elbeuf, e

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nenhum teve a idéia de mandá-lo prender.— Perdão, senhora, eu sei de tudo isso; por isso mesmo não será nem ao

Sr. de Beaufort, nem ao Sr. de Bouillon, nem ao Sr. Coadjutor, nem ao Sr. d'Elbeuf que os meus amigos conduzirão o Sr. Cardeal, visto que esses senhores fazem a guerra por conta própria e bastaria ao Sr. Cardeal conceder-lhes o que desejam para tê-los por si; mas sim ao Parlamento, que separadamente pode ser comprado, sem dúvida, mas que nem o Sr. de Mazarino tem dinheiro suficiente para comprar em massa.

— Creio — disse Ana d'Áustria fixando o olhar, que, desdenhoso numa mulher, era terrível numa rainha — creio que ameaçais a mãe de vosso rei.

— Senhora — replicou d'Artagnan — ameaço porque a tanto me vejo obrigado. Elevo-me para me colocar à altura dos acontecimentos e das pessoas. Mas creia, senhora, uma coisa: assim como é verdade que há um coração que bate por Vossa Majestade neste peito, assim também tem sido Vossa Majestade o ídolo constante de nossa vida, que vinte vezes arriscamos por Vossa Majestade. Não se apiedará Vossa Majestade de seus servidores, que há vinte anos vegetam na sombra, sem deixar escapar nem um suspiro os santos e solenes segredos que tiveram a ventura de partilhar consigo? Olhe para mim, para mim que lhe falo, senhora, para mim que Vossa Majestade acusa de elevar a voz e assumir um tom ameaçador. Que sou eu? Um pobre oficial sem fortuna, sem amparo, sem futuro, se o olhar de minha rainha, que tanto tempo procurei, não se fitar um momento em mim. Olhe para o Sr. Conde de La Fere, tipo de nobreza, flor de fidalguia; tomou partido contra a sua rainha, ou melhor, não, tomou partido contra o seu ministro, e nada exige, que eu saiba. Olhe, enfim, para o Sr. du Vallon, alma fiel, braço de aço, que há vinte anos espera ouvir da boca de Vossa Majestade uma palavra que o faça pelo brasão o que ele já é pelo sentimento e pelo valor. Olhe para o povo, que há de sei alguma coisa para uma rainha, o povo que a ama e, no entanto, sofre, que Vossa Majestade ama mas que tem fome, que só deseja abençoá-la e que, no entanto, Vossa Majestade... Não, eu disse mal, o povo nunca a maldirá, senhora. Pois bem! diga Vossa Majestade uma palavra, e tudo estará acabado, a paz sucederá à guerra, a alegria às lágrimas, a ventura às calamidades.

Ana d'Áustria considerou com certo assombro o rosto marcial de d'Artagnan, em que transluzia singular expressão de enternecimento.

— Por que não dissestes tudo isso antes de agir? — perguntou ela.— Porque, senhora, era preciso demonstrar a Vossa Majestade uma coisa

de que, segundo me parece, Vossa Majestade duvidava: a saber, que ainda temos algum valor e que é justo que se faça algum caso de nós.

— E esse valor não recuaria diante de nada, pelo que vejo?

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— Não recuou diante de nada no passado — retrucou d'Artagnan; — por que recuaria no futuro?

— E esse valor, em caso de recusa e, portanto, em caso de luta, chegaria até a raptar-me a mim mesma, do meio da minha corte, para entregar-me à Fronda, como pretendeis entregar o meu ministro?

— Nunca pensamos nisso, senhora — disse d'Artagnan com a sua fanfarrice de gascão, que nele não passava de ingenuidade; — mas se nós quatro tivéssemos decidido fazê-lo, com toda certeza o faríamos.

— Eu devia sabê-lo — murmurou Ana d'Áustria — são homens de ferro.— Ai! senhora — acudiu d'Artagnan — isso demonstra que somente

hoje formou Vossa Majestade uma idéia precisa de nós.— Bem — disse Ana — mas se enfim a formei...— Vossa Majestade nos fará justiça. Fazendo-nos justiça, nunca mais

nos tratará como homens vulgares. Verá em mim um embaixador digno dos altos interesses que estou encarregado de discutir com Vossa Majestade.

— Onde está o tratado?— Aqui.

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CAPÍTULO XXXIII

ONDE SE VÊ QUE COM UMA PENA E UMA AMEAÇA SE FAZ MAIS E MAIS DEPRESSA QUE COM A ESPADA E DEDICAÇÃO

(Continuação)

ANA d'Áustria relanceou os olhos pelo tratado que lhe apresentava d'Artagnan.

— Só vejo aqui — disse ela, condições gerais. Os interesses do Sr. Conti, do Sr. de Beaufort, do Sr. de Bouillon, do Sr. d'Elbeuf e do Sr. Coadjutor estão especificados. E os vossos?

— Fazemos justiça a nós mesmos, senhora, colocando-nos na posição que nos compete. Julgamos que os nossos nomes não são dignos de figurar entre esses grandes nomes.

— Mas vós, vós não renunciastes, imagino eu, a expor-me de viva voz as vossas pretensões?

— Creio que Vossa Majestade é uma grande e poderosa rainha, e que seria indigno do poder e da grandeza de Vossa Majestade não recompensar condignamente os braços que trarão de volta Sua Eminência a Saint-Germain.

— É a minha intenção — disse a Rainha; — vejamos, falai.— O que tratou do caso (perdão se começo por mim, mas ê preciso que

eu dê a mim mesmo a importância, não que tomei, mas que me concederam), o que tratou do caso do resgate do Sr. Cardeal deve ser, segundo me parece, para que a recompensa não fique aquém de Vossa Majestade, deve ser nomeado chefe dos guardas, capitão dos mosqueteiros.

— É o lugar do Sr. de Tréville que me pedis!— O lugar está vago, senhora, e desde que o Sr. de Tréville o deixou, há

coisa de um ano, ainda não foi provido.— Mas é um dos primeiros cargos militares da casa real!— O Sr. de Tréville era um simples caçula da Gasconha, como eu, e

ocupou-o durante vinte anos.— Tendes resposta para tudo, senhor — disse Ana d'Áustria.E tirou de cima de uma escrivaninha um alvará, que preencheu e assinou.— Sem dúvida, senhora — disse d'Artagnan pegando no alvará e

inclinando-se — eis uma bela e nobre recompensa; mas as coisas deste

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mundo são cheias de instabilidade, e um homem que caísse no desagrado de Vossa Majestade perderia esse cargo amanhã.

— Que mais quereis, então? — perguntou a Rainha, purpureando-se ao ver-se compreendida por aquele espírito tão sutil quanto o seu.

— Cem mil libras para o pobre capitão de mosqueteiros, pagáveis no dia em que os seus serviços forem dispensados por Vossa Majestade.

Ana hesitou.— E dizer-se que os parisienses — continuou d'Artagnan — ofereciam

outro dia, por decreto do Parlamento, seiscentas mil libras a quem lhes entregasse o Cardeal morto ou vivo; vivo, para enforcá-lo; morto, para arrastá-lo pelas ruas.

— Vamos — disse Ana d'Áustria — é razoável, visto que pedis à Rainha a sexta parte do que oferece o Parlamento.

E assinou uma promessa de cem mil libras.— Depois? — disse ela.— Senhora, o meu amigo du Vallon é rico e, por conseguinte, nada

deseja, em matéria de dinheiro; mas, se não me engano, foi tratado entre ele e o Sr. de Mazarino a elevação de sua propriedade a baronia. E, se bem me recordo, há até uma promessa nesse sentido.

— Um labrego! — disse Anda d'Áustria. — Causaria riso!— Pode ser — respondeu d'Artagnan. — Mas tenho certeza de uma

coisa: os que se rissem diante dele não ririam duas vezes.— Vá lá a baronia — assentou Ana d'Áustria; e assinou.— Agora, resta o Cavaleiro ou Padre d'Herblay, como queira Vossa

Majestade.— Quer ser bispo?— Não, senhora, deseja coisa mais fácil.— O quê?— Que El-Rei se digne apadrinhar o filho da Sra. de Longueville.A Rainha sorriu.— O Sr. de Longueville é de estirpe real — disse d’Artagnan.— Sim — concedeu a Rainha; — e o filho?— O filho... deve ser, já que o é o marido de sua mãe.— E o vosso amigo não quer pedir mais nada para a Sra. de

Longueville?— Não, senhora; pois presume que El-Rei, dignando-se apadrinhar o

filho, não pode dar à mãe, como presente de batizado, menos de quinhentas mil libras, a garantir, bem entendido, ao pai, o governo da Normandia.

— No que concerne ao governo da Normandia, creio poder prometê-lo — disse a Rainha; — mas quanto às quinhentas mil libras, o Sr. Cardeal não

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cessa de repetir-me que já não há dinheiro nos cofres do Estado.— Haveremos de procurá-lo juntos, se Vossa Majestade o permitir, e

saberemos encontrá-lo.— E depois?— Depois, senhora?...— Sim.— É só.— Não tendes um quarto companheiro?— Temos: o Sr. Conde de La Fere.— Que é que ele quer?— Não quer nada.— Nada?— Nada.— Haverá no mundo um homem que, podendo pedir, não pede?— Há o Sr. Conde de La Fere; o Sr. Conde de La Fere não é um homem.— Que é, então?— O Sr. Conde de La Fere é um semideus.— Não tem ele um filho, um rapaz, um parente, um sobrinho, que

Comminges me assegurou ser um moço corajoso e que trouxe com o Sr. de Châtillon as bandeiras de Lens?

— Tem, como diz Vossa Majestade, um pupilo que se chama o Visconde de Bragelonne.

— Se se desse ao rapaz um regimento, que diria o tutor?— Talvez o aceitasse.— Talvez!— Sim, se Vossa Majestade instasse pessoalmente com ele.— De fato, eis aí um homem singular. Pois bem, refletiremos nisso e

talvez o façamos. Estais satisfeito?— Sim, Majestade. Mas há uma coisa que a Rainha não assinou.— Que coisa?— A mais importante.— A ratificação do tratado?— Sim.— Para quê? Assinarei amanhã.— Creio poder afirmar a Vossa Majestade — insistiu d'Artagnan: —

que, se não assinar hoje a ratificação, não terá tempo de assiná-la mais tarde. Digne-se pois, eu lhe suplico, escrever em baixo do programa, que foi todo redigido pelo Sr. de Mazarino, como se pode ver:

"Consinto em ratificar o tratado proposto pelos parisienses. "Não podendo recuar, Ana assinou. Mas assim que o fez, o orgulho

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sacudiu-a como uma tempestade e ela desandou a chorar.D'Artagnan estremeceu diante daquelas lágrimas. Já nesse tempo as

rainhas choravam como simples mulheres.O gascão sacudiu a cabeça. As lágrimas reais pareciam queimar-lhe o

coração.— Senhora — disse ele, ajoelhando-se — olhe para o infeliz gentil-

homem que está aos pés de Vossa Majestade e acredite que a um gesto de Vossa Majestade tudo lhe será possível. Tem fé em si mesmo, tem fé nos amigos e quer também ter fé em sua rainha; e a prova de que nada receia, de que não especula com nada, é que trará o Sr. de Mazarino a Vossa Majestade incondicionalmente. Aqui estão, senhora, as sagradas assinaturas de Vossa Majestade; se julgar que deve restituir-mas, fá-lo-á. Mas, a partir deste momento, está Vossa Majestade desobrigada de quaisquer compromissos.

E d'Artagnan genuflexo, com o olhar cintilante de orgulho e de máscula intrepidez, devolveu em massa a Ana d'Áustria todos os papéis que lhe arrancara um a um, com tanto esforço.

Há momentos, pois se nem tudo é bom, nem tudo é mau neste mundo, há momentos em que, nos corações mais secos e mais frios, germina, regado pelo pranto de extrema comoção, um sentimento generoso, que o cálculo e o orgulho abafam se outro sentimento não o senhoreia ao nascer. Ana se encontrava num momento desses. Cedendo à própria emoção, em harmonia com a da Rainha, realizara d'Artagnan obra de profunda diplomacia; viu, portanto, imediatamente recompensados o seu desinteresse ou a sua habilidade, conforme se queira atribuir ao coração ou ao espírito o motivo do gesto.

— Tínheis razão, senhor — disse Ana — eu não vos dei o devido valor. Eis aqui os atos assinados, que vos devolvo livremente; ide e trazei-me quanto antes o Cardeal.

— Senhora — acudiu d'Artagnan — há vinte anos, bem me recordo, atrás de um reposteiro do Paço Municipal, tive a honra de beijar uma das formosas mãos de Vossa Majestade.

— Pois aqui está a outra — disse a Rainha — e para que a esquerda não seja menos liberal do que a direita (tirou do dedo um brilhante, mais ou menos parecido com o primeiro), tomai e guardai esse anel como lembrança minha.

— Senhora — exclamou, erguendo-se, d'Artagnan — agora só tenho um desejo: que o primeiro pedido de Vossa Majestade seja a minha vida.

E com o desempeno que era só seu, levantou-se e saiu.— Eu nunca soube apreciar devidamente o valor desses homens —

murmurou Ana d'Áustria vendo afastar-se d’Artagnan — e agora já é muito

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tarde para utilizar-se deles; daqui a um ano El-Rei será maior!Quinze horas depois, d'Artagnan e Porthos traziam Mazarino à Rainha, e

recebiam, um a patente de tenente-capitão dos mosqueteiros e outro o diploma de barão.

— E então? Estais satisfeitos? — perguntou Ana d'Áustria.D’Artagnan inclinou-se. Porthos virou e revirou o diploma entre os

dedos, com os olhos fitos em Mazarino.— Que é que há ainda? — perguntou o Ministro.— Há, Monsenhor, uma promessa de conferir a alguém a ordem do

Espírito Santo na primeira promoção.— Mas sabeis, Sr. Barão — respondeu Mazarino — que ninguém pode

ser cavaleiro da ordem do Espírito Santo sem ter as suas provas feitas.— Não foi para mim, Monsenhor — revidou Porthos — que pedi a fita

azul.— E para quem foi? — perguntou Mazarino. — Para o meu amigo, o Sr.

Conde de La Fere.— Oh! esse — acudiu a Rainha — é outra coisa.— Ele a terá?— Já a tem.No mesmo dia assinava-se o tratado de Paris e por toda a parte corria o

boato de que o Cardeal se encerrara durante três dias para elaborá-lo com mais cuidado.

Eis o que ganhava cada um com o tratado:O Sr. de Conti recebia Damvilliers e, tendo feito as suas provas como

general, continuava militar e dispensado de se tornar cardeal. De mais disso, dissera-se qualquer coisa sobre um casamento com uma sobrinha de Mazarino; essa qualquer coisa fora favoravelmente acolhida pelo príncipe, a quem pouco importava a esposa que lhe dessem, contanto que lhe dessem uma esposa.

O Sr. Duque de Beaufort reingressava na Corte com todas as reparações devidas às ofensas que lhe tinham sido feitas e todas as honras que podia exigir a sua posição. Concediam-lhe, outrossim, a liberdade incondicional dos que o haviam ajudado a fugir, a sucessão do almirantado, que se encontrava nas mãos do Duque de Vendôme, seu pai, e uma indenização pelas suas casas e castelos, que o Parlamento da Bretanha mandara demolir.

O Sr. Duque de Bouillon recebia domínios de valor igual ao do principado de Sedan, uma indenização pelos oito anos em que deixara de usufruir desse principado, e o título de Príncipe, concedido a ele e aos de sua casa.

O Sr. Duque de Longueville, o governo de Pont-de-1'Arche, quinhentas

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mil libras para a mulher e a honra de ver o filho levado à pia batismal pelo jovem Rei e pela jovem Henriqueta de Inglaterra.

Aramis estipulou que Bazin oficiaria a solenidade e que Planchet forneceria os doces.

O Duque d'Elbeuf obteve o pagamento de certas somas devidas à mulher, cem mil libras para o mais velho dos filhos e vinte e cinco mil para cada um dos três outros.

Só o Coadjutor não obteve nada; prometeram-lhe negociar o caso do chapéu com o Papa; mas ele conhecia o crédito que poderia dar a tais promessas feitas pela Rainha e por Mazarino. Inteiramente ao contrário do Sr. de Conti, não podendo tornar-se cardeal, era obrigado a continuar militar.

Por isso mesmo, quando toda Paris se regozijava com a volta do Rei, fixada para dois dias depois, Gondy só, no meio do contentamento geral, estava de tão mau humor que mandou buscar no mesmo instante dois homens que soia chamar quando se encontrava nesse estado de espírito.

Esses dois homens eram o Conde de Rochefort e o mendigo de Saint-Eustache.

Chegaram com a costumeira pontualidade e o Coadjutor passou com eles parte da noite.

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CAPÍTULO XXXIV

EM QUE SE PROVA QUE, ÀS VEZES, É MAIS DIFÍCIL AOS REIS VOLTAR À CAPITAL DO SEU REINO DO QUE DEIXÁ-LA

ENQUANTO d'Artagnan e Porthos levavam o Cardeal a Saint-Germain, Athos e Aramis, que os haviam deixado em Saint-Denis, voltaram a Paris. Cada qual tinha uma visita que fazer. Assim que descalçou as botas, correu Aramis ao Paço Municipal, onde estava a Sra. de Longueville. À primeira notícia da paz a bela Duquesa deu altos gritos. A guerra fazia-a rainha, a paz lhe impunha a abdicação; declarou que nunca assinaria o tratado e que desejava uma guerra eterna.

Mas quando Aramis lhe apresentou essa paz à sua verdadeira luz, isto é, com todas as suas vantagens, quando lhe mostrou, em troca da realeza precária e contestada de Paris, a vice-realeza de Pont-de-1'Arche, isto é, de toda a Normandia, quando fez soarem aos seus ouvidos as quinhentas mil libras prometidas pelo Cardeal, quando fez brilhar a seus olhos a honra que lhe daria o Rei levando-lhe o filho à pia batismal, a Sra. de Longueville só contestou pelo hábito que têm as mulheres bonitas de contestar, e só se defendeu para entregar-se.

Aramis fingiu acreditar na realidade da oposição, e não quis, a seus próprios olhos, renunciar ao mérito de havê-la persuadido.

— Senhora — disse ele — quisestes derrotar uma vez o Sr. Príncipe, vosso irmão, isto é, o maior cabo de guerra de nossos tempos, e quando as mulheres de gênio querem alguma coisa, são sempre bem sucedidas. Fostes bem sucedida e o Sr. Príncipe foi derrotado, pois já não pode continuar a guerra. Agora, procurai atraí-lo para o nosso partido. Afastai-o brandamente da Rainha, de quem ele não gosta, e do Sr. Mazarino, que ele despreza. A Fronda é uma comédia da qual só representamos até agora o primeiro ato. Esperemos o Sr. de Mazarino no fim, isto é, no dia em que o Sr. Príncipe, graças a vós, se volte contra a Corte.

A Sra. de Longueville deixou-se persuadir. Estava tão convencida da força de seus belos olhos, a duquesa frondista, que não duvidou da influência deles, nem sequer sobre o Sr. de Conde, e afirma a crônica escandalosa do tempo que ela não se enganava.

Deixando Aramis na place Royale, dirigira-se Athos à casa da Sra. de Chevreuse. Era outra frondista que cumpria persuadir, e ainda mais difícil de

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convencer do que a jovem rival; não se estipulara nenhuma condição em seu favor, o Sr. de Chevreuse não fora nomeado governador de província alguma, e se a Rainha consentisse em ser madrinha, só o poderia ser de seu neto ou de sua neta.

Por conseguinte, à primeira menção de paz, a Sra. de Chevreuse carregou o cenho e, apesar de toda a lógica de Athos para mostrar-lhe que uma guerra mais longa seria impossível, insistiu pelas hostilidades.

— Formosa amiga — tornou Athos — permiti-me dizer-vos que toda a gente está cansada da guerra; exceto vós e talvez o Sr. Coadjutor, toda a gente deseja a paz. Fareis que vos exilem como no tempo do Rei Luís XIII. Crede-me, já não estamos na idade de ser bem sucedidos na intriga, e os vossos belos olhos não estão destinados a apagar-se chorando Paris, onde sempre haverá duas rainhas enquanto aqui estiverdes.

— Oh! — disse a Duquesa — não posso continuar a guerra sozinha, mas posso vingar-me dessa Rainha ingrata e desse favorito ambicioso, e... palavra de duquesa! hei de vingar-me.

— Senhora — prosseguiu Athos — eu vos suplico, não prepareis um mau futuro para o Sr. de Bragelonne; ei-lo em bom caminho, o Sr. Príncipe gosta dele, é um menino ainda, deixemos que assuma o poder o jovem Rei! Ai! perdoai-me a fraqueza, senhora, mas chega um momento em que o homem revive e remoça nos filhos.

Sorriu a Duquesa, entre enternecida e irônica.— Conde — disse ela — receio muito que tenhais aderido inteiramente

ao partido da Corte. Não tendes no bolso alguma fita azul?— Tenho, senhora — respondeu Athos — tenho o da Jarreteira, que o

Rei Carlos I me conferiu alguns dias antes de morrer.O Conde falava verdade, pois ignorava ainda o pedido de Porthos e não

sabia que houvesse outra além dessa.— Vamos! não há remédio senão envelhecer — disse a Duquesa,

pensativa.Athos tomou-lhe a mão e beijou-lha. Ela suspirou, com os olhos postos

nele.— Conde — voltou ela — Bragelonne há de ser uma deliciosa habitação.

Sois um homem de bom gosto; deveis ter água, bosques, flores.Suspirou de novo e apoiou a cabeça encantadora sobre a mão

galantemente curvada e sempre de forma e alvura admiráveis.— Senhora — replicou o Conde — que dizíeis há pouco? Nunca vos vi

tão jovem, nunca vos vi mais bela.A Duquesa meneou a cabeça.— O Sr. de Bragelonne fica em Paris? — perguntou.

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— Que vos parece?— Deixai-o comigo.— Não, senhora, se vós vos esquecestes da história de Édipo, eu não me

esqueci.— Em realidade, Conde, sois encantador, e eu gostaria de passar um mês

em Bragelonne.— Não receais atrair-me muitos invejosos, Duquesa? — tornou, galante,

Athos.— Não, irei incógnita, Conde, com o nome de Maria Michon.— Sois adorável, senhora.— Mas não deixeis Raul perto de vós.— Por quê?— Porque está apaixonado.— É uma criança!— Pois se é uma criança que ele ama! Athos se tornou pensativo.— Tendes razão, Duquesa, esse amor singular a uma criança de sete

anos pode torná-lo desgraçado um dia; vai haver luta em Flandres, ele irá para lá.

— Quando voltar, mandai-mo, que o couraçarei contra o amor.— Ai! senhora — disse Athos — hoje o amor é como a guerra, e a

couraça tornou-se inútil.Nesse momento entrou Raul, que vinha anunciar ao Conde e à Duquesa

que o Conde de Guiche, seu amigo, o avisara de que a entrada solene do Rei, da Rainha e do Ministro se verificaria no dia seguinte.

No dia seguinte, com efeito, desde o romper do dia, fez a Corte todos os preparativos para deixar Saint-Germain.

À noite, na véspera, a Rainha mandara chamar d’Artagnan.— Senhor — disse ela — dizem-me que Paris não está tranqüila, e temo

pelo Rei; colocai-vos à portinhola da direita.— Tranqüilize-se Vossa Majestade — disse d'Artagnan; — respondo

pelo Rei.E, cumprimentando a Rainha, saiu. »Quando d'Artagnan saía dos aposentos da Rainha, Bernouin foi dizer-lhe

que o Cardeal o esperava para coisas importantes.Foi ter imediatamente com o Cardeal.— Senhor — disse-lhe Mazarino — fala-se de motins em Paris; ficarei à

esquerda do Rei e, como sou o principal ameaçado, colocai-vos à portinhola da esquerda.

— Descanse Vossa Eminência — disse d'Artagnan — ninguém lhe tocará sequer num fio de cabelo.

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— Diabo! — resmungou ao chegar à antecâmara — como sair dessa? O fato é que não posso estar, ao mesmo tempo, à portinhola da esquerda e à da direita. Ora! guardarei El-Rei e Porthos guardará o Cardeal.

O arranjo conveio a todos, o que é muito raro. A Rainha tinha confiança na coragem de d'Artagnan, que ela conhecia, e o Cardeal, na força de Porthos, cujos efeitos já experimentara.

Pôs-se o cortejo a caminho de Paris em ordem previamente estabelecida; Guitaut e Comminges, à frente dos guardas, abriam a marcha; em seguida vinha o carro real, tendo a uma das portinholas d'Artagnan, e à outra Porthos; seguiam-se os mosqueteiros, amigos de vinte e dois anos de d'Artagnan, que fora seu tenente quatro lustros e era seu capitão desde a véspera.

Chegado à barreira, foi o carro saudado por grandes gritos de: "Viva o Rei!" e de: "Viva a Rainha!" Ouviram-se uns poucos gritos de:. "Viva Mazarino!", que não tiveram eco.

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Encaminhava-se o cortejo para Notre-Dame...

Encaminhava-se o cortejo para Notre-Dame, onde seria cantado um Te Deum.

Todo o povo de Paris saíra à rua. Os suíços tinham sido enfileirados ao longo do caminho; mas, como o percurso fosse grande, ficavam a uma distância de seis a oito passos um do outro, formando, portanto, um cordão absolutamente insuficiente; de tempos a tempos, rompia por ele a multidão, e só com muita dificuldade conseguia o dique reconstituir-se.

A cada ruptura, apesar da evidente cordialidade de seus propósitos, visto que a motivava o desejo que tinham os parisienses de rever o Rei e a Rainha, de que estavam separados havia um ano, Ana d'Áustria olhava inquieta para d'Artagnan, e este a tranqüilizava com um sorriso.

Mazarino, que gastara um milhar de luíses para mandar gritar "Viva Mazarino!" e não estimava os gritos que ouvira em mais de vinte pistolas,

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também olhava inquieto para Porthos; mas o seu guarda gigantesco respondia a esse olhar com uma voz tão sonora de baixo: "Esteja descansado, Monsenhor," que, de fato, Mazarino se aquietava cada vez mais.

Nas imediações do Palais-Royal a multidão era ainda maior; acorrera àquela praça por todas as ruas adjacentes, e via-se, como um grande rio encapelado, a onda popular vir ao encontro do coche e rolar, tumultuosa, pela rue Saint-Honoré.

Quando chegaram à praça, grandes gritos de: "Vivam Suas Majestades!" soaram. Mazarino inclinou-se à portinhola. Dois ou três gritos de: "Viva o Cardeal!" saudaram-lhe a aparição; mas, quase imediatamente, foram abafados de maneira implacável por assobios e apupos. Mazarino empalideceu e precipitou-se para trás.

— Canalhas! — murmurou Porthos.D'Artagnan não disse nada, mas alisou o bigode com um gesto particular,

indício de que o seu belo humor gascão principiava a esquentar-se.Ana d'Áustria inclinou-se ao ouvido do jovem Rei e disse-lhe baixinho:— Faze um gesto gracioso e dirige algumas palavras ao Sr. d'Artagnan,

meu filho.O jovem Rei inclinou-se à portinhola.— Ainda não vos desejei bons-dias, Sr. d'Artagnan — disse ele — mas

já vos havia reconhecido. Estáveis atrás das cortinas de minha cama, naquela noite em que os parisienses quiseram ver-me dormir.

— E se El-Rei mo permitir — respondeu d'Artagnan — estarei ao pé dele todas as vezes que correr algum perigo.

— Senhor — perguntou Mazarino a Porthos — que fa-ríeis se toda a multidão se atirasse contra nós?

— Eu mataria quantos pudesse, Monsenhor — retrucou Porthos.— Hum! — continuou Mazarino — a despeito de toda a vossa coragem

e de todo o vosso vigor, não poderieis matar a todos.— Isso é verdade — disse Porthos erguendo-se sobre os estribos, para

melhor calcular a imensidade da multidão — é verdade, há muita gente.— Ainda creio que preferiria o outro — murmurou Ma-zarino.E tornou a atirar-se para o fundo do carro.A Rainha e seu Ministro tinham razão de sentir alguma inquietude,

mormente o segundo. Embora conservasse as aparências de respeito e até de afeto ao Rei e à Regente, a multidão principiava a agitar-se tumultuosamente. Ouviam-se correr os surdos rumores que, quando roçam as ondas, indicam a tempestade, e, quando roçam a multidão, pressagiam o motim.

Voltou-se d'Artagnan para os mosqueteiros e fez, piscando um olho, um

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sinal imperceptível para o populacho, mas muito compreensível para os seus corajosos amigos.

Apertaram-se as fileiras dos cavalos e ligeiro frêmito correu por entre os homens.

Na barreira dos Sargentos foram obrigados a parar; Comminges deixou a vanguarda da escolta e aproximou-se do carro da Rainha. A Rainha interrogou d'Artagnan com os olhos; d'Artagnan respondeu-lhe na mesma linguagem.

— Continuai — ordenou Sua Majestade. Comminges voltou ao seu lugar. Fez-se um esforço e a barreira viva foi violentamente rompida.

Alguns murmúrios se ergueram do povo, que, desta feita, se dirigiam tanto ao Rei quanto ao Ministro.

— Para a frente! — gritou d'Artagnan a plenos pulmões.— Para a frente! — repetiu Porthos.Mas, como se a arraia-miúda só esperasse aquela demonstração para

explodir, todos os sentimentos de hostilidade que ela encerrava explodiram ao mesmo tempo. Os gritos de: "Morra Mazarino! Morra o Cardeal!" soaram de todos os lados.

Simultaneamente, pela rue de Grenelle, Saint-Honoré e pela rue du Coq, precipitou-se dupla onda humana, que rompeu o frágil dique dos- suíços e chegou, turbilhonando, às pernas dos cavalos de d'Artagnan e de Porthos.

Era a nova irrupção mais perigosa do que as outras, porque efetuada por gente armada e melhor armada até do que costumam apresentar-se os homens do povo em semelhantes ocasiões. Percebia-se que o último movimento não provinha de um acaso que houvesse reunido certo número de descontentes no mesmo ponto, mas dos planos de um espírito hostil que organizara um ataque.

Cada uma das massas seguia um chefe, um dos quais parecia pertencer, não ao povo, mas à honrada corporação

dos mendigos, ao passo que o outro, a despeito dos esforços por imitar os modos populares, não lograva disfarçar a fidalguia do porte.

Eram ambos manifestamente movidos pelo mesmo impulso.Verificou-se um abalo violento, que repercutiu até no coche real; em

seguida, ergueram-se milhares de gritos, formando um vasto clamor, entrecortado de dois ou três tiros.

— A mim os mosqueteiros! — bradou d'Artagnan.Separou-se a escolta em duas filas; uma passou à direita do carro, outra à

esquerda; a primeira, em socorro de d’Artagnan, a segunda, de Porthos.E nesse momento se travou um combate, tanto mais terrível quanto não

tinha finalidade, e tanto mais funesto quanto ninguém sabia por que ou por

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quem combatia.

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CAPÍTULO XXXV

EM QUE SE PROVA QUE, ÀS VEZES, É MAIS DIFÍCIL AOS REIS VOLTAR À CAPITAL DO SEU REINO DO QUE DEIXÁ-LA

(Continuação)

COMO todos os movimentos da plebe, o choque da multidão foi terrível; pouco numerosos, mal alinhados, não podendo, entre a turba-multa, manobrar os cavalos, os mosqueteiros, a princípio foram envolvidos.

D'Artagnan quisera mandar fechar as portinholas do carro, mas o jovem Rei estendera o braço, dizendo:

— Não, Sr. d'Artagnan, eu quero ver.— Se Vossa Majestade quer ver — disse d'Artagnan— veja!E, voltando-se com a fúria que o tornava tão terrível, saltou sobre o chefe

dos amotinados, que, com uma pistola na mão e uma enorme espada na outra, tentava chegar à portinhola, lutando com dois mosqueteiros.

— Arredai, com todos os diabos! — gritou d'Artagnan— arredai!A essa voz, o homem da pistola e da espada enorme ergueu a cabeça;

mas já era demasiado tarde: o golpe de d'Artagnan fora desferido: o ferro atravessara-lhe o peito.

— Ah! miséria! — gritou d'Artagnan, tentando embalde deter o golpe — que diabo viestes fazer aqui, Conde?

— Cumprir o meu destino — respondeu Rochefort, caindo sobre um joelho. Já me levantei de três cutiladas vossas; mas da quarta não me levanto.

— Conde — disse d'Artagnan com certa emoção — feri sem saber que éreis vós. Eu sentiria muito, se morrerdes, que morrêsseis com sentimento de ódio contra mim.

Rochefort estendeu a mão a d'Artagnan. D'Artagnan apertou-lha. O Conde quis falar, mas uma golfada de sangue lhe abafou a voz; enrijou-se numa derradeira convulsão e expirou.

— Para trás, canalha! — berrou d'Artagnan. — O vosso chefe morreu, já não tendes que fazer aqui.

De feito, como se o Conde de Rochefort tivesse sido a alma do ataque

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desfechado contra o carro do Rei, toda a multidão que o seguira e que lhe obedecia pôs-se em fuga ao vê-lo cair. D'Artagnan saiu-lhe no encalço com uma vintena de mosqueteiros pela rue du Coq e essa parte dos amotinados desapareceu como fumaça, espalhando-se pela praça de Saint-Germain-1'Auxerrois e dirigindo-se para os cais.

D'Artagnan voltou para socorrer Porthos, no caso de Porthos precisar de socorro; mas Porthos, de seu lado, trabalhara com a mesma consciência que d'Artagnan. A esquerda da carruagem fora não menos bem varrida que a direita, e já estava sendo descerrada a cortina da portinhola que Mazarino, menos belicoso do que o Rei, tomara a precaução de abaixar.

Porthos parecia extremamente melancólico.— Que diabo de cara tens, Porthos? E que singular aspecto para um

vencedor!— Mas tu também — disse Porthos — parece bastante comovido!— E com razão, que diabo! Acabo de matar um velho amigo.— Deveras! — exclamou Porthos. — Quem?— Aquele pobre Conde de Rochefort!...— Pois é como eu, que acabo de matar um homem cuja cara não me é

desconhecida; infelizmente golpeei-o na cabeça e o rosto logo se lhe cobriu de sangue.

— E ele não disse nada ao cair?— Disse... Uf!— Compreendo — voltou d'Artagnan, que não pudera deixar de rir; —

se ele não disse outra coisa, não estarás muito melhor informado.— E então, senhor? — perguntou a Rainha.— Senhora — retrucou d'Artagnan — o caminho está perfeitamente

livre, e Vossa Majestade pode continuar.O cortejo, efetivamente, chegou sem maiores novidades à igreja de

Notre-Dame; no portal, tendo à frente o Coadjutor, todo o clero esperava o Rei, a Rainha e o Ministro, por cujo feliz regresso ia ser cantado o Te Deum.

Durante a cerimônia, e quando esta já se aproximava do fim um garoto assustado entrou na igreja, correu para a sacristia, vestiu-se rapidamente de menino de coro, e furando, graças ao respeitável uniforme de que se cobrira, a multidão que achusmava o templo, abeirou-se de Bazin, que, ostentando, sobrepeliz azul e empunhando a sacola recheada de dinheiro, se mantinha, majestoso, diante do suíço à entrada do coro.

Bazin sentiu que lhe puxavam a manga. Abaixou para a terra os olhos beatamente erguidos para o céu e reconheceu Friquet.

— Então! maroto, que aconteceu, para que te atrevas a perturbar-me no exercício de minhas funções? — perguntou o sacristão.

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— Aconteceu, Sr. Bazin — disse Friquet — que o Sr. Maillard, que sabeis, e que oferece água benta em Saint-Eustache...

— Sei, e daí?...— Recebeu, durante o tumulto, uma espadeirada na cabeça; foi aquele

gigantão que está lá, com bordados em todas costuras, que lha deu.— Nesse caso — disse Bazin — deve estar passando bem mal.— Tão mal que está morrendo, e quer, antes de morrer, confessar-se ao

Sr. Coadjutor, que tem poder, segundo dizem, para perdoar pecadões.— E ele imagina que o Sr. Coadjutor se incomodará por sua causa?— Com certeza, pois parece que o Sr. Coadjutor lho prometeu.— Quem te disse isso?— O próprio Sr. Maillard.— Viste-o?— Pois se eu estava lá quando ele caiu!— E que estavas fazendo?— Ué! Eu estava gritando: "Morra Mazarino! Morra o Cardeal! Forca

para o italiano!" Não foi isso que me mandastes gritar?— Cala a boca, moleque do diabo! — ordenou Bazin relanceando os

olhos inquietos em derredor.— De modo que o pobre Sr. Maillard me disse: "Vai procurar o Sr.

Coadjutor, Friquet, e. se mo trouxeres, faço-te meu herdeiro." Que tal, tio Bazin? Herdeiro do Sr. Maillard, o que oferece água benta em Saint-Eustache! Hein! É cruzar os braços para o resto da vida! Mas não importa, eu gostaria de prestar-lhe o serviço. Que dizeis?

— Vou prevenir o Sr. Coadjutor — disse Bazin.De fato, aproximou-se respeitosa e lentamente do prelado, disse-lhe

algumas palavras ao ouvido, a que este respondeu por um sinal afirmativo e, voltando com o mesmo passo:

— Vai dizer ao moribundo que tenha paciência. Monsenhor estará lá daqui a uma hora.

— Bom — murmurou Friquet — a minha fortuna está feita.— A propósito — perguntou Bazin — aonde o transportaram?— À torre de Saint-Jacques-la-Boucherie.E, encantado com o êxito feliz da embaixada, sem despir os trajos de

menino de coro, que, aliás, lhe permitiam andar com maior facilidade, saiu Friquet da basílica e, com a rapidez de que era capaz, tocou-se para a torre de Saint-Jacques-la-Boucherie.

De fato, assim que terminou o Te Deum, conforme prometera, e sem despir sequer os hábitos sacerdotais, encaminhou-se o Coadjutor para a velha torre que tão bem conhecia.

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Chegava a tempo. Embora piorasse de momento a momento, o ferido ainda não morrera.

Abriram-lhe a porta do aposento em que agonizava o mendigo.Um instante depois, saía Friquet empunhando um grande saco de couro,

que abriu assim que se viu fora do quarto e que, para seu grande espanto, encontrou cheio de ouro.

O mendigo cumprira a promessa e fizera-o seu herdeiro.— Ah! mãe Nanette — gritou Friquet sufocado — ah! mãe Nanette!Não pôde dizer mais nada; mas a força que lhe faltava para falar não lhe

faltou para correr. Saiu à desfilada pela rua e, como o grego de Maratona caindo na praça de Atenas com o loureiro na mão, Friquet chegou ao limiar da casa do Conselheiro Broussel, e caiu, ao chegar, esparramando no chão os luíses que lhe transbordavam da sacola.

A mãe Nanette começou apanhando os luíses e depois apanhou Friquet.Durante esse tempo, o cortejo voltava ao Palais-Royal.— É um homem bem valente, minha mãe, aquele Sr. d’Artagnan —

disse o Rei.— Sim, meu filho, e prestou grandíssimos serviços a teu pai. Poupa-o

para o futuro.— Sr. Capitão — disse ao descer do carro o jovem Rei a d'Artagnan —

Sua Majestade a Rainha encarrega-me de convidar-vos para jantar hoje, vós e o vosso amigo, o Barão du Vallon.

Era uma grande honra para d’Artagnan e para Porthos, que exultou. Mas, durante todo o tempo que durou a refeição, o digno gentil-homem pareceu preocupadíssimo.

— Mas que tinhas, Barão? — perguntou-lhe d'Artagnan descendo as escadas do Palais-Royal; — estivestes tão pensativo durante o jantar!

— Eu procurava — respondeu Porthos — recordar onde vi o mendigo que devo ter matado.

— E não o conseguiste?— Não.— Pois bem! procura, meu amigo, procura; quando o tiveres achado, dir-

me-ás quem era, não é verdade?— Naturalmente! — prometeu Porthos.

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CONCLUSÃO

Ao voltarem para casa, encontraram os dois amigos uma carta de Athos, que lhes marcava encontro para a manhã seguinte no Grand-Charlemagne. Deitaram-se ambos cedo, mas nenhum deles pôde dormir. Ninguém chega assim à satisfação de todos os desejos sem que essa satisfação não lhe espante o sono, pelo menos durante a primeira noite.

No dia seguinte, à hora indicada, foram os dois à estalagem de Athos. Encontraram o Conde e Aramis em trajos de viagem.

— Ué! — indagou Porthos — partimos todos? Eu também já fiz os preparativos hoje cedo.

— Oh! meu Deus — disse Aramis — já não há o que fazer em Paris visto que a Fronda se acabou. A Sra. de Longueville convidou-me para ir passar alguns dias na Normandia, e me encarregou, enquanto lhe batizam o filho, de mandar preparar-lhe alojamentos em Ruão. Obedeço; depois, se não houver outras novidades, irei sepultar-me no convento de Noisy-le-Sec.

— E eu — declarou Athos — volto a Bragelonne. Sabes, meu caro d'Artagnan, que já não sou mais do que um bom e bravo camponês. A única fortuna de Raul é a minha, pobrezinho! e preciso velar por ela, pois, de certo modo, não passo de um testa de ferro.

— E Raul, que fazes dele?— Deixo-o contigo, meu amigo. Quando começar a guerra em Flandres,

levá-lo-ás; receio que a estada em Blois lhe seja perniciosa. Quero que o leves e ensines a ser corajoso e leal como tu.

— E eu — disse d'Artagnan — não te terei mais, Athos, mas, pelo menos, terei aquela querida cabeça loira; e embora seja apenas uma criança, como a tua alma toda revive nele, querido amigo, imaginarei sempre que estás perto de mim, acompanhando-me e sustentando-me.

Abraçaram-se os quatro amigos com lágrimas nos olhos. Em seguida, separaram-se, sem saber se tornariam a encontrar-se.

D'Artagnan voltou à rue Tiquetonne com Porthos, sempre preocupado e sempre procurando lembrar-se do homem que ele matara. Ao chegarem à hospedaria da Chevrette encontraram prontas as equipagens do Barão e Mousqueton a cavalo.

— Ouve, d'Artagnan — alvitrou Porthos — deixa a espada e vem comigo para Pierrefonds, Bracieux ou para o Vallon; envelheceremos juntos falando dos companheiros.

— Não! — respondeu d'Artagnan. — Diabo! Vai abrir-se a campanha e

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eu quero estar lá; espero ganhar nela alguma coisa.— Mas, afinal, que pretendes vir a ser?— Marechal de França, ora essa!— Ah! ah! — exclamou Porthos contemplando d’Artagnan, a cujas

fanfarronices de gascão nunca pudera habituar-se inteiramente.— Vem tu comigo, Porthos — propôs d'Artagnan — eu te farei duque.— Não — respondeu Porthos — Mouston já não quer saber de guerras.

Aliás, prepararam-me em casa uma entrada tão solene que matará de inveja todos os vizinhos.

— Se é assim, já não digo nada — volveu d'Artagnan, que conhecia a vaidade do novel barão. — Então, até à vista, meu amigo.

— Até à vista, querido Capitão — replicou Porthos. — Sabes que, quando quiseres ver-me, serás sempre benvindo em minha baronia.

— Sim — prometeu d'Artagnan — ao voltar da guerra, lá irei.— As equipagens do Sr. Barão estão prontas — anunciou Mousqueton.E os dois amigos separaram-se depois de apertarem as mãos. D'Artagnan

quedou na soleira da porta, acompanhando com olhar melancólico Porthos que se afastava.

Mas, ao cabo de vinte passos, Porthos estacou de golpe, deu uma palmada na testa e voltou.

— Agora me lembro — disse ele.— Do quê? — perguntou d'Artagnan.— Quem era o mendigo que matei.— Ah! Sim? E quem era?— O canalha do Bonacieux.E, encantado de ver-se com o espírito desimpedido, juntou-se a

Mousqueton, com o qual desapareceu no dobrar da rua.D'Artagnan permaneceu um instante imóvel e pensativo em seguida,

voltando-se, viu a formosa Madalena, que, inquieta com as suas novas grandezas, se mantinha em pé no limiar da porta.

— Madalena — disse o gascão — dá-me o quarto do primeiro andar; preciso de certa representação, agora que sou capitão de mosqueteiros. Mas reserva-me o do quinto; ninguém sabe o que pode acontecer.

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BIBLIOGRAFIA DAS NOTAS

C. FEDERN — Mazarin (1602-1661).

GEORGES MONGRÉDIEN — Marion De Lorme et ses amours.

JEAN GOUDAL — Ninon de Lanclos.

COR. CHARLES ROMAIN — Louis XIII, un grani roi méconnu.

JACQUES BOULENGER — Le Grand Siècle.

MARCEL REINHARD — Henri IV ou La France sauvée.

GEORGES MONGRÉDIEN — La Vie Quotidienne sons Louis XIV.

HENRI CARRÉ — Mademoiselle de La Vallière.

ÉMILE HENRIOT — D'Héloise a Marie Bashkirtseff.

ÉMILE HENRIOT — De Marie de France a Katherine Mansfield.

GEORGES MONGRÉDIEN — La Vie de Société aux XVIIe. Et XVIIIe. Siècles.

MÉMOIRES DU CARDINAL DE RETZ — Edição de Aimé Champollion-Figeac.

M. N. BOUILLET — Dictionnaire Universel d'Histoire et de Géographie.

Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas de SARAIVA S. A., à Rua Sampson, 265, São Paulo (Brasil), em março de mil novecentos e sessenta e três, e 49° ano de fundação da nossa organização.