*Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Bacharel e
Licenciado em História pela mesma instituição. Mestrando em História Social. Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail:
Cotidiano e Lutas Sociais na Periferia de São Paulo: Sujeitos Históricos da Urbanização
de São Mateus (1950-1992)
ADRIANO JOSE DE SOUSA*
Pouco explorado em termos historiográficos, o tema das periferias de São Paulo
necessita de uma abordagem crítica sobre as memórias dos sujeitos históricos de sua
urbanização, obtidas na produção de fontes orais e em relatos jornalísticos de
periódicos locais que remetem a seu processo de formação e consolidação mais
acelerado, entre as décadas de 1950 e 1990. A pesquisa em questão aborda as
transformações da região de São Mateus, distrito periférico localizado na zona leste da
cidade, notório pelas lutas sociais por infraestrutura urbana e serviços públicos ao
longo deste período, com destaque especial para a atuação dos movimentos de saúde e
moradia entre os anos de 1970 e 1990.
Palavras-Chave: História de São Paulo, História Local, Periferias, São Mateus
São Mateus em Primeiro Lugar
O bairro Cidade de São Mateus, na zona leste, é sinônimo de lutas sociais na
história da capital. Enquanto o velho Brás, situado na mesma região da cidade
guarda a tradição de embates operários e do surgimento do sindicalismo brasileiro,
São Mateus, uma das regiões mais carentes do município, caracteriza-se pelo
combate em prol de moradia, emprego, defesa do meio ambiente, saúde, transporte
e alimentação com intensa organização e participação popular e das Comunidades
Eclesiais de Base da Igreja Católica. A contestação dos poderes instituídos marca a
evolução do bairro, que completará 49 anos em Setembro. (DIÁRIO POPULAR,
15.03.1997)
1
Ela envolve uma vasta região onde calcula-se que vivem de 300 mil a 400 mil
pessoas. Dez por cento de sua população compõe-se de favelados e é no campo da
saúde que se registram suas maiores carências. Estamos falando de São Matheus,
bairro da Zona Leste Paulista. (DIÁRIO POPULAR, 20.08.1985)
[...]O clima natural de qualquer favela
Rafael, Vera Cruz, Divinéia
São Mateus em primeiro lugar
...No tempo da "voz da colina"
Dona Severina já era de lá...
...Quando chegou "Mateo Bei"
A família "My Frey" foi recepcionar
...Tia Filó, Seo Jaul, Dona Fifa
Hoje tem tia Cida a nos abençoar
...São Mateus, meu reduto de bambas
Não deixe a chama do samba apagar
(QUINTETO EM BRANCO E PRETO, 2008)
As histórias dos bairros da cidade de São Paulo muitas vezes são contadas de forma
gloriosa em relatos quase míticos de suas “origens”, seja por memorialistas locais ou
pela imprensa em geral. Com a região de São Mateus não foi diferente. Jornais de
alcance local, da mídia de massas e, principalmente, os diários oficiais e textos
institucionais da prefeitura, tratam a história do bairro como fruto do heroísmo e
ousadia dos loteadores de terrenos da família italiana dos Bei, tida como “fundadora”
do bairro1, o que notamos também no trecho da canção do Quinteto Em Branco e
Preto, grupo de samba formado na região, que faz sua leitura particular das principais
narrativas históricas locais. Para além de questionarmos esse tipo de “epopeia” de
fundação - já que uma localidade não passa a existir simplesmente a partir de um
único ponto de povoamento ou origem - interessa-nos aqui, tratar de um outro aspecto
que aparece nessas fontes: a agência dos sujeitos históricos que participaram do
1 Exemplo disso é o texto “São Mateus Celebra Seu 57 Aniversário lembrando Suas Lutas” que
identifica o proprietário de terras Mateo Bei como fundador do bairro, ao lotear uma gleba comprada de
um antigo fazendeiro da região, Antônio de Siqueiros. (DIARIO OFICIAL DO MUNICÍPIO DE SÃO
PAULO, 29.09.2005)
2
esforço de urbanização da região.
A canção do Quinteto em Branco e Preto, ao mesmo tempo em que retrabalha as
histórias “oficiais” de fundação da região, aponta também para outras características
históricas do local, como as lutas sociais a partir da entidade A Voz da Colina, que
atuou de forma marcante na região ao longo dos anos de 1950 e 1960; as formas
precárias de moradia das favelas do São Rafael, Divinéia e Vera Cruz (embora
mostradas de forma romantizada) e o samba local que nasceu a partir dos quintais das
“tias” como Tia Cida, Tia Filó e Dona Fifa. O texto São Mateus Tem Tradição de
Luta, de 1997, apresenta uma suposta tradição de luta da sociedade organizada da
região que, além da reivindicação de serviços públicos para o bairro, chegou a lutar
por pautas mais amplas como o direito ao emprego e renda. A matéria vai além,
tratando de mais alguns aspectos da luta social no bairro desde a intensificação do seu
processo de urbanização a partir dos anos de 1950. Já São Matheus Guerreiro, de
1985, aponta duas das principais carências estruturais da região: as questões sanitária e
da saúde. Essas e outras fontes jornalísticas que narraram a história do bairro, indicam
não só a interação das estruturas de poder da cidade com esta localidade, como
também mostram as visões que indivíduos do bairro e de outras regiões tinham de São
Mateus.
Pequeno núcleo urbano na década de 1950, São Mateus corresponde hoje ao território
de uma prefeitura regional, abarcando três subdistritos: São Mateus, Parque São
Rafael e Iguatemi. É, também, celeiro de diversos coletivos de música e cultura como
o Berço do Samba, Rosas Periféricas (grupo de teatro), Perifacine (projeção de
filmes), Grupo Opni (coletivo de graffiti) e São Mateus em Movimento (espaço
cultural), amostra de sua diversificada vida social (FERREIRA & COSTA, 2015).
Recuando no tempo, defrontamo-nos com os movimentos populares de saúde, moradia
e do custo de vida nos anos 1970 e 1980 e com as mobilizações de associações locais
por asfaltamento, transporte e abertura de escolas nos anos de 1960 e 1950, rico
campo de estudo ainda não explorado pela historiografia.
3
Além de um recorte temporal das movimentações políticas de São Mateus, este texto2
trará alguns apontamentos sobre as memórias sociais da urbanização deste território, a
partir de testemunhos orais dos seus moradores e de relatos históricos presentes nos
periódicos jornalísticos locais e da imprensa de grande circulação3, ora produzidos
pelos próprios veículos ora explicitados nos depoimentos de moradores da região
presentes nas reportagens.
A História Oral como Método Principal
Este estudo baseia-se principalmente no confronto e problematização entre memórias
orais produzidas em entrevistas com o pesquisador e aquelas presentes em textos
jornalísticos, contextualizadas com documentação da administração pública e
bibliografia selecionada para o trabalho.
A história oral foi escolhida como eixo central desta pesquisa por ser apropriada ao
estudo das relações de vizinhança e comunidade, que estão fora do circuito dos
grandes temas nacionais e de arquivos com amplos acervos documentais.
Humanizando a história, ela amplifica a voz e os sentidos que os indivíduos dão às
suas histórias de vida e experiências sociais, sendo papel do historiador ser ouvido
atento às suas narrativas (PORTELLI, 2015: 31-32).
A memória oral de depoentes que vivenciaram as transformações de São Mateus entre
as décadas de 1950 e 1980 vem sendo obtida através de entrevistas com uma rede de
colaboradores formada principalmente a partir dos seguintes meios: referências das
fontes escritas e bibliográficas sobre a região; movimentos sociais como a Uneafro
Brasil e de contatos obtidos em equipamentos públicos culturais como o Instituto do
Samba de São Mateus. O roteiro de entrevistas conta com questões que abordam temas
como a formação da família, migrações, relações de vizinhança, visão dos moradores
2 Este artigo apresenta o desenvolvimento inicial da pesquisa de mestrado “Cotidiano e Lutas Sociais na
Periferia de São Paulo: Sujeitos Históricos da Urbanização de São Mateus (1950-1992)” em orientação
pela Profª Drª Antônia Terra de Calazans Fernandes na Universidade de São Paulo.
3 As fontes jornalísticas utilizadas neste texto foram obtidas no Arquivo Municipal de São Paulo.
4
sobre a atuação de políticos e do Estado, hábitos de consumo e lazer e luta pelo uso
dos serviços públicos ao longo da vida dos moradores.
Uma das entrevistadas até o momento, Tia Cida, mulher negra, referência do samba de
São Mateus, ao relatar a destruição de sua primeira casa pelas chuvas na década de
1950, rememorou a maneira como a loteadora Beis e a administração pública
improvisavam soluções de emergência para os problemas de infraestrutura e moradia
do bairro. A narrativa foi marcada pela nostalgia do pouco que se tinha comparado ao
que se tem atualmente:
Eu mudei pra São Mateus em 1948 [...] o meu padrasto comprou um terreno em São
Mateus, na Luiz Mota. Então aos domingos ele ia com a turma dos amigos dele
construir...ajudava a construir e...em menos de 15 dias que ele tinha comprado a
gente mudou pra lá. Na primeira chuva forte que deu a casa caiu. (risos). Foi muito
engraçado. E a compania Mateus Bei ficou muito preocupada com a situação da
minha mãe, do meu padrasto. Perdemos quase tudo, o pouco que nóis tinha na casa
a gente perdeu. Eles cederam uma casa pra gente lá onde hoje é o Tá Teno. Tinha
uma casa da prefeitura lá, uma casa boa, grande. E nos colocou lá até a gente ter
condição de construir lá onde tinha caído. (ENTREVISTA COM TIA CIDA,
13.05.2017)
Já Aldo Leite, ao falar da precariedade da questão sanitária de São Mateus explica, a
partir de sua visão programática de esquerda, de ex-militante do Movimento de Saúde
e ex-funcionário da Secretaria do Estado de Saúde, as doenças geradas pela falta de
infraestrutura básica de saúde no incipiente aglomerado urbano que se desenvolvia em
meio à zona rural nos anos de 1970:
Trabalhei na secretaria de Estado da saúde. Eu era militante do movimento de
saúde. Aí na época era um cargo chamado de visitador sanitário que era aquela
pessoa que visitava as pessoas na casa delas as pessoas que tinham mal de Hansen
e que tinham tuberculose, esses problemas mais sérios, a gente tinha que fazer visita
em casa quando era descoberto […]
Bem é o que eu fiz e além disso eu era militante, aqui nessa região, do movimento
de sáude, o movimento popular de saúde por uma razão bem simples: em 71 essa
5
região toda aqui tinha um consultório dentário ali em São Mateus. Aqui não tinha
nem uma clínica particular. Depois é que teve um médico ali o Paulo...não sei das
quantas que tinha o consultório ali na Mateo Bei e tinha um postinho de saúde
numa casa particular alugada no Jardim Colonial, tinha outra aqui em São Mateus.
Hospital só no Tatuapé […] Aí eu me lembro que eu trabalhava na rua e eu via
é...o povo daquela região (Iguatemi), especialmente as mães que vinham de fora,
chegavam aqui e aí aquelas fossas que faziam ali, água contaminada e o diabo a
quatro…(ENTREVISTA COM ALDO LEITE, 13.05.2017)
A memória trabalho, ou seja, o trabalho de rememorar, como no caso de Tia Cida e
Aldo Leite, tem a ver com a maneira como foi realizada essa operação e o porquê das
escolhas dos colaboradores e memorialistas sobre o que e como perpetuar
determinadas lembranças (BOSI, 1994: 37). Levando-se em consideração que os
trechos selecionados guardam relação direta com a íntegra das entrevistas, pensar por
que Aldo Leite priorizou mais experiências políticas em seu relato, ou por que Tia
Cida detêm-se mais em detalhes da vida sofrida na infância que em outras questões
tem a ver com essa perspectiva, que será mais aprofundada no decorrer deste estudo.
Essa operação analítica será crucial na interpretação dos relatos reunidos, promovendo
uma reflexão sobre qual é o lugar na história local e da cidade em que os depoentes
entendem estar e suas relações com as memórias sociais cristalizadas nos dois âmbitos
urbanos em questão.
Muitas vezes, na formação das memórias hegemônicas, os sujeitos históricos são
apagados e reduzidos a um evento de fundação ou a alguns indivíduos proeminentes,
como ocorre em São Mateus, com a exaltação dos feitos de alguns pioneiros. Neste
sentido, verificamos nos relatos de Tia Cida e Aldo Leite uma similaridade das
memórias dos moradores de São Mateus (periferia) com a memória do trabalhador
suburbano, como elemento capaz de significar o rotineiro, revelando a dinâmica social
própria do local e sua participação na história da cidade e do país. Será assim a
memória um local de afirmação dos que foram excluídos de escrever a sua própria
história. (MARTINS, 1990: 17). Relatos memorialísticos presentes em entrevistas
para jornais, como os de Odon Vieira Lima, ajudam a sedimentar aquilo que considera
6
o “princípio do bairro” e traça o perfil de um de seus “pioneiros”: seu pai. Ainda que
imprima uma aura “nobre” à memória de seu antecessor, ela contém alguns elementos
importantes do cotidiano local:
No início como já disse, não havia ruas, somente aquele trilho de passar carros de
bois. Depois a companhia Beis e Irmãos mandaram tratores para abrir ruas […]
Meu pai veio para São Mateus como construtor para Beis e Irmãos. Foi ele quem
loteou e construiu para os primeiros moradores do bairro. Ninguém construiu tanto
como ele. Estabeleceu também como comerciante. Durante muito tempo exerceu as
duas atividades. (CIDADE DE SÃO MATEUS, 10.1986)
Ao compararmos os relatos de Odon aos de Tia Cida e Aldo Leite – confrontação de
fontes que será recorrente ao longo desta pesquisa - percebemos nos três a partilha do
sofrimento da vida em um bairro periférico e deficiente de equipamentos públicos, no
qual os moradores buscam por si sós fazer do lugar uma cidade, seja se organizando
em movimentos, abrindo seus comércios ou construindo a própria moradia, ainda que
de modo precário. A partir disso já começamos a entender que a urbanização de um
bairro de periferia depende de significativa diversidade de ações dos indivíduos que lá
moram e se constituem como sujeitos históricos desse processo e que, esses mesmos
indivíduos, ao trabalharem sua memória com base em suas experiências de vida,
forjam interpretação particular sobre sua importância nesse contexto.
Possíveis Conceitos de Periferia
Uma das questões elencadas no roteiro de entrevistas para produção de fontes orais
deste estudo é: “São Mateus é considerado pelos jornais, revistas, pesquisas científicas
de diversas áreas como um bairro de periferia. O que vem à sua cabeça quando ouve a
palavra “periferia”?”. Essa pergunta indica que, além de trabalhar as memórias das
vivências de quem constrói um bairro de periferia, investigaremos, também, quais as
percepções que os próprios moradores tem do que vem a ser “periferia”, visando
historicizar este conceito. Temos por hipótese que a “periferia” aqui estudada – no
caso São Mateus – é base essencial à construção das memórias dos moradores e não
somente mero cenário onde se desenrolaram suas vidas.
7
Aquilo que entendemos por periferia mudou bastante ao longo dos anos. As produções
acadêmicas que abordam o termo são oriundas de diversas áreas, cada qual falando da
“periferia”, dentro de seus contextos teóricos e históricos. O historiador Paulo Fontes,
referindo-se ao período e local que estudou (1946-1966, em São Miguel Paulista),
definiu periferias como os bairros afastados da região central e industrial da cidade,
que experimentaram forte crescimento ao longo da década de 1950 sob impulso da
iniciativa privada e ausência de regulação do Estado (FONTES, 2008: 94). Ao estudar
o cotidiano e a cultura política do bairro Jardim das Camélias em fins dos anos de
1970 e início dos anos de 1980, mas sem estabelecer uma conceituação própria, a
antropóloga Teresa Pires do Rio Caldeira problematizou o uso corrente e, às vezes,
esvaziado do termo, seja no campo da política como nos estudos acadêmicos.
“Periferia” foi utilizada “talvez em substituição a expressões mais antigas como
subúrbio” (CALDEIRA, 1984 : 08) para denominar os espaços localizados nas franjas
da municipalidade, sem infraestrutura, e que gerariam um determinado
comportamento nos seus moradores do qual seria conveniente se proteger ou se
utilizar para proveito próprio, principalmente na política.
Atualmente, porém, as periferias são abordadas como espaços diversificados na forma
de sua ocupação e uso social. A geógrafa Ana Fani Carlos destaca a instalação de
alguns empreendimentos imobiliários e empresariais em terrenos menos valorizados,
como consequência do processo de valorização do solo urbano e de sua apropriação
pelo capital financeiro, cuja expansão vai além das áreas centrais da cidade. Deste
modo, temos as periferias, atualmente, como territórios divididos entre indústrias,
condomínios de alto padrão e população pobre (subempregada ou desempregada)
muitas vezes forçada a ocupar áreas públicas ou de proteção ambiental, as únicas que
lhes são financeiramente acessíveis. (CARLOS, 2009: 312-313).
Em uma perspectiva próxima a deste estudo, onde os próprios moradores de periferia
pensam a si mesmos como parte da cidade e não como sua negação, temos a I
Internacional das Periferias, realizada em abril de 2017 no complexo da Maré, Rio de
Janeiro, reunindo um conjunto de ativistas e cientistas sociais de diversas metrópoles
do mundo, sintetizando uma série de características em comum das periferias, indo
8
além das definições clássicas do termo que privilegiam as carências desses espaços:
Com isso, temos o fortalecimento das noções de ausência, carência e
homogeneidade como elementos de percepções reducionistas e de classificações
hierárquicas das periferias em relação aos demais espaços da cidade. Toma-se
como significante aquilo que a periferia não seria em comparação a um modelo
idealizado de cidade, baseado em padrões culturais e educativos colonizadores
construídos, em geral, pelas parcelas mais enriquecidas da população. Nessa
compreensão, as periferias são concebidas como espaços precarizados, com sujeitos
que têm a sua historicidade negada, seus territórios não reconhecidos como
legítimos e seus moradores, não raramente, tratados de forma exotizada (a não
civilização, por excelência). (CARTA DA MARÉ, 2017: 02)
O principal objetivo desse encontro foi elaborar uma visão alternativa à concepção
sociocêntrica de cidade, padronizadora dos espaços, comportamentos dos indivíduos e
serviços públicos necessários para o bem viver nesses territórios. Destaca-se neste
ponto de vista, a pluralidade de formas econômicas domésticas e comunitárias, formas
próprias de organizar e construir os espaços públicos e privados, laços fortes de
vizinhança, leitura estética específica da realidade, entre outros fatores, sem deixar de
lado a abordagem de problemas como os altos índices de violência, desemprego e
subemprego, intensificados conforme recorte de gênero e raça. Todas essas ideias,
apresentadas em formato de manifesto, visam um diálogo com o Estado que leve em
consideração as condições específicas desses espaços. (IDEM, 2017: 03-05).
É, portanto, na perspectiva de um espaço com diferentes usos, perspectivas e
conceituações (e não apenas como espaço da precariedade), mais próxima as
elaborações de Carlos e da I Internacional das Periferias, que serão analisadas as
memórias da urbanização de São Mateus, visando o entendimento das articulações
entre territórios, vivências sociais e construção de narrativas históricas particulares dos
sujeitos históricos dessa parcela específica da periferia de São Paulo.
São Mateus em Movimento: Sujeitos Históricos da Urbanização de Uma Região
9
As periferias da cidade de São Paulo passaram por um acelerado processo de
urbanização entre as décadas de 1940 e 1980, relacionado à intensa industrialização do
município. Para atender à demanda industrial da cidade por mão de obra, houve uma
explosão urbana em direção às suas bordas com o loteamento de territórios rurais para
suprir as necessidades de moradia daqueles que chegavam, de forma a baratear a
moradia e, consequentemente, o custo da força de trabalho. (CALDEIRA, 1984;
FONTES, 2008; BONDUKI, 2013).
Para explicar este processo, Caldeira insere a formação das periferias de São Paulo em
uma perspectiva histórica que trata de três momentos de segregação socioespacial em
seus territórios: a cidade concentrada (de fins do século XIX até a década de 1940); o
modelo centro-periferia (que predominou entre 1940 e 1980) e os enclaves fortificados
- em desenvolvimento a partir da década de 1980. (CALDEIRA, 2000: 211). O
modelo centro-periferia, é posto pela autora como o momento mais bem-sucedido de
segregação socioespacial da cidade de São Paulo, por ter conseguido colocar pobres e
ricos, que viviam relativamente juntos no espaço central da cidade até 1940, em
territórios tão distantes entre si que o encontro entre as classes sociais era algo raro.
(IDEM, 2000: 229-230). Marcadas pela autoconstrução, expansão de linhas de ônibus
e terrenos irregulares - em um espaço onde as legislações urbanas não eram cumpridas
- as periferias desenvolveram-se como o inverso do centro, carentes de toda a
infraestrutura que a cidade legal disponibilizava aos seus moradores.
É dentro do modelo centro-periferia, que se encontra o processo de urbanização de
São Mateus. Não por acaso, o período escolhido para o trabalho coincide com a
formação acelerada das periferias de São Paulo – entre 1950 e 1992.
Mas esse processo não ocorreu sem haver a formação de sociabilidades específicas dos
moradores e nem sem o questionamento, por parte deles, da ausência e/ou ineficiência
do poder público quando estas se faziam sentir. Segundo matérias do periódico local
Gazeta de São Mateus, publicadas nos anos de 1990, datam das décadas de 1950 e
1960 as primeiras manifestações públicas populares de descontentamento com a falta
de infraestrutura urbana na região. As memórias de José Maria Cordeiro sobre a
10
associação reivindicativa A Voz da Colina, que tentava mobilizar o bairro por serviços
públicos e infraestrutura nos anos de 1960, evidenciam isso:
Ao lado de Nildo, ele participou da Voz da Colina, na ocasião, mais que um serviço
de alto-falantes. A Voz da Colina era uma entidade que trabalhava para a obtenção
de melhoramentos para o bairro […] Na década de 60 durante a visita de Abreu
Sodré (governador) e Faria Lima (prefeito) eles foram convidados pela diretoria da
Voz da Colina, que na ocasião pretendia fazer uma série de reivindicações para o
bairro. A entidade havia organizado recepção aos políticos, mas uma pequena
confusão entre Cordeiro e um policial do bairro fez com que metade da diretoria da
Voz da Colina tivesse que se ausentar para discutir o problema, que acabou virando
um caso de polícia. Toda a confusão foi por causa do alto-falante, explica Cordeiro
[…] A entidade estava anunciando a vinda dos políticos e chamando a população
para que comparecesse. (GAZETA DE SÃO MATEUS, 09.1995.)
Dataria de 1959, também segundo A Gazeta de São Mateus, o início do funcionamento
da suposta primeira Sociedade de Amigos do Bairro (SAB) da região, a Sacismat
(Sociedade de Amigos da Cidade São Mateus) que teria sido decisiva na obtenção de
verbas para o asfaltamento da Avenida Mateo Bei em 1962 (principal centralidade do
bairro até hoje) sendo, também, ligada ao universo de troca de favores entre governo
do Estado, prefeitura e lideranças locais, algumas delas relacionando-se a Adhemar de
Barros e Jânio Quadros, políticos tidos como “populistas” que se revezaram na
prefeitura e no governo do Estado ao longo dos anos de 1950 e 1960. (IDEM,
09.1995). Adriano Duarte e Paulo Fontes advogam, em artigo de 2004, a necessidade
de se priorizar o estudo das demandas urbanas da periferia de São Paulo que partiam
tanto das SABs, como de outras associações como A Voz da Colina, para se obter um
entendimento da política populista que vá além dos estudos das relações trabalhistas
no período:
Tendo em vista que o despertar do tema do bairro e das questões urbanas que lhe
são conexas decorre das ações populares organizadas, desde o Estado Novo, pelas
associações de bairro, clubes de futebol, comitês, sociedades, associações étnicas,
etc. são elas que estabelecem, no espaço urbano, a importância desses temas como
temas políticos. Foram os homens e as mulheres que construíram essas
organizações de bairro que forçaram a inclusão destas pautas locais na agenda
11
política do pós-guerra. Por isso, o sistema populista, num certo sentido, obra dessas
mesmas organizações populares, tanto quanto a elas dirigida. (DUARTE &
FONTES, 2004:117)
São também deste período as primeiras manifestações na Câmara dos Vereadores de
São Paulo, como as do parlamentar Tarcílio Bernardo, sobre as carências urbanas da
região como a falta de pavimentação e as deficiências do serviço de transporte público
regular:
Indicamos ao executivo a necessidade de ser apedregulhada e nivelada a Estrada
do Rio das Pedras em toda a sua extensão […] Trata-se de uma estrada que liga as
vilas Carrão, Nova Manchester, Aricanduva, etc à Cidade São Mateus que se
encontra em franco desenvolvimento. Se não for tomada tal providência, os ônibus
que servem à Cidade São Mateus não poderão trafegar em dia de chuva. (ANAIS
DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1953: 25)
Segundo Murilo Leal, era comum neste momento histórico o envio, por parte dos
moradores de periferia, de abaixo-assinados e requerimentos aos vereadores, para
denunciar tanto o abandono dos bairros onde viviam como a prefeitura “madrasta”
que esquecia daqueles que pagavam impostos e também tinham direito à
infraestrutura urbana. (LEAL, 2006: 165-67). É provável que a fala de Tarcílio tenha
nela implícita a pressão de alguma forma de organização dos moradores de São
Mateus e dos bairros adjacentes.
Em um outro momento, no contexto de abertura política de fins dos anos de 1970,
reelaboram-se as lutas sociais por urbanização, que abarcam desde os pequenos
agrupamentos organizados junto a Igreja Católica em São Mateus, para debater sobre
campanhas salariais, refletir sobre o 1º de maio e ajudar os desempregados e
perseguidos políticos no início da década (TELLES, 1988: 238-239) a grupos de
mulheres reunidas para discutir os problemas da saúde e ajudar os doentes do bairro,
que constituíram um dos focos originários do Movimento de Saúde de São Paulo
(CARIGNATO, 2009: 55).
Iniciativas essas que levaram esses grupos, no contexto da formação das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), a aprofundarem a discussão de outros problemas de São
12
Mateus e região, como moradia, creches e asfaltamento e a formarem amplos
movimentos para atenderem a todas essas demandas, como relatado no jornal Folha de
São Paulo em 1981:
A história começou em 1975, quando o Estado inaugurou um posto de saúde em São
Mateus, onde, no prazo de seis meses foram matriculadas nada menos que mil
crianças. A deficiência no atendimento médico fez com que os moradores da região
se unissem, orientados pela Pastoral de Saúde, para reivindicar seus direitos. O
Movimento de Saúde deu origem a outros grupos setoriais de ação, reunindo 25
bairros, cujas preocupações no momento, são: as 26 favelas da região (de 200 a
1300 barracos cada uma); creches, problema do menor, asfalto e água. (FOLHA
DE SÃO PAULO, 28.01.1981)
Há, também, indícios de que o Movimento do Custo de Vida (MCV), teve focos de
organização em São Mateus. Importante articulação política da retomada democrática,
surgiu da capacidade de leitura da realidade e organização dos moradores da periferia
de São Paulo, que tinham que se defrontar com os efeitos mais severos da política de
arrocho salarial da ditadura militar, devido à deficiência na distribuição dos gêneros de
subsistência básica nesses territórios que os tornavam ainda mais caros. O historiador
Thiago Monteiro, em pesquisa recente sobre o tema, aponta a região de São Mateus
como um dos epicentros do movimento na cidade, ainda que orbitando o Movimento
de Saúde, com atuação decisiva do pároco da região, padre Franco, que incentivou
outros debates urgentes para os moradores como o do problema do transporte público.
(MONTEIRO, 2017: 81).
Muitos dos quadros formados nessas experiências chegaram a influenciar ou fazer
parte da prefeitura com a chegada de Luíza Erundina (no PT à época) ao executivo
municipal (1989-1992). Exemplos disso são Eduardo Jorge, diretor do centro de saúde
de São Mateus nos anos de 1970 e militante do movimento de saúde, que se tornou
secretário municipal de saúde (CARIGNATO, 2007:116) e militantes como Orlanda
da Conceição que
em 1971 mudou-se para São Paulo no bairro do Parque São Rafael (São Mateus),
zona leste da cidade, onde vive hoje. Começou a militar no Movimento de Saúde em
13
1979 e parou em 1996. […] Foi conselheira popular por quatro vezes do centro de
saúde do parque São Rafael, conselheira gestora do hospital São Mateus e integrou
o Conselho Municipal de São Paulo à época da prefeita Luíza Erundina. (IDEM,
2007: 19).
A relação da região com essa gestão - na qual também foi viabilizada a formação de
um de seus maiores bairros o Jardim da Conquista, surgido das mobilizações dos
movimentos de moradia atuantes no local (TENÓRIO, 2014: 92-95) - é, por isso, a
segunda baliza temporal que adotamos por demarcar o momento em que as
organizações de bairro passam a influir diretamente nas instâncias de poder
municipais.
O estudo comparativo de ambos os períodos de mobilizações, nas suas relações com o
cotidiano dos moradores da região, constitui-se em eixo transversal às análises das
memórias dos sujeitos históricos da urbanização de São Mateus, demonstrando como a
política desenvolvida nos bairros é elemento essencial ao entendimento da formação
histórica das periferias de São Paulo.
Considerações Finais
O estudo das memórias da urbanização de São Mateus, tanto nos textos jornalísticos
como na produção de entrevistas, tem sido campo fértil para o entendimento inicial
dos processos históricos de formação da periferia de São Paulo, que ainda carecem de
maior atenção da historiografia especializada em história de São Paulo. Os eixos
elencados neste texto que tratam da conceituação de periferia, das narrativas pessoais
oriundas da história oral e das lutas sociais, ao interligarem-se a partir da
problematização das fontes, tendem a fornecer uma visão multifacetada desses
processos. Essa operação já demonstra que o trabalhador, o sujeito político e o vizinho
podem ser o mesmo indivíduo, atuando em diversos papéis para recriar o espaço em
que vive conforme suas necessidades mais frementes e o modelo de cidade que tem
em mente. A interpretação desse apanhado deve revelar ainda, ao longo da pesquisa,
as diferentes estratégias subjetivas desses sujeitos para mostrarem-se, a partir das
14
fontes orais ou dos relatos para os jornais, como protagonistas não só de suas vidas
como da constituição de um lugar.
Referências Bibliográficas
Livros e Artigos
I Internacional das Periferias. Carta da Maré. Rio de Janeiro: Fundação Maria e João
Aleixo, 2017.
ALMEIDA, Valéria Tenório. Jardim da Conquista: Segregação Urbana e
Mobilização Social. In: SARAU GOSTO DE CONQUISTA (org.). Jardim da
Conquista – O Canto Poético. São Paulo: Secretaria da Cultura de São Paulo (VAI),
2014. 91-112.
BONDUKI, Nabil Georges. Origens da Habitação Social no Brasil: Arquitetura
Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa Própria.6ed. São Paulo:
FAPESP/Estação Liberdade, 2013.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3 Ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994
CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. A Política dos Outros: O Cotidiano dos Moradores
de Periferia e o que Pensam do Poder e dos Poderosos. 1 ed. São Paulo: Brasiliense,
1984.
___________________________ Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania
em São Paulo. 1 Ed. São Paulo: EDUSP/Ed 34, 2000.
CARIGNATO, Lucirene Aparecida. Vivências Femininas no Movimento de Saúde da
Cidade de São Paulo. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: PUC, 2007.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Metrópole de São Paulo no Contexto da
Urbanização Contemporânea. In: Estudos Avançados 23 (66). São Paulo: Edusp,
2009. p. 303-14
FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores Migrantes em São
Miguel Paulista (1945-1966). 1 Ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
_____________ & LEAL, Murilo. O Populismo Visto da Periferia: adhemarismo e
janismo nos bairros da Mooca e São Miguel Paulista (1947-1953). In: Cad. AEL,
15
v.11, n.20/21, 2004.
FREIRE, Amanda de Sousa & LIMA Priscila Machado (Org.). Memórias de um São.
Mapeamento e Memória Cultural da Região de São Mateus. São Paulo: MetaLibri,
2015.
MARTINS, Jose de Souza. Subúrbio - Vida Cotidiana e História do Subúrbio da
Cidade de São Paulo: São Caetano, do Fim do Império ao Fim da República Velha. 1
Ed. São Paulo/São Caetano: Ed Hucitec, 1990.
NETO, Murilo Leal Pereira. A Reinvenção do Trabalhismo no Vulcão do Inferno. Um
Estudo Sobre Metalúrgicos e Texteis de São Paulo. A Fábrica, o Bairro, o Sindicato e
a Política (1950-1964). (Dissertação de Mestrado). São Paulo: FFLCH/USP, 2006.
NUNES, Thiago Monteiro. Como Pode um Povo Vivo Viver Nessa Carestia. O
Movimento do Custo de Vida em São Paulo (1973-1982). São Paulo:
Humanitas/FAPESP, 2017.
PORTELLI, Alessandro. O que Faz a História Oral Diferente. Proj. História (PUC),
São Paulo, (14), fev. 1997.
TELLES, Vera da Silva. Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos. In.
KOWARICK (org.) As Lutas Sociais e a Cidade: São Paulo: Passado e presente. São
Paulo: Paz e Terra, 1994. p. 217-249.
Fontes
ANAIS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. 199º Sessão Ordinária:
Indicação nº 2212-53. 14.09.1953.
CIDADE DE SÃO MATEUS. Passo a Passo na Terra dos Beis. 10.1986.
ENTREVISTA COM ALDO LEITE. 13.05.2017.
ENTREVISTA COM TIA CIDA. 13.05.2017.-
DIARIO OFICIAL DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. São Mateus Celebra Seu 57
Aniversário lembrando Suas Lutas. 29.09.2005.
DIÁRIO POPULAR. São Matheus Guerreiro. 20.08.1985
16
_________________. São Mateus Tem Tradição de Luta. 15.03.1997.
FOLHA DE SÃO PAULO. Em São Mateus Mobilizações Já Alcançam Vitórias.
28.01.1981.
GAZETA DE SÃO MATEUS. A Política no Dia a Dia dos Moradores. 09.1995.
PESSOA, Everson & PESSOA, Yvison & SOUSA, Magnu. “Berço do Samba”. In.
Berço do Samba. São Paulo: Quinteto em Branco e Preto, 2008.
Top Related