A sociedade política: o exercício do poder como acção...

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Análise Social, vol. XXII (94), 1986-5.°, 859-889 A sociedade política: o exercício do poder como acção condicionada À crise política de uma sociedade não está obrigatoriamente associada uma crise da teoria política. Esta pode ter potência suficiente para explicar o processo que alimenta a crise sem que isso implique que possa, por si, controlá-lo e corrigi-lo. Mas pode uma aplicação inadequada de conceitos e de relações de uma teoria política, sobretudo quando feita numa socie- dade onde as suas normas abstractas e os seus pressupostos não têm verifi- cação assegurada, vir a ser um factor significativo do agravamento dos pro- cessos de crise que estivessem latentes ou em fase primária de manifestação. Este é um efeito conhecido nos processos falhados de modernização social, onde a sociedade «receptora» rejeita os estímulos introduzidos e desencadeia um processo complexo de crise, onde à instabilização irreversí- vel das estruturas tradicionais se junta a instabilidade específica produzida pelos programas de modernização. É um efeito explicável sem dificuldade pelas diferenças de estruturas culturais existentes entre as sociedades «ins- piradoras» ou «imitadas» e as sociedades em modernização. Apesar do voluntarismo dos dirigentes políticos e da adesão de alguns estratos sociais, a generalização e a auto-sustentação do programa de modernização podem ser impedidas por efeito de resistências sociais ou de circunstâncias impre- vistas para as quais não haja capacidade social de resposta eficaz. Nestes casos, a perturbação introduzida pelos estímulos de modernização não é com- pensada pelos ajustamentos sociais e toda a sociedade entra num estado de indeterminação no seu funcionamento normal ou de rotina: não pode reto- mar o seu estado anterior, mas também não consegue estabilizar uma estra- tégia viável para o futuro na base desse programa de modernização. E o facto de a teoria disponível explicar satisfatoriamente este processo de dese- quilíbrios não implica que seja possível dominá-los com os meios de inter- venção existentes nessa sociedade 1 . 1 Gunnar Myrdal, em The Asian Drama an inquiry into the poverty of nations, Allen Lane, Pelican Books, 1968, revela os efeitos das características específicas de uma sociedade no estabelecimento de uma racionalidade inesperada em relação às previsões teóricas elabora- das a partir das experiências históricas de algumas sociedades ocidentais desenvolvidas; Har- vey Leibenstein, em Economic Backwardness and Economic Growth, Nova Iorque, John Wiley, 1957, mostra a necessidade de organizar um «esforço mínimo crítico» para se obter um ritmo de evolução económica que ultrapasse o efeito de atracção das relações tradicionais; Joseph Schumpeter, em Business Cycles, Nova Iorque, McGraw-Hill, 1939, mostra como a evolução cíclica das relações económicas interfere na capacidade de realização dos agentes económicos, designadamente na função empresarial. O domínio eficaz de todos estes factores não será, certamente, conseguido com modelos de acção simplistas e qualquer que seja o coeficiente de voluntarismo que neles se venha a introduzir (mesmo quando esse voluntarismo é apoiado por importantes transferências de capital sob a forma de ajuda ao desenvolvimento). 859

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Análise Social, vol. XXII (94), 1986-5.°, 859-889

A sociedade política: o exercíciodo poder como acção condicionada

À crise política de uma sociedade não está obrigatoriamente associadauma crise da teoria política. Esta pode ter potência suficiente para explicaro processo que alimenta a crise sem que isso implique que possa, por si,controlá-lo e corrigi-lo. Mas pode uma aplicação inadequada de conceitose de relações de uma teoria política, sobretudo quando feita numa socie-dade onde as suas normas abstractas e os seus pressupostos não têm verifi-cação assegurada, vir a ser um factor significativo do agravamento dos pro-cessos de crise que estivessem latentes ou em fase primária de manifestação.

Este é um efeito conhecido nos processos falhados de modernizaçãosocial, onde a sociedade «receptora» rejeita os estímulos introduzidos edesencadeia um processo complexo de crise, onde à instabilização irreversí-vel das estruturas tradicionais se junta a instabilidade específica produzidapelos programas de modernização. É um efeito explicável sem dificuldadepelas diferenças de estruturas culturais existentes entre as sociedades «ins-piradoras» ou «imitadas» e as sociedades em modernização. Apesar dovoluntarismo dos dirigentes políticos e da adesão de alguns estratos sociais,a generalização e a auto-sustentação do programa de modernização podemser impedidas por efeito de resistências sociais ou de circunstâncias impre-vistas para as quais não haja capacidade social de resposta eficaz. Nestescasos, a perturbação introduzida pelos estímulos de modernização não é com-pensada pelos ajustamentos sociais e toda a sociedade entra num estado deindeterminação no seu funcionamento normal ou de rotina: não pode reto-mar o seu estado anterior, mas também não consegue estabilizar uma estra-tégia viável para o futuro na base desse programa de modernização. E ofacto de a teoria disponível explicar satisfatoriamente este processo de dese-quilíbrios não implica que seja possível dominá-los com os meios de inter-venção existentes nessa sociedade1.

1 Gunnar Myrdal, em The Asian Drama — an inquiry into the poverty of nations, AllenLane, Pelican Books, 1968, revela os efeitos das características específicas de uma sociedadeno estabelecimento de uma racionalidade inesperada em relação às previsões teóricas elabora-das a partir das experiências históricas de algumas sociedades ocidentais desenvolvidas; Har-vey Leibenstein, em Economic Backwardness and Economic Growth, Nova Iorque, John Wiley,1957, mostra a necessidade de organizar um «esforço mínimo crítico» para se obter um ritmode evolução económica que ultrapasse o efeito de atracção das relações tradicionais; JosephSchumpeter, em Business Cycles, Nova Iorque, McGraw-Hill, 1939, mostra como a evoluçãocíclica das relações económicas interfere na capacidade de realização dos agentes económicos,designadamente na função empresarial. O domínio eficaz de todos estes factores não será,certamente, conseguido com modelos de acção simplistas e qualquer que seja o coeficientede voluntarismo que neles se venha a introduzir (mesmo quando esse voluntarismo é apoiadopor importantes transferências de capital sob a forma de ajuda ao desenvolvimento). 859

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Este efeito de perturbação é menos esperado quando o processo demodernização se estabelece numa sociedade cuja cultura é homogénea emrelação à área desenvolvida de onde vêm os estímulos de transformação.Esta identidade de padrões culturais gerais torna menos perceptíveis as dife-renças nas estruturas económicas, políticas, sociais e organizacionais. Ondese esperaria uma maior facilidade de adaptação a novos comportamentos,a novas estruturas e a novas estratégias encontra-se, afinal, um processoinesperado de afastamento dos resultados obtidos em relação aos objecti-vos programados.

A interpretação destes processos inesperados levanta algumas dificulda-des teóricas, muito mais sérias do que aquelas que se encontram para anali-sar esses fracassos de modernização em sociedades de estrutura cultural muitodiferente daquela que caracteriza as sociedades «inspiradoras». A utiliza-ção directa de teorias globais, assim como o seu reflexo nas construções ideo-lógicas dominantes, não permitem identificar com precisão os factores res-ponsáveis por esses desajustamentos. A identidade cultural global com associedades evoluídas justifica a aplicação dessas teorias globais ou dessasconstruções ideológicas, mas encobre as particularidades dessa sociedade con-creta que vão interferir no seu processo de transformação. Todavia, a pro-cura de uma teoria original, específica dessas particularidades, é, em últimaanálise, uma impossibilidade: como estabelecer uma teoria para um estadoprovisório de uma sociedade, em estado de «fusão» e de desequilíbrio dassuas relações sociais, depois de ter entrado num processo de transformaçãoque, com ou sem êxito completo, deixará consequências irreversíveis?

Nestas circunstâncias em que se exige a interpretação do inesperado (ines-perado nos resultados e nas construções mentais que presidiram às acçõespolíticas e sociais que provocaram esses resultados inesperados) é aconse-lhável rever as teorias disponíveis de modo a tentar encontrar os critériosde aplicação que são válidos nessa sociedade concreta, considerando-se queaí estarão, provavelmente, as condições de adaptação dessas teorias a essarealidade social. Trata-se de uma reflexão utilitária, na medida em que sepretende definir quais são as condições de adaptação de teorias gerais àsparticularidades de uma sociedade concreta. É, também, uma reflexão polí-tica, no sentido em que esse trabalho tem por finalidade última definir ascondições de decisão política eficaz: com objectivos que sejam possíveis,com meios mobilizáveis, ajustada aos comportamentos e relações nessa socie-dade, com continuidade regulada que projecte essa decisão viável nas con-dições futuras. Mas não deixa de ser uma reflexão teórica: as condições derigor da teoria não são garantidas porque evita os problemas práticos deaplicação, mas sim porque assume a consistência interna e a justificaçãoexterna das propostas que são derivadas de um certo corpo teórico.

O centro deste texto é a análise de um processo de transformação polí-tica associado a um objectivo geral de modernização social. Nesse centro,o tema principal é o sistema de condicionamentos que a sociedade política— os comportamentos e as relações sociais com relevância política — cons-titui para a acção política, para o exercício do poder político e, de modogeral, para a adaptação das teorias disponíveis às características específicasde uma sociedade concreta.

O tratamento deste tema não obedece a um programa simples e linear.A necessidade de romper falsas evidências, preconceitos e concepções«importadas» sem as necessárias precauções obriga a fazer vários desvios

860 para que o corpo principal de conclusões apareça com suficiente nitidez no

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fim da análise. Por outro lado, não se trata de procurar construir uma teo-ria nova com base na crítica sistemática das teorias existentes; o objectivoprincipal é de tipo adaptativo, utilizando-se as teorias disponíveis para ten-tar revelar o que há de específico numa sociedade concreta. Finalmente, trata--se mais de explorar as indicações derivadas dos fracassos do que afirmarcertezas e convicções.

A primeira precaução a ter está na valorização que habitualmente é feitado poder político. O poder é fascinante, e mesmo a teoria do poder nãoescapa a esse fascínio . Esse fascínio dificulta a distanciação crítica, factoque, sendo evidente no autoconvencimento dos políticos, não deixa de teros seus efeitos na produção teórica. Ao poder como possibilidade genéricade acção associa a teoria a noção de racionalidade3, atribuindo assim aoseu objecto de análise uma qualidade de relação lógica que permite ao teó-rico candidatar-se a um exercício específico, especializado, do poder — tantomais importante quanto maior for o valor atribuído pela sociedade à quali-dade da acção racional. Mas como compatibilizar estes preconceitos positi-vos com a evidência negativa dos fracassos na acção política, onde o podernão realiza o que dele se espera e a racionalidade não aparece confirmadana descrição dos acontecimentos? É a partir deste ponto que se tentará ana-lisar o papel da teoria política e, de um modo mais concreto, qual o objectoda sociologia política — com a finalidade de, por essa via, esclarecer condi-ções essenciais para a acção política em Portugal.

A segunda precaução refere-se ao reconhecimento de que há uma multi-plicidade de sociedades políticas — o que desde logo implica que nem todasas teorias políticas sejam directamente aplicáveis, sem nenhuma adaptação,a todas as sociedades. A questão que se coloca a partir deste ponto é a daconstrução simultânea de referenciais que localizem o tipo de sociedade eo tipo das teorias aplicáveis, admitindo a hipótese de que a insuficiênciade algumas teorias pode estar mais dependente dos erros de aplicação doque da teoria em si mesma.

O que se pretende extrair deste texto é uma teoria do poder como acçãopolítica condicionada. Se a crítica do fascínio do poder possibilita uma inter-rogação esclarecedora sobre a racionalidade do exercício concreto do poder 4,a referência sistemática às condições de acção política deverá permitir deli-mitar o que são as possibilidades políticas numa certa sociedade. Implicita-mente, fica assim delimitada uma agenda política que, não se confundindocom qualquer programa político, constitui um referencial de avaliação quepermite interpretar as situações políticas concretas e assim esclarecer as con-dições de utilização controlada das teorias disponíveis.

1. FRACASSO EM POLÍTICA

Os trabalhos de análise política reflectem, com frequência, uma relaçãode fascínio com o poder. Em lugar de ser um factor de compreensão crí-

2 Max Weber, Politics as Vocation, da colectânea Gesammelte Politische Schriften, 1921:«Quem se dedica à política, isto é, ao poder e à violência como meios, faz um pacto compotências diabólicas», in H. H. Gerth e C. Wright Mills, From Max Weber, Londres, 1947.

3 Max Weber, Economy and Society, Nova Iorque, Roth e Wittich (eds.), vol. i, 1968.4 Barbara Tuchman, La Marche Folie de l'Histoire, Paris, Laffont, 1968; Henry Kissin-

ger, The White House Years, Londres, Weindenfeld and Nicolson, 1979; Harold Wilson, TheGovernance of Britain, Londres, Weindenfeld and Nicolson, 1976. 861

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tica, a distância do analista em relação às sedes e aos modos de exercíciodo poder tende a produzir um efeito de sobre-racionalização, dotando oagente político de uma capacidade para ordenar factores complexos que nemo analista, com as suas construções teóricas controladas e a autoridade paraproceder à selecção dos factores relevantes, aspira a ter.

Em parte, isso será consequência de os analistas da relação política reflec-tirem nas suas posições as imagens sociais do poder. O poder político é umobjectivo socialmente desejado, a que está associada uma capacidade de rea-lização só possível mediante a utilização desses meios excepcionais que sóo poder político controla: a essa excepcionalidade corresponde a imagemsocial de possibilidades muito superiores à de qualquer outra função social.Mas o poder é também pretexto para relações de desconfiança, de temore de resistência — designadamente por parte dos grupos sociais que não têmuma perspectiva razoável de o vir a conquistar: esta é ainda uma relaçãode fascínio, cuja intensidade está directamente relacionada com aquilo quese espera que o poder permite realizar. Ao observar, descrever e interpretarestas relações, é frequente o produtor de análises políticas deixar-se envol-ver nestas imagens, que, sendo as imagens sociais dominantes, fazem parteda sua experiência e são uma condição de inteligibilidade das suas análisespor parte dos que as utilizam. Para que esse envolvimento não se limite aser uma relação emocional, é natural que apareça, ao nível da expressão,controlada pela mediação de racionalizações — seja valorizando a estraté-gia que preside à conquista e ao exercício do poder, seja sublinhando ostraços heróicos ou o estado de inevitabilidade daqueles que resistem aos queconquistam o poder. Em qualquer dos casos, a perspectiva dominante naanálise política é a que considera a relação política uma relação entreestratégias5, cada uma delas racionalizada no quadro dos seus objectivose dos modos de entender as situações reais. Do ponto de vista da constru-ção da teoria, este passo pode ser visto como equivalente à elaboração de«tipos ideais», necessários para a ordenação dos factos e das lógicas de com-portamento. Contudo, este artifício analítico tem, na análise das questõespolíticas, um importante efeito especial de circularidade autoconfirmativa,na medida em que esses «tipos ideais» se sobrepõem ao que são as imagenssociais dessas relações. Como a concessão de legitimidade política se baseiana convenção de racionalidade dos agentes políticos escolhidos e como aanálise política atribui a esses mesmos agentes uma lógica de racionalizaçãodos seus comportamentos, fica assegurada a evidência (ou a necessidade)dessa racionalidade.

Este efeito de racionalização é reforçado pelo facto de, em geral, o pro-dutor de análises políticas ser exterior aos processos políticos que observa,

5 A relação estratégica e entre estratégias não se limita ao sentido trivial de organizaçãode meios para atingir objectivos. A questão essencial para uma estratégia e para uma relaçãoentre estratégias é a interdependência de expectativas entre os vários grupos sociais dotadosde organização, de meios e de objectivos, que assim aparecem como agentes colectivos queencontram uma forma de representação parcial ou composta nos agentes políticos. Neste sen-tido, as estratégias que os agentes políticos desenvolvem são, por sua vez, composições especí-ficas, adaptadas ao seu campo de acção, das estratégias desses grupos sociais. Não se estánem no pluralismo estrito (em que os grupos sociais organizados têm uma representação directano sistema político) nem na politização estrita (em que os agentes políticos detêm toda a auto-nomia de concepção das suas estratégias), mas numa situação mista de articulação entre gru-

862 pos sociais organizados e agentes políticos.

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descreve e interpreta. Esta distância é mesmo considerada uma recomenda-ção metodológica para assegurar a isenção do observador. Porém, será razoá-vel admitir que alguém se possa manter exterior e indepentende em relaçãoao poder e em relação à atribuição de graus de racionalidade às acções polí-ticas? Ninguém é exterior aos debates políticos, do mesmo modo que nin-guém é exterior aos efeitos de exercício do poder. A distância do analistaserá, muitas vezes, uma inevitabilidade neste campo teórico (os canais doexercício do poder são áreas de acesso restrito), mas o que isso poderá ofe-recer de independência virá sempre misturado com o que também implicade relação fascinada, incluindo-se nesse fascínio a tendência (social e analí-tica) para proceder a reconstruções racionalizadas desses fenómenos.

Há ainda um passo mais na mesma direcção que é imposto pela relaçãomuito especial que se estabelece entre as instituições universitárias e as cir-cunstâncias do exercício do poder. Enquanto membros da academia, a expe-riência dos analistas em relação aos fenómenos do poder é limitada; enquantoactores específicos nos processos de exercício do poder, o seu papel fica cir-cunscrito à modalidade de racionalização, na medida em que essa é a suaespecialização e a sua utilidade para os detentores legitimados do poder.Neste contexto, é útil reflectir sobre o que têm sido algumas consequênciasexemplares das relações de académicos (e de diferentes especialidades teóri-cas) com o poder: a frustração (Oppenheimer, Weber), a desilusão ou o com-prometimento ingénuo (Einstein, Heidegger, Sakharov), o cinismo utilitá-rio (Keynes, Kissinger). Estes exemplos não pretendem provar umaimpossibilidade de relação controlada entre a produção teórica e os fenó-menos do poder, mas apenas sublinhar a dificuldade que existe na relaçãode reflexão analítica sobre o poder. Em todos os casos, o fascínio terá exis-tido e terá mesmo sido levado a graus de excesso emocional que impediramuma análise objectiva e controlada do fenómeno a que aceitaramassociar-se6.

É certo que nos casos onde se pode detectar uma atitude de cinismo uti-litário haverá aquilo que se pode considerar como o domínio eficaz do pro-cesso político através dos instrumentos oferecidos pela teoria. Estaríamos,então, perante uma real inteligibilidade dos fenómenos do poder. Do mesmomodo que Keynes fez a sua fortuna jogando na Bolsa e utiliza as suas rela-ções de Cambridge para se tornar um influente agente político7, tambémKissinger soube usar as suas relações académicas e a Rockfeller Foundationpara se tornar um interventor directo nas relações políticas8. Contudo— e em parte por isso mesmo, mas também porque, a partir desse momento,a teoria se traduz em acção política —, dessa inegável inteligibilidade dosfenómenos do poder não decorre que os textos por eles escritos com esseobjectivo, nessas circunstâncias e sobre esses acontecimentos possam ser ana-lisados e usados como teoria desinteressada. Não é uma experiência repetí-vel que outros possam submeter a uma teste de validade independente9 e

6 Ver C P . Snow na série de romances sob o título genérico de Strangers and Brothers,ilustrando as relações entre «duas culturas», a científica e a política.

7 Bertrand Russel, Portraits from Memory, 1956; Milo Keynes (ed.), Essays on John May-nard Keynes, Cambridge University Press, 1975; Richard Shore, Bloomsbury Portraits, Lon-dres, Phaidon Press, 1976.

8 Malvin Kalb e Bernard Kalb, Kissinger, Hutchinson of London, 1974.9 Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery, Londres, 2.a ed., 1968. 863

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a sua eficácia localizada não garante a sua generalização. E, ainda que algu-mas das suas proposições possam ser testadas em condições rigorosas, ficarápor controlar a matriz de experiências e de objectivos de onde essas propo-sições emergem10. É mais natural que esses textos devam ser consideradoscomo objectos merecedores de uma análise política do que como a inter-pretação rigorosa dos fenómenos que descrevem.

Se aqui não há distância em relação ao poder, há, em contrapartida,um excesso de fascínio pelo poder. Se esta proximidade do poder conduzao cinismo utilitário, onde já não há a necessidade ingénua de racionaliza-ção, a elaboração teórica sobre esses acontecimentos, e produzida nessascircunstâncias, tende a tornar-se autojustificativa, o que faz reentrar em cenaa necessidade racionalizadora, ainda que com a manipulação deliberada dainformação disponível11l.

Por qualquer das vias até agora referidas, o objecto da análise políticapermanece encoberto pelas relações de fascínio, de temor, de desconfiança,de resistência ou de simples utilitarismo. Não há dúvida de que o poder existee de que o poder é exercido. Mas, quando se procura precisar os contornose a composição interna dessa realidade, o que se encontra é uma sucessãode convenções sociais ou teóricas, centrada numa noção de racionalidadeque é, ao mesmo tempo, necessária para a fundamentação do poder e inde-terminada quanto aos seus efeitos no exercício do poder12.

Neste tipo de situação propenso à ilusão, onde nada é o que parece deverser e não se vê o que se procura e se julgaria evidente, onde se conjuga arelação de fascínio com a aparente impossibilidade de se observar o fenó-meno, são os textos jornalísticos (e os documentos históricos) aqueles quemelhor delimitam a questão central do poder político. Essa vantagem nãoderiva de um controlo analítico: é óbvio que são também textos fascinadose, muitas vezes, modos indirectos de expressão dos agentes do poder. Masa sua superficialidade e a sua actualidade em relação ao fenómeno que regis-tam permitem a esses textos reflectir as contradições internas ao exercíciodo poder, espelham as incertezas dos agentes políticos e revelam um graude arbitrariedade na acção política que é muito diferente do que está con-vencionado nas imagens sociais do poder. Ainda que involuntariamente, ostextos jornalísticos rompem a presunção de racionalidade que se encontrageralmente nos textos de análise política.

Na sua maior simplicidade e no seu imediatismo, o jornalismo políticorevela as deficiências de racionalização onde se inscreve o fracasso polí-tico — e é por aqui que se consegue estabelecer uma primeira imagem real,

10 Um exemplo é a defesa do parlamentarismo por Max Weber como reacção à «deserti-ficação» de agentes políticos competentes provocada por Bismarck e considerada uma neces-sidade para a formação dos políticos — e não uma fórmula política institucional defensávelpor si mesma. Ver Wolfgang Mommsen, Max Weber et la Politique Allemande, Paris, PUF,1985 (ed. original de 1959), pp. 226-240.

11 David Stockman, The Triumph of Politics: why the Reagan revolution failed, NovaIorque, Harper and Row, 1986; Harold Wilson, op. cit., Richard Crossman, The Diaries ofa Cabinet Minister, Londres, 1975.

12 Bertrand de Jouvenel, Du Pouvoir, Paris, Hachette, 1972 (l .a ed., 1945), secção «Lacrise politique et les conséquences politiques du protagorisme», p. 342; Gérard Ferreyrolles,Pascal et la Raison du Politique, Paris, PUF, 1984, cap. 3, «La concupiscence collective»:«O poder é desejado pela concupiscência, obtido pela força e perpetuado pela imaginação:

864 três fadas maléficas que se debruçam sobre o destino da cidade humana», p. 98.

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uma primeira aproximação, do que é o poder e do que são as circunstân-cias do seu exercício13.

Não se pretende propor a substituição dos métodos e textos da análisepolítica pelos métodos e textos do jornalismo político. Trata-se, antes, deestabelecer a necessidade de conceber e produzir os métodos de análise polí-tica a partir da verificação empírica dos fracassos do poder, em lugar demanter nos textos de análise o mesmo tipo de fascínio que se encontra nasimagens sociais do poder14.

Esta é uma necessidade que se impõe naturalmente na análise dos fenó-menos políticos em Portugal. A evolução política tem-se processado nestasociedade de modos paradoxais e perversos, onde os objectivos atingidosnão correpondem, nem sequer se articulam consistentemente, com as inten-ções anunciadas pelos detentores do poder15. O que se encontra na acçãopolítica dos que exercem o poder é a perplexidade e o ajustamento perpé-tuo, seja perante as evoluções críticas que não controlam, seja pela incapa-cidade de atingir os objectivos que escolhem. Em qualquer das hipóteses,terá de se concluir que não aparece confirmada a expectativa de racionali-dade que está associada à imagem social do poder e prevista na generali-dade das teorias estabelecidas do poder.

Nenhum detentor do poder estará interessado em que seja posta em causaa racionalização da sua acção política. Por isso, a enorme evidência comque o fracasso político é revelado no caso português16 aparece como umsinal indirecto de que há uma questão interna ao exercício do poder e à suafunção de racionalização que se sobrepõe às imagens sociais e teóricas dopoder, que é mais importante do que o fascínio, a desconfiança ou o temordo poder em abstracto. A questão central não é a conquista do poder (afi-nal, tornada mais simples ou mesmo trivial em consequência dessas defi-ciências de racionalização), mas sim a sua conservação, ou seja, a dimen-são do exercício do poder, das suas condições concretas e das suascircunstâncias.

Em lugar de postular a racionalidade estratégica das circunstâncias polí-ticas, o caso português aconselha a analisarem-se as condições concretas e

13 O caso de Richard Nixon é o mais espectacular no que se refere ao efeito do jorna-lismo político. Mas as agonias físicas e políticas de Yuri Andropov, Francisco Franco e Geor-ges Pompidou, amplamente comentadas e ilustradas, são outros contributos para a dúvidasocial quanto à majestade do poder. Inversamente, é digna de nota a edição especial de umjornal, como é comum nos filmes de ficção, para manter António Salazar convencido de queo seu poder ainda existia.

14 Neste campo, o contributo da Escola de Francoforte (Adorno, Horkheimer, Benjamin,Marcuse e, depois, Habermas) para a análise da perversão das doutrinas alienantes é essen-cial. Contudo, o fascínio pela racionalidade do poder e pela sua capacidade para impor assuas racionalizações nunca foi controlado (e o caso extremo desse fascínio será Marcuse, paraquem a proposta da sociedade unidimensional aparece como a tradução teórica da ficção deOrwell suavizada pela manipulação subtil da consciência).

15 Este tipo de evolução paradoxal pode ser adequadamente representado em termos deuma acção política em contrariei o que, nos seus fracassos naturais numa sociedade com pou-cos recursos para financiar esses erros, gera novos ciclos de perturbação em amplificações nãocontroladas.

16 Dois indicadores comparativos em relação a outras sociedades democráticas: o tempode permanência dos governos e a amplitude de variação na composição partidária dos gover-nos — ainda que a isso não correspondam variações práticas significativas dos modos de acçãopolítica e dos seus resultados. £55

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as circunstâncias do exercício do poder para daí se extraírem os critériosde avaliação das acções políticas reais17.

Antes de se estabelecer uma teoria do poder é necessário estabelecer ascondições do exercício do poder18. Esta é a implicação de se optar por umaanálise concreta, que se terá de estruturar em função de uma sociedade con-creta, com as suas entidades políticas, os seus procedimentos, os seus canaisde decisão, as suas potencialidades no quadro das relações internacionais.Mas é também uma necessidade que decorre da evolução paradoxal da polí-tica portuguesa — sendo certo que este juízo decorre, antes do mais, dacomparação que tem de ser feita entre o que seria previsto pela teoria polí-tica estabelecida noutras sociedades (e que encontra o seu reflexo nos pro-jectos de agentes e de entidades políticas nacionais menos atentas a particu-laridades desta sociedade) e o que acontece na sociedade portuguesa.

Justamente porque a análise das particularidades de uma sociedade deveser o primeiro fundamento na acção política — seja no sentido da conquistada legitimidade, seja na perspectiva dos projectos possíveis —, considera-seque o primeiro tipo de condições do exercício do poder a analisar é que sesitua na dimensão social, a sociedade política, o conjunto de comportamentossociais com relevância política.

Ainda que as relações políticas possam ser objecto de uma análise abs-tracta e geral, comum a diferentes tipo de sociedades, há diferenças subs-tanciais nos comportamentos políticos em diferentes sociedades, mesmo queestas se integrem numa única área cultural ou apresentem graus de desen-volvimento semelhantes. Este é um domínio onde as análises de sociologiapolítica comparada podem contribuir para um melhor esclarecimento dascondições reais de acção política — em especial, para o esclarecimento dadiferença crucial que existe entre uma evolução inesperada e as sequênciascontroladas de acções políticas dotadas de racionalidade estratégica, ajus-tada às condições e meios de acção.

As imagens de necessidades e de expectativas transferem-se rapidamenteentre sociedades, designadamente quando ligadas por canais de comunica-ção rápida. Neste sentido, há uma crescente homogeneização da procurasocial em relação ao tipo de produto político. Mas, porque os comporta-mentos e as dinâmicas sociais não são idênticos em sociedades diferentes,nem se alteram ao mesmo ritmo a que se processa a variação de necessida-des e de expectativas, há uma forte possibilidade de se vir a manifestar umadesconexão entre o plano dos objectivos sociais e o plano das possibilida-des políticas19. À homogeneidade da procura corresponde a heterogenei-

17 O exemplo mais interessante que ilustra a dificuldade desta atitude é o de Max Weber,que, não obstante a sua preocupação com o estabelecimento de bases objectivas de análise,teve variadas intervenções políticas — designadamente durante a guerra em defesa das razõesalemãs — onde essa objectividade não ficou assegurada. Ver Anthony Giddens, Politics andSociology in the Thought of Max Weber, Londres, Macmillan, 1972; Wolfgang Mommsen,op. cit., cap. VII: «A guerra mundial, prova qualificativa do Reich como potência mundial.»

18 Bertrand Badie e Pierre Birnbaum, Sociologie de l'État, Paris, Grasset, 1979 e 1982:«A nobreza, a burguesia, a classe operária ou ainda, nos nossos dias, as classes médias estabe-lecem entre si relações muito diferentes, conforme se encontram confrontadas com um Estadofortemente centralizado ou com um centro que exerce essencialmente funções de coordena-ção» (p. 171).

19 Não é por acaso que esta relação aparece como um tema central das teorias da revolu-866 cão, ou seja, das análises de processos de fracasso dos mecanismos de auto-regulação.

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dade das condições de oferta política — e, porque a variação ocorrida nasnecessidades e expectativas sociais não tem contrapartida suficiente na evo-lução dos comportamentos sociais, os decisores políticos ficam confronta-dos com situações de gestão difícil ou mesmo impossível.

É nesta possibilidade de desconexão entre dois movimentos sociais (uminduzido pela variação de necessidades e expectativas a que não correspon-dem as condições internas de realização e outro produzido por uma acçãopolítica que não tem ao seu alcance todos os meios necessários para a satis-fação daquela procura), criando-se assim um contexto bloqueado para a deci-são política, que se inscreve uma das principais razões do fracasso das estra-tégias políticas. Mas a avaliação deste fracasso não deverá ser feita em termosde critérios abstractos e universais, pois isso equivaleria a esquecer que asfontes desse bloqueamento são particularidades locais.

A parte mais significativa desse bloqueamento é constituída pela dinâ-mica das relações sociais internas. Porém, deve-se também ter em conta,sobretudo nos pequenos países e nas sociedades dependentes, o efeito quetem para os próprios decisores políticos a interferência de modelos, de con-cepções e de procedimentos que são importados de outras sociedades semque esteja garantida a sua compatibilidade com as possibilidades locais deacção política e com as possibilidades sociais reais. Se é verdade que há umagrande rapidez de expressão social de novas necessidades e de novas expec-tativas, não é menos verdade que há também uma considerável rapidez noconsumo de novidades nas instâncias de decisão e nas personalidades polí-ticas — a que não será alheio o seu estatuto de élite social em contacto regularcom o exterior, o seu papel de interlocutor com as potências dominantese a sua vontade de orientar a modernização em função de imagens colhidasnesses seus contactos superficiais com áreas consideradas mais desenvolvidas.

Este processo é facilitado (e as suas consequências agravadas) pelo factode a crescente homogeneização na procura social em relação ao produto polí-tico criar problemas políticos semelhantes em diversas sociedades (com asmesmas descrições sintomáticas e as mesmas designações analíticas). Toda-via, isso não significa que haja em todas essas sociedades possibilidadessociais reais idênticas para responder a esses problemas. É assim que se tornanecessário admitir um outro tipo de desconexão, agora estabelecido entreos movimentos internos e os movimentos externos, criando um contexto ilu-sório para a decisão política.

Se estes dois contextos, o bloqueado e o ilusório, se sobrepuserem numasituação concreta, a realidade prática do poder político passa a ser muitodiferente da sua imagem social. Mas não há nenhuma garantia de que essadiferença entre a realidade e a imagem tenha sido compreendida ou estejaa ser controlada. A expectativa básica que preside às acções dos grupossociais continua a ser a de que o exercício do poder político obedece a con-dições de racionalidade. Por sua vez, os detentores do poder político nãopodem reconhecer publicamente a realidade do bloqueamento e da ilusãoa que as condições políticas — neste caso, as condições sociais da acçãopolítica — os conduziram.

Estabelece-se assim um jogo de aparências. Mesmo que alguns grupossociais diagnostiquem correctamente a situação de bloqueamento e de ilu-são em que se encontram os agentes executivos do poder, nada podem fazerdirectamente: há uma continuidade essencial na acção social e nenhum grupopode interromper a sua actividade sem sofrer custos elevados — ainda quesaiba que manter a actividade nessas condições de descontrolo e de crise 867

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implique a impossibilidade de calcular as consequências e os resultados.E, porque não há efectivo controlo político, o resultado global mais prová-vel para toda a sociedade é a consolidação daquelas condições políticas queestão na base do bloqueamento e da ilusão.

O que importa sublinhar é que estes processos se desenrolam à margemdos conceitos tradicionais (sociais e teóricos) do poder. Ao contrário do quese deveria esperar de uma teoria da acção racional, não é um jogo de estra-tégias desenvolvido entre entidades políticas que produz este contexto blo-queado e ilusório. É uma série de condições a que a acção política se subor-dina (designadamente as condições dessa sociedade que são relevantes paraa acção política) que produz este contexto quando os agentes políticos nãoas compreendem, não as controlam com estratégias deliberadas ou não seadaptam a elas de modo a estabelecer as suas estratégias nessa base. Nãose pode considerar que a formação daquele contexto seja um objectivo estra-tégico racional, pois são situações em que todos perdem. Porém, não sepoderá compreender o exercício do poder (nem estabelecer a sua teoria) senão se tiver em conta a possibilidade de surgirem contextos do tipo descritoe caracterizados pelo bloqueamento e pela ilusão dos agentes políticos.

2. AS CONDIÇÕES DA TEORIA EM POLÍTICA

Será possível estabelecer uma teoria da acção política que não se limitea um paciente trabalho de interpretação de acontecimentos já verificadose aspire a ter alguma potência previsional? Não será inevitável que a teoriada acção política (como, em geral, acontece com os trabalhos sobre a teoriada decisão) oscile entre o voluntarismo a priori, simplificador ou ideoló-gico com finalidades mobilizadoras, e o criticismo a posteriori, descritivo,hermenêutico, mas, em última análise, impotente? Não haverá espaço parauma posição crítica e realista entre estes dois extremos e que permita umaclarificação dos quadros de possibilidade que se abrem para o futuro?

Hans Morgenthau20 coloca o problema nestes termos:

O pensamento teórico e a acção, como modos típicos do comporta-mento humano, estão irremediavelmente separados em consequência dassuas estruturas lógicas. Na medida em que a política é, na sua essência,acção, fica definido, com o mesmo tipo de necessidade, um abismointransponível, uma tensão permanente, entre a política e uma ciênciateórica da política [...] Uma ciência da política tem um objecto que lheé existencialmente exterior. Ao submeter a política à análise teórica, avita contemplativa está a colocar como seu objecto a vita activa, queé seu oposto e a sua negação.

E, para ilustrar esta posição básica, acrescenta:

Quando homens que realmente mudaram o mundo político atravésda sua acção, como Machiavel e Bismarck, escrevem as suas reflexõesteóricas sobre o que fizeram como actores políticos, transmitem uma sen-

868 P. 143.

20 Hans Morgenthau, «Thought and action in politics», in Social Research, vol. 38, n.° 4,

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sacão de resignação, revelando a insuficiência de um substituto, que éa reflexão teórica, em relação à coisa real, que é a acção21.

A inferência desta afirmação é clara:

Uma exploração séria sobre a natureza teórica da política é um sin-toma da incapacidade para criar um mundo político com finalidade22.

Um período de desenvolvimento da teoria política, ou, pelo menos, umperíodo marcado por uma maior intensidade de reflexão sobre os processospolíticos, seria, assim, um produto da crise política, um produto do fra-casso da acção política, um modo de compensar, pela elaboração de con-ceitos racionalizadores, a falta de racionalidade objectiva da acção política.A racionalidade teórica estaria a preencher o vazio deixado por uma racio-nalidade política que era socialmente esperada, mas que os factos não estãoa confirmar:

Quando o poder político entra em declínio e a realidade ameaça ultra-passar a possibilidade de controlo político, procuramos pelo menos asse-gurar o controlo intelectual através da compreensão teórica do mundopolítico. Pode-se então dizer que a compreensão teórica vem em ajudada acção. Não pode fazer o que a acção política não conseguiu fazer,ou seja, mudar a realidade em função de um objectivo, e, portanto, nãopode servir como um substituto da acção política. Mas pode ofereceruma compensação psicológica pelo fracasso da acção política23.

Estas noções delimitam um quadro dominado pelo pessimismo. Eleestrutura-se em termos da articulação de dois paradoxos referidos por Mor-genthau. No primeiro, uma teoria da política que seja significativa deve estarorientada para a acção política. Mas a componente normativa da teoria sóserá relevante se a vontade do agente de decisão política for compatível comela. Nas circunstâncias contemporâneas, em que a decisão política está con-dicionada por múltiplos factores, internos e externos, que transcendem avontade dos decisores, aquela compatibilidade entre a teoria e a vontadejá não é suficiente:

Actualmente, a política tornou-se, em grande medida, uma aventuracega. Qualquer acto pode libertar forças sobre as quais o actor não temnenhum domínio, nem mesmo na sua cabeça. Nenhuma teoria, ou, pelomenos, nenhuma que seja aceitável pelos poderes políticos que existem,tem sido capaz de produzir, pelo menos, alguma ordem racional nestecaos, oferecendo à vontade política a possibilidade de escolha racional.Deixada entregue aos seus processos emocionais, a vontade políticarefugia-se naquilo que julga poder realizar mais facilmente, a defesa dostatus quo24.

21 Hans Morgenthau, «Thought and action in politics», in Social Research, vol. 38, n.° 4,p. 145.

22 Id., ibid.» p. 146.23 Id., ibid., p. 148.24 Id., ibid., p. 151. 869

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O segundo paradoxo é o inverso do primeiro e resulta de uma outra carac-terística das sociedades contemporâneas: o papel atribuído à racionalidadecientífica e, por essa via, o facto de se associar uma elevada expectativa aoscontributos da teoria para a orientação da acção — expectativa que estádifundida em toda a sociedade e a que os decisores políticos não se podemfurtar:

Esta é a época das ciências sociais, que procuram compreender e,por essa via, dominar as forças da sociedade e, mais particularmente,da política [...] Cada problema social é considerado resolúvel por umasolução racional, cientificamente determinada25.

Porém, as situações políticas reais não correspondem aos universos con-trolados das construções académicas. E assim ficam colocados os dirigen-tes políticos perante um duplo constrangimento26: têm de respeitar (e acre-ditando nelas) as indicações científicas, ao mesmo tempo que verificam asua inaplicabilidade aos problemas reais, mas sem o poderem reconhecerpublicamente, sob pena de verem diminuída a sua credibilidade social e, pro-vavelmente, prejudicadas as suas hipóteses eleitorais27.

Do pessimismo apriori do primeiro paradoxo (a teoria política não con-segue substituir nem simular satisfatoriamente os contextos e a especifici-dade da acção política) chega-se ao pessimismo a posteriori do segundo para-doxo (a acção política já não se desenvolve sem um suporte de racionalizaçãoteórica numa época marcada pela credibilidade científica, ainda que a expe-riência do político lhe revele a insuficiência dessas indicações científicas paraas suas decisões correntes).

Esta posição tem o seu contraponto no optimismo do «milenarismo»marxista, assente no factor de racionalidade que é introduzido pela luta declasses, que deve conduzir a humanidade ao limiar da sociedade sem explo-ração — e, no seu prolongamento leninista, sem dominação e sem Estado.O contraste entre esta previsão e a situação política prática em sociedadesque se fundamentam no respeito por estas posições teóricas será um exem-plo significativo da dificuldade da sua aplicação. É certo que a utilizaçãohábil do conceito de contradições nos sistemas sociais e nas motivações degrupos permite salvaguardar a validade formal destas teorias assentes nahiper-racionalização. Quando os resultados não correspondem à previsãoteórica, isso fica a dever-se a uma interpretação inadequada da necessidadehistórica, seja por efeito de processos alienatórios, seja por efeito do jogoobjectivo das contradições de que os grupos e agentes não têm inteira cons-ciência — e sem que essas soluções provisórias que se afastam da previsão

25 Hans Morgenthau, «Thought and action in politics», in Social Research, vol. 38, n.° 4,p . 151.

26 É uma situação que correponde, no domínio da acção política, à relação de doublebindy proposta por Gregory Bateson em Steps to an Ecology of Mind, 1972.

27 Em contrário desta possibilidade está o exemplo de Ronald Reagan, cujo sucesso elei-toral não está relacionado com a sua credibilidade científica nem com a sua capacidade pararealizar o programa com que se apresenta às eleições. Contudo, não se deve esquecer o efeitode racionalização que tem a imagem de corporate management no interior das instituiçõespolíticas americanas e o efeito muito poderoso exercido (na decisão política real e na constru-ção destas imagens de racionalização) pelas estruturas de intermediação, permitindo que o

870 decisor político se concentre nas funções de coordenação e de comunicação.

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teórica inicial possam alterar a conclusão inevitável, que apenas terá sidoadiada. Porém, tudo isto é de pouca utilidade para o agente político — comose verifica analisando as atitudes daqueles que se reclamam desta posiçãoteórica sobre a política. De nada lhe serve saber-se inserido num jogo decontradições se não as puder controlar, ou num processo alienatório se nãoconseguir atingir e transmitir socialmente o conhecimento objectivo. E, sepreferir seguir as prescrições estritas do «milenarismo» marxista, colocando--se «do lado da história», continuará confrontado com o mesmo problemabásico identificado pelos pessimistas: como fundamentar a decisão políticaeficaz na acção política concreta?

O que se refere quanto às limitações práticas das construções marxistas(que não se alteram nas produções mais recentes desta escola na medidaem que conservam a tese de uma racionalidade subjacente à dinâmica his-tórica e que é inerente à divisão de uma sociedade em classes) aplica-se, semnecessidade de grandes alterações, aos modelos estruturo-funcionalistas glo-bais do tipo dos que são apresentados por Talcott-Parsons e discípulos28.Também aqui as indicações práticas são utilizáveis apenas quando tudo sepassa de acordo com o modelo (aqui, a sociedade pluralista com diferen-ciação funcional integrada por um padrão de valores comum e dotada demecanismos sociais de auto-regulação), mas nada se pode fazer quando assituações evoluem de modos diferentes daqueles que estavam previstos naconstrução teórica — a não ser procurar restabelecer o status quo que estevena base da construção desse tipo de modelos. Na base do estruturo--funcionalismo (e de todas as suas variantes) está a tese da auto-regulaçãode uma sociedade que reproduz as condições de integração social atravésdo padrão de valores, absorvendo assim os factores e as tendências de dese-quilíbrio. Onde o marxismo tem a racionalidade subjacente da luta de clas-ses, o estruturo-funcionalismo tem a racionalidade subjacente da auto--regulação. £ não se pense que isso não tem importantes consequênciaspolíticas: as políticas externas das grandes potências estão estruturadas emfunção da possibilidade de exportação destes modelos e da sua implantaçãoem sociedades concretas.

Entre o pessimismo (seja de tipo racionalista, seja baseado numa ati-tude meramente anticientífica que rejeita qualquer possibilidade de teoriza-ção da política) e o optimismo milenarista (de tipo marxista ou estruturo--funcionalista) é possível uma posição intermédia que considere o exercíciodo poder como uma acção condicionada, sendo então um dos objectos essen-ciais da teoria política (e, em especial, da sociologia política) o estudo dessesistema de condicionantes.

Não se trata de pretender estabelecer uma teoria geral da acção política:o grau de globalização que isso implica torna as suas conclusões inoperati-vas para o exercício concreto do poder. Mas também não se trata de optarpor um empirismo de permanente ajustamento às circunstâncias: isso signi-ficaria a abdicação de qualquer possibilidade de direcção política contro-lada, substituída por uma inteira dependência da intuição e do arbitrárioque, nestas condições, se assumiria como deliberadamente anti-racional.Finalmente, é necessário reconhecer que, para o estudo das condições con-

28 Talcott-Parsons, Structure and Process in Modern Societies, 1960; The System of ModernSocieties, 1971; Societies, 1966; Neil Smelser, Essays in Sociological Explanation, Prentice-Hall, 1968. 871

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cretas do exercício do poder, é inútil recorrer a explicações metapolíticas,seja o motor da história constituído pela luta de classes ou o motor do equi-líbrio constituído pelos dispositivos de auto-regulação. Os agentes que exer-cem o poder podem escolher essas explicações metapolíticas como objecti-vos ou como orientações. Mas o exercício concreto do poder situa-se numadimensão muito diferente, com exigências imediatas que não podem ficarà espera desses mecanismos, cuja eficácia se coloca em termos de prazo inde-terminado.

As sociedades mudam; Consequentemente, mudam as condições da acçãopolítica. Utilizar uma teoria geral da acção política implicaria ou recusara existência de mudança, ou considerar que essa teoria geral contém a espe-cificação de todas as mudanças — e numa ordem de variações sectoriais queirá corresponder exactamente à evolução real, pois só assim se poderia deter-minar o resultado global para um certo período dessa evolução. Mas re-cusar qualquer possibilidade de teorização e de previsão da evolução impli-caria, por sua vez, admitir que a intuição de um agente político (ou de umgrupo político organizado) teria a potência suficiente para ordenar todasas relações sociais politicamente relevantes e sobre elas imprimir uma orien-tação política inovadora — e admitir que, nessa base de uma racionalidadeintuitiva, é possível, nas condições contemporâneas, recolher um sufrágioeleitoral maioritário.

As sociedades são diferentes, têm condições sociais e históricas específi-cas, estão inseridas em tendências de longa duração próprias. Aceitar a pos-sibilidade de uma teoria geral da acção política implicaria postular uma iden-tidade essencial das sociedades em relação a todos estes factores deespecificidade — o que é rejeitado pela mais elementar observação, mesmoem áreas culturalmente homogéneas. Mas a proposta e a imposição de tesesque se justificassem apenas na originalidade e na singularidade deixaria adecisão política sem qualquer referencial de orientação e condenada a seguiruma via de puro empirismo — o que significaria que estaria a ser um ele-mento passivo do sistema de pressões externas e um efeito descontroladoe instabilizador das relações sociais internas.

Para a acção política, o problema da mudança e da reacção da socie-dade a esses estímulos coloca-se em termos relativos: está dependente doritmo de transformação de diversas estruturas da sociedade, designadamentedo ritmo de transformação das estruturas económicas, sociais e internacio-nais em comparação com o ritmo de transformação das estruturas políticase administrativas29. Neste sentido, uma teoria do exercício do poder teráde estabelecer a variação das condições de acção política que resultam dosritmos diferentes de evolução daquelas estruturas. É neste quadro que temsentido avaliar o significado das estratégias políticas, pois estas não existemindependentemente das condições de acção política e, por outro lado, exi-gem respostas concretas imediatas que não podem esperar pela maturaçãode eventuais racionalizações que estariam subjacentes na evolução das socie-dades.

29 Theda Skocpol, States and Social Revolutions, Cambridge University Press, 1979; BobJessop, «El gobierno de lo ingobernable», in Revista Mexicana de Sociologia, ano XLIV, n.° 3,Julho-Setembro de 1982; Claus Offe, Contradictions of the Welfare State, Londres, Hutchin-son, 1983; James 0'Connor, The Fiscal Crisis of the State, Londres, St. MarthVs, 1973; Les-

872 ter Thurow, The Zero-Sum Society, Nova Iorque, Basic Books, 1980.

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3. SOCIOLOGIA DA POLÍTICA OU SOCIOLOGIA POLÍTICA?

Se uma teoria da política é possível, no sentido exposto de teoria da acçãopolítica e de teoria do exercício do poder como acção condicionada, quetipo de variáveis devem ser escolhidas para formar esse corpo teórico?A resposta impõe que se esclareça qual o conteúdo dessas condições, quaisos limites que se colocam ao exercício do poder entendido como o objec-tivo da acção política e que tornam o poder, para quem o detém, muitomenos fascinante do que se esperaria se apenas se tivesse em conta a ima-gem social do poder.

Ao considerar que o exercício concreto do poder é uma acção condicio-nada e que a sua teoria (ou a sua programação racional) deve ser estabele-cida em função da interpretação (ou do controlo) desses condicionamen-tos, haverá um espaço próprio para uma teoria do exercício do poder queseja autónoma, ou ter-se-á de aceitar que esse exercício do poder deve serestudado (ou programado) no cruzamento administrativo30 de vários con-tributos teóricos autónomos (a que corresponderiam, na acção política, váriosprogramas sectoriais ou políticas específicas)? Haverá uma teoria da acçãopolítica, ou apenas uma teoria da gestão burocrática de contributos parce-lares, limitando-se a acção política ao exercício de uma função reguladoraentre interesses diferenciados, periodicamente avalizada pelos processos elei-torais? 31 Será a teoria da acção política uma redução para um campo espe-cífico (porque dispõe de meios que lhe são próprios) de outras teorias (ouexpressões) de acção originadas noutras áreas da sociedade? Para respon-der a estas perguntas é necessário esclarecer o estatuto independente oudependente das variáveis consideradas na análise (ou na programação daacção).

Para Giovanni Sartori32, «a sociologia política é um híbrido interdisci-plinar procurando combinar variáveis explicativas sociais e políticas, ou seja,procurando combinar os inputs sugeridos pelo sociólogo com os inputs suge-ridos pelo cientista político. Pelo contrário, a sociologia da política é umaredução sociológica da política». Esta é uma distinção crucial para a clari-ficação do que é a acção política, do que é o exercício concreto do podere das exigências a respeitar na sua análise — que serão também as exigên-cias a respeitar na sua prática eficaz. Mas não é uma distinção que se esta-beleça com facilidade e não será por acaso que as teorias políticas disponí-veis oscilam neste ponto.

30 Niklas Luhman Teoria della Società o Tecnologia Sociale, Etas Libri, 1973 (ed. orig.,1971); id., «Insistence on systems theory», in Social Forces, vol . 61 , n.° 4, Junho de 1983.É útil comparar esta hipótese de um «poder administrativo» com a hipótese de Weber de umpoder burocrático: «A crescente complexidade das tarefas administrativas e a enorme expan-são do seu âmbito resultam cada vez mais na superioridade técnica daqueles que tiveram treinoe experiência e irão favorecer inevitavelmente a continuidade de pelo menos alguns funcioná-rios. Por isso, existe sempre a probabilidade de formação de uma estrutura especial e perma-nente para fins administrativos, o que implica necessariamente o exercício do poder» (Eco-nomy and Society, Berkeley, University of Califórnia Press, 1978, vol. ii, p. 951).

31 Será esse o processo implícito nos modelos de input-output de Easton (A System Analysisof Political Life, 1965). Mas é ainda isso que se encontra na proposta de Arend Lijphart dademocracia «consociativa» ou «consensual» (Democracy in Plural Societies, a comparativeexploration, Yale University Press, 1977; The Politics of Accomodation, University of Cali-fórnia Press, 1968).

32 Giovanni Sartori, «From the sociology of politics to political sociology», in Politicsand the Social Sciences, editado por Seymour Martin Lipset, Oxford University Press, 1969. 873

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Não é um problema que fique circunscrito ao domínio da teoria. Esteponto insere-se directamente na estratégia do exercício do poder — o que,sendo um objectivo da teoria, é sobretudo uma necessidade para a acçãopolítica.

Em termos gerais, uma posição reducionista concebe o exercício do podercomo a necessidade de compatibilizar imposições que são originadas nas con-dições de acção política — sejam sociais (grupos, interesses, conflitos quese expressam num quadro de direitos, liberdades e garantias), políticas (apre-sentação política de interesses sociais e procedimentos definidores da legiti-midade do poder) ou relacionadas com o processo de decisão (articulaçãodos interesses sociais com um programa de políticas que seja tecnicamenteviável). A noção de um poder administrativo ou de um poder contratual33,assim como as várias versões da teoria pluralista34, enquadram-se nesta posi-ção reducionista que coloca a dinâmica dos interesses sociais (seja numalógica de expressão democrática pluralista, seja numa lógica de dominaçãode classe) como fundamento do exercício do poder (pela via da legitimidadeou pela via das necessidades estratégicas).

Por sua vez, uma posição teórica autonomista (que também se poderiadesignar por diferenciada, no sentido de se atribuir uma especialização àacção política no funcionamento normal da sociedade) não implica o des-conhecimento daquelas condições (sociais, políticas, de decisão), mas con-sidera que elas só existem porque são objecto de uma tradução em termospolíticos e, ainda, que é possível a transformação organizada e controlada,programada, daquelas condições através da utilização eficaz dos meios polí-ticos, isto é, através de uma acção política específica. Uma posição teóricaautonomista diferenciada não deixa de conceber a acção política como acçãocondicionada, mas introduz a expressão desses condicionamentos no inte-rior da análise dos processos políticos, interiorizando-os e integrando-os nassuas formas, expressões e modos de existência políticos.

A escolha de uma ou outra hipótese condiciona o modo de exercício con-creto do poder. No caso reducionista, a interpretação das condições de repre-sentação de interesses sociais e a consequente delegação do poder é a linhaestratégica dominante. No caso autonomista, a concepção do papel polí-tico, do efeito específico do poder, é parte essencial da estratégia e esta cons-titui um produto próprio que não poderia existir se não houvesse uma espe-cialização ou uma diferenciação da política em relação a outros domíniosde acção social. Contudo, esta escolha entre dois modos de conceber a polí-tica não é inteiramente livre: o grau de aplicabilidade destas duas posiçõesteóricas varia com o tipo de sociedade que estiver a ser considerado. Ouseja, o grau de validade destas duas posições é relativo ao que for o seu

33 Sobre a hipótese de u m poder contratual ver Charles L i n d b l o m , Politics and Markets,N o v a Iorque, Basic B o o k s , 1977.

34 Sobre as posições pluralistas ver Robert Dahl , Modern Political Analysis, 2 . a ed . , 1970;Robert Dahl e Charles L indb lom, Politics, Economics and Welfare, Harper and R o w , 1957;ver também Gregory M c L e n n a n , «Capitalist state or democrat ic polity? Recent developmentsin Marxist and pluralist theory» , in The Idea of the Modern State, Londres , Open UniversityPress, 1984: «Na concepção pluralista, o Estado é equivalente ao 'sistema político' e, comotal, torna-se o foco principal da pressão política democrática. Se a sociedade contém uma sériede grupos de interesse mais ou menos em concorrência entre si pelos recursos económicos epelo acesso ao poder, então o papel do Estado consiste em equilibrar as exigências desses gru-

874 pos de interesse de modo a assegurar a estabilidade política e social [...] é uma espécie de PBX.»

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campo real de aplicação. E, por outro lado, esta escolha resultante de umaavaliação da adaptação vai ter efeitos no tempo, na medida em que tenderáa reforçar os comportamentos que tipificam essa sociedade política.

Nas sociedades onde a hipótese reducionista seja dominante — sociedadesde poder como representação — será de esperar que a sociologia da políticaseja a perspectiva teórica mais importante e aquela que fornece indicaçõespráticas mais importantes para a compreensão das condições da acção polí-tica: é pela interpretação das condições sociais expressas que se determinao que podem ser as acções políticas, derivando-se daí as condições de decisão.

Uma sociedade dividida em grupos de interesses, com as suas organiza-ções próprias e as suas racionalidades específicas, estabelece na interacçãodestas forças sociais um quadro de relações no interior do qual se localizao que pode ser uma acção política com êxito — uma acção que esteja den-tro do campo de possibilidades dessa sociedade. A concretização dessa acçãopolítica, sob a forma de exercício concreto do poder, não é trivial, no sen-tido de ser uma resultante automática do jogo das relações sociais. Existeuma actividade política, mas a sua autonomia é muito limitada e, quandoexiste, é temporária — na medida em que essa autonomia pressupõe ou osilêncio de interesses sociais sobre esse ponto, ou um estado de contradiçãoentre interesses sociais conflituais que o desenvolvimento dessa acção polí-tica tenderá a corrigir. Ainda que o agente político pretenda exercer umafunção arbitrária parcial, favorecendo deliberadamente algum desses gru-pos de interesses, o seu resultado prático não será independente daquilo quefor a evolução do jogo que é disputado entre os vários grupos sociais orga-nizados: mesmo os privilégios exigem que existam grupos sociais em condi-ções de poderem receber e beneficiar com esses benefícios que lhes são con-cedidos pela acção política. Por outro lado, não terá êxito, nestas sociedades,uma acção política que se procure sustentar em grupos sociais não organi-zados, na medida em que o seu reduzido «efeito multiplicador» irá permitirque outros grupos sociais organizados se oponham a essa afectação de recur-sos e, explorando os tempos eleitorais ou as análises de rendibilidade dessasafectações, forcem os detentores do poder a respeitar as condições de repre-sentação que são colocadas ou influenciadas pelos grupos sociaisorganizados35. É esta organização própria dos grupos de interesses que semanifesta na estruturação de uma rede de intermediações ou de instituiçõesintermédias que generaliza a acção política em diversos níveis da sociedade,de tal modo que o eleitor individualizado não é realmente uma entidade iso-lada, mas está, em geral, integrado numa série de associações que formamos seus comportamentos políticos. Dir-se-ia que, nestas sociedades, a polí-tica «desce» aos níveis básicos da sociedade, difundindo os seus modos deracionalização e de decisão, de modo que, quando os sinais de representa-ção «sobem» até aos decisores políticos, já se apresentam em formas polí-ticas.

Também as instituições, procedimentos e justificações constitucionais daacção política e da atribuição de legitimidade são entendidos e apresenta-dos nestas sociedades em termos da concretização da função de representa-ção social: são as condições de escolha dos grupos sociais e a previsão queé estabelecida quanto a esse resultado que vão determinar as modalidades

35 A programação das estratégias políticas e das políticas concretas não existem em fun-ção de modelos abstractos, mas sempre em função de sociedades concretas. 875

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estratégicas no espaço de concorrência política, como se se tratasse de umconcurso de adjudicação em que está em disputa a concessão da função derepresentação e que tem por tradução última a atribuição da legitimidade.Antes de realizar um projecto, o agente político tem de satisfazer uma repre-sentação de interesses — ainda que os possa combinar de modos diferentespara satisfazer as suas concepções políticas ou para se adaptar às condiçõesde concorrência eleitoral.

Nestas circunstâncias, nenhum agente político significativo pode correro risco de se separar dos grupos sociais que constituem a sua base de repre-sentação. Mas, porque são grupos sociais dotados de organização e de racio-nalidades específicas (a que se pode mesmo juntar o controlo de importan-tes recursos), estabelecendo, através das suas posições, condições deorientação e de mobilização quase políticas, estas bases de representaçãooferecem aos agentes políticos uma estrutura de organização e de suporte(financeiro e programático) para a acção política corrente e para o exercí-cio concreto do poder. Esta função de intermediação exercida pelas estru-turas organizadas dos interesses sociais não se limita a ser um sistema depressões dirigidas aos agentes políticos: aquela função produz um debatepolítico especializado de tipo idêntico ao que se desenvolve no interior dasentidades políticas, estabelecendo assim uma circularidade de linguagem, demodos de acção e de estratégias que facilitam a previsibilidade dos apoiose das resistências no sistema político.

A decisão política não é entendida, nestas sociedades de organização plu-ralista, como uma função de direcção inovadora, mas sim como uma fun-ção de regulação entre diferentes correntes de opinião e entre diferentes forçassociais. A decisão política não teria, assim, uma especificidade que a dis-tinga de outras modalidades de decisão noutros sectores de actividade: adecisão política seria determinável pela conjugação da teoria da decisão, dateoria da organização, da teoria da administração e da teoria da comunica-ção, estabelecendo assim o que se poderia designar por poder administra-tivo36, que se distinguiria de outras situações de decisão apenas pelo tipode meios que pode usar — sejam os que derivam da autoridade fundadana legitimidade, sejam os que derivam do poder de disposição de importan-tes montantes financeiros, sejam ainda os que derivam da qualidade de inter-locutor reconhecido no quadro das relações internas e externas. Se aindaexiste alguma diferença essencial entre a acção política e outras modalida-des de acção social, ela já estará apenas relacionada com o grau de comple-xidade: a acção política teria de conjugar um número superior de condiçõese respectivas inter-relações.

Contudo, essa maior complexidade não assegura uma base de autono-mia para a acção política. Pelo contrário, o agente político estaria submersopor relações e movimentos que não domina nem pode controlar, ocupandoum lugar simbólico de coordenação a que não corresponde um efectivo poderpróprio ou autónomo37. Aliás, a evolução verificada nas estruturas deintermediação38 no sentido de uma crescente complexidade das suas acções,

36 Para além de Luhmann importa referir a este respeito a proposta de um modelo dedecisão político-burocrático apresentada por Graham Allison em Essence of Decision, LittleBrown, 1971.

37Sobre este ponto é esclarecedor o texto de David Stockman, op. cit. Ver também MichelCrozier, On ne Change pas la Société par Décret, Paris, Grasset, 1979.

38 Philippe C. Schmitter, «Democratic theory and neo-corporatist practice», in Social876 Research, vol. 50, n.° 4, 1983.

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articulando elas próprias o modelo de representação pluralista com modali-dades de orientação, direcção e controlo num âmbito de legitimidades par-celares ou circunscritas, conduz a acção dos grupos sociais organizados paraníveis de complexidade semelhantes aos que caracterizam a acção política,forçando a interligação desta com o que forem as posições sociais organi-zadas. Nestas circunstâncias, falar de autonomia da decisão política comose esta fosse livre depois de ter conquistado a legitimidade representativaeleitoral só tem algum sentido se a análise se circunscrever a aspectos for-mais, designadamente aos que derivam de uma interpretação directa de nor-mas constitucionais; mas perde toda a capacidade explicativa se for man-tida como hipótese básica de análise da acção política real. Apesar de alegitimidade do poder atribuir o direito do exercício autónomo da autori-dade e de a conquista desse direito significar que ele fica limitado ou desa-parece para outros, a verdade é que as relações políticas reais continuama estar condicionadas por sistemas de forças e de influências, ainda que nãodisponham de uma legitimidade inequívoca39.

A escola pluralista, com a sua insistência no papel da organização livredos interesses sociais e na obrigação do seu reconhecimento pelos agentespolíticos, conduz naturalmente à noção de que a acção política deve serentendida como uma variável dependente. Para Samuel Huntington40, «oparadigma pluralista tem como traço central a concorrência entre gruposde interesse», admitindo duas versões conforme se sublinha o «processo»(«a política é a luta entre um grande número de grupos de interesse relati-vamente pequenos») ou a «organização» («a ênfase está no papel dominanteque um pequeno número de grandes e bem organizados grupos exerce naformação das políticas públicas»). Por isso, pode-se dizer que «a essênciada democracia é o controlo popular do governo, directamente ou atravésde representantes, e o sentido de atenção e de respeito da parte dos agentesgovernamentais pela opinião pública. Em suma, o aspecto distintivo do credoamericano é o seu carácter antigovernamental. A oposição ao poder e a sus-peita de que o governo possa ser a mais perigosa concentração de podersão os temas centrais do pensamento político americano»41. Assim chegaà enunciação do que considera ser o paradoxo do poder na sociedade ame-ricana, sempre entendida como sociedade pluralista:

O poder efectivo é o poder desapercebido: o poder visível é o poderdesvalorizado42.

Este modelo pluralista, tal como a fórmula da poliarquia43, não anu-lam a função específica do poder político como produção de ordem e deregulação, mas a sua margem de autonomia está estritamente limitada pelasexigências impostas através da representação múltipla de interesses sociais

39 Discurso de Eisenhower em 17 de Janeiro de 1961: «Nas estruturas de conselho dogoverno devemos estar precavidos contra a aquisição de uma influência injustificada pelo com-plexo militar-industrial, seja essa influência procurada ou não. A possibilidade de uma desas-trosa transferência do poder existe e continuará a existir.» Ver Huntington, Crozier e Wata-nuki, The Crisis of Democracy, 1975.

40 Samuel Huntington, American Politics, the promise of disharmony, Harvard Univer-sity Press, 1981.

41 Id., ibid., p. 33.42 Id., ibid., p. 75.43 Dahl e Lindblom, op. cit. 877

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organizados e pela necessidade de acolherem nas suas decisões aquilo queé a produção própria dessas organizações que exercem um papel de inter-mediação — sob pena de se estabelecer uma desconexão entre a decisão polí-tica e a realidade política.

Há outras linhas teóricas que se aproximam, por outras vias, desta mesmanoção em que a acção política aparece como variável dependente. QuandoHabermas coloca no centro da sua análise a relação entre interesses de gru-pos e normas da sociedade, considerando como unidade de análise «a acçãoestratégica das classes»44 e afirmando que «a estrutura de classe é, em últimaanálise, a causa do défice de legitimação»45 e que, «num processo de moder-nização, a crescente complexidade produz problemas de orientação que exi-gem uma mudança acelerada das normas sociais»46, a margem de autono-mia deixada à acção política é muito limitada. Na proposta de Habermasnão é prevista a hipótese (admitida pelos estruturo-funcionalistas) de se vira concretizar uma função de regulação através do funcionamento articu-lado das organizações dos diversos interesses sociais e das múltiplas estru-turas de intermediação que existem entre a sociedade e o sistema político — epela óbvia razão de que a relação entre interesses contraditórios só por acasoe momentaneamente pode estabelecer essa função de regulação. Daí que asaída do círculo vicioso tenha de ser procurada através de acções políticasdeliberadas, designadamente por parte dos que recebem a legitimidade paraexercer o poder político; mas, como as suas possibilidades de acção estãocondicionadas por expectativas sociais que são contraditórias na sua base,essa seria uma tarefa impossível — de onde decorre a tese da crise de legiti-midade, que pode ser adiada, mas não pode ser evitada.

O optimismo do modelo pluralista é substituído pelo pessimismo dos quesublinham as contradições existentes entre os diversos grupos sociais e a con-sequente instabilidade das crises — crise económica, crise de administração,crise de legitimidade. Mas entre uma posição teórica e a outra há um impor-tante aspecto comum: a acção política fica dependente do que forem as posi-ções expressas pelos grupos sociais organizados, assim como da possibili-dade de se estabelecer uma articulação viável entre os interesses sociais —sem o que a acção política se limita a ser uma gestão impotente.

No ponto extremo desta linha teórica encontra-se a posição clássica domarxismo, rejeitando que a acção política possa constituir uma instânciaautónoma — ou é um reflexo das contradições ocorridas na evolução dasociedade (desarticulação no desenvolvimento das forças produtivas e dasrelações sociais de produção que, sendo fontes de crise, acabarão por criarsituações revolucionárias), ou é uma função de controlo estabelecida numaatitude de «conselho de administração da classe dominante»47, que não sepode desviar da defesa desses interesses, sob pena de inevitável afastamentodas posições de poder.

No quadro n.° 1 propõe-se um resumo dos pressupostos destas posiçõesteóricas, explicitando alguns dos efeitos que decorrem da análise da acçãopolítica como variável dependente.

878 1980.

44 Jurgen Habermas, Teoria della Società o Tecnologia Sociale; ver nota 30.45 Id., Theory and Practice, Beacon Press, 1973 ( l . a ed., 1963).46 Id., «What does a crisis mean today? Legitimation problems in late capitalism», in Social

Research, vol. 40, n.° 4, 1973.47 Goran Theborn, What Does the Ruling Class Do When it Rules?, Londres, Verso,

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[QUADRO N.° 1)A acção política como variável dependente

Condições da acção política

Condições sociais

Condições políticas

Condições de adesão

Variável principal

Sociedades divididas em gruposde interesses, com as suas racio-nalidades e estratégias próprias

Representação política de inte-reses sociais

Articulação dos interesses so-ciais legitimados com um pro-grama político tecnicamenteviável

Códigos e regulamentos

Direitos, liberdades e garantias

Procedimentos definidores dalegitimidade política comorepresentação

Decisão determinada pela hie-rarquia das instituições e peladistribuição de poderes

Instrumento principal

Expressão organizada dos inte-resses sociais

Concorrência contínua no mer-cado eleitoral pelo serviço derepresentação e de satisfação deinteresses

Instituições, entidades e organi-zações políticas e administra-tivas

Função dotada de teoria

Função de expressão organizadados interesses sociais que é ana-lisável pela sociologia da políticaatravés do estudo dos grupossociais

Função de expressão políticaanalisável pela teoria estratégicada concorrência, pela análisetécnica das possibilidades e pelateoria da comunicação

Função de exercício do poderanalisável pela teoria da decisão,pela teoria da organização e pelateoria da administração pública

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Uma outra família teórica que se deve comparar com a anterior é a quese pode designar por sociologia política: a importância das condições sociaisé reconhecida, mas também é uma importância mediatizada por uma fun-ção política com um grau efectivo de autonomia — uma função política comcapacidade para criar circunstâncias novas, que não se limitam a reprodu-zir as condições sociais, seja para esperar delas a auto-regulação, seja paraficar condenada a gerir um sistema de contradições insolúveis. As condi-ções políticas não são, neste caso, um mero reflexo, uma variável depen-dente. Esta função específica das entidades políticas pode ser exemplificadade vários modos48, mas corresponde a uma evidência nas sociedades moder-nas: tanto as condições sociais como as condições de decisão só têm reali-dade política quando são traduzidas no interior do sistema político e emtermos políticos: enquanto não existir essa tradução, as necessidades e expec-tativas sociais, assim como as condições técnicas de decisão, não têm ver-dadeira relevância política49.

Neste ponto, a proposta de Sartori permite precisar o alcance desta fun-ção política específica:

Como são os conflitos e as divisões traduzidos num sistema partidá-rio? A primeira vantagem deste tipo de posição teórica [a sociologia polí-tica] está no facto de conceder uma atenção igual a qualquer tipo deconflito e de divisão [...] A segunda vantagem está no facto de a análisepassar a estar correctamente focada no problema real — a tradução [...]Se a noção de tradução for considerada seriamente — como deveriaser —, ela aponta para um outro ponto importante: em que medida sãoas divisões deslocadas e controladas ou, pelo contrário, intensificadase agravadas precisamente pelo trabalho de tradução. E é aqui que a polí-tica entra50.

Ou, dito de outro modo:

A sociologia política exige a exploração simultânea do modo comoos partidos são condicionados pela sociedade e do modo como a socie-dade é condicionada pelo sistema partidário [...] e quanto maior for oalcance da política, menor será o papel dos «factores objectivos»51.

Este trabalho de tradução (da expressão social dos interesses e dos gru-pos organizados para a linguagem da política e para as condições dos qua-dros institucionais e administrativos da decisão) não anula a importânciada função de representação dos interesses sociais a que se obrigam as enti-dades políticas. Mas a importância da sociologia política está no facto derevelar a existência de uma especificidade política a que o próprio processode representação fica submetido. Aliás, isso mesmo está implícito em algu-mas teorias pluralistas quando sublinham o carácter organizado dos inte-resses sociais que têm relevância política e quando reconhecem o papel polí-

48 Giovanni Sartori, Parties and Party Systems: a framework for analysis, vol. i, Cam-bridge University Press, 1976.

49 Mas podem ter relevância dinâmica na explicação de uma crise de regime.50 Giovanni Sartori, «From the sociology o f politics to [...]», cit., p . 87.

880 51 Id., p. 93.

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tico das organizações de intermediação: a representatividade tem de seguiros canais de representação existentes — estes partidos e estas associações,e não outros, porventura ideais, mas que não existem. Porém, a necessi-dade que se coloca às teorias pluralistas de respeitar o seu pressuposto essen-cial da representatividade social do poder não lhes permite reconhecer, emtoda a sua extensão, o papel político próprio que é desempenhado pelo sis-tema de organizações que distorcem o princípio pluralista de «um homem--um voto-um sinal político».

Todavia, a noção de autonomia (naturalmente, relativa, e não absoluta)da função política não se limita a esta relação de tradução. Para além dela(ainda que utilizando a oportunidade que o trabalho de tradução oferece)é preciso dar conta de uma função política de orientação (dos grupos sociais,das diversas organizações sociais, de todos os estratos sociais e da socie-dade no seu conjunto), que, através do trabalho político de produção deracionalizações globais e de utilização ou criação dos condicionamentoslegais, se expressa finalmente numa função política de direcção. Neste con-texto, já não tem sentido pensar a política como um reflexo das condiçõessociais e da expressão dos interesses de grupos. Há funções que são especí-ficas da acção política, que devem ser entendidas em termos dos seus efei-tos de regulação e de controlo, mas também em termos dos seus efeitos emestratégias políticas: criação deliberada de desequilíbrios sociais, radicaliza-ção de tensões, amplificação ou neutralização de problemas que são reco-nhecidos como tendo relevância política — sendo certo que nem sempre éfácil ou possível distinguir o que deriva das intenções estratégicas e o queé provocado por acidentes e fracassos.

Em contrapartida destas razões de autonomia, deve sublinhar-se que tam-bém não teria sentido, neste contexto, pretender analisar a relação políticasem ter em conta o conjunto de interesses sociais que esperam encontraruma representação no sistema político. Mas já não se trata de uma repre-sentação directa, associada ao sufrágio directo e universal, para ter de seconsiderar que se está perante uma representação de influências cujo graude importância varia com os diferenciais de organização de cada grupo deinteresses. E é óbvio que, quando se tem de referir esta representação deinfluências, já não se está a considerar apenas a livre interacção dos grupossociais, mas sim o seu tipo de organização, que é concebido com uma fina-lidade política: as condições sociais «espontâneas» são transformadas pelanecessidade de se traduzirem em formas políticas.

Por outro lado, esta necessidade de tradução política dos interesses so-ciais permite que sejam os agentes políticos quem escolhe, pelos processosde selecção da atenção e da decisão, quais os interesses sociais reconheci-dos e quais os marginalizados. Este é um modo adicional de orientaçãopolítica das relações sociais que se pode expressar de modo trivial atravésda concessão de benefícios e de punições na realização das funções do poderadministrativo. Mas pode ter também uma outra expressão caracterizadapela «redução da complexidade»52, em que os agentes políticos seleccio-nam para os diversos grupos sociais o que são os seus «verdadeiros» e «pos-síveis» interesses num certo contexto político. É um processo que se deveinterpretar como uma inversão da relação tradicional de intermediação: sãoas agências políticas que traduzem para os grupos de interesses e para a

52 N. Luhmann, Teoria delia Società o [...], cit., p. 270. 881

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opinião pública as possibilidades e as razões da política. Este processoresulta, por um lado, da maior complexidade das relações políticas (queexigem uma selecção programada de distribuição de benefícios e de puni-ções para que a regulação seja possível) e, por outro lado, da crescenteincapacidade de as entidades tradicionais de intermediação conseguirem,perante esta maior complexidade da política, defender os seus objectivosem termos que sejam aceitáveis pelos decisores políticos (o que obriga osdetentores do poder a procurar exercer um efeito de modulação racionali-zadora das posições sociais para evitar o desencadeamento de efeitos per-versos, que se tornam mais frequentes com o aumento da complexidadedas relações políticas).

Não se trata, aqui, de analisar em pormenor as consequências previsí-veis que estão relacionadas com a maior complexidade das relações políti-cas, associada a uma crescente concentração de meios administrativos, finan-ceiros, produtivos e comunicacionais sob decisão política directa. Apenasse procurou sublinhar que vários desenvolvimentos verificados nas relaçõespolíticas contemporâneas justificam que a acção política seja analisada comovariável independente, ainda que dentro de uma noção geral de autonomiarelativa, como seria de esperar depois de se ter apresentado a acção políticae o exercício concreto do poder como acção condicionada.

Este segundo modelo pode ser resumido, nos seus traços básicos, no qua-dro n.° 2, comparável com o anterior.

A oposição de títulos destes dois quadros não tem de implicar uma incom-patibilidade absoluta entre as duas linhas (ou famílias) teóricas — a menosque qualquer dos modelos se pretendesse apresentar como exclusivo. No casodo primeiro modelo, isso é cada vez mais improvável à medida que oaumento da complexidade das sociedades e das suas relações políticas implicauma crescente especificidade das funções políticas e, portanto, revela a insu-ficiência da teoria da representação pluralista para explicar a dinâmica polí-tica e o processo de decisão no exercício do poder. No caso do segundomodelo, a sua exclusividade implicaria uma relação política de representa-tividade incerta, não só em termos da tradução prática dos resultados elei-torais, como também porque teria implícito um tipo de sociedade sem qual-quer diferenciação forte entre grupos e interesses, uma sociedade estritamenteunidimensional. Esta oposição de títulos e de quadros deve, portanto, serentendida como um dispositivo de análise, usado para tornar mais claro oobjectivo de síntese: a necessidade de uma compatibilização dos doismodelos.

No entanto, essa compatibilização de modelos terá de obedecer a regras,a mais importante das quais é a que se refere à necessidade do seu ajusta-mento ao tipo de sociedade que se analisa.

Nas sociedades de dominante pluralista na sua organização social e noseu modo de entender as relações sociais e políticas, as funções de orienta-ção, direcção e controlo têm de respeitar essa realidade social e essas con-venções ou modelos culturais. É uma necessidade — sem isso o poder polí-tico seria socialmente rejeitado. E é uma conveniência — por esta via o poderpolítico dispõe de condições para limitar os graus de incerteza, controlaros graus de conflito e programar as suas acções a longo prazo. Neste sen-tido, é justificado falar-se em auto-regulação como uma propriedade quese encontra com mais frequência nestas sociedades. Mas não é uma pro-priedade universal nem sequer extensível a todas as sociedades que adop-

882 tem uma organização política democrática.

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A acção política como variável independente

[QUADRO N.° 2]

Condições da acção política

Condições sociais

Condições políticas

Condições de decisão

Variável principal

Sociedades complexas com ne-cessidades e expectativas contra-ditórias definindo contextosconflituais nas relações entre osgrupos sociais

Racionalização ex ante das posi-ções sociais e condicionamentodos interesses sociais

Articulação de um programatecnicamente viável com os inte-resses sociais politicamenteorientados

Códigos e regulamentos

Organização do poder políticoem fórmulas pluralistas e derepresentação política de múlti-plos grupos (e interesses) sociais

Procedimentos definidores dalegitimidade política comomodo de acesso aos centros ins-titucionais do poder

Decisão determinada pela hie-rarquia das instituições e peladistribuição de poderes

Instrumento principal

Exercício de intermediação dasentidades políticas ou com reve-lância política

Orientação pública dos compor-tamentos e dos objectivos dosgrupos sociais

Instituições, entidades e organi-zações políticas e administra-tivas

Função dotada de teoria

Função de expressão estratégicada orientação política analisávelpela sociologia política atravésdo estudo das entidades políti-cas e das suas relações com osinteresses sociais

Função de expressão políticaanalisável pela teoria do con-trolo e da regulação política epela teoria da comunicação

Função de exercido do poderanalisável pela teoria da progra-mação de estratégias políticas

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No outro extremo estão as sociedades de fraco pluralismo, com redu-zido grau de associatividade social e com uma estrutura de representaçãopolítica fragmentada, estabelecendo com os detentores do poder político rela-ções quase individuais e sem fidelidade ou persistência, onde não há entida-des organizadas com dimensão crítica suficiente para atingir dinâmicas deauto-sustentação e onde também não há estruturas consistentes de interme-diação. Aqui, a autonomização das funções de orientação, direcção e con-trolo é uma necessidade — esperar que a função de representação venha adeterminar as linhas de orientação política apenas conduz a sucessivas dinâ-micas de conflito em resultado de posições radicais, isolacionistas e incom-patíveis. Nem sempre essa maior autonomia da acção política e do exercí-cio do poder será uma conveniência: o grau de fracasso político é muitoelevado nestas sociedades porque são muito fracas as relações de auto--regulação e aumenta a carga sobre os circuitos políticos. Em contrapartidadesta maior dificuldade para o exercício do poder, a esses fracassos políti-cos não está associada, pelo menos em termos de necessidade imediata, asubstituição desses dirigentes políticos, pois têm como protecção o facto denão haver alternativas que sejam suficientemente nítidas. Aliás, é na eficá-cia desta protecção que se baseia a possibilidade de um sistema democrá-tico, neste tipo de sociedade, ficar bloqueado por anulação interna das alter-nativas políticas e porque as organizações de interesses sociais ou não existem,ou se deixam subordinar inteiramente aos agentes políticos.

A sociologia política pode assim ser entendida em termos de dois ramosde desenvolvimento analítico: a integração social, através da função de repre-sentação de grupos sociais organizados e com interesses específicos, e a inte-gração sistémica, através da tradução desses interesses (expressos ou nãode forma organizada e por estruturas de intermediação) em termos políti-cos e com funções de orientação, direcção e controlo.

As relações estabelecidas entre estes dois ramos, com a possibilidade dese registarem ritmos diferentes na evolução de cada um e incompatibilida-des na sua relação, contêm as eventualidades da desregulação, da instabili-dade, do conflito e da crise política. Essas são as eventualidades essenciaisa que se subordina a programação política, na medida em que o exercícioconcreto do poder se irá realizar através da programação de acções que pro-curam evitar ou responder a estes tipos de problemas.

Mas também é óbvio que cada sociedade, com as suas características pró-prias em cada um destes dois ramos de integração, a social e a sistémica,que tipificam as suas relações e as suas dinâmicas, exige programações polí-ticas diferentes e específicas para cada caso. Uma vez mais, é a articulaçãoentre condições sociais, condições políticas e condições de decisão que apa-rece como a base necessária de análise dessa acção condicionada que é oexercício concreto do poder53.

Para que o modelo de análise fique completo falta ainda referir qualé o factor de articulação entre a função de representação pluralista (ou inte-

53 Bob Jessop, op. cit., onde se estabelece uma distinção útil entre estruturas (instituiçõesde representação e de intervenção) e estratégias (bases sociais de programas e políticas especí-ficas e seus prováveis centros de resistência). Dessa distinção derivam políticas de representa-ção (que procuram maximizar os votos individuais) e políticas de poder (estabelecendo pro-gramas que reconhecem as necessidades das estruturas e as resistências sociais, ultrapassando

884 o domínio do votante individualizado).

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gração social) e a função de direcção, orientação e controlo (ou integraçãosistémica).

Este factor de articulação tem variado com a evolução histórica, isto é,com a evolução da complexidade da função política global. Numa fase his-tórica de complexidade política reduzida — ou seja, em que a acção polí-tica centralizada em aparelhos organizados não penetra todas as formas daacção social —, o factor de articulação é constituído pela relação carismá-tica estabelecida por algum ou alguns agentes políticos que justamente têma designação de dirigentes políticos. Nos termos de Edward Shils, indo paraalém da noção proposta por Weber54, «carisma é a qualidade que é atri-buída a pessoas, acções, papéis e instituições, a símbolos e a objectos mate-riais em consequência da sua suposta ligação com poderes 'essenciais', 'fun-damentais' e 'vitais' que são determinantes de ordem»55. Trata-se de umaqualidade política personalizada e singularizada, depositada em quem podeexercer (ou ser socialmente considerado capaz de o fazer) uma função decoordenação e de síntese entre a representação dos interesses sociais e a direc-ção política da sociedade. É a expressão de uma excepcional capacidade deinterpretação do que são as possibilidades da sociedade, uma capacidadesingular de sintonia com o colectivo. Porém, esta é uma qualidade políticacujo sentido está circunscrito a sociedades politicamente simples, onde o exer-cício do poder não se difunda por todas as áreas da sociedade e não tenhade interferir nelas de modo continuado. É uma qualidade que tem de sersocialmente razoável, ajustada ao que é a concepção socialmente difundidado espaço, das funções e dos objectivos da acção política. Se, como acon-tece com o aumento da complexidade da acção política, a imagem socialdo papel do agente político deixa de ser compatível com acções personali-zadas, o carisma individual deixa de ser eficaz como factor de articulaçãoentre a integração social e a integração sistémica, ou seja, como factor glo-bal de produção de ordem na vida política.

É certo que em períodos de crise acentuada, mesmo em sociedades com-plexas, se pode manifestar a necessidade social de uma direcção política caris-mática; contudo, isso será mais um sintoma da crise do que uma possibili-dade real de actuação carismática com eficácia, será mais uma ilusão deuma sociedade sem orientação do que um programa efectivo de interven-ção política controlada.

É neste processo de crescente complexidade da acção política e da con-sequente improbabilidade de uma acção carismática personalizada eficaz quese deve admitir a existência de um efeito de difusão da relação carismática,que assim não ficaria restrita à singularidade do detentor do poder e se alargaa todas as instituições e organizações relacionadas com o exercício do poderque passariam a estar dotadas de parcelas de carisma. É o que sugere Shils:

No sistema racional-legal, o carisma não é atribuído de modo con-centrado à pessoa que ocupa a posição central ou a essa posição por

54 Max Weber e a noção de carisma: Economy and Society, vol . n; The Theory of Socialand Economic Organization, ed. Talcott-Parssons, Free Press, 1957. Ver também S. N . Eisens-tadt (ed.), Max Weber on Charisma and Institution Building, University of Chicago Press, 1968.

55 Edward Shils, «Charisma», in The International Encyclopedia of The Social Sciences,1968. 885

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si mesma, mas está disperso, numa intensidade menor e desigual, portoda a hierarquia de papéis e de regras56.

Passa a ter sentido falar de «carisma institucional» que «é inerente àorganização massiva da autoridade»57.

Em termos da evolução histórica, esta fase da difusão carismática cor-responde ao período de difusão social do período racional-legal do exercí-cio do poder e teve a sua maior eficácia legitimadora durante os anos deexpansão do welfare state. A cada instituição do poder é socialmente atri-buída a capacidade para controlar os efeitos das suas decisões, e porqueestas estão estruturadas em códigos de racionalidade. Uma vez comunica-dos, estes códigos de racionalidade seriam a base mais segura, porque teriama força de necessidade numa sociedade orientada por critérios científicos,de estabelecer o consenso político. E, uma vez atingido este consenso, haveriafinalmente a possibilidade de estabelecer um poder administrativo, delibe-radamente orientado para assegurar a regulação da evolução social sem ficarpreso das incertezas de acções políticas arbitrárias.

Porém, a viabilidade deste projecto de poder administrativo racional--legal e a sua eficácia nas sociedades concretas ficam dependentes não sóda perfeita coordenação funcional dessas instituições dotadas de carisma,mas também de um fluxo de produtos em quantidade satisfatória para osdiversos interesses sociais. De facto, o carisma institucional, baseado naracionalidade, não anula a conflitualidade de necessidades e de expectati-vas dos diferentes grupos sociais — apenas a pode encobrir enquanto a acçãoracional e racionalizadora se conseguir antecipar, oferecendo uma respostasatisfatória a essas necessidades e expectativas. A função de regulação exer-cida pelo sistema político tende a ser cada vez menos derivada das relaçõessociais e cada vez mais um produto de uma função racionalizadora especí-fica que é realizada pelas agências do Estado como cúpula institucional dosistema político. Do carisma institucional, que correspondia a uma diferen-ciação da função política ainda personalizada, evolui-se para a expectativade racionalização assegurada pela acção política e pelo exercício do poder,que deste modo se autonomiza em relação a uma função directa de repre-sentação — assim estabelecendo a diferenciação da acção política em rela-ção a outras acções sociais. A contrapartida dessa maior autonomia (ou desseprocesso de diferenciação nas estruturas e acções sociais) está no condicio-namento do sistema político, que está obrigado a encontrar continuadamenterespostas satisfatórias a pressões sociais que não estão controladas por pro-cessos sociais de auto-regulação. A acção política e o exercício do poderficam «prisioneiros» das suas próprias propostas: não podem deixar de asapresentar para que se exerça alguma função de orientação, direcção e con-trolo; mas têm de as concretizar para que a função de representação se man-tenha estável.

É esta a situação típica das sociedades contemporâneas. A função racio-nalizadora dos agentes políticos é, ao mesmo tempo, insubstituível e dotadade uma crescente autonomia. Mas esta característica é coincidente com atendência para uma crescente indeterminação das acções e programas polí-

56 Edward Shils, «Charisma, order and status», in American Sociological Review, vol.30, 1965.

886 57 Id., ibid.

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ticos, que ficam sujeitos a um carisma utilitário, isto é, por a imagem decapacidade de quem exerce o poder satisfazer necessidades e expectativassociais crescentes e contraditórias que se expressam directamente nesses res-ponsáveis políticos. Não é possível voltar para trás nesta evolução, para ocarisma personalizado, pois nenhuma individualidade pode satisfazer dura-douramente a expectativa social de racionalidade da decisão política: a ima-gem social da complexidade política torna essa tentativa condenada ao fra-casso. Também já não é eficaz a via da difusão carismática por entidadesadministrativas, pois qualquer delas teria a tendência para tentar estabele-cer posições de hegemonia de modo a estabelecer um poder unitário e con-centrado, o que equivale a transferir para o domínio administrativo, como alistamento de apoios vindos de interesses sociais, a relação de conflitua-lidade política.

É um processo que começou por ser facilitado pela separação gradualdas funções de orientação, direcção e controlo em relação à função de repre-sentação pluralista. Em períodos de expansão económica, essa separaçãonão constituiria um factor de crise, na medida em que estaria asseguradoum nível satisfatório de distribuição e era possível ao Estado acumular níveiscrescentes de responsabilidades. A diminuição do ritmo de crescimento eco-nómico não veio diminuir essas responsabilidades — antes as aumentou emtermos relativos e absolutos — e tende a agravar a conflitualidade social,obrigando assim a novas acções de intervenção e de regulação do poder polí-tico. Mas todas essas acções têm de se realizar num contexto social ondeo sistema de intermediação é menos eficaz, seja porque a diferenciação socialcrescente reduz a margem de auto-suficiência dos grupos sociais, seja por-que o poder político absorve quantidades crescentes dos meios financeirosdetidos pelas entidades privadas e pelos grupos sociais, ou ainda porque asfunções de intermediação se especializaram em organizações e modos deacção quase políticos. Continuando com Shils:

A característica decisiva da sociedade de massas é a diminuição dadistância entre o centro da sociedade — o sistema institucional centrale os sistemas centrais de valores e cultura — e a periferia, entre a élitee as massas58.

É a diminuição desta distância — aparentemente, um progresso no sen-tido de uma mais igualitária expressão dos diversos interesses sociais — ea consequente transformação nos processos de intermediação que estão nabase da sobrecarga da função política59, da crise política das sociedadesavançadas60, da nova importância atribuída às funções de intermediação61

e do papel fulcral desempenhado pela estratégia política62.

58 Edward Shils, «The stratification system of mass society», in Center and Periphery,University of Chicago Press, 1975.

59 Ver os vários trabalhos de Richard Rose.60 Ver os trabalhos de Habermas, Offe, Luhmann, Crozier, Huntington.61 Ver os trabalhos de Philippe C. Schmitter, Gerhard Lehmbruch, Claus Offe, Leo Panitch,

J. T. Winkler.62 Sobre estratégia política, comunicação e legitimação ver Habermas, Legitimation Cri-

siSy Londres, Heinemann, 1975, e Raymond Geuss, The Idea of Critical Theory, CambridgeUniversity Press, 1981. ggj

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Estas noções podem-se resumir, na sua forma mais simples, no quadron.°3:

Articulação das funções políticas básicas[QUADRO N.° 3]

FUNÇÃO DEREPRESENTAÇÃOPLURALISTA

.CARISMA

.DIFUSÃO CARISMÁTICA

.FUNÇÃO RACIONALIZADORA DO E S T A D O _

FUNÇÃO DEORIENTAÇÃO,DIRECÇÃO ECONTROLO

INTEGRAÇÃOSOCIAL

FUNÇÕES DEINTERMEDIAÇÃO

ESTRATÉGIASPOLÍTICAS

INTEGRAÇÃOSISTÉMICA

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Todas estas notas convergem para a conclusão de que a perspectiva dasociologia política — tratando a acção política como variável independentepara corresponder ao que tem sido a evolução real da diferenciação dasacções sociais e que se tem processado no sentido de uma crescente autono-mia da política — é uma necessidade não só no plano da diferenciação decampos teóricos, mas também no plano das descrições dos modos práticosdo exercício do poder.

Porém, é ainda esta conclusão que obriga a ter em conta o que há decaracterístico em cada sociedade nas suas relações relevantes com os fenó-menos políticos. Na medida em que as sociedades são diferentes, este pro-cesso de autonomização relativa e gradual da acção política e do exerciciodo poder terá ritmos e consequências diferentes em função das característi-cas de cada sociedade.

Nos casos onde está implantada uma forte tradição de pluralismo des-centralizador, onde os grupos sociais dispõem de bases consideráveis (finan-ceiras, organizativas, comunicacionais e técnicas) de auto-suficiência e deauto-expressão, este processo de autonomização relativa e gradual tambémexiste. No entanto, ele estará subordinado a efeitos de intermediação, ori-ginados nas organizações próprias dos grupos sociais que exercem uma fun-ção específica de regulação, uma função quase política.

Mas nos casos onde essa tradição pluralista não existe, o processo de con-centração de um poder político autonomizado é muito mais rápido — masnão se deve daí concluir que seja mais eficaz — porque não terá pro-cessos intermédios de regulação, o que significa que não terá processos desinalização de problemas em tempo útil para programar as respostas e con-jugar os meios necessários para os programas e estratégias.

É esta diferença de sociedades que deverá ter o papel central numa aná-lise que, respeitando as exigências da sociologia política, procure ter umalcance prático na interpretação das condições políticas numa sociedade con-creta e da sua articulação com as condições sociais e as condições de decisão.

Por isso mesmo se inicia esta série de textos de sociologia política com-parada aplicada a Portugal com a explicitação do que é a sociedade polí-tica — afinal, a primeira das condições da acção condicionada que é o exer-

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cicio concreto do poder. E, se esta perspectiva de condicionamento da acçãopolítica for desenvolvida nas suas consequências, terá de se concluir que umdos vectores essenciais da análise política em Portugal é o que se refere aopapel específico das entidades políticas na organização política da sociedade:onde não há estruturas naturais de intermediação entre as condições sociaise as condições da decisão política é necessário, para que a acção políticaseja susceptível de regulação e de eficácia, que estruturas viáveis de inter-mediação sejam deliberadamente criadas. Não o fazer, ou admitir que elasexistem sem que essa pressuposição corresponda à realidade, é um dos maisfortes factores de fracasso político.

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