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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÕES E ARTES
Relatório Final de Iniciação Científica em Desenvol vimento Tecnológico e
Inovação
PIBITI/CNPq/USP - Edital 2011/2012
A música no cinema de Abbas Kiarostami
Aluna: Sarah Alencar Alves (No. USP: 6804713)
Orientador: Prof. Dr. Ferdinando Martins
Agosto de 2012
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RESUMO
Este relatório final apresenta as atividades desenvolvidas no âmbito da pesquisa A música no cinema de Abbas Kiarostami, realizada por Sarah Alencar Alves como bolsista de Iniciação Científica em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação PIBITI/CNPq/USP. Trata-se de um estudo do papel do som na construção da obra fílmica de Abbas Kiarostami e em sua repercussão, realizada por meio da coleta e organização de informações sobre o assunto e análise das inserções musicais e momentos em que há relevância no conjunto sonoro de cinco filmes do cineasta.
PALAVRAS CHAVE
Abbas Kiarostami; som; música; paisagem sonora; novo cinema iraniano.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 4
REPÚBLICA ISLÂMICA IRANIANA E O CINEMA............. ......................................................................... 5
PAISAGEM SONORA, EVENTO SONORO, TRILHA MUSICAL E MÚ SICA .......................................... 8
CORPUS: TABELAS E OBSERVAÇÕES.......................................................................................................... 9
UTILIZAÇÃO DA MÚSICA BARROCA EM E A VIDA CONTINUA E ATRAVÉS DAS OLIVEIRAS.... 24
A MÚSICA NO IRÃ E SUA UTILIZAÇÃO POR ABBAS KIAROSTA MI .................................................26
PERCEPÇÃO DO REAL E DO FICCIONAL................................................................................................. 28
CONCLUSÃO ..................................................................................................................................................... 29
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................................... 30
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Introdução
O Irã está entre os doze países que mais produzem filmes no mundo. No regime dos
xás, anterior à Revolução Iraniana de 1979, procurava-se manter um alinhamento com o
Ocidente, de forma que a cultura ocidental foi fortemente introduzida na cultura iraniana.
Assim, já em 1904 ocorreu a primeira projeção de cinema no país.
Hoje o investimento estatal na cinematografia no Irã é muito alto, já que, presente na
cultura iraniana há tanto tempo, é um dos principais meios de comunicação de massa do país,
sendo utilizado pelo governo principalmente para difundir seu programa ideológico. Não por
acaso, três anos após a Revolução o governo iraniano criou a Fundação Farabi, órgão oficial
de promoção do cinema iraniano. Ao mesmo tempo, criou o Fars -- Festival Internacional de
Cinema, realizado todo mês de fevereiro, aniversário da Revolução. E incentivou a atividade
cinematográfica em outros órgãos, como a Kanum – Fundação para o Desenvolvimento de
Crianças e Jovens e a Khaneh Cinema, associação de cineastas iranianos. Porém, com
movimentos cinematográficos voltados para a produção do cinema de intervenção social e a
projeção internacional de alguns cineastas do Irã, a função do cinema no país transcende a
objetivada pelo governo. Além disso, há uma forte presença da produção independente, cujos
filmes entram no circuito internacional de festivais e, muitas vezes, são aclamados pela crítica.
No início do século XX, muitos conceitos relacionados à arte começam a ser
questionados. A redução da experiência estética à obra torna-se vaga, não suficiente. Um dos
movimentos que integra este pensamento surgiu no Irã na década de 1960: o Novo Cinema
Iraniano. Filmes com temática social e com muitos experimentalismos estéticos passaram a ser
produzidos.
Compreendidos na realidade da República Islâmica estabelecida a partir da Revolução
Iraniana no começo da década de 1980, os artistas do Irã estão sob constante censura. Todo o
sistema de comunicação é controlado pelo governo. Assim, o cinema torna-se uma importante
ferramenta de expressão dos iranianos fora do país.
Abbas Kiarostami, nascido em Teerã no ano 1940, é um dos diretores que integram o
movimento do Novo Cinema Iraniano e exerce fundamental importância na expressão da
cultura iraniana fora do país, já que se posicionou no circuito de festivais internacionais na
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década de 1990, tendo recebido prêmios como a Palma de Ouro do Festival de Cannes em
1997 pelo filme O gosto de cereja e o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1999 pelo filme
O vento nos levará.
Os filmes de Abbas Kiarostami, integrados às características do Novo Cinema
Iraniano, procuram realizar uma nova forma de contar uma história, em oposição ao cinema
narrativo (comercial e hollywoodiano), valendo-se de meios como o plano- sequência, a
utilização de atores não profissionais, a não-linearidade da história contada, fragmentação ou
retardação da informação, exploração das potencialidades expressivas da repetição, utilização
de finais abertos, a manipulação do som e utilização da música a serviço de seu estilo, que
prisma a proximidade entre ficção e realidade, aspirando à cumplicidade criativa do
espectador.
Na reportagem “O mundo de Abbas Kiarostami” publicada na revista Cahiers du
Cinéma, na edição nº 493, em 1995, o cineasta afirma:
Le son est très important pour moi, plus important que l’image. Par la prise de vue, nous arrivons, au
maximum, à obtenir une surface bidimensionnelle. Le son accorde à cette image la profundeur, as
trosième dimension. Le son comble lês lacunes de l’image.1
A utilização do som e música por Kiarostami em seus filmes está diretamente ligada ao
seu estilo e, consequentemente, aos seus propósitos ao realizar e exibir um filme, interferindo
na percepção do real ou fictício e na aceitação de seus filmes pelo público e estado iraniano,
bem como do público estrangeiro. É este o tema do presente trabalho.
A República Islâmica Iraniana e o cinema
O movimento que desencadeou a Revolução Iraniana de 1979 defendia a liberdade e a
democracia, antagonizando a incapacidade de adaptação e flexibilidade da monarquia do xá
Reza Pahlevi, que evocava o passado iraniano pré-islâmico, oprimindo a oposição
do clero xiita e dos defensores da democracia.
1 O som é muito importante para mim, mais importante que a imagem. Vendo uma imagem, nós chegamos, no
máximo, a obter uma superfície bidimensional. O som fornece a esta imagem a profundidade, sua terceira dimensão. O som preenche as lacunas da imagem. (Tradução livre).
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O aiatolá Khomeini, ao retornar do exílio em fevereiro de 1979, integrou-se ao
movimento revolucionário como um líder religioso, fazendo com que o caráter dos manifestos
fosse focado na questão religiosa e enfraquecendo os protestos anteriores direcionados à
monarquia ditatorial do xá Reza Pahlevi. Assim, na primeira eleição após a Revolução, em
1980, 85% da população, por meio do voto não secreto, votou a favor da república islâmica. A
partir de então os preceitos sociais da revolução foram oprimidos, fazendo com que a Sharia,
ou Lei Islâmica, passasse a ser a lei suprema, havendo fortes restrições em relação à entrada da
cultura ocidental no país.
Durante a revolução e no momento pós- revolucionário o cinema iraniano passou por
uma crise intensa, já que as salas de cinema, antes pertencentes a empresas internacionais
foram nacionalizadas e muitas foram incendiadas, denunciadas como centros de corrupção.
Assim, muitos cinemas foram fechados e os produtores negavam-se a investir em filmes.
Um dos problemas era a aplicação dos preceitos islâmicos nas artes e entretenimento,
que foi resolvido na década de 1980, quando o governo passou a utilizar o cinema para
difundir o novo modelo cultural pós-revolução, proibindo a importação de filmes. Os cineastas
queriam transcender o mercado interno, objetivando a produção autônoma. Unindo os
interesses do governo com os dos cineastas, visando a qualidade dos filmes produzidos, o
Ministério da Cultura e da Orientação Islâmica criou um sistema de qualificação para os
filmes iranianos. Este sistema, ao passo que poderia favorecer obras melhores qualificadas
pelo governo, como as de Abbas Kiarostami, também foi utilizado para censura das mesmas,
desfazendo-se de filmes suspeitos em termos políticos e religiosos, o que abrange a censura
relacionada às imagens, diálogos e músicas, como visto na regulamentação de 1996 publicada
com o título Os Princípios e Procedimentos Operacionais do Cinema Iraniano2, que inclui as
seguintes proibições formais:
• qualquer insulto ao monoteísmo, aos profetas e aos imãs;
• qualquer insulto aos princípios que sustentam o governo islâmico no Irã (velayat-e
faqih);
2MELEIRO, 2006, p. 66.
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• negar o papel da República Islâmica do Irã sob liderança de aiatolá Khomeini em livrar
muçulmanos do imperialismo do mundo;
• proibição de filmes que tratem de violência, sexo explícito, prostituição e corrupção;
• contato físico ou piadas entre homens e mulheres;
• piadas sobre exército, polícia ou família;
• palavras estrangeiras ou grosseiras;
• músicas estrangeiras ou qualquer tipo de música que evoque prazer e alegria;
• mostrar de maneira positiva um personagem que prefira a solidão à vida coletiva;
• mulheres vestidas indecentemente (as mulheres devem cobrir o corpo e o cabelo e não
podem usar roupas justas ou coloridas) e maquiadas.
Alguns dos cineastas do Novo Cinema Iraniano, já atuantes na época do xá, que
retomaram seus trabalhos após a revolução, adaptaram-nos ao novo controle cultural, já que as
diretrizes do governo exigiam que os cineastas retratassem uma sociedade idealizada por
justiça e igualdade e luta contra a corrupção moral. Porém em 1998, com a abertura da
indústria cinematográfica para financiamentos privados e para o capital estrangeiro, cineastas
voltaram à produção do cinema de intervenção social. Essa abertura também permitiu o acesso
à produção cultural iraniana fora do país.
Nos dias de hoje as atitudes formais no âmbito da sociedade civil estão sendo
lentamente modificadas no Irã, tornando-se menos resistentes em relação ao Ocidente.
Alessandra Meleiro em seu livro O Novo Cinema Iraniano- Arte e Intervenção Social, cita, na
página 38:
Logo no início da revolução, o aiatolá Khomeini proibira música ocidental, mas hoje é possível ouvi-las
nas casas de chá (chaykhuneh), nos restaurantes (chelo kababi), nas festas e nos taxis divididos de Teerã
(a predileção é por música flamenca e tecno).
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Paisagem Sonora, Evento Sonoro, Trilha Musical e Mú sica
Analisando os cinco filmes que constituem o corpus desta pesquisa (Onde fica a casa
do meu amigo? (1987), E a vida continua (1992), Através das Oliveiras (1994)3, e Gosto de
Cereja (1997) e Dez (2002), pudemos entender que as inserções sonoras consideradas
relevantes durante os filmes podem ser caracterizados como parte de uma Paisagem Sonora ou
como um Evento Sonoro.
O conceito de Paisagem Sonora4 foi criado por um grupo de pesquisa da Universidade
Simon Fraser, do Canadá, liderado pelo compositor e professor Murray Schafer, no final da
década de 1960. Schafer define:
Paisagem sonora é qualquer estudo de campo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical,
a um programa de rádio ou até mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras.5
Observa-se que Abbas Kiarostami define em cada um de seus filmes e em cada espaço
demarcado pela cena, uma paisagem sonora. Essa paisagem é constituída por sons
característicos do ambiente ou da situação em que se encontra o ambiente. O espectador é
muitas vezes situado no espaço não apenas pelas imagens, mas também pelo som. Outras
vezes o som antecede a cena, fazendo com que o espectador já saiba o que esperar da próxima
imagem.
Murray Schafer divide o som em três tipos: sons da natureza, sons de comunicação
(sons de fontes utilizadas para comunicação pelo ser humano, inclusive a voz) e sons residuais
(sons que consideramos incômodos, ruídos). Há também os sons ambíguos. Nos filmes de
Kiarostami as paisagens sonoras podem ser formadas pelos três tipos de sons.
3 Onde fica a casa do meu amigo, E a vida continua e Através das Oliveiras constituem a Trilogia Koker, assim
chamada pelo fato de os três filmes serem ambientados no vilarejo de Koker ou em suas proximidades, no
norte do Irã.
4 O termo original é Soundscape, neologismo formado pela junção das palavras sound (som) e loundscape
(paisagem).
5 SCHAFER, 2001, p. 23.
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Outro tipo de inserção sonora relevante nos filmes analisados é o que chamaremos de
Evento Sonoro. O Evento Sonoro, contido na Paisagem Sonora, ocorre quando não podemos
ver a imagem, apenas ouvir o som proveniente da cena, ou seja, quando podemos apenas
“ouvir a cena”, fazendo com que o espectador crie a imagem antecipadamente, no caso das
vezes em que há a inserção de um evento sonoro e algum tempo depois o evento tornar-se
também visual; ou definitivamente, nos casos em que a imagem nunca aparece.
Em todos os filmes analisados há a presença de músicas inseridas. Em alguns há uma
trilha musical, ou seja, uma música recorrente durante o filme e em outros há uma música
pontual, que toca apenas uma vez. Não há trilha original em nenhum dos filmes: todas são
músicas pré-existentes escolhidas por Abbas Kiarostami. Cabe destacar, porém, que o diretor
afirma, em várias entrevistas, que não dá importância para a trilha sonora, que ela
simplesmente “está lá”. No entanto, a pesquisa revelou que essa afirmação não é verdadeira e
pode ser compreendida como mais uma das “travessuras” que ele realiza com jornalistas e
admiradores, embaralhando informações. Além disso, pessoas próximas a ele afirmam que o
diretor de áudio é o único profissional que Kiarostami não interfere no trabalho6.
Corpus: tabelas e observações
Para mapear os momentos de relevância do conjunto sonoro, incluindo as inserções de
músicas nos filmes constituintes do corpus da pesquisa, fizeram-se as seguintes tabelas e
observações:
Onde fica a casa do meu amigo? (1987)
Personagens citados: Professor, mãe, avó, Ahmad, Mohammad Reza Nematzadeh, Nematzadeh (homem com o burro), senhor carpinteiro. Música: Amin Allah Hossein. Tempo Espaço/Imagem Som
Créditos iniciais. Velha porta se movimentando Crianças brincando, gritando e
6 Essa informação foi obtida em entrevistas com a diretor Malak Khazai e com o ator Alireza Shojanoori,
realizadas pelos pesquisadores Daniel Marcolino e Ferdinando Martins em julho de 2011.
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com o vento e créditos iniciais. porta batendo repetidas vezes.
1’27” Professor na sala de aula. Silêncio, a não ser pela fala do
professor.
6’19” Professor na sala de aula. Interferência sonora de uma
provável cadeira ou mesa sendo
arrastada, seguida pela bronca
do professor.
7’45” Porta da escola. Sinos tocando repetidas vezes.
8’21” Bicicleta passando. Confirmação de que os sinos são
buzinas de bicicletas.
9’04” Roupa estendida no varal. Bebê chorando pela primeira
vez* e uma ferramenta sendo
manuseada.
9’19” Mãe com bebê, avó e Ahmad no
quintal; aparece a bomba de
água, manuseada em 9’04”.
Mãe falando.
9’38” Quintal da casa de Ahmad. Primeiro canto de galo*.
9’57” Dentro da casa, da janela vê-se
meninos passando, carregando
bicicleta.
Buzina de bicicleta.
10’51” Quintal da casa de Ahmad. Primeiro canto de pássaro*.
16’13” Quintal da casa de Ahmad. Primeiro cacarejar de uma
galinha*.
21’03” Ahmad decide se leva o caderno
ao amigo.
Tambores introduzindo a
primeira intervenção da trilha
musical.
21’15” Ahmad corre até Pashteh. Trilha musical (de caráter
oriental, do compositor Amin
Allah Hossein) e intervenções
sonoras do meio (ruídos de
animais e outros do ambiente).
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23’19” Ahmad chega a Pashteh. A música pára em fade out.
24’06” Ahmad anda por Pashteh. Mugido de uma vaca.
24’13” Aparece a vaca. Mugido da vaca.
28’10” Primeira suposta casa de
Mohammad Reza Nematzadeh
na qual Ahmad entra.
Primeiro miado do gato*.
44’47” Homem manuseando o burro. Metais batendo, dos objetos que
estão no burro.
45’18” Ahmad decide se vai a Pashteh
pela segunda vez.
Tambores introduzindo a
segunda intervenção da trilha
musical.
45’21” Ahmad correndo de Koker a
Pashteh pela segunda vez,
seguindo o homem com o burro.
Trilha musical e intervenções
sonoras do meio.
48’28” Ahmad procurando o homem
com o burro.
A música pára em fade out.
49’ Ahmad procurando o homem
com o burro.
Mesmos sons de metais batendo,
de 44’47”. Ahmad encontra o
homem pelo som.
52’46” Ahmad procurando fonte sonora.Ferramentas trabalhando.
56’46” Ahmad e o senhor carpinteiro
descendo a escadaria.
Ferramenta trabalhando.
57’30” Ahmad e o senhor andando e a
sombra do trabalhador
manuseando uma inchada.
Inchada trabalhando.
1h Ahmad e carpinteiro chegam ao
destino guiado pelo senhor.
Mesmos sons metálicos de 49’.
1:00’50” Casa do homem do burro. Sons metálicos.
1:03’35” Ahmad e carpinteiro subindo a
mesma escadaria de 56’46”.
Apenas a conversa do menino
com o carpinteiro, indicando que
o homem com a inchada já se
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retirou.
1:05’04” Ahmad correndo de volta pra
casa no escuro, assusta-se.
Latidos de cachorros.
1:06’40” O senhor carpinteiro dentro de
sua casa, fechando-a.
Ruídos de vento.
1:08’24” Ahmad dentro de sua casa. Rádio e ruídos de vento
semelhantes ao da casa do
carpinteiro.
1:17’21” Nematzadeh recebe um visto
pela lição de casa.
É iniciada a trilha musical, dessa
vez com um instrumento de
cordas ao invés do tambor.
Créditos finais. Créditos no fundo preto. Trilha musical.
Em Onde fica a casa do meu amigo? a paisagem sonora reflete o ambiente campestre
do filme, ou seja, o tipo de som mais comum da paisagem sonora são os da natureza. Há
muitos ruídos de animais e de ferramentas típicas do campo trabalhando.
Nesse filme a presença da paisagem sonora em cada cena é muito relevante, já que em
muitas delas há sons característicos daquele espaço específico, ou seja, sempre que aparece o
espaço, há também a inserção do som característico daquele espaço. Isso ocorre em todos os
sons descritos com um asterisco.
Esse filme é o único do corpus em que há a presença de uma trilha musical de caráter
oriental, composta por Amin Allah Hossein. Sobre a inserção desta trilha, Kiarostami comenta
na parte seis (“A música”) do filme Sobre Dez:
Em Onde fica a casa do meu amigo? eu escolhi uma peça musical de Amin Allah Hossein apenas
devido às pressões exercidas por alguns de meus colegas que viram o filme e apontaram que precisava
de alguma música para manter a atenção dos espectadores durante alguns momentos. Eles não estavam
totalmente errados.
Apesar da declaração do cineasta, percebe-se uma preocupação da relação da inserção
da música com a sensação transmitida pela cena. Nas duas primeiras vezes em que a música é
inserida, ela é introduzida pelas batidas de tambores, indicando a tensão durante a decisão de
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Ahmad sobre ir ou não a Pashteh. Já na terceira vez em que a música é inserida, não há a
introdução com tambores, o instrumento de cordas entra direto, não proporcionando um clima
tenso, já que a música é inserida na resolução do filme.
E a vida continua (1992)
Personagens citados: Diretor, Puya, Sr. Ruhi, mãe com criança no colo, senhora do carpete, rapaz recém casado e sua esposa. Música: Concerto para duas trompas, cordas e baixo contínuo em Fa maior, de Antonio Vivaldi. Tempo Espaço/Imagem Som
Início do filme. Guarita do pedágio. Rádio com música orquestral de caráter ocidental e radialista; intervenções sonoras do meio.
1’30” Diretor saindo do pedágio, dentro do carro, dirigindo.
Rádio em fade out; ruídos dos carros (sirenes e buzinas que poderão ser escutadas frequentemente durante todo o trajeto).
4’39” O diretor para o carro. Sinal do carro (seta ou pisca alerta).
5’35” Puya persegue o gafanhoto. O ruído do motor cessa, indicando o desligamento do carro.
5’53” Puya retorna ao carro. O ruído do motor volta a ser ouvido, indicando que o carro é ligado novamente.
10’22” Luz no rosto de Puya, indicando que saíram do túnel.
Vozes conversando, ferramentas trabalhando e música de caráter oriental, aparentemente de um auto-falante.
12’09” Paisagem filmada da janela do Música em fade out até desaparecer; ouvimos o freio
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carro. de um veículo grande e uma situação de problema no trânsito ocorre.
12’21” Paisagem filmada da janela do carro.
Ocorre um problema no trânsito, ao qual apenas ouvimos, não vemos.
13’04” Paisagem filmada da janela do carro.
Som do sinal do carro, indicando que vai parar; porta se abre e fecha.
13’46” Rosto do diretor entre as árvores.
Choro de um bebê; o diretor vai em sua busca.
14’54” O diretor brinca com o bebê. Canto em voz de mulher, se aproximando.
15’27” O diretor espera a provável mãe do bebê.
Puya chama seu pai.
16’30” Caminhão passando. Corte abrupto do canto; intervenções sonoras do meio.
21’24” Rosto de Puya dentro do carro. Choro de bebê.
21’40” Ônibus ao lado do carro do diretor.
Choro de bebê e voz de sua mãe.
24’08”
Rosto do diretor dentro do carro.
Rádio com música orquestral de caráter ocidental e radialista.
25’31” Carro saindo do congestionamento.
Primeiro ruído de helicóptero.
31’22” O diretor encontra pessoas na estrada.
Ruído de helicóptero mais evidente que diálogo.
34’49” Pessoas ao longe, de preto reunidas.
Canto fúnebre de caráter oriental; intervenções sonoras do meio, lamentos.
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35’19” Paisagem filmada da janela do carro.
Canto fúnebre em fade out; primeira interferência da trilha musical do filme (Concerto para 2 trompas) em fade in; ruídos da cena.
37’09” Carro do diretor andando. Trilha musical em fade out; helicóptero.
41’07” Sr. Ruhi sai do carro. Deixamos de ouvir o diálogo entre o senhor Ruhi e o diretor; vozes das crianças por perto, que não vemos.
43’54” Puya andando pelo vilarejo. Sons de animais (vaca, galo); helicóptero.
45’15” Puya procura pelos sons. Vozes, ferramentas trabalhando e choro de criança.
45’19” Mãe com a criança no colo. Choro de criança.
46’20” Diretor encostado na mureta da casa; lamparina na janela.
Diálogos entre pessoas que não vemos.
48’28” Paisagem pela janela de uma casa destruída pelo terremoto.
Segunda intervenção da trilha musical; intervenções sonoras do meio.
49’58” Diálogo do diretor com a senhora do carpete.
Trilha em fade out.
53’09” Mulher trabalhando na lavagem de roupas.
Diálogos entre crianças que não vemos.
59’41” Diretor conversando com rapaz recém casado.
Terceira intervenção da trilha musical; intervenções sonoras do meio.
1:01’ O diretor vai para o andar superior da casa onde está escorado.
Trilha para abruptamente.
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1:01’04” Diretor e moça recém casada no andar superior da casa.
Flauta tocando melodia de caráter oriental.
1:01’41” Puya mexendo nos escombros. Buzinas repetidamente.
1:01’44” O diretor desce as escadas. Cessa a melodia na flauta.
1:23’37” Rosto do diretor dentro do carro; carro no caminho entre Pashteh e Koker.
Ruído do carro torna-se inaudível, depois retorna, pára e volta novamente.
1:25’37” Carro no caminho entre Pashteh e Koker.
Trilha musical; intervenções sonoras do meio.
1:27’25” O carro do diretor reaparece, indo para direção oposta.
Caráter da música modificado
Créditos finais. Paisagem e créditos. Trilha musical.
Em E a vida continua a paisagem sonora remete à de Onde fica a casa do meu amigo?,
porém com a intervenção de sons residuais, como sirenes e helicópteros recorrentes em todo
filme, devido à nova situação do local (a ocorrência recente do terremoto). Esse procedimento
parece ser intencional, uma vez que se trata de uma trilogia.
Nesse filme percebe-se a preocupação com a discussão sobre a influência da cultura
ocidental no Irã e essa discussão é realizada por meio da música no filme. Não só a trilha
musical escolhida foi uma peça do repertório erudito europeu, como em algumas das vezes em
que há a presença de música em rádio, as músicas são de caráter ocidental. O radialista
comenta em 24’08”:
A influência ocidental nos nossos compositores não deve ser citada pela sua falta de transcendência.
Pelo contrário, no Norte da África, a música do sul da Europa atingiu uma simbiose particular. Na nossa
área, manteve-se uma musicalidade pura, não só na música tradicional, mas também nas melodias
contemporâneas.
Através das oliveiras (1994)
Personagens citados: Shiva, avó de Tahereh, Tahereh, amiga de Tahereh, Hossein, Diretor, Farhad.
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Música: Amir Farshid Rahiman; Concerto para Oboé e Cordas em Do maior de Domenico Cimarosa. Tempo Espaço/Imagem Som
2’51” Meninas conversam entre si. Tambores em fade in; intervenções sonoras do meio.
3’01” Fundo preto com créditos iniciais.
Música (de Amir Farshid Rahiman, de caráter oriental, em formação de banda ocidental).
3’38” Fundo preto com créditos iniciais.
Latidos, seguidos pelos ruídos de carro, indicando o retorno de intervenções sonoras do meio.
4’ Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
A música continua, entra a voz de um radialista.
4’27” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
Radialista, música para em fade out.
5’26” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
Tambores, seguidos pela música, radialista para.
5’37” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
A música continua, entra radialista.
5’41” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
Música para, continua radialista.
6’37” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
Apenas música.
6’46” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
Música e radialista.
6’55” Paisagem filmada pelo pára-brisa do carro.
Música, radialista; buzinas.
7’50” Avó de Tahereh na sacada. O som do rádio cessa abruptamente.
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7’52” Avó de Tahereh na sacada. Volta o som do rádio; ruídos de animais (galo, cachorro, pássaro, galinha).
8’16” Avó de Tahereh na sacada. O rádio pára com o desligamento do motor.
9’32” Shiva e avó de Tahereh na sacada.
Vozes chamam a atenção de Shiva.
9’35” Tahereh sobe as escadas e sua amiga vai embora.
Vozes das amigas.
14’21” Paisagem filmada pela janela do carro.
Ruído do carro em fade out.
14’24” Placa de cinema; cena de E a vida continua.
Intervenções sonoras do meio e vozes de crianças que não vemos.
17’40” Crianças reunidas atrás da produção do filme.
Vozes das crianças.
26’11” Hossein conversa com o diretor no set de filmagem.
Gritos de crianças em fade in.
26’13” Hossein e diretor (dirigindo) dentro do carro, com crianças correndo atrás.
Gritos das crianças.
31’46” Hossein no cemitério. Canto fúnebre, lamentos.
35’33” Hossein entre as árvores. Canto fúnebre e lamentos param abruptamente.
35’45” Hossein entre as árvores. Vozes e choro de bebê.
35’55” Equipe filmando cena de E a vida continua.
Intervenções sonoras do meio.
49’06” Farhad olhando paisagem. Grande estouro.
1h16’ Porta da casa de filmagem. Som de helicóptero pela primeira vez.
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1:33’53” Hossein atrás de Tahereh. Música (Concerto para oboé e violino) em fade in; intervenções sonoras do meio.
1:36” Hossein volta correndo. Caráter da música modificado.
1:37’15” Paisagem, créditos finais. Música.
A paisagem sonora em Através das oliveiras remete aos outros dois filmes da trilogia,
com a interferência de sons residuais como em E a vida continua. É recorrente durante o filme
a introdução de uma cena por meio dos sons, “invadindo” a cena anterior, como em 26’11”.
Nesse filme não há a presença de uma trilha musical, mas de duas músicas pontuais
inseridas no filme: a de Amir Farshid Rahiman no início e o Concerto para Oboé e Cordas de
Domenico Cimarosa no fim. A música de Amir Farshid Rahiman é inserida ao final da
introdução do filme, acompanhando os créditos iniciais e depois iniciando o filme, passando
de trilha musical para música de rádio em 4’.
Gosto de cereja (1997) Personagens citados: Badii, catador de plásticos, soldado, segurança, seminarista, Sr. Bagheri. Música: St. Jame’s Infirmary de Joe Primrose, por Louis Armstrong. Tempo Espaço/Imagem Som
50” Badii dentro do carro, dirigindo. Trabalhadores oferecem seus serviços a Badii.
1’07” Trabalhadores filmados pela janela do carro.
Trabalhadores oferecem seus serviços a Badii.
4’18” Badii dentro do carro. Homem conversa ao telefone.
7’32” Catador de plásticos descendo até o vale.
Vozes de crianças.
8’07” Crianças brincando. Vozes de crianças.
9’25” Badii conversa com catador de plásticos.
Ruído de veículo grande passando; não escutamos o diálogo.
20
10’38” Créditos iniciais em tela preta. Ruídos de veículos.
13’54” Rosto do soldado no carro. Buzina, fazendo com que não escutemos o que Badii pergunta ao soldado.
21’44” Carro próximo ao local do possível suicídio.
Ruídos de animais pela primeira vez* (pássaros, corvos, cães).
22’50” Badii fora do carro. Ruído agudo de um animal não identificável pela primeira vez*.
31’21” Rosto de Badii no carro. Apitos e vozes do exército.
31’35” Grupo de soldados marchando. Apitos e vozes do exército.
33’55” Trabalhadores no campo. Canção cantada pelos trabalhadores.
36’55” Badii no carro. Música em rádio.
40’05” Badii na sacada da guarita do segurança.
Música em rádio; não escutamos o que Badii fala por causa do vidro que os separa.
43’27” Badii no carro. Cessa música em rádio.
52’01” Badii e seminarista no carro, chegando à guarita.
Música em rádio.
52’42” Badii no carro. Cessa música em rádio.
1:10’35” Sr. Bagheri no carro. Sr. Bagheri canta uma canção turca.
1:11’28” Badii no carro. Radialista.
1:11’53” Sr. Bagheri no carro. Música em rádio.
1:17’37” Badii na janela da sala onde está Sr. Bagheri.
Alunas conversando.
1:19’45” Homem sentado no banco do Museu.
Cessa música em rádio.
1:22’16” Badii pela janela de sua provável casa.
Música em rádio.
1:22’44” Badii pela janela de sua provável Música em rádio; buzina
21
casa. chamando Badii.
1:23’02” Badii pela janela de sua provável casa.
Primeiros trovões.
1:24’15” Janela do andar inferior da casa. Música em rádio fica mais alta.
1:24’35” Local próximo ao do possível suicídio iluminado por farol.
Cessa música em rádio; latidos.
1:25’56” Árvore onde Badii se deitará. Chegada do carro; porta se abrindo e batendo.
1:26’18” Badii aproxima-se da árvore. Carro indo embora.
1:30’03” Tela preta. Chuva.
1:30’44” Tela preta. Vozes do exército.
1:30’50” Soldados marchando em paisagem verde.
Vozes do exército.
1:36’26” Soldados sentados na grama verde.
Música (St. James’ Infirmary); intervenções sonoras do meio.
1:33’55” Créditos finais em fundo preto. Música.
Em Gosto de Cereja há a dicotomia muito clara entre cidade e campo, já que o
personagem Badii mora na cidade e pretende suicidar-se no campo. A paisagem sonora do
filme segue a dicotomia, caracterizando a cidade com sons residuais e o campo com sons da
natureza.
O local do possível suicídio possui uma paisagem sonora muito específica, já que todas
as vezes que Badii aproxima-se da árvore, ouvimos o ruído agudo de um animal não
identificável.
A maioria dos personagens que conversam com Badii entra na cena como evento
sonoro, para, só então, podermos vê-los, ou às vezes nem os vemos, como em 4’18”. Ocorrem
também algumas vezes durante o filme em que não escutamos o que os personagens dizem
devido aos ruídos muito altos de automóveis ou, como no caso de 40’05”, não escutamos
Badii, pois o espectador é colocado na perspectiva do segurança e há um vidro separando os
personagens, o que dificulta a audição do que Badii fala.
22
Um dos momentos mais poéticos do filme ocorre com a presença de um evento sonoro.
Quando Badii deita-se no vão ao pé da árvore para morrer, a imagem torna-se totalmente
negra e podemos apenas ouvir o som da chuva.
A escolha em terminar o filme com um Blues reforça a idéia da metalinguagem e
influência da cultura ocidental no Oriente. Nelson Ascher escreveu na Folha de São Paulo do
dia 11 de janeiro de 1998, em sua reportagem Uma epopéia do pó:
...o iraniano realizou, num país de estradas de terra ruins e poeirentas, um “road movie” de baixa
velocidade, quase estático, o que é, naturalmente, não apenas uma contradição em termos, mas também,
novamente, metacinema.
Deste modo, quem o assiste à espera do exotismo étnico acaba se deparando com mais uma variação do
subgênero quintessencialmente ocidental, norte-americano, pois este meta-ou-anti-“road movie” (que se
encerra com acordes jazzísticos)...
Dez (2002)
Personagens citadas: Amin, Mania, prostituta, moça para quem Mania dá carona. Música: Walking in the Air de Howard Blake. Tempo Espaço/Imagem Som
Início Número 10. Som indicando o número, como um despertador.
27” Amin dentro do carro, no banco do passageiro.
Voz de Mania.
8’48” Amin dentro do carro. Buzinas interferem no diálogo.
16’40” Vemos Mania pela primeira vez, dentro do carro, dirigindo.
Ruído do carro.
16’56” Mania no carro. Buzinas interferem no diálogo.
17’10” Mania no carro. Música em rádio (música de caráter ocidental), que se confirma tratar do rádio do carro que está saindo da vaga onde Mania irá estacionar.
23
18’ Mania no carro. Cessa em fade out a música em rádio, à medida que o carro que estava estacionado vai embora.
23’19” Mania no carro. Buzinas interferem no diálogo.
24’24” Mania saindo do carro. Diálogo com senhor estrangeiro que não vemos, apenas ouvimos.
34’24” Mania no carro, próximo ao Mausoléu.
Canção de provável auto-falante.
35’20” Mania no carro. Voz da prostituta.
47’40” Costas da prostituta, saindo do carro.
Intervenções sonoras do meio.
48’16” Mania no carro. Da janela vê-se o Mausoléu.
Canção de provável auto-falante.
52’03” Mania no carro. Buzinas interferem no diálogo.
1:23’38” Moça para quem Mania da carona no carro.
Sinal do carro (seta ou pisca alerta).
1:27’34” Amin dentro do carro. Música (Walking in the Air) em fade in; intervenções sonoras do meio.
1:27’38” Créditos finais em fundo preto.Música.
Dez é completamente ambientado na cidade. Assim sua paisagem sonora é composta
principalmente por sons residuais. Durante todo o filme há a presença de ruídos de carros,
buzinas, sirenes, tendo sido anotados na tabela apenas os momentos em que estes ruídos
influenciam diretamente a cena. Na parte cinco do filme, por se tratar de uma via rápida com
muitos carros, estes ruídos tornam-se ainda mais evidentes, fazendo com que quase não se
escute o diálogo entre Amin e Mania.
A questão do evento sonoro também é muito presente no filme. Mania, personagem
principal, por exemplo, só aparece em 16’40”, estando presente como evento sonoro (só
ouvimos sua voz) desde o início do filme. A prostituta é praticamente um evento sonoro.
24
Vemos apenas a parte de trás de seu corpo quando ela sai do carro de Mania, 12’20” após
ouvirmos sua voz pela primeira vez.
Abbas Kiarostami faz questão de que o espectador atente-se às trocas das partes, em
contagem regressiva, não apenas pela imagem que aparece de cada número, mas também pelo
som que os acompanha.
No filme Sobre Dez, Abbas Kiarostami comenta na parte seis (A música):
Ao final de uma versão de Dez, a atriz me surpreendeu cantando uma triste canção de virgens. Eu a
acrescentei àquela versão do filme com esta canção para o fim. Então utilizei a mesma melodia tocada
pelo piano, mas eu achei que ainda assim estava sobrecarregado de sentimentalismo. Finalmente eu
troquei o fim do filme por outra sequência. Eu achei que a história, o rosto da atriz e a triste melodia
iriam sobrecarregar o público. Eu tomo cuidado para não forçar nada nos espectadores que os pudessem
fazer perder sua paciência, então eu omiti a música, mesmo que tenha surgido do coração do filme, e
que tudo justifique sua presença para comover o espectador.
No fim das contas, o cineasta optou pela versão instrumental da música Walking in the
Air, de Howard Blake, criada em 1982 para um filme de animação infantil britânico, que não
deixa de gerar certo sentimentalismo no espectador.
Utilização da música barroca em E a vida continua e Através das oliveiras
No período barroco, a partir de uma longa tradição, eram atribuídas às músicas
qualidades afetivas de acordo com os modos e tonalidades em que eram escritas, ligadas aos
tipos de instrumentos, sua relação com cada tonalidade e o tipo de afinação escolhida. A essas
qualidades afetivas dá-se o nome de “afetos”.
Observando as músicas nos filmes E a vida continua e Através das Oliveiras
percebem-se padrões na sua utilização, que reforçam a ideia dos afetos, se relacionados às
cenas vistas no filme.
Ambas as músicas utilizadas nos filmes são Concertos, ou seja, obras musicais escritas
para um ou mais instrumentos solistas, acompanhados por uma orquestra. Este gênero
musical, reforçando a ideia de efeito de luz e sombra arraigada pelo pensamento barroco por
meio do contraste entre orquestra e instrumento solista, é tradicionalmente escrito em três
25
movimentos (Rápido - lento - rápido) ou quatro (Lento - rápido - lento - rápido). No caso dos
filmes analisados os movimentos são os seguintes:
E a vida continua (Concerto para duas trompas de Vivaldi).
I- Allegro
(rápido)
II- Larghetto
(lento)
III- Allegro
(rápido)
Através das oliveiras (Concerto para oboé e cordas de Cimarosa).
I- Introduzione-
Larghetto (lento)
II- Allegro
(rápido)
III- Siciliana
(lento)
IV- Allegro giusto
(rápido)
Observa-se que no dois filmes o cineasta opta por iniciar pelo movimento Larghetto e
terminar com o Allegro, utilizando do concerto de Vivaldi o segundo e terceiro movimentos e
de Cimarosa, um trecho do primeiro e o quarto movimento.
A mudança entre os movimentos não ocorre apenas no âmbito musical, já que nos dois
casos algo novo ocorre na cena, antes contínua. Assim, a mudança de movimentos reforça a
surpresa do espectador em relação à mudança de acontecimentos nas cenas. No caso de E a
vida continua, o carro do diretor reaparece quando há a mudança de movimentos na música,
indicando que o personagem mudou a direção de seu trajeto. Em Através das oliveiras o
personagem Hossein volta correndo em direção contrária de Tahereh no mesmo instante em
que há a passagem de movimentos na música.
Nos dois filmes a entrada dos créditos também é marcada por alguma mudança na música. Em E a vida continua, os créditos aparecem quando é iniciado na música um trecho em que apenas os solistas tocam e em Através das oliveiras há uma modulação e uma nova parte é iniciada.
Na música barroca há a presença comum de ritornelos, ou seja, trechos que são
repetidos, atribuindo a estes o caráter de refrão. Para que os créditos finais acabassem junto
com a música nota-se que alguns destes trechos com caráter de refrão são repetidos mais de
uma vez ou que outros, que normalmente não seriam repetidos, se repetem.
É importante notar que os afetos podem variar de acordo com a tonalidade em que a
música é escrita, porém as gravações escolhidas para os filmes em questão não estão no tom
original. Contudo, o importante no contexto dos séculos XVII e XVIII é que os compositores
trabalhavam com as distintas potencialidades das tonalidades, independente de qual fosse,
evitando uma verdade absoluta sobre cada tonalidade. Assim, o fato de as gravações não
26
estarem no tom original não é relevante, pois o que determina o colorido é o temperamento e o
caráter dos instrumentos.
A música no Irã e sua utilização por Abbas Kiarosta mi
A censura realizada em determinada área reforça sua importância e poder de influência
na sociedade em que está presente. Para a Revolução Iraniana a música é uma das áreas a
serem censuradas, pois o Alcorão proíbe músicas que não sejam religiosas, podendo ser
apenas cantadas e acompanhadas por instrumentos de percussão. A revista Keyhan publica,
logo após a Revolução:
A música é como uma droga, quem adquiriu o hábito não pode mais ser devoto a atividades importantes.
Ela muda as pessoas ao ponto de se renderem ao vício ou a preocupações pertencentes ao mundo da
música apenas. Nós devemos eliminar a música porque esta significa traição a nosso país e nossa
juventude. Nós devemos eliminá-la completamente7.
A música ocidental foi proibida no Irã desde o início da Revolução. Em relação à
música produzida no país, houve um embargo que durou até 1989, proibindo o pagamento a
músicos, a venda de seus trabalhos e de instrumentos musicais, fazendo-se evitar a música não
revolucionária e não religiosa.
Com o advento dos DVDs, satélite e internet a população iraniana reiniciou o contato
com a música ocidental, porém com o anúncio do Presidente Mahmoud Ahmadinejad feito em
2005 ela foi banida da televisão e rádio do país, estreitando novamente a relação da população
iraniana com a música ocidental.
É neste contexto de proibições e liberações que Kiarostami insere músicas orientais e
ocidentais em seus filmes durante os quinze anos que abrangem o corpus desta pesquisa, em
uma cultura enraizada religiosamente e tradicionalmente na música, como o próprio cineasta
sugere por meio, por exemplo, do canto fúnebre em E a vida continua e Através das Oliveiras,
da canção de trabalho em O gosto de Cereja, da música tocada no mausoléu em Dez e da
constante aparição de músicas tocadas nos rádios dos carros em que os filmes são
7 Youssefzadeh, 38. Tradução livre.
27
ambientados, inclusive entrando na discussão por meio do radialista que comenta a relação
com a música ocidental em E a vida continua.
Observando a ficha técnica presente na Filmografia do cineasta, que abrange filmes
realizados de 1970 a 2004, no livro Abbas Kiarostami, da editora Cosac Naify, foi possível
realizar o seguinte gráfico:
Por meio dessas observações pode-se compreender que o provável motivo para que
Abbas Kiarostami mostre-se desinteressado em relação às trilhas musicais de seus filmes seja
essa relação conturbada entre os censores, a música e o povo. Como dito pela jornalista da
revista eletrônica TehranAvenue.com, Shadi Vatanparast:
A música pode ser considerada a forma de arte mais vulnerável e problemática na história do Irã. O estado
sempre tentou controlar a produção artística e a música é uma das formas mais efetivas de dar vazão aos
desejos8.
Percepção do real e do ficcional
8 Tradução livre.
28
É comum encontrar reportagens sobre os filmes de Abbas Kiarostami que os
descrevem como retratos da realidade iraniana, ou como filmes documentais. Porém, o
cineasta afirma em entrevista concedida a Patrice Blouin e Charles Tesson na revista Cahiers
du Cinéma, nº 571, em 2002:
Para mim, a realidade filmada não é mais real. Portanto, trucagens e a maquinaria permitem
simplesmente voltar à realidade que somos em geral incapazes de filmar.
O princípio da incerteza é uma característica fortemente enraizada na cultura persa e
amplamente discutida na estética e poética dos filmes de Kiarostami, por meio da preocupação
filosófica com o sentido das aparências, refletindo sobre a virtualidade do cinema e
promovendo a recriação da realidade por meio da ficção.
O cineasta manipula cada informação presente no filme, definindo uma estética e
promovendo a incerteza sobre a espontaneidade ou elaboração de cada cena presente nos
filmes. Para isso, Kiarostami utiliza-se de recursos como a simbologia em suas imagens e a
dissociação entre as mesmas e o som:
Embora estejamos vinculados à realidade, me parece que o primeiro passo para chegar ao cinema [que
faço] consiste em quebrar essa realidade. Minha voz me pertence quando falo, a sincronização da minha
voz com a minha imagem afirma minha realidade. Mas extrair ou separar o som da imagem nos
aproxima de uma significação nova, que é a própria estética do cinema. [...] Na prática, separamos as
coisas e, com um novo ordenamento, obtemos uma coisa nova, diferente da realidade habitual.9
Abbas Kiarostami utiliza-se não só da dissociação direta entre o som e a imagem,
como também da dissociação do tratamento entre esses elementos, utilizando-se do que
chamamos de eventos sonoros. Por exemplo, em planos nos quais há um carro no meio de uma
paisagem, enquanto o que ouvimos em primeiro plano é o diálogo entre os ocupantes do
veículo, ou seja, não vemos os personagens, mas os escutamos.
9 Sobre Dez, 2004.
29
Outro recurso utilizado na manipulação do som é a mistura entre sons diretos e sons
introduzidos pelo cineasta. Na maioria das vezes, não é possível para o espectador realizar a
distinção entre os dois tipos de som, já que, muitas vezes não vemos a fonte sonora.
Conclusão
O corpus desta pesquisa abrange quinze anos da carreira de Abbas Kiarostami. Pode-se
observar, durante esse tempo que seus filmes passam da temática rural para a urbana,
iniciando com Onde fica a casa do meu amigo?, que se passa inteiramente no campo,
passando por E a vida continua e Através das oliveiras, que, apesar de se passarem no campo,
apresentam elementos da cidade; Gosto de cereja, que apresenta os dois locais, até chegar em
Dez, totalmente ambientado na cidade.
Durante este desenvolvimento observa-se a diminuição da utilização da música em
seus filmes, mas mantendo a manipulação das inserções sonoras. O cineasta justifica a
diminuição da exploração da música em seus filmes:
Em minhas experiências seguintes, a música foi gradativamente sendo menos utilizada em meus filmes.
[...] Não estou dizendo que sou contra a música ou contra o uso apropriado da música no cinema. Estou
falando da música abusiva. Música é uma forma de arte extremamente estimulante e comovente. Talvez
seja por isso que tenho um problema em utilizar música para estimular e comover o espectador.
Em meus filmes mais recentes eu tenho usado música apenas ao final. As histórias em meus filmes não
têm finais definitivos. Assim, eu uso uma parte selecionada de uma música para ajudar o espectador. Eu
os quero dizer: “Atenção! O filme está chegando a um fim!”. Esta forma de utilizar-se da música é
confortável para mim mesmo e para o espectador.
Apesar da menor exploração gradativa nos filmes de Kiarostami, a música está
presente e, principalmente nos filmes em que há a inserção de uma trilha musical, possui uma
função definitiva na estética do cineasta. Ficou claro que a escolha das músicas para cada
filme não é aleatória, sendo cada uma cuidadosamente inserida e tratada.
Durante a pesquisa, viu-se a necessidade de estudar com mais profundidade a
manipulação do som por Kiarostami, abrangendo assim o som direto, as inserções sonoras e as
músicas inseridas nos filmes, que compõe toda parte auditiva do filme, fundamental para o
todo das obras de Abbas Kiarostami.
30
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