Agatha christie - o caso do hotel bertram

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O luxuoso hotel Bertram é um dos poucos edifícios de Londres a conservar o charme da Inglaterra do início do século XX e, mesmo freqüentado por duquesas e barões arruinados, ainda é um dos símbolos da aristocracia britânica. Quando Miss Marple se hospeda no hotel Bertram, sua única intenção é recordar os bons momentos da juventude passados lá. O que a simpática velhinha de Saint Mary Mead não pode imaginar é que está para se envolver com uma série de crimes e roubos misteriosos: uma ameaça à reputação do tradicional hotel e à própria vida de Miss Marple.

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NoCORAÇÃODOWESTEND, emLondres, há diversos bolsões tranquilos,desconhecidosdequasetodoomundo,àexceçãodosmotoristasdetáxi,queosatravessam com sapiência de peritos, chegando triunfalmente, por via deles, aParkLane,BerkeleySquareouSouthAudleyStreet.

Sevocê se afastar deumadespretensiosa ruaque sai doParque, e depoisdobraràesquerdaeàdireitaumaouduasvezes,irádarnumaruatranquila,comoHotelBertram's à direita.OBertram's já está ali hámuito tempo.Durante aguerra demoliram-se casas à direita, e um pouco adiante, à esquerda— só oBertram'ssemanteveintocado.Naturalmente,comodiriaumcorretordeimóveis,o prédio não poderia escapar a certos estragos —arranhões, hematomas,cicatrizes, — mas com o dispêndio de apenas uma razoável quantia, foirestauradoepostotalcomoeraantes.Peloanode1955mostrava-seigualzinhoaoqueeraem1939,distinto,semouropéis,emoderadamentecaro.

AssimeraoBertram’sfrequentado,anosafio,pelosmaisaltosescalõesdoclero,poridosasaristocratasvindasdocampoemoçasqueiampassaremcasaasfériasdesuasdispendiosasescolasdeaperfeiçoamento.("Hátãopoucoslugaresondeumamoçapossahospedar-sesozinhaemLondres;masnoBertram's,claro,nãoháinconveniente.Todaavidanoshospedamoslá".)

Claro que haviamuitos outros hotéis do tipo doBertram’s.Alguns aindaexistem,masquasetodossofreramasrajadasdeventodostemposnovos.Foramforçados a se modernizar, a procurar uma clientela diferente. E também oBertram'stevequemudar,—masfê-locomtantainteligênciaquenãosedeixadescobriraoprimeiroolhar.

Aopédapequenaescadaquelevaàsgrandesportasdevaivémposta-seumcavalheiroque,àprimeiravista,agente juraqueénomínimoummarechaldecampo:galõesdouradosecondecoraçõeslheadornamopeitoamploeviril.Suaposturaé impecável.Recebe-noscomcarinhosasolicitude,aoemergirmos,comreumática dificuldade, de um táxi ou de um carro particular, e nos encaminhacuidadosamente degraus acima, e nos pilota através da silenciosa porta devaivém.

Ládentro—seéessaaprimeiravezquevocêvisitaoBertram's,agentedescobre,quaseassustada,que reingressounummundodesaparecido.O tempoandouparatrás,enovamenteestamosnaInglaterradeEduardoVII.

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Naturalmente que há aquecimento central — mas invisível. Tal comosempre, na grande sala de entrada veem-se doismagníficos fogões queimandocarvão de pedra; ao lado, dois grandes baldes de latão, brilhando como jábrilhavamquandoascamareirasdostemposdoReiEduardoospoliam,estavamcheiosdepedaçosdecarvãodotamanhocerto.Oambiente,poder-se-iadizerdemodogeral,quesugeria ricoveludovermelhoeumconfortobemestofado.Aspoltronas não pertenciam a esta nossa era. Erguiam-se bem acima do nível dopiso,permitindoassimqueasvelhassenhorasreumáticassepusessemdepésemse verem obrigadas a lutar ridiculamente para executar esse movimento. E osassentos das cadeiras, ao contrário do que agora acontece com as mais caraspoltronas,nãoacabavamameiocaminhoentreacoxaeojoelho,causandodoresatrozes em quem sofre de artrite ou ciática. E não eram todas de um únicomodelo. Havia encostos retos e recostos inclinados, e larguras diferentes paraacolherosmagroseosobesos.HóspedesdequaisquerdimensõesencontravamsempreumacadeiraconfortávelnoBertram's.

Eraahoradochá,easalaestavacheia.Nãoqueasaladeentradafosseoúnico lugarondesepudesse tomarchá.Haviaumasaladevisitas(forradacomchitão),umasaladefumar(reservadasóparacavalheiros,emvirtudedenãoseique desconhecida influência) onde as poltronas eram de couro da melhorqualidade;duassalasdecorrespondência,paraondesepoderialevarumamigoebaterumpapinhoagradávelnumrecantotranquilo,—eatémesmoescreverumacarta, se fosse esse o seu desejo.Além dessas amenidades da era eduardiana,haviaaindaoutrosrecantos,menoscomentados,masconhecidosdaquelesqueosapreciavam.Havia umbar duplo, comdoisbarmen,— umbarman americanopara fazer com que os hóspedes americanos se sentissem em casa, e para osabastecer de uísque demilho ou centeio, e quaisquer espécies de coquetéis; ehavia obarman inglês, para lidar com as doses de xerez e Pimm's n.° 1, econversarcomoentendidoarespeitodoscorredoresdeAscoteNewburycomoscavalheirosdemeia-idadequevinhamhospedar-senoBertram'snoperíododascorridasmaisimportantes.Ehaviaainda,escondidaaofimdeumcorredor,umasaladetelevisãoparaosapreciadores.

Mas a grande sala de entrada era o local favorito para o cháda tarde.Assenhorasidosasgostavamdeobservarquementravaesaía,reconhecendovelhosamigos, e reparando o quanto haviam envelhecido. Havia também clientesamericanos,fascinadospeloprometidoespetáculo:aaristocraciainglesaentregue,de verdade, aos prazeres do seu chá da tarde. Pois que o chá da tarde erarealmenteumespetáculo,noBertram's.

Era esplêndido, simplesmente.Quempresidiao ritual eraHenry,grandee

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magníficafiguradehomem,cinquentão,comarespaternais,simpático,ecomasmaneiras cortesãs dessa espécie há muito desaparecida: o perfeito mordomo.Esbeltos jovens davam conta do serviço, sob a austera supervisão de Henry.Usavam-segrandesbandejasdeprata,brasonadas,eosbules tambémdeprata,georgianos.Alouça,mesmoquenãofossepuroRockinghameDavenport,assimparecia.OserviçomaisapreciadoeraoBlindEarl.Ochádamelhorqualidade,procedia da índia,Ceilão,Darjeeling,Lapsang, etc.Quanto à parte comestível,vocêpoderiapediroquequisesse—eseriaservido!

Nesse determinado dia, 17 de novembro, Lady Selina Hazy, sessenta ecincoanos,vindadeLeicestershire,comiadeliciososmuffinsamanteigadoscomaquelebeloapetitededamaidosa.

Masnão se digaqueo seu enlevo comosmuffins fosse tãograndeque aimpedissedeolharvivamente,todavezqueaduplaportadevaivémseabriaparareceberumrecém-chegado.

E assim, Lady Selina sorriu e, inclinando a cabeça, saudou o CoronelLuscombe,— ereto, portemilitar, binóculo de turfe a lhe pender do pescoço.Velha autocrata que era, Lady Selina fez um imperioso gesto de chamada e,dentrodeumoudoisminutos,Luscombeestavaaoseulado.

—OláSelina,queestáfazendoaquinacidade?

—Dentista— respondeuLadySelinameio indistintamente, por culpa deummuffin.— E pensei que, já estando aqui, o melhor era ir procurar aquelehomemdeHarleyStreetparaveraminhaartrite.Vocêsabequemé.

EmboraHarleyStreet abriguevárias centenasdemédicosde renome, quetratamdetodaespéciedemoléstias,Luscombesabiaaquemelasereferia.

—Eadiantoualgumacoisa?—perguntouele.

—Acho que sim— concordou Lady Selina commá vontade.— É umsujeito extraordinário. Me agarrou pelo pescoço quando eu menos esperava etorceucomosefosseumpescoçodefrango.—ELadySelinagirouopescoçocomcuidado.

—Doeu?

—Deveterdoídotorcendodaquelejeito,masnemtivetempodereparar.—Eavelhota continuouamover cuidadosamenteopescoço.—Não sintonada.

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Pelaprimeiravez,nestesúltimosanos,possoolharporcimadoombrodireito.

ELadySelinafezaexperiênciadomovimento;masderepentedisse:

—Olhe;garantoqueaquelaali éavelha JaneMarple.Penseique tivessemorridoanosatrás.Parecequeestácomcemanos.

OCoronelLuscombeolhounadireçãodeJaneMarple,assimressuscitada,massemgrandeinteresse;noBertram\snuncafaltavaopequenocontingentequeelecostumavachamar"asvelhasgatasfofas".

LadySelinacontinuava:

—AquiéoúnicolugaremLondresondeseconsegueummuffin.Imagineque no ano passado, quando estive na América, eles ofereciam uma coisachamadamuffin nomenu do café da manhã.Muffin coisa nenhuma: era umaespécie de bolo de chá com passas dentro. Então para que chamar aquilo demuffin?

LadySelina engoliu o últimopedaço amanteigado e olhou vagamente emredor.Henrylogoapareceu.Nãorápidanemapressadamente.Pareciatersurgidoalidesúbito.

—Asenhoradesejamais algumacoisa?—E sugeriu atenciosamente:—Bolo,porexemplo?

—Bolo?—LadySelinapensounisso,hesitante.

— Estamos servindo um ótimo bolo de cominho que eu recomendo àsenhora.

—Bolodecominho?Fazanosqueeunãocomobolodecominho!Ébolodecominhodeverdade?

—É,sim,minhasenhora.Ocozinheirousaessareceitahánãoseiquantosanos.Asenhoravaigostar,tenhocerteza.

Henryolhouparaumdosseusajudantes,eo rapazdisparouembuscadobolodecominho.

—QuerocrerquevocêesteveemNewbury,Derek.

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—Estive.Friocomoodiabo.Nemespereiosdoisúltimospáreos.Foiumdiadesastroso.AquelapotrancadoHarrynãovalenada.

—Eusabiadisso.EquemedizdeSwanhilda?

—Ficouemquarto.—Luscombeergueu-se.—Tenhoque reservarmeuquarto.

Atravessou o saguão em direção à portaria. De passagem, o coronel iareparandonasmesasenosseusocupantes.Impressionanteaquantidadedegentequetomavacháali.Comonosvelhostempos.Desdeaguerraqueochá,comorefeição,passaradamoda.Mas,evidente, issonãosederanoBertram's.Quemseriamtodasaquelaspessoas?DoiscônegoseoDeãodeChislehampton.Sim,emais um par de pernas com polainas ali no canto— um bispo, sem dúvida!Simplesvigárioseramescassos."PrecisapelomenossercônegoparasedaraoluxodefrequentaroBertram’s",pensouocoronel.Aarraia-miúdadocleronãopodia,coitados.Pensandobem,comoémesmoqueavelhaSelinapodiasedaràqueleluxo?Sódeviadispordeunsdoisvinténsderendaporano.Ealiestavamoutras velhas ~ Lady Berry,Mrs. Posselthwaite de Somerset, e Sybil Kerr—todaspobrescomoratosdeigreja.

Pensando ainda nisso, ele alcançou o balcão da portaria, onde foigentilmente cumprimentado porMissGorringe, a recepcionista.MissGorringeera uma velha amiga. Conhecia toda a clientela, e, tal como os membros dafamíliareal,jamaisesqueciaumrosto.Tinhaumarforademoda,masrespeitável.Cabeloamareloemcaracóis,(sugerindooempregodeantiquadosferrosdefrisar)vestidodesedapreta,eumbustoelevado,sobreoqualrepousavamummedalhãodeouroeumbrochedecamafeu.

—Númeroquatorze—disseMiss.Gorringe.—Creioquedaúltimavezosenhorocupouoquatorzeegostou,CoronelLuscombe.Ébemsossegado.

—Oquemeadmiraéasenhoraconseguirlembrar-sesempredessascoisas,MissGorringe.

—Nósaquigostamosdefazercomqueosvelhosamigossesintambem.

—Viraquiécomoretornaraumpassadodistante.Parecequenadamudou.

Interrompeu-se ao ver Mr. Humfries, que saía do seu gabinete para ocumprimentar.

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Alguns não iniciados muitas vezes tomavam Mr. Humfries pelo próprioBertramempessoa.EnoentantoquemeraoverdadeiroBertram,ouseexistirarealmenteumMr.Bertram,eraindagaçãocujarespostaseperdianasbrumasdaantiguidade. O hotel Bertram's existia desde cerca de 1840, mas ninguém sepreocupara em pesquisar a sua história anterior. Bastava a constatação da suapresença, o que representava um fato concreto. Quando o tratavam por "Mr.Bertram",Mr.Humfriesjamaiscorrigiaoengano.SequeriamqueelefosseMr.Bertram está bem, seriaMr. Bertram.OCoronel Luscombe sabia-lhe o nome,emboraignorasseseHumfrieseraogerentedohotelouoproprietário.Eoptavapelaúltimahipótese.

Mr.Humfrieserahomemdeunscinquentaanos,muitobemeducado,comapostura de um Ministro Sem Pasta. Podia, de repente, apresentar uma facetaespecial para cada interlocutor. Sabia conversar sobre corridascricket, políticaexterna,contaranedotassobreaFamíliaReal,darinformaçõessobreaExposiçãodeAutomóveis,assistiraàspeçasmaisinteressantesqueestavamemcartaz,davaconselhos sobre os locais que os americanos de passagem deviam visitar naInglaterra,pormais curtaque fossea estadadelesnopaís.Sabia informarcomsegurança o bom local para jantar, de acordo com os gostos e as posses dointeressado, fosse ele quem fosse.Apesar disso, não se barateava. Não estavasempreacessível.MissGorringetinhatambémessasinformaçõesnaspontasdosdedos,epodiafornecê-laseficientemente.Mr.Humfriesmostrava-seaintervalosintermitentes e breves, como o sol, favorecendo com os raios da sua atençãopessoalumououtroescolhido.

EraagoraoCoronelLuscombequerecebiaoraiodesol.Trocaramalgumasbanalidadessobreturfe,masoCoronelLuscombecontinuavaimpressionadocomoseuproblema.Eaquiestavaohomemqueopoderiaresolver.

—Escuteaqui,Humfries,seráquetodasessasvelhotastêmpossesparasehospedaraqui?

—Ah,osenhorestáintrigadocomisso?—Mr.Humfriespareciadivertido.—Bem,arespostaésimples.Elasnãotêmpossesparatanto.Amenos...

EMr.Humfriesfezumapausa.

—Amenosquesefaçampreçosespeciaisparaelas.Certo?

—Maisoumenos.Emgeralelasnãoseapercebemdequeospreçossãoespeciais—ouseapercebem,pensamqueéconcessãoespecialaclientesantigas.

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—Enãoéissomesmo?

—Bem,CoronelLuscombe,eudirijoumhotel.Nãopossomedaraoluxodeperderdinheiro.

—Equaléentãoolucroquevocêtem?

— É uma questão de atmosfera... Os estrangeiros que vêm à Inglaterra(especialmente os americanos que são os que gastam dinheiro), têm lá as suasideias a respeito da vida inglesa. Não me refiro, o senhor compreende, aostubarõesmilionáriosquevivematravessandooAtlântico:essesvãoparaoSavoyeoDorchester;queremdecoraçãomoderna,comidaamericana,tudoqueosfaçasentirem-se como em casa. Mas há um tipo de viajantes que vêm à Europaespaçadamente, e que esperam encontrar uma Inglaterra — bem, não digo aInglaterradeDickens,—masleramCranfordeHenryJamesenãolhesagradaencontrar uma Inglaterra igual à terra deles! De modo que, conhecendo-nos,quando chegam àAmérica, contam: "Existe emLondres um lugar formidável:chama-seHotelBertram's.Éomesmoqueagenterecuarumséculo,eencontraravelhaInglaterra!Opessoalquesehospeda lánãoseencontramaisem lugarnenhum. Umas velhas duquesas estupendas. Servem todos os pratos inglesestradicionais, como por exemplo ummaravilhoso pudim debeefsteak! Em partealgumadomundovocêprovacoisaigual.Eimensosbifesdealcatra,elombosdecarneiro,eocháinglêsàmodaantiga,eopuropequenoalmoçobritânico.E,éclaro, todasascoisasusuais também.Eémaravilhosamenteconfortável.Ebemaquecido. Grandes lareiras de lenha em toros." Mr. Humfries parou com aimitaçãodoamericanoepermitiu-seasombradeumsorriso.

—Estou entendendo—comentouLuscombe pensativo.—Esse pessoal,esses aristocratas decadentes, esses membros empobrecidos da velha nobrezalatifundiária,funcionampraticamentecomomise-en-scène?

Mr.Humfriesfezquesimcomacabeça.

—Oquemedeixa intrigadoéqueninguémmais tenhapensadonisso,Êverdadeque jáencontreioBertram'spraticamentepronto, carecendoapenasdeum dispendioso trabalho de restauração. Todos os nossos freqüentadoresimaginamqueoBertram's éum localqueelesdescobriramsozinhosedoqualninguémmaistemnotícia.

—Então—observouLuscombe—essarestauraçãosaiucaríssima?

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—Sim,saiucara.OhoteltemqueparecercontemporâneodeEduardoVIIe,aomesmotempo,oferecertodooconfortomodernodequalquerhotelatual.Asnossasvelhotas—semepermitereferir-meassimaelas—precisamsentirquenadamudou aqui, desdeo começodo século, e os nossos clientes estrangeirosdevemsentirque,emboranumcenáriovitoriano,elespodemgozarde todososconfortosaqueestãohabituadosnoseupaís—esemosquaisnãopodemviver!

—Éumpoucodifícil,àsvezes,não?insinuouLuscombe.

— Não é muito difícil, não. Por exemplo, o aquecimento central. Osamericanos exigem, ou antes, têm necessidade de pelo menos mais dez grausFahrenheit de calor ambiente do que os ingleses.Nós então dispomos de doistipos de quartos, completamente diferentes. Num dos grupos instalamos osingleses, no outro os americanos. Os quartos parecem todos iguais, mas narealidadesãobemdiferentes:barbeadoreselétricos,chuveiros,alémdebanheirasemalgunsdosquartosdebanho,equemquerumpequenoalmoçoamericano,éservido—cereais,sucodelaranjagelado,etudoomais—e,aquemprefere,éservidoopequenoalmoçoinglês.

—Ovosetoucinho?

— Sim, e muito mais, se o senhor assim o quiser: salmão e arenquedefumado,rins,galinholafria,presuntodeYork,geleiadeOxford.

—Vou procurarme lembrar disso tudo, amanhã pelamanhã. Em casa agentenãoconseguemaiscomernadadisso.

Humfriessorriu:

— A maior parte dos cavalheiros pede apenas ovos com toucinho. Jádeixaram—bem,jáperderamohábitodessascoisasaqueantigamenteestavamacostumados.

— Sim, é mesmo... Lembro-me de quando era criança... Os aparadoresgemendoaopesodospratosquentes.Sim,vivia-secommuitoluxo.

—Procuramosdaraosclientestudoqueelesnospedem.

— Inclusive bolo de cominho emuffins... sim, entendo.A cada um, deacordocomasuanecessidade—entendo...Bemmarxista.

—Perdão,nãoentendi.

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—Umpensamentoquetive,Humfries.Osextremossetocam.

OCoronelLuscombedeumeia-voltaeafastou-selevandoconsigoachavequeMissGorringelhedera.Umdosmensageirosperfilou-seeoencaminhouaoelevador.DepassagemoCoronelviuqueLadySelinaHazyestavasentadaaoladodesuaamigaJaneNão-Sei-de-Quê.

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— ECALCULO que você ainda está morando naquela simpática St.MaryMead?— indagava Lady Selina.— Uma aldeia que a civilização ainda nãoestragou.Muitasvezesmelembrodelá.Imaginoquecontinuaamesmacoisadesempre.

—Bem, nem tanto.—MissMarple refletia sobre certos aspectos do seulocalderesidência.OnovoquarteirãodosEdifícios.OsacréscimosaoprédiodaPrefeitura, as modificações na Rua Principal, com as fachadas modernas daslojas... — Miss Marple suspirou: — Creio que a gente precisa aceitar asmudanças.

—Progresso—dissevagamenteLadySelina.—Emboramuitasvezesmepareçaque issonãoéprogresso.Todasessasvistosas instalaçõessanitáriasqueagora estão emmoda. Todas aquelas cores e o suntuoso "acabamento", comodizemporaí—masseráquerealmentefuncionamquandoagentepuxaoucalcao botão? Toda vez que se visita uma pessoa amiga lá se encontram aquelescartazes no banheiro: "Calque com força e solte" ou "Puxe para a esquerda","Solterápido".Antigamentebastavaagentepuxarumadescargaeimediatamentecaíamcataratas de água... Lá está o nosso querido bispo deMedmenham—interrompeu-seLadySelina,vendopassarumclérigobonitãoeidoso.Achoqueestápraticamentecego.Masquepadreformidável,combativo!

Entregaram-seentãoaumaligeiraconversasobretemaclerical,interrompidade vez em quando por Lady Selina que estava sempre a reconhecer velhosamigoseconhecidos,muitosdosquaisnãoeramaspessoasqueelasupunhaquefossem. Lady Selina e Miss Marple conversaram ainda um pouco sobre "osvelhos tempos", embora a mocidade de Miss Marple houvesse sido muitodiferente da de Lady Selina, é claro; as reminiscências de ambas limitavam-sesobretudo aos poucos anos em que Lady Selina, viúva recente e em difícilsituaçãoeconômica,alugaraumacasinholanaaldeiadeSt.MaryMeadduranteoperíodoemqueoseusegundofilhoestiveralotadonumaeroportopróximo.

—VocêsempresehospedaaquiquandovemàcidadeJane?Comoéquenuncaaviantes?

—Não,claroquenão!Nãotenhomeiosparamehospedaraqui;aliásquasenãosaiodecasaultimamente.Foi ideiadeumasobrinha,queémuitoboaparamim, me proporcionar uma pequena estada em Londres. Joan é uma flor de

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moça,—bem, jáquasenãosepodedizerquesejauma"mocinha".—EMissMarplelembrou-se,comumchoque,queJoanjádeviaestarpertodoscinquenta.—Épintora,sabia?Pintorabastanteconhecida.JoanWest.Fezumaexposiçãopoucotempoatrás.

LadySelinanão se interessavamuitoporpintoresnemporqualqueroutraatividadeartística.Consideravaescritores,pintoresemúsicoscomoumaespéciedeanimaisdecirco;estavaprontaasemostrarindulgenteparacomeles—masintimamentegostariadesaberoporquêdoprazeremfazertaiscoisas.

—Algumdisparatemodernista,imagino—observouela,osolhoscorrendopelasala.—OlhealiaCicelyLonghurst...pintouocabelodenovo.

—É,nãonegoqueaminhaqueridaJoansejaumtantomodernista.

NessepontoMissMarpleestavacompletamenteenganada.JoanWest foramodernistacercadevinteanosatrás,masagoraajovemguardaatinhacomodetodosuperada.

LançandoumrápidoolharparaocabelopintadodeCicelyLonghurst,MissMarplevoltouarecordarcarinhosamenteagentilezadeJoan.Naverdade,Joandisseraaomarido:"CoitadinhadatiaJane,seriaótimoseagentepudessefazerumagradoaela.Apobredavelhotanãosainuncadecasa.VocêachaqueelagostariadepassarumaouduassemanasemBournemouth?"

E Raymond West respondera: "Boa ideia." O último livro dele estavavendendomuitobemeelesesentiadeânimogeneroso.

—CreioqueelagostoumuitodaexcursãoquefezàsAntilhas.Épenaquesetenhavistoenvolvidanaqueleassassinato.

Tipodacoisainconvenienteparaumasenhoranaidadedela.

—MasessascoisasestãosempreacontecendoàtiaJane.

Raymond queria muito bem à sua tia velha, estava sempre procurandodescobrircoisasque fossemdoseuagradoe lhemandando livrosquesupunhapudessem interessá-la. Ficava surpreso ao vê-la, com frequência, recusardelicadamente as ofertas; e, embora declarasse sempre que os livros eram "tãointeressantes",eledesconfiavaàsvezesdequeatianãooslera.Talvezosseusolhosestivessemcansadosedoentes.

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Nesseponto ele se enganava.MissMarple tinhaumavista notável para asuaidade,enaqueleexatomomentoexaminavatudoquesepassavaaoseuredor,comomaiorprazereinteresse.

QuandoJoan lheofereceraumaestadadeumaouduas semanasnumdosmelhoreshotéisdeBournemouth,MissMarplehesitara,murmurando:

—Émuitabondadesua,meubem,masnaverdade,nãosei...

—Masvaiserótimoparaasenhora,tiaJane.Ébomagentesairdecasadevezemquando.Dáideiasnovas,novascoisasemquepensar.

—Ah,sim,nissovocêtemrazão,eeugostariadedarumpasseiodevezemquando,paravariar.MastalveznãoaBournemouth.

Joanficoulevementesurpresa.PensavaqueBournemouthfosseaMecadeMissMarple.

—EntãoEastbourne?OuTorquay?

—Sabeondeeugostariadeirrealmente...eMissMarplehesitou.

—Sim?

—Talvezvocêvápensarqueétoliceminha...

—Não,nãovoupensarnadadisso.—(Paraondequereriairaboavelha?)

—GostariadeirparaoHotelBertram's,emLondres.

—HotelBertram's?Onomeeravagamentefamiliar.AspalavrasacorreramemtropelaMissMarple:

—Eumehospedeiláumavez—quandotinhaquatorzeanos.Commeutioeminhatia,tioThomas,queeraentãoCônegodeEly.Enuncameesquecidelá.Seeupudesse ficar,noBertram'sumasemana seriaobastante... duas semanasdevesercarodemais.

—Ah, ótimo! Claroque a senhora pode ir. Eu devia ter pensado que asenhoragostariadeiraLondres:andarpelaslojas,etc.Vamosacertartudo,seéque o Hotel Bertram's ainda existe. Tantos hotéis têm desaparecido, algunsbombardeados,duranteaguerra,outrosfechandomesmo.

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—Não, por acaso eu sei que o Hotel Bertram's ainda está funcionando.Recebiumacartadelá,daminhaamigaamericana,AmyMcAllister,deBoston.Foiondeelaeomaridosehospedaram.

—Muitobem,entãovou láecombino tudo.—Acrescentougentilmente:— Só tenho medo é de que a senhora vá achar o lugar muito mudado, emcomparaçãoaoqueeraquandooconheceu.Nãováficardesapontada.

Mas oHotelBertram's nãomudara. Era exatamente como sempre fora, oque era praticamentemiraculoso, na opinião deMissMarple. Na verdade, elaficavaapensar...

Comefeito,pareciabomdemaisparaserverdade.MissMarplesabiamuitobem,comsuasensatezesuainteligência,queoseudesejoeraapenasreavivaraslembranças do passado nas velhas cores originais. Grande parte da sua vidaconsumia-se,porforçadascircunstâncias,narecordaçãodepassadasalegrias.Ese a gente descobre alguém com quem as possa rememorar, já chega a serfelicidade.Eisso,atualmente,nãoerafácildeconseguir;MissMarplejáenterraraamaiorpartedosseuscontemporâneos.Assimmesmo,gostavadeficarsentada,a recordar.Singularmente, aquiloa fazia reviver—JaneMarple, aquelagarotaem branco e rosa, tão inquieta... tão tolinha, emmuitas coisas4.. e quem seriaaquele rapaz muito pouco recomendável que se chamava... Oh, Senhor, nãoconseguia lembrar-se do nome dele... E, muito sensatamente, a mãe da garotaresolvera cortar aquela amizade em botão.Anos depois ela o encontrara— e,comefeito,tiveraumaimpressãohorrível.Masnaocasiãoadormecerachorandodurantepelomenosumasemana!

Hoje em dias naturalmente. — E Miss Marple se pôs a pensar nos diasatuais...Essaspobrezinhas.Algumastêmmãe—masparecequeésempreumamãe que não serve para nada— mães incapazes de proteger as filhas contrapaixonitestolas,filhosilegítimosecasamentosprecoceseinfelizes.Étudomuitotriste.

Avozdaamigainterrompeuessasmeditações:

—Bem,eununca.É...sim,é...éBessSedgwickqueestáali!Imagine,logoaqui!

MissMarpleescutavasócomumouvidooscomentáriosdeLadySelinaarespeitodospresentes.Ambasfrequentavamcírculoscompletamentediversos,demodoque seria impossível aMissMarplepartilhardosmexericosescandalosos

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referentesaosdiversosamigoseconhecidosqueLadySelinaiareconhecendoousupunhareconhecer.

MasBessSedgwickeradiferente.BessSedgwickeraumnomeconhecidopor quase toda a Inglaterra. Fazia mais de trinta anos que a imprensa vinhanoticiando que Bess Sedgwick fizera isto ou aquilo e sempre algo deextravagante ou extraordinário. Durante grande parte da guerra lutara entre osmembros da Resistência, na França, — contavam que tinha seis entalhes norevólver,representandoseisalemãesmortos.CruzaraoAtlântico,anosatrás,emvoosolitário,atravessaraaEuropaacavalo,chegandoatéaoLagoVan.Dirigiracarros de corrida, certavez salvaraduascriançasdeumacasa incendiada, tinhavárioscasamentosaseucrédito—ouaseudescrédito—edizia-sequeocupavaosegundolugarentreasmulheresmaisbemvestidasdaEuropa.Dizia-setambémque conseguira tomar parte, como passageira clandestina, na viagem deexperiênciadeumsubmarinonuclear.

FoiportantocomomaisintensointeressequeMissMarpleseendireitounacadeiraesepôsaolharfrancamentearecém-chegada.

FosseoquefossequeMissMarpleesperaradoHotelBertram'snãoesperaraencontrar lá Bess Sedgwick. Uma boate das mais caras ou um botequim demotoristasdecaminhão,—qualquerdesseslugaresestariadentrodolargoâmbitode interesses de Bess Sedgwick. Mas aquela hospedaria antiquada erespeitabilíssimapareciaestranhamenteimprópria.

Econtudoestavaelaali—nãohaviaamenordúvida.RaramentesepassavaummêssemqueorostodeBessSedgwickaparecessenumarevistadamodaounuma folha da imprensa popular. E estava ali em carne e osso, fumando umcigarro com modos impacientes, e olhando com ares surpresos para a grandebandeja de chá à sua frente, como se jamais houvesse enxergado coisasemelhante.Besspediraaogarçom—MissMarpleafiouoolhareespioubem—estavaumpoucodistante—sim,pedirarosquinhas.Interessantíssimo.

E enquanto Miss Marple espiava, Bess Sedgwick esmagou o cigarro nopires, apanhou uma rosquinha e deu-lhe uma grande dentada. Uma espessa evermelhageleiademorangolheescorreupeloqueixo.Bessatirouacabeçaparatrásedeuumarisada—umadasmaisaltasealegresrisadasasefazeremouvir,—desdemuitotempo—nosaguãodoHotelBertram's.

Henry acorreu imediatamente, oferecendo a Bess um pequeno e delicadoguardanapo. Bess o recebeu, esfregou o queixo com o vigor de um rapazola,

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exclamando:—Issoéqueeuchamoumarosquinhaautêntica!ótimo!

Deixou cair o guardanapo na bandeja e levantou-se.Como sempre, atraíatodos os olhares, mas já estava acostumada a isso. Talvez gostasse de que aolhassem,talveznãomaisseapercebessedequeaolhavam.Eraumamulherparaquem valia a pena*olhar—mais vistosa do que bela. O cabelo louro, quasebranco,caía-lhelisoemacio,atéaosombros.Tinhaperfeitaaossaturadacabeçaedo rosto.Onariz levemente aquilino, os olhos fundos e deumcinzento semmescla.Abocaampladeumacomediantedenascença.Ovestidoqueusavaeradetalsimplicidadequedeixavaintrigadosamaioriadoshomens.Pareciafeitodopanomaisgrosseiro,não tinhaomenorenfeiteenenhumacostura,colcheteoufecho aparente. Mas as mulheres não se deixavam enganar. Até mesmo asvelhotasprovincianasdoBertram'ssabiam,comcertezaabsoluta,queumvestidodaquelescustavaosolhosdacara!

Atravessandoasalaemdireçãodoelevador,BesspassoupertinhodeMissMarpleeLadySelma,aquemcumprimentou:

— Como vai, Lady Selina? Não a vejo desde o Crufts. Como vão osBorzois?

—Queéqueandafazendoporaqui,Bess?

—Estouhospedadaaqui.Vimdecarro,deLand'sEnd.Quatrohorasetrêsquartos.Rápido,não?

—Vocêaindasemata,qualquerdiadesses.Oumataoutrapessoa.

—Oh,esperoquenão.

—Masporqueéqueveiosehospedaraqui?

Bess Sedgwick lançou um olhar em redor. Parecia entender o que LadySelinaqueriadizererecebiaaobservaçãocomumsorrisoirônico.

—Alguémmeaconselhouaexperimentarissoaqui;eachoquetinharazão.Acabeidecomerarosquinhamaismaravilhosadestemundo.

—Eelestambémtêmmuffins,meubem.

—Muffins—repetiuLadySedgwick,pensativa.—Sim...—pareciafazerumaconcessão.—Muffins!

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Fezumcumprimentodecabeçaeseguiuparaoelevador.

—Essameninaéextraordinária,—comentouLadySelina.Paraela,comoparaMissMarple,todamulherabaixodossessentaeraumamenina.—Conheço-adesdepequena.Ninguémpodiacomela.Aosdezesseisanosfugiudecasacomumcavalariçoirlandês.Conseguiramtrazê-ladevoltaemtempo...outalveznãofosse mais em tempo. De qualquer forma, subornaram o rapaz e casaram-nadireitinho com o velho Coniston, trinta anos mais velho, farrista aposentado ebabado por ela. Casório que não durou muito. Bess foi embora com JohnnieSedgwick. Já esse casamento poderia ter durado se Johnnie não morresse, depescoçoquebrado,numacorridadecavaloscomobstáculos.Depoisentão,Besscasou com Ridgway Becker, aquele americano, dono de um iate. Três anosdepois divorciaram-se e ouvi dizer que ela andavametida comumcorredor deautomóvel,parecequepolonês.Nãoseisecasoucomeleounão.Depoisdesedivorciardoamericano,BessvoltouausarosobrenomedeSedgwick.Andaporaícomopessoalmaisesquisito...Dizemquetomadrogas...Pormim,nãoseiaocerto.

—Agenteficapensandoseelaseráfeliz—observouMissMarple.

LadySelina,queevidentementejamaisficarapensandocoisanenhumaatalrespeito,olhouaoutra,surpresa:

—Bess temdinheiroaosmontes, suponho—disse semmuitaconvicção.—PensãodedivórcioetudoomaisClaroqueissonãoétudo...

—Não,nãoé.

—Eelasempretemumhomem,ouvárioshomens,andando-lheàcola.

—Verdade?

—Evidentemente,quandocertasmulhereschegamaessaidade,ésóoquequerem...Masdequalquermodo...

ELadySelinafezumapausa.

—Não,—disseMissMarple.—Eutambémachoquenão.

Haveria gente capaz de sorrir em delicada zombaria, ante essepronunciamento emitido por uma velha senhora antiquada, que dificilmentepoderia ser tomada por autoridade em ninfomania, e com efeito Miss Marple

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jamais usaria tal palavra: teria preferido dizer "por demais dada a companhiasmasculinas". Mas Lady Selina acolheu a opinião de Miss Marple comoconfirmaçãodasuaeacentuou:

—Háumamultidãodehomensnavidadela.

—Sim,mastalvezesseshomensrepresentemparaelamaisumaaventuradoquenecessidade,asenhoranãoacha?

E,pensavaconsigoMissMarple,qualamulherqueprocurariaoBertram'sparaumencontrocomumhomem?OBertram's,definitivamente,nãoera lugarpara isso. Mas talvez uma pessoa do tipo de Bess Sedgwick escolhesse oBertram'sjustamenteporessarazão.

Miss Marple suspirou, ergueu os olhos para o belo e antigo relógio dearmárioquebatiadecentementeoseupênduloaumcanto,epôs-sedepé,comacautelacaracterísticadosreumáticos.Dirigiu-selentamenteparaoelevador.LadySelina correu os olhos em torno e avançoupara umcavalheiro idoso, de portemilitar,queliaoSpectator.

—Queprazerencontrá-lo!Hum...éogeneralArlington,nãoé?

Porém, com grande cortesia, o cavalheiro negou ser o generalArlington.Lady Selina pediu desculpas,mas não se perturboumuito. Combinavamiopiacomotimismo,e,umavezqueoseumaiorprazereraencontrarvelhosamigoseconhecidos,viviaacometerenganos.Muitasoutraspessoasfaziamomesmo,ali,pois que as luzes eram agradavelmente coadas por pesados abajures. Masninguémjamaisseofendia—pareceatéqueosenganoslhesdavamprazer.

Miss Marple sorria consigo, enquanto esperava que o elevador descesse.Selinanãomudara!Sempreconvencidadequeconheciatodoomundo.Ela,MissMarple,nãopoderiagabar-sedeproezaidêntica.Seuúnicofeito,nesseterreno,fora a identificação do beloBispo deWestchester,metido nas suas polainas, aquemchamaracarinhosamentede"queridoRobbie",eque lhe responderacomigualafeiçãoecomrecordaçõesdeseustemposdecriança,numacasaparoquialdoHampshire,alheexigir:—Finjaqueagoravocêéumjacaré,TitiaJane.Finjaqueéumjacaréemecoma.

Oelevadordesceueocabineirodemeia-idadeabriuaporta.Paracompletasurpresa deMissMarple, o passageiro que descia eraBess Sedgwick, a quemvirasubirapenasumoudoisminutosantes.

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Eaí,nomeiodapassada,BessSedgwickparouderepente,tãoderepenteque espantouMissMarple, e quase fez com que ela própria tropeçasse. BessSedgwickolhavaporcimadoombrodeMissMarplecomtalconcentração,queavelhasenhoravirou-seeolhoutambém.

Oporteiroacabaradeabrirasduasportasdevaivémdaentradaesegurava-as,paradeixarentrarnosaguãoduasmulheres.Umadelaseraumavelhotadearatarantado,comumlamentávelchapéuroxoeflorido;aoutraeraumamoçaalta,vestidacomelegânciadiscreta,nosseusdezesseteoudezoitoanos,de longoselisoscabelosdecordelinho.

BessSedgwickrecompôs-se,deuumameiavoltaabruptaetornouaentrarnoelevador.EvendoqueMissMarpleentravatambém,desculpou-se:

—Perdão.Quase esbarrei na senhora.—A voz era cálida e amável.—Lembrei-mederepentequetinhaesquecidoumacoisa.Atépareceumdisparate,masnãoé.

—Segundoandar—anunciouoascensorista.MissMarplesorriu,aceitandoasdesculpas,saiudoelevadorecaminhoulentamenteemdireçãoaoseuquarto,revolvendonoespíritocomprazer,esegundoeraseucostume,algunspequenosproblemassemmaiorimportância.

Porexemplo,eramentiraoqueLadySedgwickacabavadedizer.Elamalsubiraaoquartoquandose"lembroudequeesqueceraqualquercoisa"(seacasohaviarealmentealgumaverdadenessadeclaração)edesceraemprocuradessatalcoisa.Oudesceraparaprocuraralguém,ouencontraralguém?Mas,nessecaso,aquiloqueelaviraaoabrir-seaportadoelevadoraassustaraeabalara,fazendo-aimediatamentedarmeiavoltaeretornaraoelevador,esubir—afimdenãoseencontrarcomessealguémqueacabavadever.

Deviatratar-sedasduasrecém-chegadas.Amulherdemeia-idadeeamoça.Mãeefilha?Não,pensouMissMarple,mãeefilha,não.

Mesmo no Bertram's, disse consigo alegremente Miss Marple, podemacontecercoisasinteressantes...

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3

—AH...oCORONELLuscombeestá?

Eraamulherdochapéuroxonobalcãoderecepção.MissGorringesorriuem sinal de boas-vindas, e umboy, que estava postado ali perto, foiimediatamente despachado, mas não precisou levar o recado, pois o CoronelLuscombe em pessoa apareceu na sala, naquelemesmomomento, e se dirigiurapidamenteparaarecepção.

—Comoestá,Mrs.Carpenter?—Apertouamãodasenhora,cortesmente,e virou-se para amoça:—Minha querida Elvira— tomou-lhe as duasmãos,afetuosamente. — Bem, bem, que ótimo! Esplêndido, esplêndido» Venhamsentar-se.—Levou-asparaaspoltronas,acomodou-as.—Bem,bem,—repetiu—estáótimo.

Erapalpáveloesforçoquefazia,comooeratambémasuafaltadejeito.

Não poderia continuar indefinidamente a dizer que "era ótimo".As duasdamas não o ajudavam. Elvira sorria docemente. Mrs. Carpenter deu umarisadinhasemsentidoesepôsaalisarasluvas.

—Fizeramboaviagem?

—Fizemos,obrigada—respondeuElvira.

—Nãotevenevoeiro?Nemcoisaparecida?

—Oh,não.

—Nossovooestavacincominutosadiantado—informouMrs.Carpenter.

— Sim, sim. Bem,muito bem.—E a custo acrescentou:—Espero quegostemdohotel.

—Oh,jáseiqueéótimo—dissecomentusiasmoMrs.Carpenter,olhandoemredor.—Muitoconfortável.

—Talvezumpoucoantiquado—disseoCoronel,comoadesculpar-se.—Comumbandodegentevelha.Sem...semdanças,oucoisaparecida.

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—Éverdade—concordouElvira.

E ela também olhou em redor, de modo inexpressivo. De fato, não seriapossívelligaroBertram'sàideiadedança.

—Umbandodegentevelhaporaqui—repetiuoCoronelLuscombe.—Eudevia, talvez, ter levadovocêsparaumlocalmaismoderno.Nãosoumuitoentendidonessascoisas.

—Aqui está ótimo— disse delicadamente Elvira. O Coronel Luscombecontinuou:

—Masésóporumasduasnoites.Calculeiquevocêsgostariamdeiraumteatro, hoje à noite. Um musical... — pronunciou a palavra meio em dúvida,como se não estivesse certo de usar o termo adequado. "Soltem os cabelos,pequenas".Seráqueesseestábem?

—Que beleza,— exclamouMrs. Carpenter,—Vai ser agradabilíssimo,nãoémesmo,Elvira?

—Agradabilíssimo—respondeuElviraemtommorno.

—Equetalumaceiadepois?NoSavoy?

Novas exclamações da parte de Mrs. Carpenter. O Coronel Luscombe,lançando um olhar de viés a Elvira, animou-se um pouco. Pensava que Elviraestavasatisfeita,emboraresolvidaademonstrarapenasumapolidaaprovaçãonapresença de Mrs. Carpenter. "Eu não a culpo por isso", disse consigo. FaloudepoisaMrs.Carpenter:

—Quem sabe querem ver os seus quartos... ver se estão bem, e tudo omais...

—Oh,tenhocertezadequeestãobem.

—Bom,sevocêsnãogostaremdequalquercoisa,dá-seumjeito.Soumuitoconhecidoaqui.

MissGorringe,queestavanarecepção,acolheu-ascomsimpatia.Osquartoseramosnúmeros28e29combanheirocontíguo.

—Eu vou subir e abrir a bagagem— disseMrs. Carpenter.— E você,

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Elvira,talvezqueiradarumaprosacomoCoronelLuscombe.

"Issoéoquesechama tato",pensouoCoronel.Umpoucoóbvio, talvez,mas de qualquer forma livrava-os dela por algum tempo. Embora não lheocorressenadaa respeitodequepudessedarumaprosacomElvira.Elviraeraumamoçamuitoeducada—maselenãoestavaacostumadoamoças.Suaesposamorrera de parto, e a criança— ummenino— fora criada pela família dela,enquantoumairmãmaisvelhavieralhetomarcontadacasa.Ofilhocasara-seeforamoraremQuênia;dera-lhenetosquetinhamagoraonze,cincoedoisanosemeioehaviamsedivertidomuito,nasuaúltimaestadanaInglaterra,comjogosdefuteboleconversassobreastronáutica,trenselétricosecavalgadasnapernadoavô.Forafácil!Masumamoça!

OCoronel perguntou a Elvira se queria um drinque. Ia propor limonada,gengibirraoularanjada,masElviraantecipou-se:

—Quero,sim.Gostariadeumgimevermute.

O Coronel Luscombe encarou-a, em dúvida. Pelo que imaginava, umamenina—quantosanosteriaela?—dezesseis?dezessete?—nãobebiagimcomvermute.Mas tranqüilizou-se, imaginando queElvira decerto saberia o que erabemeoquenãoera,socialmente.Pediuaogarçomumgimcomvermuteeumxerezseco.

Limpouagargantaeperguntou:

—QuetalaItália?

—Gosteimuito.

—Eesselugarondevocêestava...atalContessa...comoémesmoonomedela?Nãoeraseverademais?

—Éumpoucoexigente.Masnãodeixeiqueissomepreocupasse.

OCoronelolhouparaElvira,semsaberdireitosearespostaeraambíguaounão. E falou, gaguejando um pouco, mas com modos mais naturais do queconseguiramostrarantes:

—Lamentomuitoquenósnãonosconheçamostãobemquantodevíamos,uma vez que, além de seu tutor, sou seu padrinho. É difícil paramim, sabe?,difícilparaumursovelhocomoeu,saberoqueumamoçadeseja,pelomenos...

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querodizer,saberoqueébomparaumamoça.Ocolégioedepoisaescoladeaperfeiçoamento,comosedizianomeutempo.Mascreioquehojeosestudossãomais sérios. Quer uma carreira, não? Um emprego? Correto? Precisamosconversarsobreisso,qualquerdia.Háqualquercoisadeespecialquevocêdesejefazer?

— Acho que vou fazer um curso de secretariado, — disse Elvira sementusiasmo.

—Ah,quersersecretária?

—Nãofaçoquestão.

—Ah,bom...então...

—Éapenasparacomeçar,—explicouElvira.

OCoronelLuscombeteveaestranhasensaçãodequeoestavammandandoconheceroseulugar.

—Essesprimosmeus,osMelfords.Achaquegostariademorarcomeles?Senão...

—Oh,achoquesim.GostobastantedeNancy.EaPrimaMildredémuitoboazinha.

—Entãoestácombinado?

—Está,pelomenosporora.

Luscombe não soube o que responder a esse "por ora". E enquantoprocuravaoquedizer,Elvirafalou.Suaspalavrasforamsimplesediretas.

—Possuoalgumdinheiro?

Novamente o coronel custou um pouco a responder, estudandopensativamenteaafilhada.Disseafinal:

—Possui,sim.Vocêtemumbocadodedinheiro.Istoé, teráquandofizervinteeumanos.

—Quemestácomeleagora?

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OCoronelsorriu.—Estáguardadonobanco;todososanosdeduz-seumacertaquantiadorendimento,paramantervocêepagarsuaeducação.

—Eosenhornãoéoresponsável?

—Umdosresponsáveis.Somostrês.

—Queéqueaconteceseeumorrer?

—Oraessa,Elvira,vocênãovaimorrer!Quedisparate!

—Esperoquenão,masnuncasesabe,nãoé?Nasemanapassadacaiuumaviãoetodoomundoabordomorreu.

—Masissonãolhevaiacontecer,—disseLuscombecomfirmeza.

—Comoéqueosenhorsabe?Euestavasópensandoemquemherdaráomeudinheiro,seeumorrer.

—Não faço amenor ideia,— respondeuoCoronel, irritado.—Porquepergunta?

—Talvez seja interessante—disseElvira, pensativa.—Pergunto amimmesmaseadiantariaaalguémmematar.

—Francamente,Elvira!Estaconversaéumabobagem.Nãoseicomoéquevocêsepreocupacomtaiscoisas.

—Oh,ideiasminhas.Agentegostadesaberosfatoscomosão.

—SeráquevocêestápensandonaMáfia,oucoisasemelhante?

—Oh,não.Issoseria tolice.Masquemficariacomomeudinheiro,seeufossecasada?

—Seumarido,suponho.Masrealmente...

—Osenhortemcerteza?

— Não, não tenho certeza nenhuma. Depende do que se estipulou nacuratela.Masvocênãoécasada.Entãoporquesepreocupar?

Elvira não respondeu. Parecia imersa em pensamentos. Finalmente

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despertouefezumapergunta:

—Osenhorestásemprecomminhamãe?

—Àsvezes.Nemsempre.

—Ondeestáelaagora?

—Ah...viajando.

—Viajandoonde?

—PelaFrança...ouPortugal.Nãoseibem.—Elanuncatevevontadedemever?

O límpido olhar damoça encontrou o deLuscombe.Ele não sabia o queresponder.Seriaahoradedizeraverdade?Oudeveriarespondervagamente?Oulargar uma boa mentira? Que é que se responde a uma menina que faz umapergunta de tal simplicidade, quando a resposta é da maior complexidade? OCoronelfalou,desconsolado:

—Nãosei.

Os olhos de Elvira o examinaram gravemente. Luscombe sentiu-setotalmente constrangido. Estava atrapalhando tudo. A pequena deveria estarimaginando...—evidentementeestavaimaginando...Qualquermoçaoestaria.

—Você não deve pensar...— começou ele.—Quero dizer, é difícil deexplicar.Suamãe—bem,elaédiferentede...

Elviraabanavaacabeçaenergicamente.

—Eu sei.Estou sempre lendo a respeito dela, nos jornais.É umapessoamuito diferente das outras, não é? Acho que ela é mesmo uma pessoamaravilhosa.

—Éverdade—concordouoCoronel—éapuraverdade.Éumapessoamaravilhosa. — Fez uma pausa, depois prosseguiu: — Mas uma pessoamaravilhosacomfrequênciaé...—Hesitou,continuandodepois:—Nemsempreéumafelicidadeagenteterpormãeumapessoamaravilhosa.Podeacreditarnoquedigo,porqueéaverdade.

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—Osenhornãogostamuitodedizeraverdade,gosta?Masachoqueoquedisseagoraéaverdade.

Quedaram-seosdoisaolharasduasfolhasdagrandeportadevaivém,comferragensdelatão,quelevavaparaomundoláfora.

De repenteasportasabriramcomviolência—umaviolência inusitadanoBertram'sHotel—eumrapazentrou,dirigindo-seàrecepção.Usavaumcasacopreto,decouro.Suavitalidadeeratantaque,porcontraste,oBertram\sadquiriuumaatmosferademuseu.Aspessoasemredoreramcomoquerelíquiasdeoutraera,incrustadasdepoeira.Omoçoinclinou-separaMissGorringeeindagou:

—LadySedgwickestáhospedadaaqui?

MissGorringenãomostravanomomentooseusorrisodeboas-vindas.Comumolharduro,respondeu:

— Está. — Depois, com definitiva má vontade, estendeu a mão para otelefone:—Osenhorquererá...

—Não—disseorapaz.Querosódeixarumbilhete.Tirouobilhetedeumbolsodocasacodecouroeofezdeslizarsobreomognodobalcão.

— Eu só queria saber se era mesmo este o hotel. Havia uma leveincredulidade na voz dele, enquanto olhava em torno de si, e depois se voltoupara a entrada. Seus olhos passaram indiferentes por sobre as pessoas queestavamsentadas.PassaramporsobreLuscombeeElvira,eLuscombesentiuderepenteumacólerainesperada."Diabosolevem",pensouconsigo."Elviraéumapequena bonita. Quando eu era novo, sempre enxergava uma moça bonita,especialmentenomeiodetodosessesfósseis."Masomoçoparecianãoterolhosinteressadosemgarotasbonitas.Virou-separaarecepçãoeperguntou,erguendoligeiramenteavoz,comoparachamaraatençãodeMissGorringe.

—Qualéonúmerodotelefonedaqui?Nãoé1129?

—Não—respondeuMissGorringe—é3925.

—Regent?

—Não,Mayfair.

O rapaz agradeceu comummovimento da cabeça.Em seguida caminhou

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rapidamenteparaaportaesaiu,abanandoasduasfolhasatrásdesi,comaquelamesmacaracterísticaexplosivaquemostraraaochegar.

Pareciaque todos tomavamfôlego;eencontravamdificuldadeemretornaraoqueconversavamantes.

—Bem—disseoCoronelLuscombemeiosemjeito,comoselhefaltassempalavras.—Comefeito!Essesmoçosdehoje...

Elvirasorria.

—Osenhornãooreconheceu?—perguntou.—Sabequemé?Falavanumtomlevementerespeitosoaolhepassarainformação.—LadislausMalinowski.

—Ah,aquelesujeito.—Onomeera,emverdade,vagamentefamiliaraoCoronelLuscombe.—Corredordeautomóvel.

—Issomesmo.Foicampeãomundialdoisanosseguidos.Noanopassadodeu uma batida séria. Quebrou uma porção de ossos mas acho que já estácorrendodenovo.—Levantouacabeçaparaescutar.

—Édecorridaocarroqueeleestádirigindoagora.

O ronco do motor, vindo da rua, penetrara no interior do Bertram's. OCoronel Luscombe percebeu que LadislausMalinowski era um dos heróis deElvira."Bem",pensouele,"melhorissodoqueumdessescantorespopularesouumdessescabeludosBeatlesouqueoutronometenham".Luscombeeramuitoantiquado nas suas opiniões sobre rapazes. As portas de vaivém abriram-senovamente.ElviraeoCoronelolharam-nascomcertaansiedade,masoBertram'srevertera ao normal. Quem entrava era apenas um idoso clérigo de cabelosbrancos; ficou por momentos olhando em redor, com a expressão levementeintrigada—comosenãoconseguisselembrarondeestavaecomoéquechegaraali. Aliás, essa experiência não representava uma novidade para o CônegoPennyfather.Acontecia-lheemtrens,quandoderepentenãoselembravadeondeviera,paraondeestavaindo,nemporquê!Acontecia-lhequandocaminhavanarua, acontecia-lhe ao se ver sentado à mesa de um comitê. Já lhe aconteceraquando,sentadonasuapoltronanocorodacatedral,nãosabiadizersejápregaraounãooseusermão.

—Creioqueconheçoaquelevelhote—disseLuscombeolhandoatentooCônego.— Quem será, mesmo?Acho que se hospeda aqui com frequência.Abercrombie? Arcediago Abercrombie? Não, não é Abercrombie, embora se

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pareçacomAbercrombie.

ElviraolhouseminteresseparaoCônegoPennyfather.Comparadocomumcampeão de corridas, não tinha o menor encanto. Ela não se interessava pornenhumaespéciedepadres,embora,desdequandoestavanaItália,confessassecertaadmiraçãopeloscardeaisquepelomenoserampitorescos.

OrostodoCônegoPennyfatherseiluminou,eelesepôsaabanaracabeça,satisfeito.Descobriraondeestava.NoHotelBertram's,claro;ondevinhapassaranoite, a caminho de... a caminho de onde? Chadminster? Não, nãovinha deChadminster. Ia para... claro, para o Congresso, em Lucerna. E caminhou,felicíssimo, para o balcão da recepção, onde foi calorosamente cumprimentadoporMissGorringe.

—Queprazerrevê-lo,CônegoPennyfather.Estácomótimaaparência!

— Obrigado... obrigado... tive um resfriado forte, esta semana, mas jápassou.Asenhoramereservouumquarto.Seráqueeuescrevi?

MissGorringeotranqüilizou.

—Escreveu,sim,CônegoPennyfather.Recebemossuacarta.Reservamosparaosenhoroquarton.°19,omesmoemqueestevedaúltimavez.

—Obrigado, obrigado. Olhe... deixe ver... quero ficar com o quarto porquatrodias.ÉverdadequeestouviajandoparaLucernaeficareiforaumanoite,maspor favornãoalugueoquartoaoutro.Querodeixaraquiamaiorpartedaminha bagagem, só levo para a Suíça uma maleta. Será que há algumadificuldadenisso?

NovamenteMissGorringeotranqüilizou:

— Não há o menor problema. Na sua carta o senhor já tinha explicadoclaramente.

Outra pessoa talvez não houvesse empregado a palavra "claramente"."Amplamente"seriamaispróprio,dadaaminúciadacarta.

Comtodasassuasinquietaçõespacificadas,oCônegoPennyfatherdeuumsuspirodealívioefoilevado,juntocomasuabagagem,paraoquarton.°19.

Noquarton.°28,Mrs.Carpentertiraradacabeçaasuacoroadevioletase

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estava arrumando com cuidado a camisola em cima do travesseiro, na cama.ErgueuosolhosquandoElviraentrou.

—Ah,cáestávocê,meubem.Querqueeuajudeadesarrumaramala?

— Não, obrigada,— disse Elvira com polidez.— Não vou desarrumarquasenada.

—Qualdosquartosvocêprefere?Obanheiroficaentreosdois.Eudisseaelesquepusessemasuabagagemnoquartomaisafastado.Creioqueesteaquiéumpoucobarulhento.

—Muitagentilezasua,—disseElviranasuavozinexpressiva.

—Temcertezadequenãoquerajuda?

—Não,obrigada,nãoprecisomesmo.Achoquevoutomarumbanho,

—Sim,mepareceumaboaideia.Quertomaroseubanhoantesdemim?Prefiroacabaraminhaarrumaçãoprimeiro.

Elvira fez sinal que sim. Dirigiu-se ao banheiro contíguo, fechou a portaatrásdesiecorreuosferrolhos.Foiatéaoquarto,abriuamaletaejogoualgumasroupasemcimadacama.Despiu-seentão,enfiouumrobe,foiparaobanheiroeabriu as torneiras. Voltou ao quarto e sentou-se na cama, junto ao telefone,Escutouummomento,parapreverinterrupções,depoislevantouofone:

—Faladoquarto29.AsenhoraquerligarparaRegent1129,porfavor?

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4

DENTRODORECINTOdaScotlandYardrealizava-seumareunião.Tudofaziacrerqueerauma reunião informal.Seisousetehomenssentavam-seàvontadeemtornodeumamesa,ecadaumdaquelesseishomenseraumaautoridadenoseu ramo. O assunto que prendia a atenção desses defensores da lei era umproblemaqueassumiraterrívelimportâncianosúltimosdoisoutrêsanos,Referia-se a um setor criminal cujo sucesso davamotivo a enormes preocupações.Osroubos em grande escala aumentavam sempre. Assaltos a bancos, roubos dodinheirodasfolhasdepagamento,desviosderemessasdejóiasregistradaspelocorreio, assaltos a trens. Quase não se passava um mês sem que um golpeespantosamenteatrevidofossetentadoelevadoacabocomplenoêxito.

Ocupava a cabeceira da mesa, na presidência, Sir Ronald Graves,ComissárioAssistente da ScotlandYard. Como era seu costume, Sir Ronaldescutavamaisdoquefalava.Nãoestavamsendoapresentadosrelatóriosoficiais,como seria da rotina ordinária de trabalho do C.I.D.{i} Aquela era umaconferência de alto nível, um encontro geral de ideias, entre homens queencaravamo problema sob pontos de vista levemente discordantes. SirRonaldGravescorreulentamenteosolhospeloseupequenogrupoedepoisfezumsinaldecabeçaaohomemdooutroextremodamesa.

—Bem, 'Tapai",—disse ele—queremos ouvir algumas das suas rudespiadas.

O homem a que chamavam Papai era o Inspetor-Chefe Fred Davy. Suaaposentadorianãodemorariaavireeleaparentavamaisidadedoquerealmentetinha.Daí o apelido de Papai. Tinha uma vasta, aconchegante presença e umaexpressão tão bondosa e condescendente, que muitos criminosos se haviamsentidodesagradavelmentesurpreendidosaodescobriremqueeleeraumhomemmuitomenosbemhumoradoecrédulodoqueaparentava.

—Vamos,Papai,digaasuaopinião,—falououtroInspetor-Chefe.

—Acoisacresceumuito—disseoInspetor-ChefeDavycomumsuspirofundo.—Cresceumuito.Etalvezaindaestejacrescendo.

—Vocêquerdizerquecresceunumericamente,nãoéisso?

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—É,sim.

Outro dos homens, Comstock, de rosto inteligente, astuto, olhar vivo,interrompeu:

—Eosenhorachaqueissoparaelesévantagem?

—Simenão—respondeuPapai.—Podeseratéumdesastre.Masodiaboéqueatéagoraelestêmmantidotudomuitobemcontrolado.

O Superintendente Andrews, um homem louro, franzino, de expressãosonhadora,dissepensativo:

—Sempreacrediteiqueessaquestãodevolumeémuitomaisimportantedoqueemgeralsepensa.Vejamporexemploumsujeitoqueoperasozinho.Seonegócioébemdirigidoedotamanhocerto,olucroéinfalível.Masseabrefilial,cresce,aumentaopessoal,épossívelquederepenteacoisaadquirao tamanhoerradoedegringole.Aconteceomesmocomumagrandecadeiadelojas.Oucomumimpérioindustrial.Seforsuficientementegrande,dáresultado.Massenãoforbastante grande, fracassa. Tudo tem que ser do tamanho certo. Quando é dotamanhocertoebemdirigido,nãotemquemsegure.

— E de que tamanho acha você que é esse negócio? — indagourispidamenteSirRonald.

—Maiordoqueaprincípiojulgamos—respondeuComstock.

OInspetorMcNeill,homemdeaparênciadura.comentou:

—Estácrescendo,sim.Papaitemrazão.—Estácrescendosempre.

—Talvez seja uma boa coisa—disseDavy.—Pode crescer um poucodepressademais,eentãosairdostrilhos.

—A questão, SirRonald— interveioMcNeill— é saber quem é que agentepodepegarequando.

—Háumaboadúziadelesqueagentepodepegar—respondeuComstock.—OpessoaldoHarrisandametidonisso,nóssabemos.Háumpontinhomuitobemmontado no caminho deLuton. E uma garagem emEpsom, uma tavernapertodeMaidenhead,eumagranjaemGreatNortonRoad.

Page 33: Agatha christie - o caso do hotel bertram

—Evaleapenapegaralgumdesses?

—Acho que não. Tudo é peixe miúdo. Elos.Apenas elos dispersos dacorrente.Umlocalondereformamcarroseosrepõemrapidamenteemcirculação;uma taverna respeitável, onde se recebem e transmitem recados; uma loja deroupas de segunda mão, onde um camarada pode mudar de aspecto, umcostureirodeteatronoEastEnd,tambémmuitoútil.Étudogentealugada.Muitobempaga,masnaverdadenãosabemdenada!

OsonhadorSuperintendenteAndrewsfaloudenovo:

—Nóslutamoscontragentemuitíssimointeligente.Eaindanãochegamosnempertodeles.Conhecemosalgunsdosseusauxiliares,enadamais.Comoeudisse,obandodoHarrisestámetidonacoisa,eMarkscuidadapartefinanceira.Os contatos do estrangeiro procuramWeber,masWeber é apenas um agente.Nãotemosnadadeconcretocontranenhumadessaspessoas.Sabemosquetodoseles dispõem de meios para entrar em contato uns com os outros e com asdiferentes ramificações do grupo, mas não sabemos exatamente como oconseguem.Nósos vigiamos e os seguimos, e eles sabemqueos vigiamos.Oescritório central há de estar em algum lugar.O que queremos apanhar são osplanejadores.

Comstockinterveio:

—Écomoumaredegigante.Concordoquedevehaveremqualquerparteuma sede de operações. Um local onde se planeja, detalha e encaixa cadaoperação. Em algum lugar alguém bola tudo e prepara um roteiro para aOperaçãoMalaPostal,ouOperaçãoTrem-Pagador.Sãoessaspessoasquetemosdeapanhar.

— É possível que nem vivam no nosso país— observou Papai em vozbaixa.

— Sim, também me atrevo a dizer que talvez nem morem aqui. Talvezmoremnumiglu,numatendaemMarrocos,ounumchalénaSuíça.

— Eu não acredito nesses supercérebros — disse McNeill abanando acabeça.—Sófuncionamemromances.Temquehaverumcérebro,éclaro,masnão acredito num supercriminoso. Pormim, o que eles têm é uma habilíssimaJuntadeDiretores,complanejamentocentraleumpresidente.Deramcomalgumprocessobom,eestãosempremelhorandodetécnica.Apesardisso...

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—Sim?—animou-oSirRonald.

— Mesmo num grupo compacto e reduzido, deve haver entre eles osdispensáveis.Oqueeuchamo"princípiodoTrenóRusso".Devezemquando,seachamqueestamospisandooscalcanharesdeles,jogam-nosumdosseus,umdosquepodemdispensar.

—Admiroelesseatreverematanto;nãoseráarriscadodemais?

—Imaginoqueacoisapoderiaserfeitadetalmodoquenemmesmoaqueleque foi jogado fora compreendesse que o haviam atirado do trenó. Ele devepensarapenasquecaiu.Eficarácalado,porquepensaráquevaleapenacalar-se.Evaleráapena,mesmo.Elesdispõemdemuitodinheiroepodemsedaraoluxodeseremgenerosos.Cuidamdafamília,seocamaradatemfamília,enquantoeleestápreso.Possivelmenteatélhepreparamafuga.

—Temhavidomuitoscasosdesses—disseComstock.

—Ameuver—interveioSirRonald—nãonosadiantamuitoinsistirmosnasnossasespeculações.Dizemossempreamesmacoisa.

McNeillriu:

—Equeéqueosenhordesejaqueagentefaça?

—Bem...—SirRonald ficouapensar, porummomento, edepois faloulentamente:—Nóstodosestamosdeacordonospontosprincipais.Concordamosnanossadiretivaprincipalarespeitodoquetentamosfazer.Achoquevaleriaapena fazermos um inventário de pequenas coisas, as coisas sem muitaimportância,masquetêmemsialgodeinusitado.Édifícildeexplicaraquemerefiro,maslembroaqueledetalhedocasoCulver,algunsanosatrás,Umamanchadetinta.Estãolembrados?Umamanchadetintaemtornodeumburacoderato.Paraqueumsujeitohaveriadeesvaziarumagarrafadetintanumburacoderato?Não parecia importante. Era difícil de se obter uma resposta. Mas quandoobtivemosessaresposta,estávamosnobomcaminho.Éisso,maisoumenos,otipo de pesquisa em que estava pensando. Procurarmos coisas singulares. Nãotenhammedodecontar,sederemcomalgumacircunstânciaquelhespareçaforadocomum.Insignificante,talvez,masirritante,porquenãocombinacomoresto.VejoquePapaiconcorda.

—Concordomilporcento—disseoInspetor-Chefe

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Davy.—Vamos,rapazes, tratemdeaparecercomalgumanovidade,Nemquesejaumhomemnaruacomumchapéuesquisito.

Não houve resposta imediata. Todos pareciam um pouco incertos ehesitantes.

—Vamos lá—dissePapai.—Vou seroprimeiro amearriscar.Talvezsejaapenasumcasinhoengraçado,masvaleapenacontar.OassaltonoLondon& Metropolitan Bank, agência de Carmolly Street. Lembram-se? Uma listacompletadenúmeros, cores emarcasde carro.Fizemosumapelo àpopulaçãopara se manifestar e o pessoal atendeu. E como atendeu! Cerca de cento ecinquentacomunicaçõesetodasenganosas!Depoisdemuitatriagem,chegamosà conclusão de que sete carros tinham aparecido pelos arredores do banco, equalquerumdelespoderiaestarligadoaoassalto.

—Sim—disseSirRonald—continue.

— Havia um ou dois que não conseguíamos identificar. Deviam ter asplacas trocadas. Nada de especial nisso, acontece freqüentemente. A maioriaacaba sendodescoberta.Voudar apenasumexemplo: oMorrisOxford, sedanpreto,númeroCMG256,apontadoporumoficialdejustiça.Segundoele,estavasendodirigidopeloMeritíssimoJuizLudgrove.

Papaiolhouemtorno;osoutrosoescutavam,masseminteressevisível.

— Eu sei — continuou Papai.— informação tola, como sempre. O JuizLudgrove é fácil de notar, principalmente porque é feio como a necessidade.Bem, mas não se tratava do Juiz Ludgrove, porque nessa hora ele estava noTribunal.EelepossuiumMorrisOxford,masaplacadocarronãoeCMG256.—Tornouaolharparaosoutros:—Jásei, jásei.Vocêsvãodizerquenãohánada de especial nisso. Mas sabem qual era o número do carro? CMG 265.Parecidíssimo, não é? O tipo do erro em que a gente pode cair quando tentarecordaraplacadeumcarro,não?

—Desculpe—disseSirRonald—masnãovejo...

—Exato—conveiooInspetor-ChefeDavy—nãohápropriamentenadaparasever,nãoé?Apenasregistre-seasemelhançacomocarroverdadeiro:265-256CMG.É uma coincidência curiosa que exista um carroMorrisOxford damesmacor,comomesmonúmeronaplaca,apenascomumalgarismoinvertido,e,nadireção,umhomemparecidíssimocomoproprietário.

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—Vocêquerdizerentão.,.

—Sóumadiferençazinhadealgarismo.O"enganodeliberado"dehoje.Oupelomenospareceser.

—Desculpe,Davy,masaindanãoviaondevocêquerchegar.

—Ah,nãopretendochegaranenhumaconclusãoespecial.TemosumcarroMorrisOxford,placaCMG265,passandopelaruadoisminutosemeiodepoisdoassaltoaoBanco.Enele,ooficialdejustiçareconheceoJuizLudgrove.

— Você estará querendo dizer que era realmente o Juiz Ludgrove? Oravamos,Davy.

—Não,nãoestouinsinuandoqueeraoJuizLudgrove,nemqueeleestejaenvolvidonumassaltoaumbanco.EleestavahospedadonoHotelBertram's,emPond Street, e nomomento exato do roubo achava-se no Tribunal. Tudo issoficoumaisdoqueprovado.Oqueeudigoéqueonúmeroeamarcadocarro,mais a identificação por um oficial de justiça que conhecemuito bem o velhoLudgrove,éumacoincidênciaquedevesignificaralgumacoisa.Mas,peloqueseviu,nãosignificanada.Épena.

Comstockmexeu-se,poucoàvontade.

—Houveoutrocasosemelhanteaesse,quandosedeuoroubonajoalheriadeBrighton.Tratava-sedeumvelhoalmirante,creioeu.Esqueçoonomedeleagora.Segundoamulherqueoidentificou,eleestavapresentenolocal.

—Enãoestava?

— Não, estava em Londres naquela noite. Tinha vindo para um dessesjantarescomemorativosdaMarinha.

—Hospedou-senoclube?

—Não, num hotel.Acho que o mesmo que você mencionou há pouco,Papai. Bertram's, não é isso? Lugar sossegado, frequentado por vários dessesvelhosoficiaisreformados.

—HotelBertram's—repetiu,pensativo,oInspetor-ChefeDavy.

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5I

Miss MARPLE ACORDOU cedo porque sempre acordava cedo. Muito lheagradavaacama—confortabilíssima.

Dirigiu-se à janela e abriu as cortinas, deixando entrar a pálida luzdodialondrino.Masnãodispensoualuzelétrica.Muitíssimoagradáveloquartoquelhehaviamreservado,bemdentrodatradiçãodoBertram’s.Papeldeparedefloridoderosas,umagrandecômodademognopolidoepenteadeiracombinando.Duascadeiras,umapoltronaaboaalturadochão.Umaportalevavaaobanheiroque,emboramoderno,tinhaumpapeldeparedetambémestampadoderosas,evitandoassimoefeitodesuperfrígidahigiene.

MissMarplevoltouàcama,levantouostravesseiros,olhouorelógio—seteemeia— apanhou o livrinho de orações que sempre a acompanhava e leu acostumeirapáginaemeia,queeraasuacotadiária.Emseguidapegouotricôesepôs a tricotar, a princípio lentamente, porque sempre sentia os dedos rígidos ereumáticos assim que acordava; mas logo a velocidade aumentou e os dedosperderamadoloridarigidez.

"Outro dia", disse consigo Miss Marple, saudando o fato com o seucostumeiroediscretoprazer.Outrodia,equemsabeoqueelelhereservava?

Largou o tricô, deixando que os pensamentos lhe corressem preguiçosospelacabeça...SelinaHazy—quelindacasinhatinhaelaemSt.MaryMead's—e agora tinham pregado por cima aquele horroroso teto verde...Muffinsdesperdiçam manteiga demais... mas ótimos... E imagine, servirem bolo decominho,coisatãoantiga!Jamaiselaesperara,nemporuminstante,queascoisasali fossem taoparecidas comasdeoutrora... porque, afinalde contas, o temponãopara...Efazê-lopararassim,comonoBertram's,deviacustarumaporçãodedinheiro...Nãoseviapelohotelinteiroumsópedacinhodeplástico!Deviadarresultado, claro. As coisas fora da moda voltam à moda como elementopitoresco...Bastavercomoopessoaladoraasrosasdotempoantigo,edesdenhaocháhíbrido.Nada,ali,pareciaverdadeiramentereal...bem,eporquehaveriadeparecer?Faziacinquentaanos...não,quasesessenta,queelasehospedaraali...Ese o hotel não lhe parecia real é porque ela já estava aclimatada a este ano dagraça... naverdade,ocasopunhaemabertoumasérienovadeproblemas...Aatmosferaeaspessoas...EosdedosdeMissMarpleafastaramotricôparamaislongedesi.

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—Muito dinheiro— disse ela em voz alta.—Muito dinheiro, creio. Edificílimodeencontrar...

Seria isso responsável pela curiosa sensação de constrangimento que aafetarananoitepassada?Asensaçãodequequalquercoisaestavaerrada...

Todasaquelasvelhas—naverdadeparecidíssimascomaquelasoutrasdecinquentaanosatrás,quandoelaalisehospedara.Naqueletempoelaspareciamnaturais—mas não eram naturais agora.As pessoas idosas de hoje não eramiguais às pessoas idosas de antigamente— agora, tinham um ar preocupado,atribulado pelas inquietações domésticas que lhes esgotavam as forças; ouparticipavamde.comitês,procurandomostrar-seocupadíssimasecompetentes,outingiamocabelodeazuldegenciana,ouusavamperucas;easmãosnãoeramasmãosdequeelaserecordava,mãosfinas,delicadas—eramásperasporculpadalavagemderoupaedosdetergentes...

Eassim—bem,aquelaspessoasnãopareciamreais.Masaverdadeéqueeramreais.SelinaHazyerareal.Eaquelebonitovelhomilitar,sentadoaocantodasala,erareal—elaoencontraraumavez,emboranãolherecordasseonome—eoBispo(queridoRobbie)játinhamorrido.

MissMarpleconsultouseuminúsculorelógio.Eramoitoemeia—horadocafé.

Releu as instruções da gerência do hotel. Impressão ótima, graúda, nãoprecisavaagentenembotarosóculos.

As refeições podiam ser servidas no quarto, bastava ligar para a copa, ouapertarobotãodacampainhacomonomedacamareira.

MissMarpleapertouobotão.Falarparaacopaaintimidava.

O resultado foi excelente. Quase no mesmo instante bateram à porta, eapareceu uma camareira impecável. Uma camareira real que parecia irreal,usando um uniforme de listras cor de alfazema, e até mesmo umatouca, umatoucaengomada.Umrostosorridente,rosado,decamponesaautêntica.(Ondeéqueelesencontravamgenteassim?)

Miss Marple escolheu o seu pequeno almoço. Chá, ovos escalfados,brioches frescos. E tão perfeita era a camareira que nem chegou sequer amencionarmingauouflocosdecerealousucodelaranja.

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Cincominutos depois chegou a refeição.Umabandeja espaçosa, comumgrande bule ventrudo, leite cremoso, um jarro de prata com água quente.Doisovos lindamente escalfados sobre torradas, escalfados da maneira correta, nãoaquelesbolõesduros,cozidosemfôrmasdefolha;eumaboarodelademanteiga,estampadacomumcardo.Geléiado laranja,mel, geleiademorango.Briochesesplêndidos,nãoaquelesduroscomaparteinternafinacomopapel—cheiravamapãofresco(ocheiromaisdeliciosodomundo!)Ehaviaaindaumamaçã,umaperaeumabanana.

Miss Marple enfiou a faca num ovo, cautelosa mas confiante. Não sedesapontou. Uma gema bem amarela escorreu, grossa e cremosa. Ovos deverdade!

E tudo quentíssimo.Um senhor pequeno almoço. Como os que ela sabiapreparar—mas não tivera que o fazer. Era-lhe servido como se— não, nãocomoseelafosseumarainha—comoseelafosseumasenhorademeia-idade,hospedadanumhotelbom,masnãomuitocaro,—noanode1909.MissMarpledeuseusagradecimentosàcamareira,querespondeucomumsorriso:

—Sim,senhora,ochefdámuitaimportânciaaopequenoalmoço.

MissMarpleexaminoucomprazeramoça.OHotelBertram'sespecializava-seemoferecermaravilhas.Umacamareiraautêntica.Beliscouobraçoesquerdo,disfarçada-mente.Eindagou:

—Vocêjáestáaquihámuitotempo?

—Acabodefazertrêsanos,Madame.

—Eondeestavaantesdisso?

— Num hotel em Eastbourne. Muito moderno, mas eu prefiro lugaresantigos,comoeste.

MissMarpletomouumgoledechá.Deuporsiacantarolarvagamente—aspalavrassearrumandonumacantigahámuitoesquecida.

"Oh, por onde andou você em toda aminha vida..."A camareira parecialevementeespantada.

—Euestavamelembrandodeumacançãoantiga<—pipilouMissMarple.—Umsucessodomeutempo.

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Etornouacantar,suavemente:"Oh,porondeandouvocêemtodaaminhavida..."

—Seráquevocêconheceestacantiga?

—Bem—acamareirapareciaencabulada.

—Paravocêémuitoantiga—observouMissMarple.—Ah,ágentedápararecordarcoisasnumlugarcomoeste.

— Sim, Madame, acho que muitas senhoras que se hospedam aqui sesentemassim.

—Emparteéporissoqueelasvêmparacá,creioeu—disseMissMarple.

A camareira saiu. Evidentemente estava habituada a senhoras idosas quepipilavameseentregavamarecordações.

Terminado o pequeno almoço, Miss Marple levantou-se, satisfeita eindolente. Já tinha umplano para umamanhã agradável nas lojas.Nadamuitoestrênuo—paranãose fatigar.TalvezOxfordStreet,hoje,eamanhãKnights-bridge,projetavaela,feliz.

EramcercadedezhorasquandoMissMarplesaiudoquartodevidamenteequipada:chapéu,luvas,sombrinha—porsegurança,emboraotempoestivessebonito—bolsa—asuamelhorbolsadecompras...

A porta, dois quartos além no corredor, abriu-se bruscamente e alguémespioupara fora.EraBessSedgwick que logo recuoupara dentro do quarto efechouaportaincisivamente.

MissMarplesepôsacismarenquantodesciaaescada.Preferiaaescadaaoelevador, assim pela manhã. Era um bom exercício, estimulava-a. Mas seuspassosagorasetornavamlentos,maislentos...eMissMarpleparou.

IIO Coronel Luscombe atravessava o corredor, após deixar o seu quarto,

quandoumaporta,noaltodaescada,abriu-seinesperadamenteeLadySedgwicklhefalou:

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—Afinalvocêaparece!Tenhoestadoàsuaespera,paralhesaltaremcima!Ondepodemosconversar?Querodizer,semquenosinterrompaacadasegundoumadessasgatasvelhas.

—Bem,naverdade,Bess,nemseidireito...Achoquenasobrelojaháumaespéciedesaladecorrespondência.

—Émelhor você entrar aqui. E depressa, antes que a camareira imaginecoisasestranhasanossorespeito.

O Coronel, um pouco a contragosto, passou pela porta e fechou-afirmementeatrásdesi.

—Eunãotinhaamenorideiadequevocêfossesehospedaraqui,Bess,nãotinhaamínimaideia.

—Suponhoquenãotevemesmo.

—Quero dizer... eu jamais teria trazido Elvira para cá.Estou com Elviraaqui,vocêjásabe,não?

—Sei,via-aontemànoitecomvocê.

—Maseunãosabiarealmentequevocêestavaaqui.Pareciaumlugartãopoucocondizentecomvocê.

—Nãoseiporque—respondeuBessSedgwickfriamente.—NaverdadeéohotelmaisconfortáveldeLondres.Porqueeunãoviriaparacá?

— Você precisa compreender que eu não tinha a mínima ideia... Querodizer...

Lady Sedgwick olhou o Coronel e riu. Estava vestida para sair, com umcostume escuro,muito, bem talhado, e blusa de um brilhante verde esmeralda.Pareciaalegreeanimadíssima.Aoseulado,oCoronelLuscombepareciavelhoedesbotado.

— Derek querido, não fique tão preocupado. Não o estou acusando deprepararaencenaçãodeumencontro sentimentalentremãee filha.Foiapenasuma dessas coisas que acontecem: pessoas que se encontram nos locais maisinesperados.Masvocêtemque tirarElviradaqui,Derek.Temque tirá-ladaquiimediatamente—hoje.

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—Ah,elavaiembora.Sabequesóatrouxeparacaporumaouduasnoites.Levá-laaumteatro...coisasassim.AmanhãelavaiparaacasadosMelfords.

—Coitada,devesermaçanteparaela.

LuscombeolhoupreocupadoparaBess.—Achamesmoqueelavai ficarmuitomaçada?Bessapiedou-sedele.

—Provavelmentenão,depoisdoquedeve ter enfrentadona Itália.Quemsabeatévaiacharmuitodivertido.

Luscombetomouacoragemcomambasasmãos.

—Escute,Bess,fiqueiespantadoporencontrá-laaqui,masnãoachaquefoi—bem,nãoachaquedecertomodofoiprovidencial?Querodizer: talvezsejaumaoportunidade.Nãocreioquevocêsaibarealmente...bom,comoapequenasesentiria.

—Queéqueestátentandodizer,Derek?

—Bem,afinalvocêémãedela.

—Claroquesoumãedela.Elaéminhafilha.Equalavantagemdessefatoparaqualquerdenósduas,hojeounofuturo?

—Vocênãopodetercerteza.Creio...creioqueelasenteisso.

—Deondelheveioessaideia?—indagourispidamenteBessSedgwick.

—Deumacoisaqueelamedisseontem.Perguntouondevocêestava,queéquefazia.

BessSedgwickatravessouoquartoechegouàjanela.Ficouummomentoatamborilarnavidraça.

— Você é tão bonzinho, Derek. Tem ideias tão amáveis. Mas que nãofuncionam,meu anjo. Isto é o que você deve compreender. Não funcionam epodemserperigosas.

—Oraessa,Bess.Perigosas?

—Sim,sim,sim.Perigosas.Eusouperigosa.Semprefuiperigosa.

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—Quandopensoemcertascoisasquevocêfez—disseoCoronel.

—Ninguémtemnadacomisso—retrucouBess.—Jásetornouumhábitoparamim, correr perigo.Não, não direi umhábito.Antes umvício.Comoumnarcótico.Comoaquelapitadinhadeheroínaqueosviciadostêmquetomarcomtantafrequênciaparaqueavidalhespareçaalegreedignadeservivida.Bem,éissomesmo.Éaminhadesgraça...ounão,quemsabe?Nuncatomeinarcóticos...nuncapreciseideles.Meuvícioéoperigo.Masaspessoasquevivemcomoeupodemcausardanosaoutras.Ora,nãosejaumvelhobobocaeteimoso,Derek.Vocêcuidabemdessameninalongedemim.Nãopossofazerbemnenhumaela.Sómal.Se forpossível, não adeixe saberque estamoshospedadosnomesmohotel.TelefoneaosMelfordseleve-aparaacasadelesaindahoje. Inventeumadesculpa,umcontratempodeúltimahora...

OCoronelLuscombehesitou,puxandopelobigode.

—Achoquevocêestácometendoemerro,Bess.—Suspirou.—Elameperguntouondeéquevocêestava.Eeudissequevocêestavaviajando.

—Bem,dentrodeumasdozehorasestareiviajandomesmo,deformaqueaexplicaçãocalhou.

Bessaproximou-sedoCoronel,beijou-onapontadoqueixo,fê-lodarmeiavolta,comosefossemcomeçarabrincardecabra-cega,abriuaportaeempurrou-o brandamente para fora. Quando a porta se fechou, o Coronel avistou umasenhoraidosaquedobravaocanto,vindadaescada.Murmuravaqualquercoisa,examinandoabolsa."Deusmeu!Devoterdeixadonoquarto."

Passou pelo Coronel sem aparentemente lhe prestar muita atenção, masquando ele começou a descer a escada, Miss Marple parou junto à porta doquarto dela e lançouumolhar inquisitivo na direção do homem.Depois olhoupara a porta de Bess Sedgwick. "Então era por ele que ela esperava", disseconsigoMissMarple."Gostariadesaberporque".

IIIOCônegoPennyfather,fortificadopelopequenoalmoço,atravessouasala

de entrada, lembrou-se de entregar a chave na recepção, passou peia porta devaivémefoidevidamentecolocadonumtáxipeloporteiroirlandês,queestavaalijustamenteparafazeresseserviço.

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—Ondeosenhorvai?

— Ah meu Deus! — disse o Cônego Pennyfather subitamentedesconsolado.—Deixe-mever...paraondeéqueeuia?

O tráfego em Pond Street ficou paralisado alguns minutos, enquanto oCônegoPennyfathereoporteirodebatiamointricadoproblema.

FinalmenteoCônegoPennyfatherteveumestaloeotáxirecebeuordemdesedirigiraoMuseuBritânico.

Oporteiroficounacalçada,comumlargosorrisonacara,ejáqueninguémmaispareciaestardesaída,permitiu-sepassearumpoucoaolongodafachadadohotel,assobiandobaixinhoumamelodiaantiga.

Uma das vidraças do andar térreo do Bertram's foi puxada violentamenteparaoalto,masoporteirosóvirouacabeçaquandoumavozsefezouviratravésdajanelaaberta.

—Entãofoiaquiquevocêveioparar,Micky.Quediabootrouxeparacá?

Oporteirodeumeiavolta,assombrado,earregalouosolhos.

LadySedgwickenfiouacabeçapelajanelaeperguntou:

—Vocênãoestámereconhecendo?

Umbrilhosúbitodereconhecimentopercorreuorostodohomem.

— Ora, pois não é Bessie! Vejam só. Depois de tantos anos. Bessie,menina!

—SóvocêmechamadeBessie.Éumnomerepugnante.Queéquevocêandoufazendoessesanostodos?

—Umacoisaeoutra—respondeuMickycomalgumareserva.—Nãosounotíciacomovocê.Estousemprelendosuasfaçanhasnosjornais.

BessSedgwickriu.—Dequalquerforma,estoumuitomaisconservadadoquevocê.Vocêbebedemais.Semprebebeu.

—Vocêestámaisbemconservadaporquenadaemdinheiro.

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—Dinheironão lheadiantariacoisanenhuma.Vocêbeberiaaindamaiseiriacompletamentedeáguaabaixo.Iria,iriasim!Masquefoiqueotrouxeaqui?Issoéqueeuqueriasaber.Comofoiquevocêveiopararnestelugar?

—Euprecisavadeemprego.Tinhaessescacarecos...—eMickypassouamãopelasmedalhasdopeito.

—Sim,estouvendo.—Bessficoupensativa.—Sãotodasverdadeiras,nãosão?

—Claroquesão.Porquenãoseriam?

—Oh,euacreditoemvocê.Vocêsemprefoicorajoso.Semprefoiumbomlutador.Sim,oexércitodevetersidooseuelemento,tenhocerteza.

—Oexércitoébomemtempodeguerra.Emtempodepaznãopresta.

—Eentãovocêseagarrouaessenegocio.Eunãotinhaamenorideia...—Bessfezumapausa.

—Vocênãotinhaamenorideiadeque,Bessie?

—Denada.Écuriosorevervocêdepoisdetantosanos.

—Eu nãomeesqueci—disseohomem.—Nuncameesquecidevocê,Bessie.Ah,comovocêeralinda!Umagurialinda.

—Umaguriamaluca,eisoqueeuera—respondeuLadySedgwick.

— Isso é verdade.Vocênão tinhamuito juízo.Se tivesse, não semeteriacomigo.Quemãosquevocêtinhaparadominarumcavalo!Lembra-sedaquelaégua?Como é que ela se chamava?MollyO' Flynn.Era umdemônio, aquelaégua.

—Sóvocêpodiamontá-la—disseLadySedgwick.

— Se ela pudesse, me atirava ao chão!Mas quando viu que não podia,entregouospontos.Eraumabelezadeanimal.Masfalandoemmontaracavalo,nãohavianaquelaredondezaumasómulherquemontassecomovocê.Firmenasela, firme nas rédeas. Semmedo, nunca tevemedo, umminuto que fosse. Econtinuadomesmojeito,aoqueparece.Aviões,carrosdecorrida.

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BessSedgwickriu.

—Precisoacabarasminhascartas.Eafastou-sedajanela.

Mickydebruçou-senopeitoril.—NãomeesquecideBallygowlan—dissecomentonaçãoespecial.—Chegueiatéapensaremlhemandarumacarta...

AvozdeBessSedgwicksoouáspera.

—Queéqueestáinsinuando,MickGorman?

— Estava só dizendo que não me esqueci... de nada. Estava só... lhelembrando.

AvozdeBessSedgwickmantinhaamesmanotaáspera.

—Sevocêquerdizeroqueeupensoqueestáquerendodizer,dou-lheumconselho. Se você me arranjar alguma complicação dou-lhe um tiro, como sedesseumtironumrato.Jádeitiroemhomem...

—Noestrangeiro,talvez...

—Noestrangeiroouaqui...pramimtantofaz.

—Chega, santoDeus!Eu acredito que você seja capaz dissomesmo.—Haviaadmiraçãonavozdele.—EmBallygowlan...

—EmBallygowlan— interrompeu ela— pagaram a você para ficar debico calado e pagarambem.Você recebeu o dinheiro.E demimnão receberámaisnada.Portantonempense!

—Seriaumainteressantehistóriaromânticaparaosjornaisdedomingo...

—Vocêouviuoqueeudisse.

—Ah—riuele,—nãoestou falandosério.Sóestavabrincando. Jamaisfaria qualquer coisa paramagoar aminhapequenaBessie.Continuarei debicocalado.

—Issomesmo—retrucouLadySedgwick,fechandoajanela.Ebaixandoosolhosparaamesaàsuafrente,olhouparaacartainacabadanoblocodepapel.Arrancou-a, releu-a, amarrotou-a até reduzi-la a uma bola e atirou-a à cesta de

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papéis. Depois levantou-se abruptamente da cadeira e atravessou a sala. Nemsequerolhouemtornoantesdesair.AssalinhasdecorrespondênciadoBertram'stinham um jeito de parecer vazias, mesmo quando não o estavam. Duasescrivaninhasbemarranjadasficavamjuntoàsjanelas;haviaumamesaàdireita,com algumas revistas; à esquerda viam-se duas grandes poltronas de espaldaralto,voltadasparaalareira.Eramlocaisprediletos,àtarde,develhosmilitares—exércitooumarinha—quealiseescondiamparatirarumaboasonecaatéàhoradochá.Quemchegasseparaescreverumacartanãoosavistaria.Pelamanhã,aspoltronasnãoerammuitoprocuradas.

Masporacaso,naquelamanhã,estavamambasocupadas.Numaachava-seumasenhoraidosa,naoutraumajovem.Amocinhalevantou-se.Ficoudepéummomento,olhandoemdúvidaparaaportaporondepassaraLadySedgwick,eemseguidadirigiu-se lentamentepara lá.Umapalidezmortal cobriao rostodeElviraBlake.

Aocabodecincominutos,asenhoraidosamexeu-se.MissMarpleconcluiuentãoqueobreverepousoquecostumavadarasimesmasemprequeacabavadevestir-seedescer,jáduraraosuficiente.EratempodesairegozardosprazeresdeLondres. Caminharia até Piccadily e lá tomaria o ônibus 9 para High Street,Kensington,ouiriaatéBondStreetepegariao25paraMarshall&Snelgrove's;outomariao25emsentidocontrário,que,peloqueselembrava,haveriadelevá-laàsArmyandNavyStores.Aopassarpelasportasdevaivémaindasaboreavamentalmenteessasprometidasdelícias.Oporteiroirlandês,jádevoltaaoposto,decidiuporela.

—Asenhoraestáprecisandodeumtáxi—disseelecomfirmeza.

—Creioquenão—respondeuMissMarple.—Achoqueposso tomaroônibus25bempertodaqui—ouo2,quevemdeParkLane.

—Ônibusnãoserveparaasenhora—disseconvictooporteiro.—Émuitoperigosopegarônibusquandonãoseémaiscriança.Elesparamearrancamaossolavancos, não querem saber se derrubamas pessoas.Essa gente de hoje nãotemcoração.Euapito,o táxivem,ea senhoravaiparaondequiser, feitoumarainha.

MissMarplepensouumpoucoesucumbiu.

—Entãoestácerto—disseela—talvezsejamelhoreutomarumtáxi.

O porteiro nem precisou apitar. Limitou-se a estalar o dedo, e um táxi

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apareceu como num passe de mágica. Miss Marple recebeu todo o auxíliopossívelparaentrare,atocontínuo,resolveuimpulsivamenteiratéRobinson&Cleaver's para ver as lindas ofertas de lençóis de linho puro. Acomodou-sesatisfeitano táxi, sentindo-se realmente, como lheanunciaraoporteiro, talqualumarainha.Enchia-lheacabeçaaagradávelexpectativadeencontrarlençóisdelinho, fronhas de linho, panos de enxugar copos e louça sem estamparias debananas, figos ou cachorros ensinados e outras figuras coloridas que só fazemdistrairagentenahoradeenxugarospratos.

LadySedgwickaproximou-sedobalcãoderecepção.

—Mr.Humfriesestánoescritório?

—Está,sim,LadySedgwick.—MissGorringepareciaespantada.

Lady Sedgwick passou por trás do balcão, bateu na porta e entrou semesperarresposta.

Mr.Humfrieslevantouavista,surpreendido.

—Que...?

—Quem empregou aquele talMichael Gorman?Mr. Humfries gaguejouumpouco.

—Parfittfoiembora.Sofreuumacidentedeautomóvelhácoisadeummês.Tivemos de substituí-lo às pressas. Esse camarada parecia servir. Boasreferências,veteranodoexército,ótimafolhadeserviço.Talveznãosejamuitointeligente, mas isso às vezes é até melhor.A senhora sabe de alguma coisacontraele?

—Obastanteparanãooquereraqui.

— Já que insiste — respondeu Humfries com fleuma — nós odespediremos.

—Não—disseLadySedgwickcomiguallentidão.—Não,agoraétarde...Nãofazmal.

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6I

—ELVIRA!

—Olá,Bridget.

A aristocrataElviraBlake cruzou a porta da frente do n° 180 deOnslowSquare,portaquesuaamigaBridgetcorreraaabrir,jáqueestiveradeatalaianajanela.

—Vamosláparacima—propôsElvira.

—Sim,émelhor.Senãomamãeagarraagente.

As duas pequenas subiram correndo a escada, escapando assim àmãe deBridget, que saiu do seu quarto para o patamar mas não conseguiu chegar atempo.

— É muita sorte sua não ter mãe — disse Bridget quase sem fôlego,enquanto conduzia a amiga para o quarto e trancava a porta.— É certo quemamãeéumanjoetudomais,masasperguntasqueelafaz!Demanhã,aomeio-dia e de noite. Para onde vai, com quem se encontrou? Não serão primos defulaninholádeYorkshire?Pensenafutilidadedissotudo!

—Acho que esse pessoal não tem é no que pensar— disse vagamenteElvira.—Escute,Bridget,precisofazerumacoisamuitoimportante,evocêtemquemeajudar.

—Bem,seeupuderajudo.Dequesetrata?Algumhomem?

—Não,nãosetratadehomem.—Bridgetpareciadecepcionada.—TenhoqueirpassarvinteequatrohorasnaIrlanda,talvezumpoucomais,eprecisoquevocêmedêcobertura.

—NaIrlanda?Porquê?

—Aindanãoposso lhe contar tudo.Nãohá tempo.Tenhoque encontrarmeututor,CoronelLuscombe,noPrunier's,paraoalmoço,àumaemeia.

—QueéquevocêfezdavelhaCarpenter?

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—Livrei-medelanoDebenham's.

Bridgetdeuumarisadinha.

—EdepoisdoalmoçovãomelevarparaacasadosMelfords.Voumorarcomelesatécompletarvinteeumanos.

.—Quehorror!

— Mas eu me arranjo. A prima Mildred é facílima de tapear. Já estácombinadoquevireiàcidadeparaaulaseoutrascoisas.ExisteumlugarchamadoMundo de Hoje. Lá eles levam a gente para conferências, museus, galerias,CâmaradosLordes,etc.Oimportanteéqueninguémvaisabersevocêestáondedeveestarounão!Faremosumaporçãodecoisas.

— Espero que sim.— Bridget deu outra risadinha.— Conseguimos naItália,nãofoi?Avelhamacarronepensavaqueeramuitorigorosa.Malsabiaelaoqueagenteeracapazdefazerquandoqueria.

Asduaspequenasriram,recordandocomprazerbemsucedidastravessuras.

—Mesmoassim,precisavamuitoplanejamento—lembrouElvira.

—Ealgumasmentirinhas espetaculares—ajuntouBridget.—Você tevealgumanotíciadeGuido?

—Tive sim;me escreveu uma carta enorme assinada "Ginevra" como sefosseumaamiguinha.Masvêsevocêcalaabocauminstante,Bridget.Temosummontedecoisasafazeresóhoraemeiaparadarcontadetudo.Pracomeçode conversa,escute.Amanhã,vou sair paraodentista. Isso é fácil, posso adiarportelefone,ouvocêpode,pormim.Aí,pelaalturadomeio-dia,vocêtelefonaparaosMelfords,fingindoqueésuamãeeexplicandoqueodentistaquerqueeuváládepoisdeamanhãeassimtenhoquepassarmaisumdiacomvocês.

—Vaidar tudocerto.Elesdirãoquepena,quantagentilezadevocêsetc.Masesevocênãoestiverdevoltadepoisdeamanhã?

—Entãovocêdáoutrotelefonema.Bridgetpareciahesitar.

—Até lá teremos tempo suficiente para inventar uma desculpa— disseElvira, impaciente. — O que me preocupa agora é dinheiro. Você não temnenhum,hem?—Elvirafalousemmuitaesperança.

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—Sóumasduaslibras.

—Não dá. Tenho que comprar a passagem aérea; já olhei o horário dosvôos.Nãolevamaisdeduashoras.Muitacoisavaidependerdotempoquetereideficarlá.

—Nãopodemedizeroquevaifazer?

—Não,nãoposso.Maséimportante,tremendamenteimportante.

AvozdeElvirasooutãodiferentequeBridgetaolhou,surpresa.

—Écoisasériamesmo,Elvira?

—Ésim.

—Coisadequeninguémpodesaber?

— É sim. Ultra, ultra-secreta. Preciso descobrir se um certo negócio éverdadeiroounão.Aquestãododinheiroéquechateia.Eoquedáódioéqueeusoumuitorica;foimeututormesmoquemedisse.Massóoqueelesmedãoéamisériadessamesadaparacomprarroupa.Equeparecesumirmalarecebo.

—Será que o seu tutor, o tal CoronelNão-sei-de-quan-tas, não pode lheadiantaralgumdinheiro?

—Dejeitonenhum.Eleiameencherdeperguntas,procurandosaberparaqueéqueeuqueria.

—Bom,issoéverdade.Nãoseiporquetodoomundotemamaniadefazerperguntas.Sabeque todavezquemechamamno telefone,mamãe temquevirperguntarquemfoi?Afinal,nãoédacontadela!

Elviraconcordou,masestavacomopensamentolonge.

—Jáempenhoualgumacoisa,Bridget?

—Nunca.Achoquenemseicomoé.

—Émuitofácil—disseElvira.—Vocêvaiaumdaquelesjoalheirosquetêmtrêsbolasemcimadaporta,compreendeu?

—Maseunãopossuocoisaalgumaquevalhaapenaempenhar—lembrou

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Bridget.

—Suamãenãotemnenhumajóiaporaí?

—Nãoébomagentepediraajudadela.

—É,talveznão.Masbemqueagentepodiasurrupiaralgumacoisa.

— Oh! Não podemos fazer uma coisa dessas — exclamou Bridgetalarmada.

—Não?Bom,talveztenharazão.Masgarantoqueelanãoiadescobrir.Ágentedevolviaantesqueeladessepelafalta.Eusei.IremosaMr.Bollard.

—QueméMr.Bollard?

—Ah,éumaespéciedejoalheirodafamília.Devezemquandolevoláomeu relógio para consertarem. Jáme conhece desde quando eu tinha uns seisanos.Vamos,Bridget,vamosláagoramesmo.Temospoucotempo.

—Émelhoragentesairpelosfundos—lembrouBridget—senãomamãequerlogosaberparaondeéquenósvamos.

Do lado de fora do tradicional estabelecimento deBollard&Whitley, emBondStreet,asduaspequenasfizeramascombinaçõesfinais:

—Entendeubem,Bridget?

— Creio que sim — respondeu Bridget num tom que nada tinha decontente.

—Primeiro—determinouElvira—vamossincronizarosnossosrelógios.

Bridgetanimou-seumpouco.Essaconhecida frase literária teveumefeitoestimulante.Solenemente,sincronizaramosrelógios,Bridgetajustandooseu,queacusavaumadiferençadeumminuto.

—Ahora zero será exatamente dentro de vinte e cincominutos—disseElvira.—Issomedábastantetempo.Talvezmaisdoquepreciso,masémelhorassim.

—Masse...—começouBridget.

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—Seoquê?

—Seeuformesmoatropelada?

—É claro que não será atropelada!Você sabe que émuito ágil, e que otráfegodeLondrescostumapararderepente.Vaidartudocerto.

Bridgetnãopareciaconvencida.

—Vocênãovaimefaltar,Bridget,nãoémesmo?

—Estábem—disseBridget.—Nãofaltarei.

—Ótimo—disseElvira.

BridgetfoiparaooutroladodeBondStreeteElviraabriuaportadeBollard&Whitley,velhoseconceituadosjoalheiroserelojoeiros.Aatmosfera,dentrodaloja, era de luxo e quietude. Um fidalgo de fraque adiantou-se e indagou deElviraemquepoderiaservi-la.

—PossofalarcomMr.Bollard?

—Mr.Bollard.Quemdevoanunciar?

—MissElviraBlake.

O fidalgodesapareceu eElvira deslizou até umbalcãoonde, sobovidro,broches,anéisebraceletesseexibiamsobreumfundodeveludo.InstantesdepoisMr.Bollard apareceu.Era o sócio principal da firma, um senhor de sessenta epoucosanos.AcolheuElviracomgrandecarinho.

—Ah,MissBlake,entãoestáemLondres!Éumgrandeprazervê-la.Emquepossoservi-la?

Elviramostrouumelegantereloginhodepulso.

—Esterelógionãoestáandandobem.Seráqueosenhorpodedarumjeitonele?

—Claro.Nãoháomenorproblema.—Mr.Bollard tomouo relógiodasmãosdamoça.—Paraqueendereçodevoremetê-lo?

Elviradeuoendereço.

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—Eoutracoisa.Meututor...oCoronelLuscombe,asenhorsabe...

—Sim,éclaro.

—Perguntou-meoqueeuqueriacomopresentedeNatal—disseElvira.—Sugeriuqueeuviesseaquiedesseumaolhadaemalgumascoisas.Perguntouseeuqueriaqueeleviessecomigo,maseudissequepreferiavirsozinhaprimeiro,porquemesintomeioencabulada...comessahistóriadepreçose...

—Bem, na verdade, é um aspecto a encarar— concordouMr. Bollard,sorridenteepaternal.—Eemqueéqueestápensando,MissBlake?Umbroche,bracelete...umanel?

—Achoquebrochessãomaisúteis—respondeuElvira.—Mas...seráqueeupoderiaverumaporçãodecoisas?—Elviralançouumolharsúpliceaovelho.

Elesorriu,compreensivo:

—Naturalmente, naturalmente!Não dá prazer nenhum fazer uma escolhaapressada,nãoémesmo?

Oscincoouseisminutosseguintesforamgastosdamaneiramaisagradável.Mr. Bollard não se poupava. Ia buscar coisas em uma vitrina, em outra, e osbroches e pulseiras se empilhavam em cima de um pedaço de veludo abertodiante de Elvira. De vez em quando ela se voltava para se olhar no espelho,experimentandooefeitoquefaziaumbrocheouumbrinco.Afinal,meioincerta,pôsdeladoumalindapulseiraumpequenorelógioornadocombrilhantes,edoisbroches.

— Vamos tomar nota disso aí— prometeuMr. Bollard,— e quando oCoronelLuscombeapareceremLondres,esperemosquevenhacá, resolverelepróprioopresentequevailhedar.

— Assim está bem — disse Elvira. — Ele se sentirá, como se tivesseescolhidoelemesmoopresente,nãoé?—Oseu límpidoolharazulergueu-separaorostodojoalheiro.Omesmoolharazulnotara,ummomentoantes,quesehaviampassadoexatamentevinteecincominutos.

Lá fora ouviu-se um ranger de freios e o grito alto de uma moça.Inevitavelmenteosolhosdetodos,naloja,voltaram-separaasvitrinasquedavamparaBondStreet.Omovimento damãodeElvira no balcão à sua frente e do

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balcãoparaobolsodoseubemtalhadocostume,foitãorápidoediscretoquesediriaimperceptível,mesmoquealguémestivesseolhando.

—Ai-ai-ai!— exclamou Mr. Bollard voltando do lugar onde estivera aespiararua.—Quasehouveumacidente.Quemeninalouca!Atravessararuadaquelamaneira!

Elvirajásedirigiaparaaporta.Olhouparaoseurelógiodepulsoesoltouumaexclamação.

— Puxa vida, demorei demais aqui. Sou capaz de perder o trem. Muitoobrigada,Mr.Bollard,nãováesquecerquaisforamasquatrocoisasqueescolhi.

Dentro de um segundo estava do lado de fora. Dobrando rapidamente àesquerda,edepoisnovamenteàesquerda,parounaarcadadeumasapataria,atéqueBridget,quasesemfôlego,veioaoseuencontro.

— Oh! exclamou Bridget. — Fiquei apavorada. Pensei que ia morrermesmo.Efizumburaconameia,

—Nãofazmal—disseElviraeconduziulogoaamigapelarua,dobrandooutraesquinaàdireita.—Vamos.

—Deu...deu...tudocerto?

Amão deElvira deslizou até ao bolso e voltou trazendo umbracelete debrilhantesesafiras.

—Oh,Elvira,comoéquevocêtevecoragem!

—Agora,Bridget,vocêvaiàquelacasadepenhoresquemarcamos.Váevejaquantoéquevocêpodereceberpelapulseira.Peçacemlibras.

—Vocêpensa...e seelesdisserem...vejabem...podeestarnuma listadecoisasroubadas...

—Deixe de bobagens. Como é que podia estar numa lista tão depressa?Elesaindanemderampelafalta.

— Mas Elvira, quando eles derem pela falta... vão pensar... talvez vãosaber...quevocêéquedevetertirado.

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—Talvezpensem...sedescobriremmuitodepressa...

—Entãoirãoàpolíciaeaí...

Bridget calou-se ao ver Elvira abanar a cabeça lentamente, os cabelosamarelo-pálido movendo-se de um lado para outro, e um débil e enigmáticosorrisocurvando-lheoscantosdaboca.

—Não irãoàpolícia,Bridget.Demodenenhum, sepensaremque fuieuquetirei.

—Porquê?Querdizerque...

—Já lheconteiquevou receberummontededinheiroquandocompletarvinteeumanos.Podereicomprarjóiasemaisjóiasaeles.Porissonãovãodarescândalo.Vádepressapegarodinheiro.DepoisváaoAerLingusecompreapassagem. Tenho que tomar um táxi para o Prunier's. Já estou dez minutosatrasada.Estareicomvocêamanhãdemanhãàsdezemeia.

— Oh, Elvira, era tão bom que você não se arriscasse tanto!— gemeuBridget.

MasElvirajáestavafazendosinalparaumtáxi.

IIMissMarplepassoumomentosdeliciososemRobinson&Cleaver's.Além

decompraruns lençóiscaros,masesplêndidos—adoravalençóisde linho, tãofrescos e macios — ainda se permitiu a aquisição de uns ótimos panos paraenxugar copos, orlados de vermelho. Quanta dificuldade hoje em dia para seconseguir bonspanosde enxugar copos!Só se viampanosquemais pareciamtoalhasdemesaornamentais,decoradascomrabaneteselagostasoucomaTorreEiffelouTrafalgarSquare,ousarapintadosdelimõeselaranjas.DepoisdedaroseuendereçoemSt.MaryMead,MissMarpledescobriuumônibusquealevouàsArmy&NavyStores.

Em tempospassados,Army&Storeseraopontoprediletoda tiadeMissMarple.Claroqueatualmentejánãoeraamesmacoisa.MissMarplerelembroutia Helen a procurar o seu caixeiro predileto na seção de secos e molhados,confortavelmente instalada numa cadeira, com a touca na cabeça e o quechamavademantode"popelinapreta"nosombros.Passava-seentãoumalonga

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hora,ninguémtinhapressa,tiaHelenimaginandotodaespéciedecomestívelquepudesse ser adquirido e guardado para uso futuro. Faziam-se provisões para oNatal,eatémesmoseprovidenciavaalgumacoisaparaaPáscoa.AmeninaJaneimpacientava-seumpoucoeentãorecebiaordemdeirolharaseçãodeartigosdevidros,parasedistrair.

Terminadas as compras, tia Helen entregava-se a minuciosas perguntas arespeito da saúde da família do seu caixeiro predileto: mãe, esposa, o filhosegundo, a cunhada defeituosa. E depois de passar uma agradável manhã, tiaHelendizia, no estilobrincalhãodaqueles tempos: "Seráqueamenininhaqueralmoçar?" Tomavam então o elevador para o quarto andar, almoçavam,terminandosempreporumsorvetedemorango.Porfim,compravammeialibradechocolatesaocremedecafé,eiamparaummatinênumacarruagem,daquelasdequatrorodas.

Evidentemente, Army & Navy Stores tinha sofrido várias operaçõesplásticasdesdeaqueletempo.Poder-se-iaatédizerqueestavairreconhecívelparaquemaviraoutrora.Maisalegreemuitomais iluminada.MissMarple,emboraconcedendo um sorriso indulgente ao passado, não punha objeções àscomodidadesdopresente.Aindahaviaumrestauranteeparaláfoiela,afimdealmoçar.

Enquanto lia cuidadosamente omenu e resolvia o que comer, passeou osolhos pela sala e ergueu levemente as sobrancelhas. Que coincidênciaextraordinária! Lá estava uma mulher em quem jamais pusera os olhos até àvéspera,emborahouvessevistoinúmerosretratosdelanosjornais:emcorridasdecavalo,nasBermudas,oujuntoaoseuautomóvelouavião.Ontem,pelaprimeiravez,avistara-aemcarneeosso.Eagora,comotãofreqüentementeacontece,porcoincidência tornava a encontrá-la, e no local mais inesperado. Pois nãoconseguia combinar o almoço emArmy&Navy Stores com Bess Sedgwick.NãoseadmirariaseavistasseBessSedgwicksaindodeumafurnadoSoho,oudescendoaescadadaCoventGardenOperaHouse,emvestidodenoiteecomumdiademadebrilhantesnacabeça.MasnãoaliemArmy&NavyStoresque,no espírito de Miss Marple, estava e estaria sempre estreitamente ligada aopessoaldasforçasarmadas,suasesposas, filhas, tiaseavós.Contudo, láestavaBess Sedgwick, muito elegante como sempre, no seu costume escuro e blusaesmeralda,almoçandocomumhomem.Umrapazderostofinodefalcão,metidonum casaco de couro preto. Inclinavam-se um para o outro, conversandoanimados,pondonabocaasgarfadasdecomidacomosenemreparassemnoquecomiam.

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Umencontro amoroso, talvez?Sim,provavelmente.Ohomemdeveria serquinzeouvinteanosmaisnovodoqueela,porémBesseradonadeumaatraçãomagnética.

MissMarpleolhoudetidamenteparaorapazechegouàconclusãodequeele era o que ela chamava "um moço bonito". E concluiu também que nãogostavamuito dele. "Parecido comHarryRussel", disse consigoMissMarple,colhendo, comodecostume,umprotótiponopassado. "Nuncaprestou.Nuncamulhernenhumaqueandoucomeleprestoutambém".

"Ela não aceitaria um conselho meu", pensouMissMarple, "mas eu lhepoderia dar um". Contudo, os amores dos estranhos não eram da sua conta, eBessSedgwick,peloquesedizia,eramuitocapazdeproteger-seemmatériadeamores.

MissMarplesuspirou,comeuoseualmoçoepreparou-separaumavisitaàseçãodepapelaria.

Acuriosidade,oucomoelapreferiadizer"terinteresse"pelosnegóciosdosoutros,eraumadascaracterísticasdeMissMarple.

Deixando deliberadamente as luvas sobre a mesa, levantou-se e foi até àcaixa,tomandoocaminhoquepassavapertodamesadeLadySedgwick.Depoisde pagar a conta. "descobriu" a falta das luvas e voltou para apanhá-las,deixando,porinfelicidade,cairabolsanocaminhoderetorno.Abolsaabriu-seeespalhou pelo chão um monte de bugigangas. Uma garçonete apressou-se aajudá-la a apanhar os objetos caídos, e Miss Marple viu-se forçada a simulargrandestremuras,derrubandomoedasechavespelasegundavez.

Não conseguiu muito com esses subterfúgios, mas não foram elesinteiramente inúteis; e o interessante é que nenhum dos dois alvos da suacuriosidade dedicou sequer umolhar à desastrada velhota que estava sempre aderrubarcoisas.

Enquantoesperavaqueoelevadordescesse,MissMarple recordoualgunsretalhosdefrasequeouvira:

"Eaprevisãodotempo?"

"O.K.Nãohaveránevoeiro.

"TudoprontoparaLucerna?

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—Está.Oaviãosaiàs9.40.

Fora tudo o que conseguira apanhar da primeira vez.A viagem de voltarenderaumpoucomais:BessSedgwickfalavazangada:

"Porquediabovocê foi aoBertram'sontem?Nãodeviapassarnemporpertodelá.

"Nãohouvenadademal.Pergunteisevocêestavahospedadalá,etodoomundosabequesomosamigosíntimos...

"Aquestãonãoéessa.OBertram'sestámuitocertoparamim...nãoparavocê.Vocêláchamaaatençãocomoumbêbadonamissa.Todoomundodeveterficadoolhandoparavocê."Queolhem!

"Você émesmo um idiota. Por que... por quê?Quemotivos você tinha?Vocêtinhaummotivo...euconheçovocê...

"Calma,Bess.

“Vocêéummentirosodemarca!"

Fora tudo que Miss Marple conseguira escutar. Parecia-lhe muitointeressante.

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7

NANOITEde19denovembrooCônegoPennyfatheracabaradejantarcedono Athenaeum, cumprimentara de longe um ou dois amigos, mantivera umaacaloradamasagradáveldiscussãoacercadecertospontoscruciaisdadatadosManuscritosdoMarMorto,eentão,consultandoorelógio,viuqueerahoradepartir,afimdepegaroaviãoparaLucerna.Quandoatravessavaovestíbulo,foicumprimentado por outro amigo: o Dr.Whittaker, do S.O.A.S., que lhe dissealegremente:

— Como vai, Pennyfather? Não o vejo há muito tempo. Como foi deCongresso?Discutiu-sealgumassuntointeressante?

—Esperoquesim.

—Estáchegandodelá,nãoé?

—Não,não,estouindoparalá.Voutomarumaviãoestanoite.

—Ah,compreendo.—Whittakerparecia levementeembaraçado.—NãoseiporquepenseiqueoCongressoerahoje.

—Não,não.Amanhã,19.

OCônegoPennyfathersaíapelaportaenquantoseuamigo,seguindo-ocomoolhar,dizia:

—Masmeucaroamigo,hojeé19,não?

OCônegoPennyfather, entretanto, não estavamais ao alcance da voz dooutro. Apanhou um táxi em Pall Mall e rumou para o terminal aéreo emKensington. Havia lá uma verdadeira multidão naquela noite. Postando-se elejuntoaobalcão,viuafinalchegarasuavez.Conseguiuapresentarapassagem,opassaporte e outras coisas necessárias à viagem.Amoça do balcão, que já iacarimbandoessascredenciais,parouabruptamente:

—Osenhordesculpe,masparecequeapassagemestáerrada,

—Errada?Não, está correta.Vôo certo e... bem, não leio direito sem osóculos...centoenãoseiquantos,paraLucerna.

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—Éadata,cavalheiro.Adata:quarta-feira,18.

—Não,claroquenão.Pelomenos...querodizer,hojeéquarta-feira,18.

—Desculpe,mashojeé19.

—19!—OCônegoficoudesolado.Tirouumapequenaagendadobolsoevirouaspáginas,ansioso.Por fim, tevedeseconvencer.Hojeera19.Oaviãoquedeveriatomarpartiranavéspera.

—Entãoquerdizer...querdizer...meuDeus,querdizerqueoCongressodeLucernaserealizouhoje.

E ficou a olhar para o balcão, em profundo abatimento;mas como haviamuitosoutrosviajantes,oCônegoesuasperplexidadesforampostosdelado.Eelecontinuoualide

pé, na maior tristeza, segurando a passagem agora inútil. Examinavamentalmenteváriaspossibilidades.Seráquepoderiatrocarapassagem?Masnãoadiantava—nãoadiantava—quehorasseriam?Quase9horas?Aconferênciajá se realizara; começara às l0h da manhã. Claro, fora isso que WhittakerprocuraradizernoAthenaeum.PensaraqueoCônegoPennyfatherjávoltaradoCongresso.

— Oh, Senhor— lamentava-se consigo o Cônego Pennyfather.— Queconfusãoqueeufiz!—Esaiuandando tristeesilenciosoporCromwellRoad,quemesmonosseusdiasmelhoresnãoeraumaruaalegre.

Caminhava lentamente pela rua, carregando a sua valise e revolvendoperplexidadesnoespírito.Afinal,depoisdeexaminaràvontadeasváriasrazõesqueohaviamlevadoàqueleengano,abanoutristementeacabeça.

Agora—dissedesiparasi—deixe-mever,jápassamdasnove,omelhorécomerqualquercoisa.

Eocurioso,pensavaele,équenãosentiafome.

Andando desconsolado por Cromwell Road, escolheu finalmente umpequenorestaurantequeserviapratosindianospreparadoscomcaril.Pareceu-lheque,emboranãosentissetantafomequantodeveriasentir,eramelhorrefazer-secomumaboa refeição, e depois tinhaqueprocurar umhotel e...masnão, nãohavia necessidadedisso. Tinha já um hotel! Claro. Estava hospedado no

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Bertram’s;ereservaraumquartoporquatrodias.Quesorte!Assimpois,oquartoestava lá, esperandopor ele.Bastava-lhe pedir a chave na portaria e... aí outrareminiscênciaoassaltou.Queeraaquelacoisapesadanoseubolso?

Meteuamãonobolsoetrouxedeláumadessaschavesgrandesesólidas,pormeio das quais os hotéis tentam evitar que os hóspedesmais distraídos ascarreguemnobolso.OquenãoevitaraqueoCônegocarregasseasua!

—N.°19—disseoCônegoalegreaoreconhecê-la.—Estácerto.Éumasorteeunãoterqueirprocurarumquartodehotel.Dizemqueoshotéisandamcheiíssimos.Sim,EdmundsestavadizendoissomesmonoAthenaeum,estanoite.Tiveraamaiordificuldadeemacharumquarto.

Mais satisfeito consigo próprio e com o cuidado que tomara com os seuspreparativosdeviagem,reservandohotelantecipadamente,oCônegoabandonouopratodecaril,lembrou-sedepagaracontae,apósdaralgunspassos,achou-seoutravezemCromwellRoad.

Pareceu-lhe uma tristeza voltar para o hotel assim, quando deveria estarjantandoemLucerna,conversandosobreinúmerosefascinantesproblemas.Seuolharfoiapanhadopelafachadadeumcinema.AsMuralhasdeJerico. Pareciaum títulomuito convidativo.Valeria a pena verificar se a verdade bíblica forarespeitada.

Comprouumaentradaeinternou-seaostropeçõesnaescuridão.Gostoudofilme, embora lhe parecesse que não tinha nenhuma relação com a narrativabíblica.AsmuralhasdeJericoeramcomoqueummeiosimbólicodealudiraoscompromissosmatrimoniaisdecertadama.Depoisdehaveremelascaídováriasvezes, a linda estrela encontrou o ríspido e mal-encarado herói a quem amarasecretamente o tempo todo, e juntos se propuseram a levantar as muralhas demaneira a fazê-las resistir melhor aos assaltos do tempo. Não se tratavapropriamentedeumfilmedestinadoa interessarumclérigo idoso:maso fatoéqueoCônegoPennyfatheroaprecioumuitíssimo.Enãoeraafilmescomoesseque o Cônego Pennyfather costumava assistir; pareceu-lhe, assim, que estavaampliando os seus conhecimentos sobre a vida. A fita acabou, as luzes seacenderam, tocou-se o Hino Nacional e o Cônego Pennyfather voltou aostropeçõesàsluzesdeLondres,ligeiramenteconsoladodatristezaquelhehaviamprovocadoosacontecimentosdocomeçodanoite.

Eraumanoitelinda,eoCônegovoltouapéparaoHotelBertram's,apósterprimeiro tomado um ônibus que o levou na direção oposta. Era meia-noite

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quando chegou ao hotel, e à meia-noite o Bertram's costuma apresentar umaaparênciadigna,comtodoomundonacama.Oelevadorestavanumandardecima,demodoqueoCônegoresolveusubirpelaescada.Alcançouoseuquarto,enfiouachavenafechadura,escancarouaportaeentrou!

—Deus do céu, estarei vendo coisas?Mas quem... como...— viu tardedemaisobraçolevantado...

Estrelaslheexplodiramnacabeçacomoumbuquêdefogosdeartifício...

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8

O TREM CORREIO IRLANDÊS varava a noite. Ou, mais corretamente, aescuridãodaaltamadrugada.

A espaços, a locomotiva Diesel, como uma visagem, soltava o seulamentosouivodeadvertência.Viajavaamaisdeoitentamilhasporhora.Estavadentrodohorário.

De repente, a marcha diminuiu, os freios agiram. As rodas gritaram aoagarrar-seaostrilhos.Maisdevagar...maisdevagar...Oguardaenfiouacabeçapela janela, reparandono sinal vermelho, à frente, quandoo tremafinal parou.Algunsdospassageirosacordaram.Amaioriacontinuoudormindo.

Uma senhora idosa, alarmada pela subtaneidade da desaceleração, abriu aportaeespiouparaofundodocorredor.Umpoucomaisalém,umadasportasque davam para a linha estava aberta. Um clérigo idoso, com uma maçarocaespessa de cabelos brancos, subia os degraus, vindo da via permanente. Asenhorapresumiuqueeledesceraantesatéàlinhaparainvestigaroquehouvera.

Oarmatinalestavafrígido.Alguém,nofundodocorredor,disse:—Foisóo sinal — A senhora idosa tornou a entrar na cabina e tratou de dormirnovamente.

Maisalém,nalinha,umhomem,balançandoumalanterna,correudaguaritadosinaleiroparaotrem.Ofoguistadesceudalocomotiva.Oguardaquesaltaradotremacercou-sedele.Ohomemdalanternachegou,semfôlego,falandoaosarrancos:

—Umabatidafeialáadiante...Otremdecargadescarrilhou...

Omaquinistaolhoudoaltodasuacabina,depoisdesceuefoireunir-seaosoutros.

Na parte de trás, seis homens que haviam acabado de subir o aterro,entraramno trem, por uma porta que lhes fora deixada aberta no último carro.Seispassageiros,vindosdediferentesvagões,osencontraram.Comrapidezbemensaiada, eles trataram de tomar conta do vagão postal, isolando-o do resto dacomposição.Doishomens,decarapuçadelãàcabeça,puseram-seemguardaàentradaeksaídadocarro,cacetesnamão.

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Um homem com farda da estrada de ferro passou pelo corredor do tremparado,dandoexplicaçõesaquemassolicitava:

—Alinhaestábloqueadaàfrente.Umademoradedezminutostalvez.Nãopassadisso.—Eraamigáveletranqüilizador.

Junto à locomotiva, foguista e maquinista estavam bem amordaçados eamarrados.Ohomemcomalanternagritou:

—TudoO.K.aqui!

Noaterrooguardatambémestavaidenticamenteamarradoeamordaçado.

Osperitosarrombadoresnovagãopostal tinhamfeitooseu trabalho.Doisoutroscorposbematadosjaziamnochão.Asmalasregistradasforamjogadasnoaterro,ondeoutroshomensasesperavam.

Nascabinasospassageirosresmungavamunsparaosoutrosqueasestradasdeferrotinhamdeixadodeseroqueeram.

Equandojáseacomodavamnovamenteparadormir,oroncodeumcanodeescapeatravessouaescuridão.

—SantoDeus—murmurouumamulher—seráumaviãoajato?

—Umcarrodecorrida,meparece.Oroncodiminuíapoucoapouco...

Nove milhas além na rodovia de Bedhampton, uma coluna compacta decaminhõesnoturnosavançavalentamenteparaonorte.Umgrandecarrobranco,decorrida,passouporelesfeitoumraio.

Dezminutosdepoisocarroafastou-sedarodovia.

Agaragem,numaesquinadaestradaB,tinhaumaplaca:FECHADO.Masasgrandesportasseescancararam,ocarrobrancoentroueasportastornaramafechar-se.Trêshomens, trabalhandonumavelocidade febril,pregaramnocarroum novo jogo de placas. Omotorista trocou o boné e o casaco.Antes vestiacasacobrancodepeledecarneiro;agorausavacouropreto.Epartiuoutraveznocarro. Trêsminutos depois, um velhoMorris Oxford, dirigido por um clérigo,apareceu pipocando na estrada e mais adiante enveredou por vários caminhosrurais,cheiosdecurvasedesvios.

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Umacamioneta,querodavaporumaestradacarroçável,diminuiuamarchaaoalcançarumvelhoMorrisOxfordparadojuntoàsebe,comumhomemidosodepéaolado.

Omotoristadacamionetapôsacabeçadefora:

—Algumproblema?Querajuda?

—Muitabondadesua.Sãoosfaróis.

Osdoismotoristaschegarampertoumdooutro.Escutaram.

—Barralimpa.

Várias maletas caras, de estilo americano, foram transferidas do MorrisOxfordparaacamioneta.

Umaouduasmilhasalém,acamionetaseguiuporumatrilhatoscaquelogoadiantedeixavaveraentradadosfundosdeumagrandeeopulentamansão.Noque fora outrora o pátio do estábulo, estava estacionado um grandeMercedesbranco. Omotorista da camioneta abriu amala doMercedes com uma chave,transferiuparaláasmaletasetornouapartirnacamioneta.

Numterreirodegranjapróximo,umgalocantouruidoso.

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9I

ELVIRABLAKEolhouparaocéu,notouqueeraumalindamanhãeentrounumacabinatelefônica.DiscouonúmerodeBridget,emOnslowSquare.VendoqueeraaprópriaBridgetqueatendia,falou:

—Alô,Bridget!

—Oh,Elvira,évocê?—AvozdeBridgetpareciaagitada.

—Sim.Estátudobem?

—Quenada!Péssimo.Suaprima,Mrs.Melford,ligouparaMamãeontemàtarde.

—Praperguntarpormim?

—Sim.Eupensavaquetinhamesaídomuitobemquandotelefoneiparaelana hora do almoço.Mas parece que ela ficou preocupada comos seus dentes.Pensou que você estivesse com alguma coisa séria, um abscesso, ou coisaparecida.Por issotelefonouparaodentistaedescobriu,naturalmente,quevocênem tinha ido lá.Aí ela telefonou paraMamãe e por azarMamãe estava bemperto do telefone, demodoque não pude atender primeiro.E comonão podiadeixardeacontecer,Mamãefoilogodizendoquenãosabianadaaesserespeito,equevocênãoestavaaquiemcasa.Fiqueisemsaberoquefazer.

—Nãodissenada,então?

— Fingi que não sabia de nada. Afinal contei que me lembrava de terouvidovocêdizerqueiavisitarunsamigos-emWimblendon.

—PorqueWimblendon?

— Foi o primeiro lugar queme veio à cabeça. Elvira suspirou.—Bem,acho que tenho que inventar uma história qualquer. Talvez uma velhagovernanta, quemore emWimblendon.Os cuidados desse pessoal complicamtudo!EsperoqueaprimaMildrednãotenhafeitoalgumabobagemmaior,comochamarapolícia,oucoisasemelhante.

—Vocêvaiagoraparalá?

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—Sóvouànoite.Aindatenhoumaporçãodecoisasafazer.

—EfoimesmoàIrlanda?deutudocerto?

—Descobrioqueeuqueriasaber.

—Pelasuavozparecequevocêestá...aborrecida.

—Estoumesentindoaborrecida.

—Possolheajudar,Elvira?Fazerqualquercoisa?

—Ninguémpodemeajudar,naverdade...Éumacoisaquetenhodefazersozinha.Euesperavaquecertacoisanãofosseverdade...maséverdade.Enãoseioquefaça.

—Vocêestáemperigo,Elvira?

— Não seja melodramática, Bridget. Eu preciso ter cuidado, nada mais.Precisoteromaiorcuidado.

—Entãovocêestáemperigo.Elvirafalou,depoisdeumapausa:

—Talvezeuestejasóimaginandocoisas.

—Elvira,queéquevocêvaifazerarespeitodapulseira?

—Ah, isso não é problema.Arranjei dinheiro com uma certa pessoa e,assim,logomaispossoir...comoéquesediz?...resgatarapulseira.EdelávoudiretamenteaosBollards.

—Achaqueelesnãovãoreclamarnada?...Não,mamãe,éda lavanderia.Estãodizendoquenãomandamosnuncao tal lençol.Sim,mamãe, sim,direiàmoça.Tudocertoentão.

DooutroladodofioElvirasorriuependurouofone.

Abriuabolsa,tiroudinheirodedentro,contouasmoedasdequeprecisava,arrumou-asàsua frenteecomeçouuma ligação.Quandoobteveonúmeroquedesejava,enfiounafendaasmoedasnecessárias,apertouobotãoAefalounumavozinhameiosemfôlego:

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—Alô,primaMildred.Sim,soueu...Lamentoinfinitamente...Sim,eusei...bem,euiamesmo...sim,foiapobrezinhadavelhaMaddy,—vocêsabe,anossavelhaMademoiselle...sim,escreviumpostal,edepoismeesquecidepôrnacaixadocorreio.Aindaestánomeubolso...bem,vocêcompreende,elaestavadoenteenãotinhaninguémqueficassecomelaeporissovimatécáparavercomoelaia...Sim,euiaparaacasadeBridget,masanotíciasobreMaddymudoutudo.,.Nãoentendoorecadoquevocêrecebeu.Alguémdeveterfeitoconfusão...Sim,eulheexplicotudoquandochegaraí...sim,hojeàtarde.Não,vousóesperarquechegueaenfermeiraquevemcuidardeMaddy...bem,nãoépropriamenteumaenfermeira. É uma dessas mulheres com prática de enfermagem, se não meengano. Não, ela não quer nem ouvir falar em hospital...Mas lamentomuito,primaMildred,lamentomuitíssimo.

—Elvirapôso fonenoganchoesuspirouexasperada;"Seaomenosnãoprecisassedizertantasmentirasatantagente",murmurouparasimesma.

Ao sairda cabina telefônicadeparoucommanchetes enormesnos jornais:"GRANDEASSALTO.TREMPOSTALDA IRLANDAATACADOPORBANDIDOS.

IIMr.Bollardatendiaaumfreguêsquandoaportadalojaseabriu.Ergueuos

olhoseviuentrarajovemaristocrataElviraBlake.

—Não— disse ela a um empregado que veio ao seu encontro.—VouesperarqueMr.Bollardsedesocupe.

AfinaloclientedeMr.Bollarddespediu-seeElviratomouolugarvago.

—Bomdia,Mr.Bollard—disseela.

—Infelizmenteoseurelógioaindanãoficoupronto,MissElvira—falouBollard.

— Não se trata do relógio.— explicou Elvira.— Vim pedir desculpas.Aconteceu uma coisa horrível.—Abriu a bolsa e tirou uma caixinha, da qualretirouapulseiradesafirasebrilhantes.—Osenhordeveestarlembradodeque,quando vim trazer o relógio para consertar e escolher umas coisas para omeupresente de Natal, houve um acidente na rua. Uma pessoa foi atropelada, ou

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quase.Suponhoqueeuestavacomapulseiranamãoe,sempensai%enfiei-anobolso do casaco. Mas só descobri isso hoje de manhã. Então vim correndodevolvê-la.Lamentosinceramente,Mr.Bollard»nãoseicomoéquepudefazerumacoisatãoestúpida.

—Ora,nãotemimportância—disseMr.Bollard,fleumático.

—Certamenteosenhorpensouquealguémtinharoubadoobracelete.

OslímpidosolhosazuisdeElviraencontraramosdovelho.

— Já tínhamos dado pela falta da jóia, — confessou Mr. Bollard. —Muitíssimoobrigado,MissElvira,pordevolvê-latãodepressa.

—Fiquei horrorizada quando a encontrei—disseElvira.—Bem,muitoobrigada,Mr.Bollard,osenhorfoimuitogentil.

— Enganos como este acontecem— respondeuMr. Bollard sorrindo demodopaternal.—Nãopensemosmaisnoassunto.Masnãofaçaissooutravez.—Riucomoardequemdiziaumgracejoamável.

—Nãofarei—disseElvira.—Nofuturoheideteromaiorcuidado.

Sorriu,deumeiavoltaesaiudaloja."Eusóqueriasaber",disseconsigoMr.Bollard,"sóqueriasaber..."

Umdossócios,queestavaperto,aproximou-semais.

—Entãofoielaquetirou?

—Foi,sim.Tirousemmaisaquela—disseMr.Bollard.

—Mastrouxedevolta—observouosócio.

—Trouxedevolta—concordouMr.Bollard.—Essaeunãoesperava.

—Nãoesperavaqueeladevolvesseajóia?

—Issomesmo,nocasodetersidoelaquemhouvesselevado.

—Achaqueahistóriadelaéverdadeira?—indagouosócio,curioso.—Queenfiouajóianobolsopordistração?

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—Creioqueépossível,—admitiuBollard,pensativo.

—Podesercleptomania.

—É.Podesercleptomania,—conveioBollard.—Omaisprováveléqueelatenhatiradodecasopensado...Mas,sendoassim,comoéquetrouxedevoltatãodepressa?Écurioso...

—Foibomnãotermosdadoparteàpolícia.Confessoquetivevontadedefazê-lo.

—Eusei,eusei.Vocênãotemtantaexperiênciaquantoeu.Nessecaso,foimelhor não dar.—EMr. Bollard acrescentou baixinho, só para si:—Mas acoisaéinteressante.Muitointeressante.Queidadeteráela?Dezesseteoudezoito,suponho.Deveter-semetidoemalgumacomplicação.

—Parecequeouvivocêdizerqueelanadavaemdinheiro.

—Pode-seserumaherdeiraenadaremdinheiro—disseBollard—masaosdezessete anosnemsempre sepodepôr amãono cobre.É engraçado.Asherdeiras em geral andam com a bolsa mais vazia do que as moças menosendinheiradas. O que nem sempre é uma boa coisa. Bem, creio que jamaissaberemosaverdadesobreessecaso.

Repôsobraceleteemseulugarnomostruárioefechouatampa.

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10

Os ESCRITÓRIOS DE EGERTON, Forbes & Wilborough situavam-se emBloomsbury, numa daquelas praças imponentes e cheias de dignidade que atéagoranãoforamvarridaspeloventodasmudanças.Aplacadecobreestavatãogasta que se tornara praticamente ilegível.A firma funcionava hámais de umséculo, e boa parte da aristocracia rural da Inglaterra figurava entre os seusclientes.Não haviamais nenhumForbes na firma, nemWilborough.No lugardeles estavam os Atkinsons, pai e filho, um galés Lloyd e um escocêsMacAllister. Contudo, havia ainda um Egerton, descendente do Egertonfundador.EsseEgerton,umhomemcinquentaedoisanos,eraconsultordeváriasfamíliasQue,nocorrerdotempo,tinhamsidoaconselhadasporseuavô,seutioeseupai.

Nessemomento, ele, sentadoatrásdeumagrandemesademognona suabelasaladoprimeiroandar,falavacombondade,mascomfirmeza,aumclientedearabatido.RichardEgertoneraumhomembonito,alto,moreno,comumasmanchas grisalhas nas têmporas e olhos cinzentosmuito vivos. Seus conselhoseramsemprebonsconselhos,masnormalmenteelenãotinhapapasnalíngua.

—Comtodafranqueza,vocênãotemescapatória,Freddie—diziaele.—Nenhumaescapatória,depoisdascartasqueescreveu.

—Vocênãoacha...—murmuroudesoladoFreddie.

— Não, não acho, — disse Egerton. —A única esperança é fazer umacordo fora de tribunal. Podem até sustentar que você é passível de acusaçãocriminal.

—Masescute,Richard,issoserialevarascoisasmuitolonge.

Ouviu-se uma cigarra discreta namesa de Egerton, que pegou o fone decenhofranzido.

—Creioterditoquenãomeincomodassem.Houveummurmúriodooutrolado.Egertonfalou:

—Ah, sim, entendo. Sim, peça a ela que espere. Recolocou o fone noganchoevirou-semaisumavezparaacarainfelizdoseucliente.

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— Escute aqui, Freddie, eu conheço a lei. Você não. Você está numaencrencainfernal.Fareiopossívelparatirá-lodisso,masvailhecustarumbomdinheiro.Duvidomuitoqueelesaceitemumacordopormenosdedozemil.

—Dozemil!—OdesventuradoFreddieestavaconsternado.—Mascomo?Eunãotenhoessedinheiro,Richard!

—Bem,entãoteráquepedirumempréstimo.Sempresedáumjeito.Dê-seporfelizseelaaceitaroacordopordozemil;sevocêresolverirajuízo,talvezlhecustemuitomais.

—Vocêsadvogados!—disseFreddie.—Sãotodosunstubarões!

Ergueu-se.—Bem,—disseele—façatudooquepuderpormim,Richard,meuvelho.

Partiu, abanando tristementeacabeça.RichardEgertonafastoudoespíritoFreddieeosseusnegóciosetratoudepensarnapróximacliente.Dissecomseusbotões:"AjovemElviraBlake.Comoseráelaagora?Levantouofone:—LordFrederickfoiembora.MandeentrarMissBlake.

Enquanto esperava, fez alguns cálculos nomata-borrão damesa.Quantosanos desde...? Ela devia ter quinze...' dezessete... talvez mais do que isso. Otempopassoutãodepressa."FilhadeConniston",pensouele,"efilhadeBess.Aqualdosdoisterápuxado?"

Abriu-seaporta,oescriturárioanunciouMissElviraBlakeeamoçaentrouna sala. Egerton levantou-se da cadeira e dirigiu-se a ela. Quanto à aparência,pensouele,nãotinhasemelhançacomopainemcomamãe.Alta,esbelta,muitoloura,amesmacordeBessmassemavitalidadedeBess,comumlevejeitinhoantiquado, embora fosse difícil ter muita certeza disso, já que a moda, nomomento,aconteciaserdebabadinhosecorpetes.

—Muito bem,— foi ele dizendo enquanto apertava amãodeElvira.—Que surpresa! Da última vez que a vi, você tinha onze anos. Venha, sente-seaqui.—EmpurrouumacadeiraeElvirasentou-se.

—Creio—disseElviraumpouco indecisa—quedeveria ter-lhe escritoantes,marcandoumaentrevista.Eraoquedeviaterfeito,masmeresolvimuitoderepenteeaproveiteiaoportunidade,jáqueestavaemLondres.

—EqueéqueestáfazendoemLondres?

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—Umarevisãonosdentes.

—Coisinhaenjoada,dentes,—disseEgerton.—Amolamagentedoberçoaotúmulo.Masagradeçoaosseusdentes,quemedãoaoportunidadedevê-la.Vejamos:vocêestevenaItália,nãofoi?completandoasuaeducaçãonumdesseslugaresparaondevãohojetodasasmoças.

—Sim,— respondeuElvira—na casa daContessaMartinelli.Mas já adeixei definitivamente. Estoumorando comosMelfords, emKent, até quemedecidaporalgumacoisa.

— Bem, espero que encontre alguma coisa do seu agrado. Não pensounumauniversidade?

—Não.—disseElvira.—Nãomeacho suficientemente inteligenteparatanto. — Fez uma pausa e continuou: — Parece-me que preciso do seuconsentimentoparafazerqualquercoisa.

OsolhossagazesdeEgertonfitaram-nacominteresse.

—Souumdosseustutores,e.curador,porforçadotestamentodeseupai—disseele.—Portanto,vocêtemtodoodireitodemeprocurarquandoquiser.

Elviradissecortesmente:—Muitoobrigada.—Egertonperguntou:

—Algumapreocupação?

— Não. Não. Mas o senhor compreende, eu não sei de coisa alguma.Ninguémnuncamefalounada.Eagentenemsempregostadeperguntar.—Eleolhou-acomatenção,

—Refere-seacoisasquelhedizemrespeito?

— Sim.Ainda bem que o senhorme compreende. O tio Derek...— elahesitou.

—DerekLuscombe?

—Sim.Sempreochameidetio.

—Entendo.

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—Eleémuitobonzinho—continuouElvira—maséumapessoaquenãodiz nada à gente. Limita-se a arranjar coisasmas fica receoso de que nãomeagradem.Claroqueouveaopiniãodeumaporçãodegente...demulheres,sim,que lhe dizem o que deve fazer. Como a Contessa Martinelli. Ele é quemprovidencia a minha ida para os colégios ou para as escolas femininas deaperfeiçoamento.

—Masnãoeraparaláquevocêqueriair.

—Não,nãoébemisso.Oslugaressãobons.Oqueeuquerodizeréquedeumaformaoudeoutraéparaláquetodoomundovai.

—Compreendo.

—Mas eu não sei de nada a meu próprio respeito. Por exemplo, tenhoalgumdinheiro?Quanto?Equeéquepossofazercomele?

—Narealidade—disseEgertoncomoseusorrisoatraente—vocêquerconversar sobre negócios. Correto? Bem, acho que está com toda a razão.Vejamos:queidadevocêtem?Dezesseis—dezessete?

—Tenhoquasevinte.

—SantoDeus!Nãofaziaideia.

—Pois bem— explicouElvira— sinto constantemente que estou sendoescudada, protegida. De certomodo é agradável, mas pode também sermuitoirritante.

—Éumaatitudecompletamenteultrapassada—concordouEgerton—masvejoqueéaquemaisagradaaDerekLuscombe.

—Eleéumanjo—disseElvira—masémuitodifícilconversarseriamentecomele.

—Sim,épossível.Bem,queéquevocêsabesobrevocêmesma,Elvira?Esobresuafamília?

—Seiquemeupaimorreuquandoeutinhacincoanosequeminhamãeotinha deixado por outro, quando eu tinha dois anos. Não guardo nenhumalembrançadela,emalmelembrodemeupai.Eleeramuitovelhoetinhasempreapernaemcimadeumacadeira.Gostavadepraguejar,eeu tinhamuitomedo

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dele.Depoisqueelemorreu,fuiviverprimeirocomumatia,ouprima,ouparentademeupaiatéqueelamorreu;então fuimorarcomo tioDerekea irmãdele.MasaíelamorreueeufuiparaaItália.AgoraotioDerekcombinouqueeufossemorarcomosMelfords,quesãoprimosdele,muitobonzinhos,etêmduasfilhasmaisoumenosdaminhaidade.

—Vocêsesentefelizlá?

—Ainda não sei. Fui para lá agora. São todos muito chatos. O que euqueriamesmosaberéquantodinheiropossuo,

—Entãooquevocêdesejasãoinformaçõesfinanceiras.

—Sim,—respondeuElvira.—Seiquepossuoalgumdinheiro.Muito?

Egertonagoraestavasério:

—Sim.Vocêédonademuitodinheiro.Seupaieraumhomemmuitoricoevocê é filha única. Quando ele morreu, o título e as terras passaram para umprimo.Comoelenãogostavadoprimo,deixoutodososbenspessoais,queeramconsideráveis,paraafilha,paravocê,Elvira.Vocêéumamulhermuitorica,ouserá,quandocompletarvinteeumanos.

—Querdizerqueagoraaindanãosourica?

—Nãoéisso—respondeuEgerton.—Vocêjáérica,masodinheirosóestará à sua disposição quando você fizer vinte e um anos ou casar.Até lá, odinheiroficaránasmãosdeseuscuradores.Luscombe,eueumoutro.—Sorriupara a moça. — Não desviamos o seu dinheiro, que continua guardado. Naverdade,aumentamosconsideravelmenteoseucapitalatravésdeinvestimentos.

—Quantovoureceber?

—Aosvinteeumanos,ouquandocasar,receberáumaquantiaque,numaestimativaaproximada,chegaráaseiscentasousetecentasmillibras.

—Éumdinheirão,—disseElvira,impressionada.

—Sim, é umdinheirão. Provavelmente por isso é que ninguém lhe faloumuitoaesserespeito.

Egerton pôs-se a observá-la enquanto Elvira refletia no que acabava de

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ouvir.Garotamuitointeressante,pensavaele.Pareceumamocinhaincrivelmentesentimental, mas é muitomais do que isso.Muitíssimomais. Com um sorrisolevementeirônico,eleperguntou:

—Estásatisfeita?

Elaoencarou,sorrindo.

—Devoestar,nãoémesmo?

—Melhordoqueganharnaloteria—sugeriuele.Elafezquesim,comacabeça,maspensavaemoutracoisa.Instantesdepoissaiu-secomumapergunta:

—Quemficarácomodinheiroseeumorrer?

—Nopéemqueascoisasestão,seriaoseuparentemaispróximo.

—Nãopossofazerumtestamentoagora,posso?Sódepoisquecompletarvinteeumanos.Foioquemedisseram.

—Éverdade.

— Isso é irritante. Se eu fosse casada emorresse,meumarido herdaria odinheiro?

—Sim.

— Não sendo eu casada, minha mãe seria meu parente mais próximo eherdariatudo.Aliás,parece-mequetenhopouquíssimosparentes...Maseunemconheçominhamãe.Comoéela?

—Éumamulhernotável—disseEgertonsecamente.—Qualquerumlhediráamesmacoisa.

—Elanuncaquismever?

— Talvez tenha querido... na minha opinião, é bem possível que tenhaquerido.Mascomavida... atrapalhadaqueescolheu, talvez tenhapensadoqueseriamelhorparavocêsereducadalongedela.

—Osenhortemcertezadequeelapensaassim?

—Não.Naverdadenãopossogarantir.Elviraergueu-se.

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—Muitoobrigada.—disseela.—Émuitagentilezadasuapartemecontartodasessascoisas.

—Creio que talvez tivesse sidomelhor se lhe houvessem falado antes arespeitodessascoisas—disseEgerton.

—Émeiohumilhanteagentenãosaberdenada—observouElvira.—OtioDerek,éclaro,achaqueeusouumacriança.

—Bom, ele também não é nenhum rapazola. Ele e eu, compreende?, jáestamos bem avançados em anos. Você deve nos desculpar, se encaramos ascoisassobopontodevistadanossaidadeavançada.

Elvirafitou-oporalgunsinstantes.

—Maso senhornãopensaqueeusou realmenteumacriança,pensa?—disseelaastutamente,eacrescentou:—EsperoqueosenhorentendamuitomaisdemoçasdoqueotioDerek.Eleviveusemprecomairmã.—Estendeuamãoedisse,encantadoramente:—Muito,muitoobrigada.Esperonãoterinterrompidoalgumtrabalhoimportantequeosenhortivesseparafazer—esaiu.

Egerton, de pé, continuou a olhar a porta, que se fechara atrás de Elvira.Apertouos lábios,assobiouummomento,abanouacabeça, tornoua sentar-se,apanhouumacanetaetamborilounamesa,pensativo.Puxouunspapéisparasi,depoisafastou-osepegouotelefone:

—MissCordell,quermeligarcomoCoronelLuscombe,porfavor?Tenteprimeirooclubedele.EdepoisoendereçodeShropshire.

Largouofone, tornouapuxarparasiospapéisecomeçoua ler,masnãoconseguiasefixarnoqueestavafazendo.Afinalacigarratocou:

—OCoronelLuscombeestánalinha,Mr.Egerton.

—Ótimo.Alô,Derek.ÉRichardEgertonquefala.Comovaivocê?Acabodereceberavisitadealguémquevocêconhece.Avisitadesuapupila.

—DeElvira?—DerekLuscombepareciamuitosurpreso.

—Sim.

— Mas por que... por que cargas d'água... ela procurou você? Alguma

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complicação?

—Não,eunãodiriaisso.Pelocontrário,elamepareceubastante...bastantesatisfeita consigo própria. Queria informar-se a respeito de sua situaçãofinanceira.

—Esperoquevocênãotenhaditonadaaela—disseoCoronelLuscombealarmado.

—Porquenão?Paraqueosegredo?

—Bem,nãopossodeixardepensarqueéumpoucoimprudentefazersaberaumameninaqueelavaireceberumagrandequantidadededinheiro.

—Alguémiriadizerissoaela,senósnãodisséssemos.Lembre-sequeelatemqueestarpreparada.Dinheiroéresponsabilidade.

—Sim,maselaaindaémuitocriança.

—Temcertezadisso?

—Queéquevocêquerdizer?Claroqueelaéumacriança.

—Eunãoaqualificariadecriança.Queméonamorado?

—Como?

—Pergunteiqueméonamorado.Porquedevehaverumnamoradonessahistória,não?

—Não, não há.Absolutamente nenhum.Que é que faz você pensar emnamorado?

— Nada do que ela me disse. Mas você sabe que eu tenho algumaexperiência.Creioquevocêdescobriráqueexisteumnamorado.

— Pois posso lhe garantir que você está completamente errado. Ela foieducada com omaior cuidado, esteve interna em colégios dosmais severos, efreqüentouumaescoladeaperfeiçoamentodasmaisseletas,naItália.Eusaberia,se houvesse alguma coisa. Talvez ela tenha sido apresentada a um ou doisrapazesagradáveis,mastenhocertezaquenãoocorreunadadoquevocêsugere.

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—Poisomeudiagnósticoéumnamorado...eprovavelmenteindesejável.

—Masporque,Richard,porquê?Quesabevocêarespeitodemocinhas?

—Muita coisa— respondeu secamenteEgerton.—Tive três clientes noano passado, duas das quais foram declaradas pupilas do Estado e a terceiraobrigou os pais a consentirem num casamento inevitavelmente desastrado.Asmoçasdehojenãosãovigiadascomoeramantigamente.Nasatuaiscondiçõesédificílimotomarcontadelas...

—MaseulheasseguroqueElviratemsidoassistidacomomaiorcuidado.

—Aespertezadasmoçasultrapassaqualquerdasnossasconjeturas!Fiquede olho nela, Derek. Faça algumas investigações a respeito do que ela andafazendo.

—Tolice.Elaéapenasumamocinhameigaesimples.

—As coisas que você ignora a respeito de mocinhas meigas e simplesdariam para encher um álbum! A mãe dela fugiu de casa e provocou umescândalo... lembra-se? quando era ainda mais nova do que é hoje Elvira. EquantoaovelhoConniston,foiumdospioreslibertinosdaInglaterra.

—Vocêmedeixapreocupado,Richard.Muitopreocupado.

—Ébomquefiqueavisado,Masodequenãogosteifoideumaoutradasperguntas que elame fez. Por que está amenina tão aflita em saber quem lheherdaráodinheiro,seelamorrer?

—Éesquisitovocêmecontarisso,porqueelamefezamesmapergunta.

—A você também? Por que será que ela se preocupa com uma morteprematura?Aliás,tambémmefezperguntasarespeitodamãe.

A voz do Coronel Luscombe pareceu inquieta. — Seria bom que Bessentrasseemcontatocomafilha.

—Vocêconversoucomela.sobreoassunto?.,.ComBess,querodizer.

—Bem...Conversei,sim.Encontrei-mecomelaporacaso.Aconteceuqueestávamoshospedadosnomesmohotel.InsisticomBessparaquedesseumjeitodeseavistarcomamenina.

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—Eela,oquerespondeu?—indagouEgerton,curioso.

—Recusou-seterminantemente.Chegouatéadizerquenãoerabomparaameninaconhecerumapessoacomoela.

— Sob certo ponto de vista, quero crer que não é mesmo, — conveioEgerton.—Andametidacomaquelesujeitodascorridas,nãoé?

—Ouvialgunsboatos.

—Tambémouvi,Masnãoseisemerecemcrédito.Talvezmereçam.Eporissoéqueeladisseoquedisse.DevezemquandoBessarranjacadaamigoqueDeusmelivre!Masquemulher,hemDerek?Quemulher!

— Bess foi sempre a pior inimiga dela mesma — resmungou DerekLuscombe.

—Uma observação brilhantemente convencional,—retrucou Egerton.—Bem, lamento tê-lo incomodado,Derek,mas esteja atento à atuaçãoocultadosindesejáveis.Nãodigaquenãooavisei.

Recolocouofonenoganchoenovamentepuxouparasiospapéisdecimadamesa.Agorajápodiadedicartodaaatençãoaoquefazia.

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11

MRS. MCCRAE, a governanta do Cônego Pennyfather, encomendara umlinguadodeDoverparaanoitedachegadadopatrão.Muitaseramasvantagensproporcionadas por um bom linguado de Dover. Não precisava ser posto nagrelha ou na frigideira enquanto oCônego não estivesse em casa são e salvo.Poderiaserguardadoparaodiaseguinte,senecessário.OCônegoPennyfathergostavamuito de linguado deDover; e se viesse um telefonema ou telegramaavisandoqueoCônegopassaria a noite emoutro lugar,Mrs.McCrae tambémapreciavamuitíssimoumbomlinguadodeDover.Assim,estavatudoemmuitoboascondições,àesperadopatrão.OlinguadodeDoverseriaacompanhadodepanquecas.Olinguadojazianamesadacozinha,eabatedeiradaspanquecasjáestavanatigela.Tudopronto.Osobjetosdelatãoreluziam,aspratasespelhavam,não havia uma parcela de poeira em lugar nenhum. Só uma coisa faltava: oCônegoempessoa.

OCônegodeveriaregressarpelotremdeLondres,quechegavaàs6:30.

Às sete horas ele ainda não voltara. Decerto o trem se atrasara. Às 7:30ainda não chegara. Mrs. McCrae soltou um suspiro de aborrecimento.Desconfiavadequeavelhahistóriairiaserepetir.Oitohorassoaram,enadadoCônego. Mrs. McCrae soltou um longo suspiro exasperado. Logo mais, semdúvida,receberiaumtelefonema,emboranãoestivesseforadepossibilidadequenão houvesse sequer um telefonema. Ele poderia ter escrito. Com certezaescrevera,masprovavelmenteseesqueceradepostaracarta.

—Oh,Senhor,ohSenhor!exclamavaMrs.McCrae.

Às nove horas a governanta fez para si três panquecas, na batedeira. Olinguado,guardara-ocuidadosamentenaFrigidaire."Sóqueriasaberondeandaosantohomem",diziaelaconsigo.Sabia,porexperiência,queelepoderiaestaremqualquerparte.Eraprovávelquedescobrisseoenganoatempodetelegrafaroutelefonarantesqueelaserecolhesseàcama."Vouesperaraté11horas,nemmaisumminuto".Dezetrintaerasuahoradeirparaacama,masjulgavadeseudever aguardar até às onze. Se às onze horas não chegasse notícia alguma doCônego,Mrs.McCraetrancariaacasaeiriaparaoleito.

Não se pode dizer que estivesse aflita, pois coisa igual já sucedera antes.Não havia nada a fazer senão esperar por alguma notícia. Eram inúmeras aspossibilidadesaencarar.OCônegoPennyfatherpoderiatertomadootremerrado

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esóterdescobertooenganoemLand’sEndouJohno'Groats;podiaaindaestarem Londres, tendo se enganado a respeito da data em que estava, e portantoconvencido de que só deveria voltar no dia seguinte. Poderia ter encontradoalgumamigoouamigosnessaconferêncianoestrangeiro,paraaqualsedirigira,e ser induzido a demorar-se talvez por todo o. fim da semana. Ele tencionarainformá-la,masesquecera-secompletamentedeofazer.Assim,comojáfoidito,agovernantanãoestavaaflita.Depoisdeamanhã,ograndeamigodoCônego,oArcediagoSimmons,viriahospedar-secomele.IssoeracoisaqueoCônegonãoesquecia; portanto, sem dúvida ele em pessoa ou um telegrama deveria chegaramanhã,e,nomaistardar,estariaemcasadepoisdeamanhã,oumandariaumacarta.

Amanhãdodiaseguintechegou,entretanto,semumapalavradoCônego.Pelaprimeiravez,Mrs.McCraecomeçouasesentirinquieta.Entre9damanhãe1 da tarde, Mrs, McCrae se pôs a relancear o telefone, com ar de dúvida.Agovernantatinhaopiniõesprópriasarespeitodotelefone.Usava-oereconhecia-lhe a utilidade, mas não gostava dele.Algumas das suas compras de gênerosfazia-as por telefone; mas preferia muito mais fazê-las pessoalmente, graças àfirme convicção de que, quando a gente não está com os olhos naquilo quecompra, o vendeiro na certa nos rouba.Assimmesmo, telefones eram objetosúteisparaseteremcasa.Ocasionalmente,emborararamente,elatelefonavaparaamigaseparentesdavizinhança.Masdetestavafazerumtelefonemainterurbano,paraLondres,porexemplo.Agora,porém,pensavaemenfrentaresseproblema.

Finalmente, quando nasceu mais um dia, sem notícias do patrão, Mrs.McCrae resolveu agir. Sabia onde se hospedava oCônego emLondres;HotelBertram's,umbelohotel

à moda antiga. Talvez agisse certo se tocasse o telefone e fizesse certasperguntas.ProvavelmentelásaberiamondeéqueestavaoCônego,nãoeraumhotel qualquer. Pediria ligação paraMissGorringe.MissGorringemostrava-sesempreeficienteeatenciosa,ÉclaroqueoCônegopoderiavoltarpelotremdasdozeemeia;assimsendoestariaemcasaaqualquermomento.

MasosminutospassavamenadadoCônego.Mrs.McCraetomoufôlego,fundo,encheu-sedecoragemepediuligaçãoparaLondres.Esperou,mordendooslábiosecomofonefirmementeatarraxadoaoouvido.

—HotelBertram's,àsordens—disseumavoz.

—Porfavor,euqueriafalarcomMissGorringe,—disseMrs.McCrae.

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—Ummomento.Quemquerfalarcomela?

—ÉagovernantadoCônegoPennyfather.Mrs.McCrae.

—Ummomentoporfavor.

ElogoavozcalmaeeficientedeMissGorringesefez.ouvir.

—MissGorringequeestáfalando.ÊagovernantadoCônegoPennyfather?

—Issomesmo.Mrs.McCrae.

—Ohsim.Claro.Emquepossoservi-la,Mrs.McCrae?

—OCônegoPennyfatheraindaestáhospedadoaínohotel?

—Foibomasenhora ter telefonado—respondeuMissGorringe.—Nósestávamospreocupados,semsaberoquefazer.

—Aconteceu alguma coisa ao Cônego Pennyfather? Será que ele sofreualgumacidente?

—Não,nadadisso.MasnósoesperávamosdevoltadeLucernanasexta-feiraounosábado.

—Eraissomesmo,

—Maselenãochegou.Bem,naverdadeissonãosurpreende.Elereservaraoquarto...reservaraoquartoatéontem.Masnãoapareceuontem,nemmandoudizer nada, e as coisas dele ainda estão aqui... amaior parte da bagagem.Nósficamos sem saber o que fazer. É claro que... — e Miss Gorringe concluiuapressadamente—nóssabemosqueoCônegoébastanteesquecidoàsvezes.

—Asenhoratemtodarazão!

—Issodificultaascoisasparanós.Estamoscomacasacheia.Oquartodeleestáreservadoparaoutrohóspede.—Acrescentou:—Asenhoranãotemideiadeondeéqueeleestá?

Mrs. McCrae confessou com amargura.—Aquele homem pode estar emqualquerlucrar!—Logoconteve-se:—Bem,muitoobrigada,MissGorringe.

— Se houver algo que eu possa fazer... — sugeriu bondosamente Miss

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Gorringe.

—Achoqueembrevetereinotíciasdele.—disseMrs.McCrae.AgradeceuaMissGorringeedesligou.

Sentou-se junto ao telefone.Pareciaperturbada.Não temiapela segurançapessoaldoCônego.Seelehouvessesofridoumacidente,aestashoraselajáteriasido informada.Disso tinha certeza.Aliás, não se poderia dizer que oCônegofosse dado a acidentes. Ele era o que Mrs. McCrae costumava chamar de"desligado",eparecequeosdesligadostêmsempreumaprovidênciaespecialaprotegê-los.Mesmosemligaremàmínimacoisa,escapamincólumesatudo.Não,Mrs. McCrae não imaginava o Cônego Pennyfather a gemer num leito dehospital. Ele andava por aí, alegre e inocentemente batendo papo com algumamigo. Talvez ainda estivesse no estrangeiro. O problema é que oArcediagoSimmonsestavaparachegarnaquelanoite,eoArcediagoSimmonsesperavaserrecebidopelodonodacasa.ElanãopodiaavisaroArcediagoSimmonsporquenãosabiaondeeleestavanomomento.Eraumacomplicaçãoenormemas,comotodacomplicação,tinhaoseuladobom.EoladobomeraopróprioArcediagoSimmons.OArcediagoSimmonssaberiaoquefazer.Elaporiaoproblemanasmãos dele.OArcediagoSimmons era umcompleto contraste como patrão deMrs.McCrae. Sabia para onde ia, o que estava fazendo, e tinha sempre umaconvicçãoprofundaarespeitodacoisacertaafazer—efazia-a.Eraumhomemconfiante.Assim,quandooArcediagoSimmonschegouesedefrontoucomasexplicações, desculpas e inquietações deMrs. McCrae, mostrou-se como umatorredesegurança.Eletambémnãosesentiaalarmado.

—Vamos, não se aflija,Mrs.McCrae,— disse o hóspede no seumodojovial, sentando-se à mesa, para comer a ceia que ela lhe preparara. —Encontraremos aquele distraído. Já ouviu contar aquela história a respeito deChesterton?G,K.Chesterton,oescritor.

Certa vez tinha viajado para fazer umas conferências e passou o seguintetelegrama para a esposa: "Estou na estação de Crewe. Onde é que eu deviaestar?"

Riu-se.Mrs.McCrae sorriu obedientemente. Não achava a históriamuitoengraçada porque se referia precisamente ao tipo de coisa que o CônegoPennyfathereracapazdefazer.

— Ah! — disse o Arcediago Simmons, encantado — uma das suasexcelentes costeletas de vitela!A senhora é uma cozinheira maravilhosa,Mrs.

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McCrae.Esperoqueomeuvelhoamigosaibaapreciá-la.

Àscosteletasdevitela seguiram-sepequenospudinscomcaldodeamoraspretas (Mrs. McCrae lembrara-se de que esse era um dos doces favoritos doArcediago) ; e depois o santo homem entregou-se à tarefa de rastrear o seusumidoamigo.Dirigiu-seaotelefonecomumvigoreumacompletaindiferençapor despesas, o que fez com que Mrs. McCrae apertasse os lábios, ansiosa,embora emverdade não censurasse oArcediago, porque realmente era precisodescobrir-seopatrão.

Tendo inicialmente cumprido o dever de se comunicar com a irmã doCônego,quepoucosabiadas idasevindasdo irmãoe, comodecostume,nãotinhaamenorideiadeondeelepudesseestar,oArcediagoalargouocampodepesquisas.NovamentefaloucomoHotelBertram's,informando-secomamaiorminúcia possível. O Cônego saíra de lá ao anoitecer do dia 19. Levava umasacoladaBEA,maso restodabagagemficaranoquarto,poreledevidamentereservado.DeclararaqueiriatomarpartenumaconferênciaemLucerna.Nãoforadiretodohotelparaoaeroporto.Oporteiro,queoconheciabemdevista,pusera-onum táxi e dera o endereçodoClubeAthenaeum, por indicaçãodoCônego.ForaessaaúltimavezqueopessoaldoBertram'savistaraoCônegoPennyfather.Ah, sim, umpequenodetalhe: ele se esquecera de entregar a chave do quarto,levando-aconsigo.Enãoeraaprimeiravezquetalcoisaacontecia.

OArcediagoSimmonsrefletiualgunsminutosantesdefazernovachamada.Podia ligar para o aeroporto, em Londres. Isso na certa tomaria algum tempo.Mashaviaumcaminhomaiscurto.TelefonouparaoDr.Weissgarten,umeruditoespecialistaemhebraico,quecomtodaacertezaestiverapresenteàconferência.

O Dr. Weissgarten estava em casa. Tão logo se deu conta de quem lhefalava, iniciou um discurso torrencial dedicado quase todo a desancar doistrabalhosquetinhamsidolidosnareuniãodeLucerna.

—Fraquíssimo,aqueleHogarov—disseele—fraquíssimo!Nãoseicomoéque ele se arranja.Não é umerudito, absolutamente. Sabe o que foi que eledisse?

OArcediagosuspiroue tevequesemostrarfirmecomoDr.Weissgarten.Senão,comtodaprobabilidade,orestodanoiteseriagastoemcríticasaosoutrossábios presentes à conferência de Lucerna. Com certa relutância, o Dr.Weissgartenfixou-seemassuntosmaispessoais.

—Pennyfather?—disseele.—Pennyfather?Deviaestar lá,nemseipor

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que não apareceu. Disse que iria.Me disse isso uma semana antes, quando oencontreinoAthenaeum.

—Querdizerqueelenãofoiàconferência?

—Foioqueeudisse.Edeviair.

— Por acaso sabe por que ele não esteve lá? Será que enviou algumadesculpa?

— Como é que vou saber? Posso lhe afirmar que ele falou que iria àconferência. Sim, agora me lembro. Ele era esperado, e várias pessoas lhenotaram a ausência. Pensaramque talvez se houvesse resfriado.O tempo andamuito traiçoeiro.—Estava prestes a voltar às suas críticas aos colegas,mas oArcediagodesligou.

Descobriraumfato,maseraumfatoque,pelaprimeiravez,lheprovocavaumacertainquietação.OCônegoPennyfathernãocompareceraàconferênciadeLucerna.Tencionara ir a essa conferência.Parecia extraordinário aoArcediagoqueelenãotivesseestadolá.Evidentementeovelhotepoderiaterembarcadonoaviãoerrado,emboraaB.E.A.tomasseomaiorcuidadocomosseuspassageirose os pastorassebem, evitando tais ocorrências.Será queoCônegoPennyfatheresquecera o dia em que devia comparecer à conferência? Não era impossível.Masnessecaso,Paraondeteriaido?

Telefonou então para o aeroporto.A operação exigia muita paciência, aligação era transferida de uma seção para outra; ao cabo, porém, oArcediagoestavadepossedeumfatodefinitivo:oCônegoPennyfatherreservarapassagemnoaviãodas21:40dodia18paraLucerna,masnãoembarcara.

—Vamosnosadiantando,—disseoArcediagoSimmonsaMrs,McCrae,quepairavanofundodecena.—Vejamos,então.Comquemdevofalaragora?

— Esses telefonemas todos vão custar um dinheirão — comentou Mrs.McCrae.

—Achoquesim.Achoquesim,concordouoArcediagoSimmons.—Mastemosquerastreá-lo,compreende?Elenãoéummenino.

—Oh,osenhorachaqueterárealmentelheacontecidoalgumacoisa?

—Esperoquenão...creiomesmoquenãoaconteceunada,senãoasenhora

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játeriasabido.Ele...bem...semprelevavaconsigoonomeeoendereço,não?

—Sim senhor, sempre levava cartões de visita. Levava cartas também, eobjetosdetodosostiposnacarteira.

—Bem,entãoachoquenãodeveestarnumhospital—disseoArcediago.— Vejamos. Quando deixou o hotel, tomou um táxi para oAthenaeum. Voutelefonarparalá.

N oAthenaeum, o Arcediago Simmons colheu algumas informaçõesdefinidas.OCônegoPennyfather,queeramuitoconhecidonoclube,jantaraaliàsseteemeia,nanoitedodia19,FoientãoqueacudiuaoespíritodoArcediagoalgoqueelepassaraporaltoatéentão.Apassagemaéreaeraparaodia18,masfora no dia 19 que o Cônego saíra do Hotel Bertram's num táxi para oAthenaeum, tendo mencionado que ia assistir à conferência em Lucerna.Começavaaapareceralgumaluz. ''Aquelepateta",pensouoArcediagocomosseusbotões, tendo,contudo,omaiorcuidadoemnãodizernadadiantedeMrs.McCrae,"enganou-senadata;aconferênciaeranodia19,dissoeutenhocerteza.Provavelmenteelepensavaqueestavaembarcandonodia18.Enganou-seemumdia".

EoArcediagoprosseguiucuidadosamentenasuare-constituição.OCônegodevia ter ido aoAthenaeum; lá jantou e de lá teria idopara a estação aéreadeKensington.Aíprovavelmentelhetinhamditoqueasuapassagemeraparaodiaanterior; ele então compreendeu que a conferência a que pretendia assistir játerminara.

—Issofoioqueaconteceu,garanto—disseoArcediago.EexplicouoseuraciocínioaMrs.McCrae,queoachouplausível.—Eagora,quefariaele?

—Voltouaohotel—sugeriuMrs.McCrae.

—Nãoviriadiretoparacá,querodizer,diretoparaaestaçãodetrem?

—Não,porqueabagagemdeleestavanohotel.Pelomenosteriatelefonadoparaquemandassemabagagem.

—Éverdade—concordouoArcediago.—Muitobem.

Admitamos que as coisas se passaram destemodo. Ele saiu do aeroportocom a valise e voltou ao hotel, ou pelomenos iniciou o trajeto de regresso aohotel. Talvez tenha jantado.não, já havia jantado noAthenaeum. Muito bem,

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voltou para o hotel. Mas não chegou lá. — Fez uma pausa e depois disseindeciso:—Seráquevoltoumesmo?Parecequeninguémoviuporlá.Quelhesucedeuentãonocaminho?

— Talvez tenha encontrado alguém— disse Mrs. McCrae, também emdúvida.

—Sim.Claro,éperfeitamentepossível.Algumvelhoamigoqueelenãoviahámuito tempo... Podia ter ido para o hotel ou a casa desse amigo...mas nãoficariatrêsdiaslá.Nãoseesqueceria,durantetrêsdias,dequedeixaraabagagemnoBertram's.Teriatelefonadoarespeitodela,teriaidobuscá-laou,numataqueagudodedistração,teriavindodiretoparacasa.Trêsdiasdesilêncio.Issoéqueéinexplicável.

—Sesofreuumacidente...

—Sim,Mrs.McCrae,issoéperfeitamentepossível.Podemosprocurarnoshospitais.Masa senhoranãodissequeele andava semprecomumaporçãodepapéisdeidentificação?Hum...Sóvejoagoraumasaída,

Mrs.McCraeolhou-oapreensiva.

—Penso—dissebrandamenteoArcediago—pensoquetemosderecorreràpolícia.

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MissMARPLE nãoencontraradificuldadeemaproveitardevidamente a suaestada em Londres. Fez uma porção de coisas que, nas suas rápidas viagensanterioresàcapital.Jamaistiveratempodefazer.Devemosregistrar,compesar,queMissMarplenãoaproveitouasamplas facilidadesdequedispunhaparaseentregar a atividades de natureza cultural. Não visitou galerias de pintura nemmuseus;tampoucolheocorreriaaideiadeassistiraumdesfiledemodas.Oqueela visitou foram as seções de louças e cristais das grandes lojas dedepartamentos,bemcomoasseçõesderoupadecamaemesa,echegoumesmoaadquirir algumas fazendas para estofamento, nas liquidações. E depois deempregar o que considerava uma soma apreciável nesses investimentos denaturezadoméstica,proporcionouasimesmaodeleitedealgumasexcursões.Foialocaisdequeselembravadostemposdemocidade,levadaàsvezesapenaspelacuriosidade de verificar se ainda estavam nos mesmos lugares. Após umaagradávelsesta,saíaeevitando,quandopossível,asatençõesdoporteiro,jáqueeletinhaaabsolutaconvicçãodequesenhorasdaidadeedafragilidadedelasódeviamandardetáxi,encaminhava-separaumpontodeônibus,ouumaestaçãodemetrô.Compraraumpequenoguiadosônibuseseuspercursos,eumMapadoTransporteSubterrâneo;eplanejavacomcuidadoasexcursões.Certastardespoderia ser encontrada a passear satisfeita e nostálgica por EvelynGardens ouOnslow Square, murmurando de si para si: "Sim, ali era a casa deMrs. VanDylan. Claro que agora tem um aspecto muito diferente, parece que foireformada.MeuDeus, vejo que tem quatro campainhas. Quatro apartamentos,suponho.Estapraçatevesempreumaspectoantiquado,tãosimpático."

Um pouco envergonhada, fez uma visita à loja deMadame Tussaud, umprazerinesquecíveldostemposdainfância.EmWestbourneGroveprocurouemvãoporBradley's.A tiaHelen sempre entregava aBradley's a limpezado seucasacodepeledefoca.

Olhar vitrinas, da forma comum, não seduzia Miss Marple; ela porémdivertia-se imensodescobrindonovosmodelos de tricô, novasvariedadesde lãpara tricotar, e outras preciosidades idênticas. Fez uma excursão especial aRichmond a fimde rever a casa ondemorara seu tio-avôThomas, o almirantereformado. O bonito terraço ainda existia, mas parece que a casa foratransformada em apartamentos. Mais penoso ainda foi o caso de LowndesSquare, onde vivera com relativo esplendor uma sua prima distante, LadyMerridew:láseerguiaagoraumvastoarranha-céudeaspectomodernista.Miss

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Marpleabanouacabeça tristementeedissecomfirmezadesiparasi:"Seiqueprecisahaverprogresso.MasaprimaEthelestremecerianasepulturasesoubessedisso".

Numatardeespecialmenteamenaeagradável,MissMarpleembarcounumônibusquealevouaBatterseaBridge.Iaentregar-seaoduploprazerdedarumaespiada sentimental em Princes Terrace Mansions, onde vivera outrora umaantiga governanta sua, e visitar Battersea Park.A primeira parte do programafracassou.AantigaresidênciadeMissLedburydesaparecerasemdeixarvestígiose fora substituída por um grande monte de concreto reluzente. Miss Marpledirigiu-se então para Battersea Park. Sempre fora boa andarilha, mas deviaconfessar agora que a sua capacidade de caminhar já não era mais a mesma.Bastava meia milha para a fatigar. Pensou, porém, que poderia dar conta datravessiadoparque,chegandoatéaChelseaBridgee ládescobrindoumalinhadeônibusquelheservisse;aospoucos,porém,seuspassosiam-setornandomaislentos, cadavezmais lentos, e foi comprazerqueMissMarpledescobriuumacasadechásituadanumcaramanchãoàmargemdolago.

Apesar da friagem do outono, ainda serviam chá ali;mas hoje não haviamuitagente:certaquantidadedemãescomosseusbebêsnoscarrinhosealgunsparesdenamorados.MissMarplereuniunumabandejaumaxícaradecháeduasfatiasdepão-de-ló.Levoucuidadosamenteabandejaparaumamesaesentou-se.Era de chá que estava precisando. Forte, quente, reanimador, Reanimada, elaolhouemtorno,eavistandoderepenteumacertamesa,empertigou-senacadeira.Que estranha coincidência! Estranhíssima; primeiro naArmy&Navy Stores eagoraali.Quelugaresmaisinesperadosaquelesdoisescolhiam!Masnão!Haviaengano.Notava-seumacertasemelhança,claro—ocabelolouro,comprido,masnão era Bess Sedgwick, era alguém mais jovem. Claro! Era a filha dela! AmocinhaqueentraranoBertram'scomoamigodeLadySelinaHazy,oCoronelLuscombe.MasohomemeraomesmoquealmoçaracomLadySedgwickemArmy&NavyStores.Quantoaissonãohaviaamenordúvida:omesmoperfilbonito,aquilino,omesmocorpoesguioerijo,amesmaobstinaçãopredatóriae...sim,amesmaatraçãoforteeviril.

—Não está bem!—disse consigoMissMarple.—Não está nada bem!Cruel! Inescrupuloso. Não gosto de ver essas coisas. Primeiro a mãe, agora afilha.Quesignificaisso?

Coisaboanãosignificava.DissoMissMarpletinhacerteza.RaramenteMissMarpleconcediaaalguémobenefíciodadúvida;invariavelmentepensavaopiore, nove vezes em dez — assim afirmava ela insistentemente, — tinha razão.

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Aquelesencontros, estavacertadisso, erammaisoumenos secretos.Notouelaentãoomodocomoaquelesdoissedebruçavamsobreamesa,atéquasetocaremascabeças;easeriedadecomquefalavam.Orostodamoça—MissMarpletirouosóculos,limpoucuidadosamenteaslentesetornouapô-los.Sim,aquelamoçaestava apaixonada. Perdidamente apaixonada, como só os jovens podem estar.Mascomoéqueos tutoresdelaconsentiamqueameninaandasseassim,solta,pela cidade de Londres, emareasse esses encontros clandestinos em BatterseaPark? Uma moça tão bem criada, tão bem educada. Bem criada demais, semdúvida!O pessoal dela com certeza a imaginava em localmuito diferente. Elaprovavelmentetiveraquementir.

Aosair,MissMarplepassoupelamesaondeestavamosnamorados—tãolentamentequantopodiafazê-losemsetrair.Infelizmenteosdoisfalavamemvoztão baixa que ela não pôde escutar o que diziam. O homem falava, ameninaescutava, meio feliz, meio assustada. ''Quem sabe estão planejando fugir?"pensouMissMarple."Elaaindaémenor".

MissMarple atravessou um pequeno portão aberto na cerca, o qual davaparaacalçadadoparque.Haviaautomóveisestacionadosaolongodacalçada,eMiss Marple se deteve ao chegar a um deles. Não era muito entendida emautomóveis, mas um carro como aquele não lhe aparecia com frequência; porisso, ela reparara nele e não o esquecera. Um sobrinho-neto, que "era fã dascorridasdeautomóvel,lhederaalgumasinformaçõessobreessetipodeveículos.Eraumcarrodecorridas.Demarcaestrangeira.—Agoranãoconseguiulembraro nome. Mas não era só isto: vira esse carro, ou um exatamente igual, aindaontem,numa rua lateralpertodoHotelBertram’s.Prestaraatençãonelenãosóporcausadotamanhoedaaparênciapoderosaeincomum,masporqueonúmerodespertara alguma vaga recordação, algumvestígio de associação de ideias emsuamemória.FAN2266.Fizera-apensarnaprimaFannyGodfrey.ApobrezinhadaFanny,quediziagaguejando:"Tenhod—d—d—d—uasm—m—m—m—eias...

Caminhou um poucomais e olhou o número do carro. Sim, estava certa.FAN2266.—Eraomesmocarro.MissMarple,sentindoacadapassoaumentar-lhea fadiga, chegou,mergulhadaemprofundospensamentos, aooutro ladodaChelseaBridge;estavatãoexaustaquechamoucomdecisãooprimeirotáxiquepassou. Sentia-se inquieta, preocupada, com a impressão de que deveria tomaruma providência com relação àquelas coisas. Mas que coisas e que fazer arespeitodelas?Eratudotãoindefinido.Fixou03olhos,distraída,nasmanchetesdosjornais:

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"Novidades sensacionaisnoassaltoao trem"—diziauma. "Ahistóriadomaquinista"—diziaoutra.Quecoisa!pensouMissMarple,quasetodososdiashaviaassaltosabancos,trens,carros-pagadores.

Ocrimepareciaterpassadodoslimites.

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13

LEMBRANDOVAGAMENTEumabelhão,oInspetor-ChefeFredDavyzanzavapelassalasdoDepartamentodeInvestigaçõesCriminais,cantarolandobaixinho.Era uma conhecidamania sua, que não causavamaior interesse e apenas davamotivoaquealguémcomentasseque"Papaiandavaoutravezfarejandocaça".

OfarejardoInspetor-Chefelevou-oafinalàsalaondeseachavaoInspetorCampbell,sentadoàsuamesa,comexpressãoaborrecida.OInspetorCampbelleraumrapazambiciosoeconsideravaextremamente tediosaamaioriadassuasocupações.Issonãooimpediadedarcontadastarefasquelheeramentregues,eaté realizá-las comcerto brilho.As autoridades doDepartamento viam-no combonsolhos,gostavamdoqueelefaziae,devezemquando,lhediziamalgumaspalavrinhasdeestímuloouelogio.

—Bomdia,Inspetor-Chefe,—disserespeitosamenteoInspetorCampbellquando Papai entrou em seus domínios. Claro que nas costas dele CampbelltambémchamavaDavydePapaicomoofaziamtodos;masaindanãotinhaidadesuficienteparalhefalarassimdecara.

—Emquelhepossoserútil,Inspetor?—perguntou.

— Lá, lá, lá, bum, bum — cantarolava o Inspetor-Chefe, levementedesafinado.—PorquemechamamdeMaryquandoomeunomeéMissGibbs?—Apósessainesperadaressurreiçãodeumaesquecidacomédiamusical,Davypuxouumacadeiraesentou-se.

—Ocupado?—perguntouele.

—Nãomuito.

—Às voltas com um caso de desaparecimento não é isso? ocorrido numhotel.Comoémesmoonomedohotel?Bertram's.Estácerto?

—Está,simsenhor.HotelBertram's.

—Infraçãodohoráriodevendadebebidas?Lenocínio?

—Oh,nãosenhor,—respondeuoInspetorCampbell levementechocadoaoouvirmencionartaiscoisasapropósitodoHotelBertram's.

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—Olugarémuitoagradávelecalmo,àmodaantiga.

—Será?—dissePapai.—Serámesmo?Bom,éinteressante!

O Inspetor Campbell gostaria de saber por que a coisa seria interessante.Não quis fazer perguntas, já que a alta hierarquia andava toda demau humordesdeoassaltoao trempostal,oqual representaraumêxitoespetacularparaoscriminosos. Campbell olhou para o rosto largo, bovino, de Papai e pensouconsigo,comojáopensaraumaououtravezantes:comoéqueoInspetor-ChefeDavychegaraàaltaposiçãoqueocupavaeporquefaziamdeletãobomjuízo,noDepartamento? "Deve ter sido bom no tempo dele", pensava o inspetorCampbell, "mas agora há por cá muito sujeito ativo que bem merece umapromoção, se os velhotes desocupassem o caminho''.Mas o velhote começaraoutracantiga,entremeadacomumapalavrinhaaquieali.

"Dize-me,lindaestrangeira,háporláoutrascomotu?"entoouPapai,elogoem repentino falsete: "Algumas, meu bom senhor, e moças tão meigas jamaisconhecestes". Não, vejamos, acho que confundi os sexos.Floradora. Foitambémumbeloespetáculo.

— Creio que ouvi falar a respeito, Inspetor-Chefe, — disse o InspetorCampbell.

— Sua mãe deve ter cantado essa cantiga para embalar você— falou oInspetor-ChefeDavy.—MasqueéqueestáhavendonoHotelBertram's?Quemdesapareceu,comoeporquê?

—UmcertoCônegoPennyfather.Umclérigoidoso.

—Casochato,não?

OInspetorCampbellsorriu:

—Simsenhor,decertomodoébemchato.

—Comoéele?

—Quem?OCônegoPennyfather?

—Sim...Vocêtemumadescriçãodele,não?

—Claro.—Campbellremexeununspapéiseleu:—Altura1,72m.Cabelo

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branco,meiocorcunda...

—EdesapareceudoHotelBertram's...quando?

—Cercadeumasemanaatrás...a19denovembro.

—Esóagoraelesderamparte.Levaramtempo,não?

—Bem,parecequeesperavamqueovelhovoltasseaqualquermomento.

—Temalgumaideiadoqueestáportrásdisso?—indagouPapai.—SeráqueumhomemdecenteetementeaDeussumiuderepentecomamulherdeumdoscuradoresdaigreja?Ouseráeleumdessesvelhotesdistraídosquenãosabemporondeandam?

—Bem,Inspetor-Chefe,creioquesetratadaúltimahipótese.OCônegojáseperdeuantes.

—Como?DesapareceudeumrespeitávelhoteldoWestEnd?

—Não, issoaindanãofez,mas já temdeixadodevoltarparacasanodiaesperado.Às vezes vai se hospedar na casa de amigos numdia emque não oconvidamoudeixadeirquandooesperam.Essascoisas.

—Sim—dissePapai—tudoparecemuitonatural,direitinhoedeacordocomumplano,não?Quandofoiexatamentequeeledesapareceu?

—Quinta-feira,19denovembro.Deveriacompareceraumcongressoem...—Curvou-se,examinouunspapéissobreamesa—ahsim,Lucerna.SociedadedeEstudosHistóricosBíblicos.Esseéonomeinglêsdasociedadeque,segundocreio,éalemã.

—EocongressoserealizavaemLucerna?Ovelhote...suponhoqueéumvelhote.

—Sessentaetrêsanos,peloquesei.

—Ovelhote,então,nãodeumaisascaras?

O InspetorCampbell puxou para si os papéis e forneceu a Papai os fatoscomprováveisnamedidaemquetinhamsidocomprovados.

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—Nãodáaimpressãodeterfugidocomummeninodocoro—observouoInspetor-ChefeDavy.

—Esperoqueno fimele apareça—explicouCampbell.—mas estamosinvestigando, naturalmente. Será que o senhor... está especialmente interessadonocaso?—Malpodiarefrearacuriosidade.

—Não—respondeuDavy,pensativo.—Nãoestou interessadonocaso.Nãovejonelenadaquedesperteinteresse.

Houve uma pausa, pausa em que evidentemente estavam implícitas aspalavras "Bem, e então?" seguidas de um ponto de interrogação, mas que oInspetorCampbellsabiaquenãodeviaarticularaudivelmente.

—Oquerealmentemeinteressa—continuouPapai—éadata.EoHotelBertram's,éclaro.

—Éumhotelmuitobemadministrado.Nuncahouvequeixasaseurespeito.

— Isso é ótimo, sem dúvida— disse Papai, e acrescentou, pensativo:—Maseugostariadedarumaolhadelanolocal.

—Certamente—acudiuoInspetorCampbell.—Quandoquiser.Euestavapensandoemdarumpuloatélá.

—Nessecasoeupoderiaircomvocê—propôsPapai.

—Nãoéparameintrometer,não.Gostariasódedarumaolhadelanolocal,e esse seu Arcediago desaparecido, ou quem quer que ele seja, é um bompretexto. Não precisa me chamar de "senhor" quando estivermos lá... você équemestarámandando,Sereiseusecretário.

OInspetorCampbellcomeçouainteressar-se.

—Acha o senhor que há alguma coisa por lá... que se ligue com outracoisa?

—Atéagoranãohárazãoparataisconclusões—dissePapai.—Masvocêsabe como são essas coisas.A gente tem... nem sei que palavra empregue... agentetemumpalpite,digamos.EoHotelBertram'sparecebomdemaisparaserverdadeiro.

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Voltou a personificar o abelhão, cantarolando o "Vamos todos descer oStrand".

Osdoisdetetivessaíramjuntos,CampbellmuitoelegantenoseuternofaziaexcelentefiguraeoInspetor-Chefe

Davy, com uma roupa velha detweed, parecia recém-chegado do campo.Combinavammuito bem os dois.Mas o olhar astuto deMiss Gorringe, ao seerguer do registro de hóspedes, logo os identificou, dando o seu ao seu dono.DesdequeelamesmaderapartedodesaparecimentodoCônegoPennyfatheretiveracontatocomumelementosubalternodapolícia,estiveraaguardandoumavisitadessanatureza.

Um cochicho sussurrado à sua auxiliar, que estava ali perto, fez comqueesta última se pusesse em primeiro plano, pronta a atender a quaisquersolicitaçõesdoshóspedes,enquantoMissGorringedeslizoudiscretamenteparaocantodobalcãoeencarouosdoishomens.OInspetorCampbelldepôsseucartãonamesa,diantedeMissGorringe,eelalhefezumacenodecabeça.Alongandoo olhar até o vulto gordo metido num paletó detweed atrás de Campbell, elanotouqueeleseviraráumpoucodelado,eobservavaasalaeosseusocupantes,entregue ao prazer aparentemente ingênuo de contemplar o espetáculo daquelagentearistocráticaebemeducadaemação.

—Queremvir até ao escritório?— indagouMissGorringe.—Lá talvezpossamosconversarmaisàvontade.

—Sim,creioqueserámelhor.

— Bonito local este — comentou o grandalhão gordo, de ar bovino,volvendo a cabeça para o lado de Miss Gorringe. — Muito confortável —acrescentou,olhandocomaprovaçãoparaaenorme lareira.—Bomconfortoàmodaantiga.

MissGorringesorriu,visivelmentesatisfeita.

—Defato.Orgulhamo-nosdefazercomqueosnossoshóspedesgozemdeconforto—disseela.Evoltou-separaasuaassistente:—Assumaomeulugar,sim,Alice?Estáaliolivroderegistro.LadyJocelynchegarádaquiapouco.Comtodaa certezavaiquerer trocardequarto, assimqueviroque lhedemos,masvocêexpliquequeestamoscomacasacheia.Se fornecessário,mostre a elao340,noterceiroandar,eproponhaatroca.O340nãoédosmelhores,egarantoqueelaficarásatisfeitacomoatual,logoqueviresseoutro.

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—Sim,MissGorringe.Fareioquemediz,MissGore.

—E lembre aoCoronelMortimer que o binóculo dele está aqui. Elemepediuparaoguardarhojedemanhã.Nãoodeixesairsemobinóculo.

—Sim,MissGorringe.

Cumpridas essas obrigações, Miss Gorringe olhou para os dois homens,passouporbaixodobalcãoeencaminhou-separaumaportalisademognoquenãoostentavanenhumletreiro.Abriuaporta,easvisitasentraramnumpequenoescritóriodeaspectoumpoucotriste.

—OhóspededesaparecidoéoCônegoPennyfather,peloquesei,—falouo InspetorCampbell,olhandoparaas suasnotas:—Tenhoaquio relatóriodoSargentoWadell.Querterabondadedemedizer,comsuasprópriaspalavras,oquefoiqueocorreu?

— Não creio que o Cônego Pennyfather tenha desaparecido no sentidousualdapalavra,—explicouMissGorringe.—Osenhorsabe,eupensoqueeledeve ter-seencontradocomalguém,emalgumlugar,umvelhoamigooucoisaparecida, e foi com ele para alguma reunião de eruditos, ou coisa assim, noContinente...Eleétãodistraído!

—Asenhoraoconhecehámuitotempo?

—Sim,elevemsehospedandoaqui...deixe-mever...pelomenoshácincoouseisanos,creio.

—Asenhoratambémjáestáaquihábastantetempo,não?—interveioderepenteoInspetor-ChefeDavy.

— Estou aqui... deixe-me ver... há quatorze anos, — respondeu MissGorringe.

— É um bonito local — repetiu Davy. — E o Cônego Pennyfathercostumavahospedar-seaquiquandovinhaaLondres,nãoé?

—Sim,semprenosprocura.Escreveuantes,mandandoreservarumquarto.Porescritoeleémuitomenosvagodoquenavidareal.Reservouoquartododia17aodia21.Duranteesseperíodoesperavaestarausenteumaouduasnoites,eexplicouquequeriaficarcomoquartoenquantoestivessefora.Freqüentementefazisso.

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—Quando a senhora começou a se preocupar com a ausência dele?—perguntouCampbell.

—Bem,naverdadeeunãomepreocupei.Masasituaçãoeraembaraçosa.Oquartoestavareservadoparaoutrohóspedeapartirdodia23equandomedeiconta...aprincípionãonotei...dequeelenãotinhavoltadodeLugano...

—Lucerna,segundoasminhasnotas...—interrompeu

Campbell

— Sim, sim, creio queera Lucerna.Algum congresso arqueológico. Dequalquerforma,quandomedeicontadequeelenãovoltara,edequeabagagemdele ainda estava esperando no quarto, vi que era uma atrapalhação.O senhorcompreende, estamos com a casa cheia por esta época do ano e tínhamos umclienteparaoquarto.Mrs.Daunders,residenteemLymeRegis.Elasempreficacomessequarto.Foientãoqueagovernantadeletelefonou.Estavapreocupada.

—SegundoainformaçãodoArcediagoSimmons,onomedagovernantaéMrs.McCrae.Asenhoraaconhece?

—Não,pessoalmentenão,masjáfaleicomelapelotelefoneumaouduasvezes. Parece umamulher de toda confiança e trabalha hámuitos anos para oCônegoPennyfather.Naturalmenteestápreocupada.CreioqueelaeoArcediagoSimmonsjáfalaramcomamigoseparentes,masninguémsabeporondeandaoCônego.EumavezqueoCônegoPennyfatherestavaesperandoachegadadoArcediago,quevinhapassarunsdiasemsuacasa,éesquisitíssimorealmentequenãotenhavoltado.

—OCônegoéhabitualmenteassimdistraído?—indagouPapai.

Miss Gorringe não respondeu. Aquele homenzarrão, presumivelmente osargentoacompanhante,parecia-lheumpoucosaliente.

—Eagorasei—continuouMissGorringeemvozaborrecida—eagorasei,peloArcediagoSimmons,queoCônegonãocompareceuàConferênciadeLucerna.

—Elemandouavisarquenãoiria?

—Achoquenão...'nãodaqui.Nãopassoutelegramanemenviouqualqueroutroaviso.Aliás,nadaseiarespeitodessaConferênciadeLucerna.Oqueme

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preocupanessaquestão é a parte que se refere a nós.Saiunosvespertinos... #notícia de que ele desapareceu. Não disseram que estava hospedadoaqui, eespero que não o digam.Nãoqueremos a Imprensa no hotel, nossos hóspedesnão gostariam disso. Ficaríamos gratíssimos ao senhor, Inspetor, se pudessemanter os jornalistas longe de nós. Afinal, não foi daqui Que o Cônegodesapareceu.

—Abagagemdeleaindaestáaqui?

— Sim. No depósito de bagagens. E se ele não foi para Lucerna, ossenhoresjáencararamahipótesedeumatropelamento,oucoisaparecida?

—Nãolheaconteceunadadisso.

—Defato,parecemuito,muitocurioso—disse"MissGorringe,comumlevetomdeinteressenavoz,emsubstituiçãoaoaborrecimento.—Agenteficapensandoparaondeteriaidoeleeporquê?

Papaiencarou-a,compreensivo.

—Éjusto—disseele.—Asenhorasóestápensandonocasodopontodevistadohotel.Muitonatural.

— Pelo que sei— disse o Inspetor Campbell consultando novamente assuasnotas—oCônegoPennyfathersaiudaquiporvoltadasseisemeiadatardede quinta-feira, 19. Levava consigo uma pequena valise, e partiu num táxi,pedindoaoporteiroquedesseaomotoristaoendereçodoclubeAthenaeum.

MissGorringebalançouacabeça,concordando.

—Sim,jantounoAthenaeum.OArcediagoSimmonsmecontouquefoiláqueovirampelaúltimavez.

HaviacertafirmezanavozdeMissGorringequandoelatransferiudoHotelBertram's para o clubeAthenaeum a responsabilidade de ver o Cônego pelaúltimavez.

—Nadamelhor que obter os fatos corretamente—dissePapai, comvozcalmaecavernosa.—Ecáestãoosfatos,corretamenteexpostos:oCônegosaiudaquicomasuasacolaazuldaB.O.A.C.,oucoisaparecida,—eraumasacolaazuldaB.O.A.C.,nãoera?Saiuenãovoltou,epronto.

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—Comoos senhoresvêem,nãoosposso ajudar—disseMissGorringe,mostrando-sedispostaalevantar-seevoltaraotrabalho.

—Asenhoraparecequenãonospodeauxiliar—falouPapai—mastalvezalgumaoutrapessoapossa—acrescentou.

—Outrapessoa?

—Sim,outrapessoa,—dissePapai.—Umdosempregados,talvez.

—Nãocreioquealguémsaibadealgumacoisa.Sesoubessem,teriamvindomefalar.

—Talvezviessem.Talveznão.Oqueeuquerodizeréqueteriamcontadoàsenhora se soubessem indiscutivelmente de qualquer coisa. Mas eu estavapensandomaisemalgumacoisaqueoCônegopoderiaterdito.

—Quetipodecoisa?—indagouMissGorringe,perplexa.

—Oh, uma palavra casual, que nos desse uma pista. Por exemplo: "estanoitevouvisitarumvelhoamigo,aquemnãovejodesdequenosencontramosnoArizona".Umacoisaassim.Ou:"Napróximasemanapretendo iràcasademinhasobrinhaparaacrismadafilhadela".Quandosetratadegentedistraída,pistas como estas são de grande ajuda. Indicam emque é que a pessoa estavapensando.ÉpossívelquedepoisdojantarnoAthenaeum,ele tenhatomadoumtáxiepensado:"Eagora,paraondeéqueeuvou?"edigamos,comahistóriadacrismanacabeça,teridoparaacasadasobrinha.

—Estoucompreendendooqueosenhorquerdizer—falouMissGorringecomardedúvida.—Nãomepareceprovável.

— Oh, a gente nunca sabe quando tem sorte nesses casos, — foi ocomentáriobemhumoradodePapai.—HátambémosvárioshóspedesdohotelProvavelmenteoCônegoPennyfatherconheciaalguns,jáqueeraclienteassíduo.

—Ah,sim—concordouMissGorringe.—Vejamos...Jáoviconversandocom...sim,comLadySelinaHazy.EtambémcomoBispodeNorwich.Creioque sãovelhos amigos, foramcolegas emOxford.EMrs. Jamesone as filhas.Vêmdamesmaregião.Éverdade,umaporçãodegente,

— Está vendo?— insistiu Papai— o Cônego pode ter conversado comalgumadessaspessoas.Podeterfeitoreferênciaaqualquerpequenonadaquenos

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forneçaumapista.Haveráaquialguém,nomomento,queoCônegoconhecessebem?

MissGorringefranziuocenho,pensando:

—Bem,creioqueoGeneralRadleyaindaestáaqui.Etemostambémumasenhora idosa que veio do campo... e que se hospedava aqui quandomenina,segundomecontou.Nomomentonãorecordoonomedela.maspossodescobri-loPara os senhores.Ah, sim,MissMarple, esse é o nomedela.Achoque elaconheceoCônegoPennyfather.

—Bem,poderemoscomeçarporessesdois.Edevehaverumacamareira,suponho.

— Claro — disse Miss Gorringe. — Mas ela já foi interrogada peloSargentoWadell.

—Eusei.Masnão talvezsobesteprisma.Eogarçomqueserviaamesadele?Ouomaître?

—Ah,sim,Henry,naturalmente—lembrou-seMissGorringe.

—QueméHenry?—perguntouPapai.

MissGorringepareciaquaseofendida.Paraela,eraimpossívelquealguémnãoconhecesseHenry.

—Henryestáaquihátantotempoquenemseidizer

—explicou.—Quandoosenhorentrou,devetê-lovistoaservirochá.

—Trata-seentãodeumapersonalidade—disseDavy.

—Lembro-mequeovi.

— Não sei o que seria de nós sem Henry,— disseMiss Gorringe comemoção. — Ele é realmente maravilhoso. Como que dá o tom à casa,compreende?

—Talvezelemequisesseservirumchá,—falouoInspetor-ChefeDavy.—Jáviquetêmmuffins.Gostariadecomerdenovoumbommuffin.

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—Certamente— respondeuMissGorringe com certa frieza.—Queremque lhesmandeservirochána saladeentrada?—acrescentouela,virando-separaoInspetorCampbell.

—Seria...—começouadizeroInspetor,quandoderepenteabriu-seaportaeapareceuMr.Humfries,nasuamaneiraolímpica.

Pareceu levemente surpreso, depois olhou indagador paraMiss Gorringe.MissGorringeexplicou:

—EstesdoiscavalheirossãodaScotlandYard,Mr.Humfries.

Campbellapresentou-se:

—Detetive-InspetorCampbell

— Oh, sim, sim, é claro— disse Mr. Humfries.— O caso do CônegoPennyfather, não? Caso dos mais extraordinários. Espero que não tenhaacontecidonadaaopobrevelho.

— O mesmo digo eu — a juntou Miss Gorringe. — Um senhor tãobondoso.

— É um dos da velha guarda, — acrescentou aprobativamente Mr.Humfries.

— Parece que os senhores recebem aqui um bom contingente da velhaguarda—comentouoInspetor-ChefeDavy.

— Sim, creio que sim — disse Mr. Humfries. — Sob muitos aspectos,somossobreviventesdeoutrostempos.

—Temososnossoshóspedescertos—disseMissGorringecomorgulho-—As mesmas pessoas, que vêm para cá ano após ano. Recebemos muitosamericanos...deBostoneWashington.Gentefina,educada.

—Apreciamnossaatmosfera inglesa,—explicouMr.Humfries,exibindonumsorrisoosseusdentesalvíssimos.

Papaiobservava-o,pensativo.OInspetorCampbellfalou:

— O senhor tem certeza de que não chegou aqui nenhum recado do

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Cônego?Umrecadorecebidoporalguémqueseesquecessedeanotar,oupassaradiante?

—Os recados telefônicos são semprecuidadosamente anotados,— disseMissGorringecomgelonavoz.—Nãopossonemconceberapossibilidadedeum recado não ser transmitido a mim, ou à pessoa que esteja de serviço. —EncaroufirmeoInspetor.

Campbell ficou um instante desconcertado. E Mr. Humfries acrescentoutambémcomumtoquedegelonavoz:

—Osenhorsabequejárespondemosaessasperguntasantes.Fornecemosaoseusargento...—nãorecordoonomedele,agora... todasasinformaçõesdequedispúnhamos.

Papaimexeu-seumpoucoedissenumtommeiofamiliar:

— Bem, o senhor compreende, as coisas ficaram um pouco mais sérias.Parecequenãosetrataapenasdeumcasodedistração.Éporissoquemepareceútil a gente trocar algumas palavras com essas duas pessoas que a senhoramencionou:oGeneralRadleyeMissMarple.

—Querqueeu...arranjeumaentrevistacomeles?—Mr.Humfriespareciamuitomalsatisfeito.—OGeneralRadleyémuitosurdo.

—Nãocreioque sejanecessáriomarcarumaentrevista formal—disseoInspetor-ChefeDavy.—Nãoqueremosatormentarninguém.Podedeixar tudoconosco. Basta que nos aponte as duas pessoas indicadas. Há talvez apossibilidadede teroCônegoPennyfathermencionadoalgumplano,?ualgumapessoa que iria encontrar em Lucerna, ou que!na com ele até Lucerna. Pelomenos,valeapenatentar,

Mr.Humfriesestavaagoramaisaliviado.

——Eemquemaispoderemosservi-lo?—perguntou.

Tenhocertezadequeosenhorsabequeonossodesejoéajudá-loemtudo...pedimosapenasquecompreendaonossoreceiodepublicidadepelaimprensa.

—Claro—respondeuoInspetorCampbell.

—Eeuquerodarumapalavrinhacomacamareira,—dissePapai.

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— Pois não, quando quiser. Mas duvido muito que ela lhe possa dizeralgumacoisa.

— Provavelmente não. Mas talvez haja algum pequeno detalhe, algumaobservaçãodoCônegoarespeitodeumacarta,oudeumcompromisso,Nuncasesabe.

Mr.Humfriesolhouorelógio.

—Elaentranoserviçoàsseis—disseele.—Segundoandar.Eenquantoesperam,queremtomarumchá?

—Comprazer—disseprontamentePapai.Saíramjuntosdoescritório.

MissGorringedisse:—OGeneralRadleydeveestarnasaladefumar.Aprimeirasala,ao longodessecorredor,àesquerda.Deveestardianteda lareira,comoTimes.Eécapaz—acrescentoudiscretamente—queestejacochilando.Nãoquereráqueeu...

—Não,não,eumearranjo—dissePapai.—Eaoutra?Asenhoraidosa?

—Estásentadaali,juntoàlareira-r-mostrouMissGorringe.

—Aquela do cabelo fofo, que está fazendo tricô? — perguntou Papai,dandoumaespiada.—Poderiaestarnumpalco.Éaprópriaencarnaçãodatia-avódetodosnós.

—Astias-avósdehojeemdianãoseparecemcomela.—observouMissGorringe.—Nemasavós,nemasbisavós.AindaontemesteveaquiaMarquesadeBarlowe,quejáébisavó.Juroquenãoareconheci,quandoentrou.Voltavade Paris, o rosto muito maquiado em branco e rosa, o cabelo platinado, umafigurainteiramenteartificial,suponho...masestavamaravilhosa.

—Ah—comentouPapai,—eupormimprefiroasdamodaantiga,Bem,muito obrigado,minha senhora.—Virou-se para Campbell.—O senhor nãoquerdeixarocasocomigo?Seiquetemumcompromissoimportante.

Campbell pegou a deixa:—Éverdade,Não creio que se consiga grandecoisa,masvaleapenatentar.

Mr.Humfriesdesapareceunointeriordoseugabineteparticular,dizendo:

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—MissGorringe...ummomento,porfavor.

MissGorringeseguiu-oefechouaportaatrásdesi.

Humfries,caminhavadumladoparaoutro.Perguntourispidamente:

— Para que é que eles querem falar com Rose? Wadell já fez todas asperguntasnecessárias.

—Acho que são só as perguntas de rotina— disse Miss Gorringe, emdúvida.

—Émelhorvocêfalarcomelaantes.

MissGorringepareciaumtantoassustada.

—MasseguramenteoInspetorCampbell...

—NãoestoupreocupadocomCampbell.Mascomooutro.Sabequeméele?

—Achoquenãodissecomosechamava.Umsargentoqualquer,pensoeu.Temjeitodecaipira.

—Caipiraumaova—disseMr.Humfries,abandonandosuaelegância.—EsseaíéoInspetor-ChefeDavy,umaraposavelhaedasmaisespertas.ÉmuitoconceituadonaScotlandYard.Sóqueriasaberoquefoiqueeleveiofazeraqui,farejandoesefazendodeboapraça.Nãoestougostandodisso,nemumpouco.

—Nãovápensar...

—Nãoseioquepensar.Masestoulhedizendoquenãogostonadadisso.Elepediuparaveralguém,alémdeRose?

—AchoquevaifalarcomHenry.

Mr.Humfriesriu,MissGorringetambém.

—ComHenrynãoprecisamosnospreocupar.

—Éverdade.

— E os hóspedes que conheciam o Cônego Pennyfather? Mr. Humfries

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tornouarir.

—Que sedivirta comovelhoRadley.Teráquebotar a casa abaixo, aosgritos,enãoconseguiránada.QuetirebomproveitodeRadleyedeMissMarple,aquelagatinhavelha.Massejacomofor,nãogostodevê-loenfiandoonarizporaqui...

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—SABE, NÃOGOSTOmuito desse tal deHumfries,— disse pensativo oInspetor-ChefeDavy.

—Quefoiqueosenhorviunele?—indagouCampbell,

—Bem...—Papaipareciapedirdesculpas—vocêsabe,éaimpressãoqueagentetem.Sujeitomeloso.Queriasaberseeleéodonoousóogerente.

—Possoperguntar.—Campbelldeuumpassoemdireçãoàrecepção.

—Não,nãopergunte a ele.Descubra... discretamente.Campbellolhou-o,curioso.

—Emqueéqueosenhorestápensando?

—Nadadeespecial.Sóqueeugostariade termuito_mais informaçõesarespeitodistoaqui.Gostariadesaberquemestáportrásdessenegócio,qualéasituaçãofinanceiradafirma.Essacoisatoda.

Campbellabanouacabeça.

— Pois se me perguntassem se existe em Londres algum lugarabsolutamenteacimadequalquersuspeita...

—Eu sei, eu sei— retrucou Papai.—É como é útil ter uma reputaçãodessas!

Campbellabanouacabeçaesaiu.Papaiseguiupelocorredoratéàsaladefumar.OGeneralRadleyestavaacordando.OTimeslheescorregoudosjoelhose se desintegrou um pouco. Papai apanhou o jornal, arrumou as folhasdesarranjadaseoentregouaovelho.

—Muitoobrigado.Muitabondadesua—disseogeneralnumavozrouca.

—GeneralRadley?

—Sim.

—Queiradesculpar,—dissePapaielevandoavoz—masqueriafalarcom

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osenhorarespeitodoCônegoPennyfather.

—Eh...como?—OGeneralchegouamãoàorelha.

—CônegoPennyfather,—berrouPapai.

—Meupai?Morreuhámuitosanos.

—OCônegoPennyfather.

—Ah!Quehouvecomele?Vi-ooutrodia;estavahospedadoaqui.

—Eletinhaquemedarumendereço;dissequeodeixariacomosenhor.

Issojáeramaisdifícildefazercompreender,masafinalDavyoconseguiu:

—Nãomedeuendereçonenhum.Deveterconfundidocomoutrapessoa.Éumvelhotemaluco.Semprefoi.Erudito,sabe?Genteassimésempredistraída.

Papaiperseveroumaisumpouco,maslogoentendeuqueaconversacomoGeneral Radley era praticamente impossível e, com toda certeza, inteiramenteimprodutiva.Foipara a saíadeentradae sentou-seaumamesaadjacente àdeMissJaneMarple.

—Chá,senhor?

Papai levantou os olhos. Impressionou-o, como a todo o mundo, apersonalidade de Henry.Apesar da majestosa corpulência, parecia, por assimdizer,umavastaencarnaçãodeAriel,capazdematerializar-seesumiràvontade.Papaipediuchá:

—Erammuffinsquevivocêservir?—perguntou.

Henrysorriubeatífico:

—Eram,simsenhor.Sãoexcelentesosnossosmuffins,semepermitedizê-lo.Todososapreciam.Querquemandevirmuffins?ChádaíndiaoudaChina?

—Daíndia—respondeuPapai.—OudoCeilão,casovocêstenham.

—Claroquetemos.

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Henry fez um leve gesto com um dedo e o pálido jovem que era o seuauxiliar partiu, em busca de chá do Ceilão emuffins. Henry deslocou-segraciosamenteparaoutrolugar.

"Você é Alguém, garanto", pensou Papai. "Gostaria de saber onde é queelesodescobriram,equantolhepagam.Umanota,aposto,evocêmerece'.Pôs-seaolharHenryqueseinclinavademodopaternalparaumasenhoraidosa.QuepensariaHenry—seéquepensavaalgumacoisa—arespeitodele,Papai?PapaiachaVa que não destoava do ambiente do Hotel Bertram\s: poderia ser umagricultorrico,oumesmoumpardoreinoqueseparecessecomumbookmaker.Conheciadoisparesdoreinoqueeramassimmesmo.Emsuma,pensou,talvezotivesseconvencido,mastambémachoupossívelnãoterenganadoHenry."Sim,vocêéAlguém,vocêé",tornouapensarPapai.

Chegaramocháeosmuffins.Papaideuumaboadentadaeamanteigalheescorreupeloqueixo.Limpou-acomumlençoenorme.Tomouduaschávenasdechá,combastanteaçúcar.Depoisinclinou-separaafrenteefaloucomasenhorasentadanacadeiraaolado:

—Desculpe,masasenhoranãoéMissJaneMarple?

MissMarpletransferiuoolhardotricôparaoInspetor-ChefeDavy.

—Sim,souMissMarple.

—Esperoquenãoseaborreçaporeulhefalar.Queroquesaibaquesouumpolicial.

—Realmente?Esperoquenãotenhaacontecidonadadesérioaqui.

Papaiapressou-seemtranqüilizá-ladomodomaispaternal.

—Nãoseassuste,MissMarple,nãoénadadoqueasenhoraestápensando.Nadadefurtooucoisaparecida.Apenasumpequenoproblemacomumcônegodistraído,sóisso.Creioqueéumamigoseu.OCônegoPennyfather.

— Oh, o Cônego Pennyfather. Ele estava aqui ainda outro dia. Sim,conheço-omais oumenos, hámuitos anos. Como o senhor diz, é um homemmuitodistraído.—Acrescentou,comalguminteresse:

—Quefoiqueelefezagora?

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—Bem,pode-sedizerquedestavezelenãosabeondeanda.

—SantoDeus!—exclamouMissMarple—Ondeeledeveriaestar?

—Nacidadedele,nocabidodacatedral,—respondeuPapai.—Masnãoestálá.

—Eleme contou—disseMissMarple—que ia a uma conferência emLucerna. Parece que a reunião deveria tratar dos Manuscritos do Mar Morto,creio.Osenhorsabequeeleéumgrandeconhecedordehebraicoearamaico.

—Sei,sim—dissePapai.—Asenhoratemrazão.EraparaLucernaqueele...bem,éparaláqueseesperavaqueelefosse.

—Querdizerentãoqueelenãoapareceulá?

—Não,nãoapareceu.

—Oh, então—comentouMissMarple,— imagino que se enganou nasdatas.

—Provavelmente,muitoprovavelmente.

—Infelizmente—continuouMissMarple—nãofoiaprimeiravezquetalcoisa lhe aconteceu.Umdia fui tomar chá com ele emChadminster. Pois nãoestavaemcasa.Agovernantamecontouqueeleeraextremamentedistraído.

—Eele,quandoaencontrouaqui,nãolhedissenadaquenospudessedarumapista?—perguntouPapai,falandodemaneirafluenteeconfidencial.—Asenhorasabeoquequerodizer,algumvelhoamigoqueeleesperavaencontrar,algumoutroprograma,alémdaConferênciadeLucerna?

—Não.ApenasmencionouaConferênciadeLucerna.Creioquemedissequeserealizarianodia19.Correto?

—EssaeraadatadaConferênciadeLucerna,exatamente.

—Nãopresteimuitaatençãoàdata.Querodizer...—comoamaioriadasdamasidosas,MissMarplenessepontoficoumeioatrapalhada—pensoqueelefalouem19,edeveterdito19,maspodeterfaladoem19querendosereferiraodia20.Istoé,elepodeterpensadoqueo20erao19,ouqueo19erao20.

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—Bem...—dissePapailigeiramenteconfuso.

— Estou me explicando mal— declarouMissMarple—mas o que euquerodizeréquepessoascomooCônegoPennyfather,quandofalamquevãoatalpartenaquinta-feira.agentenãoseadmiraaoverificarqueelasnãoqueriamdizerquinta-feira,masrealmentequartaousexta-feira.Geralmentedescobremoenganoemtempo,masàsvezesnão.Naquelemomentoparece-mequedeveteracontecidoumacoisaassim.

Papaiestavalevementeintrigado.

— A senhora fala, Miss Marple, como se já soubesse que o CônegoPennyfathernãoforaaLucerna.

— Sei que ele não estava em Lucerna naquinta-feira,— explicouMissMarple.—Elepassouodiatodoaquiouquasetodo.Foiporisso,éclaro,queeupenseiqueelemetivessefaladoemquinta-feiraquerendodizersexta-feira.Eelesaiudaquinaquinta-feiraàtarde,levandoumasacolademãodaB.E.A.

—Issomesmo.

—Calculeiqueelesedirigiaaoaeroporto;epor issomesmofiqueimuitosurpresaquandoovidevolta.

—Perdão,masquequerdizeresse"quandoovidevolta?"

—Bem,queelevoltaraparacá,éoquequerodizer.

—Vamosesclarecerissodireitinho—dissePapai,procurandofalaremvozagradável, propícia às reminiscências, e não como se o caso fosse realmenteimportante.—Asenhoraviuovelhoidio...istoé,asenhoraviuoCônegosairdaquicomosefosseparaoaeroporto,comavalise,ànoitinha.Estácerto?

—Sim.Porvoltadeseisemeia,talvez,ouumquartoparasete.

—Masdizqueelevoltou.

—Talveztenhaperdidooavião.Éaexplicaçãoqueencontro.

—Quandofoiqueelevoltou?

—Bem,nãoseidizer.Nãoovivoltar.

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—Oh!— exclamou Papai, desapontado.—Pensei ter ouvido a senhoradizerqueotinhavisto.

—Oh,euovimaistarde,—explicouMissMarple.—Oqueeuquisdizeréquenãoovientrarnohotel.

—Asenhoraoviumaistarde?Quando?MissMarplepensou.

— Deixe-me ver. Eram cerca das três da madrugada. Eu não conseguiadormir direito. Uma coisa qualquer me acordou. Algum barulho. Há tantosbarulhosesquisitos,emLondres.Olheiparaomeureloginho,eramtrêsedez.Porummotivo qualquer... não sei bempor que... senti-me inquieta. Passos, talvez,diantedaminhaporta,Quemmoranocampo,seescutapassosnomeiodanoite,ficanervoso.De formaque abri aminhaporta eolhei para fora.VioCônegoPennyfathersaindodoquartodele,queécontíguoaomeu,edescendoaescada,vestidocomosobretudo.

— Quer dizer que ele saiu do quarto e desceu a escada, vestido com osobretudo,àstrêshorasdamanhã?

—Sim,—disseMissMarple.Eacrescentou:—Nahoraeuacheiacoisaestranha.

Papaiencarou-aporunsmomentos.

—MissMarple,porqueasenhoranãocontouissoantesaninguém?

—Ninguémmeperguntou—disseMissMarplecomsimplicidade.

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PAPAISOLTOUumsuspirofundo.

— É, sim — disse ele — suponho que ninguém lhe perguntaria.Simplesmenteisso.

Evoltouaosilêncio.

— O senhor acha que aconteceu alguma coisa ao Cônego, não? —perguntouMissMarple.

—Já se passouuma semana—explicouDavy.—Elenão tevenenhumataque na rua. Não está em nenhum hospital em conseqüência de acidente. Eentão ondeestá?Os jornais noticiaramodesaparecimentodoCônego,mas atéagoranãoapareceuninguémcomnenhumainformação.

—Talveznemtodomundotenhalidoanotíciadodesaparecimento.Eunãoli.

—Pareceaté...pareceaté...—Papaiseguiaasualinhadepensamento—queele tencionavadesaparecer, saindodaquiassim,emplenanoite.Asenhoratem absoluta certeza de que era ele?— perguntou de repente.—Não foi umsonho?

—Tenhoabsolutacerteza,—disseMissMarplecomsegurança.

Papailevantou-sepesadamente.

—Émelhoreuirentrevistaracamareira—disseele.DavyencontrouRoseSheldon em atividade, e percorreu com um olhar aprobativo a bela figura damoça.

—Lamentoincomodá-la—disseele.—Seiquejáconversoucomonossosargento.Éarespeitodocavalheirodesaparecido,oCônegoPennyfather.

—Ah,sim,senhor,umcavalheiromuitodistinto.Sempresehospedaaqui.

—Muitodistraído—lembrouPapai.

Rose Sheldon permitiu que um sorriso discreto aparecesse na respeitosa

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máscaradorosto.

—Deixe-mever.—Papaifingiuconsultarumasnotas.—AúltimavezquevocêviuoCônegoPennyfatherfoi...

—Namanhãdequinta-feira.Quinta-feira19.Elemedissequenãovoltarianaquela noite nem possivelmente na noite seguinte. Acho que ia viajar paraGenebra,ouqualqueroutro lugardaSuíça.Deu-meduascamisasparamandarlavareeuprometiqueestariamprontasnooutrodiademanhã.

—Eestafoiaúltimavezquevocêoviu.

—Foi,simsenhor.Nãoestoudeserviçonapartedatarde.Voltosóàsseishoras.Nesseínterimelejádeviateridoembora,oupelomenosdesceraparaassalasdoprimeiroandar.Nãoestavanoquarto.Edeixouláduasmalas.

—Está certo—dissePapai.O conteúdodasmalas fora examinado,masnão forneceranenhumapistaútil.Elecontinuou:—Vocêochamounamanhãseguinte?

—Seeuchamei?Nãosenhor,eleestavafora.

—Comoéquevocêfaziacomumente?Levavaumchásimples?Opequenoalmoço?

—Chásimples.Eletomavaoprimeiroalmoçonosalão,láembaixo.

— Quer dizer que você não entrou no quarto dele durante todo o diaseguinte?

—Entrei,sim.—Rosepareceuchocada.—Entreinoquartodele,comodecostume.Apanhei as camisas e, é claro, espaneioquarto.Espanamos todososquartosdiariamente.

—Eacama?Algumsinaldequehouvessedormidonela?

Roseencarou-o.—Acama?Nãosenhor.

—Nãoestavadesarrumada...oupelomenosamarrotada?

Roseabanouacabeça.

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—Eobanheiro?

—Encontreiumatoalhaderostoúmida,queforausada,creioeu,natardeanterior.Provavelmenteantesdesairelelavouasmãos.

—E não havia nada que indicasse que oCônego Pennyfather voltara aoquarto...talvezmuitotarde...depoisdemeia-noite?

A moça tornou a olhar para Davy, espantada. Papai abriu a boca, masfechou-anovamente.OuelanãosabianadaarespeitodavoltadoCônego,oueraumaatrizexímia.

— E o que me diz da roupa dele... dos ternos? Estavam arrumados nasmalas?

—Nãopenhor,estavampenduradosnoguarda-roupa.Eletinhaficadocomoquarto,comoosenhorsabe,

—Quemfoiquefezasmalasdele?

—MissGorringedeuordem.Quandofoiprecisodesocuparoquartoparaamulherqueotinhareservado.

Um relato honesto e coerente. Mas se a velha senhora não mentira aodeclarar que vira o Cônego Pennyfather deixando o quarto às 3 horas damadrugada de sexta-feira, então ele voltara àquele quarto em alguma ocasião.Ninguémovira entrar nohotelSerá que, por algummotivo, oCônego evitaradeliberadamente que o vissem?Não deixara sinais de sua presença no quarto.Nem sequer se deitara na cama. Será que Miss Marple sonhara com aquelahistóriatoda?Naidadedela,erapossível.Davyteveumaideia:

—Easacoladacompanhiaaéreaqueelecarregava?

—Como?Nãoestouentendendo.

—Umabolsa,azul-escuro,daB.E.A.oudaB.O.A.C....vocênãoviu?

— Oh, a bolsa, vi, sim senhor. Mas naturalmente ele a levou consigoquandoviajou.

—Maselenãoviajou.AcabounãoindoàSuíça.Portanto,deveterdeixadoasacolaaqui.Ouentãovoltouedeixou-aaquicomorestodabagagem.

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—Sim...acho...nãotenhobemcerteza...creioquedeixou.

Inesperadamente, o pensamento aflorou ao cérebro de Papai:Eles não lhederamnenhumainstruçãosobreisso,nãofoi?

Rose Sheldon mostrara-se calma e competente até então. Mas a últimaperguntaaabalara.Ignoravaarespostaquedeveriadar,Maseladeveriasaber.

OCônegolevaraasacolaparaoaeroporto,evoltaradelá.Seestiveraoutravez no Bertram’s devia trazer consigo a sacola.Mas Miss Marple não amencionaraaocontarqueviraoCônegosairdoquartoedesceraescada.

Presumivelmenteasacolaforalargadanoquarto,masnãoforaposta juntocomasmalasnodepósitodebagagem.Porquê?SeriaporquesepretendiaqueoCônegoforaàSuíça?

PapaiagradeceujovialmenteaRoseedesceuaescada.

CônegoPennyfather!Umenigma,oCônegoPennyfather.FalouumbocadoarespeitodaviagemàSuíça,embaralhoutudodemodoanãoiràSuíça,voltouaohotelemtalsegredoqueninguémoviuetornouasairemplenamadrugada.(Iaparaonde?Fazeroquê?)

Poderiaasimplesdistraçãoexplicartudoisso?

Da escada Papai lançou um olhar despeitado aos ocupantes do saguão, eperguntou a simesmo sealguém ali era o que todos pareciam ser.Elemesmochegara àquele estágio!Gente idosa, gente demeia-idade, (não havia ninguémjovem),, gente simpática à moda antiga, quase todos de posse, todosrespeitabilíssimos.Funcionários,advogados,eclesiásticos;juntoàporta,umcasalamericano; perto da lareira, uma família francesa. Ninguém que chamasse aatenção,ninguémdeslocadoali;amaioriadegustando,feliz,umchádascinco

àinglesa.Poderiahaveralgodeerradonumlugarondeseserviaochádascincoàmodaantiga?

O francês fez para a mulher um comentário que se enquadrava bem noambiente:

—Lefive-o'-clock!—diziaele.—C’estbienanglaisça,n’estcepas?—Eolhouemvoltacomaprovação.

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“Lefive-o'-clock",pensouDavyenquantoatravessavaaportadevaivémechegavanarua."Aquelecamaradanãosabeque"lefive-o'-clockestátãoextintoquantoaaveDodô!"

Do lado de fora, várias malas e valises americanas estavam sendotransportadas para um táxi. Parecia que Mr. e Mrs. Elmer Cabot estavam acaminhodoHotelVendôme,emParis.

Ao lado de Mr. Cabot, no meio-fio, Mrs. Cabot dava suas opiniões aomarido:

—Os Pendleburys tinham razão quanto a este local, Elmer. É de fato avelhaInglaterra.LindamenteEduardiano!Eutinhaaimpressãodequeaqualquermomento Eduardo VI poderia entrar na sala e sentar-se para tomar o chá dascinco.Estouresolvidaavoltarnoanoquevem...resolvidamesmo.

—Sevocêtiverummilhãodedólaresparagastar—respondeusecamenteomarido.

—Ora,Elmer,nãofoitãocaroassim.

Arrumadaábagagem,oporteiroaltoajudouosclientesasubiremno táxi,murmurando"Muitoobrigado"quandoMr.Cabot fezoesperadogesto.O táxipartiu.OporteirotransferiusuasatençõesparaDavy.

—Táxi?

Papaiexaminouohomem.

Mais de um metro e oitenta de altura. Bem-apessoado. Um tantodesmazelado. Ex-combatente. Um monte de medalhas — provavelmentegenuínas.Esperto?Bebedemais.Emvozalta,Papaiperguntou:

—Ex-combatente?

—Simsenhor.GuardaIrlandesa.

—Medalhamilitar,estouvendo.Ondeaganhou?

—Birmânia.

—Comosechama?

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—MichaelGorman.Sargento.

—Bomempregoaqui?

—Olugarésossegado.

—NãoprefeririaoHilton?

—Não.Gostodaqui.Aclientelaégentefina,commuitosturfistasquevêmassistiràscorridasdeAscoteNewbury.Devezemquandomedãobonspalpites.

—Ah,entãoéirlandêsejogador,hem?

—Ora!Queseriaavidasemumjoguinho?

—Pacataechata—disseoInspetor-ChefeDavy.—Igualàminha.

—Verdade?

—Écapazdeadivinharaminhaprofissão?Oirlandêssorriu:

—Nãomeleveamal,maseudiriaqueéumtira.

—Acertouemcheio.Lembra-sedoCônegoPennyfather?

—CônegoPennyfather,nãorecordobemonome...

—Umpastoridoso.MichaelGormanriu:

—Bem,pastoréoquemaisdáaídentro.

—Masessedesapareceudaqui.

—Ah,aquele—Oporteiropareceulevementedesconfiado.

—Vocêoconheceu?

—Nãomelembrariadelesetantagentenãomefizesseperguntassobreele.TudooqueeuseiéqueoembarqueinumtáxiequeelefoiparaaSuíça,masouvidizerquenãochegoulá.Parecequeseperdeu.

—Nãooviumaistarde,naqueledia?

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—Maistarde...Nãosenhor.

—Aquehorasdeixaoserviço?

—Onzeemeia.

OInspetor-ChefeDavyfezumacenodecabeça,recusouumtáxiepôs-seacaminholentamente,aolongodePondStreet.Umcarropassouroncandoaoseulado,renteaomeio-fio,eparoudefronteaoHotelBertram's,comumrangerdefreios.OInspetor-ChefeDavyvirouacabeçacalmamenteereparounonúmeroda placa: FAN2266.Aquele número lhe lembrava qualquer coisa, embora nomomentonãolhefossepossíveldizeroquê.

Vagarosamente,voltouparaopontodeondeviera.Malalcançaraaentradadohotel,quandoomotorista,queatravessaraaportaummomentoantes,tornouasair.Combinavamuitobemcomocarro,queeraummodelodecorrida,branco,delinhasalongadasebrilhantes.Orapaztinhaomesmoarinquietodeumgalgo,rostobonitoe,nocorpo,nemumapolegadadecarnesupérflua.

Oporteirosegurouaportaabertadocarro,omoçosaltouparadentro,atirouumamoedaaoporteiroearrancoucomumaexplosãodopossantemotor.

—Sabequeméele?—perguntouMichaelGormanaPapai.

—Umsujeitoperigoso,nacerta.

— Ladislaus Malinowski. Ganhou o Grand Prix dois anos atrás... foicampeãomundial.Noanopassadodeuumabatidafeia,masdizemquejáestáemforma.

—NãomedigaqueeleestáhospedadonoBertram's.Nãocombina.

MichaelGormansorriucommalícia.

—Nãosenhor,nãoestáhospedadoaqui,não.Quemestáhospedadaaquiéumaamigadele.—Episcouoolho.

Umserventedohotel,deaventallistrado,apareceucomnovocarregamentodebagagemamericana,deluxo.

PapaiassistiudistraídoàacomodaçãodabagagemnumDaimlerdealuguel,enquantoprocuravarecordar-sedoquesabiaarespeitodeLadislausMalinowski.

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Umsujeitoaloucado—dizia-sequetinhaumaligaçãocomumamulherbastanteconhecida— como se chamava ela?Ainda contemplando uma elegantemala-camarote,iadarmeiavoltaquandomudoudeideiaetornouaentrarnohotel.

Foi à recepção e pediu a Miss Gorringe o registro do.s hóspedes. MissGorringeestavaocupadacomosamericanosquepartiam,eempurrouolivronadireçãodeleporcimadobalcão.Davyfoivirandoaspáginas:LadySelinaHazy,Little Cottage, Merryfield, Hants. Mr.e Mrs. Hennessey King, Elderberries,Essex.SirJohnWoodstock,BeaumontCrescent5,Cheltenham.LadySedgwick,Hurstings House, Northumberland. Mr. e Mrs. Elmer Cabot, Connecticut.General Radley, The Green, 14, Chichester. Mr. e Mrs, Wolmer Pickinton,MarbleHead,Connecticut.LaComtessedeBeauville,LesSapins,St.GermainenLaye.MissJaneMarple,St.MaryMead,MuchBenham.CoronelLuscombe,LittleGreen,Suffolk.Mrs.Carpenter,Hon.ElviraBlake,CônegoPennyfather,The Close, Chadminster.Mrs, Holding,Miss Holding,MissAudrey Holding,The Manor House, Carmanton. Mr. e Mrs. Ryesville, Valley Forge,Pennsylvania.DuquedeBarnstable,DooneCastle,N.Devon...UmaamostradaspessoasquesehospedavamnoHotelBertram's.Formavam,pensou,umaespéciedeordempreestabelecida...

E quando fechava o livro, saltou-lhe aos olhos um nome escrito numapáginaanterior:SirWilliamLudgrove.

OJuizLudgrove,queforareconhecidoporumoficialdejustiça,próximoaobancoassaltado.OJuizLudgrove...oCônegoPennyfather...ambosclientesdoHotelBertram’s...

—Esperoqueosenhor tenhagostadodochá.—EraHenry,depéaseulado.Falavapolidamente,ecomaleveansiedadedoperfeitoanfitrião.

—Omelhorcháque tomeinestesúltimosanos—disseo Inspetor-ChefeDavy.

Lembrou-seentãodequenãopagaraochá.Tratoudefazê-lo,masHenrylevantouamão,súplice:

— Oh, não senhor. Disseram-me que o seu chá era por conta da casa.OrdensdeMr.Humfries.

Henryafastou-se.PapaificousemsabersedeviaounãodarumagorjetaaHenry. Era mortificante pensar que Henry sabia muito melhor do que ele arespostaparaesseproblemasocial!

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Jáiaandandopelaruaquando,derepente,parou.Tiroudobolsoaagendaeescreveu nela um nome e um endereço— não havia tempo a perder. Entrounuma cabina telefônica: ia arriscar-se. Fosse como fosse, estava resolvido aapostartudonumpalpite.

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ERA O GUARDA-ROUPA que estava preocupando o Cônego Pennyfather.Ainda não estava bem desperto, e o guarda-roupa o preocupava. Mas aíadormeceu de novo e esqueceu-se do guarda-roupa. Quando, porém, os seusolhosnovamenteseabriram,láestavaoguarda-roupanolugarerrado,OCônegoestavadeitadosobreo ladoesquerdo,de frenteparaa janela, eoguarda-roupadeveriaestarali, entreeleea janela,encostadoàparededaesquerda.Masnãoestava.Estavaàdireita,eaquiloopreocupava.Preocupavamtantoqueodeixavaexausto.Eletinhaconsciênciadequeacabeçalhedoíamuito,e,alémdomais,aqueleguarda-roupanolugarerrado...Nesseponto,seusolhosmaisumavezsefecharam.

Davezseguinteemqueacordou,haviamuitomaisluznoquarto.Aindanãoamanhecera.Sóhaviaadébilluzdamadrugada."Oh?Senhor",pensouconsigoo Cônego Pennyfather, resolvendo subitamente o problema do guarda-roupa."Queestúpidoqueeusou!Éevidente,nãoestouemcasa!"

Mexeu-secomcuidado.Não,aquelanãoeraasuacama.Estavaemoutracasa. Estava— onde é que estaria? Oh, claro. Fora para Londres, não fora?Estava no Botei Bertram's e... mas não, não estava no Hotel Bertram's. NoBertram's a cama ficava defronte à janela. Portanto essa ideia de Bertram'stambémeraerrada.

—Oh,meuDeus,ondeéqueestou?—indagavaoCônegoPennyfather.

Lembrou-se então que ia para Lucerna. "Claro" admitiu ele "estou emLucerna."Começouapensarnacomunicaçãoqueia ler;masnãopensounissomuito tempo. Pensar na conferência fazia-lhe doer a cabeça; assim novamentetratoudedormir.

Quando outra vez despertou, sua cabeça estava muitíssimo mais clara, etambémhaviamuitomaisluznoquarto.Nãoestavaemcasa,nãoestavanoHotelBertram'sesabiaperfeitamentequenãoestavaemLucerna^-Aquilonãoeraumquartodehotel.Examinoumaisdetidamenteolocal:eraumquartointeiramenteestranho,commuitopoucamobília.Umaespéciedearmário(queeletomarapeloguarda-roupa)eumajanelacomcortinasfloridas,atravésdasquaispassavaaluz.Umacadeira,umamesa,umacômoda.Esó.

— Oh, Senhor — disse o Cônego Pennyfather. — Que coisa estranha!

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Ondeseráqueestou?

Estavapensandoemselevantarafimdeinvestigar;masquandosesentounacama,acabeçarecomeçouadoer,deformaqueeletornouadeitar-se.

—Devo ter adoecido—concluiu oCônego.—Sim, devo ter adoecido,semnenhumadúvida.—Pensouumoudoisminutos,depoisdissedesiparasi:"Aliás,creioqueaindaestoudoente.Gripe,quemsabe?Dizemqueagripechegaàsvezesderepente.Talvez...talveztenhamepegadonojantarlánoAthenaeum.Sim,éisso."Lembrava-sedequejantaranoAthenaeum.

Ouviram-seruídosdemovimentodentrodecasa.Talvezotivessemlevadoparaumacasadesaúde.Masnão,nãolhepareciaqueaquiloalifosseumacasade saúde. Aumentando a luz do dia, via-se que se tratava de um quartinhomodestoemalmobiliado.Continuaramossonsdemovimento.Láembaixo,umavozgritou:"Adeus,meusanjos,Estanoitevaitersalsichaepurê".

OCônegoPennyfatherficouapensarnaquilo.Salsichaepurê.Aspalavrastinhamumaqualidadeagradável.

—Creio—disseconsigo—queestoucomfome.Abriu-seaporta.Umamulher demeia-idade entrou, caminhou até às cortinas, puxou-as um pouco evirou-separaacama.

—Ah,osenhorjáacordou.Equeéqueestásentindo?

—Naverdade—respondeudebilmenteoCônegoPennyfather—nemseibem.

—Ah,achomesmoquenão.Osenhorestevemuitomal,sabe?Levouumapancada feia, não sei com que... pelo menos foi o que o médico disse. Essesmotoristas!Nãoparam,nemdepoisdeatropelarumapessoa!

—Sofriumacidente?—indagouoCônego.—Umacidentedeautomóvel?

— Isso mesmo — respondeu a mulher. — Nós o encontramos noacostamentodaestrada,quandovínhamosparacasa.Aprincípiopensamosquefosseumbêbado.—Riu-seaorecordaracena.—Masaímeumaridoachouqueeramelhordarumaespiada."Talveztenhasidoumacidente",disseele.Nãosesentianenhumcheirodebebida;nemhaviasangue.Masassimmesmo,láestavaosenhor,feitoumdefunto.Entãomeumaridodisse:"Nãopodemosdeixaressehomemestiradoaí"ecarregouosenhorparacá.Entendeu?

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— Ah — disse vagamente o Cônego Pennyfather, aturdido por taisrevelações.—Umbmbomsamaritano!

—Vimosqueosenhoreraumpastor,eomeumaridodisse:"éumhomemrespeitável".Achou que era melhor não chamar a polícia, porque, sendo umeclesiástico, o senhor poderia não gostar... se estivesse bêbado, embora nãocheirasse a bebida. Assim resolvemos chamar o Dr. Stokes para examinar osenhor. Nós ainda o chamamos de Dr. Stokes, embora ele esteja proibido declinicar.Éumhomemmuitobom,amargurado,evidentemente,pelaproibiçãodeclinicar.Etudoporquetemumcoraçãomuitobom;ajudouumbandodemoças,boas biscas, todas elas.De qualquermodo, ele comomédico é ótimo, e nós ochamamosparaolharosenhor.Disseelequeosenhornãosofreunadagrave,sóumaligeiraconcussão.Bastavaqueagenteodeitassebemestirado,quieto,numquartoescuro."Tenhamcuidado",disseodoutor,^nãoestoufazendodiagnósticonenhum.Oquedigoéemcaráterextra-oficial.Nãotenhodireitodereceitarnemdedizernada.Ocorretoseriavocêsdaremparteàpolícia,massenãooqueremfazer,porqueo farão?Dêemumaoportunidadeaopobre-diabo", foioqueeledisse.Osenhordesculpe,pareceatéqueestoulhefaltandocomorespeito,masodoutor é assim mesmo, diz tudo que lhe vem à boca. E agora que tal umacolheradadesopaouumpãocomleite,bemquentinho?

— Qualquer coisa — balbuciou o Cônego Pennyfather — seria bemrecebida.

Eovelhodeixou-secairnovamentenos travesseiros.Umacidente?Entãoforaisso.Umacidente,eelenãoconseguiarecordar-sedecoisíssimanenhuma!Poucos minutos mais tarde a boa mulher voltou, com uma bandeja ondecarregavaumatigelafumegante.

—O senhor vai se sentirmelhor depois de se alimentar.Tivevontadedebotardentroumagotinhadeuísque,ouumagotinhadeconhaque,masodoutordissequeosenhornãopodiatomarálcoolnenhum.

—Claroquenão—disseoCônegoPennyfather—comumaconcussãonãopoderia.Não.Nãoseriaaconselhável.

—Querqueeulheponhamaisumtravesseiroàscostas,benzinho?Pronto.Estábemassim?

O Cônego Pennyfather espantou-se um pouco ao ver-se tratado por"benzinho".Masdisseconsigoquedecertoaintençãoeraboa.

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—Bonitinho,assim!

—Sim,mas onde é que estamos?— indagou oCônegoPennyfather,—Querodizer,ondeéqueeuestou?Quelugaréeste?

—MiltonSt.John—informouamulher.—Nãosabia?

—MiltonSt.John?—disseoCônego,abanandoacabeça.—Éaprimeiravezqueouçoessenome.

—Oh,nãoénenhumlugarimportante.Ésóumaaldeia.

—Asenhora temsido,muitobondosa—declarouoCônegoPennyfather.—Possosaberoseunome?

—Mrs.Wheeling.

— A senhora é extremamente bondosa — tornou a dizer o CônegoPennyfather.—Masoacidente?Nãomelembrodenada...

—Tireissodacabeça,benzinho,esesentirámelhoreemcondiçõesdeselembrardascoisas.

—MiltonSt. John—disse consigooCônegoPennyfather, admirado.—Essenomenãotemparamimamenorsignificação!Quecoisaextraordinária!

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SirRONALDGRAVESdesenhouumgatonoseublocodenotas.Olhouparaavolumosa figura do Inspetor-ChefeDavy, sentado diante dele, e desenhou umbuldogue.

—LadislausMalinowski?—disse.—Podeser.Temalgumaprova?

—Não.Maselepreenchiaosrequisitos,não?

—Um sujeito temerário, sem nervos.Conquistou o campeonatomundial.Sofreuumgrandedesastrenoanopassado.Péssimareputaçãocomasmulheres.Fontesderendaduvidosas.Gastaàvontade,tantoaquicomonoexterior.Sempreviajando daqui para o Continente.Acha que ele é o homem que está por trásdessesrouboseassaltos?

—Nãocreioquesejaelequemplaneja.Masachoqueandametidonisso.

—Porquê?

—Emprimeiro lugar, é dono de umMercedes-Otto,modelo de corridas.UmcarroquecorrespondeàquelequefoivistopertodeBedhamptonnamanhãdoassaltoàmalado trem.Osnúmerosdaplacasãodiferentes,mas jáestamosacostumadoscomisso.Eotruqueéomesmodesempre:diferentes,masnãotãodiferentes assim.FAN2299 emvez de 2266.Afinal, não há tantosMercedes-Ottodaqueletipo.LadySedgwicktemum,eLordeMarrivaleoutro.

—NãoacreditaqueMalinowskisejaochefão.Ouacredita?

—Não.Achoquehácabeçasmelhoresqueadelenadireção.Maselefazpartedogrupo.Deuumaolhadanodossiê.EstálembradodoassaltoaoMidland& West London? Três furgões... veja quanta coincidência!... acertaram debloquear a rua. E umaMercedes-Otto que estava no local conseguiu escapulirgraçasaesseengarrafamento.

—Masfoidetidaumpoucomaistarde.

—Sim, e foi liberada. Principalmente porque as pessoas que derampartedelanãoestavambemcertasquantoaonúmerodaplaca.DiziamqueeraFAN3366... o número da placa de Malinowski é FAN 2266. É sempre o mesmo

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quadro.

— E você teima em ligar tudo isso ao Hotel Bertram's. Devem terdesencavadoalgummaterialsobreoBertram'sparavocê...

Papaibateunobolso:

—Estácomigo.Firmadevidamenteregistrada.Balanço...capitalrealizado...diretores, etc, etc, etc Não significa nada! Esses grupos financeiros são todosiguais... cobra engolindo cobra! Firmas, companhias administradoras... dão atévertigemnagente.

—Oravamos,Papai.EsseéoprocedimentonormaldopessoaldaCity.Éummeiodeenfrentarofisco...

—Oqueeuquero sãodados reais.Seo senhormeder autorização, tereimuitoprazeremirfalarcomcertoschefões.

OComissárioAssistenteencarouDavy.

—Equaissãoesseschefões?Podemedizer?Papaimencionouumnome.

OComissáriopareceuperturbar-se.—Nãoseidenada.Seriamuitaousadiaabordaressehomem.

—Masissopoderiaajudar-nosemuito.

Houve umapausa.Os dois homens se encararam.Papai, bovino, plácido,paciente.OComissáriocedeu.

—Vocêéumdiabovelhoeteimoso,Fred—disseele.

— Faça como bem entender. Se quiser, pode ir amolar os mentores dosfinancistasinternacionaisdaEuropa.

—Garantoqueelesabe—disseoInspetor-ChefeDavy.

—Elesabe.Esenãosouber,podedescobrirlogo,bastatocarumacigarra,namesa,oudarumtelefonema.

—Nãomeparecequeeleváficarmuitosatisfeito.

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—Provavelmentenão,masnãolhetomarámuitotempo.Sóqueeuprecisodoapoiodeumaautoridade.

—VocêestálevandoasériomesmoesseHotelBertram's,nãoestá?Afinal,que foi que você descobriu? É um hotel bem dirigido, tem uma clientelarespeitabilíssima,nuncateveproblemascomasposturasmunicipais...

—Eusei,eusei.Nadadebebidas,dedrogas,dejogo,nemdehospedagema criminosos. Tudo alvíssimo como a neve recém-caída. Nada debeatniks, demarginais,dedelinqüentes juvenis.Sómatronasvitorianas-eduardianas, famíliasdanobrezarural,viajantesestrangeiros,deBostonoudoslocaismaisrespeitáveisdosEstadosUnidos.Apesardisso,umvenerandoCônegodanossaIgrejaévistosaindodeláàs3damanhã,demaneiraumtantosub-reptícia...

—Quemlhedisseisso?

—Umadasmatronas.

—Comoelaconseguiuvê-lo?Porquenãoestavaelanacamadormindo?

—Senhorasidosassãoassim,meucarosenhor.

—Vocêestáfalandodo...comosechamaele...CônegoPennyfather?

—Estou, sim senhor. Comunicaram o desaparecimento dele, e Campbellandouinvestigando.

— Coincidência curiosa. O nome desse Cônego foi citado também apropósitodoroubodasmalasdocorreioemBedhampton.

—Foimesmo?Eporquem?

—Poroutrasenhoraidosa...oupelomenosdemeia-idade.Quandootremfoidetidoporaquelesinalfalso,muitaspessoasselevantarameolharamparaocorredor.Essasenhora,quemoraemChadminstereconhecedevistaoCônegoPennyfather,dizqueoviuentrarnotrem,porumadasportas.Elapensouqueeletinhasaídoparaveroquehaviaacontecido,eestivesseentrandodevolta.Enósíamos seguir essa pista, já que haviam comunicado o desaparecimento doCônego...

—Vejamos...o tremfoidetidoàs5,30damanhã.OCônegoPennyfathersaiudoHotelBertram'spoucodepoisdas3damadrugada.Sim,podiaser.Seo

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levassemlá...digamos,numcarrodecorrida...

—EassimvoltamosaLadislausMalinowski!

O Comissário contemplava as garatujas que fizera no bloco. — Você émesmoumbuldogue,Fred.

MeiahoradepoisoInspetor-ChefeDavyentravanum

escritório tranquilo e bastante modesto. O homenzarrão por trás da mesalevantou-seeestendeu-lheamão.

— Inspetor-Chefe Davy? Sente-se, por favor— disse ele.—Aceita umcharuto?

OInspetor-ChefeDavyabanouacabeça:

—Peço-lhedesculpas—disseelenasuavozprofundadecamponês—emroubaroseupreciosotempo.

Mr.Robinson sorriu.Eraumhomemgordoemuitobemvestido.Tinhaacara amarela, os olhos escuros e tristes, a boca larga e generosa. Sorriafreqüentemente, mostrando uns dentes muito grandes. "São para comer vocêmelhor"pensouincongruentementeoInspetor-ChefeDavy.Robinsonfalavauminglêsperfeitoesemsotaque,masnãoerainglês.Papai,comoinúmeraspessoasantesdele,estavacuriosoporsaberqualseriaanacionalidadedeMr.Robinson.

—Bem,emquepossoservi-lo?

— Gostaria de saber — disse Davy— quem é o proprietário do HotelBertram's.

A expressão do rosto de Mr. Robinson não se alterou. Ele não mostrousurpresa ao ouvir aquele nome, nem deu nenhum sinal de conhecê-lo. Dissepensativo:

—OsenhorquersaberqueméoproprietáriodoHotelBertram's.Isso,creioeu,ficaemPondStreet,naalturadePiccadilly.

—Exatamente.

—Umavezououtramehospedolá.Lugarsossegado,bemadministrado.

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—Ésimsenhor—dissePapai.—Muitobemadministrado.

—Eosenhorquersaberqueméodono?Certamenteéfácilverificar.

Haviaumaleveironiaportrásdosorriso.

—Peloscanaiscostumeiros,éissoqueosenhorquerdizer?—Ah,sim.—Papai tirou do bolso um pedacinho de papel e leu três ou quatro nomes eendereços.

— Compreendo — disse Mr. Robinson. — Alguém deve ter tido umtrabalhãocomisso.Interessante.Eosenhorveiomeprocurar!

—Osenhoréapessoamaisindicada.

—Realmentenãosei.Maséverdadequetenhomeiosdeobterinformações.Temos...—encolheuosombrosgordos,enormes—temososnossoscontatos.

—É,sim—dissePapaicomrostoimpassível.

Mr.RobinsonolhouparaDavyeemseguidaapanhouo telefoneemcimadamesa:

— Sônia?Me chame o Carlos— Esperou um ou dois minutos, e entãofalou:—Carlos?—Pronunciourapidamentemeiadúziadefrasesnumalínguaestrangeira.NãoerasequerumalínguaquePapaipudesseidentificar.

Papai podia dialogar em bom francês-de-inglês. Tinha umas tinturas deitalianoeentendiaporaltooalemãosimplesdosviajantes.Conheciaossonsdoespanhol,dorusso,doárabe,emboranãoosentendesse.Masaqueleidiomanãoeranenhumdesses.Talvez se tratassede turco,oupersa,ouarmênio,masnãotinhacerteza.Mr.Robinsonrecolocouofonenogancho.

—Nãocreio—disseelebemhumorado—quetenhamosdeesperarmuitotempo. Sabe que fiquei interessado? Muitíssimo interessado. Eu mesmo tenhopensado,umavezououtra...

Papaioolhava,comarinquisitivo.

—NoHotel Bertram's— explicouMr. Robinson.—Do ponto de vistafinanceiro,evidentemente.Agenteseperguntacomoéqueaquilopodedarlucro.Masissonãoédaminhaconta.Fazgostosaber...—deudeombros—queexiste

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umhotelconfortável,comumagerênciaexcepcionalmentecapazeempregados...Sim,tenhopensadonisso.—FixouoolharemPapai.—Sabecomoeporquê?

—Aindanão.Masquerosaber.

—Háváriaspossibilidades—disseMr.Robinsonpensativo.—É,comoamúsica.Apenastantasnotasparacadaoitava,enoentantoépossívelcombiná-lasde...queseieu?demilmaneirasdiferentes.Ummúsicocertavezmedissequenãosepodeobteramesmamelodiaduasvezes.Interessantíssimo.

Uma cigarra, na mesa, tocou de leve e Mr. Robinson pegou de novo otelefone.

— Sim? Sim, você foi rápido. Estou satisfeito. Entendo. Oh!Amsterdã,sim...Ah...Obrigado.Sim.Quersoletrarisso?Muitobem.

Anotouqualquercoisanumblocoquetinhaàmão.

—Espero que isso lhe sirva— disse ele, arrancando a folha do bloco epassando-aporcimadamesaparaDavy,queleuonomeemvozalta:WilhelmHoffman.

— Nacionalidade suíça— disse Mr. Robinson—Mas, a meu ver, nãonasceu na Suíça. Tem grande influência nos círculos bancários e embora semantenha rigorosamente à direita da lei, tem estado por trás de inúmeros...negóciossuspeitos.OperaapenasnoContinente,nuncanestepaís.

—Mastemumirmão—explicouMr.Robinson.—RobertHoffman:estemora em Londres, negocia com diamantes... firma respeitabilíssima. É casadocom uma holandesa e também tem escritórios emAmsterdã.A ScotlandYarddeve ter informações sobre ele. Como eu disse, negocia principalmente comdiamantes, mas é um homem muito rico, possui muitas propriedades, que emgeralnãoestãonoseunome.Sim,eleestáportrásdeumaporçãodeempresas.EoirmãodeleéoverdadeiroproprietáriodoHotelBertram's.

— Muito agradecido. — O Inspetor-Chefe Davy levantou-se. — Nãopreciso dizer quanto sou grato ao senhor. É formidável — acrescentou,permitindo-sedemonstrarmaisentusiasmodoqueonormal.

—Formidáveleusaber?—indagouMr.Robinson,dandoumdosseusmaisamplos sorrisos. — Mas essa é uma das minhas especialidades. Informação.Gostodesaber.Foiporissoquemeprocurou,não?

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—Bem—disseoInspetor-ChefeDavy—nóstemosinformaçõessobreosenhor. O Ministério do Interior. A Divisão Especializada e os outrosdepartamentos.—Acrescentou,quase ingenuamente:—Foiprecisoumpoucodeaudáciadaminhaparte,paravirprocurá-lo.

NovamenteMr.Robinsonsorriu.

— Considero o senhor uma personalidade muito interessante, Inspetor-ChefeDavy—disseele.—Desejoquetenhaêxitonasuatarefa,qualquerquesejaela.

—Muito obrigado.Acho que preciso dos seus bons votos.A propósito,essesdoisirmãos,osenhordiriaquesãohomensviolentos?

—Certamentenão—disseMr.Robinson.—Issoseriacontrárioàpolíticadeles.Os irmãosHoffmannãousamdeviolênciaemquestõescomerciais.Têmoutrosmétodos,quelhesservemmelhor.Pode-sedizerqueacadaanoquepassavãoficandomaisricos,pelomenoséoqueconstanoscírculosbancáriossuíços.

—ASuíçaéumaterramuitoútil,não?—disseoInspetor-ChefeDavy.

—Realmente.NemseioquefaríamossemaSuíça!Tantacorreção.Tantasensibilidadeparaosnegócios!Sim,todosnós,homensdenegócios,devemossergratos à Suíça. Eu próprio— acrescentou ele— também faço excelente juízosobreAmsterdã.—FitouDavy,depoistornouasorrir,eoInspetor-Chefesaiu.

Quandochegounovamenteà repartição,Davyencontrouumbilheteàsuaespera:

"OCônego Pennyfather apareceu— salvomas não ileso. Parece que foiatropeladoporumcarroemMiltonSt.Johnesofreuumaconcussão."

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O CÔNEGO PENNYFATHER olhou para o Inspetor-Chefe Davy e para oInspetorCampbell, e o Inspetor-ChefeDavy e o Inspetor Campbell também oolharam.OCônegoPennyfatherestavanovamenteemcasa, sentadonagrandepoltronadasuabiblioteca,umtravesseirosobacabeça,ospésnumbanquinho,comumamantasobreosjoelhosparaacentuarasuacondiçãodeenfermo.

—Lamentodizer—explicavaele,polidamente—quenãomelembrodecoisaalguma.

—Nãoselembradoacidente,quandoocarrooatropelou?

—Lamentodizerquenão.

—Entãocomosabequeumcarrooatropelou?—perguntouvivamenteoInspetorCampbell.

—Atalmulher,Mrs....Mrs....comoeraonomedela?Wheeling?...foiquemecontou.

—Ecomoéqueelasoube?

OCônegoPennyfatherpareciaintrigado.

—Valha-meDeus,osenhortemrazão.Elanãopodiasaber,nãoémesmo?Suponhoquepensouqueissoéquedeveteracontecido.

—E o senhor não consegue realmente lembrar-se denada? Como é queveiodaremMiltonSt.John.

—Nãotenhoamenorideia.Atémesmoonomedolugarmeéestranho.

A exasperação do InspetorCampbell crescia,mas o Inspetor-ChefeDavydissenoseutomdevozsingeloeapaziguador:

—Conteporfavor,CônegoPennyfather,aúltimacoisadequeosenhorselembra.

OCônego Pennyfather virou-se aliviado paraDavy.O seco ceticismo doinspetordeixara-oconstrangido.

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—EuiaparaumcongressoemLucerna.Tomeiumtáxiparaoaeroporto...ouantes,paraaestaçãoaéreadeKensington.

—Sim.Edepois?

—Ésó.Nãomelembrodemaisnada.Aprimeiracoisadequemelembrodepoisdissoédoguarda-roupa.

—Queguarda-roupa?—perguntouoInspetorCampbell.

—Estavanolugarerrado.

OInspetorCampbell sentiu-se tentadoaesmiuçaressaquestãodoguarda-roupacolocadonolugarerrado.MasoInspetor-ChefeDavyointerrompeu.

—Osenhorserecordadeterchegadoàestaçãoaérea?

—Achoquesim—disseoCônegoPennyfather,comoardequemtinhaenormesdúvidasaesserespeito.

—EosenhorentãovoouparaLucerna.

—Tereivoado?Nãomelembroabsolutamentesevoeiounão.

—Lembra-sedetervoltadoaoHotelBertram'snaquelanoite?

—Não.

—Lembra-sedoHotelBertram's?

—Naturalmente.Euestavahospedado lá.Émuitoconfortável.Mantiveareservadoquarto.

—Lembra-sedeterviajadodetrem?

—Detrem?Não,nãomelembrodetremnenhum.

— Houve um assalto. O trem foi roubado. Não é possível, CônegoPennyfather,queosenhornãoselembredisso.

—Devia, não devia?Mas a verdade é que...— falava como se pedissedesculpas— nãome lembro.— Fitou um policial e depois o outro, com umsorrisoafável.

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—Então, tudo o que o senhor tem a dizer é que não se recorda de nadadesdeoinstanteemquetomouumtáxiparaaestaçãoaérea,atéacordarnacasadosWheelingsemMiltonSt.John.

—Nãohánadadeestranhonisso,—afirmouoCônego.—Sucedemuitofreqüentementenoscasosdeconcussão.

—Quefoiqueosenhorpensouquelhehaviaacontecidoquandoacordou?

— Tinha uma tal dor de cabeça que nem podia pensar. Então, é claro,comecei a imaginar onde é que estava, eMrs.Wheeling explicou eme serviuuma excelente sopa. Ela me chamava de queridinho e benzinho— contou oCônegocomlevedesagrado—maseramuitobondosa,Muitobondosamesmo.

—Eladeviaterdadopartedoacidenteàpolícia.Osenhorentãoteriasidotransportadoparaumhospitaletratadodevidamente—disseCampbell.

—Elatratoudemimmuitobem,—protestouoCônegocomenergia—epeloquesei,emcasosdeconcussão,poucosepodefazerpelopaciente,alémdeomanteremrepouso.

—Seosenhorserecordardemaisalgumacoisa,CônegoPennyfather...

OCônegointerrompeu-o.

—Parecequeperdiquatrodiascompletosdaminhavida.Émuitocurioso.Realmentemuito curioso. Só queria saber por onde é que eu andava e o queestavafazendo.Dizomédicoquetalvezmevoltealembrançadetudo.Tambémé possível que não volte. Provavelmente jamais saberei o que foi que meaconteceuduranteessesdias.—Suaspálpebrasseagitaram.—Desculpem-me,senhores.Achoqueestoumuitofatigado.

—Agora chega,— disseMrs.McCrae, que se mantivera junto à porta,prontaaintervirsejulgassenecessário.Eadiantou-separaosdoispoliciais:—Odoutordissequeelenãopodiateraborrecimentos—faloucomfirmeza.

Os policiais levantaram-se e caminharam para a porta. Mrs. McCraeconduziu-osaocorredorumpoucoàmaneiradeumconscienciosocãopastor.OCônegomurmurouqualquercoisaeo Inspetor-ChefeDavy,que foioúltimoapassarpelaportaimediatamentedeumeiavolta.

—Que é que houve?—perguntou,mas os olhos doCônego já estavam

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fechados.

—Que acha que ele disse? indagou Campbell quando os dois saíam dacasa, após recusarem a formal oferta de refrigerantes que lhes fizera Mrs.McCrae.Papairespondeu,pensativo:

—Creioqueeledisse"asmuralhasdeJerico".

—Quesignificariaisso?

—ParececoisadaBíblia—dissePapai.

—Acreditaquealgumdiaagentevenhaasaber—perguntouCampbell—comoéqueessevelhotefoideCromwellRoadatéMiltonSt.John?

—Parece que não receberemos grande ajuda da parte dele— concordouDavy.

—Aquelamulherquecontaqueoviunotrem,depoisdoassalto,seráquediz a verdade? Será possível que ele esteja envolvido nos roubos? Pareceimpossível. É umvelho respeitável, sob todos os aspectos.Afinal não se podesuspeitar que um Cônego da Catedral de Chadminster esteja envolvido numroubodetrem,pode-se?

—Não— respondeuPapai pensativa.—Não.Assimcomonão se podeimaginarqueoJuizLudgroveestejaenvolvidonumassaltoaumbanco.

OInspetorCampbellolhoucomcuriosidadeparaoseusuperior.

A expedição a Chadminster terminou com uma improfícua visita ao Dr.Stokes.

ODr.Stokesmostrou-seagressivo,poucocooperativoerude:

—ConheçoosWheelingshábastantetempo.Cultivamdecertomodoaboavizinhança, em relação a mim. Apanharam um velho caído na estrada. Nãosabiam se estava morto, bêbedo ou doente. Pediram-me para dar uma olhada.Expliqueiqueelenãoestavabêbedo—queeraumcasodeconcussão...

—Etratoudele.

— Absolutamente. Não tratei, nem receitei nem mediquei. Não sou

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médico... já fui,masnãosoumais...Disseaelesqueoquedeveriamfazereratelefonarparaapolícia.Se telefonaramounão,nãosei.Nãoédaminhaconta.Osdoissãomeioburros...masgenteboa.

—Eosenhor,nãopensouemtelefonaràpolícia?

— Não, não pensei. Não sou médico. O caso não tinha nada que vercomigo.Comosimplesserhumano,aconselheiquenãolhedessemuísqueequeomantivessememrepouso,estirado,atéqueapolíciachegasse.

ODr. Stokes olhou-os ferozmente, e eles, embora a contragosto, tiveramquedeixartudocomoestava.

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MR.HOFFMAN era um homem alto, de sólida robustez. Parecia que foraesculpidoemmadeira—emteca,depreferência.

Tinha um rosto tão sem expressão que suscitava a pergunta: seria essehomemcapazdepensar...desentiremoção?Pareciaimpossível.

Suasmaneiraseramcorretíssimas.

Eleseergueu,inclinou-seeestendeuamãocuneiforme:

— Inspetor-Chefe Davy? Há alguns anos tive o prazer... talvez o senhornemselembre...

—Bemquemelembro,Mr.Hoffman.OcasododiamanteAaronberg.Osenhor foi testemunhadopromotor, ótima testemunha,permitaque lhediga.Adefesanãooconseguiuabalar.

—Nãomeabalocomfacilidade—disseMr.Hoffmangravemente.

Aaparênciaeradequemrealmentenãoseabalavacomfacilidade.

—Emqueposso servi-lo?—continuouHoffman.—Nenhumproblema,espero...Façoquestãodeestarsempreemboapazcomapolícia.Tenhoamaioradmiraçãoporsuaexcelenteforçapolicial.

— Não, não há nenhum problema. Apenas gostaríamos que o senhorconfirmasseumapequenainformação.

— Terei o maior prazer em ajudá-lo no que puder. Como digo sempre,tenho nomais alto conceito a Força Policial de Londres.Os seus homens sãomagníficos.íntegros,honestosejustos.

—Osenhormedeixaembaraçado—dissePapai.

—Estouàssuasordens.Queéquedesejasaber?

— Ia lhe pedir que me desse algumas informações a respeito do HotelBertram's,

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OrostodeMr.Hoffmannãosealterou.Talvezsepudessedizerqueasuaatitude toda, por um brevemomento, se tornaramais estática do que antes—nadamais.

— Hotel Bertram's? — disse ele. A voz era inquiridora, ligeiramenteembaraçada.Parecia atéque elenuncaouvira falardoHotelBertram's, ouquenãoconseguiarecordarseconheciaounãoumHotelBertram's.

—Osenhortemumacertaligaçãocomohotel,nãotem,Mr.Hoffman?

Mr.Hoffmanmexeucomosombros.

—Sãotantascoisas!—disseele.—Agentenãoselembradetudo.Tantosnegócios...tantos...quememantêmocupadíssimo.

—Osenhoratuaemmuitoscampos,seidisso.

—Sim—admitiuMr.Hoffmancomumsorrisodesajeitado,—Façoboascolheitas,éissooquepensa?Eporessemotivoacreditaquetenholigaçõescomesse...HotelBertram's.

—Eunãodeviaterfaladoemligação.Narealidade,osenhoréodono,nãoé?— disse Papai com bom humor.Desta vezMr.Hoffman inegavelmente seempertigou.

—Quemlhecontouisso,possosaber?—perguntouemvozbaixa.

—Maséverdade,nãoé?—faloucomanimaçãooInspetor-ChefeDavy.—Lugaresplêndido,valeapenaserdonodele,naminhaopinião.Creioqueosenhorseorgulhadepossuí-lo.

—Ah, sim — respondeu Hoffman. — No momento... não me lembrodireito...osenhorsabe...—sorriucomoquepedindodesculpas—tenhomuitosimóveis emLondres. Representam um bom investimento. Se aparece qualquercoisanomercado,eeuachoqueonegócioébomehápossibilidadedeadquiri-lobarato,compro.

—EoHotelBertram’sfoivendidobarato?

—Comoempresa,estavaquase falida,—disseMr.Hoffmanabanandoacabeça.

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—Bem,masagoraestápróspero—observouPapai.—Andeiláoutrodiaefiqueiimpressionadíssimocomaatmosferadacasa.Excelenteclienteladavelhaguarda,ambienteconfortávelàmodaantiga,tudoemperfeitaordem,muitoluxomassemalarde.

—Eu, pessoalmente, seimuito pouco a respeito desse hotel,— explicouMr.Hoffman.—Paramiméapenasumempregodecapital,mascreioquevaiindobem.

—Sim,osenhorpareceterláumgerentedeprimeiraqualidade.Comosechamaele?Humfries?Sim,Humfries.

—Umótimosujeito,—disseMr.Hoffman.—Entregotudoaele.Olhosóobalançoumavezporano,afimdeverificarsetudoestádireito.

— Estava cheinho de aristocratas — disse Papai. — Ricos viajantesamericanos, também. — Balançou a cabeça, pensativo. — Maravilhosacombinação.

—Diz que esteve lá outro dia?— indagouMr.Hoffman.—Mas não...oficialmente,espero.

—Nadademais.Apenastentavapôralimpoumpequenomistério.

—Ummistério?NoHotelBertram's?

— É o que parece. O caso do Eclesiástico Desaparecido. Poderíamoschamá-loassim.

—Issoépilhéria—disseMr.Hoffman.—Éoseujeitodefalar,àmaneiradeSherlockHolmes.

—Esseeclesiásticosaiudohotelumabelatardeenuncamaisfoivisto.

— Singular— comentouMr. Hoffman.—Mas essas coisas acontecem.Lembro-me que hámuitos,muitos anos atrás, houve uma grande sensação. OCoronel... deixe-me recordar o nome... Coronel Fergusson, creio, um dosescudeiros daRainhaMary. Saiu do clube, certa noite, também, e nuncamaisninguémoviu.

— Evidentemente, — disse Papai com um suspiro — muitos dessesdesaparecimentossãovoluntários.

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—Osenhorsabemuitomaisarespeitodessascoisasdoqueeu,meucaroInspetor-Chefe—disseMr.Hoffman.Eacrescentou:—EsperoquelhetenhamdadotodaaassistêncianoHotelBertram’s.

—Nãopodiam ter sidomaisamáveis,—garantiuPapai.—AquelaMissGorringe,creioqueestácomosenhorhábastantetempo.

— Possivelmente. Na verdade sei muito pouco sobre isso. Não tenhonenhum interessepessoal, o senhor compreende. Aliás... — sorriu de modoapaziguador—fiqueiatésurpresoaoverqueosenhorsabiaqueeraeuodono.

Não chegava a ser uma pergunta; mas novamente aparecia uma ligeirainquietudenoolhardeMr.Hoffman.Papainotou-asemdaraperceber.

—As ramificações que se estendem pela City são como um gigantescoquebra-cabeças—disseele.—Seeutivessequelidarcomessascoisas,ficariamaluco.Segundoentendi,umacompanhia...MayfairHoldingTrustouqueoutronome tenha... é o proprietário registrado.Outra companhia é proprietária dessacompanhia, e assim por diante. No remate de tudo, a verdade é que o hotelpertenceaosenhor.Muitosimples.Eestoucerto,nãoestou?

—Euemeuscolegasdiretoresestamos,comodiriaosenhor,atrásdisso,éverdade—admitiuMr.Hoffmancomcertarelutância.

—Seus colegas diretores. E quem seriam eles?O senhor e, creio eu, umirmãoseu?

— Meu irmão Wilhelm é meu sócio nesse negócio. O senhor devecompreender que o Bertram's é apenas parte de uma cadeia de vários hotéis,escritórios,clubeseoutrosbensquepossuímosemLondres.

—Háoutrosdiretores?

— Lord Pomfret,Abel Isaacstein.—A voz de Hoffman adquiriu súbitarispidez. — O senhor precisa realmente saber disso tudo? Só porque estáinvestigandooCasodoEclesiásticoDesaparecido?

Papaiabanouacabeçaepareciapedirdesculpas.

—Creioque realmente é só curiosidade.AprocuradomeudesaparecidoCônegofoiquemelevouaoBertram's,masaí,fiquei...digamos,interessado,seosenhormeentende.Umacoisaàsvezeslevaaoutra,nãoé?

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—Imaginoquesim.Eagora—sorriu—estásatisfeitaacuriosidade?

—Quandoagentequerinformações,nadacomoprocurarobtê-lasdabocadocavalo—respondeuPapai,bemhumorado.Ergueu-se.—Restaapenasumacoisaqueeugostariamuitodesaber,masnãocreioqueosenhormeconte.

—Oqueé,Inspetor-Chefe?—OtomdavozdeHoffmaneracauteloso.

— Onde é que o Bertram's recruta o seu pessoal? Formidável! Aquelesujeito, comoéque se chama?...Henry.Aquelequepareceumarquiduqueouum arcebispo, nem sei bem. De qualquer modo, é o que serve à gente chá emuffins,—unsmuffinsmaravilhosos!Umaexperiênciainesquecível.

—Osenhorgostademuffimcombastantemanteiga,não?—OsolhosdeMr.Hoffmanpousaramporummomentocomdesaprovação,nasrotundidadesdasilhuetadePapai.

—Osenhorbemvêqueeugosto—dissePapai.—Bom,nãodevomaistomar o seu tempo.O senhor certamente está ocupadíssimo com operações detrustesemonopólios,oucoisaparecida.

—Ah,paraosenhorédivertidofingirqueignoratodasessascoisas.Não,não estou muito ocupado. Não deixo que os negócios me absorvam demais.Meusgostossãosingelos,vivosimplesmente,tenhomeuslazeres,cultivorosas,esoumuitodedicadoàminhafamília.

—Éavidaideal—comentouPapai.—Quiseraeuviverassim.

Mr. Hoffman sorriu e ergueu-se pesadamente para apertar a mão dovisitante.

—EsperoqueencontrelogooseuEclesiásticoDesaparecido.

—Ah, issonãomepreocupamais. Infelizmentenão fuibastanteclaro.OCônego foi encontrado... o que não deixa de ser uma decepção. Sofreu umdesastredeautomóveleteveconcussão...apenasisso.

Papaicaminhouparaaporta,depoisvoltou-seeperguntou:

—Apropósito,LadySedgwickestáentreosdiretoresdasuacompanhia?

— Lady Sedgwick — Hoffman hesitou um instante. — Não. Por que

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deveriaestar?

—Bem,boatosqueagenteouve...Acionista?

—Eu...sim.

—Bom,adeus,Mr.Hoffman.Muitíssimoobrigado.PapaivoltouàScotlandYardefoidiretoaoescritóriodoComissário-Assistente.

— Os dois irmãos Hoffman é que estão por trás do Hotel Bertram's...financeiramente.

—Oquê?Aquelescanalhas?—perguntouSirRonald.

—Sim.

—Entãomantinhamtudonomaiorsegredo.

— Sim... e Robert Hoffman não gostou da nossa descoberta. Teve umchoque.

—Oquefoiqueeledisse?

— A nossa conversa foi muito formal e polida. Ele tentou, meiodisfarçadamente,sabercomoeutinhadesvendadoomistério.

—Evocênãolhedeuessainformação,suponho.

—Claroquenão.

—Quedesculpadeuvocêparairvê-lo?

—Nãodeidesculpanenhuma—respondeuPapai.

—Eelenãoachouesquisito?

— Espero que sim. No fim de contas, creio que a jogada foi boa, SirRonald.

—SeosHoffmansestãoportrásdissotudo,muitacoisaestáexplicada.Elesnuncaseenvolvempessoalmenteemnadairregular...ah,não!Nãoorganizamocrime...contentam-seemfinanciá-lo!

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—Wilhelm, na Suíça, cuida do lado bancário. Era ele quem comandavaaquelasquadrilhasdemoedaestrangeira, logodepoisdaguerra...nós sabíamosdetudo,masnãopodíamosprovarnada.Osdoisirmãoscontrolamummontededinheiro, e usam esse capital para financiar toda espécie de negócios... algunslícitos, outros não.Mas são cuidadosos, conhecem todos os pulos de gato doofício.AcorretagemdediamantesdeRobertébastantehonesta...masoquadroésugestivo: diamantes, interesses em bancos e imóveis... clubes, fundaçõesculturais, edifícios de escritórios, restaurantes, hotéis... tudo aparentemente deoutrosdonos.

—VocêachaqueéHoffmanquemplanejaessesassaltosorganizados?

— Não, acho que eles lidam exclusivamente com finanças. Temos queprocurar o nosso planejador em outro lugar. Em alguma parte, um cérebro deprimeiracategoria,trabalhasemparar.

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20I

REPENTINAMENTE, naquela noite, o nevoeiro descera sobre Londres. OInspetor-ChefeDavylevantouagoladocasacoedobrouaesquina,seguindoporPond Street. Andando devagarinho como alguém que estivesse pensando emoutracoisa,nãoparecia terumobjetivodefinido,masquemoconhecessebem,compreenderiaqueamentedeleestavaalerta.Avançavacomoumgatoqueestáàespreitadomomentodesaltarsobreapresa.

PondStreetestavasilenciosanaquelanoite.Poucosautomóveis;ofog,tênueaprincípio,sumiraquaseporcompletoedepoisvoltaramaisespesso.ObarulhodotráfegoemParkLanereduzira-seaonívelderuídodeumaestradasuburbana.Amaioriadosônibusdeixaradecircular.Apenasdevezemquandopassavaumou outro carro com obstinado otimismo. O Inspetor-Chefe Davy entrou numbeco, foi até ao fimdele, evoltou.Tornouadarvolta, primeiroparaum lado,depois para outro, aparentemente sem destino,—mas tinha um destino certo,sim.Naverdade,asuarondafelinalevava-oadescreverumcírculoemtornodedeterminadoedifício:oHotelBertram's.Verificavacuidadosamenteoquehaviaaleste,dohotel,aoeste,aosuleaonorte.Examinouoscarrosparadosàbeiradacalçada, examinouos carros que estavamno beco.Dedicou especial atenção aumpátio de estacionamento:Um carro emparticular o interessou, e ele parou.Franziu os lábios e disse então à meia-voz: "Então você está aqui de novo,belezinha".Certificou-sedonúmeroebalançouacabeça, satisfeito: "EstanoitevocêéFAN2266"curvou-se,correuosdedosdelevesobreaplaca,edenovobalançouacabeça:"Fizeramumbelotrabalho",murmurou.

Continuouaandar,saiunooutroextremodopátio,dobrouàdireita,outravezàdireita,eviu-senovamenteemPondStreet,acinquentametrosdaentradado Hotel Bertram's. Tornou a parar, admirando as bonitas linhas de um outrocarrodecorridas.

— Você também é uma beleza— disse o Inspetor-Chefe Davy. — Daúltimavezqueovi,vocêtinhanaplacaessemesmonúmero.Tenhoaimpressãodequeoseunumerosempreéomesmo.Eissoquerdizer...—interrompeu-se—serámesmo?—resmungou.Ergueuosolhosparaondedeviaestarocéu.—Onevoeiroestáficandocadavezmaisespesso—dissedesiparasi.

DoladodeforadoBertram's,oporteiroirlandês,depé,sacudiaosbraçosparadianteeparatráscomcertaviolência,afimdeseaquecer.OInspetor-Chefe

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Davylhedeuboanoite:

—Boanoiteparaosenhortambém.Quetempohorrível.

—Sim.Achoquehojeumapessoasósaiporobrigação,Aportadevaivémabriu-se:umasenhorademeia-idadesaiueparouincertanodegrau.

—Querumtáxi,madame?

—SantoDeus!Eupretendiairapé.

—Eu,sefosseasenhora,nãofaziaisso.Onevoeiroestámuitofeio.Mesmonumtáxinãoéfácil.

—Achaquepodemearranjaramtáxi?—indagouamulher,emdúvida.

—Fareiopossível.Agoraválápradentroefiquepertodalareira,queeuireiavisá-laquandoconseguirumtáxi.—Avozdoporteiromudara,assumindoumtompersuasivo.—Aliás,amenosquesejaabsolutamentenecessário,seeufosseasenhoranãosairiaàruaestanoite.

—Valha-meDeus!Talvezosenhortenharazão.AlgunsamigosestãomeesperandoemChelsea.Nãosei.Podesermuitodifícilvoltar.Queéqueosenhoracha?

MichaelGormansugeriu,comfirmeza:

—Seeufosseasenhora,madame,telefonavaparaosamigos.Nãoficabemaumasenhorasairparaaruanumanoitedenevoeirocomoesta.

—Bem...naverdade...sim,talvezosenhortenharazão.

Amulhertornouaentrarnohotel.

—Tenho que cuidar delas— explicouMichaelGorman, virando-se paraPapai. — Uma dessas, a coisa mais fácil do mundo é lhe tomarem a bolsa.Imagine!Sairaestahoradanoite,nessenevoeiro,eandarapéporChelseaouWestKensington,ouporqualqueroutrapartequelhedênatelha!

— Pelo que vejo, você tem bastante experiência em tratar com senhorasidosas—disseDavy.

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—Ah,tenhosim.Essehoteléparaelasolarforadolar,benza-asDeus.Eosenhor?Seráquedesejaumtáxi?

—Mesmoqueeuquisesse,nãocreioquevocêpudessemearranjarum—dissePapai.—Nãohásinaldelesporaqui.Enãooscensuroporisso.

—Ah,talvezeupossalhearranjarum.Alinaesquinaháumlugarondeemgeral os motoristas estacionam enquanto tomam um traguinho para espantar ofrio.

—Umtáxinãomeserve—dissePapaicomumsuspiro,eapontoucomopolegar para o Hotel Bertram’s. — Preciso ir lá dentro. Tenho de fazer umtrabalho.

—Émesmo?AindaoCônegodesaparecido?

—Nãoébemisso.Elejáfoiencontrado.

—Encontrado?—Oporteiroolhou-oespantado.—Encontradoonde?

—Poraí,emestadodechoqueemconseqüênciadeumacidente.

—Ah, não se podia esperar outra coisa dele.Provavelmente atravessou aruasemolhar.

—Essaéaconclusãoquesetira—dissePapai.

Fez um sinal coma cabeça, empurrou a porta e entrou no hotel.Naquelanoitenãohaviamuitagentenosalão.

AvistouMissMarple,sentadanumapoltronaaopédalareira,eMissMarpleo viu.Mas não deumostras de o reconhecer. Papai caminhou até à recepção.Miss Gorringe, como de costume, ocupava-se com os livros de registro. MaspareceuaoInspetor-Chefequeela,aovê-lo,ficaraumpoucoperturbada.Emborafosseumareaçãomuitorápida,nãopassoudespercebidaaDavy.

—Lembra-sedemim,MissGorringe?—disseele.—Vimaquioutrodia.

— Sim, claro que me lembro, Inspetor-Chefe. Quer mais algumainformação?DesejaverMr.Humfries?

—Não,obrigado.Achoquenãoseránecessário.Gostariadedarmaisuma

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olhadanoseuregistrodehóspedes,sefossepossível.

—Naturalmente.—EMissGorringeempurrouparaeleolivro.

Davyabriu-oefoiolhandolentamenteaspáginas.DavaaMissGorringeaimpressão de umhomemque procurava umdeterminado registro.Na verdade,nãoeraissooqueacontecia.Papaipossuíaumahabilidadeaprendidadesdecedoeconvertidaaessaalturanumaverdadeiraarte.Eracapazde recordarnomeseendereçoscommemóriaquase fotográfica.Essa lembrançapermaneciacomeledurantevinte equatrooumesmoquarentaeoitohoras.AfinalDavy sacudiuacabeça,fechouolivroedevolveu-oaMissGorringe.

—OCônegoPennyfathernãoapareceumaisporaqui—disseelenumtomdespreocupado.

—OCônegoPennyfather?

—Sabequeelefoiencontrado?

—Não.Ninguémmedissenada.Onde?

— Numa aldeia. Acidente de automóvel, parece. Mas não noscomunicaram.Algumbomsamaritanoorecolheuecuidoudele.

—Oh,estimomuitosaberdisso.Muito.Euestavapreocupadacomele.

—Os amigosdele também.Naverdade, eu estavaprocurandover se umdessesamigosestariaaquiagora.Arcediago...Arcediago...nãoconsigorecordaronomedele,masseovisseescritoreconheceria.

—Tomlinson?—disseMissGorringetentandoajudar.—Éesperadoaquinapróximasemana.VemdeSalisbury.

—Não,nãoéTomlinson.Bem,nãoimporta.—Deumeiavolta.

Osilêncioeraquasetotalnasala.

Umascéticocinquentão liauma tesemuitomaldatilografadaedevezemquandoescreviaumcomentárionamargemdopapel,numaletratãoruimqueeraquaseilegível.Ecadavezquefaziaisso,sorriacomavinagradasatisfação.

Havia um ou dois casais antigos, que pouca necessidade sentiam de

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conversar. De vez em quando, duas ou três pessoas reuniam-se para falar dotempo e discutiam inquietas como é que elas ou suas famílias conseguiriamchegaraondepretendiamir.

—TelefoneiepediaSusanquenãoviessedecarro...aMlétãoperigosanosnevoeiros...

—DizemquenasMidlandsestámaisclaro...

O Inspetor-ChefeDavy prestava atenção nas pessoas que passavam. Sempressaesemnenhumpropósitoaparente,alcançouoseuobjetivo.

MissMarple,sentadapertodalareira,viu-oaproximar-se.

—Entãoaindaestáaqui,MissMarple.Estimomuito.

—Vouemboraamanhã—disseela.

Esse fato, de certomodo, estava implícito na sua atitude. Sentara-se bemereta,semsereclinar,talcomoagentesesentanumasaladeesperadeaeroportoou de estrada de ferro. A bagagem — Davy tinha certeza — devia estararrumada,faltandoapenasosobjetosdetoiletteearoupadedormir.

—Éofimdasminhasfériasdequinzedias—explicouela.

—Aproveitoubem,espero.

MissMarplenãorespondeuimediatamente.

—Decertomodo...sim...—Fezumapausa.

—Edeoutromodonão?

—Édifícilexplicaroquequerodizer...

—Nãoestáasenhora,talvez,muitopertodofogo?Estáumpoucoquenteaqui.Nãoquerirsentar-se...naquelecanto,talvez?

Miss Marple olhou para o canto indicado, depois olhou para o Inspetor-ChefeDavy.

—Achoqueosenhortemrazão—disseela.

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Elelheofereceuamão,apanhouabolsaeolivrodela,eainstalounocantosossegadoqueescolhera.

—Estábemassim?

—Perfeito.

—Sabeporquesugeriamudançadelugar?

—Achou... bondosamente... que ali perto do fogo estava quente demaisparamim.Alémdisso,nãoháninguémaquiparaescutaranossaconversa.

—Teráasenhoraalgumacoisaquemequeiracontar,MissMarple?

—Masporquepensouisso?

—Oseujeitoeradequemtinhaqualquercoisaparamecontar.

—Lamentotê-lodemonstradoassimtãoclaramente—disseMissMarple.—Nãoeraestaaminhaintenção.

—Bem,dequesetrata?

—Não sei se devadizer.Queroqueo senhor acredite, Inspetor, quenãogosto de me intrometer. Sou contra intromissões. Intromissões, mesmo bemintencionadas,podemcausargrandesmales.

—Entãoéisso?Compreendo.Sim,éumproblemasérioparaasenhora.

—Àsvezesagentevêpessoasfazendocoisasqueparecemimprudentes...atémesmoperigosas.Masseráquesetemodireitodeinterferir?Emgeral,não,pensoeu.

—AsenhoraestásereferindoaoCônegoPennyfather?

—OCônegoPennyfather?—MissMarplepareceumuitosurpreendida.—Não.Oh,Senhormeu,não,oassuntonãotemnadaavercomele.Ésobre...umamoça.

—Umamoça,é?Easenhoraachaqueeupossoajudar?

— Não sei — respondeu Miss Marple. — Não sei mesmo. Mas estoupreocupada,muitopreocupada.

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Papainãoinsistiu.Quedou-sealisentado,enorme,contente,oarumpoucoestúpido.Nãohaviapressa.

Ela semostrara disposta a ajudá-lo, e ele estava pronto a fazer o possívelpara auxiliá-la.Não estava particularmente interessado, é certo.Mas, por outrolado,nuncasesabia...

—A gente lê nos jornais— disseMissMarple em voz baixa e clara—essas notícias dos processos que passam pelos tribunais... jovens, crianças oumoças"necessitadasdecuidadoeproteção”.Ésóumafrasedo jargão forense,meparece,masbemquepodesignificarumacoisareal.

—Essamoçaqueasenhoramencionou...achaqueelaestáprecisandodecuidadoeproteção?

—Acho,sim.

—Sozinhanomundo?

—Não.—disseMissMarple.—Nadadisso,muitopelocontrário,sepossofalarassim.Segundotodasasaparências,elaéfortementeprotegida,muitobemcuidada.

—Pareceinteressante—dissePapai.

— Ela estava hospedada aqui no hotel, com uma tal deMrs. Carpenter,creio.Olheioregistroparaveronome.Amoçachama-seElviraBlake.

Papaiergueuosolhoscomvivaexpressãodeinteresse.

—Umagarotaadorável.Bemnovinhae,cornoeujádisse,muitoprotegida.O tutordela éumcertoCoronelLuscombe,homembemeducado, encantador.Idoso,éclaro,ereceioqueterrivelmenteinocente.

—Otutorouamoça?

—Otutor—replicouMissMarple.—Amoça,nãosei.Mascreioqueelaestáemperigo.Encontrei-aporacasoemBatterseaPark.Sentadacomumrapaznumacasadechá.

—Ah, então é isso, não é?—dissePapai.—Um indesejável, suponho.Beatnik...vigarista...bandido...

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—Um rapazmuito bonito— atalhouMissMarple.—Nãomuitomoço;trintae tantosanos,o tipodohomemqueeudiriaqueémuitoatraenteparaasmulheres,masacaradelenãomeengana.Cruel,predatória,caradegavião.

— Talvez não seja tão ruim quanto parece — disse Papai num tomapaziguador,

—Pelocontrário,épiordoqueparece.Estouconvencidadisso.Dirigeumgrandecarrodecorridas.

Papailevantouosolhosrapidamente.

—Carrodecorridas?

—Sim.Umavezouduas,vi-oestacionadopertodestehotel.

—Asenhoranãoserecordadonúmerodessecarro,recorda-se?

—Recordosim.FAN2266.Eutinhaumaprimaquegaguejava—explicouMissMarple—porissomelembrodonúmero.

Davypareciaintrigado.

—Sabequemé?—perguntouMissMarple.

—Para falaraverdade,sei—respondeuo Inspetor-Chefe lentamente.—Meiofrancês,meiopolaco.Corredormuitoconhecido,foicampeãomundialtrêsanos atrás. Chama-se Ladislaus Malinowski. E a senhora tem toda razão emalgumasdesuasopiniõesarespeitodele.Éhomemdemáreputação,noqueserefere amulheres.Querodizer, nãoé companhia adequadaparaumamocinha.Masnãoéfáciltomaralgumaprovidêncianumcasodesses.Suponhoqueelaoencontreàsescondidas,não?

—Comtodaacerteza.

—Asenhoratentoufalarcomotutor?

—Nãooconheço—respondeuMissMarple.—Sófaleicomeleumavez,quando fui apresentada por uma amiga comum.Enãome agrada a ideia de irprocurá-lo para contar mexericos. Pensei que talvez o senhor pudesse fazeralgumacoisa,

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—Posso tentar,— disse Papai.—Aliás, creio que a senhora gostará desaberqueoseuamigoCônegoPennyfatherafinalapareceu.

—Nãodiga!—MissMarplemostrou-seanimada.—Onde?

—NumlugarchamadoMiltonSt.John.

—Quecoisaestranha!Queéqueeleestavafazendolá?Elesabia?

—Aparentemente...—oInspetor-Chefeacentuouapalavra—foivítimadeumacidente.

—Queespéciedeacidente?

—Atropelado por um carro... sofreu concussão... ou então, naturalmentelevouumapauladanacabeça.

—Ah,compreendo.—MissMarplepensouumpouconaquestão.—Elemesmonãosabedenada?

— Elediz—novamenteo Inspetor-Chefeacentuouapalavra—quenãosabedenada.

—Muitocurioso.

—Nãoé?Aúltimacoisadequeelese lembraéde ter idode táxiparaaEstaçãoAéreadeKensington.

MissMarpleabanouacabeça,perplexa.

—Sei que isso acontece, emcasosde concussão—murmurou.—Eelenãodissenada...deútil?

—ResmungouqualquercoisasobreasmuralhasdeJerico.

— Josué?—arriscouMissMarple—ou arqueologia... escavações? ou...lembro-medeumapeçaantiga,daautoriadeMr.Sutro,creio...

—Edurante esta semana toda, aonortedoTâmisa, os cinemasGaumontpassaramAsMuralhasdeJerico, comOlgaRadbourneeBartLevine—dissePapai.

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MissMarpleolhouparaele,desconfiada.

—Poderia ter idoveressefilmeemCromwellRoad.Poderia tersaídodocinema às onze horas, e voltado para cá... só que, nesse caso, alguém o teriavisto...seriamuitoantesdameia-noite...

— Tomou o ônibus errado — sugeriu Miss Marple. — Qualquer coisaassim...

—Digamos que ele chegou aqui depois dameia-noite— falou Papai—poderiatersubidoparaoquartosemqueninguémovisse...Massefoiassim,queéqueaconteceuentão...eporqueteriasaídonovamentetrêshorasdepois?

MissMarplenãosabiaoquedizer.

—Aúnicaideiaquemeocorreé...oh!

Deuumsaltoaoouvirumestampidovindodarua.

—Oescapedealgumcarro—dissePapai,tranqüilizador.

— Lamento estar tão sobressaltada... estou nervosa esta noite... essepressentimentoqueagentetem...

—Dequealgumacoisavaiacontecer?Achoquenãoprecisasepreocupar.

—Jamaisgosteidofog.

—Euquerialhedizer—falouoInspetor-ChefeDavy—queasenhoramedeu uma grande ajuda. As coisas que observou aqui... coisas pequeninas...somaram-seumasàsoutras.

—Então,haviamesmoalgumacoisaquenãoandavabemnestehotel?

—Tudoandavaeandamalaqui.MissMarplesuspirou.

—Aprincípiopareciamaravilhoso...inalterado,compreende?...comoumavolta ao passado... àquela parte do passado que a gente ama e recorda comalegria.

Fezumapausa.

—Masnaverdadenãoeranadadisso.Verifiquei(acho,aliás,quejásabia

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dissoantes),queagentenãopodenuncavoltaratrás,quenãodevetentarvoltaratrás...Queaessênciadavidaéandarparadiante.Avidaénarealidadeumaruademãoúnica,nãoé?

—Maisoumenos—concordouPapai.

—Lembro-me—disseMissMarpleafastando-sedoseutemaprincipaldemaneiracaracterística—lembro-medeumaviagemquefizaParis,comminhamãe e minha avó, e de que fomos tomar chá no Hotel Elysée. E minha avó,olhandoemvolta,dissederepente:"Clara,creioquesouaúnicamulheraquiqueestádetouca!"Eeramesmo!Quandochegamosemcasa,elaembrulhoutodasassuastoucasesuascapasenfeitadasdecontas,emandoutudo...

—Paraumbazardecaridade?—perguntouPapaicomsimpatia.

—Não.Ninguémquereriaaquilonemnumbazardecaridade.Mandoutudoparauma companhia teatral, ondeopresente foi apreciadíssimo.Masdeixe-mever...—MissMarpleretomouofiodaconversa—Ondeéqueeuestava?

—Dandosuaimpressãosobreestehotel.

—Ah,sim.Parecenormal...masnãoé.Tudomisturado...genterealegentequenãoéreal.Nemsempresepodedistinguirquemérealequemnãoé.

—Gentequenãoéreal?Comoassim?

—Háaquioficiaisreformados,ehátambémhomensqueparecemoficiaisreformados mas que nunca estiveram no exército. Eclesiásticos' que não sãoeclesiásticos. E almirantes e comandantes que nunca estiveram na marinha.MinhaamigaSelinaHazy...aprincípioeumedivertiacomamaniaqueelatemde reconhecer pessoas (o que é muito natural), e que a levava a cometerfreqüentesenganos, jáqueaspessoasnãoeramquemelapensavaque fossem.Masissoaconteceutantasvezes.,.queeufiqueicomapulgaatrásdaorelha.AtémesmoRose,acamareira... tãoboazinha...maseucomeceiapensarquetalvezelatambémnãofossereal...

—Selheinteressasaber,elaéumaex-atriz.Boaatriz.Masganhaaquiumsaláriomelhordoquejamaisganhounopalco.

—Mas...porquê?

—Principalmenteparafazerpartedocenário.Podesertambémquenãoseja

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sóisso.

—Aindabemqueestoude saída—observouMissMarplecomum levearrepio.—Antesqueaconteçaqualquercoisa.

OInspetor-ChefeDavyolhou-acomcuriosidade:—Queéqueasenhoraesperaqueaconteça?

—Algumadesgraça—disseMissMarple.

—Desgraçaéumapalavramuitoforte...

—Achaqueémuitomelodramática?Mastenhocertaexperiência...Parecequeestive...tantasvezes...emcontatocomcrimesdemorte...

—Crimesdemorte?—OInspetor-ChefeDavyabanouacabeça.—Nãoestou suspeitando de crimes demorte.Vejo apenas a possibilidade de apanharalgunscriminososextraordinariamenteinteligentes...

—Nãoéamesmacoisa.Matar...odesejodematar...ébemdiferente.É...comodirei?...éumdesafioaDeus.

Elefitou-aebalançouacabeçasuavemente,tranqüilizadoramente.

—Nãohaveránenhumcrimedemorte.

Umforte estampido,mais altoqueoprimeiro, soou lá fora.E foi seguidoporumgritoeoutroestampido.

O Inspetor-Chefe Davy já estava de pé, movendo-se com agilidadesurpreendente num homem tão corpulento. Em poucos segundos atravessara aportadeentradaeestavanarua.

IIOsgritos—gritosdemulher—varavamanévoacomumanotadeterror.

O Inspetor-ChefeDavy deitou a correr por Pond Street, na direção dos gritos.Avistouvagamenteumvulto femininoencostadoaumagrade.Numadúziadepassadas alcançou amulher.Ela usavaum longo casaco clarodepeles, e seusbrilhantescabelos lourospendiamdeambosos ladosdorosto.Poruminstante,Davy julgou reconhecê-la,mas logo depois viu que era apenas umamocinha.

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Estendidonacalçada,aospésdajovem,estavaocorpodeumhomem,fardado.OInspetor-ChefeDavyoreconheceu.EraMichaelGorman.

QuandoDavyseaproximou,amoçaagarrou-seaele,trêmuladacabeçaaospés,gaguejandoretalhosdefrases:

—Alguém tentou me matar... alguém... atiraram emmim... se não fosseele...—eapontouparaovultoimóvelaseuspés.—Elemeempurrouparatrásepostou-senaminha frente... aíveioo segundo tiro... eelecaiu...Salvouminhavida.Achoqueestáferido...muitoferido.,.

O Inspetor-ChefeDavydobrouum joelho e sacoudobolso a lanterna.Oaltoporteiroirlandêstombaracomoumsoldado.Oladoesquerdodasuatúnicamostravaamamanchaúmidaquesetornavacadavezmaisúmidaàmedidaqueosangue se embebia no pano. Davy soergueu-lhe uma pálpebra, apalpou-lhe opulso.Afinailevantou-se.

—Acertaramemcheio—disseele.

Amoçasoltouumgritoagudo,—Querdizerqueeleestámorto?Oh,não,não!Elenãopodeestarmorto!

—Quemfoiqueatirounasenhora?

—Nãosei...Eutinhadeixadoomeucarronaesquinaeiatateando,pegadaàsgrades...iaparaoHotelBertram's.Então,derepenteouviumtiroeumabalapassou raspando pelo meu rosto. Aí. ele... o porteiro do Bertram’s... veiocorrendopeiaruanaminhadireção,emeempurrouparadetrásdele.Ouvientãooutrotiro,creio...creioquequematiroudeviaestarescondidoalinaquelaárea...

O Inspetor-Chefe Davy olhou para onde ela apontava. Naquele lado doHotelBertram'shaviaumaáreaantiga,abaixodoníveldarua,comumportãoaoqualsechegavadescendoalgunsdegraus.Comooportãodavaapenasparaunsquartos de depósito, era pouco usado.Mas umhomempoderia esconder-se alicomgrandefacilidade.

—Asenhoranãoviuohomem?

—Nãovidireito.Passoupormimcomoumasombra.Ofog estavamuitoespesso.

Davybalançouacabeçaeamoçacomeçouachorarhistericamente.

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—Masquemhaveriadequerermematar?Porquequeremmematar?Jáéasegundavez.Nãocompreendo...porquê?

Comumbraçoemvoltadamoça,oInspetor-ChefeDavyremexeunobolsocomaoutramão.

Asnotasestridentesdeumapitodepolíciapenetraramnonevoeiro.

IIINasaladeentradadoHotelBertram's,MissGorringelevantarabruscamente

osolhosdobalcão.

Umoudoishóspedesfizeramamesmacoisa.Osmaisvelhosemaissurdoscontinuaramimpassíveis.

Henry,queiadepositandonumamesaumcopodeconhaquevelho,parounomeio,comocoponamão.

MissMarpleempertigou-se,segurandoosbraçosdapoltrona.Umalmirantereformadodisseemtomcategórico:

—Acidente!Colisãodecarrosnofogcomcerteza.

As portas de vaivém escancararam-se, dando passagem a um enormepolicial,quepareciamuitomaisvolumosodoquesepodiaimaginar.

Vinhaamparandoumamoça,metidanumcasacodepelesdecorclara.Elaparecia quase incapaz de andar. O policial, um pouco embaraçado, olhou emtornocomosepedisseajuda.

Miss Gorringe saiu de trás do balcão e aproximou-se, preparada paraenfrentar a situação. Mas nesse momento o elevador desceu. Dele saiu umamulheralta,eamoça,libertando-sedoapoioquelhedavaopolicial,atravessouasalanumacarreirafrenética.

— Mamãe! — gritou ela. — Ohmamãe, mamãe... — e atirou-se,soluçando,nosbraçosdeBessSedgwick.

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21

O INSPETOR-CHEFE DAVY reclinou-se na cadeira e olhou para as duasmulheres sentadas diante dele. Passava da meia-noite. Funcionários da políciatinhamchegadoepartido.Haviamaparecidomédicos,técnicosemdatiloscopia,uma ambulância para remover o cadáver; e agora tudo se reduzia àquela únicasaletareservadaaostrabalhosdaleipeloHotelBertram's.

OInspetor-ChefeDavyocupavaumdos ladosdamesa.BessSedgwickeElvira, o outro lado. Perto da parede sentava-se discretamente um policial,escrevendo.OSargento-detetiveWadellestavanumacadeirajuntoàporta.

Papai fitavapensativo as duasmulheres.Mãe e filha.Notava entre ambasuma forte semelhança superficial.Compreendia por que, dentro dofog, tomaraporummomentoElviraBlakeporBessSedgwick.Masagora,olhandoparaasduas, atentava mais para os pontos de diferença do que para os pontos desemelhança. Elas não se pareciam senão no colorido; e, contudo, persistia aimpressão de que tinha ali a versão negativa e a versão positiva da mesmapersonalidade.TudoemBessSedgwickerapositivo.Suavitalidade,suaenergia,sua atração magnética. Davy admirava Lady Sedgwick. Sempre a admirara.Admiraralheacoragemesempreseemocionaracomassuasfaçanhas;lendoosjornaisdedomingomuitasvezesdissera:"Destavezelanãoconseguesesafar"einvariavelmente ela se safava! Julgara impossível que ela chegasse ao fim dajornada,eelachegaraaofimdajornada.Admiravasobretudoaindestrutibilidadedaquelamulher.Elasofreráumacidenteaéreo,váriasbatidasdeautomóvel,porduasvezescaíradesastrosamentedocavalo,—masaofimdetudo,estavailesa.Vibrante, vivaz, uma personalidade que não se poderia ignorar.Algum dia, éclaro,seriavencida:todamágicaterminatendoumfim.EosolhosdeDavyiamdafilhaàmãe.Davam-lhequepensar,asduas.Muitolhedavamquepensar.

EmElviraBlaketudoeradirigidoparadentro.BessSedgwickatravessaraavida impondo-lhe a sua vontade. Elvira, supunha ele, tinhamaneira diversa deenfrentar a vida. Submetia-se. Obedecia. Sorria concordando, mas, por trás,escapuliaporentreosdedosdequempensavaprendê-la."Sonsa",diziaconsigoDavy,fazendoumaavaliaçãogeraldosfatos."INaosabeagirdeoutromodo.Éincapazdeenfrentarascoisas,deseimpor.Ehádeserporissoqueaspessoasquecuidamdelajamaistiveramamínimaideiadoseurealprocedimento".

EleprocuravaadivinharoqueestariaElvirafazendoaoandarfurtivamentepela rua, emdireção aoHotelBertram's tão tarde numanoite de nevoeiro. Iria

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fazer-lhe essapergunta, sem rodeios.Provavelmente a respostaque iria recebernão seria averdadeira. "Éassim,pensouele, que apobremenina sedefende."Viera até ali para se encontrar com amãe, ou para procurar amãe?Qualquerdessashipóteseseraperfeitamentepossível,maselenãoacreditavaquefosseessaaexplicaçãoreal.Nemporummomento.Pensava,emvezdisso,nograndecarroesporte escondido na esquina, o carro com a chapa FAN 2266. LadislausMalinowskideviaandarpelosarredores,jáqueocarrodeleestavaali.

—Bem—dissePapaidirigindo-seaElvira,nasuamaneiramaisbondosaepaternal—comoestásesentindoagora?

—Estoumuitobem—respondeuElvira.

—Ótimo.Gostariaqueme respondesseaalgumasperguntas, se lhe fossepossível, porque comumente o tempo é importante nesses casos.Dois tiros lheforamdirigidoseumhomemfoimorto.Nósqueremosobteromáximodepistaspossívelquenoslevemàpessoaqueomatou.

—Voudizeraosenhoroquesei,mastudoaconteceutãoderepente!Eagentenãopodevernadadentrodonevoeiro.Nãotenhoamínimaideiadequempodetersido...nemqueaspectotinha.Issoéquetornatudotãoassustador.

—A senhorita disse que aquela era a segunda vez que tentavammatá-la.Querdizercomissoquejáhaviamatentadoantescontraasuavida?

— Eu disse isso? Não me lembro. — Os olhos de Elvira mexiam-se,inquietos.—Nãocreioterditoisso.

—Ah,masdisse,sabequedisse—insistiuPapai.

—Creioqueerasó...sóhisteriaminha.

—Não— replicouDavy.—Não creio que fosse.Creio que a senhoritaqueriadizeraquilomesmoqueestavadizendo.

—Comcertezaeuestava imaginandocoisas— teimouElvira; seusolhosvagueavam,denovo.

BessSedgwickmexeu-seefaloucomcalma:

—Omelhorévocêcontaraele,Elvira.

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Elviraatirouàmãeumolharrápido,inquieto.Papaitranqüilizou-a:

—Nãoprecisasepreocupar.Nósdapolíciasabemosperfeitamentequeasmoças jamais contam tudo às mães ou aos tutores. Não levamos essas coisasmuitoasério,masprecisamosconhecê-las,porque,vejabem,ajudam.

BessSedgwickdisse:

—FoinaItália?

—Foi—respondeuElvira.

Papai interveio:—Foiondea senhorita estudou,não?escolaoucursodeaperfeiçoamento,ouqueoutronomedêemaissohojeemdia.

—Foi.EuestiveinternadanaescoladaContessaMartinelli.Éramosumasdezoitoouvintemoças.

—Easenhoritapensaquealguémtentoumatá-la.Comofoiisso?

—Bem,mandaram-meumagrandecaixadechocolatesebombons;comacaixa vinha um cartão, escrito em italiano, numa letra muito enfeitada. Dizia,naquelejeitodeles:"ÀbelíssimaSignorina",oucoisaparecida.Eminhasamigase eu... bem... rimos um pouco e ficamos imaginando quem teria mandado opresente.

—Veiopelocorreio?

—Não.Nãopoderiatervindopelocorreio.Simplesmenteapareceunomeuquarto...alguémdevetê-lopostolá.

—Compreendo. Provavelmente esse alguém subornou umdos criados.EnaturalmenteasenhoritanãocontounadaàtalContessanão-sei-de-quê.

UmlevesorrisoapareceunorostodeElvira.

—Não,não.Claroquenãocontamos.Dequalquerforma,abrimosacaixa,e os chocolates eram deliciosos; de diversas qualidades, mas havia alguns decreme de violetas. É um tipo de chocolate que tem por cima uma violetacristalizada.Meusprediletos.Deformaquelogodesaídacomiumoudoisdosdecremedevioletas.Emaistarde,ànoite,passeimuitomal.Nãopenseiquefossemoschocolates,penseiquetalvezfossealgumacoisaqueeuhouvessecomidono

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jantar.

—Ninguémmaisadoeceu?

—Não.Sóeu.Bem,passeimuitomal,masno fimdodia seguinte jámesentia melhor. Uns dois dias depois comi outro dos mesmos chocolates eaconteceuamesmacoisa.ConverseicomBridgetarespeito...Bridgetéaminhamelhor amiga. Examinamos os chocolates e descobrimos que os de creme devioletastinhamumburaquinhonofundo,porondeohaviamenchidonovamente;pensamosporissoquealguémpuseravenenodentro,esóestavamenvenenadososdecremedevioletasparaqueeufosseaúnicaatomaroveneno.

—Ninguémmaisficoudoente?

—Não.

—Eassim, provavelmenteninguémmais comeuos que tinhamcremedevioletas?

—Sim, creio que ninguém comeu.O senhor compreende, o presente eraparamim, e elas sabendoque eugostavados chocolatesdevioletas, deixavamtodosparamim.

—Mas esse camarada, fosse ele quem fosse, assumiu um risco sério—dissePapai.—Opessoaltodopoderiatersidoenvenenado.

— É absurdo — disse asperamente Lady Sedgwick. — Completamenteabsurdo.Nuncasoubedenadatãoestúpido.

O Inspetor-ChefeDavy fezum ligeirogesto comamão.—Por favor—disse ele, voltando-se em seguida para Elvira. — Isso me parece muitointeressante,MissBlake.Eapesardetudo,nãocontounadaàContessa?

—Não,nãocontamos.Elateriafeitoumbarulhodanado.

—Equefoiquefizeramcomoschocolates?

—Atiramos fora. Eram uns chocolatesmaravilhosos— acrescentou comumarzinhodepena.

—Asenhoritanãoprocuroudescobrirquemostinhaenviado?

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Elvirapareceuembaraçada.

—Bem,osenhorcompreende,penseiemGuido.

—Sim?—disseanimadooInspetor-ChefeDavy.—EqueméGuido?

—Oh,Guido...—Elviradeteve-se,olhouparaamãe.

—Nãosejatola—disseBessSedgwick.—FaleaoInspetor-ChefesobreGuido, seja ele quem for. Na sua idade, todamocinha tem umGuido em suavida.Encontrou-olá,não?

— Sim. Quando fomos à ópera. Ele falou comigo no teatro. É muitosimpático, atraente. Costumava vê-lo às vezes quando íamos às aulas. Ele mepassavaunsbilhetinhos.

—Eeuimagino—interrompeuBessSedgwick—quevocêinventouumaporçãodementiras,entrouemcombinaçãocomalgumasamigaseconseguiusaireencontrar-secomele,nãofoi?

Elvirapareciaaliviadaporaquelaabreviaçãodaconfissão.

—Foi.Bridgeteeuàsvezessaíamosjuntas.EàsvezesGuidoconseguia...

—QualéosobrenomedeGuido?

—Nãosei—respondeuElvira.—Elenuncamedisse.OInspetor-ChefeDavysorriuparaamoça,

—Quer dizer que a senhorita não nos dirá?Não importa. Provavelmentepoderemosdescobrir comoéqueele sechama,mesmosemo seuauxílio, seainformaçãofornecessária.Masporquefoiqueasenhoritapensouqueorapaz,quepresumivelmentelhequeriabem,desejavaenvenená-la?

— Oh, porque ele costumava fazer ameaças desse tipo. Isto é, quandobrigávamos,oquedevezemquandoacontecia.Ele traziaalgunsamigos,eeufingia gostarmais dos amigos do que dele, e ele ficava furioso.Dizia que eramelhor eu ter cuidado com o que fazia.Não podia deixá-lo de lado semmaisaquela!Queseeunãolhefossefiei,elemematava!Eupensavaqueeleestavasendoapenasmelodramáticoeteatral.—Elvirasorriusúbitaeinesperadamente.—Mastudoeraengraçado.Nãoacreditavaquefosserealouasério.

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—Bem—observouoInspetor-ChefeDavy—nãomepareceprovávelqueumrapazcomoessefosseenvenenarchocolatesparalhemandar.

—Eutambémnãoacredito,realmente—disseElvira,—masdevetersidoele, porque não podia ser mais ninguém. Fiquei muito preocupada. Depois,quandovolteiparacá,recebiumbilhete...—hesitou.

—Queespéciedebilhete?

—Veionumenvelope,eestavaescritoemletradeimprensa.Dizia:"Tenhaandado.Alguémquermatá-la."

AssobrancelhasdoInspetor-ChefeDavyergueram-se.

— Verdade? É muito curioso, muito curioso mesmo. E isso deixou-apreocupada.Ficoucommedo?

— Fiquei. Comecei... comecei a pensar quem poderia querer me tirar docaminho.Foiporissoqueprocureisabersenaverdadeeueramesmomuitorica.

—Continue.

—Eoutrodia,emLondres,aconteceumaisumacoisa.Euestavaesperandoometrô e havia uma porção de gente na plataforma. Tive a impressão de quealguémtentoumeempurrarparaotrilho.

—Minhafilha!—exclamouBessSedgwick.—Nãoexagere!

Mas Papai repetiu o seu leve gesto de mão. E Elvira disse, como se sedesculpasse:

—Sim,esperoquetenhaimaginadoissotudo...masnãosei...depoisdoqueaconteceuestanoite,pareceque tudodevesermesmoverdade,nãoparece?—Voltou-sede repente paraBessSedgwick, urgindo:—Minhamãe!A senhoradeve saber. Será que alguém quer me matar? Existirá alguém? Terei alguminimigo?

—Claroquevocênãoteminimigonenhum—respondeuBessSedgwick,impaciente.—Nãosejatola.Ninguémquermatarvocê.Porquê?

—Entãoquematirouemmimestanoite?

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— Naquelefog— disse Bess Sedgwick— podem ter tomado você poroutrapessoa.Épossível,nãoachao senhor?—continuouela,virando-separaPapai.

—Sim,pensoqueémuitopossível—admitiuoInspetor-ChefeDavy.

Bess Sedgwick olhava fixamente o Inspetor-Chefe. Ele teve a vagaimpressãodequeos lábiosdeBess articulavammudamente aspalavras: "Maistarde".

—Bem,—disseeleentão,animado—émelhorvoltarmosaos fatos.Deonde é que a senhorita vinha esta noite?Que é que andava fazendo, a pé, emPondStreet,numanoitedetalnevoeiro?

—EutinhaidoaumaauladeartenaGaleriaTate,hojepelamanhã.Depoisfui almoçar comminhaamigaBridget, quemora emOnslowSquare.Fomosaumcinemaequandosaímosjáhaviafog...bemescuroeficandocadavezpior.Entãoeupenseiqueeramelhornãoirparacasadecarro.

—Asenhoritasabedirigir?

—Sei.Tirei carteira demotorista noverãopassado.Mas aindanãodirijomuitobemedetestoguiaremnevoeiro.

Por isso, amãe deBridget disse que eu podia passar a noite lá; então eutelefoneiàprimaMildred,comquemmoro,emKent...

Papaibalançouacabeça.

—...edisseaelaqueeuiapassaranoiteaqui.Elaachouqueeraumaboaideia.

—Equeaconteceuemseguida?—indagouDavy.

—Derepenteofogclareou.Osenhorsabecomoofogéirregular.Resolvientão ir de carro para Kent. Despedi-me de Bridget, e saí.Mas aí o nevoeirorecomeçou,eeunãogostei.Entreinumtrechodefogmuitoespessoemeperdi,semsaberondeestava.Passadoalgumtempo,descobriqueestavaemHydeParkCorneredissecomigo:"NãopossomesmoirparaKentnessascondições".NocomeçopenseiemvoltaràcasadeBridget,masaímelembreidequemeperderaantes.Nisso,compreendiqueestavapertinhodestehoteltãosimpático,paraondeotioDerektinhametrazido,quandovolteidaItália,epensei:"Vouparalá,tenho

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certezadequemearranjarãoumquarto".Erealmentefoimuitofácil,descobriumlugarparaestacionai:ocarroevimapépelaruaatéohotel.

—Encontroualguém,ououviupassosdealguémporperto?

—Éengraçadoosenhordizerisso,porquejulgueiterouvidoospassosatrásdemim.ClaroquedevehavermilhõesdepessoasandandoemLondres.Sóquenumfogcomoesse,agenteficanervosa.Espereieescutei,masaípareideouvirospassosepenseiqueeraimaginaçãominha.Jáentãoestavabempertodohotel.

—Eaí?

—Aí,derepente,dispararamumtiro.Comojádisseaosenhor,pareciaqueabalatinhapassadorenteàminhaorelha.Oporteiroqueestásemprenacalçadadohotel,veiocorrendonaminhadireção,meempurrouparatrásdeleeentão...entãoveioooutrotiro...Ele...caiueeugritei.—Elviratremia.Amãelhedisseemvozbaixaefirme:

—Calma,menina. Fique calma.—Era a voz queBess Sedgwick usavacomos seuscavalos, eque semostrouperfeitamenteeficazcoma filha.Elvirapiscou,endireitou-seeseacalmou.

—Muitobem—falouBess.

—Eaío senhorchegou—disseElviraparaDavy.—Apitouemandouque os policiaisme trouxessem para o hotel. E assim que entrei vi... viminhamãe.—Virou-seeolhouparaBessSedgwick.

—E isso nos põemais oumenos atualizados—disse Papai, ajeitando ocorpanzilnacadeira.

—ConheceumhomemchamadoLadislausMalinowski?

—perguntouelenum tomnormal,despreocupado, semnenhuma inflexãoespecial.Nãoolhavaparaamoça,maspercebeu,jáquetinhaosouvidosatentos,queelasubitamenteengoliraemseco.OsolhosdePapainãosefixavamnafilhaesimnamãe.

—Não,—respondeuElvira—demorandoumtantinhoparafalar—não,nãoconheço.

—Oh,penseiqueoconhecia.Penseiqueele talvezhouvesseestadoaqui

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estanoite.

—Oh,eporquê?

—Bem,ocarrodeleestáaqui—informouPapai.—Porissopenseiqueeletambémestivesse.

—Eunãooconheço—repetiuElvira.

—Enganomeu,então.Masasenhoraoconhece,não?

—elevolveuacabeçaparaBessSedgwick.

—Naturalmente— respondeuBess.—Conheço-ohámuitos anos.—Eacrescentou,sorrindodeleve:—Éummaluco.Guiacarrocomoumanjoouumdiabo...qualquerdiaquebraopescoço.Sofreuumdesastreterrívelháumanoemeio.

—Sim,lembro-medeterlidoarespeito—dissePapai.

—Aindanãovoltouacorrer,oujá?

—Não,aindanão.Talveznãocorranuncamais.

—Acha que eu já posso ir para a cama?— perguntou Elvira, em tomqueixoso.—Estou...estouhorrivelmentefatigada.

— Claro. Deve estar — falou Papai. — Contou-nos tudo que podiarecordar?

—Oh,sim.

—Voucomvocê—disseBess.Mãeefilhasaíramjuntas.

—Elaoconhecemuitobem—observouPapai.

—Osenhoracha?—perguntouoSargentoWadell.

— Eu sei que conhece. Faz um dia ou dois que tomou chá com ele emBatterseaPark.

—Comoéqueosenhordescobriu?

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— Uma senhora idosa me contou... muito mortificada. Não achava quefosseumamigoparaumamocinha.Edefatonãoé.

—Especialmenteseeleeamãe...—Wadellinterrompeu-se,delicadamente.—Éoboatoquecorre...

—Sim.Talvezsejaverdade,talveznãoseja.Provavelmenteé.

—Nessecaso,qualdasduaselequer?Papaiignorouaperguntaedisse:

—Queroqueoapanhem.Dequalquerjeito.Ocarrodeleestáaqui... logoaodobraraesquina.

—Achaqueeletalvezestejahospedadonestehotel?—Nãocreio.Issonãoseencaixarianoquadrogeral.

Nãoédesesuporqueestejaaqui.Seveiocá,foiparaencontraramoça.Eela, evidentemente, veio para o encontrar.Abriu-se a porta e Bess Sedgwickreapareceu.

—Voltei—disseela—porquequeriafalarcomosenhor.

Assinaloucomoolharosoutrosdoishomens.

—Poderia falar como senhor a sós? Já lhedei todas as informaçõesquetenho;masqueriaagoraumapalavrinhacomosenhoremparticular.

—Nãovejonenhumimpedimento—disseoInspetor-ChefeDavy.Fezumgesto com a cabeça e o jovem detetive apanhou o seu livro de notas e saiu;Wadellacompanhou-o.—Então?—indagouoInspetor-Chefe.

LadySedgwicksentou-sedenovodefrontedele.

— Aquela história idiota a respeito dos chocolates envenenados, é umdisparate—disseela.—Absolutamenteridícula.Nãoacreditoquenadadaquilotenhaacontecido.

—Nãoacredita,eh?

—Osenhoracredita?

Papai abanou a cabeça, em dúvida.—Acha que sua filha inventou tudo

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aquilo?

—Acho.Masporquê?

—Bem,seasenhoranãosabeporque,comoéqueeuheidesaber?Elaésuafilha.Édepresumirqueasenhoraaconheçamelhordoqueeu.

—Eunãoaconheço,demodonenhum—explicouBess,comamargura.—Nãoavejonem tenhoomenor contato comeladesdeo tempoemqueelatinhadoisanosdeidade...quandofugidemeumarido.

— Sim, sei de tudo isso e acho muito curioso. A senhora sabe, LadySedgwick,que emgeral os tribunaisdão àmãea custódiado filhopequenino,quando ela a solicita... mesmo quando é a parte culpada. Quer dizer que asenhoranãosolicitouacustódiadamenina?Nãoaquis.

—Acheique...seriamelhornãopedir.

—Porquê?

—Julgueiquenãoseriaseguro...paraacriança.

—Pormotivosmorais?

—Não.Pormotivosmoraisnão;adultério,atualmente,émuitocomum.Ascriançastêmdesaberdisso,têmdecrescercomisso.Não.Ocasoéqueeunãosouumapessoaqueofereçasegurança.Avidaqueeu levonãoseriaumavidaseguraparaela.Agentenãopodeescolher comoéquenasce, e eunasciparaviver perigosamente. Não gosto de respeitar leis nem gosto de convenções. Epensei que seriamelhor para Elvira, que ela seriamais feliz se recebesse umaeducaçãoinglesaconvencional.Protegida,cuidada...

—Massemoamordamãe?

—Penseiqueseelaaprendesseameamar,issosólhetrariatristezas.Oh,osenhortalveznãomeacredite,maseraoqueeusentia.

—Compreendo.Aindapensaqueteverazão?

—Não—respondeuBess.—Nãopenso.Achoagoraquetalveztenhameenganadoredondamente.

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—AfinalsuafilhaconheceLadislausMalinowski?

—Tenhocertezadequenãooconhece.Elamesmadisse;osenhorouviu.

—Sim,ouvi.

—Eentão?

— A senhora sabe que ela estava assustada, sentada aqui. Na nossaprofissãoaprendemosareconheceromedoquandonosdefrontamoscomele.Eela estava com medo... por quê? Chocolates, ou não, o fato é que atentaramcontraasuavida.Ahistóriadaestaçãodometrôpodeserverdadeira...

—Eraridícula.Comoumromancepolicial...

— Talvez, mas essas coisas acontecem, Lady Sedgwick. E maisfreqüentementedoque a senhora imagina.Podemedar alguma ideia dequempoderiaquerermatarasuafilha?

—Ninguém!Absolutamenteninguém!

Bessfaloucomveemência.

OInspetor-ChefeDavysuspiroueabanouacabeça.

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22

OINSPETOR-CHEFEDAVYesperoupacientementequeMrs.Melfordacabassede falar. Fora uma entrevista singularmente improdutiva. A prima Mildredmostrara-se incoerente, incrédulae,demodogeral,desmiolada.PelomenoseraessaaopiniãoparticulardePapai. Informaçõesa respeitodasboasmaneirasdeElvira, do seu gênio meigo, dos problemas que tinha com os dentes, dasdesculpas esquisitas que dava ao telefone, faziam-na alimentar sérias dúvidasquanto a Bridget: seria a amiga adequada para Elvira? E todos esses temashaviam sido apresentados ao Inspetor-Chefe Davy num bolo apressado. Mrs.Melford não sabia de nada, não vira nada e, aparentemente, deduzira muitopouco.

Umbreve telefonemaao tutor deElvira, oCoronelLuscombe, fora aindamais improdutivo, embora felizmente, menos verboso. — Mais macaquinhoschineses — murmurou Papai para o sargento, ao largar o fone. — Não vermaldade,nãoouvirmaldade,nãodizermaldade.

—Oproblemaéque todomundoque temqualquercoisaavercomessamenina é gente boa demais... se você entende o que quero dizer. Pessoasexcelentesquenãosabemnadaacercadomal.Diferentesdavelhaminhaamiga.

—AsenhoradoHotelBertram's?

— Ela, sim. Passou uma longa vida a observar o mal, imaginar o mal,suspeitaromaleaceitarocombatecomomal.VejamosagoraoquenostemadizeraamiguinhaBridget.

AsdificuldadesdessaentrevistaforamrepresentadasdocomeçoaofimpelamãedeBridget.EparaconseguirconversarcomBridgetsemassistênciadamãe,precisouoInspetor-ChefeDavyempregartodaasuaeficiênciaecapacidadedelisonja. Deve-se admitir, aliás, que ele foi muito ajudado nisso pela própriaBridget.Depois deumcerto númerodeperguntas e respostas estereotipadas, eexpressõesdehorrordapartedamãedeBridgetaoescutarcomoElviraporumtriznãomorrera,Bridgetdisse:

—Olhe,mamãe,estánahoradareuniãodoseucomitê.Vocêdissequeeramuitoimportante.

—Oh,Senhormeu—gemeuamãedeBridget.

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—Vocêsabequesemasuapresença,elasfazemamaiorconfusão.

—Comtodaacerteza!Mastalvezsejaminhaobrigação...

— Absolutamente, minha senhora — disse o Inspetor-Chefe Davy,carregandonojeitobondosoepaternal.—Asenhoranãoprecisasepreocupar.Podesair.Játermineicomascoisasimportantes,asenhoramedissetudodequeeu precisava saber. Só tenho a fazer mais uma ou outra pergunta de rotina, arespeito de pessoas da Itália, a que talvez sua filha, Miss Bridget, possaresponder.

—Bem,sevocêachaquesearranja,Bridget...

— Oh, me arranjo sim, mamãe — tornou Bridget. Afinal, com grandeespalhafato,amãedeBridgetsaiuparaareuniãodocomitê.

—Puxa vida!— suspirouBridget ao voltar, depois de fechar a porta dafrente.—Comosãodifíceisasmães!

—Éoqueouçodizer—comentouoInspetor-ChefeDavy»—Inúmerasmocinhastêmproblemascomasmães.

— Pois eu pensava que o senhor fosse dizer o contrário — observouBridget.

—Realmente—concordouDavy.—Masomeupontodevistanãoéodasmoças.Agora,podemecontarumpoucomais?

-EunãopodiafalarfrancamentediantedeMamãe—explicouBridget.—Mas sinto, é claro, que é realmente importante que o senhor fique o melhorinformadopossívelarespeitodissotudo.SeiqueElviraandavapreocupadíssimacomalgumacoisa, ecommedo.Nãoqueriaadmitirqueestavaemperigo,masestava.

—Foiissooqueeupensei.Evidentementenãoquisfazermuitasperguntasnafrentedesuamãe.

—Sim—disseBridget—nãoqueremosquemamãeouçaessascoisas.Elaseimpressionacomfacilidade,elogosaiporaícontandotudoatodoomundo.EseElviranãodesejaqueessascoisasseespalhem...

—Primeiroquetudo—disseoInspetor-ChefeDavy—querosaberoque

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houvenaItáliacomumacaixadechocolates.Peloqueentendi,mandaramparaElviraumacaixadechocolatesquetalvezestivessemenvenenados.

Bridget arregalou os olhos.—Envenenados!—disse ela.—Não.Creioquenão.Pelomenos...

—Houvealgumacoisa?

—Sim.Mandaramuma caixa de chocolates, Elvira comeu uma porção epassoumalanoite.Muitomal.

—Masnãosuspeitoudeveneno?

— Não. Pelo menos... ah, sim, ela disse que alguém estava querendoenvenená-la,enósexaminamososchocolatesparaversetinhaminjetadoalgumacoisaneles.

—Etinham?

—Não,nãotinham.Pelomenosnãodescobrimosnada.

—Mas talvez a sua amiga,Miss Elvira, estivesse convencida de que oschocolatesestavamenvenenados.

—Bem,talvez...maselanãofaloumaisnisso.

—Masacreditaqueelaestavacommedodealguém?

—Nãopenseinissonomomento,nemnoteinada.Foisóaqui,maistarde.

—Equemedizdessehomem,dessetalGuido?Bridgetcomeçouarir:

—EleestavagamadoporElvira.

—EasenhoritaeElviracostumavamencontrá-loemalgunslugares?

—Bem,nãomeimportodecontaraosenhor—disseBridget.—Afinaldecontas o senhor é a polícia. Para o senhor essas coisas não têm importância, eespero que compreenda.A Contessa Martinelli era horrivelmente rigorosa, oupensavaqueera.Enaturalmentenóstambémtínhamososnossosmacetes...Umaportodas...osenhorsabecomoé.

—Epregavamasmentirasquecabiam,não?

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—Bem, receio que sim—concedeuBridget.—Mas que é que a gentepodefazer,quandoosoutrossãotãodesconfiados?

— E assim vocês se encontravam com Guido e tudo o mais. E elecostumavaameaçarElvira?

—Nãocreioquefalassesério.

—Entãotalvezhouvessealgumaoutrapessoacomquemelaseencontrava?

—Ah,isso...bem,nãosei.

—Conte,porfavor,MissBridget.Talvez...sabe?talvezsejavital.

— Sim, compreendo. Bem, haviaalguém. Não sei quem era, mas haviamais alguémdequemela gostavamuito.Para ela era coisamuito séria.Querodizer,eraumacoisamuitoimportante.

—Elacostumavaencontrá-lo?

—Achoquesim.Querodizer,eladiziaqueiaencontrar-secomGuido,masnemsempreeracomGuido.Eracomesseoutrohomem.

—Nãotemnenhumaideiadequemfosse?

—Não.—Bridgetpareciaumpoucoinsegura.

—Nãoseriaumcorredordeautomóvel,chamadoLadislausMalinowski?

Bridgetficouboquiaberta:

—Entãoosenhorsabe?

—Faleicerto?

—Sim...achoquesim.Elatinhaumafotografiadele, tiradadeumjornal.Guardava-adebaixodasmeias.

—Masissonãopodiaserapenasumentusiasmodefã?

—Bem,podiaser,masnãocreioquefosse.

—AsenhoritasabeseelaseencontroucomeleaquinaInglaterra?

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—Nãosei.Olhe,nãoseimesmooqueelatemfeitodesdequechegoudaItália.

—ElaveioaLondresparairaodentista—lembrou-lheDavy.—Ouéoque eladiz.Emvezde ir aodentista, veioprocurá-la aqui.E telefonouaMrs.Melfordcomumahistóriaarespeitodeumaantigagovernanta.

Bridgetdeuumarisadinha.

— Isso eramentira, não era?—disse sorrindo o Inspetor-Chefe.—Paraondeelafoimesmo?

Bridgethesitou,depoisdisse:—FoiàIrlanda.

—FoiàIrlanda?Porquê?

—Nãoquismedizer.Garantiuqueprecisavadescobrirumacoisa.

—Esabeparaondeelafoi,naIrlanda?

—Nãoseibem.Mencionouumnome.Ballynãoseioquê.Ballygowlan,senãomeengano.

—Compreendo.EntãotemcertezadequeelafoiàIrlanda?

—Fuilevá-laaoaeroportodeKensington.ElaviajoupelaAerLingus.

—Evoltouquando?

—Nodiaseguinte.

—Porviaaérea?

—Sim.

—Temcertezaabsolutadequeelavoltouporviaaérea?

—Bem...suponhoquefoi.

—Comproupassagemdeidaevolta?

—Não.Nãocomprou,lembro-me.

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—Entãopoderiatervoltadoporoutrotransporte,nãoémesmo?

—Sim,creioquesim.

—Poderia,porexemplo,tervoltadopelaIrishMail?

—Elanãomedisse.

—Mastambémnãodissequevoltaradeavião,disse?_Não—concordouBridget.—Masporquevoltariaeladenaviooude trem,emvezdevoltardeavião?

—Bem,seelahouvessedescobertooquepretendiasaber,enãotinhaondeficar,talvezpensassequeseriamaisfácilvoltarpelotremnoturno.

—É,talvez.

Davyfezumarderiso.

—Achoquevocês,moçasdehoje,nãoimaginamquesepossaviajarsenãoporviaaérea,nãoé?

—É,achoquesim.

—Dequalquerforma,elavoltouparaaInglaterra.Eentão,queaconteceu?Veioparacá,oulhetelefonou?

—Telefonou.

—Aquehoras?

—Oh,pelamanhã.Devetersidopelasonzehoras,creio.

—Equefoiqueeladisse?

—Bem,elasófezperguntarsetudoestavaemordem.

—Eestava?

— Não, porque, imagine, Mrs. Melford tinha tocado para cá e mamãeatendeuaotelefone.Ascoisasseencrencarameeunãosabiaoquedizer.EntãoElvira.disse que não viria a Onslow Square, mas que telefonaria para a primaMildredearranjariaumahistóriaqualquer.

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—Eésóissoqueasenhoritarecorda?

—Ésó—retrucouBridget,fazendocertasrestriçõesmentais.Pensava,porexemplo,emMr.Bollardenapulseira.EstavaaíumacoisaqueelanãocontariaaoInspetor-ChefeDavy.Papaisabiaperfeitamentequealgumacoisa lheestavasendo ocultada; restava-lhe esperar que tal coisa não fosse importante para oinquérito.Tornouaperguntar:

—Achaqueasuaamigaestavacommedodealguémoudealgumacoisa?

—Acho,sim.

—Elalhefalounisso,ouasenhoritafalounissoaela?

—Ah,euperguntei semrodeios.Aprincípioeladissequenão,mas logoconfessouqueestavacommedo.Eeuseiqueelaestavamesmo—prosseguiuviolentamenteBridget»—Elaestavaemperigo.Esabiadissomuitobem.Masnãoseiporque,nemcomo,nemnadaarespeito.

—Sua certezaquanto à realidadedoperigo firmou-senaquelamanhã emqueelavoltoudaIrlanda?

—Sim.Foiaíquetivecerteza.

—NamanhãemqueelapoderiatervoltadopelotremdaIrishMail?

—Nãoachoprovávelqueelatenhavoltadodetrem.Porqueosenhornãoperguntaaela?

—Acabarei perguntando, provavelmente.Mas não quero chamar atençãoparaesse tópico.Porenquanto.Só iria comcerteza, aumentaroperigoqueelaestácorrendo.

Bridgetarregalouosolhos.

—Queéqueosenhorquerdizer?

—Asenhoritatalveznãoselembre,MissBridget,masfoinaquelanoite...ouantes,naquelamadrugada,quesedeuoassaltoaotremdaIrishMail.

—OsenhorquerdizerqueElviraestavametidanissoenuncamedisseumapalavraarespeito?

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—Concordoqueépoucoprovável—dissePapai.—Masestivepensandoque ela talvez tenha visto alguma coisa ou alguma pessoa, ou algum incidenteligadoaoassaltoda IrishMail.Talvez tenhavistoumconhecido,porexemplo,circunstânciaquepoderiacolocá-laemperigo.

—Oh!—exclamouBridget.Eficouruminandooqueacabavadeouvir.—Querdizer...alguémqueelaconheciaestavaenvolvidonoroubo.

OInspetor-ChefeDavylevantou-se.

—Achoqueétudo.Temcertezadequenãotemmaisnadaparamecontar?Algumlugarondesuaamigafoi,naqueledia?Ounavéspera?

Novamente assomaram aos olhos de Bridget visões de Mr. Bollard e dajoalheriadeBondStreet.

—Tenho—disseela.

—Poiseucreioqueaindaháalgumacoisaqueasenhoritanãomecontou.

Bridgetdescobriuumasaída.

— Oh, eu ia esquecendo — disse ela. — Sim, Elvira foi procurar unsadvogados,osadvogadosquesãocuradoresdela,paradescobrircertascoisas.

—Ah,MissElvirafoiprocurarunsadvogados,quesãocuradoresdela.Seráquesabecomosechamam?

— O nome deles é Egerton... Forbes Egerton e não sei que mais. Umaporçãodenomes.Todaviaémaisoumenosisso.

—Compreendo.Eelaentãoqueriadescobriralgumacoisa?

—Queriasaberquantodinheiropossui—explicouBridget.

OInspetorDavyfranziuasobrancelha.

—Realmente!—exclamou.— Interessante.E por que é que ela próprianãosabiadisso?

—Oh,porquenuncaninguémfalouaelaarespeitodedinheiro.Achoqueelespensamquenãoébomagentesaberquantodinheiropossui.

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—Eelaestavaloucaparasaber,não?

—Estava,sim.Pensoqueelaachavaqueissoeramuitoimportante.

—Bem,muitoobrigado—disseoInspetor-ChefeDavy.—Asenhoritameajudoumuitíssimo.

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RICHARDEGERTONTORNOU a olhar para o cartão oficial que estava à suafrente,depoislevantouosolhosparaorostodoInspetor-Chefeedisse:

—Casocurioso.

—Simsenhor—falouoInspetor-ChefeDavy.—Casomuitocurioso.

— O Hotel Bertram’s— continuou Egerton— no nevoeiro. Sim, ofogestava terrível ontem à noite. Creio que os senhores têm que lidar com umaporção de casos como este em dias de nevoeiro, não?Roubos, furtos... bolsasarrebatadas...essacoisatoda.

—Mas não foi exatamente isso— observou Papai. — Ninguém tentouarrebatarnadaaMissBlake.

—Deondepartiuotiro?

—Devidoaofog,nãopodemostercerteza.Elapróprianãosabiabem.Maspensamos...pareceamelhorideia...queohomemdeveriaestarnaquelaárea,

—DizosenhorqueeleatirouemElviraduasvezes?

—Sim.Oprimeirotiroerrouoalvo.Oporteirocorreudeondeestava,doladodeforadaportadohotel,epôs-seàfrentedelamomentosantesdosegundotiro.

—Eporissootiropegounele?

—Sim.

—Camaradavalente.

— Sim. Era valente — concordou o Inspetor-Chefe. — Tinha umaexcelentefédeofíciomilitar.Erairlandês.

—Comosechamava?

—Gorman.MichaelGorman.

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—MichaelGorman.—Egertonfranziuatesta.

—Conheciaessehomem?

—Não—disseeleaocabodeummomento.—Poruminstantepenseiqueonomesignificavaalgumacoisa.

—Claroqueéumnomemuitocomum.Masdequalquerforma,elesalvouavidadamoça.

—Eexatamenteporqueveioosenhormeprocurar?

— Esperava obter alguma informação. O senhor sabe que nós sempreprocuramosficaramplamenteinformadosarespeitodavítimadeumatentativadehomicídio.

— Naturalmente, naturalmente. Mas na realidade eu só me avistei comElviraduasvezesdesdeotempoemqueelaeramenina.

—Osenhoraviuquandoelaveioprocurá-loháumasemana,nãofoi?

—Sim,issomesmo.Equeéprecisamentequeosenhordesejasaber?Seéalgumacoisasobreapessoadela,quemsãoosseusamigos,ouapaixonados,ouarespeitodasbrigascomosnamorados...coisasdessaordem...émelhorirtercomumadasmulheres,HáumaMrs.Carpenter,queatrouxedevoltadaItália,creioeu,eMrs.Melford,comquemelamoraemSussex.

—JáfaleicomMrs.Melford.

—Eentão?

— Não adiantou. Não adiantou absolutamente nada. E não são dadospessoaisquedesejoconhecer...afinaldecontasestiveeuprópriocomela,ouvioqueelapôdemedizer..,ouantes,oqueelaquismedizer...

Ante um rápido movimento do cenho de Egerton, Davy verificou que oadvogadoapanharabemaimportânciadapalavra"quis".

—Disseram-mequeelaestavapreocupada,agitada,assustadacomalgumacoisa, e convencida de que sua vida corria perigo. Foi essa a impressão dosenhor,quandoelaoveioprocurar?

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— Não — respondeu Egerton, lentamente. — Não, eu não diria isso.Contudo,elamedisseumascoisinhasquemeparecerammuitocuriosas.

—Taiscomo?

— Bem, ela queria saber quem seria o seu herdeiro, caso morressesubitamente.

—Ah — disse Davy — então ela pensava nessa possibilidade, não é?Morrerinesperadamente.Interessante.

— Ela tinha qualquer coisa na cabeça, mas não sei o que era. Queriatambémsaberquantodinheiropossuía...—oupossuirá,quandofizervinteeumanos*Isso,creio,émaiscompreensível.

—Calculoquesejabastantedinheiro.

—Éumagrandefortuna,Inspetor-Chefe.

—Porqueachaqueelaqueriasaber?

—Arespeitododinheiro?

—Sim,earespeitodequemoherdaria.

—Nãosei—respondeuEgerton.—Nãoseimesmo.Elatambémaludiuaoassuntodecasamento...

—Osenhorteveaimpressãodequehaviaumhomemnessahistória?

—Nãotenhonenhumaprova...mas...sim,penseinissomesmo.Acheiquedevia haver um namorado nesse negócio. Em geral há! Luscombe... isto é, oCoronelLuscombe,tutordeElvira,parecequenãosabedaexistênciadenenhumnamorado.Mas o velhoDerekLuscombe jamais descobriria uma coisa dessas.Ficou muito agitado quando insinuei que havia um namoro encoberto eprovavelmenteindesejável.

—Eémesmoindesejável—disseoInspetor-ChefeDavy.

—Oh.Entãoosenhorsabequeméorapaz?

—Tenhoumpalpitemuitobom.LadislausMalinowski.

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—Ocorredor?Realmente?Simpáticoe temerário!Asmulherescaemporele à toa. Como será que conheceu Elvira? Não compreendo como é que asórbitasdeambosseencontraramamenos...sim,creioqueeleesteveemRomaháunsdoismesesatrás.Possivelmentefoiláqueelaoconheceu.

—Possivelmente.Ouelaoteriaconhecidoporintermédiodamãe?

—Oquê?PorintermédiodeBess?Nãocreionessahipótese.

Davytossiu.

—DizemqueLadySedgwickeMalinowskisãoamigosíntimos.

— Sim, sim, é o que todos dizem. Talvez seja verdade, talvez não. Sãoamigos íntimos...navidaque levam,estãoconstantemente juntos.Bess teveosseusamores,éclaro,embora,vejabem,nãosejadotiponinfomaníaco.Nãofaltagenteparadizerissodeumamulher,masnocasodeBessnãoéverdade.Afinal,quemeconste,Besseafilhapraticamentenãoseconhecem.

—FoioqueLadySedgwickmedisse;Eosenhorconcorda?

Egertonfezquesimcomacabeça.

—MissBlaketemoutrosparentes?

—Paratodososefeitos,nenhum.Osdoisirmãosdamãedelamorreramnaguerra,eelaprópriaeraaúnicafilhadovelhoConiston.Mrs.Melford,emboraameninaachamede"primaMildred",naverdadeéprimadoCoronelLuscombe.Luscombe faz o que pode pela menina, à sua maneira conscienciosa eantiquada...masissoédifícil...paraumhomem.

—OsenhordissequeMissBlakefalouemcasamento?Suponhoquenãohápossibilidadedequeelajáestejacasada...

— Ela ainda é menor... precisaria do consentimento do tutor e doscuradores-.

— Juridicamente, sim. Mas os moços nem sempre esperam por isso —observouPapai.

— Eu sei. E é lamentável. A gente tem que enfrentar o mecanismoburocrático e tudo o mais para obter a tutela legal. E mesmo isso tem suas

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dificuldades.

— E uma vez que elas se casam, estão casadas— comentou Papai. —Suponho que se ela estivesse casada e morresse de repente, o marido seria oherdeiro.

—Essa ideia de casamento é absolutamente improvável. Ela foi educadacomomaiorcuidadoe...—Calou-se,vendoosorrisocéticodoInspetor-ChefeDavy.

Por mais cuidadosamente que houvesse sido educada, Elvira conseguiratravar conhecimento com um sujeito altamente indesejável, como LadislausMalinowski.

—Éverdadequeamãefugiucomoutrohomem—disseEgerton.

—Sim, fugiu... era de esperar...masMissBlake é um tipo diferente.Talcomoamãe,elaseobstinaemsófazeroquequer,masagedeoutromodo.

—Nãomedigaque...

—Nãodigonada...ainda—retrucouoInspetor-ChefeDavy.

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LADISLAUSMALINOWSKIolhouparaum,depoisparaooutropolicial,atirouacabeçaparatrásedeuumagargalhada.

—Émuitoengraçado!—disseele.—Vocêsparecemduascorujas,assimsolenes!É ridículome fazeremvir aqui, epretenderemme interrogar.Não têmnadacontramim,nada.

—Pensamosquetalvezosenhornospudesseajudarnonossoinquérito,Mr.Malinowski— disse o Inspetor-ChefeDavy com polidez oficial.—O senhorpossuiumcarro,umMercedes-Otto,númerodeplacaFAN2266.

—Existealgummotivoquemeimpeçadepossuirumcarrocomoesse?

—Não,nenhum.Háapenasumaligeiradúvidaquantoaonúmerocorreto.Seucarrofoivistonumarodovia,aM7,eaplacanaquelaocasiãoeraoutra.

—Bobagem.Deviaseroutrocarro.

—Nãohámuitoscarroscomooseu.Nósverificamostodososqueexistem.

—Achoquevocêsacreditamemtudoqueosguardasdetrânsitocontam!Édemorrerderir!Ondefoiisso?

—Olocalondeapolíciadeteveosenhorepediuparaversualicença,nãoficalongedeBedhampton.FoinanoitedoassaltoaotremdaIrishMail.

— Os senhores realmente me divertem — foi a resposta de LadislausMalinowski.

—Osenhorpossuiumrevólver?

—Claro,tenhoumrevólvereumapistolaautomática.Amboscomalicençanecessária.

—Ótimo.Aindaestãoemseupoder?

—Evidentemente.

—Jáoavisei,,Mr.Malinowski.

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—Ofamosoavisodapolícia!"Tudooquedisserseráregistradoepoderáserutilizadocontraosenhor,noseujulgamento."

—A fórmulanãoébemessa—dissePapai combrandura.—Utilizado,sim.Contraosenhor,não.Nãoquerfazerumaressalvanessadeclaração?

—Não,nãoquero.

—Etemcertezadequenãoquerapresençadoseuadvogado?

—Nãogostodeadvogados.

—Hápessoasquenãogostam.Ondeestãoasarmasagora?

—Creioqueosenhorsabemuitobemondeéqueestão,Inspetor-Chefe.Apistolapequenaestánoporta-luvasdomeucarro,oMercedes-OttocujonúmerodeplacaéFAN2266.Orevólverestánumagaveta,nomeuapartamento.

—Osenhortemrazãoquantoàgavetadoapartamento—dissePapai.—Masaoutra,apistola,nãoestánoseucarro.

—Estásim.Noporta-luvas;doladoesquerdo.Papaiabanouacabeça.—Podeserquetenhaestadolá;nãoestámais.Seráestaaqui,Mr.Malinowski?

Empurrou uma pequena pistola automática por cima da mesa. LadislausMalinowski,comumardeimensasurpresa,apanhou-a.

—Ah,ah,sim,éela.Entãofoiosenhorqueatiroudomeucarro?

—Não—respondeuPapai.—Nãoatiramosdoseucarro.Elanãoestavanoseucarro.Foiencontradaemoutrolocal.

—Ondefoiqueaencontraram?

—Encontramo-la—falouDavy—numtrechodePondStreet,que,comoosenhordevesaber,éumaruapertodeParkLane.Poderiatersidolargadaporumhomemquecaminhasseporessarua...outalvezcorresse.

LadislausMalinowski encolheu os ombros.—Não tenho nada com isso.Não joguei lá a pistola. Estava nomeu carro há coisa de dois dias. Ninguémpassaotempotodoolhandoparaverseumobjetoestánolugaremquefoiposto.Agentepresumequedeveestar.

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— Sabe, Mr. Malinowski, que esta foi a pistola usada para atirar contraMichaelGorman,nanoitede26denovembro?

—MichaelGorman?NãoconheçonenhumMichaelGorman.

—OporteirodoHotelBertram's.

—Ah,sim,oquemorreubaleado.Linojornal.Eosenhordizqueotirofoidaminhapistola?Conversa!

—Nãoéconversanão.Osperitosembalísticafizeramoexame.Osenhorentende bastante de armas de fogo para saber que a prova de balística éirrefutável.

—Ossenhoresestãoprocurandomepegar.Euseioqueapolíciafaz!

—Creioqueosenhornãofaztaljuízodanossapolícia,Mr.Malinowski.

—EntãoosenhorquerinsinuarqueeuatireiemMichaelGorman?

—Nomomentoestamosapenastomandooseudepoimento.Aindanãofoifeitanenhumaacusação.

—Maséissooquevocêspensam...queeuatireinaquelepalhaçofardado.Porquê?Eunãodeviadinheiroaele,nãotinhanadacontraele.

—Otirofoidirigidocontraumasenhorita.Gormancorreuparaprotegê-laerecebeunopeitoasegundabala.

—Umasenhorita?

—Umasenhoritaqueeucreioqueosenhorconhece.MissElviraBlake.

—OsenhorestádizendoquealguémtentouatiraremElviracomaminhapistola?

Pareciaincrédulo.

—Talveztenhahavidoumdesentendimentoentreambos.

—InsinuaqueeubrigueicomElviraeatireinela?Queloucura!Porqueiriaeudartirosnamoçacomquemvoumecasar?

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—Issoépartedoseudepoimento?QuevaisecasarcomMissElviraBlake?

Ladislaushesitouporuminstante.Elogodisse,encolhendoosombros:

—Elaaindaémuitomoça.Oassuntonãoestáresolvido.

—Talvezelahouvesseprometidocasarcomosenhoredepois...mudoudeideia.Elaandavacommedodealguém.Eradosenhor,Mr.Malinowski?

—PorquedesejariaeuamortedeElvira?Ouestouapaixonadoporelaequerocasarcomela,ousenãoquerocasarcomela,nãosouobrigadoacasar.Émuitosimples,comovê.Portanto,paraqueiriaeumatá-la?

—Nãohámuitagenteaparentadacomelaosuficienteparaquerermatá-la.—Davyesperouummomentoedepoisacrescentou,quasecomindiferença:—Salvoamãedela,naturalmente.

—O quê?—Malinowski deu um salto.— Bess? Bess matar a própriafilha?Osenhorestálouco!PorqueiriaBessmatarElvira?

— Possivelmente porque, sendo a parenta mais próxima, herdaria umaenormefortuna.

—Bess?AcreditaqueBessseriacapazdematarpordinheiro?Elatemriosdedinheiro,domaridoamericano.Ou,pelomenos,obastante.

— Bastante dinheiro não é a mesma coisa que uma grande fortuna —observou Papai. —As pessoas matam por uma grande fortuna, conhecem-semãesquemataramfilhos,efilhosquematarammães.

—Tornoadizerqueosenhorestálouco.

—OsenhordissequeiacasarcomMissBlake.Seráquejácasoucomela?Secasou,entãoseriaosenhoroherdeirodeumaenormefortuna.

— Que coisas loucas e estúpidas o senhor diz! Não, não me casei comElvira; é uma moça bonita, gosto dela e ela está apaixonada por mim. Sim,confesso isso tudo. Conheci-a na Itália, divertimo-nos juntos, mas foi só. Nãohouvemaisnada,compreende?

— Realmente? Mas ainda agora, Mr. Malinowski, o senhor disseperemptoriamentequeelaeraamoçacomquemiacasar.

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—Ah,isso.

—Sim,isso.Éverdade?

—Disseissoporque...dessemodo,acoisatomavaumarmaisrespeitável.Vocêsnestepaís...sãotãopuritanos...

—Asuaexplicaçãomepareceinverossímil.

—Osenhornãocompreendenadadenada.Amãeeeu...somosamantes...eunãoquisfalarassim...demodoqueinsinueiqueafilhaeeu...éramosnoivos.Issoparecemuitoinglêsedigno.

— Pois a mimme parece ainda mais inverossímil. O senhor anda muitonecessitadodedinheiro,nãoanda,Mr.Malinowski?

—Meu caro Inspetor-Chefe, eu ando sempre necessitado de dinheiro. Éumatristeza.

—Mas há algunsmeses o senhor atirava dinheiro fora, damaneiramaisdespreocupada.

—Ah,tiveummomentodesorte.Soujogador,confesso.

—Éfácildeacreditar.Ondefoiqueteveesse"momentodesorte"?

—Issoeunãodigo.Osenhornãopodeesperarqueeudiga.

—Nãoespero.

—Étudoquetemameperguntar?

—Pororaé.Osenhorreconheceuqueapistolaésua.Issoserámuitoútil.

—Nãocompreendo...nãopossoconceber...—interrompeu-seeestendeuamão:—Medêapistola,porfavor.

—Lamentodizerque temosdeguardá-laporenquanto.Vouprepararumrecibo.

Davyfezoreciboepassou-oaMalinowski.Orapazfoiembora,batendoaporta.

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—Sujeitotemperamental—comentouPapai.

— O senhor nem o apertou a propósito do número falso da placa, e deBedhampton.

— Não. Queria que ele ficasse abalado. Mas não abalado demais. Voudandoumacoisadecadavezparaelesepreocupar...eeleestápreocupado.

—OVelhoquerfalarcomosenhor,assimqueestiverdesocupado.

O Inspetor-ChefeDavy balançou a cabeça e encaminhou-se à sala de SirRonald.

—Ah,Papai!Fazendoprogressos?

—Simsenhor.Vamos indobem...muitopeixena rede.Namaioriapeixemiúdo.Masjáestamosnosaproximandodosgrandes.Estátudoandando...

—Ótimo,Fred—disseoComissárioAssistente.

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25I

MissMARPLEdesembarcoudotremnaestaçãodePaddingtonelogoavistouovultocorpulentodoInspetor-ChefeDavy,depé,naplataforma,aesperá-la.

Eledisse:

—Muitoprazeremvê-la,MissMarple.—Segurando-apelocotovelo,fê-lapassarpelagradeeconduziu-aatéondeosesperavaumcarro.Omotoristaabriuaporta,MissMarpleentrouseguidapeloInspetor-Chefe,eocarropartiu.

—Paraondeestámelevando,Inspetor-ChefeDavy?

—ParaoHotelBertram's.

—Oraessa,HotelBertrarm'sdenovo!Porquê?

—Arespostaoficialéa seguinte:porqueapolíciaacreditaqueasenhorapoderáajudá-lanasinvestigações.

—Afraseéconhecida,masnãoétambémumtantosinistra?Servemuitasvezesdeprelúdioaumaordemdeprisão,nãoé?

—Nãovouprendê-la,MissMarple.—Papaisorriu.—Asenhoratemumálibi.

MissMarpledigeriuainformaçãoemsilêncio.Depoisdisse:

—Compreendo.

Continuaram calados até chegarem aoHotel Bertram's.Quando entraram,MissGorringelevantouosolhosde trásdobalcão,masoInspetor-ChefeDavyencaminhouMissMarplediretamenteaoelevador.

—Segundoandar.

O elevador subiu, parou, e Papai tomou a dianteira ao avançarem pelocorredor.Quandoeleabriuaportadon.°18,MissMarplefalou:

—Eraesteomeuquartoquandoeuestavahospedadaaqui.

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—Sim—respondeuPapai.

MissMarplesentou-senapoltronaecomentou,olhandoemredorcomumlevesuspiro:

—Éumquartomuitoconfortável.

—Nãosepodenegarqueelesaquientendemdeconforto—admitiuPapai.

—Osenhorparececansado,Inspetor-Chefe—disseinesperadamenteMissMarple.

—Tenhoprecisadomemexerumbocado.Para falaraverdade,acabodechegardaIrlanda.

—Realmente?FoiaBallygowlan?

—EcomodiaboasenhorasabearespeitodeBallygowlan?Desculpe-me...peço-lheperdão...

MissMarpleperdooucomumsorriso.

—DecertoMichaelGormanlhedissequevinhadelá...nãofoiisso?

—Nãofoiprecisamenteisso.

—Entãocomofoi,semepermiteperguntar,queasenhorasoube?

—Deusmeu!— disseMissMarple— é bastante embaraçoso. Foi umaconversa...umaconversaqueescuteiporacaso.

—Ah,compreendo.

—Eunãoestavaescutandodepropósito.Foinumasalaabertaaopúblico...pelomenos,tecnicamenteabertaaopúblico.Francamente,gostodeescutaroqueaspessoasconversam.Todosgostam.Especialmentequandoseévelhoenãosesaimuito.Oqueeuquerodizeréque, sehápessoasconversandoporperto, agenteescuta.

—Bem,issomeparecemuitonatural—dissePapai.

—Atécertoponto,sim—concordouMissMarple.—Seaspessoasquefalamnãosedãoaotrabalhodebaixaravoz,pode-sepresumirqueestãocientes

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de que serão ouvidas.Mas, é claro que tambémpode haver imprevistos. Podeacontecerque,emborasesaibaqueasalaemquestãoéfranqueadaaopúblico,osqueestãoconversandonãosedãocontadapresençadeoutros.Entãoagentetemquedecidircomoéquefaz.Levantar-se,tossir,ouficarquietaeesperarqueelesnãodescubramqueagenteestáali.Qualquerdashipóteseséconstrangedora.

OInspetor-Chefeconsultouorelógio.

—Vejabem—disseele—queroouviro restodessahistória,masestouaguardando o Cônego Pennyfather, que deve chegar a qualquer momento.Precisoirrecebê-lo.Seasenhoranãoseincomoda...

MissMarpledissequenãoseincomodava,eoInspetor-ChefeDavydeixouoquarto.

IIOCônego Pennyfather atravessou a porta de vaivém e entrou na sala de

esperadoHotelBertram's.Franziudeleveocenho,procurandodescobriroqueéqueestavadiferentenoBertram'shoje.Seráqueforapintado,oure-decorado?OCônego abanou a cabeça. Não era isso, mas haviaqualquer coisa. Não lheocorreuqueeraadiferençaentreumporteirode1,80mdealtura,olhosazuisecabelospretos,eumoutroporteirode1,70m,ombroscaídos,sardas,eumtufodecabeloscordeareiasaindodesobobonédafarda.OCônegosabiaapenasque algo estava diferente. Com seus costumeiros modos vagos, dirigiu-se àrecepção.MissGorringeestavaláeocumprimentou:

—Prazeremvê-lo,CônegoPennyfather.Veiobuscarâbagagem?Estáàssuasordens.Seosenhorquiser,nóspoderemosmandá-laparaqualquerendereçoquenosder.

— Obrigado — respondeu o Cônego — muito obrigado, A senhora ésempremuitoamável,MissGorringe..MascomoeuprecisavadequalquermodoviraLondreshoje,penseiqueomelhoreraapanharpessoalmenteabagagem.

— Ficamos tão preocupados com o senhor — disse Miss Gorringe. —Refiro-meaoseudesaparecimento.Ninguémoencontrava.Sofreuumacidentedeautomóvel,nãofoi?

— Foi — falou o Cônego — foi, sim. Esses motoristas de hoje guiam

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depressademais.Issoémuitoperigoso.Aliás,nãomerecordoquasenadadoqueaconteceu.Parecequemeafetouacabeça.Concussão,dizomédico.Ora,ofatoé que à medida que a gente envelhece, a memória... — abanou a cabeça,tristemente.—Ecomovaipassandoasenhora,MissGorringe?

—Euvoumuitobem.

Nesse momento o Cônego Pennyfather subitamente descobriu que MissGorringetambémestavadiferente.Mirou

a mulher, procurando ver onde estava a diferença. No cabelo? Era o desempre.Talvezumpoucomaisfrisado.Vestidopreto,medalhãoenorme,brochedecamafeu.Tudocomodecostume.Mashaviaumadiferença.Estariaumpoucomaismagra?Ou... sim,evidentemente.MissGorringepareciapreocupada.NãoeracomfrequênciaqueoCônegoPennyfatherseapercebiadequealguémtinhaoarpreocupado; elenão eradessaspessoasquenotama emoçãono rostodasoutras. Mas naquela noite notou, talvez porque Miss Gorringe, durante tantosanos,apresentavaaoshóspedesaquelafaceimutável.

—A senhora não esteve doente, esteve?— indagou o velho, solícito.—Parecemaismagra.

—Bem,nóstivemosaquimuitosaborrecimentos,CônegoPennyfather.

— É verdade. É verdade. Lamento muito. Espero que não tenham sidoprovocadospelomeudesaparecimento.

—Não,não—disseMissGorringe.—Nósnospreocupamos,éclaro,masassimque soubemosqueo senhorestavapassandobem...—Fezumapausaedepoisprosseguiu:—Não,não...éque...bem,talvezosenhornãotenhalidonosjornais.Gorman,onossoporteiro,foimorto.

—Ah, sim—disseoCônegoPennyfather.—Agorame lembro.Linosjornaisquetinhahavidoumassassinatoaqui.

MissGorringeestremeceuanteamençãocruadapalavra"assassinato".Oestremecimentolhepercorreutodoovestidopreto.

—Terrível—disseela—terrível.NuncaaconteceuumacoisadessasnoBertram's. Quero dizer, o Bertram's não é desses hotéis onde ocorremassassinatos.

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—Não,nãoé—interpôsrapidamenteoCônego.—Tenhocertezadequenão é. Quero dizer, jamais ter-me-ia passado pela cabeça que um fato dessanaturezapudesseaconteceraqui.

— Evidentemente não foi dentro do hotel — observou Miss Gorringe,animando-seumpoucoaolembrar-sedesseaspectodaquestão.—Aconteceunarua.

—Portanto,nãotevepropriamentenadaquevercomohotel—observousolícitooCônego.

Esta,aparentemente,nãoeraaobservaçãocertaafazer.

— Mas envolveu o Bertram's. Tivemos que aturar os interrogatórios dapolícia,umavezqueforaonossoporteiroavítimadotiro.

—Entãovocêsestãocomporteironovoláfora.Eubemqueviqueascoisaspareciamumpoucoestranhas.

— Sim, não sei se ele está a altura do emprego. Quero dizer, dentro donossoestilo.Mastivemosquearranjaralguémàscarreiras.

—Agora estou me lembrando de tudo— falou o Cônego Pennyfather,reunindoalgumasrecordaçõesvagasdoqueleranojornalumasemanaantes.—Masmepareceuquehaviamdadoumtironumamoça.

—Refere-seàfilhadeLadySedgwick?Creioqueosenhordevelembrar-sedeatervistoaqui,emcompanhiadotutor,oCoronelLuscombe.Parecequeelafoi atacada por um desconhecido, no meio dofog. Provavelmente alguém lhequeria roubar a bolsa.De qualquer forma, atiraram nela, e entãoGorman, quefora soldado e era homem demuita presença de espírito, correu para acudir elevouumtiro,coitado.

OCônegoabanouacabeça:

—Triste,muitotriste.

—Issodificultatudo—queixou-seMissGorringe.—>Apolíciaentrandoesaindoatodahora.Creioqueédeesperar,masnãogostamosdisso,emboraeudevadizerqueo Inspetor-ChefeDavyeoSargentoWadell têmumaaparênciamuitodistinta.Roupaàpaisana,semnadadeespalhafatoso,comoporexemplobotas e impermeáveis como a gente vê nos filmes.Apresentam-se quase como

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qualquerumdenós.

—É...sim...—disseoCônegoPennyfather.MissGorringeindagou;

—Osenhortevequeirparaohospital?

—Não.Umcasalmuitobondoso,doisbons samaritanos... ele éhortelão,creio...meapanhou,eamulher tratoudemim.Fiqueigratíssimo,gratíssimo.Éumconsolodescobrirqueaindahábondadenomundo.Nãoachaasenhora?

Miss Gorringe disse achar que isso era muito consolador. —Afinal decontas,agentelêarespeitodoaumentodacriminalidade—acrescentouela—todosessesrapazesemoçasqueassaltambancos,roubamtrens,atacampessoas.

Depoislevantouavistaedisse:

—LávemoInspetor-ChefeDavydescendoaescada.Creioqueeledesejafalarcomosenhor.

—Não sei para que ele há de querer falar comigo— disse, intrigado, oCônego.— Ele já foi me procurar, sabe? em Chadminster. E acho que ficoumuitodecepcionadoporquenãolhepudedizernadadeútil.

—Nãopôde?

OCônegoabanoutristementeacabeça.

—Nãomelembravadenada.OacidenteaconteceupertodeBedhampton,ena verdade não sei o que é que eu andava fazendo por lá. O Inspetor-Chefeinsistia em me perguntar por que eu estava ali, e eu não sabia responder.Esquisito,nãoé?Parecequeelepensouqueeuvinhadecarrodaestradadeferroparaumacasaparoquial.

—Pareceplausível—observouMissGorringe.

—Nãopareceplausívelcoisanenhuma!Porqueéqueeuestariadirigindoumcarronumlugarquenemconheço?

OInspetor-ChefeDavyaproximara-sedosdois.

—Ah,estáaqui,CônegoPennyfather!—disseele—jáserestabeleceu?

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—Sinto-memuitobem,mascomcertatendênciaadoresdecabeça.Emerecomendaram que não fizesse esforço excessivo. Mas ainda não consigo melembrar do que deveria me lembrar> e os médicos dizem que talvez não melembrenunca.

OInspetor-ChefeDavyconsolouovelhoeoafastoudamesaderecepção.

—Bom,agentenãodeveperderasesperanças.—Acrescentou:—Queriaque o senhor fizesse umapequena experiência.Não se recusará amedar umaajuda,nãoéassim?

IIIQuandooInspetor-ChefeDavyabriuaportadon.°18,MissMarpleainda

estavasentadanapoltronajuntoàjanela.

—Muitagentenarua,hoje—observouela.—Maisquedecostume.

—Bem...esteéocaminhomaiscurtoentreBerkeleySquareeShepherd'sMarket

— Não me referia apenas aos passantes. Falo em gente trabalhando...homens que consertam a estrada, um caminhão da telefônica, um caminhão decarne,unsdoiscarrosparticulares...

—E...possoperguntar?Queéqueasenhoradeduzdisso?

— Eu não falei que deduzia coisa alguma. Papai olhou bem para MissMarpleepediu:

—Queroqueasenhorameajude.

—Claro.Paraissoestouaqui.Quequerqueeufaça?

— Quero que a senhora faça exatamente o que fez na noite de 19 denovembro.Asenhoraestavadormindo...acordou...possivelmentedespertadaporalgumruídoinusitado.Acendeualuz,olhouashoras,levantou-sedacama,abriuaportaeespiouparafora.Poderepetiressesmesmosatos?

—Naturalmente.—MissMarpleergueu-seecaminhouatéacama.

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— Espere um momento. — O Inspetor-Chefe Davy foi até à parededivisóriadosdoisquartosedeuumapancadinha.

—Éprecisobatercommaisforça—observouMissMarple.—Esteprédioémuitobemconstruído.

OInspetor-Cheferedobrouovigordasbatidas.

—Eudisse aoCônegoPennyfather que contasse até dez—explicou eleolhandoorelógio.—Agora,podecomeçar.

Miss Marple tocou na lâmpada de cabeceira, consultou um relógioimaginário,levantou-se,caminhouatéàporta,abriu-aeespiouparafora.Àsuadireita, saindodoquartonaquelemomento, e caminhandopara a escada,viuoCônego Pennyfather. Ao chegar à escada, o Cônego começou a descer osdegraus.MissMarpleprendeuporumsegundaarespiraçãoevoltou-se.

—Eentão?—indagouoInspetor-Chefe.

— O homem que eu vi naquela noite não pode ter sido o CônegoPennyfather—disseMissMarple.—OuentãoesteaínãoéoCônego.

—Achoqueasenhoradisse...

—Eusei.PareciaoCônegoPennyfather.Oscabelos,a roupa, tudo.Masnão tinha o mesmo andar. Penso... penso que deve ter sido um homem maismoço. Sinto muito, muitíssimo, ter informado mal ao senhor, mas não foi oCônegoPennyfatherquevinaquelanoite.—Tenhocertezadissoagora.

—Templenacertezadestavez,MissMarple?

—Sim—disseMissMarple.—Sintomuito—tornouaacrescentar—ter-lhedadoumainformaçãoerrada.

—Porpoucoasenhoranãoacertou.OCônegoPennyfathervoltoudefatoao hotel naquela noite. Ninguém o viu entrar... mas isso não é de admirar.Chegoudepoisdameia-noite,subiuaescada,abriuaportadoquartodele,queficavavizinhoaoseu,eentrou.Oqueviuouoquelheaconteceuentão,nósnãosabemos,porqueelenãosabeounãoquercontar.Sehouvesseummeiodelheestimularamemória...

—Bem,háaquelapalavraemalemão...—disseMissMarple,pensativa.

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—Quepalavraemalemão?

—Ah,meuDeus,esqueciagora,mas...Bateramnaporta.

—Possoentrar?—falouoCônegoPennyfather.Eentrou.—Correutudobem?

—Muitobem—respondeuPapai.—EuestavadizendoaMissMarple...osenhorconheceMissMarple?

—Oh,sim—disseoCônegoPennyfather,semsaberaocertoseaconheciaounão.

—EuestavacontandoaMissMarplecomotínhamosreconstituídotodososmovimentosdosenhor.Osenhorvoltouaohotel,naquelanoite,logodepoisdameia-noite. Subiu ao primeiro andar, abriu a porta do seu quarto, entrou...—Davyfezumapausa.

MissMarplesoltouumaexclamação:

—Lembrei-me!Lembrei-medapalavraemalemão.Doppelganger!

O Cônego Pennyfather também soltou uma exclamação: — Mas claro!Claro!Comoéquepudeesquecer?Asenhoratemtodaarazão.Depoisdaquelefilme,As Muralhas de Jerico, voltei para cá, subi a escada, abri a porta domeu.quartoevi...inacreditável...vi-meamimmesmo,nitidamente,sentadonumacadeira, de frente para mim. É como diz, minha cara senhora,doppelganger.Notabilíssimo! E então... deixe-me ver... — E o Cônego levantou os olhos,tentandorecordar.

—E então— disse Papai— assombrados com a sua presença, -quandosupunham que o senhor estivesse tranqüilamente em Lucerna, alguém lhe deuumapancadanacabeça.

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26

OCÔNEGO PENNYFATHER fora postonum táxi, rumoaoMuseuBritânico.MissMarple fora instalada comodamente na sala de estar pelo Inspetor-Chefe.Concordaria em esperá-lo uns dezminutos?MissMarple concordou. Estimavamuitoaoportunidadedeficarsentadaali,olhandoàsuavoltaepensando.

HotelBertram's.Tantasrecordações...Opassadofundia-secomopresente.Acudiu-lhe àmente uma frase em francês:Plus ça change, plus c'est Iamêmechose.Inverteuaordem:Plusc'estIamêmechose,plusçachange.Deambososmodoséverdade,pensou.

Sentia-se triste—peloHotelBertram'seporsiprópria.TinhacuriosidadedesaberoqueoInspetor-Chefeirialhepedir,agora.Percebianeleaanimaçãodequem tem um propósito definido. Era um homem cujos planos afinal seconcretizavam.EraodiaDdoInspetor-ChefeDavy.

A vida no Bertram's continuava como de costume. Não, concluiu MissMarple, como de costume, não.Havia uma diferença, embora ela não pudessedizerondeéqueestavaessadiferença.Umainquietaçãosubjacente,talvez?

Aportaseescancaroumaisumavez,dandopassagemaohomenzarrãodearcampestreebovino,queveiodiretoparaolocalondeestavaMissMarple.

— Tudo pronto?— perguntou ele, bem humorado.—Para onde vai melevaragora?

—VamosfazerumavisitaaLadySedgwick.

—Elaestáhospedadaaqui?

—Sim.Comafilha.

MissMarplelevantou-se.Lançouumolharaoseuredoremurmurou:

—PobreBertram's.

—Porque"PobreBertram’s?

—Achoqueosenhorsabeperfeitamenteoqueeuquerodizer.

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—Bem—encarandoosfatossoboseupontodevista—creioquesei.

—Ésempretristequandosedestróiumaobradearte.

—Easenhorachamaistoaquideumaobradearte?

—Chamosim.Eosenhortambém.

—Compreendooquequerdizer—admitiuPapai.

—Écomoquandoagentedescobreumcanteiroinvadidopelosabugueirobravo.Ojeitoqueteméarrancartudo.

—Não entendomuito de jardinagem.Mas troque a imagem pelas raízesmortaseeuconcordo.

SubiramnoelevadoreatravessaramocorredorquelevavaaoapartamentodeesquinadeLadySedgwickefilha.

O Inspetor-Chefe Davy bateu na porta, uma voz mandou entrar, e eleentrou,seguidoporMissMarple.

Bess Sedgwick estava sentada numa cadeira de espaldar alto, perto dajanela.Tinhasobreosjoelhosumlivroquenãolia.

— Então é novamente o senhor, Inspetor-Chefe, — Os olhos de BessfitaramMissMarpleemostraram-selevementesurpresos.

OInspetor-ChefeDavyfezasapresentações.

—EstaéMissMarple.MissMarple...LadySedgwick.

— Já encontrei a senhora antes — disse Bess Sedgwick. — Não era asenhoraqueestavaoutrodiacomSelinaHazy?Sentem-se,porfavor.—Evirou-separaoInspetor-ChefeDavy:—TemalgumanotíciadohomemqueatirouemElvira?

—Notíciapropriamentenão.

—Duvidoquejamaisvenhaater.Numfogcomoaquele,ostaradossaemporaíàprocurademulheresdesacompanhadas.

—Atécertopontoéverdade—concordouPapai.—Comovaisuafilha?

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—Oh,Elvirajáestábem.

—Asenhoraestácomelaaqui?

— Sim. Telefonei para o tutor dela... o Coronel Luscombe. Ele ficouencantadocomomeudesejodetomarcontadamenina.—Deuumarisada.—Coitadinho.Estásempreinsistindonumatodereconciliaçãoentremãeefilha.

—Talvezeletenharazãonisso—comentouPapai.

—Não,não,nãotem.Nestemomento,sim,achoquefoiamelhorsolução.—Virouacabeçaparaolharpelajanelaabertaefalounoutrotomdevoz:

— Ouvi dizer que o senhor prendeu um amigo meu — LadislausMalinowski.Dequeoacusa?

—Não o prendi— corrigiu o Inspetor-Chefe Davy.— Ele está apenasauxiliandoasnossasinvestigações.

—Mandeimeuadvogadocuidardele.

Papai aprovou:—Fez bem.Quem quer que tenha qualquer probleminhacomapolícia,ébomcontratarumadvogado.Docontrário,podefacilmentedizeroquenãodeve.

—Mesmoquesejacompletamenteinocente?

—Talvezsejaaindamaisnecessárionessecaso.

—Osenhornãoacreditaemnada,nãoé?Possosabercomquefimoestãointerrogando?Ounãoposso?

—Emprimeirolugar,gostaríamosdesabercomexatidãooquefezelenanoiteemqueMichaelGormanmorreu.

BessSedgwickendireitou-sebruscamentenacadeira.

—Será que o senhor alimenta a ridícula ideia de que foiLadislaus quematirouemElvira?Elesnemseconheciam.

—Podiatersidoele.Ocarrodeleestavanaesquina.

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—Bobagem—disseenergicamenteLadySedgwick.

— Até que ponto os tiros daquela noite perturbaram a senhora, LadySedgwick?

Bessmostrou-selevementesurpresa.

—Naturalmentefiqueiabalada,vendominhafilhaescaparporumtriz.Queéqueosenhoresperava?

— Não quis dizer isso. O que desejo saber é até que ponto a morte deMichaelGormanaabalou.

—Tivemuitapena.Eraumhomemvalente.

—Sóisso?

—Quemaisosenhoresperaqueeudiga?

—Asenhoraoconhecia,não?

—Claro.Eletrabalhavaaqui.

—Asenhoranãooconheciasódaqui,nãoémesmo?

—Queestáinsinuando?

— Vamos, Lady Sedgwick. Ele era seu marido, não era? Durante ummomentoelanãorespondeu.Masnãodeu

mostrasdeagitaçãonemdesurpresa.

—O senhor sabe demuita coisa, não sabe, Inspetor-Chefe?—Deu umsuspiroe reclinou-senacadeira.—Eunãooviahá...deixe-mever...muitosemuitos anos. Vinte anos... oumais de vinte. E então, certo dia olhei por umajanelaederepentereconheciMicky.

—Eeleareconheceu?

— É de fato surpreendente que nos tenhamos reconhecido — observouBess.—Sóestivemosjuntoscercadeumasemana.Minhafamílianosapanhou,deudinheiroaMickyemelevoudevoltaparacasa.Deuoutrosuspiro.

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—Eu era muito criança quando fugi com ele. Não sabia de nada. Umagarotamaluca,acabeçacheiadeideiasromânticas.Eleparamimeraumherói,principalmente porquemontava bem a cavalo.Não sabia o que eramedo. Erabonito,ealegre,bemfalantecomosómesmoumirlandês!Achoquefuieuqueoraptei! Não creio que ele tivesse a ideia de me raptar. Mas eu era rebelde,voluntariosa, e estava loucamente apaixonada!—Balançou a cabeça.—Nãoduroumuito...Bastaramasprimeirasvinteequatrohorasparaeumedesiludir.Elebebia,eragrosseiroebrutalQuandominhafamíliaapareceu,emelevaramdevolta,deigraçasaDeus.Nuncamaisquisnadacomele.

—Suafamíliasabiaqueasenhorasecasaracomele?

—Não.

—Asenhoranãocontou?

—Nãoachavaqueestivessecasada.

—Comofoiquesedeutudo?

— Nós nos casamos em Ballygowland, mas quando o meu pessoalapareceu,Mickymedissequeocasamentotinhasidoumafarsa.Eleeosamigostinhamcombinadoacoisatoda;foioqueelecontou.Aessaaltura,jámepareciaqueumacoisadessaserajustamenteoquesepoderiaesperardele.Seelequeriaodinheiroqueomeupessoalofereceu,ousereceavater infringidoa leiaocasarcomigo quando eu era aindamenor, não sei.De qualquer forma, nem por ummomentoduvideidequeaquiloqueelemediziafosseverdade.Naocasiãonãoduvidei.

—Emaistarde?

Bess parecia perdida nas recordações. — Só mesmo... oh, muitos anosdepois,quandoeujáconheciaumpoucomelhoravida,easquestõeslegais,foique subitamenteme ocorreu que provavelmente eu estavamesmo casada comMichaelGorman!

—Para dizer a verdade, quando a senhora se casou comLordConiston,cometeubigamia.

— E quando casei com Sedgwick, e ainda quando casei com aqueleamericano,RidgewayBecker.—OlhouparaoInspetor-Chefeeriu,parecendosinceramentedivertida.

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—Quantabigamia!Êocúmulodoridículo.

—Nuncapensouemsedivorciar?

Eladeudeombros.—Tudomepareciaumsonhoidiota.Paraquemexernoqueestáenterrado?ConteiaJohnnie,éclaro.—Suavozsetornoumaissuaveeternaaopronunciaressenome.

—Eoquefoiqueeledisse?

—Não se importou.Nem Johnnie nemeu éramosmuito respeitadores dalei.

—Bigamia acarreta certas penalidades, Lady Sedgwick. Ela o encarou eriu-se.

—QueméqueiriasepreocuparcomumacoisaqueaconteceranaIrlanda,não sei quantos anos atrás?Tudo estava liquidado.Micky pegara o dinheiro esumira.Ah, o senhor não compreende? Parecia que se tratava apenas de umincidentebobo,Umincidentequeeuqueriaesquecer.Euopusdeladocomascoisas...ograndenúmerodecoisas...quenãotêmimportâncianavida.

—Eentão—dissePapainumavoztranquila—emcertodiadenovembroMichaelGormanapareceuetentouachantagem.

—Tolice!Quemdissequeelefezisso?LentamentePapaisevoltouparaasenhoraidosaqueestavasentadaemsilêncio,muitoespigada,nasuacadeira.

—Asenhora—falouBessSedgwick,encarandoMissMarple.—Queéqueasenhorasabeaesserespeito?

AvozdeBesseramaiscuriosadoqueacusadora.

—Aspoltronasdestehoteltêmencostosmuitoaltos—disseMissMarple.—Sãoconfortabilíssimas.Euestavasentadanumadessaspoltronas,defrontedalareira, na sala de correspondência.Descansando um pouco antes de sair, pelamanhã,Asenhoraentrouparaescreverumacarta.Imaginoquenãopercebeuquehavia mais alguém na sala. E assim... escutei a sua conversa com esse talGorman.

—Escutou?

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—Naturalmente— respondeuMissMarple,—Por que não?Estávamosnumasalapública.Quandoasenhoralevantouajanelaechamouohomemqueestava lá fora, eu não fazia a menor ideia de que fosse travar uma conversaparticular.

BessfitouMissMarpleduranteummomento,depois•««mmumvagarosomovimentodacabeça.

—Écorreto—disseela.—Sim,compreendo.Masaindaassimasenhorainterpretou mal o que escutou. Micky não me fez chantagem. Ele podia terpensado nisso...mas eu o avisei, antes que ele tentasse!—Os lábios deBessnovamente se encresparam naquele sorriso largo e generoso que lhe tornava orostotãoatraente.—Euoassustei!

—Sim—concordouMissMarple.—Creioqueprovavelmenteasenhoraoassustou.Ameaçou dar um tiro nele.A senhora conduziu o caso, se não achaimpertinenteaminhaobservação,realmentemuitobem.

BessSedgwickergueuassobrancelhas,meiodivertida,

—Maseunãoeraaúnicapessoaqueaescutava-continuouMissMarple.

—MeuDeus!Ohotelinteiroestavaescutando?

—Aoutrapoltronaestavaocupada.

—Porquem?

MissMarplecerrouoslábiosefixounoInspetor-Chefeumolharquasedesúplica."Seacoisatemqueserfeita,osenhorqueafaça",diziaoolhar.—"eunãoposso"...

—Suafilhaestavanaoutrapoltrona—disseoInspetor-ChefeDavy.

—Oh,não!—Ogritoirrompeuasperamente.—Oh,não!Elviranão!Sim,entendo...Eladeveterpensado...

— Pensou tão seriamente no que ouvira que chegou a ir à Irlanda paradescobriraverdade.Nãofoidifícildescobrir.

Emvozbaixa,BessSedgwicktornouadizer:—Oh,não!—edepois:—Pobre menina!... Pois mesmo agora, não me perguntou nada. Guardou tudo

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consigo. Se tivesse me falado, eu explicaria tudo... mostraria que não tinha amenorimportância...

—Talvez elanãoconcordasse coma senhoranesseponto—observouoInspetor-Chefe. — É uma coisa engraçada, sabe — continuou ele num jeitoreminiscente,quasedeconversadevizinho,comovelhofazendeiroquediscutisseproblemasdogadoedaterra:—Aprendi,depoisdemuitosanosdetentativaseerros, aprendi a desconfiar de um caso que se apresentamuito simples. Casossimplessãoemgeralbonsdemaisparaseremverdade.Eoaspectodessecrime,naquelanoite,eraassim,simples.Amoçacontouquealguématirounelaeerrou.Oporteirocorreuparaverseasalvava

elevouasegundabala.Podiaperfeitamenteserverdade.Podiaseramaneiraporque amoçaviuo caso.Masnaverdade, por trásdas aparências, as coisaspoderiamsermuitodiversas.—Econtinuou,maissério:

—Asenhoradisseagoramesmo,comgrandeveemência,LadySedgwick,quenãopodiahavermotivoparaLadislausMalinowskiatentarcontraavidadesuafilha.Bem,euconcordocomasenhora,nãocreioquehouvessemesmorazãonenhuma.Eleéotipodohomemquepodeterumabrigacomumamulher,puxardeuma faca e dar-lheuma facada.Masnão creioque fosse se esconder numaáreavaziaeesperarcalmamenteparalhedarumtiro.Massuponhamosqueelequisesse dar um tiroem outra pessoa. Gritos e tiros... mas o que na verdadeaconteceufoiqueMichaelGormanmorreu.Imaginemosqueeraissomesmoquese queria que acontecesse. Malinowski planeja tudo cuidadosamente. Escolheumanoitedenevoeiro,esconde-senaáreaeesperaatéquesuafilhaapareçanarua.Elesabequeelavaiaparecerporquecombinoutudodessemodo.Dáumtiro.Não apontou para amoça. Teve omaior cuidado em não permitir que a balapassassepertodela,masamoçapensanaturalmentequeéoalvodostiros.Grita.Oporteirodohotel, escutandoo tiro e o grito, vemcorrendopela rua,e entãoMalinowskiatiranapessoaquepretendiaatingir:MichaelGorman.

—Nãoacreditonumapalavradoqueosenhorestádizendo!Porquecargasd'águaLadislausquereriamatarMickyGorman?

—Talvezumpequenocasodechantagem—sugeriuPapai.

— O senhor quer dizer que Micky estava fazendo chantagem comLadislaus?Porquê?

—Talvez—lembrouPapai—porcausadascoisasquesepassamnoHotel

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Bertram's.MichaelGormantalvezhouvessedescobertoummontedecoisas.

—CoisasquesepassamnoHotelBertram's?Quequerdizer?

—Foiumgolpeformidável—dissePapai.—Bemplanejado,lindamenteexecutado.Mas não há nada que dure para sempre.MissMarple outro diameperguntouqueéquehaviadeerradoaqui.Bem,agorapossoresponder

àpergunta.OHotelBertram'sé,paratodososefeitos,oquartel-generaldeumdosmaioresemaisbemorganizadossindicatosdocrimedestesúltimosanos.

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HOUVESILÊNCIO porumminuto,oumeiominuto.EaíMissMarple falounumtomdeconversa:

—Émuitointeressante!

BessSedgwickvoltou-se.—Asenhoranãoparecesurpresa,MissMarple.

—Nãoestousurpresa.Nemumpouco.Haviaaquimuitascoisascuriosasquenãocombinavamcomoresto.Eratudobomdemaisparaserverdade...seasenhora me entende. Era o que se chama nos círculos teatrais um lindoespetáculo.Maseraumespetáculo...nãoerareal.Eumaporçãodepequeninascoisas...—gentequejulgavareconhecerumamigo,umconhecido...edescobriaqueseenganava.

— Essas coisas acontecem— comentou o Inspetor-Chefe Davy— masaconteciamcomfrequênciaexcessiva.Nãoéverdade,MissMarple?

— Sim — concordou Miss Marple. — Pessoas como Selina Hazycostumam cometer desses enganos. Mas muitas outras pessoas também seenganavam.Eagentenãopodedeixardenotar.

—Elanota tudo—explicouoInspetor-ChefeaBessSedgwick,comoseMissMarplefosseoseucachorrinhoensinado.

BessSedgwickvirou-serápidaparaele.

— Que é que o senhor queria dizer quando falou que este hotel era oquartel-generaldeumsindicatodocrime?PoiseudiriaqueoHotelBertram'seraolocalmaisrespeitáveldomundo.

— Naturalmente— concordou Papai. — Tinha que ser. Gastou-se umaporçãodedinheiro,detempoedecuidados,fazendodistoaquiexatamenteoqueé.O autêntico e o falsificado semisturavam aqui comgrande inteligência. EmHenryvocêstêmummagníficoator-gerente,dirigindooespetáculo.Arranjaramesse camarada, Humfries, maravilhosamente plausível. Neste país ele não temfichanapolícia,masnoestrangeiroandoumetidocomcertasatividadeshoteleirasmuito curiosas. Há vários excelentes atores característicos desempenhandodiversospapéisaqui.Seasenhoraquiser,devoadmitirquenãopossodeixarde

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sentir uma enorme admiração por toda a montagem. Custou a este país umafábuladedinheiro.Temdadodoresdecabeçaconstantes,tantoaoC.I.D.quantoàspolíciasdeprovíncia.Todavezqueagentepensavaestarchegandopertodameta,oupunhaodedonumincidenteespecial...acabavaacontecendoqueotalincidentenãotinhanadaavercomcoisanenhuma.Masnóscontinuamoscomoquebra-cabeças,umpedaçoaqui,outroali.Umagaragemondeseguardavaummonte de placas de automóveis, e que se poderiam transferir instantaneamentepara certos carros. Uma firma de caminhões de móveis, um caminhão deaçougueiro,umcaminhãodeverdureiro,eatémesmounsdoiscaminhõespostaisfalsificados. Um automobilista num carro de corridas, cobrindo distânciasincríveisnumtempoincrivelmentecurtoe,nooutroextremodaescala,umvelhoclérigo sacolejando pela estrada no seu velho Morris-Oxford. Um chalé ondemoraumvendedordehortaliçasqueprestaprimeirossocorrosquandonecessário,equemantêmcontatoscomummédicoutilíssimo.Nãoprecisodescrever tudo.As ramificações parecem não ter fim. E isso é só metade do fenômeno. Osvisitantesestrangeirosque frequentamoBertram's sãoaoutrametade.Amaiorparte vem da América, ou dos Domínios Britânicos, Gente rica, acima dequalquer suspeita, desembarcando com um montão de bagagem de luxo, queparecesempreamesma,masnãoé.Turistasricos,quechegamàFrançaenãosepreocupam com a Alfândega, porque a Alfândega não aborrece turistas quetrazemdinheiroparacpaís.Eosmesmosturistasnãoserepetemexcessivamente.Nãoébomircommuitasedeaopote.Nãoseráfácilprovaroujuntartodosesseselementos, mas no fim tudo ficará esclarecido. Estamos começando bem. OsCabots,porexemplo...

—QuehácomosCabots?—perguntouasperamenteBess.

— Lembra-se deles? Uns americanos muito simpáticos, simpaticíssimos.Estiveramaquinoanopassadoevoltaramesteano.Masnãoviriamumaterceiravez.Ninguémvemcámaisdeduasvezes,namesmajogada.Sim,conseguimosprendê-los quando desembarcavam em Calais. Muitíssimo bem bolada aquelamala-camarote que levavam. Continha três mil libras muito bem arrumadas.ProdutodoassaltoaotremdeBedhampton.Claroqueissoéapenasumagotanooceano.—Econtinuou,impassível:

—Deixe-medizer-lhedenovo,oHotelBertram'séoquartel-generaldissotudo.Ametadedosempregadosestámetidanatramoia.Certoshóspedestambémestãometidos.Algunssão realmentequemdizemquesão...outrosnãosão.OsautênticosCabots,porexemplo,estãonomomentonoIucatan.Ehaviatambémaquadrilhadaidentificação.Porexemplo,oSr.JuizLudgrove.Umrostofamiliar,narizdebatataeumaverruga.Facílimode imitar.OCônegoPennyfather.Um

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afável clérigo do interior, de grande cabeleira branca e comportamentonotoriamentedistraído.Seusmaneirismos,seujeitodeespiarporcimadosóculos,—tudofacílimodeimitarporumbomatorcaracterístico.

—Masqualautilidadedissotudo?—indagouBess.

—Asenhoraestárealmentequerendosaber?Nãoéóbvio.OJuizLudgroveé visto perto do local onde se assalta um banco. Alguém o reconhece e omenciona.Começamos a investigar.É tudo engano.Ele estava em localmuitodiverso,naocasião.Massódepoisdealgumtempoéquedescobrimosque,nissotudo, o que havia era o que se costuma chamar de "enganos deliberados".Ninguémsepreocupouemidentificarosujeitoquesepareciatantocomojuiz.Eelenãoparecemuitocomojuiz,emverdade,quandotiraamaquilagemeparaderepresentaropapeldejuiz.Acoisatodacausamuitaconfusão.Certaveztivemosum Juiz do Supremo, umArcediago, umAlmirante, um General de Divisão,todosvistospertodacenadocrime.

—Depoisdoassaltoao tremdeBedhampton,pelomenosquatroveículosforamutilizados antes que a bolada chegasse aLondres.Um carro de corridasdirigidoporMalinowskitomoupartenotrabalho,umfalsocaminhãoMetalBox,um Daimler antiquado com umAlmirante na direção, e um velho clérigo decabeleirabrancanumMorrisOxford.Acoisatodafoiumaoperaçãoespetacular,lindamenteprojetada.

—Masaí,umbelodia,aquadrilha teveumpoucodeazar.Aquelevelhoeclesiástico biruta, o Cônego Pennyfather, foi pegar o avião no dia errado; naestaçãoaéreanãoodeixaramembarcar.Ele saiuandandoporCromwellRoad,foiverumfilme,voltoudepoisdameia-noite,subiuparaoquartoqueocupavaedo qual tinha a chave no bolso, abriu a porta e viu o que lhe pareceu ser elepróprio,sentadonumacadeiradefrenteparaele!AúltimacoisaqueaquadrilhaesperavaeraverolegítimoCônegoPennyfather,quedeveriaestarabomrecadoemLucerna,entrarderepentenoquarto!Osósiaestavajustamentesepreparandopara desempenhar o seu papel emBedhampton quando lá entra oCônego empessoa.Nãosabiamoquefazer,mashouveumrápidoatoreflexodapartedeummembrodogrupo.Humfries,suponho.Golpeouacabeçadovelho,deixando-oinconsciente. Creio que alguém se zangou com isso. E muito. Examinaramcontudo o velhote e decidiram que ele estava apenas desmaiado, queprovavelmentedespertariamaistarde,eassimcontinuaramcomoplano.OfalsoCônegoPennyfatherdeixouoquarto,saiudohoteleseguiuparaocenáriodasatividades,ondedeveriadesempenharoseupapelnacorridaderevezamento.Oque fizeram com o autêntico Cônego Pennyfather, não sei. Posso apenas

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adivinhar. Creio que também ele foi transferido mais tarde, na mesma noite,levadonumcarroatéaochalédovendedordehortaliças,queeraumlocalnãomuitodistantedopontoondeotremseriaassaltado,eondeummédicopoderiaatender ao velho. E, desse modo, se aparecessem notícias de que o CônegoPennyfather foravistonasvizinhanças, tudoseencaixarianosplanos.Deve tersido uma preocupação danada para todos, até que o Cônego voltasse a si, edescobrissemquepelomenostrêsdiastinhamsidoapagadosdasuamemória.

—Deoutromodo,seráqueomatariam?—indagouMissMarple.

—Não— respondeu Papai.—Não creio que omatassem.Alguém nãopermitiriaquetalacontecesse.Parecebastanteclaroqueapessoaquedirigeessenegócio,sejaelaquemfor,fazobjeçãoacrimesdemorte.

—Que coisa fantástica!—exclamouBessSedgwick.—Completamentefantástica!NãocreioqueosenhortenhaqualquerindíciodeligaçãodeLadislausMalinowskicomtodaessaembrulhada.

—Tenhoprovasmais doque suficientes contraLadislausMalinowski—respondeuPapai.—Asenhorasabequeeleédescuidado.Ficourondandoporaqui,quandodeveriaestarlonge.Daprimeiravez,veioestabelecercontatocomsuafilha.Elestinhamcombinadoumaespéciedecódigo.

—Tolice.Elaprópriadisseaosenhorquenãooconhecia.

—Pode termedito,masnãoéverdade.Eestá apaixonadapor ele.Querqueorapazcasecomela.

—Nãoacredito!

—Asenhoranãoestáemcondiçõesdesaber—aduziuoInspetor-Chefe.—Malinowskinãoédessesquecontamtodososseussegredos,easenhoranãoconhecea sua filha,Asenhoramesmaoconfessou.E ficouzangadíssima,nãoficou,quandosoubequeMalinowskivieraaoHotelBertram's?

—Porquemezangariaeu?

—Porqueasenhoraéocérebrodobando—dissePapai.—AsenhoraeHenry.OladofinanceiroeradirigidopelosirmãosHoffman.Elesfaziamtodososarranjos com os bancos continentais, tratavam das contas e de coisas dessegênero,masochefedosindicato,acabeçaquedirigiaeplanejavaeraasua,LadySedgwick.

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Bessolhouparaopolíciaeriu.—Nuncaouviumacoisatãoridícula!

—Não, não temnadade ridículo.A senhora tem inteligência, coragemeousadia. Jáexperimentouquase tudo;eachouquepodia fazerumaexperiênciacom o crime. Muito emocionante, muito arriscado. Não era o dinheiro que aatraía,querocrer,eraodivertimento.Masasenhoranãotoleravaassassíniosnemviolência desnecessária. Não havia mortes, nem assaltos brutais, apenaspancadinhascientíficasemalgumascabeças,quandonecessário.Sabe,asenhoraé umamulher interessantíssima. Um dos poucos grandes criminosos realmenteinteressantes.

Houvesilêncioporalgunsminutos.Porfim,BessSedgwicksepôsdepé.

—Achoqueosenhorestálouco.—Eestendeuamãoparaotelefone.

—Querchamarseuadvogado?Éomelhorquetemafazer,antesquefaledemais.

Comumgestoviolentoelarecolocouofonenogancho.

—Pensandobem,eudetestoadvogados...Muitobem.Sejacomoquer.Sim,eudirijooespetáculo.Eosenhorestámuitocertoquandodizqueeradivertido.Adoreicadaminutodaaventura.Eradivertidíssimotirardinheirodebancos,trenseagênciasdocorreio,edoschamadoscarrosdesegurança!Eradivertidoplanejaredecidir;extremamentedivertido.Vai-secommuitasedeaopote?Foiissooqueosenhordisseaindaagora,nãofoi?Creioqueéverdade.Bem,valeuapenaopreço da entrada! Mas o senhor está enganado quando diz que LadislausMalinowski atirou em Michael Gorman. Não foi ele.Fui eu. — Soltou umagargalhadarepentina,excitada.—Nãoimportaoqueelefez,oqueameaçou...Eudisseaelequelhedariaumtiro...MissMarpleouviu...edeimesmoumtironele.FizexatamenteoqueosenhorinsinuouqueLadislausfez.Escondi-menaárea.QuandoElvirapassou,deiumtiroparaoalto,equandoelagritoueMickyveiocorrendopelarua,tive-onaminhamiraeatirei!Claroquepossuochavesdetodas as entradasdohotel.Meti-mepelaportada área e subiparameuquarto.NãomepassoupelacabeçaquevocêspudessemdescobrirqueapistolaeradeLadislaus,ouqueviessemasuspeitardele.EutinhafurtadoapistoladocarrodeLadislaus,escondidadele.Mas,garantoaosenhor,semamenorideiadeatirarassuspeitassobreele.Evirou-serápidaparaMissMarple.

— A senhora é testemunha da minha confissão, lembre-se.Eu mateiGorman.

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— Ou talvez a senhora esteja dizendo isso porque está apaixonada porMalinowski—sugeriuDavy.

—Nãoestou.—Arespostaveioríspida.—Souamigadele,esó.Ahsim,fomosamantes,quaseporacaso,masnãoestouapaixonadaporele.Emtodaaminha vida amei apenas uma pessoa: John Sedgwick. — Sua voz mudou,suavizando-seaopronunciaressenome.

—MasLadislausémeuamigo.Enãoqueroqueelesejaincriminadopeloquenãofez.EumateiMichaelGorman.JáoconfesseieMissMarplemeouviu...Eagora,meucaroInspetor-ChefeDavy...—Suavozelevou-seexcitada,esuagargalhadavibrounoar...—Venhamepegar,seécapaz.

Comumgestodobraço,rebentouavidraçadajanelacomopesadotelefonee,antesquePapaisepusessedepé,jáestavadoladodeforadajanelaedeslizavarapidamenteaolongodaestreitacornija.Comsurpreendenterapidez,e

adespeitodasuacorpulência,Davycorreuparaaoutrajanelaelevantouocaixilho.Aomesmotemposopravaoapitoquetiraradobolso.

MissMarple,erguendo-secomumpoucomaisdedificuldade,ummomentodepoisestavaaoladodeDavy.Juntos,alongaramoolharpelafachadadoHotelBertram's.

—Elavaicair.Estásubindopelocanodeesgoto—exclamouMissMarple.—Masporqueestásubindo?

—Vaiparaotelhado.Éaúnicachancequetem,sabedisso,Deusdocéu,olhe! Trepa como um gato. Parece uma mosca presa à parede. Como está searriscando!

Miss Marple murmurou, com os olhos semicerrados: — Vai cair... Nãoconseguirá...

Amulherqueelesobservavamdesapareceu.Papai recuouumpoucoparadentrodoquarto.MissMarpleperguntou:

—Osenhornãoquerire...

Papaiabanouacabeça:

—Queéqueeupossofazer,comessecorpanzil?Tenhoosmeushomensa

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postos, prontos para esta eventualidade. Eles sabem o que fazer. Dentro depoucosminutossaberemosoquehouve...Sebemqueeunãomeadmireseelaescapulirnonarizdeles!Éumamulhercomonãoexisteoutra,MissMarple.—Soltou um suspiro. — Uma dessas mulheres indomáveis. Em cada geraçãoaparecem algumas assim.Ninguém consegue domesticá-las, ninguém conseguetrazê-las para a comunidade, e fazê-las obedecer à lei e à ordem. Seguem seupróprio caminho. Se são santas, vão tratar de leprosos ou coisa semelhante, eacabammartirizadasnasselvas.Senãoprestam,cometematrocidadesemqueagentenãopodenemfalar.Eàsvezes...sãoapenasindomáveis!Achoqueteriamdadocertosetivessemnascidoemoutraépoca,numtempoemquecadaumtinhaque tratar de si, em que todos lutavam para semanterem vivos.Riscos a todomomento,perigoem todaparte, e elasprópriasumperigoparaosdemais.Ummundo assim lhes serviria; sentir-se-iam à vontade nele. Este nosso não lhesserve.

—Osenhorsabiaoqueelaiafazer?

—Naverdade,não.Eessaéumadasqualidadesdela:realizaroinesperado.Talvez tenha previsto tudo isso. Sabia o que estava por vir. E ficou sentada,olhandopara nós, deixando a bola rolar... e pensando.Pensando e planejando.Espero...ah...—Interrompeu-seaoouvirosúbitoroncodoescapedeumcarro,o uivo estridente dos pneus, o som de um poderoso motor de corridas. —Debruçou-senopeitoril.

—Elaconseguiu.Pegouocarro.

Houvemaisumrangeragudodepneusquandoocarrodobrouaesquinasóemduas rodas,um roncopotente, eobelomonstrobrancoapareceucomoumbólidonarua.

—Elavaimataralguém—dissePapai.—Capazdematarumaporçãodegente...mesmoquenãoconsigasematar.

—Quemsabese...—disseMissMarple.

—Eladirigemuitobem,éclaro.Dirigedanadamentebem.Puxa,porumtriz!

Ouviramobarulhodocarroaafastar-se,tocandoabuzina,edepoisoruídodiminuiu.Soaramgritos,berros,rangerdefreios,carrosbuzinandoeparandoe,porfim,umgrandeuivodepneuseosdisparosdeumcanodeescape.

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—Elabateu—observouPapai.

Eficoumuitoquieto,esperandocomapaciênciacaracterísticadasuagrandee pacata corpulência.MissMarplemantinha-se silenciosa ao lado dele. Então,comonumacorridaderevezamento,umapalavrafoitransmitidaaolongodarua.UmhomemnacalçadaopostalevantouorostoparaoInspetor-ChefeDavyefezrápidossinaiscomasmãos.

— Acabou-se — traduziu pesadamente Papai. — Está morta. Foi deencontro às grades do parque a noventamilhas por hora.Não houve ninguémacidentado, só algumas ligeiras colisões. Dirigia maravilhosamente. Sim, estámorta.—Voltou-se para o interior do quarto, acrescentando pesadamente:—Bem,primeirocontouahistóriatoda.Asenhoraouviu.

— Sim, — disse Miss Marple. — Ouvi. — Houve uma pausa. —Evidentementeeramentira—concluiuelacalmamente.

Papaiencarou-a.—Asenhoraentãonãoacreditou,nãofoi?

—Eosenhoracreditou?

—Não—respondeuPapai.—Não,nãoeraaversãocorreta.Elainventouaquiloesperandoqueseencaixassenahistória,masnãoeraverdade.NãofoielaqueatirouemMichaelGorman.Poracasoasenhorasabequemfoi?

—Claroquesei—tornouMissMarple.—Amoça.

—Ah!Equandocomeçouapensarassim?

—Sempresuspeitei—assegurouMissMarple.

—Eutambém.Elaestavacheiademedonaquelanoite.Easmentirasquecontavanãoconvenciam.Masaprincípionãoconseguidescobriromotivo.

—Issotambémmeintrigou—disseMissMarple.—Eladescobriraqueamãecometerabigamia,masseráqueumamoça,hojeemdia,cometeumcrimeporcausadisso?Nãoacredito!Suponho...quefoiaquestãododinheiro,não?

— Sim, foi o dinheiro — concordou o Inspetor-Chefe Davy. — O paideixouumafortunacolossal.Quandoameninadescobriuqueamãeeracasadacom Michael Gorman, compreendeu que o casamento com Coniston não eralegal. Pensou que isso significaria que o dinheiro não seria seu, pois, embora

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sendofilhadele,nãoerafilha legítima.Estavaenganada,sabe?Já lidamoscomumcasoparecidocomesse.Dependedostermosdotestamento.Conistondeixouclaramente o dinheiro para a filha, citando-a nominalmente. A pequena iriareceberodinheirodequalquerforma,masnãosabiadisso.Enãoqueriaperdertodaaquelafortuna.

—Porquefariatantaquestãododinheiro?

O Inspetor-Chefe disse, sombrio:— Para comprar LadislausMalinowski.Ele só casaria com ela pelo dinheiro. Semo dinheiro, não casaria. E ela sabiadisso. Mas queria o camarada em quaisquer condições. Estava perdidamenteapaixonadaporele.

—Eusei—disseMissMarple.Eexplicou:—ViorostodelanaquelediaemBatterseaPark...

—Elasabiaque,comodinheiro,ficariacomele,semodinheiro,perdia-o—continuouPapai.—Epor issoplanejouumassassinatoasangue-frio.Claroquenãoseescondeunaárea.Nãohavianinguémnaárea.Ficoudepé, juntoàgrade,deuumtiroegritou;equandoMichaelGormanchegoucorrendopelarua,atirouneleàqueima-roupa.Depoiscontinuouagritar.Namaiorcalma.NãotinhaintençãoalgumadeincriminarLadislaus.pegouapistoladeleporqueeraaúnicaarmadequepodiadisporfacilmente;jamaissonhouqueelepudessesersuspeitodocrimeouqueandassepelosarredoresdaquinaquelanoite.Pensouqueocrimeseriaatribuídoaalgumbandidoqueseaproveitaradonevoeiro.Sim,quecalma!Masdepois,naquelanoite,elatevemedo!Eamãetevemedoporela.

—Eagora...queéqueosenhorvaifazer?

—Seique foi ela a culpada—explicouPapai—masnão tenhoprovas.Talvezelaseaproveitedasortedosprincipiantes...Pareceatéquehojealeiaceitao princípio de permitir ao cão a primeira mordida... traduzido em termoshumanos.Umadvogadoexperientepodefazerdissoumdramalhãodeprimeira:umamocinha, tão jovem, criada em circunstâncias infelizes... alémdisso, ela ébonita,asenhorasabe.

—Sim—concordouMissMarple.—Os filhosdeLúciferquasesempresãobelos.E,comosabemos,florescemcomooloureiroverdejante.

—Mas,conformeeulhedizia,talveznemtenhamosumjulgamento.Nãoháprovas...pensenasenhoramesma...seráchamadacomotestemunha,testemunhadoquedisseamãe...daconfissãodocrimepelamãe.

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—Eu sei.Ela procuroume fazer gravar a confissão, não foi?Escolheu amorteparasi,aopreçodaliberdadedafilha.

—Foicomosemefizesseumúltimopedido...

Aportaquedavaparaoquartodedormirabriu-se,eElviraBlakeentrou.Usava um vestido liso, azul claro. Os cabelos louros lhe caíam pelas faces.Pareciaumdaquelesanjosdapinturaitalianaprimitiva.OlhouparaDavyeMissMarple,edisse:

— Ouvi barulho de carro, de colisão, e gente gritando... Houve algumacidente?

—Lamento informá-la,MissBlake—disse com formalidade o Inspetor-ChefeDavy—quesuamãeestámorta.

Elvira deu um pequeno soluço. — Não. — Era um débil, um inseguroprotesto.

—Antesdefugir—continuouoInspetor-Chefe—porqueelamorreunafuga...suamãeconfessoutermatadoMichaelGorman.

—Entãoeladisse...quefoiela...

—Sim.Foioqueeladisse.Temalgumacoisaaacrescentar?

Elvira fitou o Inspetor-Chefe durante bastante tempo. Depois abanou acabeça,muitodeleve.

—Não.Nãotenhonadaaacrescentar.Deumeiavoltaesaiudasala.

—Eagora—disseMissMarple—osenhorvaiconsentirqueelasesafeassim?

Houve uma pausa. Em seguida, o Inspetor-Chefe baixou o punho, dandoummurroemcimadamesa:

—Não—berrouele.—Não,juroporDeusquenãovou!

MissMarplebalançouacabeçalentaegravemente.

—QueDeustenhapiedadedesuaalma—disseela.

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SobreaAutora

AgathaChristie iniciou sua brilhante carreira literária como livro“OmisteriosocasodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiroromance,revelouumahabilidade fantástica para arquitetar um mistério policial, engendrando umasérie de pistas falsas. Ao mesmo tempo, demonstrava um notável senso deobservaçãopsicológica.

NascidaemTorquay,naInglaterra,emsetembrode1891,AgathaMaryClarissaMillererafilhademãeinglesaepaiamericano,quemorreuquandoelaaindaerabemcriança.Na infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logodescobriuseusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,seu interesse voltava-se para Charles Dickens e Conan Doyle, o criador deSherlockHolmes.

Seus conhecimentos de química, poções e venenos, que têm papelrelevante emquase todas as suas tramas, foramadquiridos quando trabalhoucomovoluntáriaemumhospitaldaCruzVermelha,duranteaPrimeiraGuerraMundial,ajudandoespecialmenteosrefugiadosbelgas.

DameAgathasemprefoiexcelentecozinheira,gostavadavidadomésticae odiava a publicidade e as ocasiões em que tinha de aparecer em público.Construía seus mistérios caminhando pelos parques ou devorando maças emgrandequantidade,duranteseusbanhosdeimersão.Liamuitapoesiamodernae detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por envenenamento”,costumavadeclarar.

“A participação do leitor ê essencial. Ele deve desvendar o mistériolentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão traduzida quantoShakespeare,comquasequatrocentosmilhõesdeexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpelaquarta tiragemmundialde todosos tempos:àsuafrenteestãoapenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.

Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a merecer aadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.

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{i}CriminalInvestigationDepartment(DepartamentodeInvestigaçõesCriminais).