A Encruzilhada Dos Três Caminhos

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A Encruzilhada dos Três Caminhos Considerações sobre a Pessoa e a Persona Pedro Jacob Morais Doutorando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto “A lei escrita não pode revogar o que a vida legislou” TEIXEIRA DE PASCOAES Sumário: Neste artigo analisamos o conceito de inimigo de JAKOBS, contrapondo-o ao inimigo absoluto de CARL SCHMITT, de forma a revelarmos a tensão dialética que subjaz à construção da persona na teoria do Direito Penal do Inimigo. Palavras-Chave: Inimigo; Inimigo absoluto; Persona; Direito Penal do Inimigo; Dignidade humana. Abstract: In this article we analyse the JAKOB's concept of enemy, opposing the said concept with the Carl Schmidt's absolute enemy, in a manner to distress the dialectical tension related to the construction of the persona in the Enemy's Crime Law theory. Keywords: Enemy; Absolute enemy; Persona; Enemy’s Crime Law Theory; Human Dignity. Pedro Morais 1

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Filosofia do Direito, Direito Penal

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A Encruzilhada dos Trs CaminhosConsideraes sobre a Pessoa e a Persona

Pedro Jacob MoraisDoutorando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Porto

A lei escrita no pode revogar o que a vida legislouTEIXEIRA DE PASCOAES

Sumrio: Neste artigo analisamos o conceito de inimigo de JAKOBS, contrapondo-o ao inimigo absoluto de CARL SCHMITT, de forma a revelarmos a tenso dialtica que subjaz construo da persona na teoria do Direito Penal do Inimigo. Palavras-Chave: Inimigo; Inimigo absoluto; Persona; Direito Penal do Inimigo; Dignidade humana.

Abstract: In this article we analyse the JAKOB's concept of enemy, opposing the said concept with the Carl Schmidt's absolute enemy, in a manner to distress the dialectical tension related to the construction of the persona in the Enemy's Crime Law theory.Keywords: Enemy; Absolute enemy; Persona; Enemys Crime Law Theory; Human Dignity.

Vivemos num mundo perigoso porque inesperado e impassvel nos trabalhos de Hracles, em nmero bem superior a doze, a que nos vota. E ns, se juristas formos, e juristas altura do desafio, no nos podemos furtar contenda, no nos podemos furtar ingente realidade que nos entra pela vista adentro e permanecer num abandono ausente de curiosidade, dentro de uma pilha de livros opacos ao pulsar das gentes que vivem e, por assim viverem no ar livre do bafio do papel, necessitam de respostas atentas e tempestivas, respostas para o aqui e agora, honestas, dedicadas. Necessitam, dizemos, de um direito de face no ptrea, embora fundado sobre a pedra de uma confluncia de tradies a impedir que as portas do abismo se abram sob os nossos ps. Coisas h cujo esquecimento anncio de runa prxima, pois o estado das coisas que so e que vemos no resultou de um processo de gerao espontnea. O sacrifcio humano feito caminho que desagua em ns, rectius, no desagua em ns nem desaguar no futuro, caudal infindvel para quem no cr num curso histrico finalisticamente orientado, no fim dos tempos, esse fado to universal quanto insuportvel. Retomemos o raciocnio o sacrifcio humano feito caminho que nos antecede, quando esquecido, transforma em treva as idiossincrasias, os despojos de combate conquistados, feridas includas, que por impacto mais ou menos traumtico determinam a concreta conformao fsica e intelectual que hoje possumos. Subamos um nota na circunspeco - esquecer o caminho percorrido pr em causa a direco a tomar no futuro.

Socorramo-nos de dois exemplos para tornar o novelo linha a prumo. Em primeiro lugar, recordemos uma tragdia de SFOCLES, o Rei dipo[footnoteRef:1]. Esta obra, momento decisivo da ascenso e subsequente queda de dipo em Tebas, ou melhor, momento decisivo e irreversvel na vida desta personagem, tem lugar num local de estranha conformao geogrfica, a encruzilhada dos trs caminhos. Sabemos o que dipo escolheu, sabemos que, por desconhecimento do passado, optou por um futuro insustentvel. [1: Vide SFOCLES, Rei dipo, trans. Maria do Cu Zambujo FIALHO (Lisboa: Edies 70, 2009).]

Esta encruzilhada dos trs caminhos intriga-nos, por considerarmos ter muito que ver com a perfectibilidade humana um caminho para a queda, uma queda que tem valiosas lies para nos fretar, como as valiosas lies representadas nos crculos infernais de DANTE; outro caminho para o reerguer aps a queda, o acto de levantar o corpo em peso e sem ajudas; o ltimo caminho significa a ascenso final, derradeira etapa no reconhecimento do passado histrico, do legado cultural que nos enforma.

dipo errou ao escolher um s caminho e ao no mais voltar encruzilhada, errou por ter conhecido a queda aps a ascenso, por no ter compreendido que a queda impede a queda.

Tomemos, como segundo exemplo, a vida em taca vinte anos aps a partida de Ulisses para Tria[footnoteRef:2]. Uma terra esquecida do seu senhor, a viver num presente imediatista de tapearias e esperas em banquetes, que revela extrema prodigalidade no consumo de recursos rdua e paulatinamente amealhados. Terra corrupta revela ser uma sombra do que foi, terreno frtil feito areia e elites feitas menestris das massas. S o regresso de Ulisses, mascarado de tristeza maltrapilha perante a perdio das suas gentes, por termo ao esquecimento colectivo. Contra o olvido, o reconhecimento e afirmao contnua do dstico que nos faz pessoa, da inalienvel e ilimitvel dignidade humana, fruto, no do concreto homem como soberano artfice de si mesmo[footnoteRef:3], mas da humanidade como soberana artfice de si mesma, dotada de um singular autodomnio criao e destruio, pulso e finalidade, o homem dotado de uma natureza irrepetvel, o homem enquanto originalidade ou golpe vibrante da Natureza, a letra maiscula a denunciar solenidade. Elemento nico, transcendente, que no necessita da comprovao da capacidade de autodomnio do homem concretamente, que no admite a excluso de nenhum homem do status personae, uma vez que todo o homem pessoa. [2: Utilizamos como referncia, HOMERO, Odisseia, trans. Frederico Loureno, 7 edio ed. (Lisboa: Livros Cotovia, 2006).] [3: Na clebre expresso de Giovanni Pico della MIRANDOLA, Discurso Sobre a Dignidade Do Homem, trans. Maria de Lourdes Sirgado Ganho, 6 edio ed., Textos Filosficos (Lisboa: Edies 70, 2010). pg. 57, que no resistimos transpor: No te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, rbitro e soberano artfice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poders degenerar at aos seres que so as bestas, poders regenerar-te at s realidades superiores que so divinas, por deciso do teu nimo.]

Assim, no necessrio afivelar a persona[footnoteRef:4], afianar que somos pessoa, garantir que nos comportamos como tal e que oferecemos a garantia cognitiva exigida por JAKOBS[footnoteRef:5]. A contraposio entre pessoa e inimigo traz implcita a assuno de que a personalidade ou a pessoalidade um caminho unidirecional ou monodimensional o que constitui a negao das mitologias vrias integradas na nossa mundividncia e ignora a natureza polissmica destes mitos, polissemia esta que torna o mundo mais rico e variegado. Exigir que o homem, para ser pessoa, se comporte de determinada forma, remetendo o comportamento diverso para a categoria do inimigo, constitui uma restrio, ou melhor, uma amputao da sua natureza de difcil legitimao. Ainda que, como admite HERVADA, em determinados momentos o homem se possa revelar indigno ao adoptar uma concreta conduta que contrarie, ou melhor, que no se coadune com as suas pulses naturais[footnoteRef:6], nem por isso deixar de ser pessoa o homem indigno atenta contra a sua natureza, arremete contra o prprio corpo num impulso mutilador. [4: Assim, Gnther JAKOBS, Sociedad, Norma Y Persona En Una Teora De Un Derecho Penal Funcional, trans. Cancio MELI and Feijo SNCHEZ (Madrid: Civitas, 2000). pg. 50 e 51, Ser persona significa tener que representar un papel. Persona es la mscara, es decir, precisamente no es la expresin de la subjetividade de su portador, sino que es representacin de una competncia socialmente comprensible.] [5: Cfr. Derecho Penal Del Enemigo, trans. Cancio MELI (Madrid: Civitas, 2003). pg. 40.] [6: Javier HERVADA, Crtica Introdutria Ao Direito Natural, trans. Joana Ferreira da Silva, Resjurdica (Porto: Rs, 1990). pg. 140, exemplifica: O que rouba, no acto do roubo e enquanto rouba e s enquanto rouba - , no digno mas indigno, e por isso o acto do roubo no gera o direito a essa actividade, mas clama por coaco.]

Mais se diga que esta indignidade se revela apenas no momento da prtica do facto, no servindo de legitimao a uma actuao irrestrita dos rgos de polcia criminal, que continuaro vinculados ao respeito da dignidade intrnseca do sujeito vertida num conjunto de direitos, liberdades e garantias que s excepcionalmente, aps ponderao que respeite o seu ncleo essencial (art. 18 CRP), podero ser restringidos.

Como tal, resulta bvia a parcimnia que deve rodear a aplicao de uma escuta telefnica, o levantamento do sigilo profissional, uma busca ou revista, ou at o recurso figura do agente encoberto. Necessidade de respeito esta que se verter tambm nas proibies de valorao de prova dependentes ou autnomas aquelas ligadas a uma anterior violao de uma proibio de produo de prova, sendo estas recondutveis aos casos em que, apesar de terem sido respeitadas as normas de aquisio probatria, resulta chocante, luz das normas e valores constitucionais, valorar a prova.

Queremos com isto significar que, seguindo ainda a posio de HERVADA, do reconhecimento da indignidade de um homem concreto na sua circunstncia -tomemos por exemplo do arqutipo do criminoso - no resulta o alastramento da mcula s fases processuais que se seguem. Por outras palavras e de forma sinttica, o homem, pelo facto de cometer um crime, qualquer que esse crime seja, no perde o seu status personae, no se torna inimigo, no lhe podendo ser denegada justia. Destarte, quando falamos de um tratamento diferencial para uma determinada categoria de pessoas veja-se o pesado lastro histrico nsito nesta escolha de palavras ou de no pessoas, caso os enquadremos como inimigos, colocamos em evidncia o problema do justo, com mais propriedade, colocamos em dvida a existncia de um justo natural. Com justo natural queremos significar esse suum cuique tribuere[footnoteRef:7] que se ergue acima do homem individualmente considerado, numa suspenso transcendente impassvel ao tempo e lugar, modo nico e perene do homem que, por ser homem, potncia, gesto inacabado, ser que ainda no numa incessante busca de superao. [7: Antnio Jos de BRITO, Ensaios De Filosofia Do Direito E Outros Estudos (LISBOA: INCM, 2006). pg. 68 e 69, considera que desde Aristteles a Del Vecchio e John Rawls, a ideia de justia, tomada na sua pureza, no vai mais alm do suum cuique tribuere, mesmo que no se use esta expresso.]

Ao tratarmos o terrorista como inimigo, julgando-o num tribunal militar, sem representante legal, com um segredo de justia interno blindado, ou negando-lhe o direito ao recurso efectivo; ao permitirmos a utilizao de tortura como meio de obteno de prova, ou a possibilidade de interrogatrios sugestivos, qualquer considerao atinente verdade remetida para segundo plano. No se pense que ignoramos a impossibilidade de alcanar a verdade material em sede processual penal. De facto, o processo fundado em enunciados apofnticos, enunciados estes que funcionam como receptculos possveis dos factos e sofrero inevitavelmente compresses ou limitaes vrias indispensveis num Estado material de Direito. Referimo-nos s supramencionadas proibies de aquisio e valorao probatria, alterao dos factos, ao mecanismo do habeas corpus, s regras dos recursos, aos acordos de extradio, aos prazos de prescrio da pena ou do procedimento criminal, etc. Contudo, ainda que a verdade material seja limitada, passando a designar-se verdade processualmente vlida, nem por isso deixa de ser verdade para passar a ser pura abstraco. Pelo contrrio, a sua adaptao aos exigentes pressupostos do Estado material de Direito, numa ptica de proteco dos direitos fundamentais do cidado, contribui para aquilo que constitui objecto do presente artigo, a busca do justo uma busca que dificilmente se compatibiliza com a verdade a todo o custo. Rematando esta ideia, podemos afirmar que, tal como a liberdade no liberum arbitrium indifferentiae, a verdade no pode ser entendida como verdade a todo o custo. Ora, s um sistema que se abstraia da verdade, um sistema cuja finalidade mais no seja a absoro de protestos atravs da estabilizao contrafctica das expectativas comunitrias na vigncia da norma, pode defender a ciso do ser humano em pessoa e inimigo.

Se admitirmos com JAKOBS queperante o inimigo s coaco fsica at chegar guerra[footnoteRef:8], mais no estamos do que a expressar a necessidade de um contrrio. O inimigo como sujeito antittico da pessoa aproxima-se perigosamente da ideia da necessidade de criaes monstruosas como garante da nossa dignidade e humanidade[footnoteRef:9]. Teramos, ento, um inimigo como criao humana a manter-nos pessoas. Seriamos pessoas custa de uma categoria por ns criada e mantida pela fora, categoria esta formada por indesejados a ideia paradoxal de o substrato da pessoa ser alcanado custa da sua anttese. [8: Vide JAKOBS, Derecho Penal Del Enemigo. pg. 33. (trad. nossa)] [9: Esta ideia encontra-se brilhantemente defendida em Jos GIL, Monstros (Lisboa: Relgio D'gua, 2006). ]

O inimigo como garante do cidado mais no que a coeso alcanada pelo poder centrpeta do oposto, mais no do que o gradual movimento de extrinsecao que tem como desfecho a devoluo do homem-cidado a si prprio. E temos, como dado prvio jornada, que a formao e punio do inimigo representa um processo dialtico de reduo de rudo. Seno vejamos, na subsuno do conceito de terrorista maxime o fundamentalista islmico, categoria de inimigo, os Estados ocidentais servem-se desse artificialismo a que damos o nome de sentimento de insegurana para legitimar frmulas como a guerra justa, a guerra contra o terrorismo. Ora, estas frmulas, em ltima anlise, levaro ao reforo da forma mentis vulgarmente associada aos Estados de matriz ocidental ainda que possamos ter dvidas sobre a possibilidade de destacar uma matriz comum da mirade de referncias esparsas e divergentes, enfim, das idiossincrasias que povoam a ampla geografia que consideramos afim.

O cidado ocidental, confrontado com o outro, com o terrorista, embalado pelos seus medos que transformam o diverso no arqutipo do mal, sente-se mais humano, demasiado humano, atrevemo-nos a afirmar. O contacto com o monstro anula momentaneamente as nossas fragilidades e contribui para sublimao das nossas capacidades. No devemos esquecer que o confronto entre Teseu e o Minotauro representa a superao humana. E ns, ilustres habitantes do mundo ocidental, reforamos a confiana nos nossos Estados, na nossa qualidade de cidados, na nossa exemplaridade frente ao mal, reforamos a nossa confiana nas democracias quando confrontados com o nosso contrrio, o nosso inimigo, essa ncora essencial.

Esta dialtica, como no podia deixar de ser, tem lugar em trs momentos. Em primeiro lugar, surge o momento sincrtico, a desorientao provocada pela perda ou pela mudana dos referentes tidos como conaturais cidadania. Temos a dissoluo do plano moral e a fuga para a frente em direco tica, em particular em direco biotica, considerada o sucedneo do Direito Natural. Como vemos, o esbatimento da distino entre moral, tica e metafsica joga um papel no desprezvel no quadro catico que nos vem sendo apontado por autores vrios. A alertar-nos para a cultura-flash, informao-segundo, a hegemonia do efmero[footnoteRef:10] e o recuo da moral perante a tica mnima[footnoteRef:11], temos LIPOVETSKY. A introduzir o conceito de Risikogesellschaft[footnoteRef:12], alertando-nos para a ubiquidade do risco num mundo que reduz exponencialmente distncias, a colocar a tnica na modernidade reflexiva[footnoteRef:13], temos BECK. No esqueamos, ainda, o exlio dos deuses e a gregarizao do homem, anunciados, em sonho proftico, por HEIDEGGER[footnoteRef:14]. E talvez no seja descabido reunir todas estas referncias sob o feixe agregador da mitologia hindu, nomeadamente sob o mito da poca Kali ou idade sombria. A idade sombria mais no do que um momento de Queda, um momento de profunda devassido e desespero que termina, levantado do cho, no seu inverso, a poca Kitra[footnoteRef:15] sobre esta ascenso, nem uma palavra, por ora. [10: Para maior desenvolvimento, vide Gilles LIPOVETSKY, O Imprio Do Efmero, trans. Regina LOURO, 2 edio ed. (Alfragide: D. Quixote, 2010). ] [11: Sobre a tica mnima ver O Crepsculo Do Dever, trans. Ftima GASPAR and Carlos GASPAR, 4 edio ed. (Alfragide: D. Quixote, 2010)., em especial, pg. 151 e ss. ] [12: Para uma viso global da teoria ver Ulrich BECK, Risk Society: Towards a New Modernity, trans. MARK RITTER (London: Sage, 1996).] [13: Vide Modernizao Reflexiva : Poltica, Tradio E Esttica Na Ordem Social Moderna, trans. Maria Amlia Augusto (Oeiras: Celta, 2000). ] [14: Cfr. Martin HEIDEGGER, "Nur Noch Ein Gott Kann Uns Retten," Der Spiegel, no. 23 (1976).] [15: Sobre estes mitos, veja-se a interessante anlise de Jos de ORTEGA Y GASSET, Espaa Invertebrada: Bosquejo De Algunos Pensamientos Histricos, ed. Coleccion Austral (Madrid: Espasa-Calpe, S.A., 1967). pg. 106 e ss.]

Em momentos como os descritos, ou melhor, a existirem momentos como os descritos, a comunidade trespassada por um sentimento de insegurana que ameaa colocar em perigo a solidariedade intersubjectiva que constitui o substrato imprescindvel a toda a comunidade organizada em Estado, a todo o Estado material de Direito. Assim, para que a desconfiana no paralise os movimentos, a estabilizao contrafctica das expectativas que a comunidade deposita na norma elevada a preocupao cimeira, elevada a avatar da poltica criminal dos Estados. Estabilizao contrafctica das expectativas comunitrias na vigncia da norma, estabilizao acima de tudo, que em segundo plano ficam as finalidades especiais preventivas associadas pena. A hegemonia da preveno geral positiva ou de integrao evoca um movimento circular, movimento autopoitico, puramente interno, entre as expectativas comunitrias e a norma. Temos para ns, que a beleza dos sistemas auto-referentes desemboca numa autofagia, e cremos que no Direito toda a autofagia constitui frmito antropfago.

Semelhante frmito antropfago revela-se nas supramencionadas teorias que embandeiram a proliferao e a ubiquidade de risco vrios, a transparncia do homem feito cristal a deixar escapar o que deveria permanecer forum internum, numa palavra, a liquefao dos elementos agregadores da polis. Vivemos no tempo da grande criminalidade, da criminalidade transnacional e internacional, altamente organizada, que obedece a estruturas empresariais, mais ou menos estratificadas, mais ou menos centralizadas. Perante o estado as coisas que so e antevendo o estado das coisas que vm, antecipamos a proteco dos bens jurdicos, ao que se junta a criao de novos bens, predominantemente colectivos. Erigimos um Direito Penal de guarda avanada que no permite a manuteno das mesmas garantias oferecidas pelo Direito Penal de feio clssica. Diminumos a proteco de direitos, liberdades e garantias em nome da segurana pblica, alargamos e apertamos a malha, de regime de excepo em regime de excepo, at impossibilidade de retorno ao status quo ante. E, sinal dos tempos, augure nefando, voltamos a discutir temas de antanho: a delimitao do conceito de tortura e a sua legitimao em casos-limite; a pena de morte e a priso perptua; o retorno das penas infamantes; a obrigatoriedade de constituio de defensor; a flexibilizao das supramencionadas proibies de produo e de valorao da prova, etc. O grande problema da legitimao de semelhantes atentados figura do arguido reside na dificuldade de manuteno da sua aplicao a casos-limite. Como uma gota de tinta sobre folha de papel, a experincia dos casos-limite rapidamente degenera na experiencia dos casos-quotidianos - Abenoado boticrio, activa a tua droga![footnoteRef:16] - e o destinatrio da norma, inicialmente o terrorista ou o agente de uma organizao criminosa, passa a ser o vulgo e desprevenido cidado, o mendigo, o doente, o dependente e, quem sabe, o nosso vizinho. [16: Versos de Romeo e Julieta. No original pode ler-se, O true apothecary! Thy drugs are quick. Thus with a kiss I die.]

Pelo exposto e em dramtica sstole, a comunidade perde estabilidade, merc do crescente sentimento de insegurana, merc da falta de confiana na vigncia da norma violada ou da necessidade de novas norma mediaticamente concebidas. Assim, apresentamos como tese do trplice movimento em estudo, o homem acossado, a pessoa perante o risco, apresentamos a vertigem dos grandes espaos[footnoteRef:17]. [17: Ainda que possua um interesse meramente lateral no presente estudo, gostaramos de referir a esclarecedora anlise de Adriano MOREIRA, Cincia Poltica, 5 edio ed. (Coimbra: Almedina, 2012). pg. 356 e ss, teoria dos grandes espaos ou do espao vital de SCHMITT. ]

Ora, a vertigem dos grandes espaos e a metastizao do sentimento de insegurana, constituem terreno frtil ao surgimento do inimigo, seja ele terrorista, migrante, criminoso internacional ou, to s, portador dos traos fisionmicos da desconfiana. Explicitemos - o inimigo surge como a negao da forma mentis ocidental, surge em ntido choque com o cidado europeu, o US citizen, o gentleman, der edle Charakter[footnoteRef:18]. Ainda que estes conceitos por vezes se assemelhem a uma pura abstraco e, portanto, sem arrimo nossa circunstncia, o inimigo surge como a negao daquilo que julgamos ser. O inimigo, mais do que oponente de duelo, o nosso inverso e, ao mesmo tempo, componente essencial do que definimos como o nosso modelo de cidadania. Alis, o inimigo nunca poderia ser o nosso oponente de duelo, ou melhor, nunca nos poderamos bater com ele em duelo a seu tempo chegaremos a este ponto. [18: A frisar a importncia destes caracteres perante a violncia no ocidente, Eric WEIL, "A Educao Enquanto Problema Do Nosso Tempo," in Quatro Textos Excntricos (Lisboa: Relgio D'gua, 2000). pg. 56.]

Se o homem hodierno se apresenta acossado ou pressionado por perigos vrios, imprevisveis, volteis, liquefeitos, enfim, pelo aparato de solicitaes e desafios comummente apontados, a criao do inverso, a definio daquilo que o homem no , torna-se tarefa urgente. No devemos esquecer que um homem acossado um homem que sente ou pressente o colapso dos referentes que compem a sua circunstncia, sejam referentes geogrficos, histricos ou culturais. E assim, colocado perante a dvida, perante a prova caldria das suas semelhanas e dissemelhanas, necessita de um eixo, necessita de um plo definidor. O inimigo, enquanto negao dos nossos referentes, apresenta-se como curioso timoneiro que devolve ao homem os seus traos humanos, que o acompanha a casa. As faces absurdas deste inimigo tornam-no monstro e guia, absolutamente existencial estabilizao das expectativas depositadas nas normas dos Estados materiais de Direito. Nas palavras de JOS GIL, o homem sente actualmente um intenso fascnio pela monstruosidade, uma vez que os monstros so-lhe absolutamente necessrios para continuar a crer-se homem [footnoteRef:19]. [19: Cfr. GIL, Jos op. cit. pg. 14.]

Crer-se homem significa definir-se na diferena, na oposio com o outro. Aqui no o sono da razo que produz monstros, o homem que urde o seu substrato atravs da dialtica amigo/inimigo ou homem/monstro. Ora, a resposta ao problema colocado pela tese o homem acossado no se resolve, para JAKOBS, pelo simples jogo de foras entre o amigo e o inimigo como em CARL SCHMITT, no se resolve atravs da tenso essencial de fim no estigmatizante para o outro, que este autor eleva a fundamento do poltico[footnoteRef:20]. Mas JAKOBS no se basta com esta tenso dialtica e descreve um sistema dualista que doseia os direitos, liberdades e garantias do arguido de acordo com a maior ou menor estabilidade cognitiva por este apresentada. Aqui, a tenso dialtica resolve-se numa soluo estigmatizante, uma vez que nega a dignidade imanente a todo o homem e que transcende o hic et nunc, esse conceito agregador do viver comunitrio pretrito, presente e futuro. Ainda que subsista cerrada celeuma sobre o carcter prescritivo ou descritivo dos enunciados de JAKOBS, devemos recordar que, para este autor, perante o inimigo s coaco fsica at chegarmos guerra[footnoteRef:21]. Temos, destarte, a necessidade de levar a ciso entre amigo ou cidado e inimigo at s ltimas consequncias. Apresentando-se como verdadeira reductio ad hitlerum, no se contenta com a afirmao do inimigo para definir o cidado, e exige a inadmissibilidade de aplicao das garantias penais e processuais penais de um Estado material de Direito ao inimigo. Assim, atravs da sua aplicao exclusiva quele que apresente garantia cognitiva suficiente para se comportar como pessoa[footnoteRef:22], sairmos definitivamente do impasse dialtico com a elevao deste ltimo a sntese. [20: Para Jos Luis MONEREO PREZ, "El Espacio De "Lo Poltico" En Carl Schmitt," in El Leviathan En La Teora Del Estado De Tomas Hobbes (Granada: Editorial Comares, S.L., 2004). pg. XVIII, El enemigo no es estigmatizado, ya que luchar contra l se hace existencialmente necesario como medio para encontrar la propria medida, los proprios lmites, e incluso la propria personalidad.] [21: JAKOBS, Derecho Penal Del Enemigo. pg. 33, (trad. Nossa). ] [22: Ibid. pg 40, (trad. nosso).]

Apresentamos o inimigo como anttese do homem acossado. Convm, neste ponto, despender algumas palavras, no mais do que nas necessrias, sobre a natureza do outro. Usando terminologia schmittiana, o inimigo de JAKOBS dever ser definido como hostis ou inimigo pblico - enquanto oponente de uma determinada comunidade ou Estado e no como inimicus - oponente meramente pessoal[footnoteRef:23]. O conceito de hostis ou inimigo pblico abarca o inimigo verdadeiro ou real, e o inimigo absoluto ou ideal. O inimigo verdadeiro aparece materializado num dado contexto espcio-temporal, passvel de ser identificado sem grande esforo. Em casos destes, a disputa ocorre em torno de bens visveis e passa pela consecuo de determinado objectivo, o qual, quando atingido, pe fim ao conflito. J o inimigo absoluto representa uma abstraco, no individualizvel ou facilmente identificvel. A volatilidade e indefinio deste sujeito deixa patente o perigo que guerras em seu nome representam para a humanidade - aqui surgem as guerras justas, ou as guerras totais, e perdidos ficam os limites do humanamente admissvel ou tolervel. [23: Cfr. Carl SCHMITT, The Theory of the Partisan, trans. A.C. GOODSON (Michigan: Michigan State University Press, 2004). pg. 60 e ss. Numa interessante anlise destes conceitos schmittianos, Nuno ROGEIRO, O Inimigo Pblico : Carl Schmitt, Bin Laden E O Terrorismo Ps-Moderno (Lisboa: Gradiva, 2003). pg. 19 e ss.]

Se atentarmos nas frmulas utilizadas por JAKOBS quando se refere ao inimigo, se atentarmos no enfoque colocado na garantia cognitiva e na assuno autopoitica de papis - deriva nitidamente luhmanniana[footnoteRef:24] - consubstanciada no acto catrtico, momento definidor e definitivo, de afivelar a mscara; se atentarmos em tudo isto, dizamos, somos levados a concluir que o inimigo de JAKOBS s poder ser o inimigo absoluto. Note-se que este inimigo, de que o terrorista, maxime o jihadista, constitui meditico arqutipo, pauta-se pela indefinio, pela dvida. Poderamos at afirmar com APOLLINAIRE Il y a dit-on un espion qui rde par ici invisible comme l'horizon dont il s'est indignement revtu et avec quoi il se confound[footnoteRef:25]. De facto, o inimigo jakobsiano comunga de todas as caractersticas do inimigo ideal, a saber: dificuldade de operar a sua densificao, individualizao, ou identificao; colocao em risco do sujeito ou absoro deste pelo multiverso de objectivos prosseguidos pela luta terrorista ou crime organizado; a problemtica identificao dos bem que se visam proteger no confronto (segurana pblica, sade pblica, vida, integridade fsica, etc); e at a concreta delimitao espacio-temporal do fenmeno em causa. Mas aqui reside o golpe de gnio vibrado por JAKOBS, na escolha de um inimigo que no pode ser vencido. Assim, a importncia do inimigo enquanto instncia dialtica de superao do homem acossado e substituio da pessoa pela persona, advm da impossibilidade de ser derrotado. Como enuncimos atrs, estamos perante a impossibilidade de duelo, uma vez que o inimigo hostis e no inimicus. Rectius, estamos perante a impossibilidade de duelo, uma vez que o inimigo absoluto e no verdadeiro. [24: Cfr. Niklas LUHMANN, Legitimao Pelo Procedimento, trans. Maria da Conceio CRTE-REAL (Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1980). pg. 71 e ss. ] [25: Versos retirados do poema Il y a.]

Esta concepo absoluta de inimizade nega ao inimigo a aplicao das garantias penais substanciais e processuais de um Estado material de Direito, para as aplicar ao cidado. claro que o cidado que aqui actua como centro de reduo de complexidade, como superao do sincretismo original, j no se identifica com a pessoa humana. Agora, cidado mais no do que persona, mscara, resposta ao inimigo, adopo de um papel. Persona significa per sonare, pura exteriorizao ou artifcio, abandonado que ficou o hmus de que provimos, a dignidade humana.

Apresentamos o ltimo movimento da tenso dialtica em estudo, apresentamos a mscara como sntese. Aqui, a pessoa surge como um plus justaposto condio humana. Cidado todo aquele que oferea a garantia cognitiva mnima de se comportar como pessoa. Pessoa e cidado apresentam-se numa relao de sinonmia a denunciar o crculo vicioso, o que pe em evidencia a ausncia de critrios valorativos que ofeream o mnimo de certeza e segurana jurdica proposta de JAKOBS. Todavia, se levarmos em linha conta o entorno do autor como cultor do funcionalismo sistmico e ainda a definio do inimigo absoluto que encetmos, a discricionariedade subjacente teoria em estudo no nos dever surpreender. Como vimos, a principal caracterstica do inimigo absoluto tem que ver com a dificuldade de o identificar de forma certa e segura, de o enquadrar espacio-temporalmente e de configurar com correco os objectivos que prossegue. Estas dificuldades levantam-se, a ttulo de exemplo, quando tentamos densificar a figura do terrorista. De imediato surgem questes. Qual o significado do vocbulo terror? Qual o objectivo prosseguido pelo autor? Exige-se uma motivao especfica ou admitem-se indistintamente motivaes polticas, religiosas, ou ideolgicas? Bastamo-nos com um s acto ou exigimos a reiterao? Qual a diferena entre terrorista e freedom fighter?

A figura do cidado surge em aberta oposio quilo que a faz render, ou seja, o inimigo. Neste passo, a figura em anlise encontra-se intimamente relacionada com o problema do sentimento de insegurana. O inimigo enquanto personificao a escolha vocabular no inocente, uma vez que o inimigo d origem persona do sentimento de insegurana da comunidade, vem colocar em relevo a necessidade de estabilizao contrafctica das suas expectativas na vigncia da norma. Dito de outra forma, o sentimento de insegurana constitui um atentado vigncia da norma, um atentado que s poder ser sanado atravs da superao da tenso dialtica em causa, isto , pela assuno do papel de cidado. O grande problema que aqui vislumbramos prende-se com a relao triangular que se estabelece entre o sentimento de insegurana, o reforo das expectativas comunitrias, e o poder estadual. Destarte, o sentimento de insegurana exige, atravs figura do inimigo, a estabilizao de expectativas, alcanada no movimento sinttico gerador do cidado (persona). A considerao da persona enquanto mscara, vaso de encher, conceito indeterminado, verdadeiro espelho do inimigo, revela-se problemtica quando utilizada como instrumento de legitimao do aumento do poder estadual (autoritarismo ou totalitarismo), poder este que se alimenta do sentimento de insegurana entramos em nova antropofagia.

O inimigo absoluto um fantasma que, como qualquer fantasma, paira sobre o homem temente de fantasmagorias para lhe mostrar o recto caminho. Para JAKOBS, o recto caminho o caminho do Direito, o abandono do Torto, caminho que nos conduz ao cidado, rectius, que nos conduz persona. Contudo, a soluo da tenso dialtica atravs da mscara trgica por se abandonar persona e abandonar a condio humana. A soluo descrita apresenta o inimigo e o criminoso numa relao de identidade, ou melhor, o inimigo faz parte de uma classe de criminosos particularmente merecedores da censura do Direito. Este juzo agravado de censura exposto a contraluz quando o autor prev a criao de um Direito Penal do Inimigo e a manuteno do Direito Penal de matriz clssica para os crimes praticados pelo cidado. Por sua vez, e aqui reside o fulcro da distino entre os dois autores em estudo, em SCHMITT a oposio entre amigo e inimigo no exclui este ltimo do status personae. A tenso dialtica schmittiana mantm a distncia e a distino entre hostis e criminoso[footnoteRef:26], culminando na absoro do binmio amigo-inimigo pelo poltico, em clara soluo no estigmatizante. Ainda que a adeso s teorias da inimizade apresentadas se revele problemtica, as oportunidades de dilogo que estas levantam podem contribuir, quando promovidas no espao pblico de discusso, para que o Direito, confrontado com semelhante situao-limite[footnoteRef:27], pense o Direito[footnoteRef:28]. [26: Cfr. PREZ, "El Espacio De "Lo Poltico" En Carl Schmitt." pg. XXIV.] [27: Na expresso de Karl JASPERS, Iniciao Filosfica, trans. Manuela Pinto dos SANTOS (Lisboa: Guimares & C. Editores, 1976). pg. 21 e ss. O autor considera que nas situaes-limite revela-se o nada ou torna-se sensvel aquilo que autenticamente , e apesar do ser mundano e evanescente (pg. 24). ] [28: Nas palavras de Cabral de MONCADA, Filosofia Do Direito E Do Estado, 2 edio ed., vol. I (Armnio Amado, 1955). pg. 283, a desinvoluo deste processo de tese, anttese e sntese o que se chama dialtica (mtodo dialtico), correspondendo prpria lei ntica do devir do esprito e do mundo, sendo na nossa conscincia poderamos dizer como que o bafo da respirao racional do ser, ou antes, do werden, do devir universal da ideia.]

Umbilicalmente relacionado com o que acabmos de expor, encontram-se os conceitos de ser em si e de ser por si[footnoteRef:29]. O ser em si (an sich) representa a possibilidade, a potncia, o germe de um vastssimo campo de possibilidades inexploradas. Este ser abre-se ao mundo como abstraco, aguarda um porvir concretizador, o movimento de extrinsecao no qual o sujeito pensa o seu pensamento[footnoteRef:30]. O an sich, enquanto potncia, tende para a realizao plena das suas possibilidades, no pode suportar o ser s em si, mas tem o impulso para se desenvolver, e a contradio est em ele ser s em si e em no o dever ser[footnoteRef:31]. Impedido de alcanar o seu devir, o ser em si entra em combusto espontnea, de potncia transmuta-se em negao da possibilidade, soobra sobre o prprio peso. Para que a negao da possibilidade no se efective, o ser em si deve tender para o ser por si (fr sich), ou seja, deve cumprir-se enquanto realizao da possibilidade. A transio do primeiro para o segundo dos estdios descritos tem lugar atravs da extrinsecao, processo atravs do qual o em si abandona a sua abstrao original e se vai concretizando gradualmente at atingir o por si. Completado o processo de extrinsecao, verificamos que os dois estdios se unificam, dando origem a um plo aglutinador, o universal-concreto[footnoteRef:32]. Neste plano, a potncia realiza-se, o por si cumpre o em si enquanto devir, retorna ao em si. Por outras palavras, a evoluo culmina numa involuo, ou melhor, o processo de extrinsecao termina num acto de intrinsecao[footnoteRef:33]. [29: Neste passo, seguimos as consideraes de HEGEL, Introduo Histria Da Filosofia, trans. Antnio Pinto de CARVALHO (Coimbra: Coimbra Editora, 1961). pg. 60 e ss, sobre o conceito de desenvolvimento. ] [30: Vide ibid. pg. 63.] [31: Ibid. pg. 63.] [32: Atentemos s palavras que MONCADA, Filosofia Do Direito E Do Estado, I. pg. 283 e 284, dedica a este conceito: (...) nesta ascenso de pensamentos e de formas, de ideias e de coisas, h um termo mais alto que todos, a que aspiramos, sntese de pensamento e realidade ao mesmo tempo, o chamado universal-concreto . ] [33: KIERKEGAARD, Temor E Tremor, trans. Maria Jos MARINHO (Guimares Editores, 1998). toma um caminho semelhante quando se refere ao duplo movimento realizado pelo cavaleiro da f. O primeiro movimento consiste na resignao, atravs da qual o cavaleiro atinge o geral. O segundo movimento consiste no abandono ao absurdo, atravs do qual o cavaleiro regressa ao individual, regressa a si.]

Recordemos que, em JAKOBS, cidado todo aquele que oferea a garantia cognitiva de se comportar como pessoa. Desta frmula retiramos a relao de sinonmia estabelecida entre o conceito de cidado e de pessoa. Ora, se a cidadania exige um comportamento activo, a estabilidade cognitiva que s a pessoa possui, temos que esta pessoa um devir e, por ser um devir desgarrado, constitui a afirmao do an sich no precedido pelo fr sich. A pessoa de JAKOBS, ao exigir a adopo de um papel, ao exigir um comportamento enquadrvel no indeterminado mbito da pessoalidade, a plena afirmao do ser por si. No olvidamos que o status activus civitatis exige um comportamento activo, um constante e gradual esforo de aperfeioamento. Mais, consideramos que a perfectibilidade pedra de toque da condio humana. E esta exigncia de aperfeioamento, de feitura diria, de no abandono misria quotidiana, mais no do que o retorno ao homem como soberano artfice de si mesmo de MIRANDOLA. O Direito no refractrio exigncia de garantias no agir humano, veja-se, a ttulo de exemplo, a importncia do conceito de homem-mdio na doutrina civilstica e penalstica. Contudo, da nossa adeso ideia de perfectibilidade no se poder retirar a legitimao de uma teoria que, em razo da maior ou menor garantia cognitiva oferecida pelo agente, cinda o Direito. Uma coisa exigirmos que o agente se guie por um padro-mdio de certeza e segurana, sempre dentro do mais escrupuloso respeito pela dignidade da pessoa humana. Outra, completamente distinta e distante, exigirmos um padro-mdio de conduta e, sempre que algum agente dele se afaste, tratar o infractor como uma no-pessoa, excluindo-o do status personae e do status civitatis atravs de um Direito fruto do esquecimento do nosso legado civilizacional, um Direito que no se encontra altura dos tempos.

A criao de um Direito Penal do Inimigo, e a consequente excluso de determinada categoria de delinquentes do, arduamente conquistado, Direito Penal clssico ou liberal, no se subsume mera criao de um novo ramo do Direito, e no se julgue que estamos perante simples artificialismo conceptual ou burla de etiquetas. O Direito Penal do Inimigo, enquanto negao da dignidade imanente ao homem e exigncia da estabilidade cognitiva da persona, exclui o inimigo do pacto de cidadania, exclui o inimigo do contrato social[footnoteRef:34], e torna-o pria[footnoteRef:35] pela sujeio ao estado de guerra[footnoteRef:36]. [34: Cfr. J.J. ROUSSEAU, O Contrato Social.. Ver ainda JAKOBS, Derecho Penal Del Enemigo. pg. 25. A exegese do texto de ROUSSEAU no se afigura tarefa fcil, basta pensarmos na afirmao j presente no Manuscrito de Genebra (Livro I, Cap. III) e segundo a qual o homem nasceu livre e, no entanto, em toda a parte est aprisionado, ou na crtica ao Estado de Natureza de Hobbes, ou ainda na condenao da violncia excessiva contra os inimigos do Estado.] [35: Em PLATO, Protgoras E Crtone, trans. A. Lobo Vilela (Inqurito). pg. 36 e 37, Protgoras considera que a virtude uma coisa tal que preciso instruir e punir todo aqule que a no possui, criana, homem, mulher, at que se aperfeioe pelo castigo e, se no se tornar melhor com os castigos e as advertncias, expuls-lo das cidades e conden-lo morte como incurvel. Ainda que no devamos perder de vista a concreta situao das cidades-Estado gregas, em particular o entorno ateniense, nem a personagem a que estas palavras so atribudas (Protgoras e no Scrates), temos aqui uma interessante linha de investigao, solo propcio s teorias da inimizade. ] [36: Friedrich NIETZSCHE, A Genealogia Da Moral, trans. Carlos Jos de MENESES, 3 edio ed. (Lisboa: Guimares & C. Editores, 1976). pg. 75, ainda que em profundo corte com as posies contratualistas, introduz, entre as vrias definies que considera possveis, o castigo como declarao de guerra e medida de polcia contra um inimigo da paz, da lei, da ordem, da autoridade, violador dos tratados que garantem a existncia da sociedade, perigoso, rebelde, traidor e perturbador, a quem h que combater por todos os meios de que a guerra dispe.]

O Direito Penal do Inimigo, ao colocar o tnus na garantia cognitiva vertida num comportamento dotado de pessoalidade, sobrevaloriza a persona enquanto assuno auto-referente de um determinado papel, e subvaloriza a pessoa enquanto potncia. Por outras palavras, a teoria em estudo centra-se no devir, na efectivao ou estabilizao, e esquece o espectro multitudinria da potncia. Esta possibilidade, ainda que passvel de se consubstanciar em comportamentos diversos, possui em si dignidade. Ainda que possamos entender com HERVADA que o homem pode praticar aces ou omisses indignas ou, at, revelar-se indigno no momento da prtica do facto, somos de parecer que a dignidade que lhe inerente pelo facto de ser homem, pela perfectibilidade que o tolhe, dever ser protegida, como ncleo essencial dos direitos fundamentais, vertical e horizontalmente. A construo da persona como puro devir, olvidada que ficou o desenvolvimento da potncia, resulta numa mscara, ou seja, num vazio de sentido e valores. Perdido o em si, fica somente para o por si a estabilizao contrafctica das expectativas comunitrias na vigncia da norma, erigida a finalidade primeira da sano. O reforo da vigncia da norma apoiado na persona, esse arqutipo da aco no censurada pelo Direito, condensado num esforo sistemtico autopoitico, termina na afirmao da mscara pela mscara, isto , termina na exigncia de estabilizao de expectativas como fim em si mesmo. Em suma, a preveno geral positiva, quando desacompanhada da preveno especial positiva, e inquinada por um simbolismo mal contido, poder colocar em questo o Estado material de Direito que nos caro e ao qual somos gratos. Perante a espria considerao de que tudo est etiquetado para venda, numa confluncia sincrtica de mltiplos, imotivados e extemporneos referentes ps-modernos, de uma ps-modernidade relativizante e por isso desgarrada, desenraizada, urge voltar a investigar e discutir qual o substrato de que o Direito mana. Por fim, voltemos a Ortega e ao mito do Kali, para no esquecermos que, depois da idade sombria, o Brahma acorda e devolve-nos a idade Kitra.

Bibliografia Consultada

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1Pedro Morais