A Florianópolis dos Esquecidos

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Fato&Versão a florianópolis dos esquecidos A Praça XV é o esconderijo dos sobreviventes de uma cidade que desperta quando os cidadãos normatizados da vida diurna se retiram. Matéria-prima para Edgar Allan Poe, Gay Talese, João do Rio e Eliane Brum. Fonte de inspiração para uma comunidade de 26 repórteres que renovam aqui o amor às ruas e a prática da flânerie, essa escrita andarilha dos esquecimentos. REVISTA LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNISUL - PALHOÇA, NOVEMBRO DE 2015 - EDIÇÃO #25

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Flânerie realizada no centro de Florianópolis/SC com a turma de 2015 do curso de Jornalismo.

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Fato&Versão

a florianópolisdos esquecidosA Praça XV é o esconder i jo dos sobreviventes de uma cidade que desperta quando os c idadãos normat izados da v ida d iurna se ret i ram. Matér ia-pr ima para Edgar Al lan Poe, Gay Talese, João do Rio e E l iane Brum. Fonte de inspiração para uma comunidade de 26 repórteres que renovam aqui o amor às ruas e a prát ica da f lâner ie , essa escr i ta andar i lha dos esquecimentos.

REVISTA LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNISUL - PALHOÇA, NOVEMBRO DE 2015 - EDIÇÃO #25

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Atraído pelo aspecto extraordinário da vida ordinária nas metrópoles, o flâneur busca

na leitura do que está oculto, no que está por baixo do cotidiano das cidades, a matéria-prima

de sua escritura. Ao ziguezaguear pelas praças, becos, estações, esconderijos urbanos, o escri-

tor-repórter descobre a vida noturna que acorda quando a maioria dos cidadãos normatizados re-

torna ao conforto dos seus lares. Nascida nas vés-peras da revolução francesa, a narrativa andarilha

ganhou notoriedade no século XIX e início do século XX. Ela está na origem da reportagem e nunca se ex-tinguiu de todo. “O jornalismo é a base social da flâne-rie”, afirma Walter Benjamin, ao mostrar que a escrita de observação das ruas tornou literatura e reportagem indissociáveis.

Pelo segundo ano consecutivo, o Curso de Jorna-lismo da Unisul promove uma flânerie no centro da cidade, tendo no horizonte a perspectiva de torná-la um acontecimento cíclico no calendário de Floria-nópolis. Crônica-reportagem baseada na observação das ruas, a flânerie se caracteriza por um relato que ilumina cenários, acontecimentos, pessoas, seres, coisas e situações do cotidiano invisibilizadas pelo olhar distraído dos passantes. Personagem típico da modernidade que ama perambular pelas ruas, o flâ-

neur surgiu com o florescimento das cidades como uma espécie de ave noturna que vai salvar a multi-

dão ofuscada pelo excesso de signos e pelas luzes do progresso.

Apesar de ter sido condenada desde o seu nas-cimento pela pressa, pelo individualismo e pelo

taylorismo, que declarou guerra a essa espécie de ócio criativo, a flânerie ressurge em épocas de cri-

se e mudanças de valores para dar o testemu-nho das sobrevivências. O que ela tece nada

mais é do que o diário das mil e uma noites

Um convite à Flânerie ou Ode do Repórter em amor à Rua

Por Raquel Wandelli

EDITORIAL

Sob o véu da noite, evento dedicado à flânerie reúne estudantes de jornalismo e moradores de rua na Ágora da Praça XV

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de histórias de povos singulares que resistem ao pro-gresso e à destruição dos espaços coletivos. Dessa prá-tica constrói-se a memória das preciosidades que estão sempre prestes a desaparecer diante dos olhos do con-temporâneo. Caminhar é ver e denunciar as contradi-ções dessa sociedade. Seus personagens preferidos não são as celebridades que vivem sob os holofotes da mídia, mas justamente os anônimos que habitam o escuro da nossa época.

No dia 20 de outubro, o trabalho teve início com uma espécie de tributo à rua, ao flâneur e aos seus persona-gens, na Ágora da Praça XV, Centro de Florianópolis. Ali, nessa ruína arqueológica dos espaços de convívio e debate democrático da polis, a reportagem foi reavivada pelo retorno à rua. A repórter Elaine Tavares conduziu nossos alunos por um passeio em pontos significativos para a memória da cidade-jornal.

Com uma intervenção poética e musical, os alunos da turma de Narrativas e Gêneros do Segundo Ciclo ho-menagearam os habitantes da Praça XV, seus cicerones nesse passeio pelas reminiscências da velha Florianópo-lis. Frases de escritores/repórteres de rua de Florianó-polis, do Brasil e do mundo celebraram essa prática que nunca perde a sua potência. A referência nestes textos

Ver e ouvir o mundo que resiste no anonimato e revelar-se para ele: dois grandes desafios para uma equipe de repórteres

aqui reunidos a autores que inspiraram sua experiência, como Walter Benjamin, Baudelaire, João do Rio, João Antônio, George Orwell, Gay Talese, Raul Caldas, Rai-mundo Caruso e Eliane Brum, fundamenta-se em um semestre inteiro dedicado ao estudo do jornalista an-darilho.

Flâneur das mais aguerridas ao trabalho de comunicação popular e de valorização de um jornalismo iluminador dos povos originários e periféricos de Florianópolis, a jornalis-ta Elaine Tavares (IELA) falou sobre seus afetos como repórter e sobre a relação en-tre o jornalismo, a rua, os povos, a cidade e o olhar. Seu testemunho foi uma espécie de encorajamento aos 26 futuros profissionais que aqui deixam sua experiência com a re-portagem andarilha e observadora pelo Centro de Florianópolis. Durante duas semanas, eles perambularam pelas ruas escuras, esquinas, de-legacias, praças, marquises, botequins, em busca do que Edgar Allan Poe chamou de “o homem da multidão”. Tudo que aqui se lê é uma forma de dizer que dar vida ao flâneur é proclamar longa vida à reportagem.

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Qual finalmente o sentido da experiência flâneur no terceiro milênio, quando a arte do deambulismo

físico perde sua força em favor da andança virtual? Para que esse eterno retornar? Seria preciso continuar a pensar sobre o impacto que o devir-rua ainda pode exercer sobre a narrativa. Seria preciso indagar se esse organismo híbrido, meio humano, meio animal, meio máquina, portando caneta e bloco, câmera fotográfi-ca ou de vídeo, ainda flana pelas galerias eletrônicas sua fome de multidões e de não-eu. Ou, ao contrário, se está condenado a fundir-se com a própria imagem, sem o delírio de conhecer a musa das ruas.

Nas esquinas onde jornalismo e literatura cruzam os estilhaços do passado e do futuro, o jornalismo pode espiar, no gesto de se virar para trás, o ponto cego de intersecção com essa escrita de palpitação das sombras. Espiar o repórter que, flanando anoni-

mamente em meio à multidão, funda-se de vez à massa, tirando dela a narrativa também massa que pode fazer flanar pelas grandes redes.

Profanar os dispositivos do ego, fazer acontecer a multi-dão da escrita, ali onde jornalismo e literatura se reencon-tram e redescobrem a saga-motor da vida, a volição de ver o que está detrás e a atitude de se deixar olhar pelo que se vê. Afirmar a reportagem em sua possibilidade de auscultar o teatro do mundo, de desarmar o jogo das engrenagens, de desnudar o mecanismo das representações e as arma-duras do sujeito. E entrever nesse mistério de pássaro uma sobrevivência forte de narrador que enxerga, no escuro do contemporâneo, as faces noturnas do cotidiano dos povos. Jornalismo assim também é literatura, puro reencontro com a potência-flâneur, em cuja essência está a saga-cami-nhante dos homens pelo planeta, que já eram migrantes e nômades quando nem havia demarcação de territórios.

‘‘Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e

assim exagerado é partilhado por todos vós”João do Rio

Atentos, alunos e professores demonstram o respeito aos moradores que os cercavam

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EXPEDIENTE

Revista do Curso de JornalismoUniversidade do Sul de Santa Catarina Unisul/Campus Pedra Branca

Segundo Ciclo de AprendizagemNarrativas e Gêneros

ProfessorasClaudia Schaun ReisRaquel WandelliViviane Bevilacqua

Reportagens e FotografiasBeatriz M. Wagner da RochaBruna NicolettiBruna TomaselliBruno Bach AlbornozClaudiany Wagner SchutzCláudio Souza da RosaElio QuaresmaGabriela MeiraGuilherme Martins da CunhaIngrid BezerraJéssica DaussenLeidiane Sampaio SantosMaiara dos Passos Nascimento

Marcela Silva TeixeiraNatalia Santos de PinhoNathalia SoriaRafaella G. de MoraesRicardo ToledoThuani Regis MendesTiago BentoVinícius Marinho FlausinoVitória ZardoWellinton Skinner FariasYsttéphani Jurak Sinhorini

Foto da CapaBruno Bach Albornoz

Foto da ContracapaTiago Bento

Capa da RevistaBruno Bach Albornoz

Coordenação de EditoraçãoVinícius Marinho Flausino

AgradecimentosPaulo Henrique de Abreu

[email protected]

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rei do malabares. Dos seus poucos pertences, um deles, talvez o mais im-portante, é o mapa de Santa Catarina, do qual se orgulha ao abrir e mostrar quais lugares já havia visitado e quais eram os próximos da lista. Percorren-do cidades e países de ônibus ou ca-ronas, o colombiano se destacava pela posse de um meio de locomoção dife-rente: a bicicleta. Sempre pesada, com muitas mochilas, ela está sendo a sua maior parceira nas viagens dentro do

Brasil. Para quem já veio do Nordeste até Santa Catarina pedalando, como ele, não vai ser tão complicado reali-zar seu sonho de retornar à Colômbia sob duas rodas.

Já na sinaleira, o show estava pres-tes a começar. Só bastava a luz verde dar lugar à vermelha. A despeito de te-rem treinado por horas e serem artis-tas profissionais, quanto mais malaba-rismo fazem, menos janelas se abrem.

A sabedoria que vem da rua

Os passos, quase todos sempre acelerados, se inter-

calam com as buzinas inter-mitentes. Ao final do dia, a

luz natural vai se apagando. Aos poucos, o badalar do sino na igreja denuncia a chegada da noite. De frente para a catedral,

a figueira irradia sua iluminação esverdeada que dá morada aos que

não são vistos durante a correria di-ária no centro de Florianópolis. Ou, simplesmente, são ignorados. Invisi-bilizados. A Praça XV é a casa dos sem casa. O lar nem tão doce, mas que abriga a todos. Quando a lua toma conta do céu, a praça se torna palco dos talentos anônimos. Como exclamam seus jovens moradores: “A rua tem muito talentos!”.

Aglomerados perto da figueira, um grupo de estrangeiros treina malabares. Com idades variadas entre 18 e 30 anos, suas nacionali-dades também se divergem. O pa-raguaio, colombiano, uruguaio e

os argentinos decoravam a praça com os seus treinamentos antes de seguirem para a sinaleira. Apesar de todos terem feito longas viagens, nenhum pre-

tendia se fixar em Florianópolis. “Somos viajantes, ficamos na rua

porque é mais barato, e o nos-so dinheiro é pouco. Mas

somos viajantes”, afirma o argentino Franco, o

Conforme a luz do semáforo se alter-na e dá passagem para os carros segui-rem, os estrangeiros retornam para a calçada sem sucesso. Um show sem plateia. Um espetáculo onde, na hora de efetuar o pagamento, o vidro da bi-lheteria não se abre. Foi aproximada-mente meia hora entre sinal vermelho, calçada, sinal verde, rua, malabares, carros, vidros fechados, sinal verme-lho, calçada...

Na volta para a praça, Franco e seus companheiros encontram o amigo Marcelo, 41 anos. Nascido em Casca-vel, no Paraná, o sotaque gaúcho reve-la que morou grande parte da vida no Rio Grande do Sul. “A realidade da rua não me assusta tanto, já convivi com coisa muito pior”, diz relembrando o passado. A mãe entrou no mundo da prostituição para conseguir sustentar os filhos. Mais tarde, faleceu de cân-cer, mesma doença que levou embora também o pai e a tia. Com seis anos, o paranaense começou a engraxar sapatos para ajudar em casa e sentiu, desde cedo, a dor do preconceito. “O que mais doía era andar na rua e, ao me verem, as pessoas segurarem forte suas bolsas e pertences. E eu só tinha seis anos; tu imagina como é isso ago-ra então”.

Com 12 anos, virou padeiro, mas nunca trabalhou de carteira assinada. Quando sua filha fez 11 anos, todos os salgadinhos da festa de aniversário foram feitos por ele. Mas não pôde

Por Marcela Silva Teixeira

População em situação de rua que habita o centro de Florianópolis fala de sua saudade, receio, conta histórias e mostra seu conhecimento

“Nunca tive laços familiares tão fortes quanto com os meus parceiros da rua”

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comparecer, pois estava brigado com a família. Essa mesma filha tem hoje 23 anos e há 12 Marcelo não a vê. A saudade se materializa em uma foto dentro da carteira, onde a menina aos três anos de idade, sorri para o pai que tirou a foto. Duas tatuagens parado-xais mostram faces distintas de sua personalidade: de um lado do braço uma tatuagem dedicada à filha e, do outro lado, os dizeres “Que se Dane a Lei”. Em suas passagens pela polí-cia e audiências presenciadas, surgiu um desejo: ser advogado. “Só tenho até a quarta série. Claro que não é im-possível, mas assim fica difícil cursar direito. Mas gosto muito de ler, livro espírita principalmente, sabe?” O sem-blante entristece ao falar da sonhada profissão. “Já fiz coisa errada na vida, mas não faço mais. Deus perdoa tudo. Em uma audiência, falei para a juíza: posso te fazer uma pergunta? Tu já viu uma criança passando fome? Cho-rando de fome? As pessoas costumam julgar sem nunca ter sentido na pele o que é vivenciar uma cena dessas.”

Marcelo divide um sentimento comum entre os moradores de rua, o companheirismo. Podem até mexer com ele, mas não mexam com seus amigos. “Morando na rua foi que co-nheci minha família de verdade. Nunca tive laços familiares tão fortes quanto com os meus parceiros da rua”, con-firma Jonatan, 24 anos. “A gente não tem nada. Mas quando consegue, tipo um pão, a gente divide entre todos. A gente se ajuda, é parceiro. Ninguém ganha nada sozinho aqui. Porque não somos monstros, moramos na rua, só”, completa Marcelo. Essa irmanda-de ficou muito clara no momento em que a praça se esvaziou. Assim que um deles soube que estavam servindo comida perto do antigo terminal de ônibus, começou a espalhar a notícia para os outros. Cada um foi passando a informação para que todos na praça e arredores soubessem. Quando ques-tionado sobre sua alimentação na rua, Marcelo menciona a importância do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o

POP. “Não consigo entender como al-guém ainda tem coragem de reclamar da comida de lá; se não fosse ela não sei o que faria”. No POP, a população em situação de rua consegue tomar café da manhã, almoçar e, no fi-nal da tarde, fazer um último lanche, além de poder tomar banho e lavar as roupas.

A varanda do Centro dá lugar aos mais va-riados hobbies durante o dia. As distrações vão desde jogos de cartas, lei-tura de livros e criação de artes, até jogar conver-sa fora. A possibilidade de poder usar o telefone para fazer ligações a conhecidos e familiares também faz bri-lhar os olhos dos que guardam um coração cheio de saudade. Na hora das refeições, os que passam despercebidos durante todo o dia se transformam em pessoas com nome e sobrenome. São chamadas pelo microfone para

Crédito: Marcela Teixeira

No Centro POP, pessoas em situação de rua, se reúnem todas as tardes para leitura e jogos

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O ObservadorO incrível mestre da reportagem,

Gay Talese, retrata em sua obra Fama e Anonimato o lado oculto da cidade de Nova York e a vida das pessoas desco-nhecidas. Com uma riqueza imensu-rável de detalhes, o livro, caracterizado como jornalismo literário, conta a nar-rativa dos invisíveis nas grandes cidades, os quais são ofuscados pelos “olhos de vidro”- como ele próprio define- da so-ciedade. São esses mesmos olhares que não conseguem enxergar a rua como extensão de suas casas e, especialmen-te, como morada das histórias, cená-rios e personagens mais fascinantes. O grande admirador daqueles que nunca são vistos e ouvidos consegue prender a atenção de todos durante a leitura de sua obra.

Sendo um verdadeiro flâneur, Talese se interessa pelas pessoas do dia a dia, seus verdadeiros protagonistas. A rua se torna palco para a realidade do cotidia-no, seus momentos e ações, perceptíveis somente a aquele observador que está atento às particularidades. A rua passa a ser o seu lar e seu porto seguro. No contexto atual que nos encontramos, fazer esse movimento de flânerie, parar e observar a nossa volta, as pessoas e os lugares, está se tornando cada vez mais importante e necessário. São nesses mo-mentos que as inúmeras realidades, que antes passavam despercebidas, são nota-

“As coisas dessa cidade passam despercebidas”

pegar suas fichas e se direcionar ao refeitório. Numa conversa sobre o preconceito sofrido pelos usuários do centro, Mariana De Oliveira,

estudante de serviço social e estagiária no POP, descreve:

“Tudo teu o seu lado bom e o lado ruim, trabalhar

aqui é a mesma coisa. É igual na faculdade, no trabalho, em qual-quer lugar, sempre

tem as pessoas boas e aquelas más”. As cores

neutras do ambiente se mesclavam com o colo-

rido das roupas secando no varal.

Fica evidente na fala desses habitantes da praça

a resistência contra o pre-conceito. A rua é muito rica para prejulgamentos. Cavei-

ra, amigo de Jonatan, sustenta a ideia da rua como aprendiza-

do: “Tu nunca vai aprender tanto na vida quanto aprende morando na rua; cada dia é um novo apren-dizado”. Valdeci, 43 anos, nascido na serra catarinense, mostra o conhecimento de quem mora na rua há mais tempo: “O que im-porta de verdade, minha jovem, é o tamanho do coração da pes-soa. A alma dela. Mas que a sabe-doria vem da rua, ela vem, sim!”. José Jenielson, 21 anos, afirma que todos guardam incríveis his-tórias, mas ninguém para contar ou sequer ouvir. “Mesmo que o mundo de vocês seja diferente

do nosso mundo, ainda assim existem semelhanças entre a vida na rua e a vida fora dela”, argumenta Cíntia, na-morada de José. Maranhão,

aproximadamente 25 anos, ao ouvir a amiga, deixa uma

questão no ar: “Mas Cíntia, não vivemos no mesmo

mundo que eles?”

das e analisadas. Essa atividade, além de trazer grandes emoções e novas inter-pretações, nos aproxima do jornalismo. Afinal, como já dizia Walter Benjamin, a base social do flâneur é o jornalismo.

Fama e Anonimato é um trabalho fundamentado em uma profunda re-flexão e apreciação das ruas e dos seus elementos. Não sendo somente um

tipo de escrita, mas um estilo de vida, a flânerie manifesta a característica de abrilhantar os mais diversos aconteci-mentos, pessoas e cenários. O flâneur possui um papel muito importante de trocar esses olhos de vidro por olhares sensíveis e de interesse no novo, no pró-ximo. O autor procura, principalmente, por temas e espaços rotineiros. O amor pela noite também é uma característica muito marcante, pois é quando todos voltam para suas casas que a magia nas ruas acontece. A escrita é assinada jun-tamente com a literatura, fato que torna a obra muito mais rica.

Crédito: Marcela Teixeira

Artista uruguaio, novo morador da Praça XV, aperfeiçoa as técnicas de artesanato: viver nas ruas é ser eternamente estrangeiro

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A Mágica das Ruas

A possibilidade de contato com algo novo é sempre repleta de sur-presas. O coração bate mais forte e se mistura com uma variedade de senti-mentos. A dúvida do que está por vir se confunde com a ansiedade pelas descobertas. Na vivência no centro de Florianópolis não foi diferente. Surpreendidos, logo no primeiro dia, com a intensa participação dos habi-tantes da Praça XV em nossa abertu-ra do trabalho, nós, estudantes, nos tranquilizamos ao perceber que o ob-jetivo de nossa ocupação no local es-tava sendo compreendida. Uma com-preensão que estava prestes a ir além de qualquer reportagem ou barreira

Crédito: Guilherme Martins

social. Atrás do rótulo de morador de rua, existem pessoas com profissões, histórias, sentimentos e superações. E, então, isso iria ser contado.

Médicos, escritores, viajantes, cantores e artistas. A rua está reple-ta de talentos. As narrativas de vida, além de impressionantes, desperta-vam sempre reflexões. Eram pensa-mentos e perguntas que eu me fazia durante os dias vividos ao lado deles. Dias de aprendizados. Com a pouca idade que possuíam, já haviam expe-rienciado mais do que eu talvez con-siga a minha vida inteira. Adquirir sua confiança foi um passo essencial. Demonstrar que o trabalho estava

sendo feito para, principalmente, dar-lhes voz fez total diferença.

As falas traziam sempre o sentido de resistência ao preconceito que so-frem diariamente. “A mídia costuma impor essa ideia de morador de rua. Generalizam todos, como se fôsse-mos todos iguais e marginais” relata Marcelo, 41 anos. Ouvir tantas histó-rias, presenciar inúmeros cenários e descobrir os mais variados persona-gens foi uma imensa oportunidade profissional, acadêmica e social. Os dias junto com os que residem na Praça XV foram memórias que serão guardadas ao lado de todas as refle-xões e pensamentos.

“O que importa de verdade, minha jovem, é o tamanho do coração da pessoa. A alma dela.”

Crédito: Marcela Teixeira

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a atenção. Passei um dia com ele ca-tando latinhas e me senti revigorada de espírito, ele era realmente muito sábio. Além de tudo me senti mais perto de casa, já que compartilhamos do mesmo idioma e país.

Continuando sua trajetória, o acaso a deixou em Florianópolis, mais preci-samente na praia da Armação. Liliana se recorda de já ter ouvido falar neste belo recanto, mas comenta que não imaginava ser um lugar tão atraente. Tendo criado uma certa empatia com o viajante que lhe ofereceu carona, ela acampou com ele na orla da praia por cinco dias. Já conhecendo as belezas da Ilha da Magia e desejando ficar mais tempo, Liliana comenta:

- Já sem dinheiro e há vários dias longe de casa precisei ir ao centro. Eu só consegui ganhar dinheiro para o ônibus. Pensei em fazer malabaris-mos de rua e, por sorte, aprendi em uma semana com uma garota que co-nheci numa sinaleira.

Além dos trocados ganhos com os malabarismos, são as sobras dos res-taurantes que a mantêm. Dormindo nos bancos da Praça XV ela, unindo força e delicadeza, suaviza a rotina dura dos amigos da rua que lhe ensi-nam um pouco de português.

-Não achei tão difícil aprender português, mas ainda que eu entenda quase tudo o que me dizem eu não consigo falar muito bem.

A desbravadora do sul da América

Agosto de 2015. No cli-ma semi-árido da Patagônia

argentina, Liliana San Mar-tin, uma desbravadora de 24

anos, prepara sua próxima aventura. Sem um rumo espe-cífico ou muita preocupação com as adversidades, ela une

seu espírito viajante aos poucos trocados que leva com suas rou-

pas. Liliana é estudante universitá-ria de Educação Física na cidade de Bariloche. Natural de Cipolletti, na província de Rio Negro, vive com seu pai e três irmãos.

Após tomar um ônibus até Bue-nos Aires, Liliana aceita a primeira carona. A próxima parada seria Foz do Iguaçu, no Brasil. A peregrina-ção, com certa dificuldade é ame-nizada graças à bondade daqueles que cruzam seu caminho. Caronas a levaram até Balneário Camboriú, onde conseguiu um espaço cedido para ficar algumas noites. Em suas andanças pela cidade, Liliana co-

nheceu um catador de latas reci-cláveis, também argentino, que aparentava ter uns oitenta anos. Sua experiência de vida e for-ça para o trabalho a motivaram

ainda mais. Ela comenta:- Ver que um conterrâneo meu, já numa idade avançada,

luta para sobreviver aqui no Brasil me chamou muito

Crédito: Tiago Bento

Por Wellinton S. Farias

Por meio de caronas e com determinação, a jovem argentina de 24 anos cruza o Brasil

Corajosa, Liliana já conheceu a Bolívia, o Paraguai e a região sul do Brasil: “na Praça XV sou protegida e acolhida pelos compa-nheiros”

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Crédito: Tiago Bento

Eliane BrumA vida que ninguém vê

- Esta não é minha primeira aventu-ra; já fui a Bolívia no ano passado. Aqui na Praça XV sou protegida e acolhida pelos companheiros de ro-tina, pois como sou mulher, aventu-ras assim se tornam um pouco mais difíceis. Até hoje nunca passei por nenhuma situação ruim que envol-vesse minha integridade física, in-crivelmente só tem cruzado pessoas

No contrafluxo da multidão

Na companhia do entardecer nublado na capital, eu e meus colegas, ouvimos boas histórias que até então passavam desper-cebidas entre a multidão. Sem saber exatamente o que esperar ou como seria esse contato com as ruas, partimos em busca do

surpreendente, e encontramos.Em meio ao fluxo de idas e vin-das do centro da cidade, encon-trei Liliana, uma jovem argentina que desbrava a América do Sul praticamente sem dinheiro, mas com muita simpatia e coragem. Sua última andança lhe permitiu

conhecer as cataratas do Igua-çu, as belas praias de Balneário Camboriú e finalmente a Ilha da Magia. O que mais me chamou a atenção em nossa hermana foi a despreocupação com o amanhã e a incrível facilidade para viver in-tensamente.

boas pelo meu caminho. Liliana presume seu retorno à Ar-

gentina para breve, embora não goste de planejar nada. É por meio de redes sociais que ela manda notícias aos familiares, dependendo da ajuda das pessoas que emprestam o telefone ce-lular para que ela envie mensagens.

A saudade dos familiares e ami-gos são a única coisa que a pren-

dem a algum lugar. Com muitos sorrisos para distribuir e uma admirável disposição para vi-ver a vida, ela nos ensina que o errado é não arriscar. Como ela mesmo diz:

- Há um mundo grande para se descobrir e eu tenho uma única vida para co-nhecê-lo.

Eliane Brum e seu estilo único e sur-preendente de escrever. Em seu livro “A vida que ninguém vê” que conta 21 de suas melhores histórias já feitas. São fa-tos tão simples vividos por pessoas tão comuns que jamais virariam uma pau-ta jornalística, e somente alguém com coragem foi capaz de transformar essas maravilhosas “notícias” em um livro de histórias encantadoras.

É através dessas histórias, que se pode perceber no decorrer do livro, como há pessoas e lugares impercebí-veis, não apenas nos acontecimentos que a autora conta, mas fazendo ligação com o dia a dia de qualquer um. Quem nunca caminhou do trabalho até em casa sem olhar por onde estava?

Por esses e outros motivos, o livro de Eliane Brum é caracterizado como

flanêur. Mais especificamente falan-do, um flanêur é aquele que flana pela cidade, em busca de acontecimentos inéditos, para conhecer aquilo que talvez nunca será conhecido ou reco-nhecido. Flanêur é aquele que sente a cidade e as pessoas que nela estão.

A flânerie nos proporciona um olhar mais humano e um pensar mais autocrítico. Assim dizemos porque toda vez em que tentamos compreen-der a singularidade no meio da mul-tidão se percebe que podemos tornar especial histórias e personagens que jamais pensaríamos desvendar. A no-breza do desamparado ou os mistérios da rua amadurecem nosso conheci-mento sobre o mundo, e sobre como o enredo que cruza nossas vidas e dife-rentes histórias eleva o espírito.

Eliane Brum ao escrever “A vida que ninguém vê” vai ás ruas de sua cidade, Porto Ale-gre, para trazer á tona fatos in-críveis de pessoas impercebíveis, ora pela história do homem que fica na sinaleira e todo mundo o conhece como “Sapo” ou con-tando sobre funeral de uma crian-ça, cuja família não tinha dinheiro para pagar seu caixão, como ela mesmo fala, “A morte de Pobre”. São passagens que você se comove durante a leitura, ora chora ora ri, e se identifica com a leitura, pelo simples fato de também não per-ceber incríveis histórias que se pas-sam durante o seu dia a dia. Como diz Eliane Brum: “É que as piores deformações são as invisíveis.”

Por Bruna Tomaselli e Wellinton S. Farias

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Fiquei de longe observando, quieto, até que não consegui resistir. Com o olhar de quem virou a noite, ele nem se deu conta de que me aproximei.

A confiança foi facilmente adquiri-da. Educado e gentil, nem precisei per-guntar-lhe sobre sua vida: ele foi logo puxando conversa. Atento ao trabalho encomendado, não olhava para nada ao redor a não ser o azulejo branco, que ganhava escritos em preto. “Passou um cara aqui querendo dar um presente pra mulher dele”, disse. E aí começou a es-crever a seguinte frase: “Mesmo que eu falasse a língua dos homens, que eu fa-lasse a língua dos anjos, sem amor nada seria.” Logo o rapaz chegou para pagar a encomenda e levá-la à esposa, mas Ro-drigo, que não tinha estipulado um va-

lor para o produto, questionou-o: “Só isso? Cara, isso é só pro azulejo que eu arrumei.” O dinheiro foi pago, o assun-to morreu e o jovem levou o presente.

Não demorou muito e Rodrigo foi abordado por um guarda do terminal: “Ei, você não pode vender nada aqui! Desculpe, mas a gente é cobrado disso.” A situação foi o suficiente para que ele lembrasse de um caso acontecido al-guns anos atrás. “Uma vez vim pra cá e vendi bem rápido pra ninguém me ver. Quando a mulher me deu dois reais, levei um soco de um guarda”, contou. Depois disso, não se recorda de quanto tempo se passou até retornar à rodovi-ária. Disse que muitos moradores de rua já vivenciaram situações semelhan-tes, pois não é permitido comercializar

A prisão do relógio e a liberdade das ruas

“Eu penso grande, lá na frente, eu vou conseguir!”

Encontrei Rodrigo, mora-dor da ponte Colombo Salles,

de Florianópolis, procurando algo nas lixeiras do terminal rodoviário Rita Maria.

Vindo de Porto Alegre, o ho-mem de 35 anos, que há doze deci-

diu morar sozinho na Ilha da Magia, caminhava incessantemente de lixeira

em lixeira procurando algo que, pelo visto, não encontrava. Sentou. Pegou as poucas latas de tinta que tinha, qua-se vazias, e começou a escrever num azulejo, usando os dedos como pincel. O toque caprichoso no objeto deline-ava formas que me aguçavam a ima-ginação: o que estaria desenhando?

Perto de onde dorme, Rodrigo observa o movimento das pessoas

Crédito: Vinícius Marinho Flausino

Por Vinícius Marinho Flausino

Mesmo estando à mercê dos desafios diários, a rua também traz a tranquilidade de não se estar refém do tempo

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qualquer coisa dentro do terminal. “Sei que não posso vender aqui; só vim por causa da chuva”, respondeu, ao ser questionado pelo guarda.

Outro dia, no Centro, um homem se aproximou de mansinho. Envergonha-do e com pavor nítido nos olhos, disse: “Por favor, queria muito um trocado pra comprar alguma coisa pra comer. Cheguei ontem e tive a pior sensação da vida. É muito ruim dormir na rua.” Sentou-se ao meu lado e foi logo dizen-do: “Vim de Criciúma, briguei com a mulher e deixei ela e a minha filhinha de dois anos e meio.” As mãos trêmulas denunciavam a ansiedade do novo mo-rador da Praça XV. Rápido como um flash, saiu em busca da única preocu-pação do momento: achar algum lugar onde pudesse saciar sua fome.

Nem sempre a rejeição da sociedade é responsável pela realidade em que vive grande parte dos moradores de rua. Os motivos são os mais diversos e inespera-dos, como mostram essas situações. Es-colher as ruas acaba sendo a alternativa quando as pressões da família parecem insuportáveis, quando a droga já não os deixa viverem como “pessoas normais” ou quando as desilusões se tornam for-tes demais a ponto de a desistência do ciclo social ser a única saída para solu-cionar os problemas.

“Não gosto de prédios, gosto do mato.

Aí descobri que sou gente-bicho”, sen-tencia uma moradora que pediu para não ser identificada. Ela foi chegando como quem não queria nada, durante um momento de conversa dos colegas da turma na ágora da Praça XV. Apro-ximou-se de onde estávamos, sentou-se e ficou observando. Depois de um tempo, tirou uma maçã da mochila abarrotada e começou a comer silen-ciosamente. A curiosidade aumentava: enquanto terminava sua refeição, olha-va para as pessoas, como se as analisas-se, até que me acheguei e começamos uma longa e empolgante conversa.

Por problemas na família, decidiu morar sozinha em outro canto de São Paulo. A fuga começou a partir da maconha, que a levou para longe das frustrações. Ela afirma que a droga não a completa, pois a solidão persiste mesmo quando a utiliza. “Ainda que eu conheça algumas pessoas aqui, me sinto sozinha. É triste viver só”, diz. Os dois meses que já passou em Floria-nópolis não fez com que se adaptasse à rotina da cidade barulhenta: ainda não se sente parte do lugar. Contou que “são tantos desencantos que todos os encantos perdem seu valor”. Nesses momentos, a filosofia também faz par-te do dia e se torna a sua outra fuga.

Em meio à correria, as pessoas pas-sam com os olhos vidrados nos celula-

res ou não se apercebem dos que vagam pelo Centro. Mas quando escurece, o comportamento muda: passam alertas a tudo, reparando cada movimento, cada olhar. O medo de ser assaltado, de ser assediado ou agredido torna-se níti-do nos rostos que passam corren-do pela Praça XV à noite, ainda assombrados pelo pensamen-to comum de que os mora-dores são perigosos, vivem drogados e estão ali porque não querem fazer nada.

Muitos são vítimas do enlouquecimento das me-trópoles, mas outros prefe-rem estar na rua porque se sentem livres nesse ponto de encontro de culturas e saberes que a maioria desconhece. E mesmo com tantas dificuldades enfrentadas por quem abdica de um teto, a rua ainda é o que há de mais belo na vida dessas pessoas. É a rua que proporciona o senti-mento de completude, de liberdade, de escolher o que fazer a cada dia sem preocupações com horários. A rua torna-se a morada contínua, o lugar onde se deseja estar ou de todas as formas sair, como Rodrigo, que tenta deixar a rua, mas permanece aguar-dando por compaixão: “Estou à espera do amor, do amor ao próximo.”

Viver nas ruas vai muito além de abdicar-se

Ao caminhar pela cidade de Florianópolis, muita coisa encan-ta. As ruas com suas construções históricas, suas grandes e longas figueiras, a tradição impressa em cada canto. Mas o lugar também é palco de outras belezas da alma: as histórias. A noite cai e o cen-tro começa a ficar vazio. Enquan-to grande parte das pessoas está saindo do trabalho e chegando em casa, outras, ganham vida na es-curidão solitária da noite. É o que acontece com a Praça XV, ponto de encontro de culturas e saberes

distintos. Não só ponto de encon-tro, mas de chegada, de moradia. Nela palpitam as mais interessantes histórias, à espera para serem ouvi-das por aqueles que se desafiam a atravessar a linha da exclusão.

Deambular por esses caminhos é uma experiência um tanto quan-to surreal. Encontrando pessoas de diversas origens, percebi que para eles, a rua não é o pior lugar para se viver. O pior é a prisão frenética aos aparelhos eletrôni-cos, a escravidão à um trabalho indesejado e a falta de amor. Vis-

tos muitas vezes como perigosos e drogados, os moradores noturnos da Praça XV trazem a lição de que para viver bem não se precisa estar preso ao capitalismo, aos bens materiais. A amizade, o companheirismo, a liberdade e a humildade tornam a vida mais bonita e agradável. Estar na rua não significa abdicar-se de viver; apenas desprender-se das coisas passageiras e efême-ras desse mundo. Afinal, diz a musa das ruas, para vi-ver basta estar vivo.

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A beleza é do outro

Abrindo mão da dependên-cia ao dinheiro, das facilida-

des e da comodidade de se escrever sobre o que não

se vê em uma redação, o flâneur busca na rua a completude da sua

alma andarilha. É nes-se caminhar ambulante,

sem rumo e pautas pron-tas que a flânerie aconte-

ce. Sua essência é olhar para o invisível, a fim de buscar a inspiração necessária que

não vem de um simples olhar, mas de uma completa imersão

no que é o outro. Como Rai-mundo e Mariléia Caruso, al-

Trabalho concluído nas mãos do artista dos azuleijos

“O flâneur busca na rua a completude da sua almaandarilha”

Crédito: Vinícius Marinho Flausino

guns de nossos flâneurs modernos que não têm filiação a partidos ou instituições e que fazem seu traba-lho autonomamente.

Ao longo dos seis meses per-corridos pelo litoral nordestino,

eles reuniram em Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste, relatos de jangadeiros, his-toriadores, geógrafos, entre

outros profissionais que fize-ram parte da construção desse

livro que resgata a história dos mais fantásticos per-

sonagens brasileiros. Os autores abrem mão da sua voz em favor da

voz dos personagens, que contam suas histórias livremente, a par-tir da enunciação de uma primei-ra pessoa que não é a do repórter, mas a hibridização do eu do narra-dor com a pessoa do entrevistado. Ou seja, o eu da narrativa pertence ao outro. A interessante vida desses bravos lutadores torna-se um aconte-cimento histórico através da intensa pesquisa, que, nas andanças pelo li-toral, foi sendo construída. O espírito andarilho do flâneur também é polí-tico. Revela o que esta oculto ou por baixo dos panos o que muitos dese-jam que se esqueça. Caruso reaviva a própria memória dos pescadores nor-destinos, ando a importância de suas histórias e conquistas que ajudaram o país a crescer. Em meio às dificul-dades e perigos ao mar, esses homens tornaram-se fortes e corajosos.

É nessa busca pelo que diz o ou-tro que se encontra a flânerie, pro-

porcionando experiências profun-das que vão além de mera contação de história, mas buscam a troca, a completude do eu no outro. Raimun-do e Mariléia Caruso pesquisam, percorrem, se esvaem. Com amor às histórias e aos que estão à margem de interesses, os repórteres estão sempre reacendendo e reavivando aconte-cimentos importantes que tendem a desaparecer. Como os moradores de rua de Florianópolis, que tornam-se invisíveis aos olhos de quem pas-sa sem enxergar além de si mesmo. Histórias marcantes circundam cada um dos personagens que se encon-tram pelo Centro, que trazem expe-riências de vida, chocam, dão lições de humanidade e amor. E a flânerie caminha ao seu lado, pois são o seu maior combustível. As histórias do outro constituem o saber-flâneur, onde nada mais importa relatar a não ser a beleza, essa que é do outro.

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mercado fazem parte dessa mobília ur-bana invisível. A rua acolhe diariamen-te em seus paralelepípedos, marquises, viadutos e praças muitos episódios que se desenrolam sem expectadores.

Bermuda com estampas coloridas, uma camiseta bege, um boné e um chinelo compõem o vestuário de Jo-nas, mas, o que chama a atenção nesse ilhéu vai muito além do que ele ves-te. Por trás do olhar desconfiado e da expressão marrenta, há um rio de ge-nerosidade. Na rua Marechal Guilher-me, sob a marquise do prédio antigo da Previdência Social, Jonas conta que não mora em sua casa, localizada no Continente, logo após a Ponte Hercí-lio Luz. Ele relata que tem uma rela-ção difícil com a mãe. Inquieto, sem dormir há dois dias e com um com-

portamento visivelmente alterado por alguma droga química cujo nome subs-tância prefere não revelar, ele conversa com o amigo Éder. Ambos são íntimos daquela que apresentou um ao outro: a rua.

Anoitece, e fica fácil perce-ber a diferença entre a rua do dia e a da noite. O trânsito de carros e de pessoas diminui aos poucos. Luzes começam a acender ao longo das avenidas e praças. Um pequeno grupo de adolescentes di-vide uma garrafa de vinho suave enquanto caminha pela Praça da Alfândega. O vendedor de cachor-ro quente conversa com seu cliente enquanto prepara o pedido de uma forma bem mais desacelerada que quando iniciou as vendas, às 12 horas. A dona da banca de jornal encerra o expediente. O próximo dia, como todos os outros, exigirá empenho para desligar o desperta-dor e encarar a madrugada vazia do centro.

Duas caixinhas iguais de uma conhecida marca de cho-colate revelam por baixo de suas tampas transparentes, que o conteúdo original já foi substi-tuído por outro. Com alguns re-lances se percebe um tom ama-relado. Mesmo assim, é difícil saber o que contêm, pois as mãos que a protegem não

Em cada rosto há uma história

O vaivém das pessoas no entardecer de uma quarta-feira no centro de Flo-rianópolis expõe uma situação muito comum: todos que transitam a passos rápidos pelas ruas estão preocupados com seus afazeres e, como descreveu Gay Talese na série de reportagens so-bre Nova York, em Fama e anonimato, parecem andar com “olhos de vidro” que nada visualizam. As despedidas, a empolgação entre duas crianças que sa-boreiam seus algodões-doces e encon-tros inesperados passam batido. Nem a moça que fala ao telefone enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto, nem o cão que caminha junto ao dono, mui-to menos os vendedores de artesanato que tentam fazer as últimas vendas do dia chamam a atenção. E as senhoras que jogam conversa fora nos bancos do

Por volta de 18 horas, todos caminham rumo ao conforto das suas casas

Crédito: Maiara Passos

Por Maiara Passos

Num passeio observador pelas ruas do centro da capital, descobre-se extraordinárias histórias escondidas no anonimato.

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param de gesticular durante a animada conversa na frente do prédio público que durante a noite serve de abrigo aos que preferem ou precisam estar na rua.

No meio de toda a desabitada e silenciosa parte central da Floria-

nópolis noturna há um barulho feliz. São sons que se mistu-

ram: da conversa animada, de copos, de botecos. Um pequeno pedaço da cida-de de décadas atrás ainda

preservam sua identidade. Estudantes, hippies, escri-

tores, prostitutas, travestis, compositores, bêbados, jo-

gadores de xadrez e figuras conhecidas do carnaval da

Ilha se misturam sem barrei-ras ou preconceitos.

Os bares têm traços rústicos que remetem a outra época. As lajotas da calçada formam no-

tas musicais e o trajeto é proibido aos carros. Na esquina, o prédio da

UFSC é utilizado pelo Instituto Arco Íris com oficinas de diversas atividades culturais. Enfim, a revitalização desse espaço plural, chamado Travessa Ra-tcliff com menos de 50 metros, devol-veu vida ao centro de Florianópolis.

Jonas convida seu amigo e juntos descem pelas ruas em sentido à Praça XV. Cumprimenta uns e outros no ca-minho enquanto afirma que precisa ser corajoso para encarar a vida que leva. “Já morei em outras capitais, mas as pessoas são muito ruins para quem mora na rua. Aqui eu durmo, lá não dava; numa des-sas de dormir tu poderias nem acordar”, fala enquanto faz um malabarismo com

As histórias estão à procura de quem ultrapassa o óbvio

Ao mergulhar nessa reporta-gem, o que mais chamou minha

atenção, certamente, foram a generosidade e o compa-

nheirismo entre os que vivem nas ruas. Por op-ção ou necessidade, a

rua abriga e se torna cúmplice de suas histórias, sejam elas quais fo-rem. Compartilham suas roupas, suas comidas, assim como cigar-ros e bebidas. Talvez no verão um vá para cada lado da cidade, do es-tado ou do país, mas os registros e

marcas ficam nos bancos da praça ou por onde passam.

Que eu me permita quebrar quais-quer barreiras levantadas por pré-con-ceitos e nunca perca a sensibilidade de ter o prazer em ouvir as histórias espa-lhadas pelas ruas do mundo.

‘‘Numa dessas de dormir tu poderias nem acordar”

as caixinhas do produto misterioso. Em pleno outubro, faz uma tempe-

ratura mais baixa e cai uma garoa fina, dessas que prometem durar a noite inteira. Em um dos bancos da praça, um homem parece dormir sem nem se importar que está ficando com a roupa molhada. Marcelo, que também mora na rua, comenta que em Curitiba não dá para dormir tranquilo assim. “Há

pessoas que põem fogo na gente, são ruins, acham que incomodamos, sei lá”.

Nesses grupos que vivem à mar-gem da correria do dia a dia de uma capital, a solidariedade e a nobreza do ser humano surpreendem em peque-nas atitudes. Mesmo após presenciar tanta crueldade contra quem vive nas ruas, Marcelo ainda acredita nas pes-soas. “Há cinco anos um senhor vem aqui toda madrugada e traz café para nós, simplesmente porque quer, se sente bem fazendo isso. Sem esperar nada em troca. Isso é gente”.

Ao chegar à Praça XV, Jonas abre um sorriso quando avista seus conhe-cidos. Antes mesmo dos cumprimentos com abraços e gracejos entre os com-panheiros, solta uma pergunta: “quem quer bolo?” A euforia toma conta do ambiente. O visitante abre as caixinhas para compartilhar com seus amigos o presente. Os pedaços já estão cortados em pequenos quadrados e o cheiro que exala quase revela seu sabor. A massinha amarela com uma calda cremosa de cho-colate faz sucesso entre os participantes. Em questão de minutos não sobra nada. Um dos presenteados, com sua fatia de bolo na mão, apenas avisa: “Vou até ali pegar um café pra ficar melhor”.

Crédito: Maiara Passos

Tomabada pelo patrimônio histórico municipal, a Travessa Ratclif é peça fundamental no Centro da cidade

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Um trabalho inspirado no observador da modernidade

Uma cidade é recheada de his-tórias. Elas acontecem diariamente em todos os cantos. Esbarramos em desconhecidos pelas ruas, durante esses agitados dias e noites, o tem-po todo. Mesmo assim, criamos bar-reiras invisíveis em todos os níveis, de escala social, cultural ou gênero e deixamos de perceber que sempre há uma biografia, uma experiência, uma alegria, uma imagem, uma ra-zão, algo que pode ser compartilha-do e agregado ao nosso processo de aprendizagem.

Estudantes de jornalismo desper-tam seus olhares para o outro. Entre as sombras das árvores e o brilho das luzes na noite de Florianópolis escon-dem-se muitas histórias. Há gritos silenciosos que clamam diariamente por um pouco de tempo, de atenção, de ouvidos, de um olhar frente aos mi-lhares que passam por seus espaços.

Um resgate do gesto mais genuíno do Jornalismo inspirou o projeto dessa reportagem coletiva. Sem pauta, sem horário e sem restrição de tamanho, o trabalho apostou no inesperado, na ampliação do campo de visão e no aguçar da percepção do repórter para o que encontra pelo seu caminho.

Walter Benjamin (1892 – 1940), sociólogo, filósofo, ensaísta e autor do ensaio “O flâneur”, foi o grande teóri-co desse escritor-repórter observador da modernidade. Flanar vem do fran-cês e significa vagar ou passear pela cidade, sem roteiros, sem a limitação de perguntas ou respostas pré-defini-das. Ao se propor à tarefa de trabalhar em meio à multidão, o repórter sente o que acontece, ou seja, não apenas anda, mas observa e investiga. Segun-do o filósofo, a flânerie é a base so-cial do jornalismo. Esse trabalho foi um resgate desse modo de reportar as histórias que acontecem por baixo do cotidiano sem serem percebidas,

fazendo das ruas o seu escritório iti-nerante, como em Benjamin: “A rua se torna moradia para o flâneur, que entre as fachadas dos prédios sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos ca-fés, as sacadas de onde, após o traba-lho, observa o ambiente”.

Walter Benjamin, o sociólogo observador da modernidade

“Muros são a escrivaninha onde apoia o bloco; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente”

Ao exercitar essa prática em meio ao mundo moderno mo-vido pela tecnologia, no qual não se olha mais nos olhos, não se aprende nada com o outro e o individualis-mo sobressai, o flâneur traz à tona uma reflexão sobre o que realmente vale a pena mostrar. Ele faz aflo-rar a ideia que o repórter deve sair de si para imergir no mundo da narrativa que vai contar e tornar-se a pon-te do leitor para o outro.

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O talento que vive as ruas de Florianópolis

A vida nas ruas e o olhar de quem vive nela, a felicidade pode ser encontrada nos menores detalhes

Por Leidiane Sampaio Santos

Poderia ter sido só mais uma, como muitas outras ve-

zes que passo pela Praça XV, Centro de Florianópolis, mas

dessa vez era para ser diferente. Tínhamos um propósito: sair às ruas e flanar, conhecer pessoas, histórias, o cotidiano das ruas.

Estávamos dispostos a ouvi-las e olhar para elas de uma forma di-

ferente, despidos de preconceitos e suposições. A chuva caía fraca, mas de repente deu uma trégua e com ela desabaram choros e risos. O barulho dos carros que passavam ao redor da praça não foram suficientes para calar as pessoas que vivem ali e que nos receberam de forma acolhedo-ra. Foi uma noite emocionante, de

compartilhar experiências, de apren-der com o outro.

Enquanto um dos moradores fa-lava, outro levantou-se e interrompeu afirmando: “Já penso que as pessoas colocam rótulo em nós”. A firmeza do rapaz ao defender seu ponto de vista me chamou a atenção. Era José Jenielson. G, como prefere ser cha-mado, dispensa apresentações. Ouvi-lo é a melhor forma de conhecê-lo: “Eu não sei quem sou; eu só sei que eu vivo, respiro, tenho sonhos igual a todo mundo e quero algo de melhor pra mim e pra minha familia”, disse. Natural de Senharó, em Pernambuco, divide uma casa com o amigo Gabriel (Lúcifer), no Morro da Queimada, lo-calizado na região central da cidade.

Apesar disso prefere passar as noites na rua, onde, segundo ele, é mais feliz. “Eu ainda gosto da rua, criei um apego muito grande porque eu moro há qua-tro anos na rua, em Floripa, mas mi-nha caminhada é maior. Quando você mora na rua, é como se ela se tornasse sua casa”. Aos 21 anos, G passou por várias cidades. Já morou em São Paulo e Itajaí, saiu da cidade natal devido à vida que levava.

Estávamos no meio da praça quan-do G teve um diálogo com a própria consciência:

“Eu era um drogado, usava cocaína, pegava as coisas de casa pra vender ou passar a noite na rua, três, quatro dias, cheirando e fazendo essas merdas to-das, até que eu parei num canto e pen-

Em um mundo onde poucos são capazes de sorrir, ele encontra razões para viver

Crédito: Tiago Bento

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sei, conversando comigo mesmo: Você não tá fazendo bem, isso não

tá legal, você tá destruindo a tua pró-pria familia, para com isso.

- Mas como é que eu vou parar? - Não tem como parar, então, se

afaste. - Mas pra onde que eu vou, o quê

que eu vou fazer, como eu vou viver? - Aprendendo, sobrevivendo, foi o

que eu fiz”. Veio para Florianópolis em busca

de emprego, trabalhou como segu-rança, mas a dificuldade de encontrar lugar para dormir durante o dia o fez largar a função.

Seu primeiro passo nas ruas foi procurar um albergue, no qual passou uma noite, mas não se sentiu acolhido. Foi quando soube que existia um lugar que dava apoio, onde poderia comer, tomar banho e fazer ligações para a família. Até hoje ele frequenta o Cen-tro POP, localizado na Passarela Nego Quirido, que oferece auxílio a pessoas em situação de rua. Empenhado em

largar a droga, G começou a tomar ati-tudes e a construir uma vida diferente: “Aprendi a me virar a partir desse mo-mento. Se eu continuasse na droga, na rua, eu ia pra uma coisa bem pior que era o crack, uma coisa que não quero pra ninguém. Comecei a ter respeito por mim mesmo, comecei a cuidar do meu corpo, parei com as drogas, não uso nada há mais de três anos. O úni-co vício que tenho é cigarro, e a bebi-

da, consumo controladamente”.Com os olhos brilhando e a praça

agora silenciada, ele conta o motivo de ter mudado sua vida, sua rotina e de ter se jogado no mundo: “Um dia a minha mãe me disse: ‘Se você sair de casa, aprende a ser um homem, não um trombadinha, um coisa ruim. Faça o bem, não roube, não mate, não se-questre, não use drogas, seja um me-nino de verdade’. Isso pesou na minha consciência e como eu sempre gostei de rap, escutei uma música que me deixou mais sentido ainda, que foi a le-tra da Facção Central, Desculpa Mãe. Essa música pesou a minha mente, fez meu subconsciente ficar pesado, mais sentido, foi onde fui melhorando, por etapa, a cada dia, criando forças, von-tade. Nenhuma mãe merece sofrer”.

A sábia conselheira materna hoje não está muito longe, mas ele justifi-ca a escolha das ruas justamente para não lhe causar mais sofrimento. Per-gunto o que sente ao falar da mãe e ele começa a falar num ritmo frenético:

- Falta eu não sinto, porque a gente nasceu pra viver longe ou perto, sau-dades a gente tem, a emoção de querer rever também é bom ter, mas eu sou um pouco meio pedra, eu gosto de aprender as coisas sozinho, viver so-zinho, nem que seja pra sofrer ou na felicidade, mas assim eu vou tá apren-dendo com meu próprio erro e assim eu posso mostrar pra minha familia quem eu sou de verdade. Falo com a minha mãe todos os dias. Isso mata um pouco a saudade dela. Eu já sumi várias vezes de perto da minha mãe sem dar notícia nenhuma, eu prefiro tá aqui e ela lá, sabendo que eu tô bem e ela tá bem, do que tá lá e fazendo mal pra minha própria familia pra de-pois eu me afastar. Então eu prefiro já me afastar sem fazer o mal.

Além da mãe, G tem outros amo-res: rap, poesia, xadrez, whisky e ta-tuagens pelo corpo todo, feitas pelo amigo Gabriel. “Quem é feio quando faz tatuagem fica bonito”, diz sorrindo. Embora brincalhão se considera irri-tante, talvez, segundo ele mesmo, pelo

fato de interromper a fala dos outros, cutucar, arrancar risos e caras feias, que se desmancham em um instante. Dos amigos que criou na rua, man-tém por Gabriel um afeto de irmão. Por ele G é capaz de fazer muitas coisas. “Gosto de respeito e de ser respeitado e adoro a fami-lia que eu tenho, aquela que criei na rua”.

Talvez a maior demonstração de carinho pelo amigo tenha sido no mo-mento em que poucos seriam capazes de agir com tamanha solidariedade. Gabriel estava doente, cerca de 40º de febre e delirava no meio da praça. Muitos passaram pelo local, onde ele incessantemente chamava por G, que ao vê-lo jogou-o nas costas e correu para o hospital Governador Celso Ramos. Foi uma caminhada longa, mas próximo ao local um taxista se sensibilizou com o esforço para salvar o amigo e lhe ofereceu uma carona. A princípio dispensou a ajuda, mas acabou aceitando. No hospital encaminhou-o ao atendimento e deu por comprovado o apreço pelo amigo. Nas ruas essa histó-ria ganhou fama. Basta perguntar a qualquer conhecido para ouvi-lo contar a bravura da mesma forma.

G diz que não se preocupa muito com a vida e com o momento que está passan-do. Quer curtir a juventu-

“Eu não sei quem sou; eu só sei que eu vivo, respiro, tenho sonhos igual a todo mundo”

“Gosto de respeito e de ser respeitado e adoro a família que eu tenho, aquela que criei na rua”

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Diante do invisível

Final de tarde, nos encontramos em frente à Catedral no Centro de

Florianópolis, estávamos ansiosos e apreensivos para começar a vi-vência. Atravessamos a rua e nos posicionamos na ágora da Pra-ça XV, ali as professoras deram

início à flânerie, por mim muito aguardada. A partir do momento

que elas começaram a falar, os moradores foram se aproxi-

mando e conquistamos a atenção e participação

de muitos, dividimos conhecimento e ouvimos histórias. O momento foi marcado por emoções, rimos e cho-ramos, naquele instante todos eram iguais, esquecemos o preconceito, as suposições e interagimos.

Fomos recebidos da melhor forma que poderíamos ser, sem barreiras. Conhecemos pessoas in-críveis, histórias tristes e de supe-ração, mas acima de tudo pesssoas, que não moram na rua, elas vivem a rua. Fui preparada para tudo, sem-

pre tive a curiosidade de conhecer e ouvir essas pessoas, mas nunca tive coragem ou talvez apenas não soubesse como fazer isso. Naquele dia, tudo fluiu, não tínhamos nada combinado, e isso foi o melhor, estávamos desarmados e abertos a novas experiências. Olhamos para o Centro da cidade sob um outro ponto de vista, daquele que realmente habita e convive todos os dias, em um lugar onde muitos estão só de passagem.

Crédito: Leidiane Sampaio

O silêncio das ruas revela uma outra cidade

de, mas não julga aqueles que pensam de forma diferente e tentam se adaptar à realidade. “Eu tô vendo alguns ser-viços, tô vendo se volto a trabalhar

de segurança, uns bicos de carga e descarga por aí”, diz. Em vários

momentos ele fala de Deus e Jesus, demonstrando devo-

ção. Foi evangélico e fre-quentou a Igreja quando criança, mas o mundo o fez se afastar. “Não acre-

dito no ser humano quan-do fala de Deus, porque o

ser humano é muito cor-rupto. Eu tenho minha fé;

acredito em uma coisa boa, como todo mundo crê sem

ver”.Um dos seus grandes so-

nhos nasceu após ver a ponte

Hercílio Luz pela televisão: morar em Florianópolis. Depois de realizá-lo, já tem outro: “Tenho sonho de morar em Nova York, mas primeiro quero rodar o Brasil, nem que isso demore a minha vida inteira, porque sonho não tem fronteira e nem limite”.

Sentado sob uma garoa fria embai-xo da Figueira, G se manteve sorriden-te, falando ao mesmo tempo com várias pessoas, sempre assim, comunicativo e atencioso. Por um momento lembro a minha vida e ouso perguntar se ele é feliz. Fiquei apreensiva com o retorno. Fitei-o nos olhos e ele me respondeu quase de imediato. “Felicidade é uma coisa inexplicável, tem gente que é fe-liz bebendo, tem gente que é feliz com a familia, eu sou feliz no meu mundo. Criei um mundo cheio de possibili-dades. Quando eu morrer quero uma

estátua minha aqui na praça, vai tá es-crito: ‘Aqui esteve o pior de todos os peregrinos’. Sou feliz como sou, onde eu vivo, com o que eu faço, com quem eu ando. Conheço gente nova todo dia, aqui eu vivo momentos únicos”.

Naquele dia G estava resfriado, com tosse durante toda a noite. Sou-be que ele passou três dias muito mal, mas se recusou a sair das ruas e ficar longe dos amigos. Disse que quando chove aproveita para pensar. Foi durante uma noite de chuva que presenciei uma atitude reveladora do caráter do meu entrevistado. Após se despedir, ainda com fortes sintomas de gripe, saiu sob o chuvisco, pegou sua jaqueta e a ofereceu à Cintia, a na-morada, antes de se dirigirem ao lo-cal onde passariam mais uma noite de suas vidas.

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A repórter flâneur e o olhar para o outro

Flanar. Muitos autores entendem como vagar vadio e preguiçoso. O flâ-neur vai às ruas, cria um vínculo in-tenso com o outro, com a vida social. Se preocupa com o cotidiano, vai em busca das histórias, dos conflitos da realidade. Ao mesmo tempo em que esses autores fazem parte da história, dedicam parte dele para narrar a vida de outras pessoas, pois sua atenção está voltada para os personagens da rua. O olhar para o outro é uma das principais características da flânerie. O flâneur entende o ser humano de um outro ponto de vista, percebe seus sentimentos, privações, tem um envol-vimento incomum com o narrador. A visão do todo e o detalhe caracterizam a flânerie.

Típica jornalista flâneur, Eliane Brum é conhecida pelo seu modo de reportagem. Em seu dia a dia ela pre-fere conhecer normalmente as pessoas que não são percebidas pela socieda-de, consideradas por ela mesma como “pessoas invisíveis”. No livro “O olho da rua”, Eliane traz ao final de cada ca-pítulo depoimentos sobre suas dificul-dades e percepções enquanto jornalis-ta. Em um deles diz: “Eu acredito que, nas ruas do mundo, o grande desafio é olhar pra ver. E olhar para ver é per-ceber o invisível - ou deliberadamente colocado nas sombras.”

Eliane não mede esforços para fa-zer uma reportagem, ela vai aonde seu personagem estiver. Detalhista, se en-volve no ambiente onde se encontra e valoriza a linguagem do entrevistado. Procura ambientar o leitor por meio da descrição de cenários, de caracte-rísticas físicas, gestos e sensações. É facilmente considerada uma inspira-ção para futuros profissionais. Elia-

ne diz que não costuma fazer muitas perguntas a seus entrevistados e acha que a reportagem se desenrola melhor dessa forma.

Durante a flânerie procurei lem-brar da Eliane e de como ela se com-portaria em algumas situções, fui sem preconceitos e disposta a me surpre-ender. Não foi difícil, logo me encan-tei pela vida das ruas. Pelas pessoas e suas histórias. Andei pelo Centro da cidade sem me preocupar com o tempo. Assim como ela, evitei fazer perguntas em excesso e procurei ou-vir meu entrevistado. Deixei que ele

falasse e se mostrasse para mim.

Eliane procura não invadir o espaço do per-sonagem, permitindo que ele se revele. Utiliza-se das percepções para construir uma narrativa. Nasce daí uma relação que vai muito além da que se estabelece em uma simples reportagem entre entrevistador e fonte. Ela cria um vínculo como ser humano. Vai aonde a história estiver e a torna visível.

Crédito: Lilo Clareto

A repórter que vai às ruas em busca da realidade

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Sob a luz de Orwell

Por Bruno Bach Albornoz

A realidade de George Orwell está viva nas ruas de Florianópolis

Neles eu poderia encontrar histórias únicas, já que o número de pessoas que passam pelo banco de cada táxi deve resultar em alguns causos ao longo dos anos na profissão.

Conversar e relatar a vida de mo-radores de rua não basta para mim. Não excluo a figura desses perso-nagens do cenário que é o Centro de Florianópolis, mas também não deposito fé em relatar o mesmo pe-los olhos de quem nele o faz de sua casa. Nos relatos de George Orwell, escritor e jornalista inglês que viveu por anos como um vagabundo pelas terras inglesas e francesas, vê-se uma realidade romantizada. Toda sua tra-jetória nas ruas parece ser parte de

uma história inventada, por mais que seja o que Orwell passara por anos a fio para então escrever três obras e diversos artigos. Cheguei a conver-sar com moradores de rua, mas isto apenas no fim, em situações que eu mesmo não planejei.

O grupo se reuniu no Terminal Rita Maria, a rodoviária da capital. Florianópolis estava em clima de chuva, sem trégua, mas a sensação de ar abafado continuava. Todos fo-ram atrás de seus personagens e eu fiquei parado. O gancho da matéria seria o taxista que passou pela pon-te Hercílio Luz, aquela mesma que ainda continua desativada desde 23 de abril de 1991. Bastaria qualquer

Não foi minha inten-ção. Parecer chato, usar a ausência para ser um

destaque. Não seguir pela mesma linha que o resto do

grupo do qual faço parte foi uma decisão minha e conto o

porquê. Não fui ao primeiro encontro, que serviria de ins-

piração e contato inicial com o estilo de reportagem que fora

colocado em pauta. Acredito não ser o único a não fazer o de-

pósito de fé, mas fiz minha parte, indo por apenas três dias nos en-contros, com o intuito de vivenciar o proposto, a flanerie. O insight da pauta veio alguns dias antes: falar com taxistas era a melhor opção.

Crédito: Bruno Bach Albornoz

O mendigo que mantem a reputação à base da ameaça

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taxista com pouco mais de 25 anos de profissão, provavelmente ja teria transitado nela. Conversei com um taxista que me apresentou ao grupo e depois ao mais velho deles. Puxei papo, mas ao ouvir a palavra ‘jorna-lismo’. me ignorou completamente. Mais tarde percebi que o ignorar faz parte da rua, desde que a rua é rua. Eu estava ali para o contrário, notar.

Na Inglaterra, na França, no Bra-sil. Não importa qual seja o lugar, a rua mantém seu aspecto. Pessoas que não se olham, não sabem que formam um conjunto. O que Edgar Allan Poe mostrou em O Homem da Multidão, Orwell detalhou, focando na camada mais pobre da cidade. As rua é um lugar de todos e ao mesmo tempo o lugar de um só. Ninguém fica parado e se coloca no lugar do outro, porque ninguém se importa. Essa é a reali-dade, que não parece mudar depois de décadas. Os poucos que param, ou que se colocam na pele, são casos de estudo, ou melhor, de obras. Não é à toa que Eric Blair morreu para dar vida à George Orwell.

Sem rumo e com a pauta de lado, segui com o grupo para a Praça XV, um dos pontos históricos da capital. Todos desciam as ruas, mas tomei o caminho contrário. Talvez porque dentro da Praça XV os moradores de rua se encontram e se de dia a praça parece um ambiente estranho aos prédios, como uma fortaleza de mundo próprio, à noite sua imagem cresce ainda mais. As histórias de grandes ratos que habitam o inte-rior das árvores e que já chegaram invadir cofres de bancos é possivel, bem possivel. Sob suspeita destes e dos moradores de ruas, sua grande maioria sob o efeito de drogas e an-siando por dinheiro, não me conven-ço a passar por dentro da praça nem à luz do dia. Ganhei a companhia de dois colegas e seguimos para outros lados, de olhos abertos para tudo.

É o olhar romancista dos relatos que atrai o leitor. Aquele que admira o feito mas que não o faria. Poucos são aqueles que passariam fome, frio, desolação e muito mais coisas que eu mesmo não posso descrever, pois não passei. Tratei a leitura de “Como morrem os pobres e outros ensaios “ com fascínio. Aquele mesmo George Orwell que li em Revolução dos Bi-chos agora me surpreendeu com os relatos de um vagabundo. Mais uma vez ele mostra que a história huma-na pode ser conhecida por meio de outros olhares. A crítica social que Orwell faz em todos os seus livros e ensaios não parece ter sido escri-ta por um mesmo homem, que antes era policial e se deixou despertar o jornalista, crítico como deve ser em sua natureza. Me dei conta mais tar-de de que não tive nenhum esforço para conhecer essas histórias. O jor-

‘‘Não é à toa que Eric Blair morreu para dar vida à George Orwell”

nalismo é consequência da fome pelo saber, basta parar e ouvir para se dar conta que a fome não acaba com o tempo, ela aumenta.

Após caminharmos por diversas ruas fomos ao Mercado Público. A construção, de 1889, é um marco do comércio da Ilha de Santa Catarina e sua recente restauração fez revi-ver sua cor amarela e o ar boêmio nos fins de tarde e noites. Garçons ficam à porta, mostrando cardápios convidativos. Aceitamos o convi-te e acompanhados de uma bebi-da gelada, vieram histórias de vida, entre elas a de João, 20 anos, rapaz

de porte pequeno e falante. O papo surgiu sem expectativas. O recém empregado garçom completava na-quele dia uma semana de emprego. Ele estivera em Dublin, na Irlanda, por um ano. Trabalhava doze ho-ras por dia e comparecia, não tanto quanto deveria, em um curso de inglês. O cansaço derrubava o ânimo e por isso ficou com presen-ça abaixo do necessário para retornar para o in-tercâmbio, mas nutre es-peranças de voltar. Ele se mudara a pouco menos de um mês para Florianópolis, e até então gostava da cida-de, e o trabalho puxado no bar foi o que conseguiu. Já o dono e fundador do estabeleci-mento, Renato, está no mesmo ponto há 28 anos. Conseguiu se manter mesmo depois da reor-ganização do Mercado. Pouco falante mas amistoso, Renato me conta que figuras como Zeca Pa-godinho e Paralamas do Sucesso já estiveram em seu bar.

No segundo dia me peguei em uma conversa com um morador de rua, acompanhado de meus dois colegas, no Largo da Alfândega, em meio a uma batalha de rap e nuvens de cigarros suspeitos. José, 47 anos e mãos grossas, contou sua história por mais de uma hora, sem interrupções. Fugiu de sua cidade natal por ameaça de morte. A famí-lia de sua ex mulher não aceitava que ele fosse negro e pobre. Já foi preso por crimes que nem quis falar. Falou a respeito de como descobriu uma filha. “Ela me contou que foi prostituta em vá-rios lugares, e que falando com os clientes, descobriu onde o pai dela tava”. Depois do choque, José conta que aceitou a filha mas não manteve mais con-tato. A necessidade pela

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bebida se potencializou com o caso. “Entre a cachaça e a forca, eu escolhi a cachaça”.

E em meio a essa encruzilhada uma segunda figura apareceu. A

boca torta, os olhos fixos nos meus e o andar cambalean-

te denunciavam um vício. Nada surpreendente. Ca-belo, apelido de Alexan-dre, nos abordou com a história de que já sofrera

uma tentativa de decapi-tação por outros morado-

res de rua, na Praça XV, mas revidou com duas facas

em um dos dois agressores.

Mostrou uma caderneta de dentista, com a última consulta feita há dois dias. Quando pedimos uma foto sua, o ar mudou. Sua fala era pausada, para nos convencer de que com ele o perigo era real. “Se eu ver minha foto em qualquer jornal, caço vocês até o inferno”. Comicamente, ele não nos caçaria até a faculdade, pois em Palhoça estava jurado de morte pelo Comando.

Fui para praça para anunciar que meu trabalho estava feito. Ao chegar lá, fui tentado a ficar um pouco mais ao ouvir a fala de um morador. Marcelo falava sobe O Centro de Referência Especiali-

zado de Assistência Social para População em Situação de Rua, ou brevemente, Centro Pop. Lá, os sem-teto podem tomar um ba-nho, recebem café e pão para se alimentar e podem lavar suas rou-pas. Na Inglaterra do século XX, eles podiam ao menos passar uma noite. George Orwell relata o tra-tamento que recebia nos albergues do Império Britânico. A situação continua a mesma, salvo o café, que lá, era o chá, e a presença das assistentes sociais. Um nome mais apresentável foi dado, e só. As crí-ticas de Orwell não ficaram em 1930. Elas são eternas.

A mesma luz continua a mostrar o oculto

Crédito: Bruno Bach Albornoz

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sozinho”. Jony revela que já usou de tudo, “desde maconha até pedra, me-nos heroína”.

Antes de vir morar em Florianó-polis, ele se voltou aos sons. “Eu era músico, trabalhava com música e vi-via disso, tive inclusive uma banda”. Já morou em Santos, na Nova Zelândia, na Argentina e em muitos lugares, conta.

Estudou até o primeiro ano do ensino médio, mas se considera for-mado em música: “Sei fazer traba-lhos em estúdio; qualquer platafor-ma digital hoje eu domino, qualquer

Quando a poesia transforma a vida

A Travessa Ratclif reavivou a vida noturna do centro, oferecendo um ponto de encontro e descontração, onde se toma uma cerveja ao final do dia ou ao final de semana e onde os boêmios se estendem até mais tarde na sua peregrinação de bar em bar. Passando de mesa em mesa, um jovem vende pequenos livros com poesias de sua autoria em troca de qualquer moeda. Aproximei-me dele querendo saber sobre sua vida.

Ele não revela seu nome, nem assina seus poemas. Mas no twit-ter assina como Jony Mazoni. Tem 33 anos, nasceu em Belo Horizonte, mas foi criado em Santos. Antes de fazer poesia, experimentou de tudo um pouco como profissão: “Traba-lhei com muitas coisas na rua, desde capinar lote – cobrando barato, pois não sabia cobrar –, até limpar vidro do Subway”.

Chegou a conquistar uma clien-tela para a qual limpava vidros, mas então descobriu a poesia e passou a gostar cada vez mais de escrever. “Isso me ajudou a compor melhor porque eu tinha um vocabulário muito fraco”, contou.

Ele relata que, junto à sua família, vivia em condições financeiras razo-áveis, mas sempre se manteve afasta-do, pois usava drogas dentro de casa e o seu pai não sabia lidar com a situ-ação. “Eu não gostava de usar droga com ninguém, gostava de usar droga

O pequeno livro de poesia de Jony traz reflexões sobre liberdade, felicidade e o amor

Crédito: Ysttéphani Jurak SnhoriniPor Ysttéphani Jurak Sinhorini

Dos sons às letras, jovem vende seus poemas de bar em bar

bit que tu fizer com a boca eu con-sigo fazer no lf Studio, eu entro em qualquer estúdio, qualquer mesa, sem medo”. Jony lembrou que ga-nhava dinheiro com trabalhos nessa área, mas parou depois que se apaixonou. “Comecei a gostar de uma guria e me en-treguei totalmente a esse amor, que desde 2010 me persegue. Ela é uma pessoa muito especial”. Apesar disso ele se lembra dela com muito carinho e vive por aí transmitindo seus senti-mentos em palavras.

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Expectativas para o desconhecido

Antes de chegar à Praça XV, no dia 20, onde iria acontecer a nossa frânerie, fiquei um pouco apre-

ensiva de como seria o desenro-lar de tudo. Estaríamos na casa dos moradores e poderiam não gostar disso e acabar nos man-

dando embora, mas não foi bem assim que tudo ocorreu.

Os alunos se apresentaram, fazendo performances: par-

te da turma declamou trechos de textos literários de jornalistas que escreveram sobre personagens anô-nimos das cidades e, outra, por mú-sica composta pelos estudantes em homenagem à vida nas ruas. Os mo-radores, que já estavam próximos, interagiram com a gente; um deles, chamado G, até fez um rap inspirado pelo acontecimento da noite. Depois disso, fomos conhecer os espaços de

convívio no centro e conversamos com alguns passantes e habitantes da praça.

A praça tem muitas árvores, cães. Durante o dia é muito movimenta-da; muitas pessoas passam com por ali, alguns fazem dali seu lugar para ter suas refeições, para dormir. Che-ga o fim do dia e tudo muda a praça ganha vida, os que não eram muito vistos de dia, passam a ser de noite.

No ensaio “A pequena história da fotografia”, Walter Benjamin fala

sobre a forma como a imagem foi banalizada e sobre as pes-

soas perderem a habilidade de analisar uma fotogra-fia. Conforme Benjamin,

“a Natureza que fala à câ-mara não é a mesma que

fala ao olhar”. Da mesma forma, tirar

uma fotografia não é o mes-mo que vivenciar um mo-

mento e poder observá-lo. Podemos comparar isso com a vida das pessoas que moram

nas ruas, pois desapegadas de uma rotina, elas veem a vida de uma forma diferente. A vida de

Jony, por exemplo, tomou outro rumo a partir do momento em

que conheceu a poesia, pois seu vo-cabulário ficou mais amplo e cheio de novas palavras.

A forma como as pessoas que vi-vem na rua são vistas pela mídia é diferente da forma como elas veem. Por exemplo, elas podem ver uma imagem em algum jornal ou televi-

são que tenham acesso, sobre como são vistos, mas eles veem isso de outra forma. “Cada um de nós pode obser-var que uma imagem, uma escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na realidade”, afirma Benjamin.

Independente da origem, raça e costumes das pessoas, elas tem que se

Ver realidade de uma forma diferente

acostumar com a forma como são vis-tas, ou a forma como ela é mostrada, pois existem muitos rótulos. Muitas ve-zes são vistas de uma forma, mas nem sabem de sua história e de como foram parar onde estão. “Quer sejamos de di-reita ou de esquerda, temos que nos ha-bituar a ser vistos, venhamos de onde viermos”.

A vida de Jony tomou outro rumo depois que conheceu a poesia

Crédito: Ysttéphani Jurak Snhorini

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Com a chegada da noite, a mul-tidão desaparecia e as luzes da praça começavam a ser acesas. Muitos mo-radores de rua estavam nas proximi-dades, qual seria o principal motivo dessas pessoas permanecerem ao re-lento, no coração da cidade? Resol-vi achar a resposta dessa pertinente questão. Surpreendentemente, mui-tos moradores de rua estão ali por

opção. Carregam um passado que não trans-parece. Fui em direção de um jovem que chamara minha atenção devido ao seu estilo: roupas largas, ta-tuagens coloridas, alargador e um gorro na cabeça. Não aparentava ser da rua, e real-mente não era, mas já foi. Ga-

Aglomerado de histórias

Passos largos e olhares fixos. As pessoas não possuem mais tempo, correm contra o relógio e entre a multidão. Nunca saberemos todos os segredos que as assombram, ou a história mais romântica que ocorrera em suas vidas. O narra-dor de Allan Poe, em O homem da multidão, já afirmara, “há certos segredos que não consentem ser ditos”.

Fazia um mês ou mais que cho-via sem parar, graciosamente o sol tímido havia aparecido naquele dia enquanto eu estava chegando no centro de Florianópolis. Fui para a Praça XV de Novembro, a mais tra-dicional da cidade. Em dias como esse, muitos senhores reúnem-se no local para ler o jornal e jogar conversa fora. Sentei em um banco próximo à centenária Figueira, uma grande árvore onde escoras ainda sustentam seus galhos. Há rumores de que a árvore nasceu em 1871, em frente à Catedral, mas teria sido re-plantada para o centro da praça em 1891. Como tudo na Ilha da Magia, a Figueira é repleta de superstições. Quer atrair casamento ou dinheiro? Dê algumas voltas ao redor dela, diz a sabedoria popular.

A variedade do centro de Floria-nópolis exige um olhar sutil inte-grado com o ouvido apurado para o som que vai desde barulhos insu-portáveis de buzinas até graciosas canções. São vendedores ambulan-tes, trabalhadores engravatados, índios, moradores de rua, pessoas que passeiam e encantam-se com as peculiaridades da cidade... A chuva na praça XV também era de gente. A movimentação constante fazia com que não houvesse espaço para

Crédito: Rafaella G. de Moraes

Por Rafaella G. de Moraes

Quando a alma da cidade se torna lar e os amigos de rua tornam-se família

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briel, 21 anos de idade. Saiu de casa aos 16, pois sua mãe se casou com um novo homem com quem ele não simpatizava. A princípio, era apenas

um susto que daria em sua mãe, na esperança de que ela procu-

rasse por ele. A expectativa não se tornou realidade.

Gabriel morou na Praça XV durante dois anos, mas não vive mais na rua. Seu sonho é abrir

um estúdio de tatuagem que está montando em

parceria com um amigo. Contou que quando mo-

rava na rua não tinha como guardar de forma segura os

pertences ou sempre mantê-los junto consigo, então divi-

dia uma mala com seu melhor amigo, o G, e normalmente a mantinham em esconderijos.

Certo dia deixaram os perten-ces atrás de uma árvore e foram

roubados. Perderam equipamen-tos para a realização de tatuagens, roupas e até os essenciais perfumes que dividiam. Essenciais, porque como disse o amigo “Sem perfume não dá para ficar, não. A gente pode até estar sujo, mas fedido nunca”, brinca G.

Não há calada da noite para um flâneur. Segui adiante e deparei-me com uma jovem garota: cabelo cur-to e escuro, baixa estatura, olhos saltados e um sorriso pertinente. Trocamos algumas palavras, mas foi o suficiente para descobrir um pouco a respeito dela. Argentina

de 22 anos, decidiu que gostaria de conhecer o Brasil; oportuna-mente conheceu uma pessoa que viria para o país e pegou uma carona. Gostou do jeiti-

nho brasileiro e resolveu per-manecer. É uma amante da rua.

Não a julgo, a rua em algumas ocasiões é realmente envol-

vente. Questionei: “Você tem contato com seus pais?”. Ela sorri. “Não,

não tenho celular”.O dia havia chegado ao fim e, con-

forme a tradição, terminou na Tra-vessa Ratcliff. Rua estreita, composta por lajotas e bons bares. Na terça-fei-ra não há música ao vivo, mas não há problema, pois o som baixinho nos bares, assim como o barulho das con-versas e a chuva que começava a cair compunham o fundo musical.

Vinte e um de outubro, segundo dia de flânerie. A chuva era forte, o dia havia escurecido cedo devido ao mal tempo, fazendo com que a Praça XV ficasse mais vazia do que o co-mum. Insistente, peguei minha som-brinha e fui flânar.

“A gente só ama uma vez na vida, é impossível amar mais de uma vez”

Conheci então Marcelo, um ex-taxista, nascido em 13 de novembro de 1977, que foi casado com Valéria. Desde que ele se divorciou está na rua, onde diz ter se refugiado porque a mulher tinha muito ciúmes dele, mas conta que ainda não a esqueceu: “A gente só ama uma vez na vida; é impossível amar mais de uma vez”.

E o Jonathan, que mora na rua há três anos, veio de Caxias do Sul. Já estudou Medicina, mas somente porque o pai dele obrigara. Adorava ir para a balada e assim gastava muito dinheiro. Mas o local dele é nas ruas, e foi na de Florianópolis que se en-contro.

Meu destino inicial seria o Merca-do Público, que eu não havia visitado após a reforma. O Mercado Público foi construído em 1898, substituin-do o local de um antigo mercado com 45 anos, que foi demolido em 1896. Lojinhas, peixarias, bares, em-

pórios, loja de artigo de pesca, entre outros estabelecimentos fazem parte desse ambiente. Em 2005, um gran-de incêndio destruiu completamente uma das partes do mercado, que foi reconstruído e modernizado. Em ju-lho de 2015, foi finalizada uma nova reforma e restauração, que é um dos principais pontos turísticos da cidade e encontra-se sempre movimentado. Não há dúvida que os trabalhadores que habitam o Mercado Público são extremamente simpáticos. “Tenha um bom dia” e “Olá, seja bem-vin-da”, eram frases frequentes. Aliás, devo dizer que o cheiro presente é o característico de peixe. O vaivém de pessoas, murmurinhos e guarda-chuvas se batendo faziam parte do cenário ao redor do mercado.

O local agora era outro, Rodo-viária de Florianópolis. Entrei e fui observar. Muita gente e muita mala. As cadeiras mais movimen-tadas certamente eram as que pos-suíam tomadas. Ouço uma conver-sa paralela que me encanta: “Olha, eu não tinha nem 10 centavos para comprar a passagem. Fui na pre-feitura e eles me deram uma. Que-ro voltar para minha terra; aqui é difícil conseguir emprego. Graças a Deus tenho uma casa lá! Nunca morei na rua, não. Quando a gente não tem emprego, pega um terre-no e vai capinar! Graças a Deus”. Cheguei mais perto na possibili-dade de me enturmar e conversar com ele. “Mas agora tenho que ir, já deu o horário do meu ônibus.” E o senhor que aparentemente de-veria ter uns 50 anos, de bigode e barriga farta levanta e vai em dire-ção ao embarque.

Florianópolis, a cidade repleta de lendas, também possui um coração cheio de histórias marcantes e se-gredos que nunca serão descobertos nem por mim e nem por ninguém que ouse arriscar. Afinal, Immanuel Kant já dizia “Mesmo a mulher mais sincera esconde algum segredo no fundo do seu coração”.

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Autor e aprendiz: escritas andarilhas

Foi muito bem dito, a respeito de um certo livro alemão, que ‘er lasst sich nicht lesen’ — ele não se deixa ler. Há certos segredos que não se deixam contar. Homens morrem toda noite em suas camas, torcendo as mãos de fantasmagóricos confessores e fitando-os lamentosamente nos olhos — mor-rem com desespero no coração e convulsões na garganta, por causa do horror de mistérios que não aceitam ser reve-lados. (O Homem da Multidão, Edgar Allan Poe)

A correria de um homem na alma de uma cidade foi minha maior inspiração para a realização da flânerie no Centro de Florianópolis. Apesar do conto de Poe se passar no começo do século XIX, em Londres, durante a expan-são dos centros urbanos, nossas experiências têm muitas semelhanças, começando pelo fato de se passar no meio de um centro movimentando. Abordar as pessoas sem nenhum contato anterior faz com que os segredos sejam mais difíceis ainda de serem revelados, como afirma o narrador ao final de O Homem da Multidão.

Multidão, segundo o dicionário, é um “conjunto de

pessoas de um mesmo território, nação etc.; agrupamen-to, aglomeração”. Mas o que a definição dos léxicos não mostra é que as multidões não possuem tempo. Elas cor-rem contra o relógio com seus segredos e vidas armaze-nados sem compartilhá-los: passam horas em um mesmo lugar sem trocar uma única palavra.

Assim como no século XIX, multidão, solidão e mo-dernidade continuam sendo as palavras chaves no ano de 2015... Passamos diariamente por muitas pessoas com as quais nos “refregamos” nos lugares públicos, como dizia Baudelaire, sem nos dirigirmos a elas ou sabermos seus nomes, suas histórias, ou trocarmos um simples bom dia. O homem da multidão está sempre rodeado de pessoas, embora sinta, paradoxalmente, o mal da solidão. Isso tal-vez explique porque as pessoas que vivem na Praça XV sentem-se confortáveis ali, onde há o movimento fugidio das ruas: elas têm fome de multidão.

“A definição dos léxicos nos mostra é que as multidões não possuem tempo”

Da teoria às ruas

Tudo que eu sabia sobre flânerie vinha de livros e aulas. Tinha um refe-rencial apenas teórico, quando chegou a hora de colocar esse conhecimento em prática. Eu deveria me inspirar em Edgar Allan Poe, João do Rio, George Orwell e outros célebres escritores flâ-neurs da modernidade...

Cheguei à Praça XV com muito re-ceio e também cheia de expectativas. Antes de toda entrevista, meu maior medo sempre foi a abordagem. Como eu poderia deixar o entrevistado à von-tade? O primeiro contado que tive com o entrevistado já fez com que ficasse mais tranquila e confiante. O carisma das pessoas que habitam as ruas de Flo-rianópolis nos deixava cada vez mais à vontade. Meus melhores amigos duran-te essa experiência foram, com toda cer-teza, o papel e a caneta, os quais eu não largava sequer um minuto.

Cada passo que nós, futuros jorna-listas, dávamos era uma sensação única. Materiais coletados, histórias escritas e fotos encantadoras... Não há sensação melhor da certeza e do alívio de cumprir o desafio de atravessar a ponte do outro.

Crédito: Vanessa Gerônimo

O olhar atento tomava conta da experiência

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“Hotel XV” O segredo de uma praça

Por Guilherme Martins da Cunha

Abril de 2015Valentina – Será que devemos contar a verdade?Luna – Não sei, tenho medo de que as pessoas fiquem

surpresas.Valentina – Mas não foi para isso que fomos lá? Para tirá-los do

esquecimento?Luna – Acho que foi, mas não sei se é isso que eles querem.

As camas são duras como rocha e em dias de chuva as goteiras tor-nam quase impossível a estada no local. Feito praticamente de pedras, o hotel tem um jardim encantador que abriga uma árvore com mais de 100 anos, quase tão antiga quan-to a edificação, construída antes de 1800. Abrigando muitos viajantes e até pessoas que largaram suas casas para viver nele, o hotel não é dos mais luxuosos. A falta de serviço de café e almoço faz com que os hóspe-des tenham que acordar cedo, para os padrões de um hotel, e partir em busca de comida. O jantar é servido

de vez em quando, sem horários e dias marcados. Muitas vezes os hóspedes dormem de barriga vazia. Os vizinhos do XV são um pouco mal-educados; desde

cedo caminham pelos cômodos do hotel sem ao menos pedir li-

cença ou desculpas pelo baru-lho. Parecem nem perceber

que o XV e seus hóspedes existem.

Em dias de sol, o XV

tem um dos amanheceres mais boni-tos da cidade. De frente para todos os quartos, a velha figueira ergue-se abrigando centenas de pássaros que cantam incansavelmente para os hós-pedes antes da partida em busca do café. Após o almoço eles caminham por diversos pontos da cidade, como os lindos parques ou o famoso merca-do público, e até pelas lojinhas do ter-minal rodoviário. Ao anoitecer eles re-tornam para as áreas comuns do hotel e conversam. À noite, a tranquilidade reina no XV; os vizinhos mal-educa-dos já não passam mais por dentro dos cômodos, e a não ser por barulhos de carros, o hotel fica no mais abso-luto silêncio após os hóspedes irem se deitar. Pelo menos até a volta dos in-desejáveis vizinhos ao amanhecer.

Apesar da simplicidade, o XV atrai grandes personalidades, nacionais e internacionais. Entre os hóspedes fi-xos, estão um famoso médico brasi-leiro, um mestre em xadrez e um pro-missor escritor, alguns apaixonados por animais e outros jovens e senhores que largaram suas vidas para viver no

A velha figueira ergue-se abrigando centenas de pássaros que cantam in-cansavelmente

Crédito: Guilherme M. da Cunha

Novembro de 2020

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hotel. Entre os hóspedes mais recentes estão um trio formado por dois argen-tinos e uma jovem chilena, que viajam a América Latina se apresentando com seus malabares flamejantes. Há, ain-da, um massagista vindo do Uruguai e um ciclista aventureiro que chegou recentemente e que pretende voltar pedalando para seu país de origem, a Colômbia.

O hotel serve de sede a eventos que recebem artesãos de toda a América do Sul para encontros em que os par-ticipantes dividem experiências. Tam-bém já recebeu por alguns meses um renomado tatuador. Esses e muitos outros hóspedes, ficaram esquecidos pela cidade durante anos, assim como o XV, pelo menos até a vinda delas.

Valentina e Luna chegaram com um pouco de receio ao hotel e demo-raram até se aproximar dos outros hóspedes. Elas eram jovens estudantes de jornalismo e decidiram ter como tema de seus trabalhos o XV e seus hóspedes. Durante três dias ficaram

no hotel e seguiram a rotina dos que se hospedavam ali. Após o primeiro dia já estavam familiarizadas com to-dos e começaram seus trabalhos sem muita dificuldade. Ouviam muitas histórias; assustaram-se com algumas e se encantaram com outras. Entre um relato e outro, aprenderam malaba-rismo, jogaram xadrez, fizeram pul-seiras e andaram de bicicleta. No fim do dia, quando já estavam exaustas, receberam de presente do novo ami-go uruguaio uma massagem digna de SPA de luxo. No final dos três dias, após voltarem para casa, Valentina e Luna deram de cara com um grande problema: a vontade de contar sobre tudo e todos crescia dentro delas, mas o medo de não retratar cada pessoa com a profundidade necessária deixa-va-as preocupadas. Ao mesmo tempo carregavam uma dúvida: deveriam ou não revelar o segredo dos hóspedes e do hotel XV?

– Lembro-me como se fosse hoje... Eu e todos os meus colegas ouvimos

Abril de 2015Valentina – Você tem razão. Às vezes viver na mentira é mais confortável.Luna – Sim, talvez eles prefiram nossa história sobre hóspedes e hotel.Valentina – Na verdade eu também prefiro assim.Luna – Eu também. Prefiro fingir que eles são hóspedes de um hotel no centro da cidade, a afirmar que são mora-dores de rua de uma praça.Valentina – O mais importante nós fizemos. Contamos as verdadeiras como cada um é. Mesmo que muitos dos que os enxergam não os vejam.

O hotel tem um jardim encantador que abriga uma árvore com mais de 100 anos

Crédito: Guilherme M. da Cunha

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O segredo da paciência

“Foi a coisa mais sensacional que já testemunhei”

Joseph Mitchell em 1989

Esperava ansiosamente a semana seguinte, pela segunda vez no ano chegava a hora de sair à rua e colo-car em prática os ensinamentos re-cebidos. Se no primeiro semestre a missão era na simpática Costa da La-goa, com seus moradores receptivos, acostumados à segurança que só um bairro isolado tem, a segunda vez re-servava mistérios e segredos que só

a Praça XV, seus moradores e pas-santes poderiam desvendar.

Após um dia de vivência, mi-nhas atenções voltaram-se para

os estrangeiros. Os colegas de via-gem Katia e Franco vieram da

Argentina e foram os que mais intrigaram. Katia me ensi-

nou, ou tentou me ensinar,

Do portunhol à minha casaEnquanto os pinos e bolas sobem e descem, histórias são vividas e contadas

o segredo de sua arte: os pinos de malabarismo. Após muitas tenta-tivas fracassadas, fui tentar a sorte com as bolinhas que Franco usava, e desta vez me saí muito melhor. Ela só ficou conosco uma noite e partiu para Itajaí, mas Franco permaneceu em Florianópolis e nos ensinou ma-labarismo.

Assim foi toda a vivência: di-vertidas conversas que duravam horas e tinham como idioma oficial o portunhol. Histórias de viagens eram contadas, enquanto bolinhas e pinos subiam e desciam, caíam no chão, eram recolhidas e partiam de novo, no ritmo frenético do sobe e desce, direita e esquerda. A vol-ta para casa é a parte mais difícil.

Deixar para trás o ritmo intenso de conversas que tivemos na praça faz parecer que a vida nunca mais será a mesma. Pior ainda é escolher um tema para escrever, falar de todos ou escolher um único personagem. Essa dúvida assombra minha ca-beça até hoje. Mesmo com o texto acabado, sinto vontade de apagá-lo e reescrevê-lo de outra forma. Acho eu que se tivesse mais tempo, escre-veria um perfil de cada morador e viajante, mas o tempo é curto e te-mos que seguir um caminho. Esco-lhi o da alucinação, da loucura, da verdade. Escrevi um texto fictício e verdadeiro. E no fim, o que fica é o desejo de voltar, ouvir mais histó-rias e escrever ainda mais.

Certa vez, no sul dos Estados Unidos, Joseph Mitchell apon-

tou um binóculo na direção de um pica pau. O passari-

nho fazia o que fazem os pica paus: martelava o tronco de uma árvore. Mitchell acomodou se no

chão e ficou observando. Laboriosamente o pica pau avançou tronco adentro,

rasgando a madeira de cas-ca a casca. A façanha durou

quase duas horas e terminou com a árvore vindo ao chão.

Mitchell não arredou pé até o final. Mais tarde, disse: “Foi a coisa mais sensacional que já tes-temunhei”. (João Moreira Salles)

A paciência de Joseph Mitchell serviu de inspiração nos três dias em

que caminhei pela Praça XV e ouvi

dos passantes e moradores o desenrolar de suas histórias. Olhar nos olhos, saber ouvir e dar atenção àqueles que sempre foram invisíveis para a sociedade é uma

Crédito: Anne Hall/The New Yorker

tarefa prazerosa, traz frutos e aprendiza-dos que levarei para a vida toda.

Deixar de lado bloquinho, caneta, câmera e gravador parece ser impossí-vel para um jornalista. Porém, a partir do momento que nos desapegamos desses instrumentos e voltamos nos-sa atenção e olhares para a pessoa que está à nossa frente, entramos em seu mundo, em sua história e resgatamos

algo precioso que nela resiste. E, desta forma, após as conversas, fica muito mais fácil sentar e escrever, não o que queremos dizer, mas sim o que o en-trevistado quer contar.

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ano no hospital. Foi quando a mãe dela assumiu a responsabilidade pelas netas. “Minha relação com elas (as fi-lhas) é maravilhosa, nos damos muito bem! Minha mãe que é muito difícil de lidar com ela, não aceita muito eu morar na rua”.

- E por que você foi parar na rua?- Por causa de droga, crack. Fui

usuária por cinco anos. Comecei a usar crack por causa das más influên-cias, influência das pessoas. E depois de tudo que me aconteceu, né Bia? Mas agora eu não uso mais. Consegui parar sozinha! - enfatizou orgulhosa.

Tudo isso ela me contava enquanto terminava de fazer mais um filtro dos sonhos em uma parte escura da praça. Naquela noite, o único lugar que não estava iluminado era ali onde conver-sávamos com os moradores de rua, certamente para tentar inibir a nossa presença no local. No dia anterior, até o pastor e suas marmitas foram revis-tados pela polícia.

A Cíntia é uma pessoa muito tran-quila e está sempre sorridente. Não é de falar muito, parece um pouco tími-da.

A única coisa que ela me pediu foi que, se eu tivesse sobrando, precisava de uma mochila. A que ela carregava suas coisas estava rasgada e era ruim de usar. Eu disse que levaria.

Perguntei sobre como era ser mu-lher e morar na rua. Me contou que por serem mulheres, precisam con-

viver com muitas coisas e estão mais vulneráveis. Tam-bém quis saber se já havia sofrido alguma violência, me disse que não - ainda não. Que é preciso ter muito cuidado.

- E tem mais mulheres que fi-cam por aqui? - eu questionei.

- Tem várias, várias. Mas as-sim, as outras, a maioria, usa crack. Quem não usa assim, só eu, a Lili e mais umas outras que são casadas, que ficam mais com seus maridos pra lá (apontando para uma rua depois da praça). Por isso que a gente vive no meio. Eu e a Lili, mi-nha boneca. Ela é a minha melhor amiga! Só tenho ela, né? Pensa em uma pessoa pura, que tem o coração mais puro desse mundo. É ela. Não tem como não se apaixonar por ela! Só que ela tá indo embora.

Lili é uma jovem argentina. Está com o braço quebrado por causa de uma queda enquanto dormia e pretendia voltar para sua cidade na quinta-feira (29/10). No dia se-guinte, no centro POP, perguntei se ela iria mesmo e me respondeu que achava que “no más”. Os de-mais moradores cuidam bastante da Lili, dizem que ela é a “bone-quinha” deles, mas ela prefere ser independente, mesmo estando um pouco impossibilitada. Alguém chegou a perguntar: “Lili, você é feminista?”.

“Imagina ficar menstruada e ter que morar na rua”

Já era o quarto dia que retornava à praça, procurando uma história. Uma ideia se fazia fixa: a entrevista com uma travesti, porém os mais diversos obstáculos fizeram com que esta pauta caísse. E então eu conheci a Cíntia.

A Cíntia produz filtros dos sonhos para vender. Disse que aprendeu a fa-zer isso para viver. Eram os filtros ou a prostituição. “Eu não teria coragem de me prostituir. Precisa de muita co-ragem”.

Está em Florianópolis há um mês e meio, vindo do Paraná. Foi pegando passagens com a assistência social das cidades onde parava.

Contou que em alguma cidade mais para o interior de Santa Cata-rina, ela chegou no final de semana, quando a assistência social não estava disponível. Fazia muito frio e não ti-nha onde ficar. Dormiu em um buei-ro. No domingo muito cedo, foi à casa do prefeito da cidade e pediu auxílio com a passagem. Ele lhe deu R$ 50 e ela seguiu a sua viagem.

Namora o G, o cantor de rap da praça.

Cíntia tem 31 anos e mora na rua há cinco. “Mas eu sempre fui da rua” - ela me disse.

Passou metade da vida no Paraná e a outra metade em São Paulo, onde criou as filhas. São duas. Seriam três, mas a mais nova faleceu aos oito meses em um acidente de carro muito grave, o mesmo que deixou Cíntia quase um

Por Beatriz M. Wagner da Rocha

Cíntia já dormiu em um bueiro para escapar do frio. Lili está com o braço quebrado devido a uma queda dormindo. Aline é usuária de crack. Todas essas histórias se cruzam na Praça XV e têm um elemento em comum: mulheres em situação de rua

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Acho que o teor da palavra a as-sustou. Ela disse que não, que apenas preferia fazer suas coisas por conta própria.

Quando estávamos na praça, também passou por lá uma moça

jovem, um pouco alterada, ne-gra, com os olhos verdes e

muito bonita - uma bele-za esquecida pelos maus tratos do crack. Descobri depois que se chamava

Aline. Eu queria ter con-versado com ela, mas acho

que não seria possível esta-belecer algum diálogo.

Na hora de ir embora, co-meçava a cair uma chuva fina

em Florianópolis e uma pes-soa do nosso pequeno grupo

testemunhou a seguinte cena: o G tirou o casaco que estava usando, colocou nos ombros da

Cíntia e os dois foram embora,

de mãos dadas, para algum lugar pro-tegido da chuva.

No dia seguinte, fomos ao Centro POP – local onde os moradores de rua podem passar o dia, tomar banho, recebem café da manhã e da tarde e almoço, além de fazerem os cadastros para programas sociais, utilização do albergue da prefeitura e atendimento médico.

Quando cheguei, a Cíntia veio e me abraçou, me convidando para entrar. Entreguei a mochila. Ela me agrade-ceu com um abraço meio desajeitado. Nesse dia quase não conversamos. Ela estava mais fechada.

Lá também absorvi mais informa-ções sobre as mulheres em situação de rua. Elas são muitas, sim, e a grande maioria é usuária de crack. “Imagina tu ser mulher e morar na rua. Imagi-na ficar menstruada e morar na rua”, disse a Mariana, funcionária de lá. A droga é uma fuga.

As mulheres que vivem na rua aca-bam buscando por companheiros na mesma situação para evitar a violência dos outros homens, mas algumas de-las acabam sofrendo isso com os pró-prios companheiros e outras ainda são obrigadas a se prostituir para garantir o sustento do vício nas drogas de am-bos. Existe no centro POP um grupo de mulheres, que é conduzido por duas educadoras e se reúne todas as quar-tas-feiras, porém são poucas as que frequentam, pois a maioria sofre com a pressão dos companheiros, por medo da denúncia pelas violências sofridas. Um dia, uma chegou local em choque. Viu o companheiro segurando uma moça para outro homem estuprá-la.

Durante esses dias convivendo com os moradores de rua, uma frase de um deles me marcou muito: “Moça, mui-to obrigado por ouvir minha história, porque na maioria das vezes, as pessoas nem olham pra gente.”

O sonho de uma vida melhor nos escritos em uma das mesas do CentroPOP

Crédito: Beatriz Rocha

Page 35: A Florianópolis dos Esquecidos

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A flanêrie de Baudelaire

Em “O pintor da vida moderna”, Charles Baudelaire coloca o flâneur como alguém que desposa as ruas, que estando fora de casa, sente-se em casa.

Como viver desta forma nos dias de hoje, com a necessidade de se estar sempre correndo, em busca de algo que nem sabemos ao certo o que é? Con-some-se o tempo de uma maneira que não há tempo para além das obrigações diárias. Não há tempo de viver e obser-var a cidade ao seu redor. A cidade cor-re e seu ritmo é frenético.

Para desposar da cidade foi neces-sário tirar um tempo e observar seu movimento. As pessoas apressadas chegando ao terminal no fim do ex-pediente, os ambulantes que ficam na avenida do terminal, o burburinho que começa a se formar nas áreas noturnas tradicionais do Centro.

As descrições de Baudelaire tratam da obra do pintor autodidata Constan-tin Guys, um repórter que tinha uma visão apurada sobre as mudanças de uma Londres pós-guerra, que rumava para os tempos modernos, onde o que se vivia era breve, transitório, passagei-ro e que era o verdadeiro lar do flâneur, que buscava estar em constante contato com o que a cidade oferecia aos seus olhos sempre atentos.

Passar os cinco dias da vivência no Centro e poder experimentar os hábi-tos, cheiros e sons que a noite da cida-de proporciona foi uma verdadeira ex-periência de flânerie, - como aquelas descritas por Baudelaire e Poe, como aquelas vividas por Guys - mas foi, principalmente, compreender quea cidade ainda é uma célula viva e pul-sante e que seus habitantes possuem histórias maravilhosas, basta saber ouvir.

Viver é ouvir histórias

Cinco dias de rua. O centro de Florianópolis nunca foi tão pródigo em tantas histórias.

Os que geralmente são ignorados e até evitados tinham agora muitos ouvidos interessados no em suas ideias e narrativas de vida. A antiga imagem de um morador de rua miserável e maltrapilho caía por terra. O que surpreende é como algumas pessoas conse-guem viver com menos do que a sociedade julga necessário.

É gente que não vemos no noticiário, a não ser nas páginas policiais. Gente que tem um passado, acredita que a vida é um presente e que o futuro a Deus pertence. Cantor de rap, tatuador, artesãos, malabaristas, escritor, ex-funcionários públicos e até um bacharel em medicina: todos vivendo sob o mesmo teto - o teto sem cobertura da Praça XV de novembro, local histórico e também cheio de histórias no coração da cidade.

Quantas pessoas acreditam que #viversc é conhecer os pontos turísticos, as praias, as baladas de Jurerê Internacional? Nesses cinco dias na rua eu pude entender: viver a cidade, o estado ou até mesmo o país, é ouvir histórias. Histórias de gente que muita gente nem vê.

“Assim, o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se num reserva-tório de eletricidade” (Charles Baudeleire, em O pintor da vida moderna)

Créditos: Marcelo Noah/flickr

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O desaculturado, o que está à mar-gem da literatura, o que ignora o co-nhecimento. Tanto ignorante quanto ignorado, Rodrigo passaria despercebi-do por qualquer lugar. São tantos iguais a ele, porém, algo em seus artefatos fei-tos de lata chamava a atenção. Não seu brilho, que certamente se extinguiu no mesmo momento em que deixaram de ser recipientes de cerveja ou refrige-rante. Mesmo assim algo brilhava e se não as latas, o quê? Não houve jeito e o primeiro contato foi não apenas, mas um aperto de mãos, firme, como tem que ser. Não havia mais nada ao redor, sem multidão, sem barulho, sem risa-das. Apenas Rodrigo e seu ouvinte. E a

primeira frase foi, além de uma risada, um tapa na cara de todo preconceito:

“Você achou que minhas latinhas eram para fumar crack, né?”

E agora? Quem nunca? O ouvinte nunca optou por manter suas proteções. Com a confirmação de sua pergunta, Rodrigo continuou com seus ensina-mentos crus:

“Sem problemas, tenho minhas via-gens, mas cada coisa na sua hora, agora é meu trabalho, meu viver. ”

Pronto, o brilho aquele voltara e es-tava definida sua origem, vinha de Ro-drigo, o viciado em rua.

Rodrigo Machado de Almeida, 32 anos, carioca da gema, como ele costu-ma se definir, conheceu as ruas aos sete anos e seu coração se apaixonou. Deci-diu naquele momento, que seria aven-tureiro e conheceria o mundo. Ou pelo menos o Brasil. Sua família, tradicional do estado carioca, era obviamente con-tra. Houve resistência, recusa em forne-cer a base para a aventura de Rodrigo, mas o que poderia impedi-lo? Tenta-ram garantir-lhe uma casa, deram-lhe uma motocicleta. Quando fala dela, os olhos brilham ainda mais, mostrando uma paixão antiga, daquelas que não se esquece. Mas não deram o que ele mais queria.

Ele queria as ruas. Bastou uma irmã vir para Santa Catarina, mais precisamente para Timbó, que ele veio também. E aos 18 anos, decidiu que não esperaria mais pelo seu so-

Streetaholic, o viciado em rua

Em uma bela noite de chuva, ele passou. Não atraiu quase nenhum olhar da mul-

tidão, que se aglomerava para vibrar e rir das emoções de

uma batalha de rap. O evento ocorria em pleno Largo da Al-fândega, local ícone das rendas

de bilros, com seus bilros gigantes e de um chafariz muito conhecido

na capital catarinense e onde muitos já experimentaram um banho. Nesse lugar representativo da nossa cultura, estava ocorrendo uma épica batalha de ritmos originalmente estaduni-dense. E nesta miscelânea de culturas, ele passou.

Por Elio Quaresma

Aventuras, desapegos e encruzilhadas, até aonde você iria por um sonho?

Artesanato de lata feita por Rodrigo, vendida por quanto quiserem pagar, garantem a sobrevida do aventureiro

Créditos: Elio Quaresma

Page 37: A Florianópolis dos Esquecidos

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PREFIRA VER!

Mais uma das humanas! Foi o que pensei. Perambular pelas ruas de Florianópolis esperando a vida me surpreender sem nenhum ponto de partida é mais que au-dacioso, é ineficaz! De certeza.

Ledo engano.Não que eu tenha ido desa-

creditado, certo que daria er-rado. Após leituras de mestres como João Antônio e Eliane Brum, tinha certeza que encon-

traria algo, desde que eu olhasse para o que preferimos não ver. Decidi ir de alma e coração de-sarmados até porque, para entrar neste universo de contadores de histórias, estar aberto ao desco-nhecido é essencial. Mais do que isso, não se contam histórias sem personagens e os persona-gens que mais marcam são os que surgem, não os que criamos. E assim me propus e conhecer a

cidade dentro da cidade, enxer-gar os mesmos lugares sob outra ótica.

Proponho o mesmo a você que está lendo agora. Aja, perambule pelo mesmo local que você passa sempre, mas note o que antes você não notava. Fale com quem você não falava, escute o que o vento te joga na cara , seja dele o único ouvinte . A recompensa é ime-diata para as duas pontas.

nho e se a família não lhe concedesse recursos, a vida daria. E assim saiu na sua jornada. Primeiro Blumenau. Depois cruzou o País, foi parar no Ceará, onde se deparou com a face da violência, o lado oculto das ruas. “Muita loucura, muita morte, pouca segurança para uma capital de nome Fortaleza”. Em São Gonçalo do Ama-rante, ainda cearense, sobreviveu aos tempos de morte. Não era incomum moradores de rua serem encontra-dos mortos em plena praça, justo na sua morada. Era hora de sair. Ainda na capital da moda, aprendeu só de olhar a fazer artesanato, o que lhe garantiria a sobrevida de sua aven-tura em outros lugares, como Tere-sina, no Piauí, e São Luís, no Mara-nhão. Na terra dos Sarney, Rodrigo descarregava caminhões. Foi escon-dido em um deles que dormiu em São Luís com medo da violência nas ruas e acordou em Feira de Santana, na Bahia. Com um sorriso comple-to, mas fosco pela falta de cuidados, Rodrigo conta rindo que o povo de lá tem realmente outro tempo. Sair do frenético ritmo que as ruas por onde andou impuseram, para depois defrontar-se com a realidade dos que têm outras prioridades mexeu demais com Rodrigo. E ele voltaria então para casa, agora com 25 anos.

O filho pródigo voltava, mas não acharia em seu pretenso lar o que o mundo já tinha lhe dado. E como ele mesmo diz “a rua é um vício”. Como o maior dos viciados não poderia pa-rar. Três meses de abstinência o fa-riam criar asas novamente. Seu voo o trouxe para Florianópolis, onde está agora. Mas não por muito tempo, ga-rante.

Sobre como é viver nesta casa sem paredes, Rodrigo conta por fragmentos e usa frases que na cabeça do ouvinte atento formam lições:

“Aprendi a viver na rua”, “Na rua não se confia em ninguém”, “Aprendi a não ter regras”, “Escolhi conhecer o mundo, conhecer a vida”.

Conhecer a vida é realmente o sentido da flanêrie, e com Rodrigo se pode ir além. Com quem mais se poderia sentir na pele o clima misto de gratidão e desconfiança que vem nas gotas de chuva que molham os que ganham um prato de comida ao lado do Hemosc, ao anoitecer, sob a promessa de ganhar também um teto a poucos metros dali? Nin-guém do grupo de aproximadamen-te 20 pessoas parece se empolgar. Os iniciantes da arte da moradia passageira se excitam e os mais ex-perientes ficam mais perto da saída, mas por quê? Rodrigo contaria que

os que vão para este lar que surge fácil, seriam pela manhã forçados a irem embora da cidade, sem di-reito à justificativa. Da casa que os acolheu, só sairiam para outra cidade. Florianópolis não mais seria seu lar.

Viver há mais de dez anos na rua, nunca ter tido pro-blemas com polícia e ser respeitado somente pelo que é, torna Rodrigo um homem realizado, mas não feliz. Não há como ser totalmente feliz mo-rando nas ruas, garante ele. A idade vem pesando e vem chegando a hora de parar, de voltar para casa, de vencer o vício das ruas. Assim será com Rodrigo, assim é com todos que têm um lugar para voltar. A rua é um lar provisório, de falsa li-berdade e aprendizado e de vida, própria.

E por ser viva, certamente a ci-dade chora quando vem chegando a hora dessas estrelas marginais perde-rem o brilho e talvez, somente talvez, em um certo período da vida chova tanto. E a vida comece a se arrastar nos pingos de chuva nas folhagens novamente, aguardando mais algum ouvinte se surpreender.

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Também sou rua!

O ator virou persona-gem. Foi o que mais me marcou na história de João Antônio, jorna-lista, escritor e mestre

na área da flanêrie, que consiste em descrever o que a rua lhe traz, as his-

tórias que se tem que rein-ventar o olhar para ver. Li

as obras desse mestre e me preparei para sair às ruas e

repetir a sua mesma aventura em direção ao outro.

Inspirado em suas obras, principalmente em Casa de

Loucos, procurei deixar a rua me contar suas histórias. Agora,

junto de João Antônio, reproduzo abaixo, um pouco do que vi e ouvi:

À primeira vista, a rua é crua. Não consigo achar outro adjetivo que a descreva melhor. Crua como a realidade, talvez até gelada (a chuva que caiu durante toda minha aventura complementou este senti-mento), mas decididamente crua. Olhando melhor, percebe-se que a rua continua crua, mas os que fa-zem dela seu lar já não estão mais. Cansados de pagar o preço que a rua cobra pela aparente liberdade, mas com o humor do brasileiro e do abrasileirado, esses habitantes

do relento ensinam: “Não se pode confiar em

ninguém na rua” / “Viver na rua te ensina tudo” / “Na rua se aprende a viver de verdade”

/ “Aprendi a não ter regras” / “Escolhi conhecer o mundo, co-

nhecer a vida”.Quando nos dispomos a

ouvir a rua, escutamos a cidade sem filtros. Ha-

“Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”

bitantes memoráveis como Cabelo, morador de rua que jurou vingan-ça caso sua foto fosse publicada em algum lugar. Rodrigo, que tem casa, mas prefere o teto de estrelas. Mar-celo Augusto, o menino de 19 anos que jura ser bandido, mas tem medo de pessoas, tem em comum um sen-timento: a união de amor e ódio por sua atual residência, a rua.

As ruas a que me refiro não são apenas aquelas em que revi com ou-tro olhar, mas as ruas de todo Brasil. Seja em Florianópolis ou na capital

fluminense, o que levamos da rua são os ensinamentos que ela nos traz, como mostra João Antônio:

“Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os botequins, universidade. Algumas frases apa-nhadas lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, como aparen-tes tipos-a-esmo:

“Está ruim pra malandro” - o ad-vérbio até está oculto.

“Quem tem olho grande não en-tra na China”.

“A galinha come é com o bico no chão”.

“Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte”.

“Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”•

“Não leve uma raposa a um gali-nheiro”.

“Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro”.

“Há duas coisas em que não se pode confiar. Quando alguém diz ‘deixe co-migo’ ou ‘este cachorro não morde’.

“Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque”.

“Da fruta de que você gosta eu como até o caroço”.

“A vida é do contra: você vai e ela fica”.

No fim da aventura, percebi que eu mudara, mas a rua não. A rua continua crua e eu voltei com lições. Ouvir a rua é uma delas. Ouvir seus personagens é outra. Ao ouvir o personagem o escritor se une a ele, ambos se arrebatam e quando isso acontece não tem volta. Foi assim comigo, foi assim com João Antônio que se tornou o personagem esque-cido sobre o qual ele tanto escreveu.

João Antônio, Jornalista e escritor da vida boêmia carioca

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sua coleção de camisetas de rock.À medida que falava de sua vida

duríssima com inesperada ternura, mais aguçava minha curiosidade, a ponto de pedir-lhe para que me con-tasse a sua história do princípio ao fim. Seu sofrimento começou com a morte do pai, ainda quando criança. A mãe, que nunca lhe deu um abraço, casou-se de novo. Era espancado to-dos os dias pelo padrasto com o con-sentimento dela. “Ela é minha mãe só no documento”, dispara. Ainda assim, seu padrasto lhe deu a única família

que conhece, sua irmã Joice.Éder esteve no mundo do

crack durante 17 anos. Traba-lhava de dia e usava de noite. O que recebia era usado para sustentar o vício. Muitas vezes chegava o final de semana sem ter o que comer. Durante 12 anos so-freu incontáveis internações, sem-pre lutando contra as recaídas. No momento mais obscuro dessa fase, chegou a pedir a Deus para morrer. “Só eu e Ele sabemos o que aconteceu naquele apartamento”, relembra.

O missionário das ruas

Avistei-o sentado em um can-to, quieto e sério, logo que cheguei à ágora da Praça XV. Vestia uma ca-miseta preta de banda de rock e um boné de Bob Marley. Seus olhos azuis cristalinos, pareciam esconder emo-ções misteriosas. Logo descobri que era um silêncio de muitos tormentos. Na conversa descontraída do primei-ro encontro, comentou que seu maior sonho era ser escritor. O nome desse homem de 37 anos que veio de Caxias do Sul é Éder, ou simplesmente Cavei-ra, conhecido assim pelas estampas de

Éder contando sua história de superação e fé com um brilho no olhar

Crédito: Tiago Bento

Por Natalia Santos de Pinho

Um homem de personalidade forte e sem máscaras. Uma história emocionante de luta e superação

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Deus não lhe deu a morte, e por isso pediu com mais força ainda que Ele des-se um sentido para a sua vida.

“Pedi para Ele me mostrar o porquê de tanto sofrimento na minha vida

se eu sei que sou do bem. Então, por que eu sempre recebi tudo

de tão ruim?” Naquele dia questionou a existência de Deus, pediu para que Ele provasse sua existência livrando-o do vício. Des-

de o dia 6 de janeiro deste ano, afirma que nunca mais

usou o crack. Quando ten-tava fumar passava mal com

a fumaça, então decidiu que não precisava mais da droga.

Hoje reconhece que não é mais escravo do vício.

Acredita que a missão que Deus lhe deu é a de missionário. Seu destino é levar a palavra di-

vina para quem estiver disposto a ouvi-la, do seu jeito, sem igrejas e

sem religiões. Esse caminho começou a ser trilhado pelas ruas de Florianó-polis. Um ex-viciado, que consumia crack enquanto tinha casa, deixou o vício para cumprir sua missão na rua.

Apesar de não ter tido uma famí-lia como a maioria, valoriza ao máxi-mo essa instituição e está à procura da sua. Pelo caminho encontrou al-

Quando se ouve o invisível“Cada um daqui veio de um

lugar diferente, mas construímos uma família e ninguém sabe dis-

so”, diz G, morador da rua. No dia marcado para a primeira flânerie

no Centro de Florianópolis, a chuva, que já durava semanas, resolveu dar uma trégua. Na

hora e local combinados está-vamos todos reunidos nas esca-

darias da Catedral, visivelmente ansiosos e apreensivos. Al-

guns sentiam até medo do que encontrariam logo em frente, na ágora da

Praça XV. Não demorou muito para encontrarmos os moradores do lugar e aos poucos fomos nos aproximan-do. Tínhamos como objetivo conhe-cer as histórias dos moradores e dar voz ao invisível.

Fui surpreendida com o conhe-cimento que os moradores tinham para compartilhar. A experiência que as ruas proporcionam parece instigar a capacidade de superação e a fé em momentos difíceis. De al-guma forma esses habitantes do re-lento nos deram essa lição. Apesar de algumas dificuldades nos dias

seguintes, como a chuva constante, os desencontros e algumas tensões entre os colegas, a flânerie fez com que enfrentássemos o medo e outras barreiras do preconceito. Ouvimos dessas pessoas histórias tão incríveis que parecem ficção, o que tornou a experiência surpreendente e única. A flânerie nos trouxe a oportunida-de de conhecermos a nós mesmos e aos nossos colegas, que ao longo dos três dias tornaram-se verdadeira-mente amigos. Juntos vivemos expe-riências e momentos que levaremos por toda a vida.

guns amores. Foi casado duas vezes. Seu primeiro casamento durou cinco anos, “Eu achava que tinha aprendido a amar, que sabia o que era o amor”, conta. Sua família, racista segundo ele, não aceitava a esposa negra, o que foi deixando a situação cada vez mais complicada.A segunda esposa era to-talmente o oposto dele. “Foi à primeira vista. O sorriso e o olhar dela naquele dia, eu nunca mais vou esquecer”, lem-

“O sorriso e o olhar dela naquele dia, eu nunca mais vou esquecer”bra com um olhar que vaga nas lem-branças distantes e com um sorriso nos lábios. “Ela me ensinou o significado da palavra amor”. O romance acabou cedo e da forma mais cruel: ela foi as-sassinada grávida de seu primeiro filho. Ele estava com os olhos já rasos d’água, e pensei duas vezes antes de perguntar o motivo. Não me arrependo de ter op-tado pelo silêncio.

Mesmo nas dificuldades Éder ten-

ta ver o lado bom. Sua fé em Deus faz com que acredite haver um motivo e um significado muito fortes para o destino ter trilhado esse desvio. En-controu uma pessoa de uma igreja que fez com que enxergasse que ain-da havia possibilidades brilhantes em sua vida. “Entender não entendo, mas aceitar sou obrigado. Ele vai me dar a resposta na hora certa”, declarou, apontando para o céu.

Apesar das dificuldades que pas-sou, Éder não perde as esperanças e tenta sempre enxergar o lado bom da vida. As lágrimas ofuscavam-me a vi-são quando me contou que seu maior sonho, assim como o meu, é ser escri-tor. Carrega na mochila vários frag-mentos do livro que está escrevendo, manuscritos em folhas de papel higi-ênico. O primeiro, afirma, será uma autobiografia. Quer ser aquele escritor que escreve sobre tudo, sobre a vida como ela é.

Quando perguntei qual o dia mais feliz de sua vida, surpreendeu-me com a resposta: “Ninguém é um dia inteiro feliz, felicidade são momentos”. Re-formulei então a pergunta e desta vez respondeu-me que o momento mais marcante foi quando sua irmã Joice lhe pediu para ser padrinho de seu primeio filho, Axel. Esse convite o fez querer mudar e ser melhor.

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Na lama dos acontecimentos

A jornalista brasileira Eliane Brum tem um jeito diferente de escrever. Ela é repórter de verdade e não faz per-guntas que induzam a resposta. Gosta mesmo é de ser surpreendida e acredita que a reportagem se desenrola melhor assim, fluindo naturalmente. “Eu sem-pre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a res-posta”, conta ela em O Olho da Rua.

O livro traz making of ’s no final de cada reportagem, que foram muito significativos para mim. Neles mos-tra como é difícil adaptar-se a deter-minadas situações tão diferentes das habituais, fala sobre as inseguranças que teve, mesmo sendo uma jornalis-ta há muito tempo. Essa franqueza de repórter me deu uma certa coragem durante a flânerie: Eliane me ensinou que sentir dúvidas e apreensões é per-feitamente normal nessa profissão.

Suas reportagens enfocam os perso-

nagens da vida real, seu modo de falar e seu conhecimento, valorizando os mais velhos e experientes. Sem preconceitos. É detalhista, mergulha no cenário da vida real, onde está acontecendo o mundo enquanto escrevo este texto. Assim como Eliane, tentei por meio da escrita do meu perfil dar voz ao meu personagem, fazen-do com que ele fosse realmente o prota- A jornalista Eliane Brum acredita que, nas ruas do mundo, o grande desa-

fio é olhar para ver.

“Eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta”

gonista de sua história. Nessa vivência com os moradores

de rua, tentei seguir a linha de Elia-ne como repórter. Tive um primeiro contato descontraído, conversei com meu entrevistado, falamos sobre as-suntos variados para que ele pudesse ficar mais à vontade comigo. Na con-versa conhecemos um ao outro.

Os moradores de rua são povos assim como os que Eliane retrata em

seu livro. Ela me mostrou que como repórter atravessa a rua de si mesma para en-contrar o outro, se pre-ciso for, senta ao seu lado para conversar olho no olho. Eliane é a repórter que tira os sapatos para literal-mente colocar os pés na lama.

Page 42: A Florianópolis dos Esquecidos

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Após envolver-se com as drogas, co-meçou a criar uma situação insus-tentável com a família. “Vim para as ruas porque não suportava mais ver o sofrimento que tava trazendo pra minha família”.

Foi flanando pelas ruas que co-nheci seu Ismael, um senhor muito carismático e sorridente. As marcas no rosto trazem à tona tudo o que ele passou. Há mais ou menos seis meses começou a dormir nas ruas por con-ta de uma traição do “amor da sua vida”. Traído, ficou sem chão, divor-ciou-se, deixou a casa para a mulher,

com quem teve cinco filhos, e foi mo-rar com a mãe. Nunca mais a viu, mas ainda tem o sonho de que ela volte a amá-lo.

Ao falar da ex-mulher, o largo sorriso dá lugar a olhos inundados de tristeza. Mas o tom muda e o sorriso volta quando o assunto são os amigos que encontrou nas ruas, amigos que, segundo ele, o tiraram do buraco. “Hoje durmo na rua por-que me sinto bem aqui, meus amigos me ajudam muito. Aqui me esqueço de tudo, o tempo passa mais rápido”. Mesmo com a opção de dormir na

A riqueza de quem não tem dinheiro

A rua é um livro se-creto. É preciso atenção para perceber as páginas

com histórias que nunca foram lidas. Nas ruas se en-tende porque só os anôni-

mos têm o que dizer. A pala-vra cabe aos humildes. “Nasci

pelado e hoje tô vestido; então não tenho do que reclamar”,

sentencia Elizandro Azevedo, conhecido pelos amigos como

“Percival”. Vindo do estado vi-zinho, o Rio Grande do Sul, hoje ele se encontra em situação de rua.

Crédito: Tiago Bento

“Vim para as ruas porque não suportava mais ver o sofrimento que tava trazendo pra minha família”, desabafa Seu Ismael

Por Tiago Bento

Seu Ismael (E) diz que sua família, hoje, são amigos que fez na rua

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Derrubar os véus

Era chegada a hora. Após um dia inteiro de muita chuva, pairava sobre nós a incerteza de que fosse de fato acontecer a nossa flânerie. Minu-tos antes da hora marcada chegou a confirmação. O ponto de encontro seria a Catedral. Pessoas feito for-migas andavam de um lado para o outro de uma maneira robótica. E lá estávamos nós, ansiosos para nossa viagem ao outro lado da cidade, o lado de dentro, o lado de quem vive às margens, mas que está no dia a dia ao nosso lado. Conhecemos pessoas famintas, umas de atenção, outras de pão. Havia ainda aquelas que pareciam já estar acostumadas

à invisibilidade, mas angustiadas para ter suas vozes ouvidas e suas histórias contadas.

Eu já tinha em mente o que faria como audiovisual. Com a câmera a postos, comecei a registrar tudo que julgasse válido. Aí começou meu pro-blema: tudo tinha uma relevância para meu projeto, e sabia como ia ser difí-cil depois na edição com tanto tempo de gravação. Além do vídeo, também precisava desenvolver o material escri-to. Deixei essas preocupações de lado para ficar atento a tudo que se passava. Sabia que minha pauta iria aparecer. Então comecei a ajudar alguns amigos gravando entrevistas e fotografando.

Foi uma experiência maravilhosa em que tive a oportunidade de ajudar e, além disso, conhecer as histórias de alguns habitantes das ruas.

Ao longo dos outros dois dias, com o projeto do meu audiovisual mais maduro, pus-me a captar ima-gens que estavam faltando. Andei pelas ruas, mas como é diferente andar por andar e andar para ver, me dei conta de coisas que passam despercebidas e de quantas possibi-lidades de narrativas são ignoradas. De uma coisa eu sei, depois desta ex-periência vai ser difícil vestir nova-mente os óculos dos ignorantes, aqueles que nada veem.

casa da mãe, ele ainda assim prefere as ruas.

Para muita gente sem a ajuda de instituições ou programas do governo, a rua serve de alento. Conhecido como “Chinelo”, Robson conta que largou o crack há dois anos. “A rua funcionou como um retiro espiritual pra mim; deixei as coisas ruins para trás e hoje não faço mais ninguém sofrer”.

Crédito: Tiago Bento

As lamparinas, ao longo do tempo, iluminam a Praça XV

Viver nas ruas é viver num mundo invisível, que na maioria das vezes é vis-to com preconceito. Cada um tem uma história, um motivo, ou dezenas deles para preferir viver nas ruas. Confron-tar-se com essa realidade não é nada fácil, olhar para fora é olhar para den-tro, é perceber que somos todos iguais dentro das nossas particularidades. O medo talvez venha do fato de saber-

mos, intuitivamente, que também es-tamos expostos às armadilhas da vida. O morador de rua não tem um teto. Em seu lugar, tem paredes que o cer-cam de preconceitos, e cimento nos ouvidos de quem os ignora. Nessa sociedade com teto de vidro, ati-ram-se palavras feito pedras, mantendo o ciclo robotizado da ignorância.

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Pessoas do dia nas cidades escuras

A vida de uma varredora das ruas e as histórias dos muitos centros da cidade

Por Vitória Zardo

Nos terminais de ônibus, corredores largos e apressados de guarda-chuvas se movimen-

tam freneticamente. Olhares baixos e sem vontade de reparar

onde se está indo. No fim da tar-de, enquanto as lojas fecham suas entradas e as pessoas procuram

seus caminhos para casa, o centro tumultuado da cidade se transforma

completamente em outro cenário de vida. Um ambiente novo, desconhecido e estranhamente reparado, por quem raramente esperou a noite cair até en-xergá-lo. As principais ruas do centro da cidade que sempre ficam aglome-radas de pessoas vendendo, cantando, gritando, pedindo, estão agora vazias com janelas e portas fechadas. Sacos de lixo espalhadas pelos cantos dos cami-nho. Logo, alguns homens montados no caminhão de limpeza vem para recolher das esquinas os últimos sinais do dia. É o único som a quebrar o si-lêncio das rus noturnas.

Antes do anoitecer, seu Vilmar às vezes se programa para dar uma

relaxada ao lado do Mercado Pú-blico, se diverte ao dar pedaços e migalhas de pão para os pombos que vêm de todos os lugares. A

disputa por espaço e alimento causa certa implicância entre as aves. Mas

Vilmar adora vê-las ao seu re-dor; ele sorri, ri e solta algumas

gargalhadas dependendo do que fazem. Não muito longe de onde ele se senta,

as barracas da feira começam a se fechar e a desmontar as estruturas. Alguns carros se aproximam, as caixas se empilham e as poucas sobras são guardadas. Em pouco tempo, o movimento acaba, e o espaço se torna um amplo pátio vazio.

As luzes amareladas e bem dispos-tas nos contornos do Mercado e da Alfândega se acendem quando a pe-numbra cai. O ar esfria e os pombos somem. Alguns poucos restaurantes abrem chamando clientes no meio do silêncio. Os terminais diminuem dras-ticamente o seu fluxo, e a pressa de ir embora de algumas pessoas faz com que uma ou outra corra para pegar o último ônibus que vai direto pra casa.

O chão brilhante de chuva faz com que as pessoas desviem com cautela cada grande poça pelo caminho. Al-guns escorregam, outros se sujam, mais alguns se divertem com botas de borracha. Outros poucos, sem nem mesmo se importar com elas, passam de chinelo pelos trechos empoçados. Reparam na reação de quem os notou com espanto, e continuam andando.

Enquanto isso, na praça maior que representa um dos corações da cidade com a sua mais que imponente figueira, as luzes também se acendem aos poucos. Começam a aparecer alguns moradores que vivem por ali mesmo, que chamam a cidade como um todo, de casa. Eles se reúnem, conversam, trocam comida e objetos, gritam baixinho, se abraçam.

Mais tarde, dois homens bem vesti-dos, se reúnem em torno de uma mesa

de onde passam a distribuir sanduíches e cafés para os moradores que se apro-ximam. E vários deles se aglomeram em volta. Um dos homens prega um sermão e canta uma música, enquan-to a maioria mais se dedica a matar a fome, que parece nunca ter saciedade.

Uma mulher morena, com cerca de 30 anos, resmunga baixinho. Quer ir para casa, mas seu marido está do outro lado da praça, resolvendo um problema. Ao mesmo tempo que sente urgência de ir embora, ela canta junto as músicas do homem que distribui os lanches. E exclama: “Essa é muito lin-da!”. Desde julho ela estava morando em Florianópolis e vivera as primeiras semanas na rua, na mesma situação em que agora via os homens comen-do os sanduíches doados. Nascida em Pernambuco, ela é sem dúvida uma mulher que vive e trabalha para po-der viajar. Já conhece quase todos os continentes, e se orgulha em dizer que ainda não pretende deixar de ir a no-vos lugares com seu marido.

A noite também dá início a mais um dia de trabalho de uma mulher quem vem de longe fazer o seu serviço diário ao lado da praça. Antes mesmo do fim da tarde, ela já está pronta e arrumada. Pega seu ônibus em Paulo Lopes e che-ga ao centro de Florianópolis perto das 18h. São aproximadamente 60 km de distância de sua casa, onde mora hoje apenas na companhia de um gato e um cachorro que não tinham dono. Seu tra-balho é fazer a limpeza, manter o cui-

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dado e receber um real de cada moça que precisar utilizar o banheiro público feminino. Ela trabalha no turno da noi-te e retorna após às 22h, mas só chega em casa depois da meia noite. Percorre mais de 100 km diários para cuidar do banheiro no centro da capital e receber o suficiente para dizer que vive feliz e bem satisfeita com o que faz

No ano que vem, Sueli Neira Pedro, pretende festejar os 60 anos com os ami-gos do centro, de Paulo Lopes, da Serra, e de outros lugares também. Lembra-se de cada um com muitos sorrisos e gar-galhadas. Ao se tornar funcionária da Companhia de Melhoramento da Ca-pital (COMCAP) no início da década de 80a sua vida mudou completamente, segundo ela. Um trabalho melhor, uma rotina feliz, companheiros amigos, che-fes gentis e mais oportunidades em di-versos setores. Sente muito orgulho de fazer parte desse conjunto.

– Só parei de passar fome depois que entrei na empresa.

Durante vinte anos, ela varreu as ruas do centro da cidade, incluindo as praças, escadarias. Antes disso, seu trabalho era varrer a antiga rodoviá-ria na rua Mauro Ramos, até deixar de

ser terminal de ônibus e ganhar uma sede nova no aterro da Baía Sul, em 1981, com o nome de Rita Maria. Seu lugar de trabalho fixo tornou-se então a parte mais central de Florianópolis, entre o Mercado Público, a Praça XV, o Teatro Alvares de Carvalho, etc.. Ela percebia as pequenas curiosidades do dia a dia e as transformações da cida-de com o passar do tempo. Velhos na praça a esperar o dia acabar, pessoas apressadas que nem ouviam o sino da catedral, artesãos sentados no ban-co à espera de admiradores, cantores vendendo sua música nas esquinas das ruas. Múltiplas histórias, cenas paralelas atravessavam as interminá-veis horas diárias que permanecia no local. A Sueli que varria as ruas, reti-rando as folhaS secas, o lixo deixado pra trás e as sujeiras do vento, era uma pessoa das mais queridas da região, conta ela.

Depois de se despedir da cidade onde nasceu na parte serrana do esta-do, onde trabalhava plantando fumo, escolheu a capital para morar com o marido e os três filhos. Depois de um curto período nasceram mais duas filhas, e sua família cresceu em tama-

nho e alegria, exigindo mais es-paço e mais trabalho. Na década de 90, nasceram duas netas, e ela ficou ainda mais radiante. Amigos, família, vizinhos, faziam parte da alegria de ser varredora das ruas, o que para uns poderia ser motivo de vergonha. “Sempre fui mais feliz do que poderia”.

No início do ano 2000, separou-se do marido que veio a falecer um ano depois. Já morando sozinha em Paulo Lopes, seu amigo do trabalho e vizinho assumiu o posto de compa-nheiro e fiel confidente de Dona Sue-li. Transformaram a antiga amizade em um namoro moderno, onde cada um faz questão de permanecer em sua própria casa. Ainda hoje ela se gosta de recontar suas histórias, que ficam melhores na memória do que em fotos, na sua opinião.

Nos últimos cinco anos, pas-sou a exercer o trabalho no ba-nheiro feminino. Ter um espaço definido para cuidar significa um pouco menos de exigência físi-ca. Todas as noites ela se sen-ta na cadeirinha ao lado da porta do banheiro, que

Crédito: Vitória ZardoDe cima da praça vê-se a catedral de frente para a cidade

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fica exatamente de frente para a Praça XV, onde permanece até às 21h, hora de fazer a limpeza. Seu chefe passa dia-riamente e recebe um bocado pesado

de moedas. Depois de tudo, tarde da noite, ela retorna para casa.

O tempo passa mais rápido quando amigos e conheci-

dos aparecem e batem um papo demorado. Os mais próximos, aproveitam sua companhia para de-

sabafar e pedir conselhos. Conta que durante muito

tempo tinha que reservar um espaço na rotina para

conversar com uma mulher. Assim, simpática e fraternal,

dona Sueli foi criando víncu-los. Moradoras de rua apare-

cem com frequência, utilizam o banheiro sem poder oferecer um real, e perguntam-lhe, de

vez em quando, o que fazer com determinada situação. Objetos

para vender, comida para arranjar, vícios para controlar; casos de con-versas inesperadas com a “mulher do banheiro”.

Apareceu uma vez um mulher carregada de bijuterias, os cabelos secos, as unhas sujas, uma bolça va-zia e um cigarro na mão. Ela falava com pressa e só olhava pra baixo. Tremendo um pouco os braços e ajeitando a roupa, pegou um anel

do bolso e perguntou: “É prata, né? Deve ser, né, é igualzinho. É prata. A senhora quer comprar? Faço um preço camarada. É prata, minha se-nhora! ”. E antes mesmo que dona Sueli dissesse algo, sua feição negou a proposta, e a mulher, inquieta, saiu apressada como chegou, com o cigar-ro na mão.

- Agora há pouco eu tava com o rádio ligado, veio uma da rua e toca-va uma música no rádio. Ela adorou a música, eu comecei a conversar uma coisinha, mas ela tava tão assim “deixa eu curtir!”. Um copo de bebida na mão... Eu peguei o radinho daqui com a minha gentileza, que tava na gaveta, e botei perto pra ela escutar melhor.”

Ela conta também as histórias de antigos pedintes que se vangloriavam de não precisar trabalhar. Ganhavam mais moedas dos passantes da praça do que com empregos de um salário e encargos. Alguns outros que nem por isso pediam, arranjavam melho-res roupas e sapatos confortáveis com a maior facilidade. Hoje, ela acredi-ta que grande parte das pessoas em situação de rua, sem casa, família, amparo, são levadas por sua própria história, a escolher esse caminho na tentativa de serem mais felizes.

-Agora, eu queria entender o ser humano. Como eu vejo muitas pesso-as, todo ano elas fazem uma coisa na

casa. Uma comadre minha mesmo, que tem uma mansão, sabe, ela vive em função a vida inteira daquela casa pra construir. E aqueles da rua não constroem nada. E se eles falassem sinceramente e as outras pessoas fa-lassem também, talvez a gente da rua que nunca teve nada na vida tá mais feliz do que aquele que construiu, tem casa, carro e ficou sem nada.

Apesar das histórias mais compli-cadas que viveu quando era mais jo-vem, não conhecia Florianópolis, não trabalhava no que gostava e não tinha grandes amigos com boas conversas, ela se satisfaz hoje, com pequenos momentos do dia e viajando de uma cidade para outra a fim trabalhar no que lhe faz bem. Encontrar, reencon-trar, receber, indicar, ver, abraçar.

O flâneur que caminha e observa os detalhes, os lugares e as pessoas, conseguindo lhes dar um flagrante de atenção, percebe as situações in-visibilizadas pela maioria. Sente o distanciamento que as pessoas cau-sam nelas mesmas, achando estranho tudo aquilo que não lhes é familiar. O estranho é repudiado e afastado do olhar das multidões. E por não atravessar a rua, o muro invisível que separa o visto do não visto, as pes-soas perdem grandes oportunidades de conhecer mais, e aprender muito mais com as ruas e as pessoas da ci-dade.

Obsevacões nas noites do centro

Em nossa vivência no centro da cidade, como o observador das pessoas, do lugar, das histó-rias e da noite, o resultado final

do trabalho foi admiravelmente bonito. Fiquei mais inspirada ao me dar mais conta de pessoas

com histórias envolventes e situações inesperadas!. Só

indo, vendo e perceben-

do o que achávamos ser, é que no-tamos a realidade de nossas ideias. No decorrer do trabalho, a con-fiança nas aproximações com as pessoas gerou ainda mais coragem de fazer, ver e ouvir mais.

Encontrarmos mais pessoas e histórias, perdendo aos poucos, o receio de que algo ruim pudesse acontecer.

Gerar confiança, criar um mínimo de intimidade e bater um papo com pessoas que estão, por um lado, aliviadas de contar o que sabem ou que sentem que precisam falar para ter um sen-timento de realização especial, bastando parar para ouvi-las. Foram momentos únicos para lembrar mais tarde sempre.

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Nas multidões, encontra-se o homem

Ver uma pessoa caminhar pelas ruas de uma cidade, sem pressa e compro-misso, sem nada que a impeça de apenas andar com tranquilidade e paciência, faz com que os pequenos detalhes que passam diariamente desapercebidos tor-nem-se grandes eventos de curiosidade. Ao reparar no anonimato, as situações ganham a luz de quem vê o mundo pela primeira vez. Há muitos homens nas ruas que vivem e andam em multidões sem pausa de respiro e sensibilidade. Sem coragem de olhar para a direita ou para esquerda e correr os risco de ver ou-tras pessoas do lado

Há dois séculos, em pleno desenvol-vimento das futuras e prósperas cidades do mundo, a modernização da industria-lização ditou novas configurações sociais e provocou mudanças nos padrões de comportamento e convívio humano. O observador flâneur se efetua com esse andamento da sociedade do século XIX, quando o narrador começa enxergar a sua volta as riquezas desapercebidas e os gestos ocultos nas cidades.

Edgar Allan Poe escreveu um conto ambientado em Londres, sobre o homem que está na multidão para suprir e aca-lentar sua solidão em meio a outras so-lidões perdidas na metrópole. O homem da multidão fala do isolamento de um velho perdido num aglomerado de pes-soas, em busca de algum entendimento para compreender a sua própria solidão. É como se encontrasse um asilo em meio ao fluxo das multidões que seguem cega-mente suas rotas sem perceber as pesso-as, lugares, histórias, detalhes à volta.

Ainda nessa época, Charles Baude-laire enfatizou os homens anônimos das multidões, que vivem, percebem, flanam e buscam compreender a solidão que mora às sombras. No século XXI, os ho-mens ainda desempenham as histórias das massas e grandes fluxos ininterrup-tos de gente, que não encontram respos-tas nem compreensões para o que está a sua volta.

Nas praças e nos bancos das ruas, há gente que vive sem ao menos um assento macio para descansar. Usam roupas ve-

lhas e têm um comportamento particular que impressiona os demais. O medo generaliza-do de se aproximar dessas pessoas gera o grande muro que divide o desconhecido do outro e carrega consigo a rejeição e os preconceitos que caracterizam o distancia-mento social. Tudo que foge do modelo de civilidade torna-se um incômodo que seria melhor descartado para não precisar ser encarado. Talvez o medo domine qualquer impulso ou tentativa para fazer unir as pessoas com sua ple-nitude de multidão. Unir pessoas com pessoas, histórias com histórias de igual valor e interesse. À medida que as pessoas de redescobrem como multi-dão nas ruas, diante daqueles que têm a rua como casa, a liberdade e o conheci-mento atingem altos níveis de amorosi-dade, união, cumplicidade... Basta virar para os lados a nossa volta e ver o que sempre esteve onde esteve.

Crédito: Vitória ZardoAs esquinas perdidas do centro da cidade

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amor. Acha que o governo e a socie-dade acomodam os moradores de rua, dando comida e roupa, levando-os à acomodação.

“Eles não têm aquele sonho, um de-sejo, eles não têm amor nem por eles mesmos”, opina Marcelo sobre os co-legas da rua. Indignado, critica a ação de ONG’s e igrejas que tentam, com um pedaço de pão e um copo de suco, manipular os moradores de rua. “Eles se aproveitam dos que não têm cabe-ça, pensando que podem influenciá-los com qualquer coisa. Depois usufruem dessa ação com o dízimo de cristãos, levando-os a acreditar que fazem mui-tas caridades”.

Marcelo diz que está na rua por op-ção, pois para ele a vida é uma ousadia e não precisa de muito para viver. Filho de pai e mãe abastados ou “patacudos”, já foi playboy e fumou todo tipo de dro-ga. Não se considera um exemplo para ninguém e ainda critica os ex-usuários de droga que aparecem como mode-lo para seus colegas. Diz que o pai de família, que fez faculdades e luta pelo sustento e pela educação de seus filhos, sim, merece ser admirado e copiado. Diariamente,

Marcelo vende filtros dos sonhos feitos por seu colega nos arredores do centro. Sonha em montar uma biblio-teca no Centro POP, mas sabe que en-frentaria muitos obstáculos por causa do desinteresse de seus colegas pela leitura.

Surpreendo-me mais uma vez ao conhecer duas mulheres mochileiras. Elas largaram a vaidade para se aven

De um lado a arrogân-cia de espírito, do outro

a liberdade e o desapego. Seja na esquina, embaixo

da ponte, na praça do bair-ro, pessoas com essa aparen-te contradição lutam para o

sustento da alma, sem apego e sem rumo. Elas estão sempre a nossa volta sem saber o que

farão nos próximos 20 minutos. E nem querem saber: deixam se

surpreender, à diferença dos que se submetem à realidade imediata e às regras da sociedade, onde a correria do dia a dia os limita a trabalhar para ter o sustento material.

Muitos de classe média escolhe-ram a rua para procurar conforto, como no caso de alguns moradores sem teto do Centro de Florianópolis. Eles passam a maior parte do seu dia no Centro de Referência Especiali-zado para População em Situação de Rua (POP) onde recebem café da manhã, almoço e café da tarde.

Conversando em um dos ban-cos da Praça XV com um morador

de rua que veio de Porto Alegre, Marcelo Damacena, 37 anos, classe média alta, considera morar na rua bom, pois não se paga luz, água e ainda a se

dispõe de comida, de bebida, de roupa e de fumo. Esse vício, aliás,

levou-o a se separar de uma mulher por quem ainda é

apaixonado. Apesar disso, não conseguiu deixar a maconha diária por

Por Jéssica Daussen

Com uma mochila nas costas e o artesanato como profissão, eles escolhem morar nas ruas como opção de vida

A metarmorfose ambulante das ruas

Artesanatos feito por Marcio.

Crédito: Tiago Bento

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turar pelo mundo e não sonham com uma casa no lugar mais badalado da cidade ou com um carro moderno e aconchegante.

Uma tem 52 anos e está há 12 via-jando. A outra tem 20 e está com todo o gás para começar a vida na estrada. Sentadas na Praça XV com os morado-res de rua, expressam suas emoções so-bre a vida e os valores que não encon-trariam trancadas em um escritório. Para se manter com o mínimo necessá-rio à sobrevivência, fazem artesanatos. Já viajaram por quase todo o Brasil pe-dindo carona e dormindo em barracas ou alojamentos e dizem estar se pro-gramando para partir em uma “turnê internacional”. Suas aventuras são uma forma de viver intensamente.

Pasma, observo a multidão cheia de fome correndo para pegar a sopa noturna, que é servida diariamente.

Pessoas que ali vivem realmente ne-cessitam de ajuda, mas me surpreendo novamente ao conhecer o olhar sobre a vida na rua de um artesão. Humilhado ao passar uma semana em um albergue chamado de Abrigo para indigentes de Florianópolis, ele depõe: “Minha mãe perguntou onde eu estava e tive que dar esse nome, você acredita? ”, diz Márcio, de 39 anos, que desde os 14 já tinha esse espírito aventureiro ao pegar sua mochila e passar dias na praia com os amigos.

Movido pela vontade de conhecer o mundo, saiu de casa aos 22 anos com um amigo também artesão, que o ensinou tudo que sabe fazer hoje. Já conheceu boa parte do Brasil e diz que Florianópolis é um dos melho-res lugares para morar na rua. Não se queixa do governo, pois, segundo ele, tem muitos amigos que estão na rua

porque querem, gostam e não conse-guem levar uma vida normal como a sociedade determina, mas se queixa do preconceito que sofre. “É humi-lhante. - A sociedade, às vezes, passa e olha a gente dormindo -embai-xo da marquise, com um pape-lão, sempre com preconceito. Não conhecem, acham que estamos ali jogados e que somos mendigos. Pen-sam que somos usuários de crack, que nossa fa-mília nos colocou na rua. Ninguém quer saber. ”, re-lata, triste. Márcio gosta de trabalhar e espera ansioso a chegada da alta temporada para vender seu artesanato na Lagoa da Conceição a fim de conseguir alugar um quarto para dormir e se alimentar bem.

O faro aflorado pela rua

Ao me preparar para dormir dia antes de nosso encontro com a rua, percebi que a ansiedade já aflorava em mim; com ela, a suposição de como seria esse momento me rondava, misturada com o turbilhão de conhecimentos, sensações e emoções despertados pelos seminários de artistas Flanêur apresentados por mim e meus colegas durante as aulas da professora Ra-quel Wandelli.

Quando o esperado dia, 22 de outubro de 2015, chegou, fomos até a Ágora da Praça XV. Chovia, e pude ver no olhar de todos meus colegas, tudo aquilo que pen-sei e senti durante a noite anterior. Come-çamos a nos sentir mais à vontade depois que as professoras Raquel, Cláudia e Vi-viane apresentaram nosso grupo aos mo-radores de rua, contando quem éramos e o que estávamos fazendo ali. Eliane Tava-res, jornalista que se dedica a contar his-tórias da rua, trouxe o sentimento puro de amor e deliberdade expresso em sua voz. Assim, seguimos nossos rumos à procura do nosso homem na multidão. Entrevistando Elizandro Azevedo para a produção audiovisual.

Crédito: Tiago Bento

Crédito: Tiago Bento

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Ao passar dos anos, Florianó-polis tem perdido seu aspecto

provinciano. Mudanças como a modernização do Merca-

do Público, a desativação da Ponte Hercílio Luz e o desenho urbano nos

levam a relembrar as his-tórias que Raul Caldas conta em seu livro “Oh

que delicia de ilha”. Raul é um escritor flanêur que

costumava perambular pela cidade de Florianópolis, de

botequim em botequim,entre a Praça XV, a rua Felipe Sch-

midt, o Mercado Público e a rua João Pinto, buscando os tí-picos personagens ilhéus.

No livro, Raul traz histórias passadas no Centro de Florianópo-

lis, tendo a cultura açoriana como pano de fundo, e contos sobre o so-taque e as características do manezi-nho ilhéu e urbano desde o ano de

1960. Histórias que partem da praça da cidade até os centros urbanos. “Co-mecei a coletar o material para o livro no começo dos anos 90, e a cidade já estava se modificando.Eu tinha a in-tenção de preservar pelo menos uns

Raul Caldas recebeu a aluna Jéssica e a professora Raquel para uma entrevista em sua casa.

40 anos anteriores, que foi o que vivi. A partir dos anos 70 deu uma virada, surgiram as pontes novas, abeira mar, a universidade. Esse lado pitoresco, provinciano, foi se extinguindo pouco

a pouco”,relata Raul.Com a nossa vivência, pude co-

nhecer melhor a história rica de nossa ilha, muito parecida com a es-crita por Raul. Senti e busquei com-preender a vastidão da alma do ou-

“A partir dos anos 70 deu uma vi-rada, surgiram as pontes novas, a beira mar, a universidade. Esse lado pitoresco, provinciano, foi se extinguindo pouco a pouco”

Relembrando histórias de Raul Caldas

tro, como um flanêur que persegue o desconhecido, a fim de se deixar surpreender pela pauta inesperada, fazendo a exultação do aconteci-mento de troca.

Crédito: Jéssica Daussen

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O advogado viajante

Um brinco discreto, porém brilho-so. Um orgulho autêntico de expressar a data de nascimento tatuada no pes-coço, 13 de novembro de 1977. Ad-vogado. Barman. Garçom. Porteiro. Taxista. Como preferir chamá-lo, ele atenderá. Escolha a profissão que for que ele irá desempenhá-la.

–Eu sou de Porto, néh, me criei ao redor do Gasômetro, e como todo gaú-cho, sou amante das águas do Guaíba.

É com um sorriso e uma conver-sa convincente que este homem conta sobre o amor, das épocas em que mais lhe agradava trabalhar como pedreiro apenas porque, apesar de o sol bater na pele o dia inteiro, ele conseguia ga-nhar seu sustento junto com a mulher amada. Ele se transformava em moto-queiro levando a esposa na garupa de seu “canhão”, a sua moto.

–As pessoas só amam, realmente, uma vez na vida; duas vezes é impossível, por-que se você se separar do seu verdadeiro amor, sempre levará consigo uma mágoa.

A frase poderia ser famosa se fosse retirada de alguma obra de Chico Xa-vier, das músicas de Gabriel Pensador ou de alguma reflexão mais profunda de Serginho Groisman, seus ídolos, porém, é apenas um verso da mente de mais um dos bilhões de apaixonados que existem nesse mundo. Após perder o grande amor da vida por conta do ciúme obsessivo, hoje ele usa de todo esse sentimento que transborda de seu coração para ajudar uma amiga a se livrar da brisa fria da noite, compar-tilhando 20 reais de sua mísera renda diária para ela dormir em um lugar um pouco melhor que os bancos da rua.

Penas leves de um filtro dos so-nhos e o horóscopo lhe dão a crença

de que está protegido dos males que este mundo pode lhe causar.

– Faz assim: coloca este filtro dos so-nhos em cima ou do lado da sua cama, que você dormirá como um anjo; todos os pesadelos ele irá desviar de você. Caso isso não aconteça, volta aqui e eu troco por um doce de leite condensado”.

“ As pessoas só amam uma vez na vida. ”

Filtros dos sonhos à parte, o pesadelo de cair no mundo das drogas se tornou real. Este amante do mundo já teve que ser internado quatro vezes para tentar se livrar de um vício, o álco-ol. Após separar-se de sua amada esposa, saiu da idolatrada cidade para vagar nas mais diversas ruas de diferentes municípios, em busca da ver-dadeira paz.

F o i d e s s e m o d o que ele veio parar na Ilha da Ma-gia. Deslum-brado com seus en-cantos, re-solveu montar seu pequeno abrigo em um lugar por ele considerado muito mais

que privilegiado, às margens da Ponte Hercílio luz. Passa os dias vagando de praia em praia vendendo artesanato, ou, então, rondando o cen-tro de Florianópolis, indo da rodoviária à praça XV, da ca-tedral aos becos mais escuros, mas sempre para “pra tomar um cafezinho e fumar um cigarrinho ao lado da figueira, néh”. Convidou todos seus amigos para sua festa de aniversário que vai ser embaixo da ponte, “só precisa levar morango, leite condensado e vodca”, para ele fazer drinks e lembrar da época em que era barman. Este é Marcelo Da-masceno, até o momento, um viajante

que parou alguns dias nas ruas de

Florianó-polis.

O peregrino que busca em Florianópolis sua verdadeira felicidade

Por Bruna Tomaselli

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O encanto da rua Toda a galera estava sentada

na escadaria da catedral de Florianópolis. Éramos uns trinta alunos. Não sabíamos se olhávamos o céu, que naquele dia, exatamente,

deu um show e se exibia com suas cores, ou se cuidáva-

mos as pessoas caminhando, porque, afinal, a galera estava

lá para ser percebida, ou mel-hor, para perceber. Foi assim até que toda a turma

se reuniu e seguiu em direção ao centro da praça XV, para começar

a tal da vivência. Havia rostos assustados, porque estávamos no

centro da cidade à noite. Era um tanto quanto perigoso. Porém, o

que mais queríamos era viver esse perigo e descobrir o que a praça XV, o centro, a cidade, mais precisamente, nos contaria. E foi desse modo que embalamos a conversa com as pes-soas que estavam por lá, os morador-

Através a música na Praça XV, o artis-ta ganha sua vida.

Os brilhosos raios de sol que embalam o dia na Praça XV.

es e até alguns apaixonados daquele local. A chuva começava a cair.Toda a vivência teve apenas um único problema. A gente pensava que o pessoal que nos “receberia” lá, não ia querer conversar por livre e espontânea vontade; foi aí que nos enganamos. Bastaram poucas palavras para os mais extrovertidos compartilharem seus pensamentos e até alguns sentimentos com nosso grupo. Quando vimos, havia colegas aprendendo a fazer malabarismo em meio a nuvens de fumaça de cigarro e outros conversavam até em espanhol para ver se con-seguiam uma história a mais. Foi no meio de nuvens de fumaça que con-seguimos as melhores histórias para contar das mais diversas formas. Foi em baixo de de chuva que conhec-emos pessoas encharcadas de amor. Foi nessa vivência que percebemos pessoas e lugares impercebíveis.

Crédito: Bruna Tomaselli

Crédito: Bruna Tomaselli

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Eliane Brum e seu estilo único e surpreendente de escrever. Em seu livro “A vida que ninguém vê” que conta 21 de suas mel-hores histórias já feitas. São fatos tão simples vividos por pessoas tão comuns que jamais virariam uma pauta jornalística, e somente alguém com coragem foi capaz de transformar essas maravilhosas “notícias” em um livro de histórias encantadoras. É através dessas histórias, que se pode perceber no decor-rer do livro, como há pessoas e lugares impercebíveis, não apenas nos acontecimentos que a autora conta, mas fazendo ligação com o dia a dia de qualquer um. Quem nunca caminhou do trabalho até em casa sem olhar por onde estava?

A vida que ninguém viu

“Se quiser um conselho, vá. Vá com medo, apesar do medo. Se atire. Se quiser outro, não há como viver sem pecado. Então, faça um favor a si mesmo: peque sempre pelo excesso.”

Na foto, Eliane Brum aos 42 anos de idade.

Malabarista mostra suas “mágicas” encos-tado à um banco no centro da Praça XV.

Por esses e outros motivos, o livro de Eliane Brum é caracter-izado como flanêur. Mais espe-cificamente falando, um flanêur é aquele que flana pela cidade em busca de acontecimentos inédi-tos, para conhecer aquilo que talvez nunca será conhecido ou reconhecido. Flanêur é aquele que sente a cidade e as pesoas que nela estão. A flânerie nos proporciona um olhar mais humano e um pensar mais autocrítico. Assim dizemos porque toda vez em que tentamos compreender a singularidade no meio da multidão se percebe que podemos tornar especial histórias e personagens que jamais pen-saríamos desvendar. A nobreza do desamparado ou os mistérios da rua amadurecem nosso conhe-cimento sobre o mundo, e sobre como o enredo que cruza nossas

vidas e diferentes histórias eleva o espírito.

Eliane Brum ao escrever “A vida que ninguém vê” vai ás ruas de sua cidade, Porto Alegre, para trazer á tona fa-tos incríveis de pessoas im-percebíveis, ora pela história

do homem que fica na sinaleira e todo mundo o conhece como

“Sapo” ou contando sobre funeral de uma criança, cuja fa-

mília não tinha dinheiro para pagar seu caixão, como ela

mesmo fala, “A morte de Pobre”. São passagens

que você se comove durante a leitura, ora chora ora ri, e se identifica com a leitura, pelo simples fato de também não

erceber incríveis histórias que se passam durante o seu dia a dia. Como diz Eliane Brum: “É que as piores deforma-ções são as invisíveis.”

Por Bruna Tomaselli e Wellinton S. Farias

Crédito: Bruna Tomaselli

Crédito: Bruna Tomaselli

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polis tem muitos personagens. Al-guns deles, esquecidos pelo tempo, não cessam de desaparecer. A Pra-ça XV sempre acolheu o povo e suas rebeldias, os protestos estudantis, a onda hippie, as andanças boêmias. Mas hoje quem ocupa esse coração urbano são os moradores de rua. À noite, quando ninguém mais se lembra do lugar, são eles que fazem a praça renascer como palco de uma cidade clandestina.

Algumas das histórias que um dia darão vida às páginas do livro de Caveira encontram-se neste diá-rio que agora escrevo. É uma tenta-

tiva de começar a história oral dos que passam despercebidos diante dos olhos de vidros que rondam a cidade. Mais do que reportar o que se viu e ouviu, este diário quer re-constituir o clima da vivência, do convívio e da troca de experiências com os que sobrevivem nas ruas.

Primeiro Dia: “Grandes homens do mundo”

As viagens, a rua, a liberdade são elementos fundamentais para Jona-than. Formado em medicina, deixou tudo para trás e foi seguir seu destino. Caxias do Sul se tornou pequena para a alma deste grande homem do mun-do. “Vocês conhecem a lenda da Fi-gueira? Duas voltas e logo arrumam um namorado, se quiserem casar dão três”, explicou G, o pernambucano para mim e Manoella. Sua história convenceu e logo nos viu dando vol-tas em torno da árvore lendária.

Gabriel, ou “Lúcifer Arcanjo Ga-briel”, como é conhecido, morou na rua por um pequeno período, mas está sempre complementando a pai-sagem da praça. Parafraseando o di-tado popular: “você sai da rua, mas a rua não sai de você”. Tatuador, que notadamente ama o que faz, demons-tra com os desenhos que cobrem o corpo a paixão pela profissão. Quan-do lhe disse que sempre quis fazer um elefante no braço, o anjo nem me es-perou terminar para falar de seu de-senho: “Eu tenho um muito bonito, com estruturas de metal e uma casa em cima; tenho que te mostrar!”.

Diário dos esquecidos

Ele escuta e escreve histórias dos morado-

res de rua em pequenos papéis achados pelo ca-

minho. Tem sonhos pre-tensiosos: compor o livro que dará a toda essa expe-

riência de vida um sentido. Daqui a três anos ele deve-

rá ter montado sua “kombi-casa-escritório”.

Caveira quer fazer dela um lugar inspirador não só para ele,

mas para todos que terão suas histórias narradas.

A história paralela de Florianó-

Por Bruna Nicoletti

A rua é como uma grande biblioteca que abriga histórias épicas, trágicas e cômicas. E não há um só dia em que não se aprenda algo perambulando por ela

Crédito: Guilherme Martins da Cunha

A figueira das promessas

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Todas as expectativas sobre o que ocorreria no desenrolar desse primeiro dia foram ultrapassadas. O sentimento de distância e receio foram substituídos pela convicção de que qualquer barreira social pode ser derrubada. Eles, que em um primeiro momento se assusta-ram com nossa chegada, voltaram, debateram nossas ideias e nos situ-aram na realidade de suas vidas.

Segundo dia: “Eis que chegam os malabares!”

Terminal Rita Maria. Pesso-as saindo e chegando com malas nas mãos, alguns com pranchas de surf, outros com animais. Uma aula de kung fu ocorria no segun-do andar da rodoviária. O recém-chegado de Caxias do Sul contou que escolheu a feirinha da Lagoa para vender sua arte. Os ônibus chegavam e partiam naquele fim de tarde chuvoso, muitas histórias que bem caberiam no livro de Ca-veira acabavam ou então estavam apenas começando.

“Pra tu conhecer a rua e a ver-dadeira história de quem está nela, tens que passar fome, frio, chuva e calor. E é só assim que tu vai come-çar a entender”. A frase de um dos moradores no dia anterior não me saía da cabeça. Apesar da chuva, do frio e de todos os empecilhos, precisávamos ir para as ruas. O ter-minal ficou para trás, e as ruas do Centro nos acolheram novamente com suas surpresas.

Repentinamente, surgiram os malabaristas, um pouco afastados da ágora da Praça XV onde estáva-mos inicialmente. Franco e Kátia treinavam com bolas e pinos. Um massagista uruguaio descendente de italianos os acompanhava, in-sistindo em vender suas pulseiras e marcar massagens. A chuva havia cessado, mas a água continuava a escorrer entre as pedras que co-

brem a cidade. Kátia estendeu os pinos, peguei-os, ela riu da minha primeira tentativa e fez novamen-te os movimentos. Nas suas mãos, parecia mais fácil. Deixei cair no-vamente e mais uma vez.

Cruzamento entre avenida Pau-lo Fontes e Rua Arcipreste Paiva. A sinaleira abre, mas o amigo de Franco e Kátia ainda está de mãos vazias em meio aos carros que co-meçam a partir. Na calçada, en-costado no poste com um chapéu panamá, outro viajante da América do Sul olhava fixamente o mapa da Ilha e decidia qual seria seu próxi-mo destino: Ingleses ou Canasviei-ras?! Na despedida, tentaram nos

impressionar uma última vez com a sua mágica.

Terceiro dia: O recém-chegado Cada pontinho desenha-

do no mapa lembra uma experiência. Os amigos que fizeram, as dificul-dades que passaram. Para quem viaja, cada lugar descortinado produz uma sensação única, principalmente para os que mudam de praça sem sair da rua, onde está o pior e o me-lhor da cidade. A rua é o meio que proporciona essa migração intensa e contí-nua.

Kátia já não pertencia mais às ruas de Florianópo-lis, enquanto Itajaí recebia uma nova visitante. À espera de sua companheira de jornada, Franco deseja encontrá-la nova-mente antes da data de sua par-tida. Ele aguarda apenas a Con-venção de Malabarismo e Circo para cruzar a fronteira do estado e seguir a viagem que tem como rumo o carnaval da Bahia.

O argentino nos recebeu empolgado, cumprimentando com mãos e beijinhos e logo, sem perguntar, ofereceu as bo-las russas para treinarmos, re-petindo as façanhas do dia an-terior. Franco nos apresentou aos novos moradores da Praça recém-chegados do Paraná e da Colômbia.

O colombiano era Oscar, artesão que utilizou um meio de transporte um tanto inusi-tado para viajar da Colômbia ao Brasil: uma bicicleta. A companheira de viagens já presenciou muitas aven-turas entre os oito mil

Crédito: Marcela Silva Teixeira

Surgiram os malabaristas

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km que hoje separam Oscar de sua casa. “Ainda levo muita coisa, mais da metade é só artesanato”, disse, apontando para o “bagageiro” da

bicicleta.Sobre o Brasil, mostrou

encanto pelas pessoas. Sua primeira experiência no

país foi na Região Norte, onde logo se apaixo-nou por uma brasileira. Contou também que

seu trabalho era muito valorizado. “As pessoas daqui gostam de arte-

sanato, mesmo que não queiram pagar muito por ele”, ele, alegando que isso

não ocorria em países como Argentina e Venezuela.

Oscar notou muitas di-ferenças entre os países que visitou, mas a que mais lhe

chamou a atenção foi na Vene-zuela, quando graças a crise se

sentiu obrigado a abandonar seu meio de transporte “tradicional”. “Lá eu preferi andar de coletivo porque a passagem é muito bara-ta e a comida é muito cara. Então se eu passasse muito tempo na Venezuela gastaria muito dinhei-ro me alimentando”.

Conterrâneo do emblemático traficante Pablo Escobar, relatou o clima político da Colômbia onde, apesar de notáveis me-lhorias, as pessoas continuavam sempre desconfiadas. “Um ami-go meu sempre me dizia: aqui você não sabe com quem está

falando. Pode ser um guer-rilheiro, um traficante, um policial”. Esse clima tenso faz com que as pessoas se fe-chem mais em relação a ou-

tros países.Já mais descontraído, ten-tava nos convencer de que

viajar de bicicleta não era tão absurdo quanto pa-

recia. “Quando a gen-

te fuma consegue pedalar uns 30 km sem parar”. O próximo destino do colombiano e sua companheira é a Patagônia. Há apenas um dia em Florianópolis, o peregrino co-meça a planejar seu novo caminho rumo ao desconhecido.

Avisados da sopa que estava sendo oferecida em um cruza-mento perto da praça, os ami-gos da rua nos pediram para que cuidássemos de seus pertences. E ficamos ali, com tudo o que eles possuíam, pensando justamente em como confiaram na gente, um grupo de estudantes que tinham acabado de conhecer. Depois nos despedimos, vendo passar, com um misto de encantamento

e espanto, mais um dia da nossa “vivência jornalística”. Esses ar-tistas que conhecemos hoje são moradoras de rua, mas acima de tudo são viajantes. Para eles, não importa o hoje, o que os motiva é saber para onde vão amanhã. E isso é fascinante. Voltei pra casa pensando quantas histórias fasci-nantes Caveira poderá reunir.

Quarto dia: “Vem olhar que tu aprende”

Os usuários conversam na va-

randa, fazem bonecos com massa de modelar, jogam pife ou xadrez.

“Quando a gente fuma consegue pedalar uns 30 kms sem parar”

“Ainda levo coisa demais, mais da metade é artesanato”.

Crédito: Marcela Silva Teixeira

As pedaladas colombianas

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Quando saem da escuridão das vielas noturnas, o centro POP é para eles como uma casa onde, todos os dias, encontram abrigo e alimento. “Vem olhar que tu aprende”, disse Gê, enquanto me desafia a entrar na próxima ro-dada da jogatina. Entramos eu, Lúcifer, Gê e Lili. Na primeira, eu estava apenas aprendendo a jogar pife, mas na segunda, já ganhei e, no fim, já tinha tirado o “profes-sor” da mesa.

“Hora do chafé: vão colocar seus nomes na lista!”, convidou Jona-than. Chamados pelo nome com-pleto, eles vão um por um, comer talvez sua última refeição do dia. Acabou o café, acabou a ordem. Agora voltam os velhos hábitos, os banhos e os jogos. Marcelo pede como sempre o dinheiro da pinga. Oscar, Gê e Lili, uma garota argen-tina aprendiz de malabares, voltam a jogar cartas. Um outro lê o livro de autoajuda. Cíntia, namorada de G, faz filtro dos sonhos. Uma am-bulância chega, atende o paciente e desaparece novamente.

Quando se entra no POP não é

possível imaginar quanta história é escrita no lugar. Os camarotes da passarela Nego Quirido dão vez a oficinas de desenho, música, bai-les e campeonatos de dominó. Mas também há o outro lado: devido à falta de segurança que existia an-tes da Guarda Municipal cuidar do centro, facadas eram trocadas no banheiro e brigas só acabavam quando um dos envolvidos saísse inconsciente. Hoje os moradores de rua, chamados de usuários do centro pelos funcionários, passam por um processo de revista antes de entrarem no local. Os objetos que podem ser usados como ar-mas são confiscados e devolvidos quando seus proprietários deixa-rem o centro. Mas as drogas têm que ser deixadas para trás.

O drama das mulheres e transsexuais foi contado por Mariana, estagiária do POP. “Elas sofrem muito preconceito nas ruas, mas aqui fazemos de tudo para tentar ajudá-las”. Para as mulheres, a rua é uma questão de sobrevivência diária. Mui-tas se sujeitam a parceiros que

as usam como prostitutas e saco de pancadas apenas por segurança. Preferem sofrer com um, do que viver fugin-do de todos diariamente. As transexuais encontram todas as dificuldades das mulheres de rua, porém agravadas pela estrutura social vigente. Não é apenas a rua que as oprime, e não apenas os homens. Nada disso, porém, rouba o seu de-sejo de glamour: “Quando se montam, elas ficam radiantes”, relata Mariana.

Eram quase seis da tarde, ainda estava claro graças ao horário de verão, mas já era “hora de subir” para casa. E, como todos os dias, os perso-nagens de Caveira partiram em direção à Praça XV, que já ensejava a volta de seus habitantes noturnos. Mora-dores do relento, alguns já tiraram de si tudo que pos-suíam, menos essa essência rueira e vira-lata, pois isso nem eles conseguem ar-rancar da alma.

Crédito: Guilherme Martins da Cunha

As pedras refletem o talento dos artesões

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uma vida boa. Formou-se na UFRJ em Turismo e Hotelaria trabalhou por qua-se 10 anos no Sheraton Hotel, onde co-meçou com humildade, atuando como garçom . Depois de mostrar seu grande potencial, virou gerente de recepção, che-gando a ganhar um salário de quase R$ 5mil mensais. Teve dois relacionamen-tos na vida, um ainda na faculdade, que durou cerca de um ano, e o mais recente, que se manteve durante oito anos.

Já estabilizado na vida, Diego passou por dois momentos dolorosos, a perda da vó e por fim da mãe. Quando a vó faleceu ele conseguiu se manter em pé, trabalhando, pois podia contar com a mãe. Sua relação com ela sempre foi muito boa, sempre incentivado a buscar conhecimento de tudo e se destacar em tudo que fazia. No meio de nossa con-versa, ele me disse: “Ela era minha base; eu fazia tudo por ela, tudo para ela dizer: ‘Olha lá, meu menino’ com um sorriso

O amigo das ruas

Sete horas da noite, eu estava na praça da Bandeira

no Centro de Florianópolis. Dois moços conversavam,

aparentemente dois morado-res de rua. O dia estava cal-

mo e não muito frio, algo bem agradável, considerando que

nas últimas semanas só chovera. Parei para conversar com um de-les e percebi que havia outro moço

um pouco escondido se preparan-do para usar seu cachimbinho. A

cabeleira cacheada, coberta por um boné com abas, moldava o rosto mal encoberto por uma barba rala. Escon-dido em um cubículo que servia de esconderijo das ruas, me observava atentamente. Quando terminei meu pequeno diálogo com os outros dois moradores, decidi ir embora, mas ouvi um chamado e automaticamente olhei para trás. Foi aí que conheci meu colega da vida, Diego.

Carioca, 33 anos, há cinco morando na rua. Fala bem três línguas, para ser exata, incluindo um francês impecável. Nunca arrumou encrenca. Embora te-nha muitos conhecidos, dá abertura

a poucos para serem seus amigos. Sempre dono de si, não depende de ninguém. Aos 12 anos, conheceu as drogas em Florianópolis, para onde havia acabado de se mudar

com a mãe. Mas aos 16, quando a vó chorando presenciou uma cena

que caracterizava seu neto como um usuário de crack, decidiu

mudar. Ela lhe ofereceu aju-da e ele aceitou. Conseguiu retornar os estudos e teve

O pequeno livro de poesia de Jony traz reflexões sobre liberdade, felicidade e o amor

Crédito: ReproduçãoPor Gabriela Meira

Perdido, sem dinheiro, casa, ou alguém para se preocupar, sentiu que não tinha mais vol-ta, e se entregou ao que a vida podia lhe oferecer no momento

no rosto e muito orgulho”. Após uma série de problemas respi-

ratórios, a mãe precisou de uma cirur-gia. Foi aí que, como bom filho, deci-diu voltar para Florianópolis, na época já casado. Veio com a mulher, genro e sogro, vendeu carro e casa. Um tempo antes da cirurgia, a mulher o deixou e, para o seu desespero, a mãe teve com-plicações na cirurgia e faleceu. Ficou por Floripa só para providenciar o ve-lório, mas quando decidiu voltar se viu perdido. Não tinha mais alguém para se espelhar, ou alguém que o incentivasse. Com o dinheiro da passagem no bolso, desistiu de voltar ao Rio e subiu o morro para comprar drogas.

Depois, quando se viu perdido, sem dinheiro, casa, ou alguém com quem se preocupar, sentiu que não tinha mais volta e se entregou ao que a vida podia lhe ofe-recer no momento, que era a rua. Nunca procurou abrigo. Disse que após voltar ao

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Crédito: Reprodução

A Plateia Desconhecida

Minha ideia sobre o Flânerie co-meçou a desenvolver-se após as aulas e muita leitura, com um se-mestre e meio eu já comecei a formular como seria a minha experiência direta com o ato de flanar. Dia 20 de outubro, o tão esperado dia em que co-meçaria a me aventurar pelo centro de Florianópolis, o céu estava bem apagado, e apesar do desanimo com a possível chuva me mantive confiante. Sai mais cedo do serviço e fui ao encontro das professoras e colegas, nos en-contramos na escadaria da catedral e de lá seguimos junto para o coreto da Praça XV.

As apresentações foram minucio-samente pensadas, de tanto que de começo o texto inspirador das profes-soras fez que não só nós alunos prestás-semos atenção como os moradores que ali estavam. Não invadimos seu espaço porque fomos convidados a estar ali, fo-mos aceitos e acima de tudo muito bem recebidos. O grupo da música começou e a experiência de estar ali foi magnifi-ca, de tanto que a maior recompensa foi ver um dos moradores cantando junto conosco. Depois o próximo grupo nos mostrou o quanto tantas pessoas pas-sam despercebidas e ao dizer “eu existo” percebemos o quão pequenos somos em meio a esse conturbado mundo que não para. Encerramos o dia com muita alegria, choros de emoção e conversas inspiradoras.

Após isso a facilidade de con-versar com outras pessoas só foi au-mentando, a curiosidade para saber como é a vida de cada pessoa que por ali passa, quais são suas angustias, seus sonhos, quais foram suas maiores feli-cidades, se estar ali é uma escolha, e se o amanhã é recomeço ou está chegando o fim.

vício, ele serviu como válvula de escape da realidade. Diego nunca precisou de um lugar concreto para ficar. Ele diz que usa seu cachimbo para tentar ficar acordado o máximo possível, depois acha um canto pacato pelo centro e apaga, muitas vezes acordando sem lembrar onde está ou o que fez nos últimos dias.

“Algumas pessoas se sentem bem com isso e se torna normal, natural, como é natural para você chegar em casa e tomar um banho. Por isso é natural para nós pegar um papelão, uma calçada, conseguir uma comida em algum lugar, é o cotidiano. Sabe, não penso totalmente dessa forma, mas preciso de repente de algo a mais, de alguém, de repente, que eu tenha que fazer sentir orgulho; acho que é isso, alguém que se orgulhe de mim, alguém que aponte e sorria ‘aquele lá, ó, eu conheço ele, que legal cara, me orgulho dele’. Acho que meu esforço todo, na minha vida inteira, foi para isso, para essa pessoa, minha mamãe, dona Ana Maria, para que se orgulhasse. E como o filho não veio, fica a questão, talvez seria uma pessoa para me apontar e dizer ‘aquele ali é meu pai’. Talvez pudesse ter sido diferente, se eu tivesse tomado outra decisão. Hoje eu estaria bem, com certeza, porque eu não deixaria tudo isso acontecer, jamais iria deixar alguém da minha família passar por alguma dificuldade.”

Existe pessoas que passam a vida inteira no nosso lado e não notam a nos-sa essência, muito menos os detalhes da vida. Não sentem, não veem a beleza das coisas se eles não estiverem escancarados, por outro lado existe pessoas que conseguem observar cada detalhe, que conseguem captar a nossa alma. A foto-grafia de rua é um exemplo do flânerie, porque só podemos controlar a lente e não o que vamos ver, e que por meio de imagens mostra os detalhes de pessoas que passam por nós diariamente, que capta a essência, o gesto não esperado, o sorriso torto, a expressão facial menos esperada e mais bonita e sincera.

Walter Benjamin escreveu um pequeno ensaio intitulado ‘A Pequena Histó-ria da Fotografia’ (1931) onde analisa as transformações que se deram na cria-ção das obras de arte. Com a finalidade de entender como a reprodutibilidade técnica transformou e repercutiu a área da formação artística e como tal trans-formação precisa criar novas categorias estéticas para poder pensa-la. Partindo da análise de ensaios de fotógrafos como David Hill, Benjamin apura como a imagem é capaz de reproduzir momentos desconhecidos da nossa realidade, gerando reflexão e novas formas de analisar.

É a partir da perda da essência da fotografia que Benjamin faz uma avaliação crítica da fotografia, sendo assim o auge da fotografia vai de sua origem em 1839 esticando-se até 1850 onde a fotografia começa a decair devido ao processo de industrialização. Sendo assim a história da fotografia passa por três processos, o primeiro é exemplificado com imagens onde mostra gestos simples que não são exigidos pelo fotografo e onde fotografado se sente inibido sem saber qual será o resultado do processo. O segundo mostra que a essência da singularidade da fotografia foi se perdendo e que a tentativa de voltar só piorava com a facilidade até então da reprodução, e o terceiro Benjamin afirma que a industrialização modificou muito a forma de analisar a fotografia, porém ainda existe fotógrafos que conseguem captar essa essência que existia no início e que as qualidades das fotos iriam melhorar com esse avanço das formas de tirar foto.

A sinceridade por trás da lente

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mitido do estágio e largou os estudos e então resolveu ir morar com uns colegas.

Ele tinha aprendido a tatuar com um primo, e então começou a se man-ter com isso. Mas aí conheceu as dro-gas com esses mesmos colegas com quem foi morar e começou a vender suas coisas, partindo do computador. Logo depois eles voltaram para a casa dos pais, mas ele não queria voltar para casa, então passou sua primei-ra noite na rua. Fazendo sua mochila de travesseiro, e um papelão de co-bertor, foi para a marquise do INSS. Fazia muito frio naquela noite, então ele não conseguiu dormir e mais ou

menos às 2 da manhã resolveu dar uma volta na Beira-Mar Norte, o que não foi bom.

Conheceu alguns caras e teve seu primeiro contato com a cocaína. No outro dia, foi fazer o cadastro no Cen-tro Pop, tomou banho e deixou suas coisas num armário. Ficou na rua por mais ou menos um ano e meio, até pa-rar pra pensar e ver que essa vida não ia levá-lo a nada. Conseguiu refazer seus documentos e arrumou empre-go de telemarketing. Todo seu salário era gasto com drogas. Aos poucos foi diminuindo o consumo, largou o emprego e foi morar com um amigo na Lagoa da Conceição. No estúdio de um amigo, começou a tatuar, mas depois de quatro meses, voltou a mo-rar na rua. “Comecei a faltar, a minha credibilidade com tatuagem compa-rada a dos outros tatuadores era mui-to menor, eram tatuadores de quinze e vinte anos, aí eu comecei a tatuar em casa”. Só conseguiu ficar três me-ses em casa, enquanto o padrasto não estava. Mesmo em casa, não parou de consumir drogas.

Depois de algumas overdoses gra-ves, por misturas de entorpercentes, Gabriel saiu de casa de novo e resol-veu parar com as drogas. Conversou com um amigo, o G, que também era morador de rua, e resolveram alugar uma quitinete no Morro do Mocotó, onde vivem até hoje, mas estão sem-pre na praça pra conversar com os amigos que fizeram.

Quando a rua é mãe e madrasta

Ele saiu de casa aos 16 anos por conta de brigas

constantes com o padrasto, além de ter chegado recente-

mente na família, ele já que-ria mandar em todo mundo e qualquer coisa já partia para a agressão física. Quem mais

sofria essas agressões era a mãe. Mas Gabriel tinha consciência de

que fazia muita besteira, “coisas de moleque” como ele mesmo se refe-riu. Sua mãe então mandou-o mo-rar com a avó em Balneário Cambo-riú, mas por não se dar bem com as primas, não aguentou muito tempo por lá e voltou para Floripa. Foi de-

“Saí de casa achando que minha mãe viria atrás de mim. Mas foi passando aniversário, Natal, Reveillon e nada”

Gabriel tem apenas 20 anos e foi parar na rua aos 16. Sua mãe nunca o procurou.

Crédito: Tiago Bento

Por Thuani Regis Mendes

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Meu colega Tiago Bento, que esta-va gravando a entrevista, perguntou a ele: - O que a rua oferece que faz mui-tos que têm uma vida estável, mesmo assim preferirem estar na rua?

- Existem dois caminhos: um é o das drogas e o outro é a comodidade e medo de enfrentar o mundo.

Perguntei como lidava com o pre-conceito.

- Não ter baixa autoestima e não ter vergonha da sua real situação. Acho que as pessoas aceitam. O preconceito vem da negação - de ambos os lados.

A maior saudade dele são os ir-mãos. Há um tempo encontrou no terminal a irmã de 15 anos, de quem ele parece se orgulhar muito. A emo-ção tomou conta, mas depois desse dia nunca mais se viram. No futuro ele es-pera estar fora do Brasil com um es-túdio de tatuagem famoso e com uma família. O maior medo de Gabriel é que seus filhos sigam seus passos e não os ensinamentos que foram fruto de sua experiência e sofrimento.

Um aprendizado para a vida

Era uma terça-feira nublada, e nós alunos do segundo ciclo do curso de Jornalismo, fomos para a praça XV fazer nossa primeira flânerie. Nos sentamos no peque-no teatro aberto que se esconde embaixo das árvores, onde as pro-fessoras fizeram a introdução do trabalho, falando um pouco sobre os objetivos da atividade. Depois nós, alunos, homenageamos os habitantes das ruas e a prática da reportagem com uma performance que preparamos para eles.

A jornalista Elaine Tavares também estava lá para nos contar um pouco de suas experiências. A certa altura da noite, começamos

a ser surpreendidos pelos moradores de rua que começaram a se aproximar e participar conosco daquela inespe-rada “tribuna”. Histórias lindas, frases impactantes, sabedoria de rua.

Quando cada um foi para o seu canto me aproximei de um garoto que conversava com a professora Ra-quel Wandelli. Dez minutos de diálo-go foram o suficiente para me deixar curiosa para saber mais coisas sobre ele. Demos uma volta pela praça e na Travessa Ratcliff antes de encerrar a flânerie e voltar para casa.

No ônibus fiquei o tempo todo com a história dele na cabeça. Entrei na internet para falar para o meu na-morado tudo o que tinha ouvido, e

quando cheguei em casa não foi di-ferente ao encontrar minha mãe. No outro dia, voltamos para o centro, mas como estava chovendo e tive-mos que ir para a Rodoviária, me senti perdida. Já estava com a histó-ria do Gabriel na cabeça e precisava contá-la. Por sorte, parou a chuva e fomos para a praça.

Assim que o vi, corri para per-guntar se aceitava contar sua his-tória para mim. A narrativa que transcrevi foi muito mais que a realização de um trabalho jorna-lístico, foi um transpor barreiras e um aprendizado para toda a vida. Certo ele ao dizer que as ruas en-sinam.

Crédito: Tiago Bento

Making Of

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Memórias de um músico esquecido

Naquela esquina, entre as ruas Trajano e Conselheiro Mafra, onde o vento sul atrapalha

o caminhar e esfria o início do dia de quem vai ao trabalho, o som do violão de “Guizo” ecoa os

primeiros acordes. Raul Seixas, Cazuza, Legião Urbana. O repertório é amplo e o artista de rua

começa a percorrer os dedos enrugados no braço de sua bem-cuidada viola. Há dois mil anos, se ao

longo do Rio Jordão pregasse ou cantasse, a longa barba e o cabelo comprido de Guizo poderiam os mais distraídos confundir. A boca do povo excla-

maria: profeta! Na Grécia de Platão diriam: filósofo! E neste campo ele também joga. Além da paixão pela

música, gosta de filosofar sobre os acontecimentos do cotidiano social e político brasileiros.

O cenário é sempre o mesmo. Sente-se bem no can-to do prédio da esquina oposta ao famoso Senadinho, no centro da Capital. Guizo é receptivo. Faltam-lhe al-guns dentes, mas o sorriso brota do rosto com facilidade. Concede espaço para quem quer conversar como quem recebe alguém em casa para um café. A proposta da conversa o anima. Acostumado a dividir suas experiên-cias com outros jornalistas, Guizo não se intimida, não se envergonha. E, conta sua história, sem desconfiar.

A rua é o palco, mas não sua morada. Guizo tem “um canto” no continente. Costuma acordar cedo. Seu digestivo, pão com café. O centro da cidade é onde atua, portanto. Logo cedo toma o ônibus, ou a cami-nhada lhe conduz ao destino. Guizo não deixa sauda-

des em casa pois mora sozinho. Sua companheira é a viola. Diz ser feliz e agradecido pela vida que leva, apesar de alguns desconfortos. Ao se acon-chegar na esquina onde se apresenta, as músicas

fluem nos seus pensamentos. Pouca é a ajuda que no cesto cai. O tilintar das mo-

edas não animaria o cidadão mais otimista. Guizo, no entanto, não se abala, segue sorrindo, dá de ombros

e valoriza a música que apresenta. No fim das contas, a soma das moedas lhe proporciona o almoço e paga algumas outras despesas.

Guizo e seu inseparavel violao, arte e ganha-pão

Por Ricardo Toledo

Guizo tem o sonho de se tornar imortal através das palavras

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O vento continua a soprar. A primavera é de chuva, a aparência da estação das flo-res é de outono. As pessoas, agasalhadas. O guarda-chuva, um assessório obrigatório.

Naquela esquina, toca o violão. Os mais desavisados, contudo, podem não perceber. A música disfarça a solidão e a tristeza no semblante nos momentos de pausa. É uma sensação abstrata e sutil, mas não pode deixar de ser registrada. Naquela alma, um oceano de sentimen-tos e batalhas anônimas e sem impor-tância para o público.

Guizo parece não se sentir confortá-vel ao falar do passado. Prefere trocar de assunto e dizer que eu não era o primeiro repórter que o abordava. Estava acos-tumado. Num determinado momento, muda o foco e conduz a conversa. Com orgulho indiscreto assume um papel de-safiador. Teria muito a dizer ao povo bra-sileiro. Seu sonho seria escrever um livro sobre o cenário político nacional. Disse passar longas horas por dia refletindo sobre como a corrupção tomou conta das negociações políticas. O ex-presi-dente Lula era seu alvo preferido. Guizo afirma que o ex-presidente se tornou um dos homens mais ricos do Brasil após se aproveitar da cadeira da presidência.

O músico tinha inocência e convic-ção no falar. Fiquei com a impressão de que ele seria capaz de escrever esse livro, ou outro qualquer. Da mesma maneira que desconfiei se ele não estaria divagan-do sobre suas ideias. Se conviver na rua por tanto tempo não afetava sua noção de realidade. A vida não lhe impusera limites e cujos obstáculos não seriam in-superáveis até o último dia de sua vida? Várias perguntas me ocorreram. Escre-ver um livro estaria dentro das possibili-dades de um cidadão invisível? Ele teria realmente a consciência das entranhas políticas e das jogadas de sustentação do poder e do enriquecimento?

O vento sopra e a chuva continua. O prédio nos dá proteção. Guizo volta ao violão, despreocupado. Me despeço de Guizo e volto à rotina perseguido por um desejo: ver seu livro exposto em al-guma livraria, o sonho de um homem esquecido realizado.

Memória armada

Munido de um gravador, saio pelas ruas da Capital em busca de um personagem que poderia habitar as linhas do meu texto. O equipamento era mais uma forma de garantia. A memória, desta vez, seria minha arma. Precisava contar com ela e provar pra mim mesmo que era capaz de me lembrar dos pontos mais importantes da conversa.Sem dúvida, me apresentar a Guizo foi a parte mais difícil. Não medo, nem preconceito. O desconhecido me deixava com um certo receio. Mas foi preciso apenas um “olá, tudo bem?” para descons-truir a ansiedade. Foi sentar e deixar a conversa fluir.

A argila do narrador

Objeto de estudo de Walter Ben-jamim, o escritor Nikolai Leskov dizia: “A literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manu-al. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim que se imprime na nar-rativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais.”

E o que é o trabalho do narra-dor, senão colocar as mãos na argi-la e moldá-la, dar forma ao barro, dar vida a um amontoado de lama espalhada? Lapidar o pensamento, transformar a pedra sólida na es-cultura de Moisés, o mais perfeito trabalho de Michelangelo. O gênio, absorto pela própria criação, ex-pressa em italiano em direção ao que antes era rocha: “Parla, Moisés”. Fale, Moisés, tu que eras antes pe-dra morta, te trouxe à vida, e agora, a eterna admiração humana será tua companhia.

A desafiadora, recompensadora experiência de dar vida ao esqueci-do e entregar-se à narrativa começa com a compreensão do bombardea-mento de informação em que esta-mos inseridos. Segundo Benjamim, a informação matou a narrativa. A

cada segundo, milhares de explica-ções diante de nossos olhos. Mas o que nos surpreende? Como a informação não está a servi-ço da narrativa, a explica-ção se faz necessária. E a autonomia de absor-vermos e interpretar-mos o episódio narrado foge das nossas ações. A história não fala por si, pois a informação só tem utilidade quando é novi-dade. E a narrativa atinge a amplitude nunca alcançada pela informação, viaja através dos séculos, conserva sua for-ça, nos impacta.

Mas como formar vaso de ar-gila, esculpir Moisés de pedra?

Enquanto estivermos pre-sos à informação, impossível. A rocha continua rocha, a argila, lama. É no encontro consigo mes-mo que o dom da palavra e a voz do invisível surge. Ao assimilar o que o outro tem a dizer coloca-se em jogo a própria dignidade. E nas camadas da sociedade surgem histórias inspiradoras de onde o observador coleta sua inspiração. E dali parte com o material ade-quado daqueles que nunca tive-ram voz.

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A curiosidade e a vontade de co-nhecer outros lugares são desejos de Gilberto há muitos anos. Seu principal destino sempre foi São Paulo. Mas essa necessidade que habita seu coração estabeleceu a primeira parada o Rio de Janeiro. Distância entre sua cidade natal, o Recife, capital de Pernambu-co, até Rio de Janeiro – mais curta, se comparada à que percorreria até São Paulo –, fez o nordestino optar pela ci-dade. A viagem de três dias teve pouco conforto; foi feita dentro de uma car-roceria de caminhão, na companhia de doze cavalos de corrida.

A passagem pela cidade durou

pouco tempo. Assim que chegou ao Rio de Janeiro, Gilberto conseguiu trabalho, moradia e alimentação. Não passou necessidade. Porém ele queria mais; São Paulo ainda estava em seus planos. Deixou o trabalho, aluguel e partiu. Dessa vez de carona com cami-nhoneiros. Lá permaneceu por mais tempo, também conquistou trabalho logo após sua chegada, e conta: “Tive muita facilidade, lá na grande metró-pole é fácil entrar no mercado de tra-balho”.

Alguns pingos de chuva come-çam pender em nossas roupas, na tão majestosa praça XV. Gilberto logo me

A rua por um acaso

Num passado não tão distante, a rua era vista

com um local de brinca-deiras e aventuras, cenário

de uma infância de gera-ções. No entanto, também

serve de abrigo, de desafio e de questionamento. “Quando

cheguei estava muito eufórico, feliz, me senti bem, mas no dia seguinte já caiu a ficha”, decla-rou Gilberto Brissant, natural de

Recife, que vivencia a rua há 21 dias. Um período que separa Gil-

berto do mundo em que ele distinto do que ele vivia.

Por Claudiany Wagner Schutz

Desempregado, Gilberto sonha com um emprego para deixar a rua, que habita há 21 dias

Crédito: Claudiany Schutz

Entre diversos pilares da Praça XV de Novembro vivem os habitantes das ruas como Gilberto

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revela que em São Paulo sua felicida-de não estava completa. A distância do litoral fazia falta para o amante do mar. Foi então que o novo destino se traçou. “Aqui é o lugar mais desenvol-vido do país cara, o povo aqui é limpo, é educado, é finos” elogia Gilberto, ao se citar Florianópolis. Ao chegar à Ca-pital Catarinense, logo na rodoviária, indicaram que fosse para as praias, onde, na temporada, há muitas vagas de emprego. “Ah, como eu já vinha com essa tal de Joaquina na cabeça, fui logo para lá. Fui a um, dois restau-rantes, para fazer um teste, e consegui uma vaga. O Chefe perguntou: ‘ Tem residência?. ’Eu falei sim, tenho’. Só que nem conhecia nada” Gilberto fez o teste e ao final do primeiro dia após todos que irem embora, dormiu na garagem do estabelecimento.

No dia seguinte com os colegas chegando para o trabalho. “Cara, vou dizer a verdade para vocês, não tenho onde ficar, mais não diz pro patrão se não ele me manda embora. Imagina um garçom morador de rua”. No final desse mesmo dia, um colega, também garçom, o convidou para dividir um quarto. Mesmo desconfiado, Gilberto aceitou, já que não tinha outra opção. E a partir daí que se deu bem, passou por outros restaurantes também, e por supermercados da região e também

se casou. Porém, como esse relaciona-mento não durou muito, o viajante re-solveu voltar para São Paulo. “Eu não queria ficar aqui e ver minha mina com outro cara, sou muito sentimental”.

Em seu retorno para São Paulo, passou por alguns apertos, mas nada comparado ao que está passando em Florianópolis hoje. “Já saí daqui ga-rantido, tinha levado dois meses para o aluguel. Lá trabalhei em serviços ge-rais, panfletagem, em obra, mais nada como aqui”. Após um ano em São Pau-lo, retornou a Florianópolis.

Dessa vez, sem dinheiro para se manter, veio apenas com o valor da passagem, e um dos trechos da via-gem ainda foi custeado pela assistência social da rodoviária. Ele conta que, a partir daí, sua vida transcorreu “como uma bola de neve”. “Quando cheguei aqui estava super eufórico, me senti bem. Mas no dia que cheguei já vi que não tive acolhimento. No restaurante onde trabalhei o chefe não pôde me dar uma vaga, por causa da tempora-da baixa e das chuvas”. Após ficar uma semana no albergue público, não con-seguiu mais vaga, devido o grande nú-mero de procura por abrigo. A própria dificuldade atual não está relacionada ao uso de química, afirma. Desde seu retorno a Florianópolis, no dia 2 de ou-tubro, assegura não ter utilizado subs-

tâncias químicas, como álcool e cocaí-na, o que era habitual em São Paulo. O nordestino conta que teve uma reação alérgica, e toda vez que utiliza alguma dessas drogas, surta, apresentando comportamentos alterados. Desde então, decidiu evitá-las. “Meu pior dia limpo não se com-para ao meu melhor dia na droga. E eu não troco meu dia limpo por nada”. Toda essa trajetória só o fez repensar nas necessida-des, na ânsia de um futuro com mais livros e informa-ções. O sonho de ingressar no ensino superior faz parte dos objetivos de Gilberto, que já é formado no segundo grau e tem curso profissionalizante. “Quero fazer Psicologia, só que eu falo demais, e lá tem que es-cutar”.As reviravoltas de sua vida transformaram conceitos estabe-lecidos por Gilberto, que conta não ligar para seus familiares desde que chegou a Florianópolis, pois tem vergonha de sua situação. “A gente passa na rua e vê alguém deitado ali e acha que é invisível, mais agora eu não julgo mais aquela pessoa; eu sei o que ela tá sofrendo ali, eu sei o que é delirar por comida, isso mexe com o psicológico”.

Em busca de poesias no ato de flanar

Ao rumor de chuva, se misturan-do com os sons de relatos e contos foram quando os alunos do 2° ciclo de Jornalismo da Unisul visitaram a Praça XV de novembro, no centro de Florianópolis. Aplicando e enri-quecendo seus aprendizados e estu-dos realizados durante todo o inicio do semestre em salas de aula. Após conhecer e compreender o universo de diversos escritores e jornalista no-meados puderam desenvolver suas próprias “flâneries”. Um ato que por sua vez expressa perambular com

inteligência, conversar sobre o espaço urbano e conhecer sua relação com a crônica com as pessoas ali inseridas.

Durante a primeira e mais extra-ordinária noite, em minha opinião, foi possível passar por momentos de troca e diálogo com os moradores da rua, que foram se acomodando pouco a pouco a nossa volta. E assim segui-ram dias de prática e conhecimento. Com a presença de grandes perso-nagens da Ilha, como Elaine Tavares, jornalista, que trouxe sua vivência na primeira noite, guiando nosso expe-

rimento. Seguindo os outros dias, também vantajosos, mas que já não obtivemos o mesmo desenvolvimen-to quanto na primeira data – pois na primeira noite fomos acolhidos de forma excepcional, com maiores diálogos. Entretanto essa expe-riência que inicialmente englo-bou medos, receios e ansiedade de muitos ali presentes, finalizou com a vivência – idas à praça - porém dei-xa recordações, textos, histórias e lembranças do que jamais fica-rão para trás.

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A observação entra em cena num universo úni-

co, mas ao mesmo tem-po tão natural. O que é visto todos os dias, e, no entanto não é notado

transforma o bom narra-dor em um investigador

apaixonado que elege seu domicílio no meio da mul-

tidão. Durante três dias, tivemos a oportunidade de

viver essa experiência como estudantes de jornalismo,

saindo às ruas, na tentativa de conhecer quem vive delas. O simples fato de poder compar-

tilhar com eles suas histórias, escolhas, desilusões, erros, acer-

tos, frustrações, modos de pensar nos deixou cada vez mais entusias-mados nessa aventura.

Como almas de um bairro, as ruas, o centro da cidade são o coração de um município que acolhe personagens do anoni-mato e encantam o flâneur. Esse contexto está no caminho do jornalista catarinense Raul Cal-das. Não se pode falar do ato de flanar sem se referir a ele, um grande escritor apaixonado por registrar os pequenos aconteci-mentos da rua e as coisas sim-

ples da vida. Natural de São Francisco

do Sul, passou quase toda a vida em Florianópolis, for-mado em direito, jornalista

profissional, cronista e ficcio-nista, exerceu diversas funções

jornalísticas, mas além de todos os cargos exercidos

atuou como um incon-fessado perambulante das ruas. Embora não

Andanças por uma Praça Majestosa

se autodenomine como tal, é legí-vel em suas crônicas que perfilam os personagens da Ilha, o sofisti-cado e delicado ato de flanar.

Em “Oh! Que delícia de Ilha” ressalta com clareza a habilida-de em contar causos folclóricos ocorridos no cotidiano da cida-de. O livro apresenta uma cole-

Crédito: Vitor Carlos

“... as ruas, o centro da cidade são o coração de um município que acolhe personagens do anonimato e encan-tam o flâneur” - Raul Caldas

tânea de crônicas, reportagens, personagens e histórias passadas em Florianópolis. Muitas narrati-vas ocorrem na Praça XV de No-vembro, que foi também cenário da nossa experiência de flânerie. Caminhando sem destino certo, sem rumo, em busca do homem da multidão.

Raul Caldas, escritor Catarinense, costuma transcrever Florianópolis constantemente em suaspublicações, que abordam desde a Ilha aos seus nativos e culturas

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Raul Caldas, escritor Catarinense, costuma transcrever Florianópolis constantemente em suaspublicações, que abordam desde a Ilha aos seus nativos e culturas

vem tocando a banca sozinha: orga-nizando, repondo o estoque e aten-dendo os clientes. Apenas no período da tarde, quando o movimento é bem maior, uma pessoa a auxilia. Profissio-nalmente, fez amizades, manteve-se sempre bem informada e acompanhou as transformações no segmento.

Desde que assumiu a Banca Praça XV, dona Solange viu as vendas caírem drasticamente, especialmente após o avanço das tecnologias e o acesso ao mundo digital. Outro fator que con-tribuiu para a queda das vendas foi o crescimento do comércio na região, o que resultou numa concorrência com as padarias, posto de conveniência, pequenos mercados, dentre outros. Ela conta que o segredo para manter o sucesso do comércio está na exce-

lência no atendimento e no preço justo: “Abro a banca às 8h, todos os dias, e só saio às 22h. Se não tem taxista saio um pouco mais cedo, pois o lo-cal fica muito inseguro. Só descanso no domingo por-que a banca não abre, mas como é daqui que tiro o meu sustento e o da minha família, acaba sendo um prazer vir tra-balhar”.

Enquanto conversávamos, disse com uma voz suave e um pouco cansada: “Está difícil se manter no ramo. Atualmente, o nosso lucro vem da venda de bebi-das, guloseimas, cigarros, recarga de celulares. O que é um lucro bai-

Um exemplo de mulher

Força de vontade e garra não faltam na vida de Solange, que administra a banca mais antiga de Florianópolis. Localizada na Praça XV Novembro, de frente para um ponto de táxi e ro-deada pelas árvores, a banca funciona desde 1904, há mais de cem anos, por-tanto. Nessa época, o mar ainda cos-teava a praça, que era cercada, e para entrar havia horário estipulado pela prefeitura.

À frente do negócio estava o casal Irival Costa (67 anos) e sua esposa Solange Maria Costa (64 anos), uma senhora loira com cabelos brancos, de óculos com um olhar de cansa-ço, mas muito simpática e atenciosa. Como seu esposo encontra-se debi-litado, Solange acabou assumindo o negócio da família e, desde então,

Dia após dia Solange atende os clientes na banca da Praça XV

Crédito: Cláudio Souza da Rosa

Por Cláudio Souza da Rosa

Solange, dona da banca de jornais, tem muitas histórias para contar aos seus herdeiros

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xo”. Hoje, as edições de jornais em papel, revistas, livros, dentre outros, estão perdendo espaço para o for-mato digital. A solução encontrada

para manter o negócio foi ampliar os serviços, o que transformou

a banca em uma pequena loja de conveniência. Ela tam-

bém relembra os velhos tempos, quando ao che-gar à banca se deparava com uma enorme fila de

leitores para comprar o jornal “O Estado”. “Rece-

bíamos 200 exemplares do jornal de manhã. No início

da tarde, meu marido tinha que sair para buscar mais,

pois as prateleiras já estavam vazias, assim era com outros

jornais”. Agora está vendendo meia dúzia de cada exemplar.

Mas, conforme a dona da banca, ainda existe um pequeno

público de leitores que buscam pelo impresso, mas eles consomem

um material bem específico, entre

os mais procurados estão palavras cruzadas (como entretenimento), ca-dernos de vestibulares, apostilas de concurso. Geralmente, esses mate-riais são encontrados na internet, po-rém, os clientes preferem as edições impressas, como revistas segmenta-das e palavras-cruzadas.

A vida corrida de uma cidade grande faz com que os leitores, que vão todos os dias até a banca, não percebam o que há por trás daquele rosto de mulher lutadora. Ela dedi-cou grande parte de sua vida a esse trabalho, que representa o sustento de sua família.

Solange e seu marido adquiriram a banca na década 70, exatamente em 1974, e desde então eles têm dedicado suas vidas a cuidar do negócio.

O casal teve dois filhos que foram criados dentro da banca. Solange lem-bra que muitas vezes o filho chorava embaixo do balcão, quando seu mari-do saía para pegar alguma mercado-ria, e ela não sabia se atendia o filho ou o cliente.

Quando começou a trabalhar na banca, Solange ficou grávida do seu primeiro filho e três anos depois veio o segundo. Porém, com a voz embar-gada e lágrimas nos olhos, conta que há nove anos perdeu seu primogênito: “Meu coração está machucado e nun-ca irá sarar, por mais que o tempo pas-se nunca irá tirar a dor que tenho no meu peito”. O filho havia completado 31 anos em maio e faleceu em julho, dei-xando três órfãos: um do primeiro e dois do segundo casamento. Graças à banca ela consegue ajudar financei-ramente na criação dos netos.

Com apenas 20% do coração fun-cionando, o marido chegou a entrar em coma. Enquanto estava hospitali-zado, ela se revezava com o cunhado para cuidar da banca e também do companheiro, que depois de duas se-manas de tratamento consegiu se re-cuperar.

Uma vida difícil, mas como uma grande guerreira nunca se deixa aba-lar, acorda todos os dias pronta para mais uma batalha.

Novas experiências

Ao longo do segundo semestre de 2015, nós, graduandos de jornalismo da Unisul, imergimos no emaranha-do mundo das flaneries. Após conhe-cermos as reflexões propostas por alguns autores, demos inicio à arte de flanar. A Praça XV de Novembro, loca-lizada no centro de Florianópo-lis, foi o lugar proposto para a nossa flanerie. No início da noite, mesmo com chuva, percebemos um mo-

vimento, aparentemente normal de trabalhadores voltando para o aconchego de seus lares. Típico de cidade grande, a poluição sonora

não passou despercebida: o barulho de pessoas conversando, carros em

circulação, sirenes ligadas, rá-dios tocando, dentro outros.

Em meio a tantos sons, um em especial chamou

minha atenção: a sinfonia composta pelo barulho das árvores, a brisa do mar e o cair da chuva. Como flanar é conhecido como o hábito de andar sem rumo e sem pressa, observando o mundo que nos cerca de maneira real e descritiva, descrevemos a praça, as ruas, nos preocupando com detalhes que talvez possam passar despercebi-dos pelo resto da sociedade.

Já no primeiro dia interagimos com os moradores de rua e com as pessoas que fazem da praça seu se-gundo lar. Uma noite inexplicável, pois estávamos preocupados com a forma com que iriam nos receber ali. Pouco a pouco os moradores de rua foram chegando, conversando com muita simpatia e receptividade. Aca-bei me vendo meio que sem reações, de tão hospitaleiros que eles foram.

O primeiro dia se passou e al-guns dos meus colegas flaners já estavam com suas pautas definidas, outros até com pautas prontas, sen-do que eu ainda estava sem saber o que fazer. Entre idas e vindas e muitas conversas com as professo-ras, acabei encontrando uma sim-pática senhora que trabalha em uma banca de jornais há 40 anos. Logo vi que ela teria ótimas histo-rias a serem contadas. Por fim, fla-nei. Andei. Corri. Observei. E pude perceber que por trás dos prédios históricos, do cartão postal da cida-de, do céu cinzento de uma metró-pole, existem detalhes de uma vida que a pressão capitalista do mundo moderno acaba nos impedindo de contemplar. Uma delas, certamente, é a dona da banca da praça XV.

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Olho no olho

Charles Baudelaire desenvolveu um significado para flâneur como “uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la”. Foi a partir deste conceito que nós, graduandos em jornalismo, saímos a flanar. Nossa flanerie buscou encontrar nas entra-nhas de Florianópolis histórias que foram encobertas pelo mundo capita-lista. É preciso salientar que nos dias de hoje, cada vez mais, nossa socie-dade tem como base de sustentação o capitalismo. Comer, vestir, trabalhar, falar ao telefone, dentre tantas outras atividades básicas possuem o dinhei-ro envolvido. Trata-se de uma relação em que o dinheiro tem mediado gran-de parte de nossas interações sociais. Nada é de graça. Viver custa caro.

O capitalismo somado à chegada da modernidade tem afetado forte-mente as relações sociais. Isto fica vi-sível quando você caminha pelas ruas do centro de Florianópolis durante a hora do “rush”. Pessoas correndo para todos os lados, ninguém se olha nos olhos. Em meio ao cinza da cidade você ouve a poluição causada por ve-ículos e pedestres. Enfim, certamente a vida não é mais a mesma depois da chegada do capitalismo e tem piorado muito mais com o avanço da moder-nidade. As rodas de conversas, o con-tato físico, o olho no olho, tem sido substituído por conversas de whatsa-pp. Portanto, a ausência de pequenos detalhes na vida social nos motivou a sair pela cidade afim de experimentá-la, tal qual fez Baudelaire.

Cartão postal da cidade de Flo-rianópolis, a Praça XV foi o local esco-lhido para experimentar uma vivência com mais intensidade. Em meio a tanta beleza, que talvez pas-se despercebida pelo corre-corre da

vida moderna, encontrei uma singela banca de jornais. Receoso do que po-deria encontrar e mais ainda de como deveria me comportar diante do que poderia encontrar dentro dela, en-chi-me de coragem e fui até lá. No inicio, meio que sem jeito para inte-ragir “pessoalmente”, tentei dialogar com a dona da banca, o que resultou em uma conversa cheia de lacunas e

“Éramos dois desconhecidos tentando superar a barreira dadesconfiança”

truncamentos. Percebi logo de inicio o quanto a vida moderna tem afetado nossas vidas, pois já não conseguimos nem conversar com os desconhecidos pessoalmente. Talvez se a conversa tivesse acontecido pelo celular ela ti-vesse fluído muito mais. Sinceramen-te, uma pena que isso aconteça. Aos poucos, consegui resgatar aquilo que o capitalismo e a modernidade afasta-ram de nós, o diálogo, a confiança, o olho no olho. Foi então que co-nheci Solange, a dona da banca.

Atrás do balcão avistei uma senho-ra como tantas outras: cheia de histó-rias para contar, no entanto, ela per-deu o direito de voz, ou talvez o tempo tenha lhe arrancado esse direito [dese-jo] de compartilhar momentos de sua

vida com alguém desconhecido. Sim. Éramos dois desconheci-dos tentando superar a bar-reira da desconfiança para travarmos um diálogo amistoso.

Ambos tínhamos mui-tas histórias para contar. Mas eu, na posição de fla-neur, pus-me a ouvir e ob-servar, eu desejava mais que tudo (re)conhecer essa expe-riência que Baudelaire men-cionou: experimentar a cidade, as pessoas, as coisas...

A arte de flanar possibili-tou-me co-nhecer uma história de vida única, que se perde em meio a tantas outras que va-gam pelas ruas da cidade. Solan-ge, uma mulher de fibra, mostrou que o tempo é capaz de marcar a vida de uma pessoa. Eu digo mais: o tempo é capaz de transformar uma sociedade e transformou. Atualmente, Solange recebe deze-nas de pessoas em sua banca, no entanto, poucas ou quase nenhu-ma se dispõem a conversar. A vida não permite. A arte de flanar nos mostrou, como diria Elis Regina, que “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sem-pre...”

A música chama-se ”Maria, Ma-ria”, mas poderia chamar-se So-lange, Cláudio, João, Rafael...

“Quem traz no corpo a marcaMistura a dor e a alegria Mas é preciso ter manha É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania É preciso ter graça...”

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No centro de Florianopolis, bem no meio da praça XV de Novembro, há uma figueira, centenária

e imponente. A figueira centenária, com seus galhos bruxólicos, possui poderes sobrenaturais, dizem os manezinhos, e por isso virou o principal ponto turís-

tico da cidade. A tal árvore já esteve em outro local, na praça da Igreja Matriz, onde ficava o Palácio do Gover-

no naqueles tempos. O governador tinha o hábito de ob-servar da janela, uma moça que aparecia na sacada de um dos casarões que circundavam a praça. Porém contam que a figueira, bem entre o Palácio e a sacada na qual a moça

aparecia, atrapalhava a bela vista. Foram feitas tentativas de domar os galhos que se espa-

lhavam pelo cobiçado campo de visão, podas e mais podas na esperança de controlar a natureza rebelde da árvore, que culminaram na decisão governamental de mandar removê-la do solo em que estava e a replantar noutro local, no qual encontra-se atualmente.

No século XX, mais precisamente em 30 de novembro de 1979, a Praça XV foi palco de um fato histórico importan-tíssimo para o cenário político nacional. Um ato político, a Novembrada, protesto contra a ditadura, desencadeado pela visita do General Figueiredo à cidade de Florianópolis.

A manifestação, organizada pelo movimento estudantil, reuniu cerca de quatro mil pessoas e resultou em prisões, vio-lência e apreensão do material de cobertura produzido pela imprensa presente, TV Cultura e TV Barriga Verde. Anos mais tarde, em 1995, o ato foi contado em um livro, Revolta em Florianópolis, do cientista político Luís Felipe Miguel, e

virou o curta-metragem, Novembrada, dirigido pelo cine-asta Eduardo Paredes.

O centro histórico da cidade acontece ao redor da Praça XV, por onde circulam estudantes, trabalhadores,

reúnem-se aposentados, políticos, turistas e aqueles gru-pos de pessoas que geralmente não são tão visíveis e dese-jáveis quanto os citados anteriormente, os que estão em

situação de rua. Muitos chegaram ao local em busca de melhores condições de vida, emprego, moradia,

e por não conseguirem, desanimaram. Contenta-ram-se em sonhar e viver um dia após o outro, perambulando com pouca bagagem material,

Sobre raízes, lendas eperegrinos

dormindo ao relento. Alguns foram levados para a rua pelas drogas, desavenças com a família, por problemas psíquicos e as mais diversas fugas. Fato é que todas essas pessoas têm história, às vezes contada em diferentes versões, às vezes cantada com belíssima voz, como a de Olga Emily Montanhini, usuária de crack, com um repertório de clássicos de samba, choro e MPB, que inclui Elis Regina, Chico Buarque e Jacob do Bandolim.

Quem mora em espaço público aprende a lidar com a re-pulsa dos transeuntes, dormir já noite alta e acordar com os primeiros raios de sol e quem passa para trabalhar. Alguns in-sistem em repousar enquanto a cidade fervilha, mas há poucos espaços nos quais podem permanecer em descanso diurno sem que sejam expulsos para saírem em busca de locais úmidos e protegidos pela escuridão.

Exposta às intempéries, sem um mínimo conforto e prote-ção, a população em situação de rua vive dramas e surtos de doenças infectocontagiosas, como a tuberculose, que alcançou níveis alarmantes em setembro deste ano. O surto de tubercu-lose fez com que o Procurador Geral do Ministério Público Fe-deral, Maurício Pessuto, mobilizasse as Secretarias Municipais de Saúde e da Assistência Social para o combate à epidemia. A dificuldade nestes casos é fazer com que o tratamento seja contínuo; no caso da tuberculose, entre seis e nove meses, a fim de se evitar que o paciente desenvolva um tipo de tuberculose super resistente, ou mesmo outras doenças, simultaneamente.

Apesar da existência de casas de passagem e apoio social aos moradores de rua, a busca pelos locais de abrigo esbarra nas regras para poder permanecer durante a noite no local. Muitos preferem ficar nas ruas por não quererem ser identificados, re-vistados, por serem dependentes químicos ou alcoolistas. Nes-sas casas, há horário estipulado para entrar nos abrigos e os assistentes sociais não admitem manifestações de agressividade ou uso de drogas nos aposentos de acolhimento. As travestis também ficam de fora, pois não são bem-vindas nas casas que acolhem mulheres, nem nas acomodações masculinas.

Dizem que a figueira da Praça XV traz amor e fortuna a quem dá várias voltas ao redor dela.

Turistas e moradores, por via das dúvidas, já tentaram a sor-te e espalham a lenda pela Ilha afora. Será que quem dorme na rua fica resistente à magia da árvore centenária?

Por Ingrid BezerraCrédito: Camila Valerim

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Enfim, jornalistas!

A chuva incessante finalmen-te dava trégua e o sol timidamente aparecia no centro de Florianópolis. Sentados na escadaria da Catedral da Ilha de Santa Catarina, os alunos do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Unisul programavam as interven-ções do primeiro dia de suas flâne-ries. “Quem é do grupo do texto?”, “quem é do grupo da música?”, “aqui tá a tua parte”, “cadê a professora?”. Animada e apreensiva, a maioria não tinha ideia do que esperar da

Por Nathalia Soria

Das salas de aula às ruas: a primeira vivência de um repórter

atividade proposta em sala de aula: flanar o centro de Florianópolis à noite. Quando todos reunidos, di-recionaram-se à ágora da Praça XV. Eram sete e meia da noite e em vir-tude do horário de verão, a noite chegava lentamente. Alguns pingos ameaçavam cair, mas parecia que nada levaria embora a empolgação daqueles alunos.

Ao chegar naquele pequeno an-fiteatro já ocupado pelos moradores de rua, as professoras que acompa-nhavam o grupo pediram licença

Crédito: Tiago Bento

O sorriso estampado no rosto - Beatriz Wagner animada com a experiência

para utilizar o espaço e os convidaram para par-ticipar daquele momen-to. Atentos à introdução e instruções dadas pelas professoras, alunos e mora-dores, de olhos arregalados, não escondiam a excitação de estar fazendo algo diferen-te. Todos tiveram a oportuni-dade de interagir. Percival foi o primeiro entre os moradores de rua a pedir permissão para falar, e depois dele tudo foi

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perdendo a rigidez, a formalidade e ganhando cara de vivência. Os alunos, ainda acanhados, ouviam atentos com medo de perder algu-ma coisa caso piscassem.

Aos poucos a postura deles foi mudando. Indagados sobre o que estavam achando deste primeiro contato com as ruas, eles foram emitindo suas opiniões, largando

as câmeras e soltando as cane-tas, aproveitando o momento e a interação com cada um dos personagens que ganhavam

forma diante de seus olhos: G, Caveira, Jonathan, Lucifer, Marcelo, Lili... E com o passar

da noite e o com a confiança estabelecida, câmeras e ca-

netas de volta às mãos, pautas começaram a

Dividindo histórias - Welliton Farias e Lilliana San Martin, jovens, estudantes que compartilham de momentos diferentes da vida

Crédito: Tiago Bento

ser estabelecidas. “Eu vou contar a história de tal pessoa…”, “Eu quero contar a história de todo mundo!”. Houve quem se emocionasse, quem lembrasse o real motivo de querer ser um jornalista _ emocionando todo mundo. Houve quem se as-sustasse com a dura realidade à sua frente, quem achasse que seria uma tarefa simples ir ao centro da cida-de à noite e escrever uma matéria, e descobriu que não é. Houve quem sentisse medo, e quem simplesmente travasse com a ideia de falar com um completo estranho.

As noites seguintes foram um misto de alívio para aqueles que já sabiam quem procurar e onde ir; e aqueles que ainda embaraçadamente buscavam alguém ou algo que qui-sesse dividir sua história. Aos poucos

a rodoviária Rita Maria, o Largo da Alfândega, os terminais de ônibus, a Travessa Ratcliff, cada cantinho do Centro foi explorado em busca de uma história, de uma voz, de alguém que quisesse contar alguma coisa, qualquer coisa.

Os traços de cada futuro jorna-lista afloraram naquelas noites. Os mais tímidos, os destemidos, os ou-sados, os atrevidos até demais. Os fo-tógrafos, os repórteres, os escritores, os produtores e os radialistas. Cada qual com seu perfil. Nada é perma-nente, mas todos têm suas caracte-rísticas marcantes que os diferen-ciam, que os tornam únicos. Marcas que ficam ainda mais evidentes em cada texto escrito, cada audiovisual produzido, corajosamente publicado e aqui exposto.

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Papel, caneta, emoção

Lá estava eu. Pronta! Caneta, bloquinho, jornalista à procura de um personagem. De repente me deparo com um grupo de jo-vens adultos, colegas de sala de aula, colegas jornalistas, reagindo ao ambiente em que se inseriram com emoção, com coração e o mais importante: com dedicação.

O que só a rua sabe

“O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos”

Walter Benjamin

Em três noites de flânerie os alunos tentaram ao máximo seguir todos os ensinamentos adquiridos em sala de aula. Eliane Brum, Edgar Allan Poe, João do Rio, George Orwell... Bagagem teórica eles pos-suíam para ir às ruas e extrair delas toda a sabedo-ria que somente ali poderiam adquirir. Walter Ben-jamin já dizia “(...) O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais.”

E tudo o que eu havia planejado caiu por terra. Eles passariam a ser a história da minha flânerie.

Os olhos brilhavam, o cora-ção batia forte – parecia que dava para ouvir o “tum-tum-tum”, e as mãos?! Ah, as mãos não paravam de forma alguma! Era anotações pra cá, fotos pra lá, era bonito de

ver! Como não contagiar-se com a paixão pelo ofício que exalava pelos poros destas pessoas? E as-sim me deixei levar, observei-os sem interferir, percebi como cada um conduzia sua en-trevista, es-colhia seu personagem e fazia da sua flânerie um momento único e apaixonante.

E assim eles observaram, examinaram atentos aquela realidade diante de seus olhos. E de forma prática esco-lheram as histórias que gostariam de dar atenção. Em “O Narrador”, Walter Benjamin analisa a obra de Nikolai Leskov que afirma: “A lite-ratura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual.” Diz ainda que “Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. As-sim que se imprime na narrativa a marca do narra-dor, como a mão do oleiro na argila do vaso.”

Um pouco mais sábios do que antes, os futuros jor-nalistas puderam experienciar causos, ouvir histórias, aumentarem seus acervos de vida e imprimir suas marcas nas narrativas que escreveram. Todos ter-minaram esta experiência um pouco mais expe-rientes, um pouco mais conselheiros, um pouco mais narradores, um pouco mais jornalistas.

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Nesses tempos internéticos, quando os jor-nalistas preferem escrever suas matérias apenas

consultando o google ou fazendo entrevistas por email, as professoras do Curso de Jornalismo da Unisul, Raquel Wandelli, Cláudia Reis e Viviane

Bevilacqua, insistem nas velhas práticas de repórter, que nada mais são do que o encontro amoroso com

as gentes e as ruas. Na noite dessa terça-feira (20 de outubro) elas le-

varam a turma do segundo ano para um passeio pelo centro da cidade, buscando realizar a beleza do cor-po-a-corpo com a vida, como diria o grande repórter

João Antônio. E o que vivenciaram foi o assombramento que só é possível para aqueles que saem de suas zonas de

conforto e se embriagam da existência vertiginosa dos ca-minhos da margem.

A aula ao ar livre começou no coreto da Praça XV, esque-cido espaço de retretas e alegria. Hoje ele serve de cama para um bom número de moradores em situação de rua. Pedindo licença para os que ali ajeitavam suas poucas coisas, os estu-dantes chegaram, meio tímidos. Licença dada, Raquel co-meçou sua fala, contando da experiência de observar a vida das ruas que começou lá longe, na França, com os famosos “flâneurs” (caminhantes) e que, depois, foi tomando corpo como uma prática jornalística.

No Brasil temos bons exemplos como João do Rio, João Antônio, Marcos Faermann, Eliane Brum.

Depois, os alunos apresentaram cantos e falas, tudo re-lacionado a esses que, nas ruas, são invisíveis para o jor-nalismo normótico, acostumado às salas acarpetadas e às

fontes oficiais. Enquanto tudo isso acontecia, os morado-res de rua foram se aproximando. Mais um pouco e eles já estavam sentados no coreto, junto com a turma. E um pouco mais, estavam falando e contando suas his-

tórias, ensinando sobre a vida e sobre ser quem são. Foi um momento mágico. Estava feito o encontro, essa coisa bela em que um olha para o outro, sem medo.

Percival, Caveira, Gê, Junior, Lúcifer e outros tantos que ali foram se acercando estabeleceram

a relação de confiança. Famintos de palavras e atenção, eles transformaram a aula em espaço

de diálogo fraterno e terno. Teve de tudo, discursos, emoção, lágrimas, risos, canto, chuva, vento fresco. E os estudantes puderam perceber que há múltiplos universos circulando na vida real e que é ali que moram as histórias e os seres mági-

O repórter e a rua

OUTRAS VOZES

Elaine Tavares conta sobre sua paixão pelo jornalismo de rua

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Era noite alta, fazia frio e as ruas da cidade estavam desertas. Gê chega à Praça XV, no Centro, e confirma o que tinham lhe contado: o seu melhor amigo delira-va deitado num banco. Daquela vez, pelo menos, não era cachaça nem droga. O rapaz, sempre tão franzino, de saúde frágil, ardia em febre. Era por isso que dizia coisas desconexas, num estado de semi-consciência. Chamar ambulância não mudaria a situação — tal-vez se esperasse pelo socorro o amigo morreria antes mesmo da viatura chegar.

— Morador de rua não é público preferencial — dona.

Ele sabe disso porque também vive na rua há quase quatro anos. Sem alternativa mais fácil e rápida, Gê co-locou o amigo nas costas e saiu caminhando, da Praça até o Hospital Celso Ramos. Era um passo e um suspi-ro. Um passo e um gemido, de febre, de dor, de cansa-

Um outro olhar para a cidade

cos que constroem o mundo. Depois de trocas e abraços, a turma seguiu caminhando

pela Praça XV, descobrindo os lugares já mortos, desapareci-dos, como a feira hippie que vicejava no meio da Praça, ou o Miramar, cujo fantasma se levanta em frente ao antigo termi-nal de ônibus. Caminhando pelas ruas, eles foram descobrin-do uma Florianópolis antiga, mas que ainda vive na memória, uma cidade tomada, tirada das gentes. Depois circularam pela Travessa Ratclif, onde ainda resiste parte da vida cultural.

Flanando na noite fresca, os futuros jornalistas foram toca-dos pela asa do repórter, esse ser que pergunta, que questiona, que narra. Esse ser que caminha pelas ruas, pelas margens, pe-los cantos escuros onde ninguém quer passar, que destapa as mentiras, que descortina verdades. O repórter, esse inconfor-mado, esse contador de histórias que, ao contá-las, diz do mun-

do inteiro. O repórter, o ser das ruas, da vida real. E tanta magia se fez que até se pode ver o espírito o Mosquito (Hamilton Alexandre), um desses históri-cos caminhantes da cidade, que andava sempre com seu notebook na mão, auscultando a vida do Desterro.

A aula de Raquel, Cláudia e Viviane foi uma dessas coisas inesquecíveis, que só acontecem porque ainda há os que insistem no jornalismo real, esse que analisa o dia, que busca na vida mesma a essência do que se pode narrar.

Convidada que fui para falar de minha prática, sem-pre pautada nesse suporto de que a rua ainda é o melhor lugar para buscar histórias, eu pude viver esse momento. Agradeço! Foi lindo! - Publicado originalmente em 21/10/2015 no blog Palavras Insurgentes, de Elaine Tavares (eteia.blogspot.com.br)

ço, tudo misturado. Nas ruas escuras, a figura dos dois, assim, grudados um no outro, parecia uma miragem. Ou cena de um filme surreal.

Já perto do hospital um taxista passou devagar pe-los dois. Parou, voltou, ofereceu ajuda. Um alívio para Gê, que, mesmo arqueado e quase sem forças, dizia o tempo todo para o amigo que tudo iria acabar bem. A carona foi mais do que providencial. Um alívio.

Enquanto o amigo esteve internado, Gê não ar-redou pé de lá. Voltaram para Praça XV alguns dias depois. E assim eles seguem, um cuidando do outro.

— Temos vários parceiros aqui, a gente se ajuda. Mas eu e ele somos família. Coisa de irmão mesmo, parceria pra vida — contou Gê, para uma pequena plateia que o fitava de olhos arregalados e curiosos. - Publicado origi-nalmente em 23/10/2015 no site Diário Catarinense, por Viviane Bevilacqua (diario.com.br)

Elaine Tavares conta sobre sua paixão pelo jornalismo de rua

Na ágora da praça XV, estudantes prestam homenagem às pessoas em situação de rua

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