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ENCRUZILHADA DE ESTÓRIAS REGISTRO DAS FESTIVIDADES RELIGIOSAS Thayná Cambará Beraldo Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. [email protected] Mário Teixeira de Sá Júnior Universidade Federal da Grande Dourados. [email protected] Introdução Os municípios de Corumbá e Ladário de Mato Grosso do Sul possuem um conjunto de atividades culturais bastante variadas e efervescentes. Alguns quilômetros antes da entrada principal das duas cidades, é possível ver placas de sinalização na estrada apontando que Corumbá, seria o berço da cultura (ROCHA, 1997). Durante todo o ano ocorrem eventos culturais que movimentam diversos setores da sociedade como do turismo, da economia, das religiões etc. O calendário comporta celebrações 1 que se mesclam em suas realizações. Elas ocupam um espaço significativo do viver de parte dessa sociedade, mesmo em muitos casos estando fora do calendário oficial (MENESES, 2014). Essas celebrações envolvem grupos distintos da comunidade local e mesmo de fora dela. É comum encontrar, devido à localização geográfica desses municípios, bolivianos, sul-mato-grossenses e mato-grossenses em perfeita harmonia. Entre os anos de 2018 e 2019, participamos da realização do “Inventário Nacional de Referências Culturais INRC” para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN, como subsidio para o reconhecimento da celebração do 1Celebração compreende o ato de comemorar, festejar, reverenciar, adorar, homenagear, através de atos rituais, praticados coletivamente por membros de um grupo.

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ENCRUZILHADA DE ESTÓRIAS –

REGISTRO DAS FESTIVIDADES RELIGIOSAS

Thayná Cambará Beraldo

Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

[email protected]

Mário Teixeira de Sá Júnior

Universidade Federal da Grande Dourados.

[email protected]

Introdução

Os municípios de Corumbá e Ladário de Mato Grosso do Sul possuem um

conjunto de atividades culturais bastante variadas e efervescentes. Alguns quilômetros

antes da entrada principal das duas cidades, é possível ver placas de sinalização na

estrada apontando que Corumbá, seria o berço da cultura (ROCHA, 1997).

Durante todo o ano ocorrem eventos culturais que movimentam diversos setores

da sociedade como do turismo, da economia, das religiões etc. O calendário comporta

celebrações1 que se mesclam em suas realizações. Elas ocupam um espaço significativo

do viver de parte dessa sociedade, mesmo em muitos casos estando fora do calendário

oficial (MENESES, 2014).

Essas celebrações envolvem grupos distintos da comunidade local e mesmo de

fora dela. É comum encontrar, devido à localização geográfica desses municípios,

bolivianos, sul-mato-grossenses e mato-grossenses em perfeita harmonia.

Entre os anos de 2018 e 2019, participamos da realização do “Inventário

Nacional de Referências Culturais – INRC” para o Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional – IPHAN, como subsidio para o reconhecimento da celebração do

1Celebração compreende o ato de comemorar, festejar, reverenciar, adorar, homenagear, através de atos rituais, praticados coletivamente por membros de um grupo.

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“Banho de São João de Corumbá e Ladário” 2. Durante a pesquisa foi possível perceber

que os religiosos afro-brasileiros tinham uma participação bem mais significativa do

que os meios midiáticos e os registros escritos demonstravam (SÁ JUNIOR, 2016). O

evento, em uma primeira abordagem, uma festa católica, demonstrava a força e a

importâncias dos religiosos afro-brasileiros em sua realização.

Essa percepção nos permitiu estender essa análise para outras celebrações da

cidade. E, de igual forma, foi possível perceber que a participação dos religiosos afro-

brasileiros é muito mais efetiva do que a princípio transparecia. Em um calendário de

muitas celebrações o papel desses religiosos é presente e significativo em muitas delas

(PRANDI, 2001).

Isso se deve ao fato de que essas religiões e, de forma especial a Umbanda,

realizam, um sincretismo religioso com o catolicismo, além de outras expressões

religiosas. É possível afirmar que a Umbanda é eminentemente brasileira, fruto da

dinâmica cultural de religiões européias (catolicismo e espiritismo), africanas (Culto aos

Orixás, Culto aos Vodus e Culto aos Inkices) e religiões americanas (religiões

indígenas). Dessa resultante temos como um dos seus elementos a crença em seres

sobrenaturais que podem ser representados tanto por hagiografias e imagens de santos

católicos, como de africanos ou americanos.

Essa constatação levou a construção da pesquisa, em nível de pós-doutoramento,

intitulado “Encruzilhadas de estórias: memórias das religiões afro-brasileiras em

Corumbá e Ladário”, coordenada pelo Professor Doutor Mario Teixeira de Sá Junior da

Universidade Federal da Grande Dourados, a qual tenho acompanhado na condição de

produtora cultural.

É notória a forte participação nessas festas e celebrações, de detentores das

religiões afro-brasileiras, mas falta visibilidade a esses atores e estudos aprofundados

sobre as diferentes celebrações comuns nos municípios de Corumbá e Ladário/MS. É

essa lacuna que esta pesquisa pretende fechar, a partir de entrevistas e cobrindo os atos

religiosos dos afro-brasileiros no período de um ano (2020/2021), mais especificamente

2Pesquisa coordenada pelo Prof. Álvaro Banducci Junior da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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das festas de São Sebastião (Oxóssi) e Nossa Senhora dos Navegantes (Yemanjá) que

ocorrem, respectivamente, nos dias 20/01 e 02/02.

A Festa de São Sebastião ocorre no dia 20 de janeiro. Devido ao sincretismo

religioso, para os afro-brasileiros São Sebastião é Oxóssi, as casas religiosas, de uma

forma geral, e as de Corumbá e Ladário, de forma mais específica, realizam rituais de

festa nesse dia. Alguns devotos incluem o assistir missa para o Santo de dia e, à noite,

em seus terreiros realizam os festejos. O Orixá e os caboclos (espíritos indígenas) são

homenageados com frutas e bebidas que são compartilhadas com os adeptos e

convidados que participam da celebração. O intuito maior é agradecer o ano alimentar

anterior e pedir fartura para o presente, já que o Orixá é um grande caçador. Ao

contrário da Festa de Iemanjá, a festa de Oxóssi / São Sebastião é realizada em caráter

mais interno nas casas religiosas. Mesmo assim, movimentam um significativo

contingente de pessoas.

A festa de Iemanjá é uma das mais tradicionais festas do Brasil. Ela ocorre ou na

virada de ano, ou no dia 02 de fevereiro. Essa Orixá é associada a algumas santas

católicas, como Nossa Senhora dos Navegantes. Em Corumbá e Ladário a festa é

ressignificada. A deusa do mar é adaptada ao rio Paraguai. Essa atividade é fortemente

manifestada nas casas religiosas afro-brasileiras, onde são preparadas obrigações com

os elementos que agradam Yemanjá como perfume, espelho, pentes, flores e outros

elementos de adorno que são levados até o rio e entregues com pedidos e

agradecimentos.

De acordo com o livro “Manifestações Religiosas de Mato Grosso do Sul” da

Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul - FCMS, as celebrações em torno de São

Sebastião e Nossa Senhora dos Navegantes se tornaram tradição e são consideradas

algumas das mais antigas manifestações de fé do povo sul-mato-grossense.

1. Desdobramentos do trabalho de campo...

Com o intuito de cumprir com a programação do registro das manifestações reli-

giosas no período de janeiro e fevereiro de 2021, estivemos em campo acompanhando

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as louvações em 06 (seis) terreiros inicialmente, sendo eles: Tenda Espírita São José;

Tenda Espírita de Umbanda Caboclo João da Mata; Tenda Nossa Senhora da Guia;

Tenda Nossa Senhora da Conceição; Ilé Axe Ogum Jáloya e C.E.U – Pai Oxalá.

O dia 20 de janeiro foi um dia intenso e de muito trabalho, o dia iniciou às 6h da

manhã no espaço religioso Tenda Espírita São José, com a celebração da palavra presi-

dida pelo Diácono Anselmo, religioso esse que já tem uma relação de amizade e de par-

ceria com o Babalorixa Pai Hamilton de Xangô que é responsável pela Tenda Espírita

São José, na oportunidade o celebrante falou sobre a importância de São Sebastião, so-

bre a prática da caridade, do amor ao próximo e do dialogo entre as religiões, o respeito

e os valores que devem ser resgatados, teve ainda a benção a todos com a água benta e

ao final a partilha do alimento em um café da manhã ofertado aos que estavam ali pre-

sentes.

Figura 1 - Celebração da Palavra – Tenda Espírita São José Em torno das 11horas da manhã foi à vez de acompanhar as atividades da Tenda

Nossa Senhora da Guia que como o zelador da casa o sacerdote João Gonçalves de Pau-

la Júnior, mais conhecido como Joãozinho de Cacilda, por ser sobrinho da grande e re-

conhecida religiosa Da. Cacilda. Em sua casa teve muita reza e oração, a cerimônia ini-

ciou-se com o zelador preparando de três alguidars com a comida para Oxóssi, enquanto

puxava “ponto” de caboclo. Enquanto isso os filhos da casa já tinham feito a ornamen-

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tação do terreiro, assim como já estava pronta a oferta a Oxóssi, tendo a imagem de São

Sebastião ao meio, com folhagens verdes, muitas frutas e velas na cor branca e verde,

além de coités com vinho e charuto, além das varetas de incenso.

Ao adentrar a casa com os alguidars, o zelador ofertou a Oxóssi posicionando os

mesmo sobre a obrigação que já estava preparada ao centro do terreiro, os demais filhos

fizeram a saudação, deitando sobre a oferenda e em seguida deu inicio as orações, com

o sinal da cruz e a oração do terço, que foi seguido por todos. Ao final do terço, todos

puxaram e cantaram pontos saudando Oxóssi e todos os caboclos.

As 16h foi a vez de acompanhar a louvação na Tenda Espirita Nossa Senhora da

Conceição, os trabalhos foram conduzidos pela Mãe de Santo Da. Natalícia, filha da

finada Da. Cacilda, que hoje é a responsável pelo terreiro e perpetua o trabalho que a

finada iniciou. A louvação foi de forma muito singela, já estava pronto a obrigação na

área central do terreiro, com imagem de Oxóssi, folhagens de bananeiras e de ficos que

no chão fazem o desenho de um arco e flecha ao redor das oferendas, tendo ali frutas,

abobora, milho cozido, vinho, charuto e incenso.

Da. Natalícia trabalha boa tarde do tempo com a vidência, então fomos agracia-

dos em presenciar o momento em que ela incorporou o caboclo Bomba na Calunga que

saudou as obrigações e logo em seguida abençoou os poucos filhos presentes, além dele

tinha mais uma filha de santo da casa incorporada e no atabaque estava Corsinha, filha

de Da. Natalícia conduzindo os pontos cantados.

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Figura 2 - Mãe de Santo Da. Natalícia – Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição Em seguida fui acompanhar os trabalhos do C.E.U – Pai Oxalá, casa da qual fa-

ço parte e que foi muito especial poder acompanhar com o olhar de pesquisadora. A

casa preparou uma grande noite, o altar estava todo ornamento, com a troca de toalhas,

arranjo de flores, a mesa para o jantar tinha flores e muitas frutas e o chão foi todo co-

berto com folhagem, deixando assim o ambiente ante mais acolhedor, dando a sensação

de estar em uma verdadeira mata.

A Ialorixá, Elenir B. Rachid deu inicio a abertura dos trabalhos junto aos filhos

que estava na corrente mediúnica, e iniciou a noite com a incorporação da cabocla

Jupirá, chefe espiritual da casa, que fez benção inicial junto ao restrito público que

estava presente, consagrou o alimento que seria servido no jantar, tendo na oferta

vegetais de força e prosperidade, como batata-doce, mandioca, milho-verde e abóbora,

além de frutas que decoravam o altar, durante o ato religioso. Os demais médiuns,

também trabalharam com suas entidades, dando passe aos consulentes da casa. Foi

possível ainda nessa noite tão especial, receber em reino mais duas entidades da linha de

caboclo, sendo eles o Caboclo Caçador Flecheiro da Jurema, que deu a sua benção à

todos presentes, e a Cabocla Juremeira que aproveitou o momento para fazer a limpeza

na sua médium, como em outros filhos que precisavam, além de trazer mais benção à

todos presente. Durante a celebração, os filhos cantaram parabéns para Oxóssi e

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colocaram no altar a oferta de um tabuleiro com pão surpresa, iguaria muito apreciada

por todos na comunidade.

Figura 3 - Cabocla Jupira – C.E.U – Pai OXALÁ Já no dia 23 de fevereiro, às 18h estivemos no terreiro de Candomblé Ilé Axe

Ogum Jáloya onde foi realizada uma gira de caboclo e de preto velho em parceria a

Tenda de Umbanda Pai Tomé de Angola. O babalorixá Pai Robson de Ogum e Pai Alex

de Oxalá abriram o trabalho saudando primeiramente aos guardiões, pedindo a

segurança e a proteção da casa para a condução dos trabalhos e em seguida Pai Alex de

Oxalá, incorporou o Caboclo Pedra Branca que deu inicio as atividades, no atabaque os

cantos eram puxados por uma filha de santo e ao longo do trabalho mais dois irmãos se

juntaram a ela para essa missão. Na louvação estavam presentes os filhos de santo de

ambas as casas, mais alguns médiuns oriundos de outras casas que tinham sido

convidados, Pai Robson de Ogum ficou a todo o momento acompanhando o trabalho e

supervisionando o ritual, ate que certo momento ele incorporou o Caboclo Sete Flechas

e então foi dando a sua benção a todos os presentes. Após esse momento os médiuns

convidados deram inicio ao processo de incorporação de suas entidades e em pouco

tempo estava em reino caboclos e pretos velho.

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Figura 4 - Caboclo Pedra Branca – Ilé Axe Ogum Jáloya Um caldeirão com ensopado foi levado até cumeeira, que é o ponto central de

energia do barracão, a base, a estrutura e o cerne de uma casa de candomblé. Ali os

chefes das casas Caboclo Pedra Branca e Caboclo Sete Flechas abençoaram o alimento

que seria compartilhado com todos os filhos e consulentes.

Adentrando a noite foi a vez de encerrar a pesquisa de campo na casa da Mãe de

Santo Dona Nice, como é mais conhecida em Corumbá. Ela é a zeladora da Tenda

Espírita de Umbanda Caboclo João da Mata, ao chegarmos lá os trabalhos já tinham

sido iniciados e a mesma já estava incorporada com o Caboclo João da Mata,

acompanhado de mais 05 filhos de santos que estavam encangados com as suas

entidades, tendo em reino o total de 05 caboclos e 01 preto velho. O terreiro tem

características muito marcantes: o chão de terra batida, na qual todos trabalham

descalços; altar com muitas imagens; casa das almas fica dentro do terreiro, assim como

a altar dos guardiões, tudo é muito simples e singelo. Porém o que mais chama atenção

nessa casa é a forte presença da família é toda feita no feita no Santo, a mãe pequena da

casa é a Elenina, filha de Dona Nice que ao lado da mãe são as responsáveis pela

condução dos trabalhos no terreiro, no atabaque estava o afilhado de Elenina, um de

seus filhos, mais senhor de idade bem avançada que é da família, e na função de

cambone da noite estava sua filha Carolina.

A louvação estava muito animada, os caboclos dançaram, fumaram seus

charutos, beberam seus vinhos e saudaram o Oxóssi com muita alegria. No chão do

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terreiro, logo abaixo do altar foram colocadas várias imagens de São Sebastião e dos

caboclos da casa, juntamente com verduras, frutas e velas na cor verde.

No meio do trabalho o Caboclo João da Mata se despediu de todos os presentes e

eu passagem para que a Cabocla Pena Vermelha pudesse vir dar o seu axé, e a sua

chegada foi no mínimo esplêndida e muito marcante, Dona Nice foi até sua casa, trocou

de roupa e colocou uma camisa de seda rosa que em contraste com sua pela negra,

ressaltou ainda mais sua beleza. É importante ressaltar que Dona Nice tem 83 anos e

mais de 50 anos no santo e mesmo assim tem vigor para trabalhar e encantar a todos

com sua simpatia e humildade. E assim são suas entidades, sempre acolhedores e

queridas, a Cabocla Pena Vermelha chegou em reino com muita cantoria e evocando

seus gritos na mata, que muito me emocionou no momento da filmagem, a mesma ainda

pediu desculpas por não estar usando seu penacho, pois infelizmente tinha estragado e

por isso ela estava usando o penacho do seu senhor, o Caboclo João da Mata,

demonstrando mais uma vez sua humildade.

Figura 5 - Cabocla Pena Vermelha - Tenda Espírita de Umbanda Caboclo João da Mata Os que ali estavam presentes puderam tomar seu passe, conversar com as

entidades e agradecer por suas vidas. E não foi diferente com a nossa equipe, em todas

as casas fomos bem recebidos, sempre pedindo a bênção do chefe espiritual da casa no

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inicio dos trabalhos, em seguida eu já pedia a permissão para dar continuidade aos

trabalhos de filmagem, e sempre tivemos a acolhida e permissão de todos. Ao final das

gravações eu seguia o mesmo rito de despedida, pedia a benção do chefe da casa,

agradecia a acolhida, bem como pedia a benção para que pudéssemos continuar esse

projeto com muita graça e fé.

Assim encerrou-se a experiência de gravação de louvação a Oxóssi, deixando

muito evidente a demonstração de fé das pessoas, de como elas projetam seus futuros na

proteção do pai maior, que ajuda a garantir a fartura à mesa, assim como a prosperidade

e saúde as suas famílias.

Dando inicio aos trabalhos e Louvação e Yemanjá, estivemos no dia 31 de

janeiro acompanhando a obrigação organizada pela Tenda Espírita São José, que foi

realizada no Vale dos Orixas, que é 1,5 ha, ambientalmente preservada. No local, existe

a cachoeira de São Domingos, onde os religiosos praticam seus cultos. A Secretaria

Municipal de Meio Ambiente desenvolveu um projeto de preservação, que inclui até

replantio de árvores nativas do cerrado, e instalação de lixeiras.

Na ocasião estavam presentes o Babalorixá Pai Hamilton de Xangô e o

Babalorixá Pai Tel Cosme de Xangô que juntamente com seus filhos, ofertaram na mata

uma toalha para Yemanjá, saudando também Oxalá. No início todos os filhos ajudaram

na limpeza do espaço, bem como na arrumação da toalha e na firmação das velas, em

seguida o Caboclo Pena Branca de Pai Hamilton, chegou em reino para abençoar os

filhos e firmar a toalha.

Na obrigação era possível encontrar comidas, flores, frutas, espelhos, batons,

esmaltes, maquiagens e bebidas, todas ofertadas a Senhora do Mar, como demonstração

de fé e gratidão. No atabaque Pai Tel Cosme de Xangô conduzia a cantoria, até o

momento que sua entidade o Caboclo Lua Nova chegou para acompanhar os trabalhos,

enquanto os filhos foram tomar ponto de fogo e sacudimento das folhas com o Caboclo

Pena Branca os outros filhos já iam tomando a benção com o Caboclo Lua Nova e se

dirigindo para a cachoeira para dar prosseguimento aos trabalhos, com o banho de

limpeza.

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Nas águas de Oxum a limpeza era feita em várias etapas na seguinte ordem:

lavava a cabeça com sabonete, enxaguava, em seguida vinha com cerveja branca,

enxaguava, depois cerveja preta, enxaguava e assim sucessivamente, foi sendo utilizado,

refrigerante, leite, alfazema e vinho. Sendo que cada bebida pertence a uma linhagem de

entidade que é utilizada no processo de purificação e limpeza do filho, todo esse rito foi

conduzido pelas duas entidades e ao final do banho, dependendo da carga energética de

cada médium, o mesmo entrava em processo de incorporação, podendo receber ali a sua

entidade, que vinha trazer axé e força para finalizar o processo de limpeza, ficando

pouco tempo em reino e depois desincorporava, deixando o médium bem e como eles

dizem “formoso”. Esse processo foi realizado com todos os filhos, mas por ter um

publico considerável, resolvemos encerrar naquele momento as gravações e deixar que

esse momento ficasse mais restrito a eles, sem a nossa interferência.

Já no dia 02 de fevereiro é celebrado o dia da padroeira de Corumbá, Nossa Se-

nhora da Candelária, por essa razão estivemos pela manhã presentes na missa das auto-

ridades realizada na igreja Nossa Senhora de Caacupê, no evento sacerdotes religiosos

da Umbanda e do Candomblé estiveram presentes, com a imagem de Yemanjá e alguns

filhos de santo para louvar a rainha das águas.

Figura 6 - Missa Nossa Senhora da Candelária_Ialorixá Elenir Rachie e Pai Robson de Ogum Ao final do dia acompanhamos os trabalhos realizados na Prainha do Porto Ge-

ral, as margens do Rio Paraguai, onde esteve presente o terreiro, C.E.U – Pai Oxalá

cumprindo com a louvação mais completa, com direito a preparação das oferendas e

incorporação dos médiuns da casa e também foi possível acompanhar a Tenda de Um-

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banda Pai Tomé de Angola, o terreiro Ilé Axe Ogum Jáloya, a Tenda Divino Espírito

Santo, a Tenda de Umbanda Jurema Sagrada Senzala de Xangô além de vários fiéis que

foram entregar suas barcas, acender suas velas, oferecer champanhe a rainha da Mar,

além de fazer suas orações e agradecimentos.

Figura 7 - Tenda Nossa Senhora da Guia - Louvação Yemanjá – Prainha do Porto Geral de Corumbá

(MS).

2. Considerações

A imersão em campo nos permitiu vivenciar experiências incríveis de fé e de su-

peração, nos possibilitou registrar essa relação entre fé e cultura e principalmente de

como isso impacta diretamente nos hábitos da comunidade e na construção das memó-

rias afetivas.

Sendo assim foram produzidos inicialmente 02 curtas-metragens, sendo o

primeiro um especial de louvação a Oxóssi e outro da louvação de Yemanjá, ambos

produzidos e gravados no mês de janeiro e fevereiro de 2021, porém o projeto irá

acompanhar o calendário festivo religioso de Corumbá e de Ladário a fim de registrar as

demais louvações, assim como a relação de amor e de fé existente nos terreiros de

Umbanda e de Candomblé.

É válido ressaltar que essa demonstração da fé, implica diretamente nos hábitos

dessas comunidades, onde a prática religiosa é vista também como demonstração

cultural, já que reflete as crenças permeadas dentro das relações familiares e sociais.

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Em virtude do cenário pandêmico em todo o mundo, o projeto está criando

alternativas de divulgação e interação com o público pelas plataformas digitais, se

utilizando das redes sociais – Facebook e Instagram, além do canal no YouTube como

ponto de partida para distribuição desse trabalho, a fim de garantir melhor visibilidade e

alcance na divulgação do projeto.

Acreditamos que, com a produção das demais louvações ao longo do ano, será

possível no período de 12 meses termos como produto final, uma série de curtas que

abordem as festividades religiosas no viés das religiões de matrizes Afro-Brasileiras que

possam ser usadas didaticamente pelas escolas, com crianças, jovens e adultos.

O projeto foi realizado com recursos do Fundo de Investimentos Culturais do

Pantanal | Edital Nº003/2020 - FIC/Pantanal - Lei Aldir Blanc |Eixo IV: inovação

cultural e cumprindo com a contrapartida social do investimento, os curtas-metragens

serão distribuídos na rede pública de ensino através de mídias digitais.

3. Referências

ANJOS, José |Carlos Gomes dos. No território da linha cruzada: a cosmopolítica

afro-brasileira. Porto Alegre, Ed. Da UFRGS, 2006.

ASSIS, Edvaldo de. Contribuição para o estudo do negro no Mato Grosso. Cuiabá;

UFMT-NDHIR / Imprensa Universitária, 1988.

MENESES, Suelen. Festas religiosas: um bem a ser preservado. Desafios do

desenvolvimento. IPEA. Ano 7. Edição 56, 2009. Disponível em:

https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=230

2:catid=28&Itemid=23

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

ROCHA, Eunice Ajala. A Festa de São João em Corumbá. São Paulo, Editor Ação,

1997.

SÁ JUNIOR, Mario Teixeira de. Não é feitiçaria! É tecnologia! Africanos e

descendentes na mineração do Mato Grosso setecentista. Revista eletrônica História

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em Reflexão, Dourados, V. 10, n. 19, p.81-98. Ago. 2016. ISSN 1981-2434. Disponível

em https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/5499