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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

    DOUTORADO EM PSICOLOGIA

    DONATI CANNA CALERI

    ESPINOSA E ZEN-BUDISMO

    UMA POLTICA CONTEMPORNEA

    NITERI

    2014

  • DONATI CANNA CALERI

    ESPINOSA E ZEN-BUDISMO

    UMA POLTICA CONTEMPORNEA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Psicologia do Departamento de

    Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno

    do ttulo de Doutor em Psicologia.

    Orientadora: Prof DOUTORA CRISTINA RAUTER

    NITERI

    2014

  • Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    C149 Caleri, Donati Canna.

    Espinosa e zem-budismo: uma poltica contempornea / Donati

    Canna Caleri. 2014. 159 f.

    Orientadora: Cristina Rauter.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2014.

    Bibliografia: f. 156-159.

    1. Spinoza, Benedictus de, 1632-1677. 2. Zen-budismo.

    3. Iluminao (Zen-budismo). 4. Liberdade. 5. Poltica. 6. Corpo

    humano. 7. Conhecimento. 8. Natureza. I. Rauter, Cristina.

    II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e

    Filosofia. III. Ttulo.

    CDD 199.492

  • DEDICATRIA

    Aos meus queridos filhos: Brisa e Sereno, com eterno agradecimento pelo nosso encontro,

    sempre potente, desde tempos imemoriais.

  • AGRADECIMENTOS

    minha orientadora, Cristina Rauter, precisa e atenta nas suas intervenes e que, com o

    conhecimento apurado sobre Espinosa, me conduziu com liberdade em nosso percurso

    desafiador.

    Ao querido professor Maurcio Rocha que, com generosidade e vigor, me apresentou,

    principalmente em seu carter afirmativo, a filosofia de Espinosa.

    Ao professor Lorenzo Vinciguerra, de amabilidade incomum, que indicou importantes textos

    para a pesquisa, alm de me orientar no entendimento da nobre funo da Imaginao, na obra

    de Espinosa.

    professora Ktia Aguiar, que de forma intuitiva ou sensitiva, identificou que Espinosa

    deveria ser a minha discusso no doutorado.

    querida professora Mrcia Moraes, que envidou todos os esforos necessrios para que

    fosse possvel a realizao da extenso da pesquisa no exterior.

    minha companheira, Tina Aguas, que com pacincia e carinho participou de forma

    incondicional e determinante de todas as etapas na construo do presente trabalho.

    minha querida e vibrante me, Rachel, que me acha o mximo. E porque me a gente s

    tem uma.

    Ao meu companheiro de muitas e boas viagens, Ponce, artista sensvel que participou

    ativamente da pesquisa fornecendo o suporte necessrio para a construo do campo do

    Budismo em geral, e do Zen, em particular.

    Ao meu genro/amigo Erick, que por meio de muitas conversas e divagaes inconclusas

    possibilitou-me clarear conceitos, aprofundar questes, rever abordagens e redirecionar

    caminhos.

    minha queridssima nora/filha/amiga Elaine, que com sua crtica aguada atuou como uma

    espcie de linha de resistncia a qualquer abordagem, no presente trabalho, que remetesse

    ideia de algum paraso terrestre.

    querida e sempre atenciosa Rita, secretria do Programa de Ps-graduao em Psicologia

    da UFF e que, com seu conhecimento, me orientou em todos os trmites e processos

    necessrios para que eu chegasse at aqui.

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, pela coragem de acolher e levar adiante um

    Programa de Ps-graduao que discute o contemporneo com coerncia e posicionamento

    tico/esttico/poltico. Aqui, sinto-me em casa.

    CAPES, que por meio do incentivo e fomento no campo da pesquisa acadmica me

    propiciou, com pontualidade, as condies materiais, inclusive no exterior, para a realizao

    da presente pesquisa.

  • RESUMO: Discutimos, a partir da obra de Espinosa e do Zen-budismo, o sentido prtico de

    Beatitude e Iluminao/Incondicionado. O que podemos pensar com essas experincias de

    vida e que ensejam uma expresso encarnada de liberdade, aquela que se atualiza no corpo,

    aqui e agora. Fizemos essa discusso dentro do campo tico/esttico/poltico e buscando

    sinalizar para que tais experincias sejam compreendidas como algo factvel, no

    contemporneo.

    PALAVRAS-CHAVE: Espinosa, Zen-budismo, Beatitude, Iluminao, Incondicionado,

    Liberdade, Poltica, Corpo, Conhecimento, Natureza.

  • ABSTRACT: We have discussed, from the work of Espinosa and Zen-Buddhism, the

    practicality of Beatitude and Enlightenment/Unconditioned. What we can reflect from these

    life experiences, and that lead to an incarnated expression of freedom, happening in the body,

    here and now. We have had this discussion within the ethical/political/aesthetic field,

    searching to demonstrate that such life transitions be understood as something feasible, in the

    contemporary world.

    KEYWORDS: Espinosa, Zen-Buddhism, Beatitude, Enlightenment, Unconditioned,

    Freedom, Politics, Body, Knowledge, Nature.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO.............................................................................................................8

    1.1 UM ROTEIRO..............................................................................................................12

    2 UMA BREVE HISTRIA DO BUDISMO E A VIDA DE

    SIDHARTA GAUTAMA O BUDA..........................................................................15

    2.1 O CONHECIMENTO NO BUDISMO........................................................................24

    2.2 PRINCPIOS DO BUDISMO......................................................................................29

    2.2.1 Princpio da Impermanncia.....................................................................................33

    2.2.2 Princpio da Insubstancialidade/Vazio.....................................................................35

    2.2.2.1 Por que o Zen-budismo?...............................................................................................40

    2.2.2.2 Uma distino necessria..............................................................................................44

    2.2.3 Princpio do Incondicionado/Iluminao..................................................................44

    3 ESPINOSA NO SEU TEMPO...................................................................................52

    3.1 OBRAS PUBLICADAS E ESCRITAS POR ESPINOSA...........................................56

    3.2 O PLANO DE IMANNCIA DO FILSOFO............................................................57

    3.3 O DESEJO DE VIDA NO TRATADO DA REFORMA.............................................66

    3.4 OS GNEROS DE CONHECIMENTO.......................................................................72

    3.5 CONHECIMENTO SINGULAR.................................................................................76

    3.6 O LUGAR DA EXPERINCIA NA OBRA DO FILSOFO.....................................79

    3.7 O CORPO A UNIDADE NA ETERNIDADE..........................................................82

    3.8 BEATITUDE A POTNCIA QUE SE AFIRMA NO CORPO!

    O CORPO ENCARNADO...........................................................................................84

    3.9 CONATUS E A INTELIGNCIA CORPORAL..........................................................88

    3.10 A POTNCIA DO CORPO..........................................................................................92

    3.11 AMOR PARA COM DEUS.........................................................................................96

    3.12 A ETERNIDADE NA UNIDADE.............................................................................100

    3.13 MENTE ETERNA......................................................................................................103

    3.14 BEATITUDE E LIBERDADE...................................................................................106

    3.15 A VIDA POLTICA................................................................................................109

    3.16 RAZO E POLTICA EM ESPINOSA.....................................................................110

    3.17 POLTICA E BEATITUDE O DESAFIO CONTEMPORNEO!........................112

    3.18 COMUNISMO ESPIRITUAL....................................................................................113

    3.19 O DESAFIO DE SER UM HOMEM LIVRE..............................................................114

  • 3.20 A SABEDORIA POLTICA........................................................................................115

    4 ARTICULAO ENTRE BEATITUDE E

    ILUMINAO/INCONDICIONADO....................................................................118

    4.1 O PERCURSO TICO................................................................................................129

    4.2 O ENCONTRO SINGELO..........................................................................................137

    5 CONCLUSO............................................................................................................153

    REFERNCIAS....................................................................................................................156

  • 8

    PRIMEIRA PARTE

    1 INTRODUO

    A proposta central do presente trabalho discutir, na perspectiva de uma poltica

    contempornea, a experincia de Beatitude1 relatada por Espinosa, articulando-a com a de

    Iluminao preconizada pelo Zen-budismo2. Faremos essa discusso cientes de que Espinosa

    jamais se referiu a essa fonte de conhecimento Oriental e de que o Zen-budismo nunca

    mencionou nos seus textos os conceitos de Espinosa.

    Cabe ento comear dizendo que nossa discusso pretende, desde j, afirmar que no

    podemos garantir se de fato existe a mencionada articulao. Se essa viagem partir de algum

    porto imaginrio com destino a uma praia inexistente, somente a prpria viagem poder

    revelar. No entanto, nossa intuio nos diz que a obra de Espinosa e os princpios do budismo,

    especialmente aqueles da escola Zen, conservam pontos convergentes sobre o tema central da

    pesquisa.

    Recordemos Deleuze, que sabidamente mais do que um comentador de Espinosa e,

    como tal, nos fala da confuso existente no Ocidente quando se associa a ideia de vazio com a

    de falta: Que curiosa confuso, a do vazio com a falta. Falta-nos de fato, em geral, uma

    partcula de Oriente, um gro de Zen [...] (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 112).

    O gro de Zen a que Deleuze se refere pode ser compreendido como outro ponto de

    vista para se pensar e experimentar o mundo. Experiment-lo na perspectiva afirmativa de

    perfeies singulares, onde o que se compreende como falta cede lugar para aquilo que

    prprio da Natureza. Nessa perspectiva, o desejo sempre de vida, de potncia, e no

    motivado por alguma falta. No h falta, pois no h modelos a serem reproduzidos. E o que

    existe a expresso da potncia produtiva de mundo, mltipla, nica, sem finalidade

    predeterminada. E, seguindo os rumos da pesquisa, iremos buscar, no Ocidente, o gro de Zen

    referido por Deleuze, principalmente na obra de Espinosa. Assim como investigar se o que

    Espinosa chamou de beatitude tem ressonncia com o que o Zen chamou de Iluminao.

    Podemos desde j afirmar que Espinosa e Sidharta Gautama, o Buda, foram homens

    que viveram a experincia do que pode um corpo, no seu limite. Suas respectivas obras

    1 E se a alegria consiste na passagem para uma perfeio maior, a beatitude deve, certamente, consistir, ento,

    em que a mente est dotada da prpria perfeio. (E. V, prop. 33, esclio).

    2 A tradio diz que a escola Zen-budista chegou China vinda da ndia, trazida por Bodhidharma, monge

    indiano que foi a Canto por via martima, nos fins do sculo V. O Budismo era muito bem-recebido,

    principalmente porque suas doutrinas se assemelhavam muito s do filsofo chins Lao-Ts que, como Buda,

    pregava o Vazio e a impermanncia de todas as coisas. (GONALVES, 1993, p. 24).

  • 9

    podem ser consideradas resultantes de um percurso tico, no primeiro caso, e de um processo

    de autorrealizao, no segundo. Nesses percursos, como veremos, o corpo assume papel

    fundamental nas experincias de Beatitude e Iluminao. Trata-se portanto de filosofias

    prticas. Queremos tambm discutir o sentido poltico que se expressa nas suas respectivas

    vidas e que emerge nas suas obras. Principalmente o sentido de liberdade, experimentado por

    Espinosa e por Sidharta Gautama.

    Liberdade individual e coletiva. Liberdade como prtica de vida, corporal, encarnada,

    factvel. Uma experincia que entendemos ser do mbito poltico e que se constitui na

    maneira de viver a vida sem que essa capitule tirania das paixes, das iluses, aos poderes

    constitudos, embora transite em meio a eles. Pensar que essas formas de estar com o mundo

    podero se constituir em linhas de fuga3 ao controle virtual, marca dos tempos de agora.

    Podemos afirmar que a liberdade, no contemporneo, o fio condutor de toda a nossa

    pesquisa. E voltando questo poltica, adiantaremos nossa discusso trazendo a seguinte

    indagao: o que no poltica? O que podemos pensar, na perspectiva da inseparabilidade

    entre sujeito e mundo, que escape poltica? Avanaremos com essa questo, buscando

    acompanhar os processos produtivos que engendram as experincias de Beatitude e

    Iluminao. Seguiremos com discusso orientados por uma histria budista sobre o dedo e a

    Lua4. Essa histria nos permite, entre outras coisas, romper com a tirania das meras

    reprodues, embaralhar certos cdigos para produzir com eles. como se utilizssemos

    material de demolio para construir uma nova casa. Serve tambm para que no fiquemos

    excessivamente presos s palavras e que busquemos as supostas convergncias entre as

    3 Ns preferimos dizer que numa sociedade tudo foge, e que uma sociedade se define pelas suas linhas de fuga

    que afetam as massas de todas as naturezas [...] Trs linhas com efeito, porque a linha de fuga ou de ruptura

    conjuga todos os movimentos de desterritorializao, precipita-lhes os quanta, e extrai deles partculas

    aceleradas que entram na vizinhana umas das outras, levando-as a fazer parte de um plano de consistncia ou

    de mquina mutante. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 164).

    4 Um monge aproximou-se de seu mestre que se encontrava em meditao no ptio do templo luz da Lua

    com uma grande dvida: Mestre, aprendi que confiar nas palavras ilusrio, e diante das palavras, o verdadeiro sentido surge atravs do silncio. Mas vejo que os Sutras (textos doutrinrios) e as recitaes so

    feitos de palavras; que o ensinamento transmitido pela voz. Se o Dharma (Realidade) est alm dos termos,

    por que os termos so usados para defini-lo?

    O velho sbio respondeu: As palavras so como um dedo apontando para a Lua; cuida de saber olhar para a Lua, no te preocupes com o dedo que a aponta.

    O monge replicou: Mas eu no poderia olhar a Lua sem precisar que algum dedo alheio a indique?

    Poderia confirmou o mestre , e assim tu o fars, pois ningum mais pode olhar a Lua por ti. As palavras so como bolhas de sabo: frgeis e inconsistentes desaparecem quando em contato prolongado com o ar. A

    Lua est e sempre esteve vista. O Dharma (Realidade) eterno e completamente revelado. As palavras no

    podem revelar o que j est revelado desde o Primeiro Princpio.

  • 10

    formas de pensar dos nossos autores, que se expressam de maneira distinta, mas que falam de

    uma mesma situao.

    Uma tese uma sucesso de incontveis desafios. No nosso trabalho, o que se

    apresenta inicialmente o desafio de representar com as palavras as experincias vividas por

    Espinosa e Sidharta Gautama, que, como veremos, priorizam a apreenso direta da realidade

    em detrimento do relato, da representao da realidade.

    Para enfrentar esse primeiro desafio ser necessrio produzir cortes no que

    concebemos ser da ordem do inseparvel. Reduzir a palavras o que prprio da experincia.

    Ainda mais sabendo o que Espinosa e Sidharta Gautama experimentaram e tentaram

    comunicar pode ser, na sua totalidade, da ordem do indizvel. O eterno desafio de libertar o

    pensamento da sua funo recognitiva e fazer dele, como dizia Nietzsche, o mais potente dos

    afetos5. Produzir com a filosofia, ou seja, produzir com as ideias e experincias dos filsofos e

    avanar com elas, tentando dizer aquilo que est implcito na obra para ser desvelado.

    Trabalhar no campo intensivo onde o agenciamento das ideias se articula. Assim, necessrio

    prudncia para que a narrativa no desfigure a obra do filsofo, mas que o faa falar mais do

    que j falou. Que os discursos se atualizem em uma roupagem contempornea sem perder o

    fio da tessitura original.

    Outro desafio da pesquisa, que cabe compartilhar com os leitores, o de apresentar as

    experincias de Beatitude e Iluminao como algo de uma prtica de vida, ou seja, como

    sendo experincias factveis. Ultrapassar os preconceitos e ideias preconcebidas que

    envolvem esses termos Beatitude e Iluminao , e que tendem a coloc-los como

    experincias msticas e inacessveis aos mortais, para apresent-las como algo acessvel a

    todos que queiram dela experimentar.

    Com esse intuito, trabalharemos com um termo utilizado pelo Zen e pelo budismo em

    geral e que enseja rigorosamente o mesmo sentido de Iluminao, que o termo

    Incondicionado. Portanto, ao longo da pesquisa Iluminao/Incondicionado sero utilizados

    como sinnimos. No termo Incondicionado acreditamos poder aproximar o leitor do que

    estamos querendo dizer sem perder o rigor do sentido da experincia. O caminho de

    autorrealizao que o budismo sugere e, como veremos, especialmente o Zen o de levar

    o humano a experimentar essa modulao na vida chamada de Incondicionada.

    Nesse sentido, tambm abordaremos aspectos da vida desses personagens que

    equivoquem as tentativas de coloc-los em guetos msticos e religiosos. Mais ainda, se existe

    5 Tal texto o ponto de partida deste livro. Nele, Nietzsche afirma que sua filosofia e a de Espinosa tm a mesma

    tendncia geral: fazer do conhecimento o mais potente dos afetos. (MARTINS, 2009).

  • 11

    alguma via possvel de ser preestabelecida na pesquisa, essa seria uma via

    tica/esttica/poltica6. Uma via que se oriente por uma prtica, um contedo e uma forma

    que, entrelaados, sustentem as experincias de Beatitude e Iluminao/Incondicionado no

    contexto poltico.

    Em determinado momento do seu percurso de vida, que podemos chamar de um

    percurso tico, Espinosa sentiu que era eterno. Sentiu que experimentava esse estado de

    afirmao e unio da mente finita com a mente infinita. Experimentou olhar com o terceiro

    olho. Poliu sua lente na experincia de vida e logrou olhar para alm das aparncias7. Na

    experincia do grau de potncia que enseja a beatitude, Espinosa vive uma verdadeira

    revelao8, um desvelamento do que sempre esteve presente e que, por conta de um

    conhecimento limitado, seguia incompreensvel. Na beatitude, Espinosa retira completamente

    a barreira imaginria que o separava do mundo e experimenta uma coincidncia com o todo.

    Podemos antecipar nossa questo dizendo que Sidharta Gautama, o Buda, tambm

    experimentou uma forma diferenciada de estar no mundo. Uma forma que se apresentava

    como livre e incondicionada, uma forma que lhe permitiu o conhecimento correto de si e de

    todas as coisas, uma experincia incontornvel da realidade ltima. Uma vida orientada pelo

    sentido mais abrangente do que o Zen chama de liberdade, um viver incondicionado.

    o experimentar sem experimentador, pensamentos sem pensador9, que se expressa

    na plena identidade da mente finita com a Natureza inteira. E aqui cabe outra importante

    considerao para que possamos avanar com a pesquisa de forma coerente com nossos

    autores e suas concepes de mundo. Podemos dizer que, para Espinosa, no existe Natureza.

    Podemos dizer tambm, sem nenhuma contradio, que para Espinosa s existe a Natureza e

    as suas formas de expresso. No existe a Natureza como a concebemos usualmente, algo

    separado do homem, localizada e conceituada como um conjunto de seres compondo flora,

    fauna etc. No existe Natureza como algo que habita o fora. Por outro lado, para o mesmo

    autor, tudo o que existe a Natureza e a Natureza tudo. Ela o plano de imanncia da vida.

    6 No se tratam mais de formas determinadas, como no saber, nem de regras coercitivas, como no poder: tratam-

    se de regras facultativas que produzem a existncia como obra de arte, regras ao mesmo tempo ticas e

    estticas que constituem modos de existncia ou estilos de vida (mesmo o suicdio faz parte delas). o que

    Nietzsche descobria como a operao artista da vontade de potncia, a inveno de novas possibilidades de vida. (DELEUZE, 2006a, p. 123).

    7 Trata-se do terceiro olho, aquele que permite ver a vida para alm das aparncias, das paixes e das mortes.

    (Id., 2002, p. 20).

    8 Porque Espinosa faz parte dos viventes-videntes. Ele diz precisamente que as demonstraes so os olhos da

    alma. (Ibid.).

    9 Ttulo de um livro escrito por Mark Epstein, Pensamentos sem Pensador: Psicoterapia pela perspectiva

    budista, Rio de Janeiro: Gryphus, 2001.

  • 12

    Potncia produtiva que acompanha a produo e que s existe no ato de produzir. A causa que

    no se separa do efeito. A Natureza como a nica substncia. A Natureza como Deus. Ento,

    quando utilizarmos o termo Natureza, e esse ser recorrentemente utilizado, estamos nos

    referindo a esse nico, essa totalidade que no exclui rigorosamente nada.

    1.1 UM ROTEIRO

    Inicialmente apresentaremos aspectos relativos ao budismo e o percurso de vida

    realizado por Sidharta Gautama, o Buda. Traaremos um caminho que apresente desde a vida

    palaciana de Sidharta Gautama s questes existenciais e polticas que o fizeram ir em busca

    daquilo que ficou compreendido como o conhecimento correto de si e de todas as coisas, que

    se expressa na experincia da Iluminao/Incondicionado.

    Investigaremos tambm encontros e experincias realizadas por Sidharta Gautama at

    chegar efetivamente ao cume dessa experincia de autorrealizao. Apresentaremos os

    principais preceitos que constituem o budismo e principalmente aqueles inerentes escola

    Zen-budista. Discutiremos os preceitos de Impermanncia, Insubstancialidade/Vazio,

    Iluminao/Incondicionado, que efetivamente so os que mais interessam nossa pesquisa.

    Apresentaremos as razes que nos levaram a optar por trabalhar especificamente com

    a escola Zen-budista, o que encontramos nessa escola que pode se articular com a experincia

    de beatitude. Pesquisar as questes da liberdade, da autorrealizao, da ao no mundo

    propostas pelo Zen-budismo. Trabalharemos com a ideia e a experincia de

    Iluminao/Incondicionado, no que de mais abrangente, prtica e democrtica esta poder ser

    compreendida.

    Por fim, discutiremos e apresentaremos o que encontrarmos de convergente nas duas

    linhas de pensamento, principalmente na questo da beatitude, em Espinosa, e da Iluminao,

    no Zen-budismo.

    Aps a apresentao dos aspectos que nos parecem fundamentais com relao ao Zen-

    budismo, passaremos a trabalhar mais especificamente com a vida e a obra de Espinosa.

    Comearemos apresentando aspectos relevantes da sua vida, assim como os contextos

    polticos, religiosos e filosficos nos quais ele estava inserido, orientado sempre pela busca da

    potncia individual e coletiva que engendram a liberdade.

  • 13

    Apresentaremos o conjunto da sua obra, em especfico o Tratado da Reforma da

    Inteligncia e a tica10

    , dando destaque ltima parte, onde ele aborda mais diretamente o

    percurso que culmina com o terceiro gnero de conhecimento ou beatitude. Seguiremos

    mapeando o seu plano de imanncia, ou seja, qual o esprito que perpassa as suas questes.

    Na sequncia, entraremos nos principais pontos do seu texto inacabado, O Tratado da

    Reforma da Inteligncia, que consideramos o ponto de partida que levou Espinosa a

    empreender o seu percurso tico em busca do verdadeiro bem, do sentido maior de liberdade.

    Seguiremos apresentando e discutindo o seu entendimento sobre o conhecimento. A potncia

    de conhecer que se desdobra, metodologicamente, em trs gneros de conhecimento. O

    conhecimento como formas de experimentar a vida, modulaes da potncia que se

    expressam no que ele chamou de modos existentes. Modos de existncia da prpria potncia

    produtiva, da Substncia nica. Discutiremos o sentido de conhecimento singular ou intuitivo

    bem como o valor da experincia na sua obra.

    Nesse roteiro, torna-se incontornvel apresentar a sua concepo de corpo, discutir o

    entendimento de afetos, afeces que modificam o corpo, tornando-o sempre algo da ordem

    singular e produzindo mais ou menos perfeio. O que e o que pode um corpo? O sentido de

    corpo que Espinosa apresenta o prprio modelo sobre o qual ele ir construir sua

    experincia de beatitude.

    Discutiremos o sentido diferenciado de amor na obra do filsofo. O que ele veio a

    chamar de amor para com Deus e de amor para com os homens. Avanaremos na discusso

    sobre a mente, modo do atributo pensamento, sobre a eternidade na unidade corpo/mente e o

    entendimento de terceiro gnero de conhecimento.

    Trataremos da questo poltica em Espinosa fazendo uma discusso do sbio, aquele

    que experimenta a beatitude. As articulaes da poltica em Espinosa com uma poltica

    contempornea, e a discusso sobre o sentido maior de liberdade na obra do filsofo.

    Aps a discusso dos percursos desses dois personagens iremos, em uma perspectiva

    de produzir com suas respectivas obras, articular o sentido de beatitude ao de

    Iluminao/Incondicionado. Nossa inteno ser a de, tomando-as como dispositivo de

    anlise, avanar com elas e investigarmos a abertura que produzem para pensarmos em uma

    10

    Livro escrito por Espinosa entre 1661 e 1675 dividido em cinco partes: Deus; A natureza e a origem da mente;

    A origem e a natureza dos afetos; A servido humana ou a fora dos afetos; A potncia do intelecto ou a

    liberdade Humana. Livro concludo em Latim, Espinosa pensa em public-lo em 1675. Por motivos de

    prudncia e segurana, ele renuncia a publicao. (DELEUZE, 2002, p. 21).

  • 14

    poltica contempornea. Nossa preocupao, como mencionamos, produzir com o legado

    que ambos deixaram e discutir o sentido de liberdade, norteador da obra de ambos.

    Passaremos ento concluso de todo o nosso trajeto apresentando as consideraes

    finais sobre o trabalho de pesquisa.

  • 15

    2 UMA BREVE HISTRIA DO BUDISMO E A VIDA DE SIDHARTA GAUTAMA O

    BUDA

    Narrada por diversos meios, por muitos lugares e ao longo de muito tempo, a lenda

    que descreve o prodigioso nascimento de Sidharta Gautama foi um precioso instrumento a

    servio da popularizao e da expanso da doutrina budista. O mito ainda hoje pode ser til,

    se bem vista a fora universal das imagens arquetpicas nele evocadas.

    Nascido sob um bem conhecido contexto socioeconmico da cultura sediada no Vale

    do Ganges, Sidharta Gautama veio a ser reverenciado como O Iluminado, O

    Incondicionado, O Desperto, O Buda entre outros eptetos.

    A Histria admite que em meados do primeiro milnio a. C. Sidharta nasceu no sop

    do Himalaia na provinciana cidade de Kapilavastu, situada no territrio do atual Nepal. Seu

    pai, Suddhodana, pertencia casta guerreira, lder da tribo dos Shkyas, soberano de um

    pequeno reino tributrio de Madhaga, estado monrquico que, juntamente com Koshala e

    outros igualmente bem-organizados e em franca prosperidade, configuravam as principais

    foras polticas que mais tarde urdiram ideias de unificao11

    .

    Pouco tempo aps o nascimento de Sidharta, o prncipe herdeiro dos Shkyas, morre a

    rainha Maya, sua me, tendo ele sido criado por Mahaprajapati, uma tia paterna. Como no

    poderia deixar de ser, Sidharta recebe esmerada educao bramnica12

    e nada faltou sua

    preparao para suceder o pai.

    Convm aqui fazer notar que nada acautelou e ningum impediu que o jovem prncipe,

    muito cedo, tropeasse em fatos e situaes geradoras de ansiedade e sofrimento. Ele se

    defrontava com o sofrimento nas suas mais diversas formas de expresso: no adoecimento; no

    envelhecimento; na perda de algum bem material; na perda de um ente querido; na morte.

    Questionou-se profundamente sobre a origem desse estado de despotencializao a que o

    humano estava submetido.

    A constatao da existncia disseminada do sofrimento, a busca pela sua origem e a

    forma de subjug-lo ser o leitmotiv para a construo da sua experincia de vida que

    culminou com a sua experincia de Iluminao/Incondicionado. Assim, na sua busca,

    11

    WARDER, 1980, captulo 2.

    12 A formao que era dispensada ao nobres e filhos de nobres que integravam a casta superior na ndia.

  • 16

    Sidharta Gautama inicialmente vive com ascetas13

    e mestres, fazendo jejum, yoga e prticas

    rigorosas que pudessem propiciar uma forma adequada de entendimento do mundo. Estava

    em busca de conhecimento, de uma compreenso que pudesse livrar no s a ele, mas a todos

    os seres dessa verdadeira epidemia que se expressava nas mais variadas formas de sofrimento.

    Pelo que se sabe do seu carter observador, atento e sensvel s questes existenciais

    que vo vincar a sua ndole filosfica, certamente aquele jovem prncipe no ficou indiferente

    s estratgias diplomticas que Suddhodana precisava delinear para salvaguardar-se das

    presses exercidas pelos reinos vizinhos e mais poderosos. Muito menos ter sido ele

    indiferente morte da me, acontecimento que, embora infeliz, naquela cultura no era visto

    como mrbido e nem se ocultava das crianas. Mas foi com total desinteresse que Sidharta

    olhou para as coisas naturalmente exigveis a um futuro monarca. Mesmo assim, o prncipe

    dos Shkyas no deixou de atender s articulaes polticas que o fizeram contrair matrimnio

    com a sua prima Yasodhara. Quando contava ele vinte e nove anos, to logo nasceu Rahula, o

    nico filho do casal, Sidharta tomou uma delicada deciso sobre uma questo que, no

    contexto cultural daquele tempo e lugar, era posta aos jovens nascidos nas castas superiores,

    criados em privilegiada posio econmica e social, com destino traado na perspectiva de

    tornar-se o Governador do reino e da tribo dos Shkyas. A questo era se tomaria ou no o

    propsito de imprimir a marca da sua identidade no mundo secular, promovendo mudanas

    em algum aspecto relevante da vida coletiva. Sidharta recusou este propsito, voltou as costas

    ao trono, como vimos, e partiu em busca de respostas de natureza filosfica que o

    conhecimento adquirido na sua educao bramnica no satisfez. Deciso que resultou na

    conquista de um estatuto reconhecidamente venervel nos domnios da espiritualidade14

    .

    Outras personagens com as mesmas inquietaes compunham o elenco que atuava

    naquele cenrio. Eram preceptores errantes (sramana) que se opunham ortodoxia

    bramnica, manifestando repdio instrumentalizao da f e corrupo que crescia entre

    os sacerdotes; transitavam expondo seus conceitos e prticas, angariando seguidores. Sidharta

    acompanhou dois dos mais afamados15

    e, depois de esgotada a assimilao dos ensinamentos

    recebidos, ainda insatisfeito, entregou-se ao ascetismo mais radical, como vimos.

    13

    Antes da instituio dos mosteiros, o devoto dedicado a oraes, privaes e mortificaes, sem ter

    pronunciado votos; pessoa que se consagra a exerccios espirituais de autodisciplina. (Dicionrio eletrnico

    Houaiss).

    14 YOSHINORI, 2006, vol. I, captulo VI, p. 133.

    15 WARDER, 1980, captulo 3, p. 46-47.

  • 17

    Enfraquecido pelas austeridades, mas ainda insatisfeito, decidiu empreender a sua

    busca solitria em uma conduta frugal, no centrada na autoflagelao, mas sim na

    observao plena da realidade tal qual ela se apresenta aos sentidos.

    Sidharta, nos seus encontros com o mundo, percebeu que a contemplao quieta e

    silenciosa sobre os fenmenos tal como eles se apresentam aos sentidos conduz ao despertar

    da sabedoria bdica, que est para alm do pensamento discursivo do intelecto. A natureza

    bdica, ou o princpio bdico, tida como a verdadeira mas escondido potncia ou elemento

    imortal contido na mente que permite a Iluminao/Incondicionado e o tornar-se um Buda.

    uma caracterstica presente em todos os seres e em todo o mundo fsico e no fsico. A

    sabedoria que desabrocha na observao atenta do mundo tal qual ele se apresenta aos

    sentidos, livre de ideias preconcebidas. Na serena ateno plena, isenta de prazer e de dor,

    revela-se a sabedoria que patenteia o despertar Iluminado/Incondicionado.

    Foi em Rispatana, aos 35 anos, com a prtica silenciosa da plena ateno que Sidharta

    Gautama alcanou a budeidade, qualidade que identifica o desperto, o

    Iluminado/Incondicionado. Aps alguns anos de prticas, na maioria corporais, quase que em

    uma descoberta, no limite, do que pode um corpo, Sidharta Gautama ento experimentar o

    que pode um corpo na sua expresso mais plena. O estado de Iluminao ou Incondicionado.

    E esse pode ser resumido como aquele que produz a compreenso correta de si e de todas as

    coisas. Segundo relatos, essa experincia foi produzida por meio do processo de meditao

    silenciosa e solitria que ele empreendeu por algum tempo.

    Aps a experincia que a meditao propiciou, passa a conhecer plenamente a sua

    natureza e a natureza do real. Ultrapassa um olhar de mundo fixado nas aparncias e rompe

    com a tirania do sofrimento, identificando a sua origem e experimentando a sua cessao.

    Torna-se livre, o Buda.

    Assim ele compreender que a origem de todo sofrimento o resultado de um

    entendimento inadequado do mundo, produtor de uma forma de vida apegada estabilidade e

    substancialidade dos fenmenos, principalmente ideia de estabilidade de um eu individual.

    O caminho para estancar o sofrimento seria ento a experincia efetiva de uma compreenso

    adequada da realidade ltima. Um processo de correo do entendimento que iria expressar-se

    em uma outra maneira de experimentar a vida.

    Sua questo no dizia respeito a situaes pontuais, mas origem de todo e qualquer

    tipo de sofrimento. A partir da sua inteno a de transmitir ao maior nmero possvel de

    pessoas a origem e o caminho para a cessao do sofrimento.

  • 18

    Socializar o saber, o conhecimento, a prpria experincia. Democratizar e

    compartilhar com todos, independente de casta, raa ou condio social a experincia que

    conduz o humano ao verdadeiro conhecimento de si e ao verdadeiro conhecimento do mundo,

    que, em ltima instncia, para o budismo, significam a mesma coisa.

    Esta ento a principal tarefa a que se prope o Buda: compartilhar a sua experincia

    de Iluminao/Incondicionado. E para conseguir o seu intento reuniu um pequeno nmero de

    discpulos, dando origem a uma comunidade de monges que cresceu e difundiu os

    ensinamentos do mestre, chegando tambm aos leigos, que recebiam instrues prticas no

    sentido de elevar o padro tico da vida cotidiana. Buda transmitia seus ensinamentos por

    meio de sermes que se constituam em palestras abertas a todos.

    O homem Sidharta Gautama trilhou um caminho, experimentou at onde essa trilha

    conduzia, Iluminao/Incondicionado, ensinou esse caminho a todos os homens com quem

    fez contato e disse para cada um deles: Trilha-o.

    Nesse perodo, por volta do sculo VI a.C, a ndia estava sob a gide do estado

    monrquico, representante do poder divino na terra. A organizao social do pas era

    constituda por meio da diviso da populao em castas. As pessoas eram classificadas e

    separadas em agrupamentos distintos, dentro de uma hierarquia onde o nascimento era

    determinante para definir a casta a que cada um pertencia. Nesse sistema as castas se dividiam

    em: 1) Brmanes ou sacerdotes; 2) Guerreiros e nobres; 3) Mercadores, lavradores e artfices;

    4) Servos. Nessa diviso, imposta e fiscalizada pela monarquia local, em nome do prprio

    Brahman16

    , as pessoas deveriam viver os direitos e obrigaes dentro dos limites

    estabelecidos sua casta.

    No ambiente social da poca, agitado pelo progresso e pelo desenvolvimento

    econmico da ndia, surge tambm um espao prdigo de discusses filosficas e debates

    polticos. No contexto poltico de privilgios Buda tornara-se uma pessoa inconveniente para

    a monarquia governante, pois questiona a organizao social da ndia, sua forma de governo e

    os processos de controle soberano a que a populao estava submetida.

    A questo central do budismo a liberdade, no seu sentido mais amplo. O seu

    ensinamento original, que veremos adiante, pensado por proeminentes filsofos indianos, deu

    origem a diferentes escolas e correntes budistas que se expandiram em diversas direes.

    16

    O segundo dos trs perodos da religio indiana, marcado pela consolidao do sistema de castas e pela

    hegemonia religiosa da casta sacerdotal dos brmanes (Estendendo-se, aproximadamente, do sculo X ao

    sculo VII a.C. O perodo marca a crescente importncia do conceito filosfico de brman e de sua

    contrapartida mtica e antropomrfica, o deus Brama).

  • 19

    O primeiro discurso de Sakyamuni Buda foi proferido no Parque das Gazelas, aos seus

    cinco antigos companheiros de ascetismo, dando, assim, arranque ao propagar da doutrina. Na

    evoluo do seu percurso doutrinrio, os contedos e os modos de exposio dos seus

    discursos demonstram a utilizao de diferentes recursos pedaggicos que visavam atender s

    particularidades das assembleias de discpulos, s especificidades de diferentes pocas e aos

    interesses nem sempre de fcil identificao, tanto do ponto de visa doutrinrio17

    como

    poltico. Afinal, no podemos esquecer que a ruptura com o destino de monarca sucessor dos

    Shkyas e as suas posies contracultura no fizeram com que Sidharta, agora o Buda,

    abandonasse as preocupaes de proteger o pai, vulnervel s relaes instveis mantidas com

    a vizinhana. Alguns analistas sugerem que, no decurso da vida, Sakyamuni demonstra esta

    solidariedade filial, assim como as bvias preocupaes com o assentamento estrutural da sua

    comunidade de discpulos, e que se verificaro refletidas na sua estratgia de converses e at

    mesmo nas variaes temticas e tonais dos seus discursos doutrinrios.

    Naquele momento histrico, o surgimento de uma nova doutrina no se apresentou

    como fenmeno isolado. Mais ou menos em simultneo, outros sbios pregadores expuseram

    os seus princpios doutrinrios. Entre eles, alguns eternalistas estavam em busca de

    transcendncia pelo rigor purista, propondo uma conduta imaculada e avessa ao mundo

    temporal e defendendo a ideia de que em cada indivduo existe uma alma eterna e imutvel.

    Em contraste, outros faziam a pregao do hedonismo, explicitamente posicionado no

    materialismo radical. A doutrina de Sidharta, entre outras caractersticas particulares, evitava

    posies extremadas, merecendo assim ser chamada de O Caminho do Meio.

    Valendo-se da sua retrica impecvel, graas ao prestgio das suas origens

    aristocrticas, o prprio Buda converteu muitos dos pregadores da sua poca, monarcas,

    nobres e outras personalidades com influncia nos domnios do saber, da poltica e da

    economia. Como era de costume, os que gozassem de alguma espcie de poder ao filiar-se a

    certa doutrina arrastavam todos os que estivessem sob a sua influncia direta ou indireta.

    Sidharta foi adotado como mestre de uma extensa e plural legio de pessoas.

    Aquelas doutrinas emergentes rejeitavam os preconceitos com relao ao sistema de

    castas, como vimos, abraando uma indiscriminada massa de adeptos. Mas, entre os

    seguidores de Buda, destacavam-se os com educao bramnica. Tal importa dizer para que

    fique sublinhada a complexidade conceitual da sua doutrina que exigia mais que a inclinao

    meramente devocional das multides. No entanto, com a disseminao da doutrina entre

    17

    WARDER, 1980, captulo 3, p. 50.

  • 20

    seguidores leigos, ocorreram assimilaes diversas, abraando tradies folclricas e at

    mesmo piedosas, componentes da religiosidade popular, sustentadas na f e na devoo;

    aspectos totalmente alheios aos alicerces dos ensinamentos do Gautama Buda. Mesmo no

    seio da sua comunidade, surgiro disposies contrastantes geradoras de conflitos conceituais.

    A Histria nos diz que, logo aps a morte de Sakyamuni Buda, pelo menos dezoito

    ramificaes se acotovelaram18

    exigindo um primeiro conclio que vai acontecer em

    Rajagriha. este conclio que vai regular a vida em comunidade, compilar textos doutrinrios

    e comentrios filosficos, parmetros que foram indispensveis para sistematizar o processo

    de disseminao e desenvolvimento da doutrina budista.

    Alheia aos contornos dos ensinamentos originais, a f budista vai progredir entre os

    seguidores leigos. Os monges, por outro lado, aprofundam a discusso filosfica na qual a

    doutrina do vazio vai ocupar grande destaque na pauta das reflexes mais especulativas.

    Contudo, foi um leigo chamado Vimalakirti quem obteve especial preeminncia entre os que

    mais se debruaram sobre este contedo doutrinrio.

    Nesta altura, o ideal do Buscador do Despertar (arhat), que era o desgnio dos monges

    mendicantes (bhikkhus) da Escola dos Antigos (Theravada), vai ser posto em questo por ser

    compreendido como expresso de uma busca centrada na determinao egosta de livrar-se do

    sofrimento, sem levar em considerao o sofrimento da Humanidade. Alm do mais, nesse

    desenrolar dos acontecimentos j no era possvel fechar os olhos experincia da

    Iluminao/Incondicionado entre leigos, no mbito das relaes mundanas. Como no poderia

    deixar de ser, o mundo com os seus fluxos incessantes vai afetar a apreciao e o juzo social,

    pondo em questo o conservadorismo elitista cultivado pela comunidade monstica. Tal se

    verifica com mais agudeza quando o prestgio da doutrina budista entra em declnio com o

    enfraquecimento da proteo monrquica que at ento era recebida. Neste perodo de

    turbulncias, as multides reagem ao racionalismo da ordem monstica e exigem respostas

    concretas s circunstncias da vida secular. neste cenrio que a doutrina budista d

    surgimento a uma complexidade de escolas que, de modo decisivo, vo fertilizar o solo onde

    vai despontar o Grande Veculo do Budismo (Mahayana)19

    .

    Ainda dentro da ordem monstica ortodoxa, alguns pensadores preconizam que todos

    os seres so dotados da natureza bdica e, na sequncia de assimilaes diversas, o Buda

    histrico rodeado de budas arquetpicos, entronizados em um vasto panteo de divindades

    18

    WARDER, 1980, captulo 9.

    19 YOSHINORI, 2006, vol. I, captulo XIII.

  • 21

    tutelares. Novos textos doutrinais ganham expresso, enquanto recitaes de frmulas

    mgicas e um rico acervo de apetrechos ganham a dimenso de suportes para as prticas

    meditativas e ritualsticas. Fatores que so designados como meios hbeis (upayas),

    expedientes e ferramentas usadas pelos que, em tendo alcanado a

    Iluminao/Incondicionado, deles fazem uso com o propsito compassivo de favorecer o

    desabrochar da natureza bdica de todos os seres (Bodhisattva)20

    .

    Na gnese do Grande Veculo do Budismo est Nagarjuna, que pode ser apontado

    como o mais proeminente filsofo budista depois do prprio Buda. Nascido em data

    imprecisa, entre 150 e 250 a.C., Nagarjuna vem de uma prestigiada famlia da casta brmane.

    Ele deu uma extraordinria dimenso Doutrina do Vazio, exaustivamente descrita no

    Grande Texto da Suprema Sabedoria (Mahaprajnaparamitra Sutra), que est na base do

    pensamento que se posiciona entre o eternalismo e o niilismo, da o nome de Escola do Meio

    (Madhyamaka)21

    . Outros eminentes pensadores sustentam o edificar das importantes escolas

    que vo fazer com que o corpo da doutrina budista gradualmente se torne mais flexvel,

    ganhando contornos claramente universalistas. Com estes antecedentes, o Grande Veculo do

    Budismo cruza as barreiras dos Himalaias.

    O pensamento budista chega China no sculo I a.C. Apesar da quantidade de textos

    que foram traduzidos para o chins, as escrituras procedentes da ndia eram tantas, to

    dspares e por vezes antagnicas entre si que exigiu um longo tempo para a insero da

    sabedoria budista na cultura local. Entre os conceitos e prticas que por l ganharam razes, a

    Escola da Meditao (Dhyana), supostamente introduzida pelo monge indiano

    Bodhidharma, chega China entre 470 e 520 d.C., como veremos adiante, dando o primeiro

    passo para a expanso continental da Escola da Meditao (Chan) e mais tarde para o Japo

    com a denominao Zen.

    Os ensinamentos budistas no Japo tm inicio por volta do ano 532, com monges

    instrudos na China que instalam os primeiros templos e que progressivamente passam a

    exercer grande influncia sobre as elites intelectuais22

    . Em uma marcha incessvel,

    conquistam imenso poder poltico e econmico, deixando um infame rastro de intrigas e

    corrupo, precedentes que determinaram o desdobramento de uma segunda fase na

    penetrao budista no territrio do sol nascente. No final do sculo VII, como medida

    20

    SKILTON, 2000, captulo XIII.

    21 YOSHINORI, 2006, vol. I, captulo XI.

    22 HALL, 1970, captulo V.

  • 22

    cautelar, a instalao de novas escolas foi concedida em locais distantes das decises

    polticas. Como a China continua a ser o modelo civilizacional a ser seguido, os fundadores

    dessas novas escolas descendem da classe aristocrtica e mantm-se as ligaes entre o estado

    e o clero. Entretanto, ser precisamente no seio de uma delas, na Escola Tendai, sediada no

    Monte Hiei, que vo surgir ideias de popularizao da doutrina. Na outra Escola, a escola

    Shingon, sediada no Monte Koya, temos ento o prottipo do ensino pblico no Japo.

    O cenrio poltico e social do Japo nos sculos XII e XIII de convulso poltica em

    busca do poder unificado. Vitoriosa, a aristocracia guerreira impe expressivas reformas

    administrativas que vo consolidar o feudalismo japons do perodo Tokugawa. O

    isolacionismo territorial, entre outros efeitos, reduz a importao da cultura estrangeira e

    enfatiza a determinao em dar uma formatao cultural marcadamente niponizada. Templos

    budistas que gozavam das prerrogativas concedidas pelo antigo regime so ento duramente

    dizimados. Por outro lado, a austeridade, o foco na efemeridade da vida e a sensibilidade

    esttica minimalista, nada condescendente com o barroquismo chins, so fatores que do ao

    Zen um sotaque que se harmoniza com o esprito marcial dominante. Contudo, o

    enraizamento do Zen-budismo no surge como fenmeno isolado. Seitas populares reagem,

    por escrituras budistas que denunciam o perodo de decadncia do poder libertador da

    doutrina ensinada por Sakyamuni [], restando apenas a f nos votos compassivos do Buda

    Amida e no Paraso Budista []23. Portanto, uma escola que, ciente da natureza bdica dos

    seres, faz uso do expediente devocional como meio hbil (upaya), como plataforma de

    lanamento para a perfeita Iluminao, atributo que cabe a todos, sem apangios

    discriminatrios, produz e suscita discusses e desavenas em setores mais conservadores da

    comunidade budista.

    Portanto, recorrendo a pressupostos bem distintos, os ramos do Zen24

    que se firmaram

    no Japo esto centrados na prtica da meditao sentada, assim como na plena ateno posta

    nas tarefas corriqueiras do cotidiano. Caractersticas que do uma especialssima relao com

    o mundo sempre em mutao. Portanto, em qualquer dessas prticas est a observao de que

    todos os fenmenos so efmeros e vazios de substncia, que todos os seres so dotados da

    natureza bdica e, consequentemente, o intento central do praticante ser, na transitoriedade

    do mundo, tal qual se apresenta aqui e agora, buscar a sbita experincia da

    Iluminao/Incondicionado. de se destacar que, entre divises da Escola Zen no Japo, o

    23

    YOSHINORI, 2006, vol. I, captulo X.

    24 HALL, 1970, captulo V.

  • 23

    ramo Rinzai, desde as suas origens na China, com a deliberada inteno de embaraar e

    desmontar o raciocnio formal, prope questes enigmticas (koan), insolveis pela

    articulao do intelecto. O seu pressuposto de que ser no vazio das construes do saber

    intelectual regido pela razo onde a natureza original do ser vivencia a Iluminao sbita.

    Beatitude ou estado transcendente vivido no imanente, tal como descrito nos textos que

    aliceram as escolas do Mahayana. Entre tantos, vai o grifo para o Sutra da Essncia da

    Suprema Sabedoria (Mahaprajanparamita Hridaya Sutra), o Sutra do Corao25

    . Texto

    considerado como o mais conciso, direto e substancial, sendo assim adotado por praticamente

    todo o Zen.

    Na leitura dos seus enunciados mais relevantes, sem muito divagar pela alegoria

    potica do texto, afirma-se que nada havendo que possa ser definido como um eu substancial

    e eterno, conclui-se que no h nada de substancial no sofrimento, na origem do sofrimento,

    no caminho que leva cessao do sofrimento, e na cessao do sofrimento. Nada havendo

    para ser buscado ou obtido. E, assim, (no vazio) d-se a resplandecncia da suprema sabedoria

    que ilumina os seres.

    Contudo, o homem, na sua relao com o mundo, vive a impermanncia como um

    fator gerador de insatisfao. Portanto, os encontros com o mundo sempre em mudana

    resultam em insatisfao. Contato com o indesejvel, frustrao por no obter o desejvel,

    perda do que alegra e mergulho na tristeza que lhe reduz a potncia de agir. Se, por outro

    lado, encontros com o mundo tambm podem se sentidos como propulsores da potncia de

    agir, bem-feitas as contas, a perda da potncia preponderante, progressiva, acumulativa e se

    impe de forma inexorvel, at que se efetive a total extino da energia vital disponvel ao

    corpo.

    Entre o temor de perder a potncia vital e a esperana de ganh-la e como a

    realidade no se ajusta aos interesses do corpo , o corpo, realidade, ajusta-se. assim que,

    como artifcio consolador, advm construes ilusrias, produes do corpo que, mergulhado

    em um caldo de densidades, faz a gestao de pensamentos que edificam a estrutura do

    pensamento religioso. Nesta magnfica forja produtora de ideaes consoladoras da dor e de

    conceitos arautos da esperana, aninha-se a alma individual eterna, urdem-se a moral

    espiritual, a justia crmica, as encarnaes sucessivas, os ritos e cerimnias angariadoras de

    mritos, as divindades intercessoras, os parasos, a transcendncia e todas as crenas que

    entretm os seres em um estado de infantil dependncia, condio docilmente manipulvel

    25

    GONALVES, 1993, p. 67-68.

  • 24

    pelo poder tutelar. Em oposio, a razo crtica recorre s formulaes engendradas pelo

    intelecto que, supondo vitalizar-se, exerce sim a supremacia dada ao seu to pretendido poder.

    Em uma estratgia nada compassiva, a lgica tecida pelo conhecimento, na sua tendncia de

    sentir-se confortvel quando dissociada dos imponderveis fluxos da vida, parte em uma

    cruzada que, em nome da lucidez, persegue o fenmeno da homeostase como srdido

    inimigo.

    Tanto para budistas como para no budistas o Sutra do Corao tem um fecho

    desconcertante. Exposto o cerne da sabedoria que o define como selo modelar do pensamento

    enraizado na doutrina do vazio, l est uma estrofe composta por fonemas aos quais est

    atribudo poder mgico (mantra). Muito menos aqui ser triunfante o rigor do raciocnio

    formal. Sem dvida, circunspecto e solene, o Sutra pode sugerir a ideia que implode enquanto

    verdade ltima, pode mesmo soar estranho, como um koan.

    2.1 O CONHECIMENTO NO BUDISMO

    Para o budismo, todos os organismos so vivos e o ser humano composto do que se

    veio a chamar de cinco khandhas (grupos): rupa, ou forma material; vedana, sensao; saa,

    percepo; sankhara, formaes ou impulsos volitivos; e viana, conscincia. No existe

    propriamente algo ou algum que possa se intitular proprietrio ou possuidor dos khandhas,

    quer seja como parte deles ou no seu interior. Em qualquer investigao da vida os cinco

    khandhas so uma base suficientemente abrangente para realizar tudo o que necessrio ao

    viver. Os cinco khandhas se alinham ideia da Originao Dependente26

    , existindo como

    parte do contnuo de fatores inter-relacionados e interdependentes.

    Nesse contexto, esto sujeitos a trs caractersticas fundamentais, so elas: aniccata,

    impermanncia e instabilidade; anatta, significa que eles no so dotados de uma essncia

    prpria, substncia ou um eu individual; e dukkhata, significando que esto constantemente

    oprimidos pela origem e cessao do sofrimento, sempre que com eles, ou seja, com os cinco

    khandhas, nos relacionemos por meio da ignorncia (avijja).

    Os cinco khandhas, prosseguindo dessa forma, com mudanas constantes e livres de

    qualquer substncia prpria e exclusiva, esto sujeitos apenas aos fluxos contnuos e naturais

    dos fatores determinantes pela interdependncia. Ocorre que, para a maioria das pessoas, a

    resistncia ao fluxo contnuo, prprio da natureza, resulta no apego equivocado a uma ou

    26

    SKILTON, 2000, captulo 3, p. 42-44.

  • 25

    outra caracterstica desse contnuo como sendo o eu, e desejando que esse eu se perpetue.

    Quando os fatores contnuos no cedem ao desejo, o que se verifica a frustrao, e,

    posteriormente, um apego ainda mais intenso. A vaga noo da inevitabilidade das mudanas

    nesse eu, ou a suspeita de que ele possa na verdade no existir da forma que o concebemos,

    fazem com que o apego e o desejo se tornem mais intensos e o medo e a ansiedade finquem

    razes profundas na mente.

    Os estados mentais so vistos no budismo como avijja a ignorncia primordial da

    verdade, que enseja a concepo de eu; tanha o desejo de que esse eu imaginrio obtenha

    vrias coisas ou estados; e upadana apego e adeso a essas ideias equivocadas e tudo aquilo

    que elas implicam. Essas contaminaes esto fortemente enraizadas na mente, de onde

    dirigem o comportamento, moldam a identidade e influenciam as mudanas de curso nas

    nossas vidas, tanto de modo explcito como de forma velada.

    O que sugerem, geralmente, as palavras Alma, Eu e Ego, ou a palavra snscrita tma,

    que existe no homem uma entidade permanente, eterna e absoluta. Uma entidade imutvel

    por trs do mundo fenomenal em mudana. Segundo algumas religies, cada indivduo tem

    uma alma separada que criada por Deus e que finalmente, aps a morte, viver eternamente

    no cu ou no inferno, seu destino depende do criador. Para outras, ela atravessa muitas vidas

    at que seja purificada completamente e se una a Deus, Brahman, ou Alma Universal de

    onde ela emana originalmente. Essa Alma ou Eu, no homem, o que pensa os pensamentos, o

    que sente as sensaes, o que recebe as recompensas e punies por todas as aes realizadas

    na vida. Tal concepo chamada de Ideia do Eu. O budismo se posiciona, de forma nica na

    histria, a negar a existncia de tal Alma, de um Eu ou tma. Segundo os ensinamentos de

    Buda, a ideia do Eu uma crena falsa e imaginria que no corresponde em nada realidade.

    Essa ideia falsa a causa de pensamentos perigosos como meu e minha, dos desejos

    egostas e insaciveis, do apego, da raiva, da inveja. Ela a fonte de todos os problemas do

    mundo, desde os conflitos pessoais at as guerras entre as naes.

    A doutrina do Anatta, ou no eu, o resultado da compreenso correta da viso dos

    cinco agregados (khandhas) e do ensinamento da Originao Dependente. Isso que chamamos

    de ser, indivduo, como vimos, compe-se de cinco agregados e, quando os examinamos ou

    analisamos, no h nada neles que possamos tomar como Eu, Atmam, ou Si, ou qualquer

    coisa de permanente e imutvel. O mesmo ocorre quando utilizamos a lei da Originao

    Dependente, que afirma que nada nesse mundo absoluto, toda coisa condicionada, relativa

    e interdependente. Em geral, essa compreenso equivocada da imutabilidade das coisas, e

  • 26

    principalmente do Eu, so as causas de sofrimento para todos os seres no

    Iluminados/Incondicionados. Trata-se da desarmonia em dois processos:

    No primeiro caso experimentamos o processo natural da vida, que prossegue de

    acordo com as leis da Natureza e que se expressam por meio do nascimento, envelhecimento

    e morte, seja no sentido mais bsico como no mais profundo. E a segunda situao vista

    como o processo produzido do desejo e do apego, baseado na ignorncia da verdadeira

    natureza da vida, que produz a percepo equivocada de apego ao eu, criando um eu que

    tentar obstruir o fluxo natural. Essa vida vista como uma vida limitada pela ignorncia,

    vivida com apego, em contradio com as leis e regras da Natureza. Uma vida vivida com

    medo e sofrimento.

    A vida, sob o ponto de vista da tica budista, compreende dois tipos de eu. Qualquer

    contnuo em particular, prosseguindo de acordo com o seu curso natural condicionado,

    embora despojado de uma essncia duradoura, pode, apesar disso, ser identificado como um

    contnuo distinto dos demais. E isso chamado de eu convencional. E essa conveno pode

    ser utilizada de forma hbil, em relao conduta cotidiana e moral.

    Depois temos o eu forjado pela nossa mente limitada, produzido pela ignorncia e

    envolto pelo apego e desejo. Para o budismo, o eu convencional no necessariamente fonte

    de problemas quando compreendido como tal, de forma clara. O eu produzido pela mente

    limitada, no entanto, oculto dentro do eu convencional, o eu do apego, que tem que se

    sujeitar s vicissitudes do eu convencional e por isso instaura-se o sofrimento. Em outras

    palavras, um processo em dois nveis: em um nvel est o eu convencional, no outro nvel

    est o eu ilusrio que se apega ao eu convencional, como se esse fosse uma realidade

    absoluta. Se o apego se transformar em compreenso correta e entendimento claro, no

    teremos nenhum problema, do contrrio, viveremos medo e sofrimento.

    Um estilo de vida fundamentado no apego noo de um eu imutvel engendra medo

    e ansiedade das formas mais variadas, que iro escravizar a pessoa e controlar completamente

    o seu comportamento. Uma perspectiva de vida baseada no apego ao conceito de um eu traz

    muitas repercusses negativas, tais como: apego a desejos egostas, a busca interminvel pela

    satisfao destes, e a sede ambiciosa pelos objetos de desejo; a identificao e a aderncia

    inquebrantvel s ideias, avaliando-as como sendo o eu ou como pertencendo ao eu. Esse tipo

    de apego produz uma deficincia na fluidez da vida e da capacidade de compreenso da

    realidade, gerando arrogncia e intolerncia, apego a preceitos e rituais. Percebendo apenas

    uma relao mstica ou tnue em tais prticas, no se poder nunca estar verdadeiramente

    seguro delas, mas o medo e a preocupao com o falso eu produzem um esforo desesperado

  • 27

    para se agarrar a qualquer coisa que possa servir de segurana, no importando se a coisa

    obscura. Essa defesa diz respeito noo de um eu independente e separado, que

    firmemente mantido e protegido do dano e da destruio. O sofrimento surge como resultado

    das inquietaes postas sobre esse eu oprimido e ameaado.

    Nesse contexto, o sofrimento surge e no se restringe exclusivamente ao indivduo,

    irradiando-se para o exterior, para toda a sociedade. Assim, a condio do apego, para o

    budismo, pode ser identificada como a fonte principal de todos os problemas gerados pelo

    homem na sociedade.

    O ciclo de Originao Dependente sinaliza para essa situao de uma vida

    autocentrada, e o seu inevitvel sofrimento pelo apego ao falso eu, e a contaminao desse

    sofrimento para toda a sociedade. Com o rompimento do ciclo que engendra apego, a vida

    transformada completamente, resultando em uma vida de sabedoria, em harmonia com a

    Natureza e libertada do apego a um falso eu.

    Viver com sabedoria significa viver com plena conscincia da natureza de si e de todas

    as coisas, e, a partir da, saber como se beneficiar das leis e regras de produo da Natureza.

    Beneficiar-se, ento, saber seguir essas leis e estar em harmonia com elas. viver em

    liberdade. Liberdade que prpria da Natureza assim como prpria do homem. Liberdade

    estar livre do poder do desejo e do apego, estar se relacionando com tudo e com todos de

    forma profundamente consciente da relao de causa e efeito que se expressa na ideia da

    Originao Dependente.

    De acordo com os ensinamentos de Buda, no existe nada que esteja alm ou separado

    da Natureza, que seja como um poder mstico controlando os eventos do exterior, relacionado

    ou envolvido de alguma forma nas ocorrncias da Natureza. Lembremos que o budismo, na

    sua essncia, afirma a imanncia do mundo a partir da simples citao de que o mundo

    acontece aqui e agora, desacreditando assim em outro mundo, outras instncias de poder

    transcendente. Tudo aquilo que esteja associado com a Natureza no pode estar separado dela

    ou surgir de outro lugar. Todos os eventos na Natureza prosseguem de acordo com a

    orientao de inter-relao dos fenmenos naturais. No existem acidentes, nem existe uma

    fora criativa independente de causas. Aqui se afirma a relao de causalidade. Eventos

    aparentemente impressionantes e miraculosos surgem inteiramente a partir de causas, mas

    como algumas vezes as causas esto obscurecidas do nosso conhecimento, esses eventos

    podem parecer miraculosos. No entanto, qualquer noo de perplexidade ou assombro

    desaparece com rapidez uma vez que a causa de tais eventos seja compreendida.

  • 28

    A palavra sobrenatural simplesmente um artifcio de linguagem que se refere ao que

    excede a nossa compreenso, mas na verdade no existe nada que seja verdadeiramente

    sobrenatural. O mesmo se aplica nossa relao com a Natureza. O modo de falar que

    descreve os seres humanos e todas as coisas como separadas da Natureza simplesmente um

    artifcio de linguagem. Dizer que controlamos a Natureza simplesmente quer dizer que nos

    tornarmos fatores determinantes dentro do processo de causa e efeito. O elemento humano

    portador de fatores mentais, incluindo a inteno, que esto envolvidos no processo de ao e

    resultado que, juntos, so conhecidos como criao. No entanto, a humanidade no capaz de

    criar algo a partir do nada, independente das causas naturais. Nosso assim chamado controle

    da Natureza surge da nossa habilidade em reconhecer os fatores requeridos para produzir um

    resultado em particular.

    Existem dois estgios nesse processo. O primeiro o conhecimento que leva ao

    segundo estgio, tornando-se um catalisador para outros fatores. Desses dois estgios, o

    conhecimento o crucial. Por meio desse conhecimento o homem capaz de participar no

    processo de causa e efeito. Somente ao interagir e influenciar as coisas de modo sbio pode-se

    dizer que o homem controla a Natureza. Nesse caso, o conhecimento humano, as habilidades

    e as aes se tornam fatores dentro do processo natural. Esse princpio se aplica tanto aos

    fenmenos fsicos quanto aos mentais. A sabedoria com relao aos fenmenos fsicos e

    mentais essencial para que se possa beneficiar da Natureza. Uma vida com sabedoria pode

    ser vista sob duas perspectivas:

    Interiormente caracterizada pela serenidade, alegria, ateno, aquiescncia e

    liberdade. Ao experimentar uma sensao agradvel a mente no fica embriagada ou iludida

    por ela. Quando privada de confortos, a mente permanece firme, inabalvel e imperturbvel.

    A felicidade e o sofrimento no esto mais vinculados a objetos externos. A seguir encontra-

    se um ensinamento do Buda que ilustra as diferenas entre a vida vivida com apego e a vida

    vivida com sabedoria.

    Bhikkhus, uma pessoa comum e sem instruo sente sensaes prazerosas, sente sensaes

    dolorosas, sente sensaes nem dolorosas e nem prazerosas. Um nobre discpulo bem-instrudo

    tambm sente sensaes dolorosas, prazerosas, sente sensaes nem dolorosas e nem prazerosas.

    Ento, bhikkhus, qual a variao, qual a distino, qual a diferena que distingue o nobre

    discpulo bem-instrudo de uma pessoa comum, sem instruo?

    Bhikkhus, quando uma pessoa sem instruo tocada por uma sensao dolorosa, ela fica triste,

    angustiada e lamenta, bate no peito, chora e fica perturbada. Dessa maneira, ela sente duas dores,

    corporal e mental. Como se ela fosse atingida por uma flecha, e logo em seguida, por outra flecha,

    de modo que ela sentiria a sensao de dor de duas flechas. Da mesma forma, a pessoa comum

    sem instruo tocada por uma sensao dolorosa, ela fica triste, angustiada e lamenta, bate no

    peito, chora e fica perturbada. Dessa maneira ela sente duas dores, corporal e mental.

  • 29

    Ao ser tocado por essa mesma sensao dolorosa, ela sente averso pela sensao de dor. Sentindo

    averso pela sensao dolorosa, a tendncia subjacente averso aquilo que est por detrs disso.

    Ao ser tocada pela sensao dolorosa, ela busca prazer nos prazeres sensuais. Por qual razo?

    Porque a pessoa comum, sem instruo, no sabe como escapar sensao dolorosa, exceto

    atravs dos prazeres sensuais. Quando ela busca prazer nos prazeres sensuais, a tendncia

    subjacente ao desejo sensual aquilo que est por detrs disso. Ela no compreende como na

    verdade a origem e cessao, a gratificao, o perigo e a escapatria dessas sensaes. Quando

    ela no compreende essas coisas, a tendncia subjacente ignorncia em relao sensao nem

    dolorosa, nem prazerosa aquilo que est por detrs disso.

    Se ela sentir uma sensao prazerosa, ela sente isso com apego. Se ela sentir uma sensao

    dolorosa, ela sente isso com apego. Se ela sentir uma sensao nem prazerosa nem dolorosa, ela

    sente isso com apego. Essa, bhikkhus, a pessoa comum, sem instruo que est apegada ao

    nascimento, envelhecimento, morte, tristeza, lamentao, dor, angstia e desespero; ela est

    apegada ao sofrimento, eu digo.

    Bhikkhus, quando um nobre discpulo tocado por uma sensao dolorosa, ele no fica triste,

    angustiado, lamenta, no bate no peito, chora e fica perturbado. Ele sente apenas uma sensao corporal, no a sensao mental. Como se ele fosse atingido por uma flecha e no fosse atingido

    por outra flecha, de modo que ele sentiria a sensao de dor de uma flecha s. Da mesma forma,

    um nobre e bem-instrudo discpulo tocado por uma sensao dolorosa, ele no fica triste,

    angustiado e lamenta, no bate no peito, chora e fica perturbado. Ele sente apenas uma sensao corporal, no a sensao mental.

    Ao ser tocado por essa mesma sensao dolorosa, ele no sente averso pela sensao de dor, a

    tendncia subjacente averso no est por detrs disso. Ao ser tocado pela sensao dolorosa, ele

    no busca prazer nos prazeres sensuais. Por qual razo? Porque o nobre discpulo, bem-instrudo,

    sabe como escapar das sensaes dolorosas de outro modo que atravs dos prazeres sensuais. Visto

    que ele no busca prazer nos prazeres sensuais, a tendncia subjacente ao desejo sensual no est

    por detrs disso. Ele compreende como na verdade a origem e a cessao, a gratificao, o perigo

    e a escapatria dessas sensaes. Visto que ele compreende essas coisas, a tendncia subjacente

    ignorncia em relao sensao nem dolorosa nem prazerosa no est por detrs disso.

    Se ele sentir uma sensao prazerosa, ele sente isso desapegado. Se ele sentir uma sensao

    dolorosa, ele sente isso desapegado. Se ele sentir uma sensao nem dolorosa, nem prazerosa, ele

    sente isso desapegado. Esse, bhikkhus, o nobre discpulo bem-instrudo que est desapegado do

    nascimento, envelhecimento, morte, tristeza, lamentao, dor, angstia e desespero; ele est

    desapegado do sofrimento, eu digo. Essa, bhikkhus, a distino, a disparidade, a diferena entre o

    nobre discpulo bem-instrudo e a pessoa comum, sem instruo. (SN.IV.207-210) (SNXXXVI.6).

    2.2 PRINCPIOS DO BUDISMO

    Esses princpios podem expressar a marca identitria do pensamento de Buda,

    transversal e atemporal.

    A Lei da Originao Dependente sinaliza, de maneira clara e concisa, para essa

    relao de produo que prpria da Natureza, afirmando a interdependncia causal entre

    todas as coisas. O Buda no era um emissrio de mandamentos divinos, mas o descobridor de

    princpios da Natureza e o proclamador desses princpios para o mundo. A progresso de

    causas e condies a realidade que se aplica a todas as coisas desde o meio ambiente

  • 30

    natural, que uma condio fsica, externa, at os eventos das sociedades humanas, os

    princpios ticos, os eventos da vida cotidiana. Esses sistemas de relao causal so parte da

    mesma natureza. No budismo, para criar uma vida plena da maior importncia que no

    somente reflitamos sobre a inter-relao de todas as coisas na Natureza, mas que tambm nos

    vejamos com clareza como um sistema de relaes causais, como parte indissocivel da

    Natureza, tornando-nos conscientes, primeiro dos fatores internos, em seguida, dos fatores das

    nossas experincias de vida, da sociedade e por fim do mundo nossa volta. E o que e em

    que consiste esse sistema? Com o surgimento disso, aquilo surge; com a cessao disto,

    aquilo cessa; quando no existe isso, aquilo no existe; com a cessao disso, aquilo

    cessa; quando no h ignorncia, as formaes volitivas do desejo no surgem; quando

    no h formaes volitivas, a conscincia no surge; quando no h conscincia, a

    materialidade no surge; quando no h nascimento, o envelhecimento e morte no

    surgem; desse modo, o mundo cessa. (GONALVES, 1993, p. 47).

    Nesse contexto, podemos entender as duas sequncias que se completam. Na primeira,

    surge o processo de afirmao e origem do prprio sofrimento, referente s quatro nobres

    verdades, como veremos. Na segunda, surge a ideia da cessao do sofrimento, tambm

    referente ao entendimento das quatro nobres verdades. Os ensinamentos budistas enfatizam os

    fatores envolvidos na criao do sofrimento situados na conscincia do indivduo tomando

    por base a ideia de que porque h ignorncia, surgem as formaes. Uma vez que esse

    sistema causal seja compreendido no nvel interno, estaremos ento em posio de ver as

    conexes entre esses fatores internos e as relaes causais na sociedade e no meio ambiente

    natural.

    Outra forma de expressar a lei natural da Originao Dependente, posta em

    funcionamento, a seguinte: da ignorncia como condio surgem as formaes volitivas; das

    formaes volitivas como condio, surge a conscincia; da conscincia como condio,

    surge a materialidade/forma; da materialidade/forma como condio, surgem as seis bases do

    sentido; das seis bases do sentido como condio, surge o contato; do contato como condio,

    surge a sensao; da sensao como condio, surge o desejo; do desejo como condio,

    surge o apego; do apego como condio, surge o ser/existir; do ser/existir como condio,

    surge o nascimento; do nascimento como condio, surgem envelhecimento, tristeza,

    lamentao, dor, angstia, desespero e morte; essa a origem de toda a massa de sofrimento.

    Seguindo, ainda temos: do desaparecimento e cessao sem deixar vestgios dessa

    mesma ignorncia, cessam as formaes volitivas; da cessao das formaes volitivas, cessa

    a conscincia; da cessao da conscincia, cessa a materialidade/forma e as seis bases dos

  • 31

    sentidos; da cessao das seis bases dos sentidos, cessa o contato; da cessao do contato,

    cessa a sensao; da cessao da sensao, cessa o desejo; da cessao do desejo, cessa o

    apego; da cessao do apego, cessa o ser/existir; da cessao do ser/existir, cessa o

    nascimento; da cessao do nascimento, cessa o envelhecimento e a morte; tristeza, angstia,

    lamentao, dor e desespero cessam; essa a cessao de toda essa massa de sofrimento.

    Os doze elos do formato-padro do princpio da Originao Dependente so contados

    apenas da ignorncia at o envelhecimento e morte. A rigor, no existe formalmente um incio

    e nem um fim. Quanto tristeza, lamentao, dor, angstia e desespero, esses so, na verdade,

    subprodutos do envelhecimento e da morte.

    Passemos agora a mais uma constatao importante das leis e regras da Natureza que

    faz parte da doutrina budista.

    As quatro nobres verdades expressam a essncia dos ensinamentos de Buda e podem

    ser resumidas como sendo: a existncia do sofrimento; a origem do sofrimento; a cessao do

    sofrimento; o caminho que conduz cessao do sofrimento.

    Na primeira verdade afirmada que a vida, como a conhecemos, fundamentalmente

    orientada pelo sofrimento. Essa seria a primeira constatao. Na segunda temos que, aps a

    constatao da existncia do sofrimento, identificamos a sua origem, que vem do desejo de

    estabilidade e da crena na individualidade, principalmente na individualidade essencial do

    eu. Na terceira verdade est colocado que o sofrimento acaba quando o desejo tambm acaba.

    O desejo de estabilidade e de substancialidade das coisas e especialmente do eu. E na ltima

    verdade temos, ento, que o caminho para a extino do desejo que engendra o sofrimento o

    caminho indicado e trilhado por Buda. Este caminho (Dharma) foi ensinado como se os

    protocolos da medicina tradicional fossem: a identificao do mal, o conhecimento da sua

    origem, o propsito da cura e a aplicao dos procedimentos teraputicos indicados.

    As Quatro Nobres Verdades (CatvariAriyasatyani) foram os suportes da futura

    comunidade de monges (AriyaSangha). Como vimos, elas enunciam que a vida sofrimento

    (dukkha). Nascimento sofrimento, envelhecimento sofrimento, enfermidade sofrimento,

    morte sofrimento. A relao com aquilo que indesejvel sofrimento, a separao daquilo

    que desejvel sofrimento, e no obter o que desejamos sofrimento. Enuncia tambm que

    o sofrimento tem uma origem (Samudaya). A origem do sofrimento est no desejo. No desejo

    pelo prazer, no desejo por ser/existir, assim como no desejo por no ser, de no existir.

    O terceiro enunciado de que possvel a cessao desse sofrimento (Nirodha). E isso

    ocorre com o abandono, a libertao, a cessao e o desaparecimento do desejo, que pe fim

  • 32

    ao sofrimento. A ltima das Verdades enuncia a maneira e o caminho para a cessao do

    sofrimento. Ela se expressa nos ensinamentos de Buda, entre eles, aquele que foi conhecido

    como O Nobre Caminho ctuplo (Astangika Marga), que veremos a seguir.

    O Caminho ctuplo, no budismo, pode ser compreendido como uma atitude na vida

    cotidiana e o meio de acabar com o sofrimento. Ele se constitui de sugestes e orientaes que

    reforam a relao do humano com o mundo, ensejando a associao com os outros princpios

    inerentes a essa escola de pensamento. Podemos elenc-los da seguinte forma:

    1) Entendimento correto ver a realidade como ela , no como parece ser.

    2) Pensamento correto inteno de libertao do sofrimento e dos

    condicionamentos que produzem sofrimento.

    3) Linguagem correta falar de forma verdadeira e no agressiva.

    4) Ao correta agir de forma a realizar aquilo que necessrio, na medida certa do

    necessrio.

    5) Viver corretamente viver de forma que no prejudique os outros.

    6) Esforo correto esforar-se para melhorar o conhecimento e a ao.

    7) Ateno plena correta estar consciente da realidade presente dentro de si mesmo

    e em todas as coisas, sem desejo ou averso.

    8) Concentrao correta plena ateno na meditao.

    As transmisses feitas por Shakyamuni Buda O Sbio Iluminado da Tribo dos

    Shkyas estavam assentes tambm em trs princpios que sero desenvolvidos a seguir.

    1) Tudo est em constante movimento. Tudo o que tem incio, cessa. Tudo o que se

    forma, decompe-se. Com o surgir disso, aquilo vem existncia. Se isso cessa, aquilo deixa

    de existir. Tudo transitrio e efmero. Este o princpio da impermanncia (anitya).

    2) Como as circunstncias esto em mudana neste contnuo fluxo de vir a ser, todas

    as coisas e todos os fenmenos so conjuntos circunstanciais de agregados, todos eles

    efmeros e vazios de substncia prpria, nada havendo que possa ser definido como um eu

    substancial e eterno. Este o princpio da insubstancialidade da alma (anatman).

    3) Todas as coisas e todos os fenmenos so o que so apenas por um conjunto sempre

    cambiante de circunstncias que tudo une em interdependncia. O que est na essncia de

    todas as coisas e de todos os fenmenos no condicionado, no surge e nem desaparece.

    Este o princpio do incondicionado (Nirvana).

  • 33

    2.2.1 Princpio da Impermanncia

    Comearemos pelo princpio da Impermanncia, pois este um dos fundamentos da

    compreenso da origem do sofrimento humano. Tudo no mundo27

    efmero e no h nada

    que possa ser considerado permanente nessa rede que une todos os fenmenos. As coisas

    esto se compondo e se decompondo todo o tempo ao ponto de, no limite, para o budismo,

    no serem compreendidas como coisas, mas como processos em transformao. O que ocorre

    que vivemos profundos condicionamentos produtores de uma percepo limitada de mundo.

    Para o budismo, existe algo que est a, algo a ser conhecido, uma verdade que fica nublada

    por conta da forma como o humano compreende e, principalmente, experimenta o mundo. A

    impermanncia prpria da vida. Sabemos isso, embora no experimentemos. E essa a

    questo principal para entendermos esse princpio.

    Com relao impermanncia, e de certa forma a tudo o mais, o conhecimento ao qual

    o budismo se refere no o conhecimento intelectual que comumente se apresenta, mas o

    conhecimento vivencial. O conhecimento de forma incondicionada. Nesse tipo de

    conhecimento experimentamos uma relao direta e vivencial com os fenmenos. Com a

    vivncia do conhecimento incondicionado podemos desenvolver outra relao com o tempo.

    Uma relao na qual experimentamos a impermanncia porque somos um com o prprio

    tempo. Passamos junto com o tempo.

    Conhecer a impermanncia experiment-la na sua essncia. uma estreita

    coexistncia com aquilo que puro movimento e transformao. Experimentamos a

    impermanncia sem a mediao do pensamento. Somos com o tempo. Trata-se ento de

    experimentar com o tempo e no simplesmente saber sobre o tempo, pois que a so duas

    coisas, o tempo e o sujeito que sabe sobre o tempo.

    So duas coisas bastante distintas: experimentar o tempo na unidade e saber sobre o

    tempo que passa. Conhecer intelectualmente a impermanncia, mas no experiment-la,

    fruto de sofrimento.

    Para o budismo, o conhecimento intelectual sobre a impermanncia no nos livra de

    sofrer com a mesma, pois ainda estamos na dualidade de mundo, ou seja, aquela que separa o

    sujeito do tempo. O tempo ento, no campo fixado das aparncias, algo que vivemos e

    27

    No perodo em que o Budismo se organiza na ndia, Herclito de feso, na Grcia, no mesmo perodo,

    desenvolve o conceito de devir. No podemos entrar duas vezes no mesmo rio: suas guas no so nunca as mesmas e ns no somos nunca os mesmos. (CHAU, 2002).

    No vos deixeis enganar. Nossa vista curta, e onde pensamos haver estabilidade s existem devir e

    movimento. (HERCLITO apud SCHOPKE, 2004).

  • 34

    experimentamos na dualidade. sempre sujeito e objeto, eu e o tempo. A fixao nas formas.

    Nesse processo, os seres acabam por projetar estabilidade no que , por natureza, mutvel e as

    transformaes so vivenciadas como perdas. Esse o campo que o budismo chamou de

    Avydia, a Ignorncia Primordial. Esta insiste em acreditar que o poder do humano capaz de

    produzir alguma estabilidade na mutao. Uma forma apegada aos fenmenos, no seu carter

    aparente e que, assim, insiste em mant-los estveis.

    A questo de compreenso, de conhecimento, da limitao e do condicionamento na

    compreenso e experimentao plena do Real Absoluto que, para o budismo, a mesma coisa

    que Vazio ou Sunyata. E a compreenso e experimentao plena do Real, da impermanncia

    prpria do Real, exige uma coincidncia com o prprio Real, uma coexistncia radical, at

    onde dado experiment-la. E assim, tempo e sujeito sero um nico indivduo.

    A rigor, para o budismo, no existe perda, mas sim transformao. E no existe perda

    porque no existe nada de perene que pertena a algum, ou seja, com o constante devir, para

    o budismo, o que existe a pura mudana. Para o budismo, de certa forma, tudo nos pertence

    e ns pertencemos a tudo. A ideia de propriedade privada, exclusividade, s pode vigorar no

    mundo fixado nas aparncias. Vive-se projetando um futuro inexistente, pois que a vida

    sempre aqui e agora. Uma compreenso inadequada da mutao, da prpria morte, que

    acarreta uma experincia limitada da vida.

    Como no saber e no viver isso? O que est sendo afirmado pelo budismo que o

    humano sofre por conta de no conseguir desenvolver e, principalmente, experimentar uma

    compreenso precisa tanto da sua natureza como da natureza de todas as coisas que, em

    ltima instncia, a mesma.

    O budismo nos desafia ento a desenvolver outra perspectiva com relao

    vida/morte. Uma perspectiva que ultrapasse a viso dual de mundo e experimente, na sua

    essncia, a prpria mutao. E esse desafio est sustentado na ideia de que o de sofrimento

    produzido pelo olhar de mundo que busca estabilidade no da essncia do humano, mas sim

    dos condicionamentos que criam uma percepo limitada da realidade.

    Para controlar a angstia gerada pela impermanncia a mente constri e apega-se

    ideia de que alguma coisa do ser se mantm estvel, seja nessa vida ou em uma outra. O que

    segue sendo uma tentativa de preservao de um Eu, um sujeito transcendente. Para o

    budismo, o que existe o Vazio pleno e a mutao. Um nico sujeito, um nico ser.

    Embora o mundo se apresente como sendo sempre separado, nas suas relaes sujeito-

    objeto, na essncia, na perspectiva budista, tudo est em unidade. O mundo, para o budismo,

    se constitui essencialmente de fluxos que emanam do Vazio produtivo, criando agregados

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    provisrios, frutos da lentificao dos prprios fluxos, e constituem as formas sempre em

    mutao com o tempo.

    O remdio budista para o mal-entendido que acarreta sofrimento afirmar que a vida

    s existe aqui e agora, no h outra vida, outra dimenso, outro mundo. Para o budismo, no

    existe nem mesmo outro tempo, outro momento. Por isso, Buda se insurge contra essa iluso

    que fomenta a possibilidade de algum controle sobre o devir.

    2.2.2 Princpio da Insubstancialidade/Vazio

    O budismo apresenta a ideia de Vazio atrelada ao princpio da Insubstancialidade dos

    fenmenos e avana com a mesma concepo para discutir a insubstancialidade do Eu28

    :

    Tudo o que existe, seja no aspecto sensvel ou na pura intensidade, no se diferencia

    pela existncia de uma substncia prpria29

    , exclusiva, distinta e estvel. No existem

    substncias prprias para cada coisa, portanto, dentro dessa perspectiva, o Eu tambm

    compreendido como vazio de substncia prpria e diferenciada. Existe uma nica natureza

    essencial que o Vazio30

    , ou potncia produtiva, que produzir a pedra, a rvore e o homem.

    Uma nica natureza contm todas as naturezas; uma nica existncia inclui totalmente todas

    as existncias. (O Cntico do Satori Imediato, composto pelo Mestre Yoka Daishi 665-

    713).

    Os seres so expresses dessa nica fonte que acompanha os prprios seres. O que os

    diferencia so combinaes prprias de variados agregados provisrios, que se compem e se

    decompem, em constante movimento. O que produz singularidade nos seres a relao de

    movimento e repouso dos seus agregados e das combinaes sempre prprias, a cada

    28

    A forma vazio, vazio forma. Vazio no difere da forma, a forma no difere do vazio; o que vazio a

    forma. (CAPRA, 1983, p. 164).

    29 Salve o Iluminado, Aquele que tem a Perfeita Sabedoria! Quando o Venervel Buscador da Verdade que tem a

    viso livre de ideias preconcebidas praticava a Profunda Perfeio da Sabedoria, descobriu que todas as coisas

    existentes se compem de cinco agregados. E, alm disso, percebeu que esses cinco agregados so vazios de

    substncia prpria. Isso o livrou de todos