Coleo Estudos Alemes
Srie Estudos de Historiografia Alem
Lucien Febvre, Marc Bloch e as Cincias Histricas Alems (1928-1944)
Sabrina Magalhes Rocha
Lucien Febvre, Marc Bloch e as Cincias Histricas Alems
(1928-1944)
Sabina Magalhes Rocha
2012
Reitor | Joo Luiz Martins Reitor | Joo Luiz Martins Vice-Reitor | Antenor Rodrigues Barbosa Junior Vice-Reitor | Antenor Rodrigues Barbosa Junior
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Coordenador | Valdei Lopes de Arajo Coordenador | Valdei Lopes de Arajo Vice-Coordenadora | Cludia Maria das Graas Chaves Vice-Coordenadora | Cludia Maria das Graas Chaves Editor geral | Fbio Duarte Joly Editor geral | Fbio Duarte Joly Ncleo Editorial | Estudos Alemes Ncleo Editorial | Estudos Alemes Editor | Srgio Ricardo da Mata Editor | Srgio Ricardo da Mata CONSELHO EDITORIAL CONSELHO EDITORIAL Arthur Assis Arthur Assis Fbio Duarte Joly Fbio Duarte Joly Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Luiz Estevam de Oliveira Fernandes
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Coleo Estudos Alemes
A proposta de uma coleo devotada aos "Estudos alemes" tem por objetivo
principal incentivar a ampliao e o aprofundamento do dilogo cientfico entre as
comunidades historiogrficas brasileira e alem, movimento este que tem recrudescido
nos ltimos anos, depois de um longo perodo de afastamento mtuo.
A centralidade de que passaram a gozar autores como Reinhart Koselleck e Jrn
Rsen no debate terico promovido por historiadores brasileiros mostra o interesse
crescente pelo pensamento histrico alemo um campo at poucos anos atrs
dominado seja pelos filsofos, seja por autores de orientao marxista , ao mesmo tempo
em que a vinda de historiadores e tericos da histria alemes ao Brasil se intensifica e
revela uma abertura efetiva para o dilogo com nossa prpria tradio de pensamento
histrico, tanto a clssica, das dcadas de 1930-1940, quanto a mais recente.
Nos ltimos anos, o Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal de Ouro
Preto tem se destacado como um dos mais importantes centros brasileiros de divulgao
e estudo sistemtico da tradio terico-historiogrfica alem. A criao deste Ncleo
Editorial , por assim dizer, a conseqncia natural deste processo.
Os editores.
Sumrio
INTRODUO ........................................................................................................................9
CONSTRUINDO O OBJETO: TEORIA, METODOLOGIA E LITERATURA SOBRE
LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH.................................................................................18
VIVER E ESCREVER A ALEMANHA: A PRESENA GERMNICA NAS
TRAJETRIAS DE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH ............................................45
A CONVIVNCIA COM AS CINCIAS HISTRICAS ALEMS ...............................71
A HISTORIOGRAFIA ALEM NA CRTICA DE LUCIEN FEBVRE E MARC
BLOCH .................................................................................................................................101
CONCLUSO ......................................................................................................................147
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...............................................................................153
Introduo
Lucien Paul Victor Febvre (1878-1956) e Marc Leopold Benjamin Bloch (1886-1944)
so reconhecidos como dois dos mais importantes historiadores da historiografia francesa
e tambm da historiografia do sculo XX. Esses autores produziram no campo da histria
moderna e da histria medieval, respectivamente, escrevendo obras que ainda se
constituem em referncias importantes para as duas disciplinas. Febvre autor de obras
que encontraram e ainda encontram ampla repercusso na historiografia brasileira, como
a recm-lanada O problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais1. As
obras de Bloch, por sua vez, no gozam de menor prestgio. No Brasil, Bloch mais
amplamente conhecido por trs de suas obras: Os reis taumaturgos, A Sociedade Feudal e
A Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador2.
Esses historiadores, por outro lado, so referenciados nas discusses
historiogrficas contemporneas, particularmente no campo da histria da historiografia,
por sua vinculao Escola dos Annales. Ao longo de todo o sculo XX, tanto na
historiografia brasileira quanto na historiografia francesa e, de maneira geral, na
historiografia internacional, Lucien Febvre e Marc Bloch so apresentados como os pais do
movimento dos Annales. Com a fundao, em 1929, da revista Annales dHistoire
conomique et Sociale, esses historiadores teriam inaugurado uma nova forma de se
produzir conhecimento histrico. A iniciativa da revista Annales representaria um marco,
uma mudana de paradigma no interior da disciplina histrica; a implementao de uma
escola fundada no estudo da histria social e econmica, em contraposio histria
tradicional que estabeleceria suas bases na histria poltica3.
1 Cf. FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais. So Paulo: Cia das Letras, 2009. 2 Cf. BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edies 70; So Paulo: Martins Fontes, 1982; BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o carter sobrenatural do poder rgio - Frana e Inglaterra. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador. Edio anotada por tienne Bloch. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001a. 3 A anlise detalhada da literatura que estudou Marc Bloch e Lucien Febvre nesta perspectiva realizada na seo A historiografia sobre Lucien Febvre e Marc Bloch.
9
Nesta dissertao, Marc Bloch e Lucien Febvre sero estudados a partir da histria
da historiografia. No entanto, no sero tratados em nenhuma das duas perspectivas
acima mencionadas: no analisaremos minuciosamente suas obras, tampouco
buscaremos demonstrar ou contestar as revolues que eles teriam promovido no
campo do conhecimento histrico. O objeto de investigao construdo aqui compreende
as relaes de Febvre e Bloch com as cincias histricas alems, entre os anos de 1928 e
1944. Mais especificamente, deseja-se responder a duas questes: 1) como foi a
convivncia de Marc Bloch e Lucien Febvre com as cincias histricas alems? 2) qual a
avaliao, a crtica desses historiadores franceses a respeito da historiografia alem?
Essa primeira questo se desdobra em pelo menos trs direes, indispensveis
para sua elucidao. Trata-se de identificar com que intelectuais germnicos Bloch e
Febvre mantiveram contato, analisar as formas pelas quais esse contato se efetivou, assim
como os fatores que interferiram nessa relao. A segunda questo, a investigao da
crtica, tambm composta por perguntas mais especficas, que envolvem, entre outras:
identificao dos eruditos alemes avaliados por Bloch e Febvre; busca do contexto de
insero terico-metodolgico desses eruditos, de sua relevncia na academia alem;
anlise da relao entre a historiografia alem criticada e as pesquisas individuais dos
historiadores franceses.
A metodologia empregada para responder a essa problematizao, para alcanar
esses objetivos, agrega, ento, procedimentos de identificao e anlise. A pesquisa se
desenvolve pela aplicao destes procedimentos a dois grupos principais de fontes:
resenhas e correspondncias. A eles se associam ensaios, artigos e livros. Estudamos as
resenhas de obras de origem germnica publicadas por Marc Bloch e Lucien Febvre entre
1928 e 1944 em dois peridicos franceses, Annales dHistoire conomique et Sociale e
Revue Historique4. O segundo grupo de fontes, por sua vez, composto pelas 530 cartas
trocadas pelos dois autores entre 1928 e 1943, organizadas e publicadas pelo historiador
suo Bertrand Mller.
4 Agradeo ao Prof. Dr. Renato Pinto Venncio, de quem fui aluna no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto, pela indicao de inserir as resenhas em meu corpo documental. Sua orientao apontou para o que hoje representa o conjunto de fontes mais significativo deste trabalho, sem o qual ele certamente no teria tomado a forma atual.
10
A ideia de explorar a relao de Marc Bloch e Lucien Febvre com as cincias
histricas alems nesse momento, entre 1928 e 1944, deve-se ao menos a trs fatores.
Primeiramente, gostaramos de estud-los em seu perodo de maturidade intelectual, j
como pesquisadores e professores universitrios estabelecidos. Por outro lado, j que
nossa anlise trata de dois personagens, era importante avali-los conjuntamente. Nesse
sentido, justifica-se a interrupo da anlise em 1944, ano do falecimento de Marc Bloch.
H ainda, nessa definio de 1944 como ltimo ano de nossa anlise , outra razo. Alm
de no contarmos mais com as contribuies de Bloch, aps esse perodo observa-se um
rearranjo das relaes que conformam esse contexto. Para ficarmos em poucos exemplos,
a revista Annales, uma de nossas fontes principais, passa por profundas transformaes,
com a presena mais efetiva de novos personagens, entre eles Fernand Braudel. Assiste-se
ainda a uma nova postura tanto da revista quanto de Lucien Febvre na academia francesa,
com sua transferncia para a VI Seo da cole Pratique des Hautes tudes. De tal forma,
que a continuidade da avaliao dessa questo, aps 1944, demandaria esforos de
anlise que no conseguiramos alcanar no espao desta dissertao, tampouco no
tempo disponvel para sua realizao.
Por fim, essa periodizao adequada s nossas possibilidades documentais. No
caso das resenhas, utilizamos apenas uma anterior a 1928, publicada por Marc Bloch em
1918 na Revue Historique. Todas as demais, importantes para esse trabalho, foram
publicadas entre 1928 e 1944. Quanto s cartas, elas compreendem os anos de 1928 e
1943, coincidindo, no fortuitamente, com o momento de fundao da revista Annales5. A
mesma referncia temporal se manifesta nas trs obras historiogrficas que utilizamos.
Martin Luter: un destin e Le Rhin: problme dhistoire et dconomie, de Lucien Febvre, so
publicaes de 1928 e 1931/1935, respectivamente. J o texto de Bloch, Ltrange dfaite,
teve sua primeira publicao em 1946, mas seus manuscritos so de 1940.
importante que faamos tambm alguns esclarecimentos sobre a utilizao,
nesse estudo, do termo cincias histricas alems e no apenas historiografia alem.
Assim como a periodizao, essa uma questo que parte de nosso acervo documental.
Desde as primeiras anlises, tanto das cartas quanto das resenhas, ficou claro que Lucien
5 A explicao do contedo e da sistemtica das resenhas realizada na seo O papel da crtica bibliogrfica, enquanto as correspondncias so contempladas na seo A histria da historiografia como campo de investigao.
11
Febvre e Marc Bloch dialogaram com autores germnicos de outras disciplinas alm da
histria, tais como a sociologia, a geografia e a economia poltica. As referncias aos
autores destas disciplinas no so menos significativas nem numrica nem
qualitativamente em relao histria. A nosso ver, seria, ento, uma excessiva reduo
do campo sua limitao apenas queles autores definidos como historiadores stricto
sensu.
Ainda assim, poder-se-ia considerar um exagero a congregao de intelectuais to
distintos, como Werner Sombart, Max Weber, Georg von Below e Friedrich Meinecke sob a
rubrica cincias histricas. Nossa persistncia nessa designao, contudo, deve-se ao
fato de ela encontrar fundamentao em pelo menos dois aspectos. O primeiro deriva da
apreenso que Febvre e Bloch fazem desses autores e de suas obras. Ainda que no
estivessem lendo autores que se reconheciam como historiadores, a discusso que Bloch e
Febvre estabelecem com seus textos passa sempre pela perspectiva da histria. Ou seja,
em sua compreenso, esses autores circulavam por uma sociologia histrica, por uma
geografia histrica ou por uma economia histrica.
Essa classificao, que alm de exagerada poderia parecer arbitrria, na medida em
que associa disciplinas dessemelhantes em nico conjunto, ganha sustentao na
argumentao de Heinrich Rickert. Rickert, terico neokantiano do comeo do sculo XX,
referindo-se s cincias de sua poca, afirma que a cincia histrica parte de um
conjunto de disciplinas que ele designa cincias culturais, Kulturwissenschaften. Essas
cincias culturais, em seu entendimento, tambm podem ser designadas cincias
histricas. Trata-se de disciplinas que se diferenciam das cincias naturais pela busca de
particularidades, de historicidade, e no de leis ou generalizaes. Assim, tais disciplinas,
sejam estudando as relaes do homem com o tempo, com o espao, ou dos homens
entre si, comportam um sentido de conjunto6.
Explicitados, ento, o objeto desta pesquisa, sua problematizao, seus mtodos e
sua rea de insero, parece-nos relevante discutir, ainda que rapidamente, sua
justificao, ou seja, a relevncia de sua realizao. Para responder a essa questo optamos
por percorrer o prprio caminho de nossa pesquisa, desde o interesse pelo tema at sua
6 MATA, Srgio. Heinrich Rickert e a fundamentao (axio)lgica do conhecimento histrico. Varia Histria, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 347-367, 2006; RICKERT, Heinrich. Les quatres modes de luniversel dans lhistoire. Revue de Synthse Hitorique, Paris, t. II, n. 5, p. 121-140, 1901.
12
construo como um problema que pudesse ser tratado no campo da cincia histrica. A
explanao dos motivos pelos quais nos debruamos sobre esse objeto, ao que nos
parece, contempla o porqu de realiz-la.
Nossa aproximao dos estudos sobre Lucien Febvre e Marc Bloch teve como
ponto de partida o desejo de compreender uma situao que diagnosticvamos no
campo da histria da historiografia brasileira. Tratava-se de buscar entender as causas para
a pequena relevncia, para o quase silncio da historiografia brasileira sobre a
historiografia alem. Comparativamente influncia de outras comunidades
historiogrficas, como a francesa e a americana, por exemplo, sua presena no parecia ter
tido, ao longo do sculo XX, a mesma significao. Trata-se de uma presena incompatvel
com o prprio lugar da cincia histrica alem, com sua importncia para o
desenvolvimento da disciplina, no apenas no sculo XIX, mas tambm no sculo XX7.
A hiptese que levantvamos, e que pretendamos investigar, associava-se ao
domnio da historiografia francesa. Ao ocupar largo espao na historiografia brasileira,
especialmente a partir da segunda metade do sculo XX, a histria produzida na Frana,
sobretudo a historiografia dos Annales, em alguma medida bloquearia o contato com as
obras e autores germnicos. Em nossa primeira incurso, tal questo se colocava quase
automaticamente, nos seguintes termos: os Annales se definiam como uma nova histria,
em oposio ao tradicionalismo historiogrfico, cujas bases estavam na Alemanha, logo,
7 A reduzida presena da historiografia alem na historiografia brasileira do sc. XX pode ser bem ilustrada com o caso de Leopold von Ranke, o mais conhecido historiador alemo do sc. XIX. Apesar dos autores brasileiros fazerem referncias a Ranke, essas no se mostravam ancoradas em efetivo estudo de suas obras. No h, no Brasil, nenhuma traduo completa delas, somente uma publicao de fragmentos e ensaios organizados por Srgio Buarque de Holanda em 1979. A esse pequeno nmero de tradues soma-se a inexistncia de monografias sobre Ranke realizadas nos centros de ps-graduao em histria, como se verifica no portal de teses e dissertaes da Capes. At onde pudemos verificar, publicaram-se pouqussimos estudos especficos sobre a obra de Ranke: uma introduo de Srgio Buarque de Holanda ao referido livro e um ensaio de Arno Wehling na Revista de Histria, ambos na dcada de 1970. (Cf. HOLANDA, Srgio Buarque (org.). Ranke. So Paulo: tica, 1979; WEHLING, Arno. Em torno de Ranke: a questo da objetividade histrica. Revista de Histria, Rio de Janeiro, v. XLVI, n. 93, p. 177-200, 1973). importante registrarmos, contudo, que esse cenrio vem se modificando a partir dos anos 2000, com a dedicao especfica de alguns pesquisadores historiografia alem. No caso de Ranke, ressaltamos duas iniciativas, um artigo de Pedro Caldas e a recente traduo comentada de Srgio da Mata, publicada em obra que rene tradues de outros importantes historiadores do sc. XIX. (Cf. CALDAS, Pedro. O Esprito dos papis mortos: Um pequeno estudo sobre o problema da verdade histrica em Leopold von Ranke. Boletim Emblemas, Catalo, v. 1, p. 23-38, 2007; MATA, Srgio da. Leopold von Ranke (1795-1886). In: MARTINS, Estevo de Rezende (Org.) A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX. So Paulo: Contexto, 2010, p. 187-201.)
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promoveriam, onde exercessem domnio, um afastamento em relao historiografia
alem.
O estudo das fontes, tanto bibliogrficas quanto documentais, todavia, mostrou-
nos as dificuldades em torno desse projeto inicial. Desde as primeiras leituras mais
sistematizadas, vislumbramos um universo de questes a ser explorado nas relaes entre
historiografia francesa e historiografia alem. Entre as duas comunidades revelaram-se
nveis de complexidade tais, que no poderiam ser resolvidos no plano da mera oposio
paradigmtica. A proposta de explicar o bloqueio de uma historiografia a partir do
domnio de outra incorreria, assim, no risco do simplismo. Ameaava-se propor, ou
reafirmar, uma histria, para usarmos expresso corrente, construda a partir de um voo
sobre as copas das rvores, sem analis-las por terra.
O olhar mais atento, tanto para a historiografia francesa quanto para a
historiografia alem, indicou-nos a inviabilidade de trat-las, naquele momento, como
dois blocos opostos. Tal questo no poderia ser feita sem que se investigasse o
posicionamento de seus autores, o relacionamento entre eles, seus dilogos, suas crticas,
suas influncias. O contato com a literatura mostrou-nos tambm que os estudos sobre
essas questes estavam ainda por se fazer. Encontramos muitos textos, sobretudo em
lngua portuguesa, que tratavam, de forma genrica, da questo, e que, em muitos casos,
simplesmente reafirmavam interpretaes cannicas sobre os Annales, como os textos de
Jacques Le Goff, escritos na dcada de 19708.
As relaes entre historiografia francesa e historiografia alem, em grande medida,
foram compreendidas a partir da identificao da primeira com a Escola dos Annales, e
da segunda com o historicismo. Nesse sentido, foram interpretadas sob o signo de
oposies: histria nova versus histria tradicional; histria socioeconmica versus histria
poltica. Essa oposio, em alguns estudos, apareceu coroada, de um lado, com o nome de
Leopold von Ranke, representante do tradicionalismo da historiografia alem, de outro,
com os nomes de Bloch e Febvre, representantes da renovao da historiografia francesa.
Tratando da mitologizao construda em torno de Ranke, Srgio da Mata expressa bem o
tratamento dado pela historiografia a essa questo:
8 Cf. LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005.
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No outro o caso da assim chamada historiografia positivista do sculo XIX.
Um mito to mais resistente na medida em que se baseia numa caracterizao
heterclita, e cujo sentido ltimo o de construir o avesso de outro mito e,
assim, legitim-lo: o da revoluo dos Annales. Positivista seria aquela
historiografia empiricista, centrada apenas no mbito do poltico e do Estado
nacional, no uso de documentos oficiais, cultora dos grandes homens,
inteiramente alheia reflexo terica e s ideias. Quando se atribui ao famoso
manual de Langlois e Seignobos a condio de summa desta historiografia
positivista, o alvo bem claro. So aqueles a quem Febvre chamou os
derrotados de 1870. Ou seja, o grupo da Revue Historique, e, por extenso, a
historiografia acadmica alem, historicista, que lhe servira de modelo9.
justamente essa associao de Febvre e Bloch revoluo historiogrfica,
oposio Alemanha, que nos motivou a investigar essa relao a partir deles. A
construo desse objeto , assim, uma tentativa de contribuir para o campo da histria da
historiografia sobre Lucien Febvre e Marc Bloch, para alm da designao primeira
gerao dos Annales. Ao mesmo tempo, trazer novos temas ao campo que se preocupa
em analisar as relaes entre a historiografia francesa e a historiografia alem a partir de
seus atores/autores. Trata-se de uma tentativa de contribuir para que o conhecimento
dessa temtica, particularmente na historiografia brasileira, v um pouco alm do
difundido comentrio de Bloch em sua Apologia da Histria sobre a clebre frase de
Ranke:
A frmula do velho Ranke clebre: o historiador prope apenas descrever as
coisas tais como aconteceram, wie es eigentlich gewesen. Herdoto o dissera
antes dele, ta eonta legein, contar o que foi. O cientista, em outros termos,
convidado a se ofuscar diante dos fatos. Como muitas mximas, esta talvez deva
sua fortuna apenas sua ambiguidade. Podemos ler a, modestamente, um
conselho de probidade: este era, no se pode duvidar, o sentido de Ranke. Mas
9 MATA, Srgio da. Leopold von Ranke (1795-1886). In: MARTINS, Estevo de Rezende (Org.) A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX. So Paulo: Contexto, 2010, p. 188.
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tambm um conselho de passividade. De modo que eis, colocados de chofre,
dois problemas: o da imparcialidade histrica; o da histria como tentativa de
reproduo ou como tentativa de anlise10.
De forma a avaliar a convivncia e a crtica de Bloch e Febvre em relao s cincias
histricas alems, nos termos definidos acima, esta dissertao est estruturada em quatro
captulos. O primeiro, intitulado Construindo o objeto: teoria, metodologia e literatura
sobre Lucien Febvre e Marc Bloch, reflete sobre o referencial terico para a pesquisa em
histria da historiografia e para esta pesquisa em particular. Apresenta-se tambm, na
segunda seo deste captulo, uma reviso analtica da literatura sobre Marc Bloch e
Lucien Febvre no campo da histria da historiografia. Constri-se com essa reviso um
quadro, que a partir de obras-chave busca representar a diversidade dessa literatura.
O segundo captulo, Viver e escrever a Alemanha: a presena germnica nas
trajetrias de Lucien Febvre e Marc Bloch, explora uma das bases tericas de sustentao
desse trabalho: a tese de que na relao de Febvre e Bloch com as cincias histricas
alems interferem questes externas ao contexto puramente historiogrfico. Aqui
apresentamos as relaes desses historiadores com o pas vizinho, a partir uma
abordagem focada na dimenso cultural. Nesse sentido, discutimos a tradio de
aproximaes e distanciamentos entre as duas naes, sob o signo de uma guerra de
culturas. Tambm buscamos explorar como a Alemanha entrecruza as trajetrias de
Febvre e Bloch, tanto como cidados franceses quanto como historiadores. Esse captulo
encerra-se com uma seo dedicada a construir a imagem de Febvre e Bloch sobre a nao
germnica a partir de trs obras: Martin Luther: un destin; Le Rhin: problme dhistoire et
dconomie e Ltrange dfaite.
A convivncia com as cincias histricas alems , por sua vez, o foco do terceiro
captulo. Trata das diversas formas pelas quais Marc Bloch e Lucien Febvre estabeleceram
contato com a Alemanha, tal como ele se efetivou por meio de determinados parceiros
intelectuais. Nesse captulo tambm se procura demonstrar como, alm de fazer
mediaes, esses parceiros (que apresentamos nas categorias de mestres, como Henri
10 BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador. Edio anotada por tienne Bloch. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001a, p. 125.
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Berr e Henri Pirenne, e personagens do crculo annaliste, como Maurice Baumont e
Maurice Halbwachs) exerceram influncia nas leituras de Febvre e Bloch. Busca-se explorar
ainda uma importante faceta desse polimorfismo de contatos, a convivncia direta de
Febvre e Bloch com intelectuais germnicos, os quais tambm so analisados em duas
categorias: de um lado os alemes que colaboraram na Annales, e de outro, o crculo
austraco, formado por Alfons Dopsch, Lucie Varga e Franz Borkenau.
O quarto e ltimo captulo analisa o papel da crtica histrica para esses dois
historiadores e o largo espao nela ocupado pelas cincias histricas alems. Investiga-se
sua dinmica de construo por meio das resenhas, o meio privilegiado para a produo e
veiculao dessa crtica, e as caractersticas gerais das obras/autores germnicos avaliados.
A ltima parte desse captulo, por sua vez, apresenta umas das questes mais importantes
para este trabalho, as avaliaes que Marc Bloch e Lucien Febvre construram sobre alguns
dos mais importantes eruditos alemes: os estudiosos do capitalismo Werner Sombart e
Max Weber, os medievalistas Georg von Below e Ernst Kantorowicz, e os terico-crticos
Karl Lamprecht e Friedrich Meinecke.
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CONSTRUINDO O OBJETO:
TEORIA, METODOLOGIA E LITERATURA SOBRE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH
O desejo de analisar as relaes existentes entre Marc Bloch, Lucien Febvre e a
historiografia alem, desde o primeiro momento, colocou-nos a questo de que recursos
terico-metodolgicos seriam utilizados para a investigao. Nesse sentido, foi necessrio
delimitar o campo de observao desse objeto, definir os limites, apontar as ferramentas a
ser empregadas, mobilizar o conjunto de outros estudos com os quais dialogaramos.
com esse propsito que oferecemos aqui, antes de adentrar propriamente nosso objeto
de investigao, uma discusso sobre o referencial terico-metodolgico que norteia seu
estudo. Com o mesmo intuito, apresentamos tambm o estado da arte da investigao
desse objeto no campo da histria da historiografia.
A HISTRIA DA HISTORIOGRAFIA COMO CAMPO DE INVESTIGAO
Em um estudo que possui a histria da historiografia como rea de insero e
busca nela suas referncias indispensvel partir da anlise desse campo, especialmente
de seus pressupostos tericos e metodolgicos. O terico alemo Jrn Rsen, em trilogia
intitulada Teoria da Histria, props-se a discutir perspectivas de interpretao, mtodos,
formas de representao, interesses e funes do conhecimento histrico. Segundo
Rsen, essas categorias compem a matriz disciplinar da cincia histrica, viabilizam a
anlise de processos cognitivos que se pretendem cientficos. Essa formulao nos oferece
um caminho de reflexo interessante. Podemos partir de questes tais como: quais seriam
as perspectivas de interpretao, as teorias e as categorias utilizadas pela histria da
historiografia? Que mtodos ela utiliza para proceder sua investigao? Quais seriam suas
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formas de representao? E ainda, quais os interesses e funes desse campo de
conhecimento?1
importante deixar claro nosso entendimento da histria da historiografia como
um campo de pesquisa no interior dessa grande rea denominada conhecimento
histrico2. Nesse sentido, o mesmo estatuto que atribumos historiografia de maneira
geral conferimos histria da historiografia em particular. Para utilizar uma construo de
Rsen, compreende-se a historiografia, e logo a histria da historiografia, como um
processo cognitivo histrico que se pretende cientfico. No se trata de colocar em
discusso a cientificidade ou no da histria, mesmo porque em Rsen a discusso no
toma tal caminho, mas de definir a historiografia como produo rigorosa de
conhecimento. Em Cambios de experincia y cambios de mtodo: un apunte histrico-
antropolgico, Koselleck tambm oferece elementos que auxiliam na composio desse
entendimento. Koselleck enfatiza a ideia de que a historiografia dependente de
experincias, mas tambm de mtodos, de caminhos mnimos de investigao, pois ela
est alm da mera notcia3.
Em recente publicao intitulada Para uma nova histria da historiografia, o
historiador alemo Horst Walter Blanke prope uma tipologizao para esse campo de
conhecimento. Blanke mostra que desde seu incio, no perodo do Iluminismo, at os dias
contemporneos, essa disciplina se desenvolveu com a manifestao de caractersticas
comuns entre as obras a ela pertencentes. Em outros termos, vislumbram-se regularidades
ou similitudes entre obras de histria da historiografia ao longo desses dois sculos que
permitiriam sua organizao em grupos. Nesse sentido, o autor prope uma tipologizao
a partir das obras alems, mas que nos parece aplicvel tambm a outros contextos.
Evidentemente no se prope a construo de um retrato fidedigno; a elaborao
dos tipos uma abstrao, uma ferramenta terica que, se por um lado, pode esconder
singularidades, por outro, viabiliza uma compreenso da disciplina em quadros, em uma
1 RSEN, Jrn. A constituio narrativa do sentido histrico. In: Idem. Razo histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: Ed. UNB, 2001, p. 161-165; RSEN, Jrn. Histria viva: teoria da histria III: formas e funes do conhecimento histrico. Braslia: Ed. UNB, 2007. 2 ARAJO, Valdei Lopes de. Sobre o lugar da histria da historiografia como disciplina autnoma. Lcus: revista de histria, Juiz de Fora, v. 12, n.1, p. 41-78, 2006. 3 KOSELLECK, Reinhart. Cambios de experincia y cambios de mtodo: un apunte histrico-antropolgico. In: Idem. Los estratos del tiempo. Barcelona: Paids, 2001, p. 47-49.
19
perspectiva macro. Para a organizao desses tipos, Blanke parece levar em considerao
especialmente o objeto de investigao e a perspectiva terico-metodolgica que norteia
a pesquisa. Assim, constri dez tipos de histria da historiografia: histria dos
historiadores, histria das obras, balano geral, histria da disciplina, histria dos mtodos,
histria das ideias histricas, histria dos problemas, histria das funes do pensamento
histrico, histria social dos historiadores e histria da historiografia teoricamente
orientada4.
A compreenso dessa disciplina a partir de tipologias tambm o instrumento
utilizado pelo historiador e editor da revista italiana Storiografia, Massimo Mastrogregori.
Em Historiografia e tradio das lembranas, Mastrogregori constri uma tipologizao a
partir dos mtodos empregados no estudo da histria da historiografia. A partir do sculo
XIX, a disciplina ter-se-ia desenvolvido com a utilizao de seis mtodos de investigao,
que podem ser apresentados em ordem cronolgica. O primeiro seria bibliogrfico,
erudito, enciclopdico; o segundo filosfico, pragmtico, pedaggico; o terceiro cientfico.
A eles sucederiam um quarto retrico e literrio; um quinto sociolgico e prosopogrfico e
por fim um sexto sinttico e descritivo5.
A partir dessas duas construes tipolgicas podemos apontar possveis respostas
para as questes elaboradas a partir das categorias definidas por Rsen. Como qualquer
outro campo do conhecimento histrico, pode-se identificar na histria da historiografia
uma ntima relao com a experincia, na medida em que trata das mais diversas formas
de se escrever histria. Ao mesmo tempo, ela no se configura como um relato
desprendido de categorizao ou de mtodos. Como se pde ver, eles so mltiplos,
podem se sobrepor e gerar dificuldades de identificao, o que no se confunde com sua
ausncia. Resta ainda colocar disciplina a pergunta sobre seu interesse e sua funo. Em
outros termos, ela pode ser percebida como necessidade, como fruto de alguma carncia
de orientao da vida prtica? Ela teria alguma funo, ofereceria alguma orientao a
essa realidade?
4 BLANKE, Horst Walter. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.) A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 29-35. 5 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (org.). A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 66-67.
20
Blanke e Mastrogregori tambm oferecem respostas a essas questes. Para Blanke,
a histria da historiografia contempla trs funes: afirmativa, crtica e exemplar. A
primeira afirmaria a ideologia oficial, a funo negativa, ao contrrio, faria a crtica dos
modelos tradicionais, enquanto a exemplar ofereceria material ilustrativo para a reflexo
terica6. Mastrogregori, por sua vez, sustenta que desde seu nascimento a disciplina no
tem tido outra funo que no ser um espelho da histria-cincia, falar para uma
corporao de especialistas. O historiador italiano caminha no sentido de alargar essa
funo, propondo uma aproximao entre a histria da historiografia e a tradio das
lembranas7. H, portanto, nessas duas interpretaes, o entendimento de que a histria
da historiografia parte de questes colocadas pela realidade e oferece respostas a ela. O
ponto central que a realidade, a vida prtica aqui o prprio conhecimento histrico.
A apresentao dessa discusso tem o objetivo de colocar em debate os aspectos
tericos e metodolgicos da pesquisa em histria da historiografia. Trata-se de uma
discusso rpida, que no coloca todos os pontos do problema, mas que nos parece
cumprir bem o papel de organizar a reflexo. Ela utilizada aqui como uma chave para
tratarmos da definio de um referencial terico e de procedimentos metodolgicos para
nossa pesquisa.
Na medida em que se estrutura a partir da relao de dois historiadores franceses,
Lucien Febvre e Marc Bloch, com a historiografia alem, esse trabalho pode ser localizado
em uma problemtica mais ampla, qual seja, a relao das diferentes historiografias
nacionais entre si. Partindo da tipologia estabelecida por Horst Walter Blanke, poderamos
dizer que se trata de uma histria da historiografia do tipo histria dos problemas, que
[...] trata das diferentes reas temticas: a histria das subdisciplinas da histria,
a histria da relao entre as disciplinas [...], o estudo da recepo de eventos
histricos individuais [...] e, finalmente, a relao das diferentes historiografias
6 BLANKE, Horst Walter. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.) A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 29-35. 7 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (org.). A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 66-68.
21
nacionais entre si (por exemplo, a imagem da Frana na historiografia alem e a
imagem da Alemanha na historiografia francesa)8.
Tambm podemos tentar traar os limites dessa investigao partindo da
categorizao de Mastrogregori. O historiador italiano afirma que seu ltimo tipo, o
mtodo sinttico-descritivo,
[...] consiste no fato de contar a histria da historiografia sem um projeto
metodolgico rgido e em aplicar a uma revista de histria, aos congressos ou
ento vida de um historiador o mesmo mtodo que aplicaramos a no
importa que outra atividade cultural ou cientfica9.
A definio de Mastrogregori para esse tipo especialmente interessante por
compor um mtodo marcado pela falta de um projeto metodolgico rgido. No se trata
da ausncia de mtodo, mas da ausncia de metodologia prvia problematizao do
objeto. Partindo desse argumento, podemos entender que esse tipo de histria da
historiografia demanda a construo dos seus referenciais. Trata-se de um tipo em que o
objeto no traz consigo uma metodologia definida, ao contrrio, ela deve ser estruturada
a partir das perguntas que o pesquisador coloca ao objeto.
Esse certamente o nosso caso. Cada questo que lhe colocada demanda uma
direo de investigao distinta; logo, requer uma metodologia prpria. Procurvamos,
inicialmente, desenvolver a pesquisa nos apoiando em duas referncias tericas
preestabelecidas. A primeira a noo de regimes de historicidade, estabelecida por
Franois Hartog. A partir dessa categoria, poderamos pensar a relao dos fundadores da
Annales com a historiografia alem dos sculos XIX e XX por meio de aproximaes, tendo
em vista que ambas estariam sob o regime moderno de historicidade. Essa interpretao
ajudaria a matizar as referncias que enfatizam as grandes rupturas entre essas matrizes e
tendem a produzir uma mitologizao revolucionria. Contudo, ela se restringe ao campo
8 BLANKE, Horst Walter. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.) A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 31. 9 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (org.). A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 67.
22
terico-conceitual, no permitindo, portanto, tratar de todas as nuances envolvidas na
relao de Bloch e Febvre com a produo intelectual alem.
Ensaiamos tambm articular um segundo referencial em torno da noo de
paradigmas, mediado pelas contribuies de Thomas Kuhn, Jrn Rsen e Reinhart
Koselleck10. Essa perspectiva permitiria observar uma relao que se d pela oposio de
dois paradigmas, um historicista e outro anti-historicista. Sua contribuio estaria
especialmente na possibilidade de visualizar a constituio, o desenvolvimento, a
substituio e a sucesso de modelos, de escolas, analisando tanto suas motivaes
derivadas de um corpus terico-conceitual quanto suas motivaes encerradas na prxis,
abrangendo as dimenses poltica, cognitiva e esttica.
Essa ltima, especialmente por oferecer um espectro de anlise mais preciso, seria
uma categoria mais adequada em relao categoria de regimes de historicidade.
Contudo, ela tambm nos apresentou alguns problemas. Podemos citar dois mais centrais:
no temos ainda nesses anos iniciais da escola dos Annales a presena de um paradigma
definido e, por outro lado, no nos parece ser possvel alocar toda a multiplicidade e
complexidade da historiografia alem em um nico paradigma. Portanto, para o conjunto
da anlise, no nos parece haver outro caminho que no o da construo de uma
metodologia prpria ao tratamento desse objeto, e derivada das perguntas que
pretendemos investigar.
O caminho dessa pesquisa busca atingir dois objetivos: explorar a convivncia, o
contato de Lucien Febvre e Marc Bloch com as cincias histricas alems e investigar a
crtica, o julgamento desses historiadores a respeito das cincias histricas alems. A
estruturao da problematizao agrega, ento, duas direes metodolgicas:
identificao e anlise. Pretendemos demonstrar quem so os autores alemes com os
quais Bloch e Febvre se relacionaram, como funcionou essa relao, ou seja, por que vias
ela se estabeleceu, que fatores nela atuaram e qual o julgamento de Bloch e Febvre sobre
a cincia histrica alem.
10 KOSELLECK, Reinhart. Cambios de experincia y cambios de mtodo: un apunte histrico-antropolgico. In: Idem. Los estratos del tiempo. Barcelona: Paids, 2001; KHN, Thomas. As estruturas das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2005; RSEN, Jrn. A constituio narrativa do sentido histrico. In: Idem. Razo histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: Ed. UNB, 2001.
23
importante esclarecer que a estruturao dessa direo de investigao s
adquire sentido se temos como pressuposto que na relao de Lucien Febvre e Marc Bloch
com a cincia histrica alem agem questes externas esfera estritamente terico-
conceitual, a uma lgica de interpretao internalista dos textos. Dentre muitas das
possveis atuaes, que podero ser observadas ao longo do texto, podem-se citar
tradies culturais, conjunturas polticas e acadmico-cientficas, relacionamentos
interpessoais e convivncias intelectuais11.
A partir da prerrogativa lanada por Mastrogregori, de que a histria da
historiografia no marcada por mtodos exclusivos, parece-nos ser possvel aproxim-la
de outros campos, no muito bem definidos, mas que podem ser referenciados como
histria intelectual, histria social do conhecimento ou mesmo histria da cultura.
Esforamo-nos por construir essa ponte porque, para a maior parte dos estudos recentes
desenvolvidos nesses campos, o reconhecimento de que as ideias no so desenraizadas
funciona como premissa.
No estamos fazendo coro j desgastada polmica da determinao social ou
econmica das ideias. Trata-se aqui de uma concepo de histria ou sociologia do
conhecimento presente, por exemplo, nos trabalhos de Wolf Lepenies, Fritz Ringer e Pierre
Bourdieu12. Entendimento presente tambm nas pesquisas de Peter Schttler, Lutz
Raphael e Bertrand Mller, que investigam a temtica em questo neste trabalho13. O que
nos parece premente para esses autores, e que pretendemos resgatar para esta pesquisa,
o fato de o mundo dos intelectuais no se esgotar em conceitos e teorias, mas ser, por
11 BURGUIRE, Andr. Histoire dune histoire: la naissance des Annales. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999; ESPAGNE, Michel; WENER, Michel. La construction dune rfrance culturelle allemande en France: gense et histoire (1750-1914). Annales: economies, socits, civilisations. Paris, 42 anne, n. 4, p. 969-992, 1987; SCHTTLER, Peter. Dsapprendre de lAllemagne: les Annales et lhistoire allemande pendant lentre-deux-guerres. In: CLARK, Stuart (Ed.). The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999. 12 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Les dition de Minuit, 1984; LEPENIES, Wolf. As trs culturas. So Paulo: Edusp, 1996; LEPENIES, Wolf. French-German culture wars. In: Idem. The seduction of culture in Germany history. New Jersey: Princeton, 2006; RINGER, Fritz. O declnio dos mandarins alemes: a comunidade acadmica alem, 1890-1933. So Paulo: Edusp, 2000. 13 MLLER, Bertrand. Lucien Febvre, lecteur et critique. Paris: Albin Michel, 2003c; RAPHAEL, Lutz. Von der wissenschaftilchen Innovation zur kulturellen Hegemonie? Die Geschichte der Nouvelle Histoire im Spiegel neuerer Gesamtdarstellunge. Francia, Paris, v. 16, n. 3, p. 120-127, 1989; SCHTTLER, Peter. Dsapprendre de lAllemagne: les Annales et lhistoire allemande pendant lentre-deux-guerres. In: CLARK, Stuart (Ed.). The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999.
24
outro lado, marcado por muitos fatores, como: jogos de poder, lutas de classificao, lutas
acadmicas, polmicas pblicas, dimenses da vida pessoal.
Tambm no se pode desconsiderar que esses fatores tidos como contextuais
possam ser criaes de outros textos, ou mesmo um conjunto de textos, como
demonstram os estudos de Reinhart Koselleck14. Nesse sentido, a explorao contextual,
que aparecer tanto na anlise das macrorrelaes franco-germnicas, com foco na
cultura, quanto na investigao das trajetrias de vida de Lucien Febvre e Marc Bloch e de
suas vinculaes a crculos intelectuais, processar-se- a partir de um conjunto de textos.
Busca-se, ento, afastamento de uma anlise que reduz o contexto aos eventos
sociopolticos, sem vinculao expressa com a realidade observada, que funcionem
apenas como pano de fundo, como cenrio, e se limitem a dizer se determinados autores
so ou no fruto de seu tempo.
Por outro lado, no nos parece suficiente saber que h contextos que condicionam
para tenses ou aproximaes nas relaes franco-germnicas no perodo
contemporneo a Lucien Febvre e Marc Bloch. importante que saibamos o
posicionamento desses autores/atores frente a eles, importante resgatar sua condio
de agentes. No se pode analis-los simplesmente como indivduos que apenas repetem
um quadro de orientaes. Nesse sentido, imprescindvel a anlise, a interpretao de
seus prprios textos. Buscaremos aqui, ento, seguir um raciocnio terico-metodolgico
que comporta uma ordem, em alguma medida, circular, no qual: o quadro de orientaes,
o contexto, informa a leitura de Marc Bloch e Lucien Febvre, que, por sua vez, elaboram
uma posio prpria, distinta, que, medida em que ganhar a esfera pblica, modificar o
quadro anterior.
Para essa leitura, trabalhamos principalmente com dois grupos de fontes,
correspondncias e resenhas, s quais se associam ensaios, artigos e livros historiogrficos.
A escolha das correspondncias trocadas entre Marc Bloch e Lucien Febvre e, sobretudo,
das resenhas de obras alems escritas por eles, responde a nosso anseio de enfatizar a
avaliao que tais historiadores franceses fizeram dessa produo. Trata-se, portanto, de
uma proposta que no se confunde com a busca de influncias tericas germnicas sobre
14 KOSELLECK, Reinhart. Histria dos conceitos e histria social. In: Idem. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006.
25
a historiografia desses autores. Um estudo que tivesse tal objetivo, certamente seria mais
bem conduzido, por exemplo, por um mtodo hermenutico ou mesmo de estudo de
suas notas de rodap.
A escolha dessas fontes tambm responde a nosso outro objetivo: o de demonstrar
com que intelectuais germnicos Febvre e Bloch mantiveram contato e as formas pelas
quais esse contato se efetivou. Nesse caso, as resenhas exercem funo subsidiria em
relao s correspondncias. Enquanto as resenhas so, por excelncia, instrumento para
apreenso da crtica, as cartas auxiliam na composio das relaes interpessoais, das
ligaes, tanto com intelectuais de origem germnica, quanto com intelectuais franceses
que, em alguma medida, as influenciavam.
Construir uma investigao a partir de resenhas e cartas implica congregar duas
categorias de documentos cujos impactos em seus contextos de produo foram
distintos. Enquanto as resenhas tm carter pblico, as cartas circulam na esfera privada.
Esse privatismo poderia conduzir o pesquisador crena de estar diante das reais
intenes, das verdadeiras interpretaes daqueles que as escrevem, alm de ceder
espao excessiva afeio. importante, portanto, que elas sejam tratadas com o mesmo
distanciamento, ou ao menos sua tentativa, que se impe a qualquer documento
histrico. Cristophe Prochasson, em artigo sobre o uso dos arquivos privados e a
renovao das prticas historiogrficas, chama ateno para a necessidade do tratamento
da correspondncia como fonte histrica. Em seus termos:
Romper a inevitvel relao afetiva que se estabelece entre o historiador e seu
material epistolar (do qual brotam muito mais emoes e comparaes consigo
prprio do que das sries estatsticas ou dos documentos administrativos) passa
pela objetivao desse material, pela sua construo como fonte15.
Tratando especificamente das cartas de Lucien Febvre e Marc Bloch, podemos
afirmar que apesar de seu vasto nmero 530 cartas localizadas e publicadas e do
perodo de troca relativamente longo, de 1928 a 1943, elas apresentam muitas
15 PROCHASSON, Cristophe. Ateno: verdade ! Arquivos privados e renovao das prticas historiogrficas. Estudos histricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 105-119, 1998, p. 105.
26
regularidades. A principal motivao para a escrita das cartas a edio da revista
Annales. Essas cartas compem uma crnica pela qual se pode acompanhar a produo
de quase todos os nmeros da revista. Os principais temas versam sobre a seleo e
reviso dos textos que seriam publicados, a busca de colaboradores, os conflitos com o
editor e a distribuio da revista. A esses temas centrais associam-se outros, como as
candidaturas para professor de ambos os autores ao Collge de France, breves relatos
sobre o clima e a sade dos familiares, alm se informaes sobre viagens realizadas.
Nessas cartas, so raras as discusses sobre temticas que envolvem a esfera
pblica, tais como cultura, economia ou poltica. Os poucos momentos dedicados esfera
poltica concentram-se quase exclusivamente no decorrer da Segunda Guerra. A mesma
raridade verificada em relao s questes mais propriamente terico-metodolgicas do
conhecimento histrico. Bloch e Febvre no fizeram desta vasta correspondncia um lcus
para a discusso sobre teoria da histria, tampouco para a anlise crtico-reflexiva de
autores e obras. Essa discusso no ocorreu sistematicamente nem mesmo nos momentos
em que os correspondentes residiram em cidades distintas, o que, em princpio, poderia
ter motivado a transferncia para o terreno das cartas de discusses que porventura
acontecessem nas ocasies de contato direto.
A referncia distncia entre Bloch e Febvre remete-nos a outra questo central: a
temporalidade das correspondncias. Observa-se que a maior concentrao de cartas se
deu entre os anos de 1933 e 1935, quando Febvre residia em Paris e Bloch em Estrasburgo,
o que coincide com o momento de grande fertilidade na revista Annales dHistoire
conomique et Sociale. As trocas nos anos anteriores so mais ocasionais, concentrando-
se especialmente em frias e recessos acadmicos, ocasies em que a necessidade de
edio da revista e a distncia fsica colocavam a redao das cartas como um imperativo.
Finalmente, h significativa reduo das correspondncias a partir de 1937, uma reduo
motivada pela mudana de Marc Bloch para Paris e pelo contexto de guerra, que imps
dificuldades ao envio e, ao mesmo tempo, foi responsvel pelo arrefecimento das
publicaes da revista16.
16 BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. Tome I. Nassaince des Annales. 1928-1933. dition tablie et present par Bertrand Mller. Hardcover: Fayard, 1994; BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. Tome II. De Strasbourg a Paris. 1934-1937. dition tablie et present par Bertrand Mller. Hardcover: Fayard, 2003a; BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. Tome III. Les Annales en crisis. 1938-1943. dition
27
Essa estrutura das correspondncias , de certa forma, refratria empatia acrtica.
Apesar disso, buscamos realizar seu tratamento como fonte histrica definindo as
questes e/ou temas sobre os quais depositaramos maior ateno. Entre esses temas
destacamos a citao de autores germnicos, referncias expressas Alemanha, tanto na
esfera poltica quanto cultural, e referncias a autores que se colocavam como mediadores
entre o crculo dos Annales e os acadmicos alemes.
A HISTORIOGRAFIA SOBRE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH
A construo de um levantamento analtico da literatura dedicada ao estudo dos
historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre um importante passo para o desenvolvimento
desta pesquisa, mas certamente no tarefa fcil. Esses autores, apesar de produzirem
seus trabalhos no incio do sculo XX, j figuram entre os clssicos da historiografia
moderna. E como todo clssico, so muito estudados. De tal forma que qualquer
levantamento, por mais completo que se proponha a ser, no conseguir englobar toda a
produo acadmica a respeito. fundamental, portanto, construir um levantamento
focado, centrado em uma temtica especfica. Tendo em vista que o campo de trabalho no
qual se insere esta pesquisa a histria da historiografia, buscaremos resgatar as obras
que estudam os historiadores franceses nessa perspectiva. Interessa-nos retratar os
trabalhos que tm esses autores como o prprio objeto, procurando compreender
questes como mtodos, teorias, relaes sociais, relaes institucionais e relevncia do
conjunto da obra.
Nosso objetivo o de que essa reviso seja mais que mera citao de obras e
descrio de seus contedos. Deseja-se analis-las, organiz-las e avali-las criticamente.
Propomos assim uma anlise a partir da composio de um quadro demonstrativo que,
por meio de uma pequena mostra de obras-chave, represente a diversidade da
bibliografia. O principal critrio de seleo das obras que compem esse painel analtico
sua relevncia, sua centralidade no debate acadmico. A esse critrio associam-se outros,
como a possibilidade de efetivo estudo dos textos, influenciada pela disponibilidade de
tablie et present par Bertrand Mller. Hardcover: Fayard, 2003b.
28
acesso fsico e lingustico. Esse quadro ser apresentado em trs subitens, em trs blocos
que renem as obras a partir de nossa avaliao. O primeiro bloco se organiza pelo ttulo
Febvre, Bloch e a Escola dos Annales, o segundo compe Revises da historiografia sobre
os Annales e o ltimo intitula-se Novos quadros da pesquisa sobre Bloch e Febvre.
Febvre, Bloch e a Escola dos Annales
Um volume significativo de obras historiogrficas sobre Lucien Febvre e Marc Bloch
investiga-os a partir de sua relao com a Escola dos Annales. Nessas obras, Febvre e
Bloch so apresentados como pais fundadores de um novo paradigma historiogrfico,
como promotores de uma revoluo no interior da historiografia moderna. Nesse sentido,
o foco o novo programa intelectual, o paradigma dos Annales, e no os autores em si.
A histria nova, organizado pelos historiadores franceses Jacques Le Goff, Jacques
Revel e Roger Chartier, um dos primeiros e mais importantes trabalhos que compem
esse painel17. Essa obra rene uma srie de textos publicados em 1978 e produzidos por
importantes nomes da Escola dos Annales, como Michel Vovelle, Andr Burguire e
Philippe Aris. Os textos se dedicam a refletir sobre temas que, de alguma maneira,
envolviam a discusso sobre os Annales na dcada de 1970, tais como longa durao,
estruturas, mentalidades e imaginrio. Trata-se de uma obra organizada com o objetivo de
produzir algo como o estado da arte dessa escola, e que, em grande medida, consolidou
a vinculao do termo histria nova com Escola dos Annales. do prprio Jacques Le
Goff um dos textos mais relevantes da obra, e que nos interessa particularmente aqui.
Com o mesmo ttulo da coletnea, o primeiro captulo de A histria nova prope
um balano da historiografia que o autor chama de histria nova. Le Goff inicia o texto
definindo sua compreenso de histria nova pela associao com a ideia de histria total.
Assim, Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel seriam seus grandes mestres. O
argumento do autor o de que o projeto de histria total se delinearia j em Marc Bloch e
Lucien Febvre, com o lanamento da Annales dHistoire conomique et Sociale. Le Goff
busca em um discurso de Febvre dos anos 1950 e na amplitude do termo social,
17 CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005.
29
presente no ttulo da revista, a justificativa para essa designao18. Para esse autor, Febvre
e Bloch possuam como projeto construir uma nova histria de mbito internacional,
projeto que, se no foi pleno, teria alcanado dimenses ocidentais19. O que se afirma,
portanto, que a histria nova foi forjada pelo grupo de intelectuais organizados em
torno da revista20.
Caracterizando esse grupo como promotor do esprito da histria nova contra a
histria tradicional, e vislumbrando Febvre e Bloch como seus mestres, construiu-se uma
imagem revolucionria para ambos. Entre 1924 e 1939 Bloch e Febvre teriam travado um
combate contra a histria poltica, narrativa, dos acontecimentos. Para Le Goff, esses
historiadores eram movidos pelo desejo de afirmao de duas direes inovadoras para o
conhecimento histrico: a histria econmica e a histria social. Ainda que reconhea
como fontes inspiradoras da Annales a Revue Historique, a Revue de Synthse, dirigida
pelo belga Henri Berr, e a Vierteljahrschrift fr Sozial-und Wirtschaftsgeschichte Revista
Quadrimestral de Histria Econmica e Social , Le Goff reivindica para o trabalho de Bloch
e Febvre uma originalidade sem precedentes21.
Esse mesmo esforo de apresentao de Marc Bloch e Lucien Febvre como
revolucionrios intelectuais, arquitetos de uma nova forma de se produzir conhecimento
histrico, pode ser encontrado na obra de Peter Burke, A Escola dos Annales (1929-1989): a
revoluo francesa da historiografia, de 199022. Nesse texto, o historiador ingls pretende
fazer uma reconstruo da histria dos Annales, oferecendo, em poucas pginas,
condies para a compreenso do movimento como um todo. Burke diverge da
argumentao de Le Goff ao afirmar que um novo estilo de histria j se gestava a partir
de trabalhos isolados; na Alemanha com Gustav Schmoller e Karl Lamprecht, na Frana
com Henri Se, Henri Hauser e Paul Mantoux. No entanto, como j sugere o ttulo da obra,
para Burke, os Annales no tm precursores como um grupo, como um movimento com
18 LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 34-35. 19 LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 45. 20 Idem, ibidem, p. 74. 21 Idem, ibidem, p. 38-40. 22 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia. So Paulo: UNESP, 1997.
30
novas propostas para a historiografia. Os anos em que Bloch e Febvre estiveram na direo
da Annales dHistoire conomique et Sociale so descritos nos seguintes termos:
Esse movimento pode ser dividido em trs fases. Em sua primeira fase, de 1929 a
1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma
guerra de guerrilhas contra a histria tradicional, a histria poltica e a histria
dos eventos23.
Peter Burke argumenta que a revista Annales foi planejada, desde seu incio, para
ser mais que uma revista histrica comum. Ela pretendia exercer liderana intelectual nos
campos da histria social e econmica, sendo porta-voz da nova abordagem histrica
interdisciplinar24. Assim como Le Goff25, Burke parte do relato de Lucien Febvre para
afirmar que os Annales comearam como uma revista de seita hertica, que pouco a
pouco se converteu no centro de uma escola histrica. As transferncias de Bloch e Febvre
de Estrasburgo para Paris, nos anos 1930, representariam sinais evidentes do sucesso do
movimento dos Annales26.
Entre esses textos que enfatizam a revoluo intelectual produzida por Bloch e
Febvre, parece-nos estar, tambm, o estudo produzido por Jacques Revel. Em 1979, Revel
publicou na Annales: conomies, Socits, Civilisations artigo intitulado Histoire et
sciences sociales: les paradigmes des Annales que, apesar de contemporneo ao artigo
de Le Goff, traz quanto a ele diferenas importantes27. Jacques Revel se props a discutir
um ponto polmico que tambm circundava o grupo dos Annales na dcada de 1970: a
unidade desse movimento intelectual28. Seu argumento que os Annales reclamam para
23 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia. So Paulo: UNESP, 1997. 24 Idem, ibidem, p. 33. 25 LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005. 26 BURKE, Peter. Op. Cit., p. 38-43. 27 REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979. 28 Essa discusso sobre a unidade, ou no, do movimento dos Annales em torno de um paradigma, proposta por Jacques Revel, encontra-se tambm em Stoianovich. Cf. STOIANOVICH, Troian. French Historical method: the Annales paradigm. Ithaca: Cornnel University Press, 1976.
31
si uma identidade coletiva, reivindicam uma preservao da origem que parece esconder
verdadeiros desacordos.
No que se refere abordagem dos primeiros anos dos Annales, e particularmente
de Lucien Febvre e Marc Bloch, Revel segue na direo apontada pelos autores referidos
ao afirmar que a origem dos Annales est na ruptura fundacional de 1929, cuja matriz
terica seria a obra do socilogo Franois Simiand, Mtodo histrico e cincia social
(1903). Contudo, Revel distancia-se, por exemplo, de Le Goff, ao admitir que a
generalizao positivista e historicizante, proposta por Simiand e repetida
sistematicamente para falar de uma suposta histria tradicional, uma incorreo29.
Esse autor segue tambm a direo que Peter Burke tomar mais tarde,
reconhecendo que a tentativa de organizar a produo historiogrfica em torno das
cincias sociais no era original, e j estava presente na Revue de Synthse com Henri Berr.
No entanto, Revel tambm se distancia de Burke na justificativa do sucesso dos Annales.
Burke refere-se aos primeiros anos da revista como uma guerra de guerrilhas, que s
alcanar o establishment historiogrfico aps a Segunda Guerra30. Jacques Revel, por
outro lado, sustenta que a legitimidade acadmica faltara Revue de Synthse, que
estivera s margens das instituies universitrias, mas no Annales31. Enfatiza ainda que
seus fundadores no eram marginais, mas historiadores reconhecidos, que se
beneficiaram tambm do apadrinhamento prestigioso de Henri Pirenne32.
Para nossos interesses, um dos aspectos mais substantivos desse texto a
afirmao de que ainda no havia se produzido uma efetiva histria do movimento.
Segundo Revel, a maior parte dos estudos consagrados aos Annales parte dos discursos
29 REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979, p. 1360-1363. 30 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia. So Paulo: Unesp, 1997, p. 11-15. 31 REVEL, Jacques.Op. Cit, p.1360-1376. 32 Faz-se necessria uma observao. Em 1977, como comunicao para um encontro do Fernand Braudel Center, nos Estados Unidos, Jacques Revel produziu um texto com a mesma estrutura do texto publicado na revista Annales em 1979, o qual utilizamos aqui. Entre os dois textos h pouqussimas diferenas, no entanto, uma se revela mais substantiva. Enquanto no artigo de 1979 Revel enftico ao apresentar Febvre e Bloch como historiadores reconhecidos e no como marginais, no texto de 1977 admite exatamente o contrrio, nos seguintes termos: small marginal group of professors of the University of Strasbourg, who at the end of the 1920s, took up arms against the citadel of the university. [pequeno e marginal grupo de professores da Universidade de Estrasburgo, que ao fim da dcada de 1920, pegou em armas contra a cidadela da universidade. (Traduo da autora)]. Cf. REVEL, Jacques. The Annales: Continuities and Discontinuities. Review, New York, v. 1, n. 3-4, p. 9-18, 1978, p. 10.
32
que os membros produziram sobre si mesmos, compondo assim estudos ideolgicos e
abstratos33. Esse rtulo nos parece definir bem o texto de Jacques Le Goff, e mesmo a obra
de Peter Burke, escrita mais de uma dcada depois. Especialmente no que se refere aos
primeiros anos da Annales dHistoire conomique et Sociale, um dos recursos mais
utilizados como fonte so os comentrios de Lucien Febvre sobre a revista, retirados de
discursos e conferncias. Revel admite ser seu prprio ensaio constitudo apenas por
hipteses gerais, que no so fruto de pesquisa histrica, e segue seu diagnstico
apontando que,
[...] nous ignorons presque tout de la sociologie du mouvement, de la
composition des reseaux successif et sediments qui ont t, un moment ou
un outre, en tout ou en partie associs aux Annales [...] Cette recherche nest pas
faite34.
O diagnstico de Jacques Revel sobre os estudos dedicados aos Annales
semelhante ao de seu colega Andr Burguire. Burguire, em texto tambm publicado na
revista Annales, em 1979, afirmava que a escrita dos Annales adquirira um carisma
surpreendente, transformara-se em tradio. Esse carisma motivou o aprisionamento das
anlises a vulgatas, sem o devido tratamento como objeto de pesquisa histrica35. Nesse
sentido, novamente afirma-se a necessidade de investigao desse movimento
historiogrfico, e o prprio Burguire se prope a inici-la, resgatando alguns aspectos da
paisagem intelectual do nascimento dos Annales.
Burguire inicia suas referncias a Marc Bloch e Lucien Febvre procurando afastar a
ideia de que fossem autores marginais, excludos do establishment historiogrfico e
universitrio. Distanciando-se das anlises de Jacques Le Goff e Peter Burke e
aproximando-se de Jacques Revel, Burguire sustenta que Bloch e Febvre eram
33 REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979, p. 1361. 34 [] ns ignoramos quase que totalmente a sociologia do movimento, a composio de redes sucessivas e sedimentadas que foram, em um momento ou outro, total ou parcialmente associadas aos Annales[...] Essa pesquisa ainda no foi feita. (Traduo da autora). REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979, p. 1361-1362. 35 BURGUIRE, Andr. Histoire dune histoire: la naissance des Annales. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999, p. 40.
33
herdeiros de posies importantes, eram historiadores includos. O reconhecimento de
ambos poderia ser visualizado no fato de publicarem em revistas importantes e
lecionarem na Universidade de Estrasburgo, no momento a segunda mais importante
instituio universitria da Frana, tanto numrica quanto simbolicamente36. Burguire
insiste que a marginalidade em torno dos fundadores da Annales seria mais ttica que real.
Argumenta-se que Febvre e Bloch buscaram meios extrauniversitrios no por estarem
margem da estrutura acadmica, mas por visualizarem nesses meios um lcus privilegiado
para interpelar a comunidade de historiadores, para criticar suas certezas.
Ao que nos parece, h maior distncia entre o texto de Burguire e os demais
trabalhos referenciados. Esse autor afirma a presena de um projeto de hegemonia
acadmica nos anseios de Febvre e Bloch. Associado a isso, defende que no se tinha um
grupo formado por orientaes comuns, reunido em torno de proposies. Tratava-se,
antes, de um grupo que definiu as diretrizes que recusava, particularmente a histria
poltica, mas que no traou com a mesma nfase propostas, parmetros terico-
conceituais e metodolgicos. Febvre e Bloch teriam feito referncias ao esprito dos
Annales, mas no exposto sua linha doutrinal. Nesse raciocnio justifica-se, por exemplo,
a importncia da seo de resenhas para a revista Annales, assim como o tom de polmica
nelas empregado37.
As apresentaes dos textos de Revel e Burguire como ltimas referncias do
primeiro bloco so propositais38. Apesar de serem artigos do final da dcada de 1970,
montados na mesma estrutura dos demais textos, eles apontam para aspectos relevantes,
que nos encaminham para a organizao de um segundo bloco. Revel e Burguire j
retratavam a necessidade de produzir estudos propriamente histricos sobre os Annales,
que se baseassem em pesquisa, levantamento de dados e reflexo crtica. De tal maneira
que seus trabalhos podem ser pensados na transio dessas duas categorias, pois criticam
36 BURGUIRE, Andr. Histoire dune histoire: la naissance des Annales. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999, p. 42-43. 37 Idem, ibidem, p. 49. 38 Para outros trabalhos relevantes que estudam Marc Bloch e Lucien Febvre com perspectivas semelhantes s apresentadas nesse primeiro conjunto, cf. MANN, H. D. L. Febvre, la pense vivante dun historien. Paris: Armand Colin, 1971; MASSICOTE, G. Lhistoire problme: la mthode de L. Febvre. Quebec/Paris, Edisem/Maloine, 1981; REIS, Jos Carlos. Nouvelle Histoire e tempo histrico: a contribuio de Febvre, Bloch e Braudel. So Paulo: tica, 1996; REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales: a inovao em histria. So Paulo: Paz e Terra, 2000.
34
o cenrio historiogrfico em torno dos Annales e reconhecem a necessidade de um novo
campo de investigao, mas ao mesmo tempo no assumem essa tarefa, limitando-se, nos
prprios termos de Revel, a expor hipteses gerais.
Revises da historiografia sobre os Annales Especialmente a partir da dcada de 1980 assiste-se ao desenvolvimento de
trabalhos que exploram os pontos sinalizados por Jacques Revel e Andr Burguire. Nesse
sentido, buscamos reunir nesse segundo grupo obras que se aproximam por promoverem
uma reviso da produo historiogrfica sobre os Annales. Agrupamos sob esse ttulo
sobretudo as obras que se fundamentam em trabalhos de investigao especficos, que se
propem a historicizar os Annales. Tendo alguns temas comuns, em maior ou menor grau,
eles discutem as mudanas promovidas pelo grupo, colocam em questo a fundao de
um novo paradigma, questionam sua unidade e relativizam o entendimento dos primeiros
anos da revista como conformadores de uma escola historiogrfica.
Um dos primeiros trabalhos a reivindicar para si a proposta ensaiada por Jacques
Revel e Andr Burguire A histria em migalhas: dos Annales nova histria, do francs
Franois Dosse. Publicao de 1987, essa obra tem como tema central a busca de
respostas para o questionamento sobre ser ou no a nova histria herdeira do
movimento dos Annales. Busca-se, nos termos do autor, produzir a historicizao do
paradigma dos Annales, retraar sua histria em seu aspecto estratgico. A argumentao
de A histria em migalhas de que os Annales seriam uma escola marcada pelo
ecumenismo epistemolgico e por uma estratgia de alianas, conjuno que garantiria
seu sucesso. Os historiadores ligados revista Annales nunca possuram, explcita ou
implicitamente, um eixo terico claro. Sua metodologia seria a aglutinao de
procedimentos e linguagens das cincias sociais vizinhas. O sucesso do grupo, nos termos
do prprio Dosse, revelar-se-ia na posio hegemnica que conquistara na produo
histrica francesa, ocupando desde os laboratrios de pesquisa at os circuitos de
distribuio de obras39.
39 DOSSE, Franois. Parte I: Clio revisitada. In: Idem. A histria em migalhas dos Annales a Nouvelle Histoire. So Paulo: Edusc, 2003, p. 19-26.
35
Tratando do tempo de Marc Bloch e Lucien Febvre, que nos interessa mais
particularmente, Dosse caracteriza-o como um momento de deslocamento do campo
poltico para o econmico. Febvre e Bloch fariam parte de um grupo que fundamentava
sua existncia na rejeio da histria poltica. Outro ponto explorado nessa obra a
originalidade dos esforos de Bloch e Febvre. Para Dosse, com esses historiadores
elaborou-se um novo discurso para a histria, fundado na histria-problema e na
insistncia da relao presente-passado como um instrumento heurstico. No entanto, no
se poderia derivar desses aspectos um programa revolucionrio. H, portanto, um
questionamento do diagnstico de revoluo historiogrfica com os Annales. A
argumentao de Dosse recorre afirmao de Andr Burguire de que os Annales seriam
mais originais pelas formas de afirmao de seu programa que propriamente por seu
contedo.
A histria em migalhas uma obra importante no cenrio de questionamentos ao
paradigma dos Annales e de busca de sua historicizao. Trata-se de um trabalho que
investigou redes de relaes em torno dos autores, analisou relaes polticas e
acadmicas e buscou uma diversidade documental. Por outro lado, tambm marcado
por um tom provocador, que contribuiu para seu sucesso editorial e para a aglutinao de
uma srie de debates em seu entorno. Entre esses debates o mais reluzente talvez seja a
querela com Jacques Le Goff. Em seu prefcio para a reedio de A histria nova, em 1989,
Le Goff reagiu obra de Dosse, ainda que indiretamente, acusando-a de blasfemar contra
os Annales, de seu autor ser um dos orquestradores da crise da histria40. De fato, no se
pode negar que a obra de Dosse motiva polmicas e em certo sentido dificulta discusses
menos apaixonadas.
Nessa mesma linha de investigao esto os trabalhos de Lutz Raphael. Historiador
alemo que nas duas ltimas dcadas se dedicou investigao da histria da
historiografia dos Annales, Lutz Raphael construiu um artigo analisando o
reposicionamento da historiografia sobre os Annales. Intitulado Von der
wissenschaftilchen Innovation zur kulturellen Hegenonie? Die Geschichte der Nouvelle
40 LE GOFF, Jacques. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-7.
36
Histoire im Spiegel neuerer Gesamtdarstellunge41 (Da inovao cientfica hegemonia
cultural? A histria da Nouvelle histoire no espelho de novos estudos gerais)42, o artigo de
Raphael inicia-se com a afirmao de que apesar das iniciativas desenvolvidas a partir dos
anos 1980, a revista e a escola dos Annales no teriam sido ainda devidamente estudadas.
Esse trabalho de Raphael particularmente importante para nossa perspectiva porque nos
aponta outros trs nomes que contribuem para a reviso dessa historiografia. So eles,
Herv Couteau-Bgarie, Olivier Dumoulin e Pierre Bourdieu.
O trabalho de Couteau-Bgarie43 , nos termos de Raphael, prximo ao de Franois
Dosse. As obras desses dois autores seriam importantes, principalmente nas anlises sobre
Marc Bloch e Lucien Febvre, por questionarem as deficincias programticas do que se
convencionou designar como combates pela histria. Tanto a obra de Dosse quanto a de
Couteau-Bgarie, contudo, seriam ainda abstratas e arbitrrias, no fazendo efetiva anlise
dos contextos em que atuavam esses autores e de suas respectivas conexes.
A contribuio de Olivier Dumoulin para a historiografia dos Annales, por sua vez,
partiria de uma perspectiva distinta. O trabalho de Dumoulin44 no focado no grupo dos
Annales, e sim na gerao de historiadores franceses que viveu o perodo entreguerras.
Raphael aponta que a partir de um estudo prosopogrfico, de uma histria social e
quantitativa, Dumoulin promoveu uma remontagem do contexto da historiografia
francesa dos anos de 1930. Essa reconstruo, que inclua Marc Bloch e Lucien Febvre,
ajudaria a compreender o campo e as formas de atuao desses autores. O autor-chave
para o desenvolvimento das novas pesquisas sobre os Annales, na avaliao de Lutz
Raphael, seria Pierre Bourdieu. Bourdieu, com suas pesquisas sobre sociologia da
educao e da cultura e sobre a estrutura universitria na Frana, seria fundamental para a
compreenso do desenvolvimento da Escola dos Annales desde Marc Bloch e Lucien
Febre, mas principalmente a partir da dcada de 1950, momento em que se deu sua
institucionalizao na VI Seo da cole Pratique des Hautes tudes, em Paris.
41 RAPHAEL, Lutz. Von der wissenschaftilchen Innovation zur kulturellen Hegemonie? Die Geschichte der Nouvelle Histoire im Spiegel neuerer Gesamtdarstellunge. Francia, Paris, v. 16, n. 3, p.120-127, 1989. 42 Agradeo a gentil colaborao do meu orientador, Prof. Dr. Srgio Ricardo da Mata, que traduziu o texto original, viabilizando minha leitura. 43 Cf. COUTEAU-BGARIE, Herv. Le phnomene Nouvelle Histoire: stratgie et ideologie des nouveaux historiens. Paris: Economica, 1983. 44 Cf. DUMOULIN, Olivier. Profession historien: 1919-1939. Thse de 3e cycle. Paris, 1983.
37
importante esclarecer ainda que o prprio Lutz Raphael representa um dos mais
importantes nomes da renovao dessa historiografia. Die Erben von Bloch und Febvre.
Annales - Geschichtsschreibung und nouvelle histoire in Frankreich 1945-1980 (Os
herdeiros de Bloch e Febvre. A historiografia dos Annales e a nouvelle histoire na Frana
1945-1980) publicada em Stuttgart em 1994, fruto de sua tese de habilitao45. O
objetivo da obra era se afastar de uma histria hagiogrfica dos Annales, reconstituir em
sua complexidade o campo constitudo pelos historiadores franceses. Fundamentando-se
na anlise social do grupo e em sua produo intelectual, com marcada influncia das
teorias de Pierre Bourdieu, Raphael estuda os Annales no perodo ps-Segunda Guerra a
partir da produo cientfica dos autores, de correspondncias e outros materiais de
arquivo, tendo como mtodo a prosopografia. Nesse sentido, trata-se menos de uma
histria das ideias e mais de uma histria social de um campo cultural.
Com essa investigao, Raphael defende algumas teses que representam uma
ruptura, um distanciamento muito significativo dos demais trabalhos sobre os Annales
referenciados aqui. Uma das linhas mestras do estudo a demonstrao da
heterogeneidade e da ambiguidade do movimento dos Annales. Essa heterogeneidade se
revelaria, por exemplo, na unio de personagens com projetos intelectuais distantes um
do outro, como Fernand Braudel e Ernest Labrousse, ou mesmo Marc Bloch Lucien Febvre.
Para Raphael, o momento braudeliano representou uma tentativa de esvanecer essa
heterogeneidade, atravs da fabricao de um mito de origem que conferiria uma
coerncia no existente na realidade. Raphael relativiza essa prpria origem, a ideia dos
Annales como ruptura com as tradies historicistas, chegando a falar em um
historicismo no tempo das cincias sociais. Sua tese que se, por um lado, Bloch e
Febvre se declaram inovadores, por outro, eles se inscrevem muito fortemente nas
instituies e na tradio intelectual francesa. O ano de 1929 no poderia ser visto como
45 importante chamarmos ateno para a ausncia de tradues dessa obra de Lutz Raphael. Trata-se de uma publicao que no passou despercebida em solo francs, sendo registrada em resenhas que inclusive reconheceram os esforos da pesquisa. Essa ausncia muito significativa tendo em vista o interesse da academia francesa da segunda metade do sculo XX sobre a histria dos Annales, que na maioria dos casos sua prpria histria. Ao que nos parece, h aqui uma indicao de um cenrio ainda resistente a interpretaes crticas sobre os Annales, particularmente interpretaes vindas de acadmicos estrangeiros. Desta forma, nosso acesso a essa obra feito a partir de resenhas produzidas a seu respeito. A relevncia desse trabalho nos fez adotar esse procedimento, ainda que precrio. Buscando minimizar essa precariedade e evitando produzir uma leitura enviesada, exploramos mais de uma resenha e nos detivemos mais em seus aspectos descritivos e menos em seus aspectos qualitativos.
38
inaugurao de um paradigma histrico, ele representaria, mais modestamente, a
definio de uma prtica do mtier do historiador.
Essa obra trata ainda do processo de institucionalizao e legitimao dos Annales.
Raphael argumenta que a prpria interdisciplinaridade, uma das caractersticas mais
apontadas como marca dos Annales, no teria, na realidade, a mesma efetividade que
adquirira nos discursos. Os Annales representariam, assim, uma hegemonia institucional, e
no uma renovao intelectual. Mesmo porque no haveria ali um programa terico,
ferramentas tericas claras e definidas, mas uma bricolagem conceitual. O historiador
alemo sustenta que essa escola marcada por uma fragilidade terica, em grande parte
resultado da tendncia empiricista da histria-problema46.
Novos quadros da pesquisa sobre Bloch e Febvre
Delimitamos aqui um ltimo bloco, composto por trabalhos que nos ltimos anos
se dedicam mais diretamente ao estudo de Marc Bloch e Lucien Febvre. Este bloco pode
ser compreendido como uma ramificao do anterior, na medida em que os trabalhos so
marcados pelo mesmo desejo de historicizao, contribuem para o revisionismo da
historiografia sobre os Annales e, por vezes, so motivados pelo desejo de melhor
compreender essa escola francesa. No entanto, as obras que discutiremos formam
tambm um conjunto parte, pois seus objetos de pesquisa so construdos em torno dos
dois historiadores, e no da Escola dos Annales em si. Assim, interessam-se, por exemplo,
por conhecer aspectos de suas trajetrias de vida, suas relaes acadmicas, seu
posicionamento no meio historiogrfico francs e suas relaes com outros contextos
historiogrficos.
Nessa direo de reconhecer Marc Bloch e Lucien Febvre como objetos de pesquisa
histrica, tem-se um trabalho que no exatamente um estudo de histria da
historiografia. Em 1989 a historiadora norte-americana Carole Fink, que se dedica histria
46 KOTT, Sandrine. Raphael Lutz, Die Erben von Bloch und Febvre em "Annales" Geschichtsschreibung und "nouvelle histoire" in Frankreich 1945-1980. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 106, n. 1, p. 123-127, 1995; SOLCHANY, Jean. Raphael Lutz, Die Erben von Bloch und Febvre, em "Annales" Geschichtsschreibung und "nouvelle histoire" in Frankreich 1945-1980. Vingtime Sicle. Revue d'histoire, Paris, v. 51, n. 1, p. 177, 1996.
39
contempornea, publicou Marc Bloch uma vida na histria47. Trata-se de um trabalho
biogrfico, em que se busca recuperar a histria do historiador e do cidado francs Marc
Bloch. Essa a primeira biografia sobre Marc Bloch, cuja relevncia pode ser atribuda ao
texto fruto de significativo trabalho arquivstico48. Carole Fink explorou vasta
documentao at aquele momento no publicada e pouco trabalhada, oferecendo assim
novos caminhos de pesquisa.
Interessa-nos apreender o retrato que essa obra elabora de Marc Bloch como
historiador. Carole Fink compe anlises das principais obras de Bloch relacionando-as
com seu contexto de vida pessoal. A narrativa ressalta a importncia do relacionamento
com Lucien Febvre tanto para a vida acadmica quanto pessoal de Marc Bloch. Com esse
procedimento, so oferecidas informaes relevantes sobre o prprio Febvre, que
persistem pouco exploradas. O mais interessante parece-nos ser a investigao dos
estudos de formao, o resgate de algumas das leituras de Bloch, de suas relaes
acadmicas e institucionais e seus dilogos com outros autores. Nesse aspecto, contudo, o
texto nos deixa espera de maior profundidade. Carole Fink no realiza esse
procedimento de recomposio de um contexto fundamental para a compreenso do
Marc Bloch historiador.
Apesar de no ser seu objetivo central, Marc Bloch uma vida na histria parece-
nos trazer contribuies tambm para a histria da historiografia dos Annales. Ao analisar
o papel da Annales dHistoire conomique et Sociale na vida de Marc Bloch, a obra
investiga o contexto de fundao da revista, o papel de seus diretores, suas dimenses,
formataes e pretenses. E as concluses que emergem dessa investigao so, em
muitos aspectos, divergentes daquelas comumente apresentadas sobre os Annales. Fink
apresenta uma posio distinta, por exemplo, quanto ao projeto e aos objetivos da revista.
A revista representava, em considervel medida, uma estratgia conjunta,
dirigida no tanto para um objetivo de hegemonia ou de preeminncia, mas
para uma apresentao direta das credenciais profissionais de ambos [Febvre e
47 FINK, Carole. Marc Bloch. Uma vida na histria. Lisboa: Celta Editora, 1997. 48 A biografia de Carole Fink, originalmente publicada em ingls, tem tradues para o francs, o espanhol e o portugus. Para outro trabalho biogrfico de Bloch, mais recente, cf. DUMOULIN, Olivier. Marc Bloch. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 2000.
40
Bloch], que preparava o regresso de dois historiadores de talento ao local a que
aspiravam49.
H, como se pode ver, a refutao da ideia de fundao de um novo paradigma
historiogrfico, defendida, por exemplo, por Jacques Le Goff50, e tambm de um projeto
de hegemonia por parte de Bloch e Febvre com a inaugurao da revista, apresentada por
Andr Burguire51. Carole Fink argumenta que o projeto de fundao de uma nova revista
de histria estava mais associado aos projetos pessoais de seus diretores de se tornarem
docentes em Paris que a um desejo de revolucionar a escrita da histria. A bigrafa de
Bloch afirma ainda que as reivindicaes que colocam Bloch e Febvre como fundadores de
uma nova escola historiogrfica conformam uma anlise mitolgica do
empreendimento dos historiadores franceses em 1929.
Quando, no fim da dcada de 60 e nos anos 70, o sucessor dos Annales atingiu
projeo internacional, atribuiu-se um estatuto quase lendrio aos primeiros
dez anos da revista. As lutas e realizaes dos fundadores e tambm a reao
dos seus opositores foram geralmente exageradas pelos que apostavam em
apor