WAGNER LUIZ SCHMIT
RPG E EDUCAO: ALGUNS APONTAMENTOS TERICOS
Londrina
2008
WAGNER LUIZ SCHMIT
RPG E EDUCAO: ALGUNS APONTAMENTOS TERICOS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao, em Educao da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientador: Professor Doutor Joo Batista Martins
Londrina 2008
WAGNER LUIZ SCHMIT
RPG E EDUCAO: ALGUNS APONTAMENTOS TERICOS
BANCA EXAMINADORA __________________________________________
Profa. Dra. Cleide Vitor Mussini Batista
__________________________________________ Prof. Dr. Joo Batista Martins
__________________________________________ Prof. Dr. Maurcio Rosa
__________________________________________ Profa. Dra. Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin
(suplente)
__________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Leite Camargo (suplente)
Londrina, 25 de julho de 2008
All that we see or seem Is but a dream within a dream.
Edgar Alan Poe For Annie
DEDICATRIA
Para Nagomi.
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Professor Doutor Joo Batista Martins por ter me guiado por este caminho. Agradeo a minha namorada Nagomi pelas longas horas revisando textos e me fazendo companhia. Agradeo as Professoras Doutoras Maria Luiza Macedo Abbud e Rosngela Aparecida Volpato pelas maravilhosas reflexes epistemolgicas. Agradeo a Professora Doutora Silvia Mrcia Ferreira Meletti por ter me mostrado o prazer da docncia e pelas conversas sobre Vigotski. Agradeo a Lucinia Steca pela valiosa ajuda nas disciplinas e servir de inspirao para as horas de cansao. Agradeo a Professora Doutora Elena Maria Andrei por me ajudar a levar o RPG para os educadores de Londrina e pelas conversas sobre mitos, quadrinhos e RPG. Agradeo ao Carlos Martins pelo seu apoio e confiana em meus projetos. Agradeo a Adriano e Rogrio por terem me apresentado o RPG. Agradeo ao meu grupo de jogo: Elfo, Irix, Smilling Strider, Tails e Wizard por todas as aventuras que vivemos juntos e que serviram de fora motriz para a realizao deste trabalho. Agradeo a Suzana Costa por todos os incentivos e sugestes no inicio deste trabalho. Agradeo a Jos Ablio Perez Junior pelas recomendaes no texto. Agradeo a Rafael Carvalho Barreto pelas longas conversas sobre mundos fantsticos e ajudar a levar isso para outras pessoas. Agradeo ao Dominic Schoff por ter sempre a mo estendida quando precisei de ajuda. Agradeo a todo o pessoal das listas RPG em Debate e Ludus pelas discusses e indicaes que ajudaram a construir este trabalho. Agradeo ao Marcelo Telles por ter aberto espao para meu primeiro artigo sobre RPG e Educao. Agradeo ao Marcos Tanaka por ter me mostrado como usar o RPG com uma turma inteira e ajudar a fazer olhar o mundo de uma maneira crtica. Agradeo a todo pessoal da revistaria Odissia por ajudar a manter vivo o espirito de aventura. Agradeo ao pessoal da secretaria do Colgio Estadual Marcelino Champagnat, pois a ajuda de vocs possibilitou o trmino das minhas disciplinas. Agradeo ao Sandro por toda a ajuda com a parte burocrtica desta jornada. Agradeo a Comisso de Bolsas do Programa de Mestrado em Educao por ter possibilitado minha dedicao total a esta pesquisa por 12 meses.
SCHMIT, Wagner Luiz. RPG e Educao: alguns apontamentos tericos. 2008. 267f. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
RESUMO A principal proposta deste trabalho fazer alguns apontamentos tericos como meio de reflexo para educadores e pesquisadores sobre o uso do RPG na educao. A primeira parte do referencial terico deste trabalho apresenta a histria dos roleplaying games (RPG) nos EUA e no Brasil e alguns estudos sobre RPG nos EUA e na Europa. Com base nestes estudos, apresenta-se uma definio de RPG e seus cinco tipos: RPG de mesa, LARP, aventura solo, RPG eletrnico solo e MMORPG. Na segunda parte do referencial terico, discorre-se sobre as concepes de Vigotski, sobre suas teorias no Brasil, alguns conceitos da teoria vigotskiana, suas contribuies para a educao e uma leitura do RPG a partir de Vigotski. A metodologia trata do conceito de estado da arte e de uma possvel leitura deste conceito a partir de Vigotski como embasamento para os procedimentos do levantamento bibliogrfico e anlise do material coletado. Este foi dividido em trs categorias: material pedaggico, livros, dissertaes e teses. Selecionaram-se apenas as dissertaes e teses que apresentam Vigotski em seu referencial terico. As anlises abordam a produo sobre RPG no Brasil e a dificuldade de acesso a essa produo. Buscou-se mapear as concepes de educao que permeiam os trabalhos sobre RPG no Brasil, alm de relacionar algumas destas pedagogia tecnicista. Analisa-se tambm o material pedaggico quanto a seu uso por educadores, assim como os livros, as dissertaes e as teses quanto s apropriaes das teorias vigotskianas. Verificou-se a necessidade por parte de educadores e de pesquisadores de assumir um posicionamento crtico ao abordar o RPG, bem como de ter clareza no projeto de homem e sociedade que permeia sua prtica. Constatou-se tambm que as teorias de Vigotski so pouco conhecidas e exploradas.
Palavras-chave: Roleplaying games. Jogos de representao. Vigotski. Concepes de educao.
SCHMIT, Wagner Luiz. RPG and Education: some theorical notes. 2008. 267p. Dissertation (Master degree in Educaion) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
ABSTRACT The main purpose of this study is to make some notes as means of theoretical discussion for educators and researchers about the use of RPG in education. The first part of the theoretical reference of this work presents the history of roleplaying games (RPG) in the U.S. and Brazil and some studies on RPG in the U.S. and Europe. Based on these studies, IT provides a definition of RPG and its five types: table-top RPG, Larp, solo adventure, electronic solo RPG and MMORPG. In the second part of the theoretical reference, the arguments are about the concepts of Vygotsky and his theories in Brazil, some concepts of the Vygotskyan theory, their contributions to education and a reading of the RPG from Vygotsky. The methodology is the concept of state of the art and a possible reading of this concept from Vygotsky for the basis of the procedures of bibliographic survey and analysis of material collected. This was divided into three categories: educational material, books, theses and dissertations. Only those dissertations and theses were selected that have Vygotsky in its theoretical reference. The analyses address the production on RPG in Brazil and the difficulty of access to such production. The aim was to map the concepts of education that permeate the work on RPG in Brazil, in addition to relating some of them to the technicistic pedagogy. It also analyses the material on its use by educators as well as books, dissertations and theses on the assimilation of Vygotskyan theories. There is a need on the part of educators and researchers to take a critical position to address the RPG, and to have clarity in the design of man and society that permeates their practice. It was also discovered that the theories of Vygotsky are little known and exploited. Keywords: Role-playing games. Vigotski. Education conceptions.
NDICE DAS ILUSTRAES
Ilustrao 1 Disputa de Magic: the gathering um Card Game ................................ 19
Ilustrao 2 Grupo jogando RPG .................................................................................. 19
Ilustrao 3 Grupo jogando RPG .................................................................................. 23
Ilustrao 4 Heris da animao Caverna do Drago com um dos viles da srie
ao fundo ..................................................................................................... 24
Ilustrao 5 Dados de RPG ........................................................................................... 25
Ilustrao 6 Caixa da primeira edio do D&D ............................................................ 27
Ilustrao 7 Edio contempornea do Kriegspiel ........................................................ 28
Ilustrao 8 Combate em uma sesso de D&D 3.5, em que se utilizam
miniaturas como nos war games ................................................................ 31
Ilustrao 9 Foto de um grupo de jogadores em um LARP de Vampire - The
Masquerade ................................................................................................ 34
Ilustrao 10 Grupo de jogadores em um LARP de fantasia medieval ........................... 35
Ilustrao 11 D20, um dado de 20 faces utilizado no RPG D20 ..................................... 36
Ilustrao 12 Mesas de jogo durante o evento D&D Game Day em uma revistaria
de Londrina, em novembro de 2007 .......................................................... 50
Ilustrao 13 Jogadores de LARP de Fantasia Medieval ................................................ 52
Ilustrao 14 Cena de combate do jogo Chrono Trigger do videogame Super
Nintendo .................................................................................................... 54
Ilustrao 15 Cena de combate do jogo The Elder Scrolls III - Morrowind, feito
para computadores ..................................................................................... 55
Ilustrao 16 Imagem da interface do programa RPG Maker XP ................................... 56
Ilustrao 17 Interface de um MUD ................................................................................ 58
Ilustrao 18 Interface de World of Warcraft, o MMORPG mais popular
atualmente, mostrando vrios jogadores enfrentando monstros ................ 59
NDICE DAS TABELAS
Tabela 1 Produes na linha de tempo ............................................................................ 82
Tabela 2 Livros sobre RPG ............................................................................................. 84
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
3D&T Defensores de Tquio 3 edio
AD&D Advanced Dungeons & Dragons
BADD Bothered About Dungeons and Dragons
CSG Colectible Strategy Games
D20 Dado (poliedro) de 20 faces
D&D Dungeons & Dragons
D&T Defensores de Tquio
EUA Estados Unidos da Amrica
GAMA GAme Manufacturers Association
GURPS Generic Universal Roleplaying System
JR Jogo de Representao
LARP Live Action Roleplay
MMORPG Massive Multiplayer Online Roleplaying Games
MUD Multi User Dungeon
NPC Non-Player Character personagem controlado pelo narrador.
RPG Roleplaying Game
TSR Tatical Studio Rules
WotC Wizards of the Coast
ZDP Zona de Desenvolvimento Proximal
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. 15
OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA ................................................................................................. 16
HISTRIA DA MINHA PESQUISA ............................................................................................ 17
SOBRE ESTA PESQUISA ......................................................................................................... 21
CAPTULO 1 RPG ......................................................................................................... 22
1.1 HISTRIA DO RPG .......................................................................................................... 25
1.1.1 Ancestrais ................................................................................................................... 27
1.1.2 Desenvolvimento do RPG .......................................................................................... 31
1.1.3 RPG no Brasil ............................................................................................................. 37
1.2 ESTUDOS SOBRE RPG ..................................................................................................... 40
1.3 DEFINIO DE RPG ........................................................................................................ 47
1.4 TIPOS DE RPG ................................................................................................................ 49
1.4.1 RPG de mesa .............................................................................................................. 49
1.4.2 Live action .................................................................................................................. 51
1.4.3 Aventura solo .............................................................................................................. 52
1.4.4 RPG eletrnico solo .................................................................................................... 53
1.4.5 Massively multiplayer online roleplaying games (MMORPGs) ............................... 56
CAPTULO 2 VIGOTSKI. ............................................................................................ 60
2.1 CONCEPES DE VIGOTSKI ............................................................................................. 61
2.2 VIGOTSKI NO BRASIL ...................................................................................................... 63
2.3 ALGUNS CONCEITOS EM VIGOTSKI ................................................................................. 64
2.4 CONTRIBUIES DE VIGOTSKI PARA A EDUCAO ......................................................... 70
2.5 UMA LEITURA DO RPG A PARTIR DE VIGOTSKI ............................................................... 71
CAPTULO 3 - PERSPECTIVAS METODOLGICAS .............................................. 74
3.1 O ESTADO DA ARTE - DEFINIES GERAIS ..................................................................... 74
3.2 POSSIBILIDADE DE UM ESTADO DA ARTE PELA TEORIA DE VIGOTSKI .......................... 76
3.3 PROCEDIMENTOS ............................................................................................................ 77
CAPTULO 4 ALGUNS APONTAMENTOS TERICOS ....................................... 82
4.1 PRODUO E ACESSO ..................................................................................................... 82
4.2 CONCEPES DE EDUCAO ........................................................................................... 84
4.2.1 RPG e a Pedagogia Tecnicista .................................................................................... 86
4.2.2 O discurso de escolarizao do RPG e a pedagogia tecnicista ................................... 89
4.3 MATERIAL PEDAGGICO ................................................................................................ 92
4.4 APROPRIAES DE VIGOTSKI .......................................................................................... 94
4.4.1 Principais obras referenciadas .................................................................................... 95
4.4.2 Principais conceitos abordados ................................................................................... 95
4.4.3 Operacionalizao dos conceitos ................................................................................ 96
CAPTULO 6 CONSIDERAES FINAIS .............................................................. 100
REFERNCIAS .............................................................................................................. 103
APNDICES .................................................................................................................... 110
APNDICE 1 UM EXEMPLO DE UMA SESSO DE RPG ...................................... 111
APNDICE 2 HISTRIA DE HIRNOL PARMANDIL .............................................. 116
APNDICE 3 FICHA TAGMAR II .............................................................................. 121
APNDICE 4 MODELO DE FICHAMENTO .............................................................. 122
APNDICE 5 FICHAMENTOS MATERIAL PEDAGGICO ................................... 123
Mini GURPS O Descobrimento do Brasil ...................................................................... 123
Mini GURPS Entradas e Bandeiras ................................................................................ 125
Mini GURPS O Quilombo dos Palmares ....................................................................... 127
Mini GURPS As Cruzadas ............................................................................................. 129
F.L.E.R. Ferramenta Ldica de Ensino por Representao : O Roleplaying Game
na sala de Aula (mdulo bsico) ............................................................................. 131
Portugus em Outras Palavras: 6 srie ............................................................................. 133
Portugus em Outras Palavras: 7 srie ............................................................................. 138
Portugus em Outras Palavras: 8 srie ............................................................................. 143
Mini GURPS O Resgate de Retirantes ....................................................................... 148
SIMPLES - Sistema Inicial para Mestres-Professores Lecionarem Atravs de uma
Estratgia Motivadora: Manual para o uso do RPG na educao ........................ 151
O Livro das Lendas: aventuras paradidticas .................................................................... 156
Curumatara de volta floresta ........................................................................................ 159
APNDICE 6 FICHAMENTOS DOS LIVROS ........................................................... 161
Saindo do Quadro .............................................................................................................. 161
A aventura da leitura e da escrita entre os mestres de roleplaying game .......................... 164
Anais do I Simpsio de RPG & Educao ........................................................................ 168
Introduo O que RPG ................................................................................................. 168
Anatomia de uma aventura de RPG: o processo de criao passo a passo ....................... 170
A leitura na escola: problemas e solues ......................................................................... 172
RPG: Uma construo interdisciplinar do conhecimento.................................................. 175
RPG usado no Ensino Fundamental I e temas transversais tica .................................. 177
RPG como instrumento de ensino e aprendizagem: Uma abordagem psicolgica ........... 179
RPG nas aulas de histria e geografia ............................................................................... 181
O livro-jogo, a leitura e a produo de textos .................................................................... 184
A leitura na escola: problemas e solues ......................................................................... 187
Roleplaying Game e a Pedagogia da Imaginao no Brasil .............................................. 191
Game Over Jogos eletrnicos e violncia....................................................................... 194
APNDICE 7 FICHAMENTOS DAS DISSERTAES E DAS TESES ................... 199
Aventurando pelos caminhos da leitura e escrita de jogadores de Role Playing Game
(RPG) ....................................................................................................................... 199
O Desenvolvimento de um Prottipo de Sistema Especialista Baseado em Tcnicas
de RPG para o Ensino de Matemtica ..................................................................... 207
Construo de Personagem & Aquisio de Linguagem: o desafio do RPG no INES ..... 213
O aprendizado na Internet utilizando estratgias de Roleplaying game (RPG) ................ 220
Criao e compartilhamento de conhecimento em comunidades de prtica: uma
proposta metodolgica ............................................................................................. 231
Edutenimento: o uso do storytelling e do RPG para compartilhar conhecimento ............. 239
Intervenes ldicas na sala de aula universitria: um estudo sobre a mediao do
jogo RPG(role playing game) como facilitador da criatividade em jovens
adultos ...................................................................................................................... 245
APNDICE 8 LISTA DE REFERNCIAS SOBRE RPG ............................................ 253
Lista de material pedaggico ............................................................................................. 253
Lista de pginas na Internet ............................................................................................... 254
Pginas sobre RPG e Teoria de Jogos ............................................................................... 254
Pginas sobre RPG e Educao ......................................................................................... 255
Listas de discusso e fruns .............................................................................................. 256
Ferramentas ....................................................................................................................... 256
Lista de artigos .................................................................................................................. 256
Lista de Artigos disponveis no site RPGEduc .................................................................. 260
Lista de Artigos disponveis no site RedeRPG .................................................................. 260
Lista de monografias e trabalhos de concluso de curso ................................................... 262
Lista de dissertaes e teses............................................................................................... 263
Lista de Livros ................................................................................................................... 266
15
INTRODUO1
Apresento neste trabalho diversos apontamentos tericos sobre os jogos de
representao, mais conhecidos no Brasil por RPG, sigla de sua nomenclatura na lngua
inglesa roleplaying game, e sua aplicao na escola, de forma a colaborar com o uso deste
jogo por educadores e com novas pesquisas. Este trabalho traz perspectivas sobre o RPG
quanto a trabalhos estrangeiros, sua definio, histria, viso vigotskiana, concepes de
educao e uso em ambiente escolar, bem como uma anlise de materiais pedaggicos
relacionados a este jogo e das apropriaes das teorias vigotskianas por pesquisadores de
RPG. Devo antes, no entanto, contextualizar este trabalho, suas origens e seus objetivos.
A pesquisa cientfica parte de questes do prprio pesquisador, que busca
responder ou confirmar questes que o inquietam. Os jogos de representao so uma parte
importante de minha vida, tanto no mbito profissional como no particular. natural,
portanto, que surjam indagaes acerca deste tema. Minha primeira proposta de pesquisa se
propunha a investigar uma forma de se utilizar o RPG em sala de aula. Necessitava,
entretanto, de uma base mais slida sobre a qual erigir meu trabalho, o que passou a constituir
o foco desta pesquisa.
1 Os quadrinhos na abertura dos captulos deste trabalho so de autoria de David Morgan-Mar. Retirados do site http://www.irregularwebcomic.net/, foram utilizados com autorizao do autor. As tradues dos quadrinhos so de minha responsabilidade.
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OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA
A principal proposta deste trabalho fazer alguns apontamentos tericos
como meio de reflexo para educadores e pesquisadores sobre o uso do RPG na educao.
Esses apontamentos so: uma anlise do material pedaggico encontrado, em que se buscou
explicitar seu referencial terico e sua concepo de educao; uma anlise da apropriao de
Vigotski2 feita pelos pesquisadores de RPG em livros, dissertaes e teses; e um mapeamento
das referncias disponveis na rea. Espero que estes apontamentos sirvam de base para novas
pesquisas sobre este objeto de estudo e forneam maior embasamento terico para as prticas
atuais, bem como para o desenvolvimento de novas metodologias de aplicao do RPG
principalmente na educao.
Mas por que estudar os RPGs?
Estudar os RPGs justificvel por muitas razes, mas uma delas que neles estamos confrontando um fenmeno que ao mesmo tempo antigo e algo muito atual para a ruptura que est atravessando nosso modo de vida atualmente. Nos ltimos anos temos presenciado um aumento poderoso de publicaes, currculos e atividades de pesquisa relacionados a jogos, mas estes comearam do estudo e design de jogos digitais. As pesquisas independentes de mdia sobre RPG de mesa e LARP3 em suas importantes formas mltiplas ainda esto para trs no mundo acadmico. (MYR, 2004, p. IX).4
As pesquisas sobre a relao entre RPG e educao comearam a se
organizar no Brasil no final da dcada de 90 pela troca de informaes pela Internet, sites e
listas de discusso por e-mail. A formalizao acadmica da rea veio com a tese de Snia
Mota, em 1997, intitulada Roleplaying Game: a Fico Enquanto Jogo (RODRIGUES, 2004,
p. 9), com o primeiro Simpsio de RPG e Educao em So Paulo, em 2002 e com outras
edies em 2003, 2004 e 2006. Ao participar destes eventos, de discusses na Internet, de
troca de e-mails e mesmo de conversas informais com outros pesquisadores, comecei a
suspeitar de que o material sobre o assunto bem maior que as poucas referncias
encontradas nos trabalhos divulgados. Esta suspeita e a falta de um referencial terico mais
2 A grafia de do nome de Vigotski varia muito entre as diversas tradues devido diferena entre o alfabeto romano e o cirlico. Utilizar-me-ei da traduo das obras da editora Martins Fontes, Vigotski. Nas citaes e nas referncias, a grafia est como no original. 3 LARP - Live action roleplaying, ou jogo de representao ao vivo, uma variante dos jogos de RPG e ser posteriormente abordado de forma mais aprofundada no texto. 4 Todas as tradues das citaes so de minha responsabilidade.
17
consistente me conduziram a fazer esta pesquisa de base que possa dar sustentao a meus
trabalhos.
No Simpsio de RPG e Educao de 2006, bem como em um levantamento
preliminar na base de dados do Google Acadmico, encontrei pesquisadores de diversos
nveis acadmicos (graduao, especializao, mestrado e doutorado) e reas (biologia,
design, engenharia, histria, matemtica, pedagogia, psicologia) com trabalhos em andamento
com o tema comum da aplicao dos jogos de representao no espao escolar. Contudo, no
h ainda uma reviso mais aprofundada destes trabalhos que mapeie os caminhos j trilhados
e os conceitos j formulados.
HISTRIA DA MINHA PESQUISA
Por se tratar de uma pesquisa que parte de um referencial dialtico e na qual
meu olhar sobre o objeto atua como prisma para as problematizaes e anlises, interessante
discorrer sobre a trajetria de minha relao com o objeto em estudo.
Meu primeiro contato com o RPG ocorreu na 6 srie do antigo 1 grau. Foi-
me apresentado por amigos como forma de entretenimento, por ser um tipo de diverso
diferente, embora mais similar ao videogame em nosso estilo de jogo inicial, e barato, uma
vez que bastavam alguns dados, um livro ou revista com o material do jogo, papel e caneta. A
maioria dos jogadores era da classe mdia ou mdia alta e os jogos se desenrolavam em um
shopping de So Paulo. Ao final da chamada gerao xerox (PAVO, 2000, p. 74), os livros
comeavam a ser traduzidos, os card games estavam em seu incio e o material era em grande
parte importado. No entanto, desenhos animados como He-Man e Caverna do Drago, o
ltimo baseado em um jogo de RPG, o Dungeons & Dragons, permitiam-me certa
familiaridade com a fantasia medieval. Com o lanamento das primeiras revistas de RPG, que
incluam mini-sistemas para jogo, comecei a jogar na casa de amigos. Havia tambm jogos
simplificados lanados como brinquedos, como o Hero Quest, um jogo de tabuleiro lanado
pela Estrela que se assemelha muito aos primeiros RPGs. Comprei livros e dados e me tornei
freqentador assduo de uma pequena loja de RPG de So Paulo at me mudar para Londrina
em 1996, onde conheci uma nova loja, novos amigos e novos jogos.
A problematizao da relao entre RPG e escola comeou para mim em
1996, na 1 srie do segundo grau, quando jogava com um grupo de amigos nos intervalos das
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aulas, na biblioteca ou na sala de aula. No entanto, tivemos de abandonar nossas prticas
quando o RPG foi considerado um jogo de azar por se utilizar de dados e, portanto, proibido
no colgio. Na 3 srie, curiosamente, meus amigos e eu fomos convidados pela direo da
escola e pela professora de literatura a ensinar s turmas dos anos iniciais a jogar RPG para
ajudar no vestibular. A professora disse ter conhecido o potencial do RPG como motivador
de leituras por meio de um material do MEC para as turmas de correo de fluxo. Esta foi a
primeira vez que me interessei por verificar outras qualidades de meu passatempo.
Durante minha graduao em psicologia, tive algumas oportunidades de me
aproximar do RPG como um objeto de estudo. A primeira delas ocorreu com um colega de
classe, outro jogador de RPG, nas nossas primeiras aulas de pesquisa experimental. Na poca,
grande parte de nosso referencial terico era da rea de comportamentalismo radical, tambm
conhecido como behaviorismo radical, de Burrhus Frederic Skinner. Sob esta perspectiva,
elaboramos um experimento para identificar, em uma situao de teste experimental, a
possibilidade de uma pessoa generalizar conhecimentos adquiridos em uma sesso de jogo.
Por problemas metodolgicos decorrentes de nossa inexperincia como estudantes do
primeiro ano de graduao, os dados obtidos no foram relevantes.
No quarto ano, estava envolvido em discusses sobre a definio do RPG e
a diferena entre este e os card games com uma professora de psicologia escolar,
veementemente contra o uso de RPG na escola. Ao explorar melhor o assunto, descobri que as
pessoas que no conhecem estes jogos os tratam como o mesmo tipo jogo (ver as ilustraes 1
e 2, nas quais perceptvel a diferena visual entre eles, alm da jogabilidade5).
5 Pode-se dizer que jogabilidade o conjunto de regras, aes, procedimentos e objetos grficos textuais e/ou audiovisuais que compem a interao entre os usurios de um determinado jogo entre si e entre os elementos do jogo. Em outras palavras, a forma como se joga e os motivos pelo qual se joga desta forma e como o jogo se comporta de acordo com as aes dos usurios dentro de sua interface (WIKIPEDIA, 2008).
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Ilustrao 1 Disputa de Magic: the gathering um Card Game Fonte: http://www.wizards.com/sideboard/images/MI00/772.jpg
Ilustrao 2 Grupo jogando RPG Fonte: http://lh4.ggpht.com/rpgararaquara/SDqrDd-sHII/AAAAAAAACsE/dpQmIvhvKJg/DSC01661.JPG?imgmax=512
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As reflexes mais importantes surgiram de uma srie de atividades
desenvolvidas em meu ltimo ano de graduao, em 2003: um estudo terico sobre o RPG e a
escola, a participao como ouvinte no II Simpsio de RPG e Educao e a realizao de
oficinas pedaggicas de jogos de representao em uma instituio para jovens em situao de
risco social na cidade de Londrina. As duas primeiras ampliaram meu referencial terico e a
compreenso do objeto, ao mesmo tempo em que comeava a ter maior contato com a teoria
vigotskiana. J a ltima, com o conceito de mediao e do desenvolvimento das funes
psicolgicas superiores de Vigotski, levou-me a propor uma nova relao entre os jogos de
representao e o espao escolar. Fui, assim, levado para os campos frteis da pesquisa em
educao.
Em 2005, um professor de psicologia, supervisor de estgio em psicologia
escolar da poca da graduao, aconselhou-me a mudar o enfoque de minha pesquisa. Para
montar uma proposta metodolgica de interveno utilizando RPG, era preciso antes
estabelecer um referencial terico consistente, o que no havia na poca. Assim, ele me
indicou um estudo sobre o prprio campo de pesquisa, o que constituiu a proposta de meu
mestrado.
Minha passagem pelas disciplinas do mestrado e o contato com os textos de
autores como Elhammouni (2002) e Fairchild (2004) aumentaram consideravelmente minhas
preocupaes de cunho epistemolgico e metodolgico. Uma viso mais crtica destes
assuntos passou a permear meus textos e, portanto, a concepo desta pesquisa. Acredito que
qualquer trabalho acadmico cientfico ou que siga estes padres deve apresentar coerncia
terico-metodolgica, bem como compreender com clareza o papel de seu trabalho e da
cincia, independentemente da viso de cincia do pesquisador6.
Outra experincia importante que ampliou minha viso sobre a escola e a
educao ocorreu quando trabalhava como tcnico administrativo em uma escola pblica.
Mesmo formado em psicologia e aluno de mestrado em educao, eu no podia intervir; no
entanto, tive acesso a muitas informaes sobre o processo escolar e conversei com alunos,
professores, funcionrios e administradores. Tive, assim, uma viso da escola mais prxima
realidade. Minhas experincias em psicologia organizacional tambm me permitiram analisar
questes referentes escola como uma instituio quase totalitria. Aprendi muito sobre as
relaes entre o funcionamento da escola e o aparelho de governo estadual, ou seja, a
influncia da poltica no dia-a-dia escolar. Conheci pessoas que lutam contra toda uma
6 Uma discusso mais detalhada sobre estas questes pode ser encontrada em Luna (1988).
21
estrutura para fugir do ensino no qual o professor finge que ensina e o aluno finge que
aprende. Por 18 meses, as questes que levantei no dispunham de um escape, de modo que
meu corpo adoeceu. Essa experincia hospitalar foi muito ruim e, assim que tive oportunidade
de me dedicar exclusivamente pesquisa em educao, sa da escola e pedi exonerao do
cargo de tcnico administrativo, no por medo, mas por querer voltar escola, desta vez
capaz de mudar algo.
Assim no basta ser apenas pesquisador e, portanto, senti grande prazer em
meu estgio em docncia, ao fazer algumas alunas do ltimo ano de pedagogia refletirem
sobre as implicaes das teorias vigotskianas em sua prtica escolar. Em suas falas, elas
expressavam a mudana de sua viso de mundo; espero, daqui algum tempo, reencontr-las e
descobrir que o local onde trabalham mudou. Desta forma pretendo retornar a escola e um dia
voltar especificamente quela onde trabalhei e reencontrar alguns dos educadores que ainda
trabalham nela.
Esta pesquisa , portanto, o comeo de meu caminho para a docncia, que
chamamos no RPG de background ou preldio da personagem. Treinei algumas de minhas
habilidades, tracei mapas e tenho alguns sonhos, mas a aventura de verdade comea agora.
SOBRE ESTA PESQUISA
Nos dois prximos captulos deste trabalho, apresentarei minha
fundamentao terica. No primeiro deles, descreverei o RPG, sua histria e alguns trabalhos
estrangeiros e questes que considero relevantes para a definio do RPG como objeto de
estudo; no outro, apresentarei as teorias de Vigotski e algumas articulaes entre sua teoria e
o RPG.
O quarto captulo tratar da fundamentao metodolgica e da descrio dos
procedimentos de coleta de dados e de anlise.
No quinto captulo, apresentarei os meus apontamentos tericos derivados
da anlise dos materiais em relao a concepes de educao, anlises dos materiais
pedaggicos e as apropriaes dos pesquisadores de RPG das teorias de Vigotski.
Em meu ltimo captulo fao algumas concluses sobre este trabalho. Alm
disso, os fichamentos realizados e uma lista de referncias sobre RPG se encontram nos
Apndices.
22
CAPTULO 1 RPG
Tenho aqui um conjunto de histrias para contar; mas sou limitado a
palavras quando tenho que descrever uma verdadeira fbrica de imagens e sonhos, viagens e
desafios, uma verdadeira cornucpia moderna de fantasia. Como descrever estes jogos, mas
ainda mantendo os mistrios e fazendo dos leitores exploradores de novos mundos, novas
civilizaes, audaciosamente indo onde nenhum humano jamais esteve7? disso que se
tratam os jogos de representao: a transformao do popular e conhecido em algo novo e
surpreendente, com novas perspectivas. Essa a graa do jogo.
Escrever sobre o RPG traz certa nostalgia. Quase todo jogador de RPG j
teve de explicar alguma vez o seu hobby e alguns deles, inclusive eu, escreveram para sites de
Internet e revistas ou deram palestras com este tema. Mesmo que a pessoa observe o jogo,
muito comum a pergunta mas como que se joga isto? Como aprendo a jogar?. Pretendo
neste captulo explorar algumas questes sobre o RPG, mas recomendo para uma melhor
compreenso a participao em uma aventura de RPG de mesa, pois [...] a compreenso
qualitativa da representao de papis, como ela vivenciada, porque praticada de certas
maneiras e quais so seus potenciais, exigem uma experincia tal que s pode ser adquirida
tornando-se o prprio roleplayer ou larper.(MYR, 2004, p. IX). No sou to radical
quanto Myr para afirmar que apenas jogadores de RPG podem fazer pesquisas sobre RPG,
mas os pesquisadores devem conhecer seu objeto de estudo, assim importante no conhecer
7 Frase de abertura da srie Jornada nas Estrelas: A Nova Gerao, uma referncia constante nos RPGs de fico cientfica.
23
o jogo por textos e entrevistas, mas tambm assistindo sesses de jogo, conhecendo os locais
de encontro de jogadores e o diferenciando de jogos com temtica semelhante.
Ilustrao 3 Grupo jogando RPG Fonte: Foto do autor.
Poderamos dizer que os jogos de representao (JR), mais conhecidos no
Brasil como RPG (do original em ingls roleplaying games), so atividades cooperativas nas
quais um grupo de jogadores, geralmente em nmero de quatro a dez, cria uma histria de
forma oral, escrita ou animada e no-linear, utilizando-se como plano de jogo a imaginao,
esboos, gestos, falas, textos e imagens. Cada um dos jogadores, com exceo de um,
representa uma personagem da histria, com caractersticas prprias pr-definidas. O jogador
restante assume o papel de narrador (ou mestre de jogo, entre outros nomes), sendo
responsvel por descrever o cenrio, alm de representar todos os coadjuvantes, antagonistas
e figurantes, denominados non-player characters ou mais comumente NPC. No existe
competio direta entre os jogadores (a no ser que essa faa parte da trama). , portanto, um
jogo de socializao de pequenos grupos, como mostrado na Ilustrao 3.
24
Ilustrao 4 Heris da animao Caverna do Drago com um dos viles da srie ao fundo. Fonte: http://chris2fer.files.wordpress.com/2008/04/dnd.jpg
Um exemplo prximo desta interao ocorre no desenho animado Caverna
do Drago8, inspirado no jogo de RPG Dungeons & Dragons (D&D), ttulo original em
ingls desta animao: os jogadores atuam como os heris perdidos em um mundo
desconhecido (Bob, Sheila, Hank, Presto, Erik e Diana), o narrador como o Mestre dos Magos
assim como todos os personagens restantes e o cenrio onde se desenvolve a histria.
Da mesma forma, o narrador prope um cenrio imaginrio aos
participantes, os quais devem imaginar e simular aes neste ambiente, ao longo da histria9.
O narrador do jogo encarregado de analisar a validade destas aes e julgar quais sero as
conseqncias das mesmas dentro do cenrio, muitas vezes por meio de acessrios de
aleatoriedade, como poliedros (dados) mostrados na Ilustrao 5.
8 A Ilustrao 4 mostra a capa do DVD americano deste desenho animado, exibido, at a presente data, nas manhs de segunda sexta-feira na rede de televiso Globo. 9 Ver Apndice 1 para uma descrio de incio de sesso de jogo e o Apndice 2 para o dirio de uma personagem para uma perspectiva de dentro do jogo.
25
Ilustrao 5 Dados de RPG. Fonte: Foto do autor
1.1 HISTRIA DO RPG
Existem alguns textos que descrevem a histria do RPG com uma maior ou
menor profundidade. No objetivo deste trabalho reapresentar a histria completa do RPG,
mas acho fundamental apontar o contexto no qual surgiu o jogo Dungeons and Dragons
(D&D).
Fine (2002) apresenta uma boa descrio da histria do RPG em seus
primeiros anos, falando sobre possveis influncias na formao do RPG (jogos de guerra,
jogos de simulao e o folie deux), como foi o lanamento do D&D, os primeiros
comerciais jogos lanados, como eram os primeiros grupos de jogo e os seus cenrios.
Mackay (2001) prope uma nova abordagem para o campo do RPG em seu estudo, sem,
entretanto, se aprofundar na questo da histria do RPG. Schick (1991) se prope a construir
a histria do RPG; no entanto, seu livro na verdade um grande catlogo dos ttulos
comerciais de RPG10 lanados nos EUA de 1974 at seu lanamento, e embora fornea
10 Uma lista mais completa e atualizada pode ser encontrada em http://www.darkshire.net/~jhkim/rpg/encyclopedia/index.html e descries mais detalhadas, em http://index.rpg.net/.
26
timas colaboraes na questo histrica, principalmente sobre as origens e os primeiros anos
do D&D, o material no esgota o tema. Fannon (1999) tambm faz um levantamento
histrico e mercadolgico dos jogos de RPG. Darlington (1999) se prope a fazer um
detalhamento do histrico do RPG.
As anlises da maioria destes levantamentos histricos sobre o RPG so
pautadas sob dois enfoques: na anlise do mercado do RPG, e na anlise das diferenas em
game design e editorao. Ao ler estes textos percebi que essas anlises se restringem aos
EUA, raramente so contextualizadas historicamente e no se referem s duas grandes
mudanas que influenciaram muito a indstria e a forma de se jogar RPG atualmente: o
lanamento da 3 edio do Dungeons & Dragons11 e a grande popularizao dos massive
multiplayer online roleplaying games (MMORPG). No encontrei um texto que aprofunde a
questo do aparecimento do RPG em terras tupiniquins, mesmo com o crescente nmero de
pesquisas sobre o tema, de forma que a histria do RPG no pas, sob a perspectiva dos textos
aos quais tive acesso, se reduz geralmente indicao das datas dos primeiros lanamentos
por editoras nacionais e uma breve anlise de mercado.
11 Foi anunciado recentemente o lanamento da 4 edio do D&D incorporando novas estratgias de relacionamento dos jogadores entre si e com a empresa Wizards of the Coast , detentora dos direitos do jogo, numa tentativa de atrair jogadores de MMORPG para o RPG de mesa e os CSG.
27
lustrao 6 Caixa da primeira edio do D&D. Fonte: http://michaelcorey.ntirety.com/Portals/1101/images/dnd_Box1st.jpg
1.1.1 Ancestrais
Datar o primeiro jogo de RPG no fcil, pois muitos alegam ter jogado o
que viria a ser denominado RPG posteriormente (MASON, 2004, p. 1). Mesmo o Dungeons
& Dragons, primeiro jogo considerado RPG por diversos autores, no se autodenominava
como tal, (conforme pode ser visto na Ilustrao 6). Por se tratar de um ttulo comercial e por
ser a histria do RPG constantemente marcada pelo D&D at hoje, considero-o como o
primeiro RPG comercial.
28
Uma das maiores influncias no surgimento dos RPGs foram os war games
(jogos de guerra) modernos. Estes derivam de jogos como o xadrez e o go, de origem mais
remota, por volta do terceiro milnio antes de Cristo (MURRAY apud FINE, 2002, p. 8). A
partir destes jogos surgiu na Alemanha, por volta de 1780, um jogo chamado xadrez de
guerra. Em 1811, este foi revisado e adaptado por Herr von Reiswitz para uso no treinamento
de oficiais prussianos, com verses posteriores criadas por outros exrcitos (FINE, 2002, p.
8), sendo ento denominado Kriegspiel (jogo de guerra). Em 1913, Herbert George Wells
escreveu nos EUA o primeiro conjunto de regras baseado no Kriegspiel, voltado para
amadores, intitulado Little Wars. A partir da dcada de 50, este tipo de jogo comeou a
ganhar popularidade entre os jovens norte-americanos, surgindo ento algumas empresas e
diversos grupos de jogo (FINE, 2002, p. 9). Atualmente, os jogos de guerra ainda se
apresentam em edies contemporneas como a mostrada na Ilustrao 7.
Ilustrao 7 Edio contempornea do Kriegspiel. Fonte: http://www.bibliopolis.org/graficos/libros/cap.01%20-%20Kriegspiel.jpg
Mackay (2001, p. 14) fez uma lista do que considerou alguns dos jogos que
mais influenciaram no desenvolvimento da jogabilidade da primeira edio do D&D:
Kriegspiel (1811), Strategos (1880), Little Wars (1913), The Fletcher Pratt Naval War Game
(1940); Tactics (1953), Gettysburg (1958), Diplomacy (1961) e Chainmail (1971).
29
Na dcada de 60, Dave Wesley, um jogador curioso pelas teorias por trs
dos jogos de guerra e frustrado por ver grandes batalhas terminarem em disputas de
interpretao de regras, resolveu fazer experimentos com estes jogos. Partindo da idia de
juiz imparcial retirada do jogo Strategos e considerando jogos com vrios jogadores nos quais
o ganho de um no implica necessariamente na perda de outro (SCHICK, 1991, p. 17),
[...] ele projetou e foi juiz de uma sesso de jogo de miniaturas ambientado na era das guerras napolenicas, numa cidade chamada Braunstein, uma cidade entre dois exrcitos em conflito. Alguns jogadores representaram elementos dos exrcitos que haviam acabado de entrar na cidade, e outros representavam faces de dentro da prpria cidade. A faco de cada jogador tinha objetivos e habilidades diferentes. Os jogadores, acostumados a batalhas de peas entre exrcitos, nunca haviam encontrado nada como isso antes, mas logo estavam bastante concentrados em todos os tipos de intriga, com suas peas perseguindo umas as outras em volta da cidade em miniatura de Braunstein. O jogo havia se dissolvido num caos aparente, e os exrcitos nunca chegaram cidade (SCHICK, 1991, p.17).
Ainda de acordo com Schick (1991, p.18), Wesley considerou o jogo um
fracasso, mas os jogadores adoraram e logo pediram por outros Braunsteins. Aps alguns
anos de jogo, em 1970, Dave Wesley e seus companheiros apresentaram um jogo com as
seguintes inovaes:
Se os jogadores tm objetivos diferentes ou vo agir em conjunto em vez de uns contra os outros, o jogo precisa de um juiz para manobrar seus oponentes, descrever o ambiente e decidir que regras se adequam a cada situao; Se cada jogador possui apenas uma miniatura de personagem, aquela miniatura pode representar o jogador; Personagens podem ser utilizadas vrias vezes e sesses individuais de jogo podem ser ligadas entre si numa campanha contnua; Como o cenrio no se restringe mais somente a um tabuleiro, as personagens podem se movimentar para qualquer lugar, em um cenrio mais rico e amplo. Da mesma forma, a aventura no se limita mais a combater outras miniaturas, ampliando as possibilidades de interpretao e do desenvolvimento da histria. (SCHICK, 1991, p.18).
Dave Arneson, um dos companheiros de jogo de Dave Wesley, aps ser
juiz12 de alguns jogos ambientados no velho-oeste americano e na Europa napolenica, trouxe
outras inovaes. Influenciado por autores de fantasia medieval, principalmente John Ronald
Reuel Tolkien, autor de O Hobbit, Dave Arnerson desenvolveu seu prprio cenrio medieval
fantstico, chamado Blackmoor. Neste cenrio, introduziu a idia de evoluo da
12 A nomenclatura aqui se refere ao papel posteriormente denominado mestre de jogo ou narrador.
30
personagem, em que esta aprimorava suas habilidades quanto mais monstros derrotasse.
(SCHICK, 1991, p.18)
Os jogos Blackmoor utilizavam miniaturas em mesas [...]. Mas isso mudou quando Arneson enviou os jogadores para resgatarem uma princesa das masmorras sob o castelo Blackmoor. Arneson havia criado mapas desses vastos labirintos, que foram utilizados nas outras sesses de forma que os jogadores deixaram a mesa de lado e se aventuraram pelos corredores imaginados dessa masmorra (SCHICK, 1991, p.18).
Apesar de os jogos Blackmoor j poderem ser considerados RPGs, Dave
Arneson no tinha escrito um conjunto de regras coerente e suas decises como juiz mudavam
de jogo para jogo, o que desagradava a seus jogadores. Arneson se correspondia na poca com
outro f de jogos de guerra e fantasia medieval, Gary Gigax, que havia criado um sistema de
regras para combate com miniaturas medievais em seu jogo Chainmail. Um suplemento deste
jogo continha regras para combates de miniaturas com elementos de fantasia, como efeitos
mgicos, e a possibilidade de uma miniatura representar uma personagem individual (ver
Ilustrao 8). Era justamente o que faltava em Blackmoor, de modo que Dave Arneson se
dirigiu para a cidade de Gary Gigax e lhe apresentou seu jogo. Gary Gigax e seus
companheiros ficaram entusiasmados com a novidade, e Gigax, particularmente, vislumbrou
as possibilidades daquele tipo de jogo e se comprometeu a escrever um sistema completo e
organizado de regras, o que fez em parceria com Arneson. Assim, foi lanado em 1974 o
Dungeons & Dragons, o primeiro e mais influente RPG at hoje em suas diversas edies
(SCHICK, 1991, p.19).
31
Ilustrao 8 Combate em uma sesso de D&D 3.5, em que se utilizam miniaturas como nos war
games Fonte: Foto do autor
1.1.2 Desenvolvimento do RPG
Os textos de Fannon (1999) e Darlington (1999) trazem uma descrio da
indstria de RPG americana e as mudanas na forma de se jogar RPG at 1999. Como o livro
de Schick (1991), estes textos no so acadmicos: no apontam, portanto, suas fontes e
referncias com freqncia. Constituem-se, no entanto, no material encontrado que aborda o
tema, e so utilizados como referncia em alguns trabalhos acadmicos.
Segundo estes trs autores, o surgimento e a expanso dos jogos de RPG
ocorreram no perodo de 1974 ao incio da dcada de 80. No incio predominam o D&D e
seus clones, com pouca variao quanto mecnica de regras e jogabilidade. Os jogos eram
32
produzidos por amadores, comumente jogadores descontentes com o material oferecido pela
Tatical Studio Rules (TSR), empresa que lanou o D&D. Com o crescimento do mercado,
houve o aumento da concorrncia e, com isso, o aprimoramento da qualidade dos jogos, agora
produzidos de forma profissional.
No incio da dcada de 80, comeam a se multiplicar os novos cenrios de
RPG alm de fantasia medieval, como os de super-heris das histrias em quadrinhos, fico
cientfica, terror e comdia. Surgem novos sistemas de regras com mecnicas bem
diferenciadas. Um exemplo o sistema de pontos de habilidade do jogo Traveller, no qual a
personagem ganha pontos no decorrer da aventura, podendo gastar estes pontos para adquirir
ou aprimorar habilidades; em contraposio, no sistema de nvel apresentado no D&D, o
jogador adquire um conjunto pr-definido de habilidades em cada nvel atingido.
lanado em 1977 o Advanced Dungeons & Dragons (AD&D) como uma
alternativa mais complexa ao D&D. Nesta poca comeam a ser lanados os primeiros jogos
de computador e videogame inspirados em RPG. Surgem os primeiros RPGs genricos, que
so um conjunto de regras sem um cenrio prprio, como o GURPS (Generic Universal
Roleplaying System). So lanados tambm vrios filmes e livros inspirados no RPG, como a
srie de livros Dragonlance e o filme Willow na Terra da Magia. (DARLINGTON, 1999,
parte IV)
Tambm neste perodo vm tona as primeiras acusaes do RPG como
promotor de desordens psquicas, do satanismo e da violncia, principalmente por uma
organizao intitulada BADD (Bothered About Dungeons and Dragons) nos EUA, que caiu
em descrdito aps investigaes promovidas pela GAMA (GAme Manufacturers
Association). No entanto, ainda so comuns, mesmo no Brasil, casos de pnico moral, nos
quais o RPG acusado de causar os mais diversos malefcios, ao contrrio do que apontado
por diversos estudos acadmicos e investigaes mais profundas13. (DARLINGTON, 1999,
parte IV; VASQUES, 2008, p. 28)
At ento o enfoque dos jogos era o combate e os sistemas de regras
complexos, o que comea a mudar no final da dcada de 80 e no comeo da dcada de 90.
Um dos primeiros jogos a proporcionar um sistema de regras mais simplificado e orientado
para a elaborao de narrativas o Ars Magica de Mark Rein*Hagen, o qual dedica um
captulo a explicar aos narradores como elaborar um bom enredo e serem bons narradores.
13 Em sua dissertao de mestrado, intitulada As potencialidades do RPG (Role Playing Game) na Educao Escolar, Rafael Carneiro Vasques faz uma anlise aprofundada de algumas dessas acusaes nos EUA e no Brasil. (VASQUES, 2008)
33
Tambm surgem jogos mais sombrios como Cyberpunk 2020 e Shadowrun, ambientados em
um futuro decadente e hostil, inspirados em livros e filmes como Blade Runner, e o romance
Neuromancer, de William Gibson.
Neste perodo foi lanado um jogo que modificou profundamente a forma
de se jogar RPG: Na GenCon14 em 1991, Mark Rein*Hagen apresentou um jogo que mudou o hobby para sempre e uma companhia que iria enriquecer com ele. O jogo era Vampiro: A Mscara e a companhia era a White Wolf. Rein*Hagen j havia trabalhando antes no Ars Magica e introduziu algumas de suas idias impressionantes de narrao pica de histrias para esse jogo. No entanto, Vampiro foi muito mais do que isso. Ele capturou o terror sobrenatural de Cthulhu e o lado duro, paranico e sombrio do cyberpunk, alm de contar com heris sobrenaturais superpoderosos que ainda eram a tendncia popular. E mais, estabeleceu uma ligao direta com a subcultura gtica. Chegando ao mesmo tempo em que coisas como O Corvo, Entrevista com Vampiro e Batman: O Cavaleiro das Trevas estavam colocando as produes culturais gticas para o centro das atenes, Vampiro esteve na crista de uma onda de popularidade e no foi engolido por ela. Ele se tornou rapidamente popular entre os praticantes do hobby, mas teve resultados ainda mais impressionantes com o pessoal de fora. Como se utilizou de uma nova cultura em pleno florescimento, Vampiro atraiu mais novos jogadores para o hobby do que Guerra nas Estrelas havia feito (DARLINGTON, 1999, parte VIII).
Vampiro: A Mscara, lanado no Brasil em 1994 pela editora Devir, alm
de trazer novos jogadores e mudar o enfoque do jogo para a criao de enredos mais
dramticos, impulsionou a popularizao de uma outra forma de se jogar RPG denominada
LARP. Em um live action, muitas das aes das personagens so realizadas fisicamente, como
se fosse um teatro improvisado, e no apenas oralmente como no RPG de mesa, como
mostrado na Ilustrao 9. Aparentemente Vampiro foi inspirado nos jogos de live action
freqentado por Mark Rein*Hagen, em cujo livro incentivada a ao ao vivo.
14 GenCon vem de Genova Convention, uma srie de eventos sobre war games nos EUA desde 1967. Inicialmente era um encontro de jogadores de war games, mas aps o lanamento do D&D passou a ser uma conveno principalmente de RPG, envolvendo entusiastas de jogos em geral.
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Ilustrao 9 Foto de um grupo de jogadores em um LARP de Vampire - The Masquerade Fonte: Google imagens.
difcil dizer que tipo de jogo surgiu primeiro, se o RPG de mesa ou o
LARP, uma vez que ambas surgiram concomitantemente e no mesmo contexto cultural. Festas
de carter folclrico/tradicional nos EUA e na Europa, como as Cavalhadas que ocorrem
todos os anos no interior do Paran, deram origem a grupos de pessoas interessadas no estudo
e na recriao do modo de vida em diversos perodos histricos, principalmente a Idade
Mdia e a Renascena europia. Os estudiosos de LARP Nrdicos poderiam dizer que
algumas dessas recriaes histricas, como as da Society for Creative Anachronism S.C.A.,
que j possuam regras para simulao de combate e at mesmo elementos de fantasia como
magia, j eram LARP. Vrios dos primeiros jogadores de RPG faziam parte deste tipo de
organizao (FINE, 2000, p. 256). Podemos dizer que os LARP ligados ao RPG de mesa
surgiram quando jogadores de RPG de mesa usaram seus cenrios, personagens e parte de sua
mecnica de regras nas simulaes das sociedades de recriao histrica. Vale ressaltar que
existem poucas fontes e referncias sobre a histria do LARP, sendo esta encontrada muitas
35
vezes diluda nos poucos textos da histria do RPG, e em enciclopdias virtuais como a
Wikipedia que apresenta um verbete sobre o assunto15.
Ilustrao 10 Grupo de jogadores em um LARP de fantasia medieval. Fonte: http://www.blazingsword.com/images/estrella2007/Estrella2007%20188.jpg
Em 1994 surgiu um outro tipo de jogo que abalou a indstria do RPG e
causou o fechamento de vrias empresas: os jogos de estratgia colecionveis (colectible
strategy games - CSG). O primeiro destes e seu maior representante at os dias de hoje
Magic - The Gathering. Desenvolvido pelo matemtico Richard Garfield para ser jogado
durante as convenes de RPG, consiste em uma mistura de jogo de estratgia, jogo de cartas
e figuras colecionveis, como as figuras de jogadores de basebol americano e os lbuns de
figurinhas nacionais. Sua mecnica de regras simples, portabilidade e uma grande
possibilidade de estratgias de jogo fizeram deste jogo um sucesso de vendas imediato. Para
atender demanda, a Wizards of the Coast, empresa que lanou Magic, cancelou todas as
suas linhas de RPG, dentre as quais o renomado Ars Magica, atualmente publicado pela 15 http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_live_action_role-playing_games.
36
editora Atlas Games. Muitos jogadores de RPG deixaram de comprar livros, suplementos e
material de jogo para comprar Magic, o que afetou drasticamente todo o mercado do RPG nos
EUA. Algumas empresas foram falncia, enquanto outras lanaram seus prprios CSG. Com
o anncio da falncia da Tatical Studio Rules, primeira e at ento maior empresa de RPG,
muitos chegaram a falar no fim do RPG. (DARLINGTON, 1999)
Mas um novo comeo partiu justamente da empresa taxada como vil desta
histria, a prpria Wizards of the Coast. Esta comprou a Tatical Studio Rules e lanou em
2000 a terceira edio de Dungeons & Dragons com uma nova abordagem de mercado e
marketing: o sistema D2016. Sendo de licena aberta, qualquer empresa poderia lanar
material com este sistema sem pagar royalties; no entanto, no poderia publicar o conjunto
principal de regras, composto pelos trs manuais bsicos de jogo produzidos pela Wizards of
the Coast: o Livro do Jogador, o Livro do Mestre e o Livro dos Monstros. No exterior, com a
campanha de marketing bem agressiva da empresa, um crescimento de mercado e o
surgimento de novas empresas, a maioria das quais especializada na produo de suplementos
e variaes do sistema D20, essa estratgia trouxe novos jogadores para o RPG.
Ilustrao 11 D20, um dado de 20 faces utilizado no RPG D20. Fonte: http://www.tritex-games.co.uk/images/dscn2774.jpg
16 Este nome vem da utilizao de poliedros como o principal fator de aleatoriedade. Destes poliedros, o mais utilizado o dado de vinte faces, comumente chamado pela abreviao D20, mostrado na Ilustrao 11.
37
Foi lanada em junho de 2008 a quarta edio do D&D com uma grande
reviso e atualizao do sistema D20, material de suporte para o jogo e comunidades online,
em uma tentativa de atrair o crescente pblico dos MMORPG para o mercado de livros,
suplementos e materiais de jogo.
1.1.3 RPG no Brasil
Para reconstruir a histria do RPG no Brasil, recorri aos lanamentos dos
principais ttulos nacionais. A literatura disponvel sobre este assunto se utiliza de fontes
comuns e breves, motivo pelo qual apresento a minha percepo acerca da trajetria do RPG
no pas.
O RPG veio para o Brasil no final da dcada de 80 por meio de
intercambistas e de professores de cursos de ingls que traziam o material dos EUA. A
disseminao do RPG foi garantida principalmente pela distribuio de fotocpias deste
material (PAVO, 2000, p. 74).
difcil definir a data de lanamento do primeiro RPG no Brasil. Marcatto
(1996, p. 15) aponta o lanamento da srie de aventuras solo Aventuras Fantsticas (cujo
ttulo original Fighting Fantasy) pela editora Marques Saraiva em 1985. Na Biblioteca
Nacional o registro mais antigo o do livro- jogo Aventuras Fantsticas - A cidadela do Caos
de 1990, no entanto a editora lanou alguns livros sem ISBN e sem data de lanamento no
Brasil, como o caso do livro RPG: Aventuras Fantsticas uma introduo aos role-
playing games. Alm da srie Aventuras Fantsticas temos o lanamento do GURPS pela
editora Devir em 1991 como um marco do RPG no Brasil.
O primeiro RPG produzido por brasileiros foi o Tagmar17, tambm lanado
em 1991 pela editora GSA e acusado de ser um clone do D&D. Em 1992 esta mesma editora
lanou o primeiro RPG com cenrio totalmente brasileiro, o Desafio dos Bandeirantes, que
mistura lendas e mitos brasileiros com contedo histrico da poca das bandeiras. Tambm
em 1991, a Grow lanou uma verso simplificada e em portugus do D&D, chamada Dragon
Quest, e, um ano depois, o prprio D&D. Nesta poca, ocorreu em So Paulo o Encontro 17 Tagmar teve a produo interronpida com a falncia da editora GSA no final da dcada de 90. No entanto, em 2004, os autores concordam em abrir mo dos direitos de publicao e o jogo passa a ser de licena aberta. Surge assim o Tagmar 2, um RPG produzido de forma cooperativa e coletiva e distribudo gratuitamente na Internet. Maiores informaes em www.tagmar2.com.br.
38
Internacional de RPG, o primeiro do gnero no Brasil, com a palestra do criador do GURPS,
Steve Jackson.
A partir de 1994, o RPG comeou a se popularizar nos grandes centros com
o lanamento da verso em portugus do sistema Storyteller18 com o seu primeiro e principal
ttulo Vampiro: A Mscara pela editora Devir. Nesta poca foram lanados dois peridicos
sobre o tema: a revista Drago Dourado, que tratava sobre RPG, embora enfocasse nos
quadrinhos de fantasia e na venda de miniaturas, e a Drago Brasil, cujo nome foi modificado
a partir do terceiro nmero por problemas com o registro do nome. Mais tarde, a Dragon
Magazine, uma revista norte-americana sobre RPG, foi trazida ao Brasil pela Editora Abril,
que tambm lanou o AD&D em portugus. A linha de RPG desta editora teve, no entanto,
durao efmera, assim como outras revistas que surgiram e foram descontinuadas, como a
prpria Drago Dourado.
Em 1995, houve uma grande exploso de ttulos de RPG em portugus,
como Shadowrun e a continuao da srie Aventuras Fantsticas pela editora Marques
Saraiva. No mesmo ano, a editora Trama, renomeada como Talism e atualmente chamada
Melody, lanou o RPG nacional Defensores de Tquio (D&T), hoje em sua quarta edio,
mas sua edio mais jogada a terceira, motivo pelo qual conhecida popularmente como
3D&T.
O lanamento de Vampiro e a divulgao do AD&D em revistas de histrias
em quadrinhos de super-heris pela Editora Abril Jovem ajudaram a promover o RPG no
Brasil. Como os livros traduzidos eram mais caros, uma alternativa muito utilizada pelos
jogadores de RPG (PAVO, 2000) foi a utilizao de fotocpias. Logo surgiram, inspirados
em material estrangeiro, jogos nacionais como o Trevas, lanado pela editora Daemon em
1995.
Em meados de 1999, a editora Devir lanou uma srie de livros, dentre as
quais a srie mini-GURPS, voltada para jogadores iniciantes. Com regras simplificadas e
temas histricos, foi muito utilizada por educadores para atrair a ateno dos estudantes para
estes assuntos. So alguns de seus ttulos Entradas e Bandeiras, Descobrimento do Brasil e O
Quilombo dos Palmares.
Pereira (2003), em sua dissertao de mestrado, resume a histria do RPG
nos EUA e no Brasil em trs fases:
18 Sistema de RPG com regras simples e enfoque na narrativa.
39
Os RPGs de 1 fase (EUA: 1974/77; Brasil: 1991) tm uma visualidade inspirada em ilustraes de fbulas e contos de fada do final do sculo XIX e incio do XX, em quadrinhos que abordam temas de fantasia como "Prncipe Valente" e "Conan", e na obra de ilustradores como Frank Frazetta, Boris Vallejo entre outros. Encontramos uma homogeneidade de estilo de ilustrao, onde o cenrio a fantasia medieval e os sistemas de regras so quantitativos com personagens agrupadas em classe/nvel, onde a classe corresponde sua ocupao e o nvelao seu desenvolvimento. Na 2 fase (EUA: 1977/1991; Brasil: 1991/1993) temos a introduo de influncias vindas dos quadrinhos de diversos gneros e dos mangs, alm do cinema na visualidade. H uma diversidade de cenrios com a entrada da fico cientfica e os sistemas "genricos" que podem ser usados em qualquer cenrio. Existem produes que se concentram nas regras e outras nas "ambientaes". A diversidade de cenrios traz uma diversidade de estilos de ilustrao, como o mang, por exemplo. Outras tcnicas como a fotografia tambm so usadas, mas h uma unidade de estilo visual dentro de cada livro. A 3 fase (EUA: 1992; Brasil: 1994) abre com o RPG Vampire: The Masquerade 2nd ed. que traz um sistema de regras flexvel, centrado nas personagens, ambientao e narrativa, assim como a possibilidade de jogar com monstros (vampiros) como heris trgicos. A visualidade apresenta uma miscelnea de estilos e tcnicas diferentes dentro da mesma publicao, algo que no tinha sido feito at ento. perceptvel a influncia dos quadrinhos para adultos, como a linha Vertigo americana, cinema, televiso e videogames. O livro recheado de textos que se aproximam do literrio com poemas e narrativas em 1a pessoa, apresentando elementos do cenrio. (PEREIRA, 2003, p. 19)
O cenrio nacional mudou muito com o lanamento da 3 edio do D&D,
com seu sistema aberto D20, pela Devir em 2001. Aos poucos, surgiram outras pequenas
editoras, muitas de existncia efmera, que apenas traduziam ou produziam material para o
sistema D20. Com os sistemas Daemon e 3D&T e o cenrio de jogo Tormenta, a
popularidade dos jogos nacionais tambm aumentou, principalmente entre jogadores
iniciantes. No existe um estudo sobre esses movimentos do mercado de RPG, sendo estes
dados derivados de minha participao em eventos e listas de discusso. O mercado do RPG
passou por algumas crises, com o fechamento de lojas e editoras, mas parece ter alcanado
certa estabilidade desde 2006. O nicho de mercado de jogos para iniciantes com menor idade,
a partir dos 12 anos, deixado em aberto pela Grow e pela Estrela no final da dcada de 90, foi
preenchido pelo RPGQuest, lanado pela editora Daemon em 2005. Este jogo, por ser
distribudo em bancas de jornal, trouxe jogadores de menor faixa etria novamente para o
RPG. No existe um estudo sobre esses movimentos do mercado de RPG, sendo estes dados
derivados de minha participao em eventos e listas de discusso.
40
1.2 ESTUDOS SOBRE RPG
Antes de falar dos tipos de RPG e me delongar um pouco mais em suas
caractersticas, acho importante falar um pouco de minhas leituras para tratar deste assunto.
Existem atualmente vrias aproximaes tericas do objeto roleplaying game19 e no
objetivo deste trabalho expor de maneira exaustiva todas estas abordagens e ou suas principais
contribuies na ntegra. No entanto, uma exposio de parte destas teorias, principalmente no
que se refere definio dos jogos de representao, faz-se necessria como ponto de
referncia para as anlises do material investigado.
No existe ainda um corpo terico conciso sobre esta atividade cultural e
no so raros os casos em que o autor define RPG a partir de seu prprio referencial, o que
ocorre nas mais diversas reas de estudo (filosofia, game design, letras, pedagogia, psicologia,
sociologia e outros). Porm j h textos, tanto no Brasil quanto no exterior, que procuram
fornecer melhor embasamento para a definio destes jogos. Apresento a seguir algumas das
definies e das problemticas apresentadas por autores estrangeiros cujos textos tive contato,
pois acredito que suas obras possam contribuir para a formao de um corpo terico mais
aprofundado no Brasil.
Contudo, ressalto a necessidade de contextualizao destes saberes, uma vez
que o RPG encontra-se em ressonncia com a indstria de cultura de massa. Aprofunda-se,
assim, a afirmao de Myr (2004, p. IX), segundo a qual apenas por meio de tal dilogo
entre os diferentes centros ou subculturas onde a representao de papis praticada e
constantemente reinventada e redefinida, pode esse campo progredir de maneira duradoura.
No exterior, o primeiro pesquisador a estudar e definir RPG no meio
acadmico foi o socilogo Gary Alan Fine, cujo livro Shared Fantasy de 1983, republicado
em 2002, expe os resultados de sua pesquisa realizada entre 1977 e 1979 nos EUA. Nesta
pesquisa, Fine (2002) se prope a realizar um mapeamento sociolgico do RPG como uma
subcultura. Tenta, assim, descrever as relaes entre os jogadores, as caractersticas sociais
destes jogadores, as relaes com o jogo (como comeou a jogar, por que joga, etc.), alguns
elementos da dinmica e da mecnica do jogo, a relao da subcultura do RPG com outros
sistemas culturais e, por fim, as relaes entre o jogador e sua personagem. Sua obra
interessante para se ter um panorama de como e onde o RPG surgiu como fenmeno
19 O crescente interesse da academia por estes jogos se justifica pelo aumento da influncia destes no mercado de jogos eletrnicos e entretenimento (AARSETH, 2003, p. 1).
41
comercial e cultural. Entretanto, Mackay (2001, p. 171) aponta que este material [o livro e a
pesquisa de Fine], e isso deve ser enfatizado, tem mais de vinte anos, feito a partir dos
primeiros cinco anos de vida do RPG como produto comercial. Por isso a exatido e a
relevncia dos apontamentos das observaes de Fine ao RPG so, hoje, altamente
questionveis.
Ao preparar um catlogo para colecionadores de RPG, Schick (1991)
precisou definir RPG para selecionar o que iria ou no fazer parte de seu levantamento.
Apesar de ser fcil primeira vista separar RPG de outros jogos e de literatura, logo se
percebe que esta distino bem tnue e dinmica. Para Schick (1991, p.10) um RPG deve
consistir de uma contao de histrias interativa e quantificada. Em outras palavras, os
atributos, as habilidades e as caractersticas da personagem do jogador devem ser
quantificveis20. So tambm pontos importantes de sua definio o objetivo principal, que
contar uma histria na qual as personagens so os heris, e o fato de que essa histria
definida pelo resultado das aes das personagens. Assim, ele exclui as novelas de final
varivel, como o Endless Quest, mas mantm os solo gamebooks, conhecidos no Brasil como
livros-jogo ou aventuras solo, como a srie Aventuras Fantsticas, lanada pela editora
Marques Saraiva. Ele tambm exclui os LARP, por existir muito pouco material publicado e o
mercado ainda estar ainda no incio, o que mudou alguns anos aps a publicao deste
trabalho com a expanso do sistema storyteller. No foram inclusos tambm os RPGs de
computador, visto que constituem um tema muito grande e realmente merecem um livro
prprio (SCHICK, 1991, p.10). Aparentemente, ele incluiu nesta categoria os jogos de RPG
de videogame, mais esta uma extrapolao pessoal.
A obra de Schick tambm muito importante no que se refere s descries
de tipos de RPG. Geralmente, os estudos de RPG no Brasil descrevem o hobby de forma que
este aparenta ter apenas trs formas de jogo, representadas pelos ttulos comerciais Dungeons
& Dragons, GURPS e Vampiro. Schick (1991) mostra que, mesmo antes do lanamento do
RPG no Brasil, sua variedade j era bem maior que a apresentada pelos estudiosos brasileiros.
Alm disso, houve, na dcada de 90, uma verdadeira exploso de ttulos no exterior, com
vrios jogos experimentais como o Amber, um RPG sem dados ou qualquer outro acessrio
de probabilidade como cartas e roletas, e o Everway, no qual cartas retiradas aleatoriamente
de um baralho simblico, semelhantes a um baralho de tar, so utilizadas na criao de
personagens e na resoluo das aes. Outro detalhe do livro de Schick a insero de
20 Ver exemplo de ficha de personagem no Apndice 3.
42
diversos artigos e depoimentos de escritores e editores de RPG nos EUA entre as sesses de
seu catlogo.
Em 1996, Fannon lana o livro The Fantasy Roleplaying Gamers Bible,
para jogadores de RPG, no qual descreve o RPG, principalmente o chamado RPG de mesa,
com conselhos para o aprimoramento do jogo. Trata tambm sobre o mercado e a histria do
RPG nos EUA. Apesar de no ser um livro acadmico, muitas vezes referncia na questo
da histria do RPG, pois cobre desde suas fontes e origens at o ano de 1999, ano de sua
segunda edio. Embora trate sobre o hobby em diversos aspectos, incluindo como comear a
jogar, como organizar um grupo e at mesmo anlise de mercado, o livro no apresenta uma
definio de RPG, a qual encontrado no texto de forma diluda. Tambm pressupe que o
RPG j seja conhecido pelo leitor, o que no surpreende devido maior presena do jogo nos
EUA.
Outro livro sobre RPG que tive contato The Fantasy Role-Playing Game,
de Mackay (2001). Seu trabalho apresenta um cunho mais acadmico e defende a idia de
que o RPG uma forma de arte e de que sua crtica deve ir alm de avaliaes de design de
jogo. Introduz tambm uma apreciao da performance esttica do jogo. Mackay analisa os
jogos sob o conceito de performance a partir de quatro estruturas: cultural (o surgimento do
RPG, sua insero na cultura americana e sua participao no que o autor denomina
ambientes de entretenimento imaginrio, como os cenrios de Star Wars ou de O Senhor dos
Anis), formal (como ocorre o jogo e uma taxonomia de sua performance), social (a
reconstruo de produtos de arte na esfera cultural e sua relao com os jogadores) e esttica
(uma estrutura catrtica que encoraja a identificao com seu contedo e que persiste aps o
trmino da performance). O autor apresenta uma definio bem concisa e coerente de RPG, a
qual tomo como norte em meu trabalho:
[...] um sistema episdico e participatrio que inclui um grupo de regras quantificadas que auxiliam um grupo de jogadores e um mestre de jogo em determinar como as interaes espontneas de seus personagens fictcios so resolvidas. As interaes realizadas (performed) entre os personagens dos jogadores e os do mestre de jogo acontecem em sesses individuais que, agrupadas, formam episdios ou aventuras nas vidas destes personagens fictcios. (MACKAY, 2001, p.4) (grifos nossos)
Outra contribuio de Mackay para a compreenso do RPG o conceito de
ambientes de entretenimento-imaginrio (imaginary-entertainment environments), que podem
ser definidos como:
43
Cenrios fictcios que mudam com o tempo como se fossem lugares reais e so publicados numa variedade de veculos (por exemplo, romances, filmes, jogos de rpg, etc.), cada um em comunicao com os outros conforme contribuem para o crescimento, histria e status do cenrio. Como eles aparecem em tantas mdias, ambientes imaginrios de entretenimento so sempre colaborativos. De fato, com freqncia uma marca se torna mais importante do que o autor, diretor ou designer de jogos da manifestao mais recente desse ambiente; isso pode ser visto na proeminncia de Guerra nas Estrelas, Jornada nas Estrelas, Babylon 5, Forgotten Realms, Dragonlance, Thieves World e World of Darkness [...] Os ambientes imaginrios de entretenimento vem um cenrio como mero fundo para uma obra ou conjunto de obras. (MACKAY, 2001, p. 29)
Concomitantemente ao livro de Mackay, importantes transformaes
ocorreram no mercado do RPG, como o lanamento da 3 edio do Dungeons & Dragons em
um retorno s origens em termos de mecnica de jogo21, mas um avano em termos de
marketing e fenmeno de vendas, e a gigantesca expanso dos MMORPG. No plano
acadmico, houve o lanamento de algumas coletneas de artigos sob a forma de livro nos
EUA e um crescimento exponencial dos trabalhos acadmicos sobre RPG no Brasil a partir de
2001. Sobre as publicaes nacionais, abordarei este tema no corpo do trabalho, por ser o
cerne desta pesquisa.
Em uma tentativa de embasar estudos tericos de game design direcionado
ao RPG de mesa e auxiliar narradores a satisfazer seus jogadores, Ron Edwards elaborou uma
teoria, na qual descreve trs modos de jogo: competitivismo, simulacionismo e narrativismo.
As premissas competitivistas se concentram na disputa em relao a objetos ostensivamente externos ao jogo. Eles variam dependendo de quem est competindo com quem (jogadores contra jogadores, jogadores contra o mestre etc.), o que est em jogo, as condies de vitria e derrota e que tipo de pensamento estratgico empregado [...]. As premissas narrativistas se concentram na produo de um Tema por meio daquilo que acontece durante o jogo. O tema definido como um juzo de valor ou desgnio que se pode inferir a partir dos acontecimentos internos ao jogo. [...] As premissas simulacionistas geralmente se atm a seu diminuto papel de interesse esttico; o esforo, durante o jogo, desviado para a explorao22. Portanto a diversidade dos jogos simulacionistas decorre da diversidade daquilo que explorado (EDWARDS, 2007c, p.43).
21 De acordo com Paul Manson, 2004, p. 12. Ver Ilustrao 6. 22 A explorao envolve a imaginao de acontecimentos fictcios, estabelecida pela comunicao entre os participantes, e apresenta cinco componentes: personagem, cenrio, situao, sistema e aparncia (EDWARDS, 2007a).
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As teorias de Edwards so bem mais aprofundadas que os conceitos
apresentados acima. Parte delas tem sido apresentada aos jogadores brasileiros no formato de
uma srie de artigos na revista Drago Brasil desde a edio de nmero 121.23
Das coletneas de artigos a que tive acesso durante a formulao e o
decorrer desta pesquisa, cabe ressaltar o que denominarei aqui produo terica nrdica.
Essa produo originria de pases do norte da Europa (Noruega, Finlndia, Sucia e
Dinamarca) e est vinculada a eventos de encontro de jogadores de RPG, principalmente de
LARP. A cada ano ocorre de forma revezada um encontro de jogadores em um dos pases
acima citados, mas no existe uma organizao central nem mesmo em cada pas. Porm se
tornou uma tradio do evento uma srie de palestras de carter terico e at mesmo
acadmico, bem como o lanamento de livros com artigos, quase todos disponveis de forma
gratuita na Internet. Os temas e as abordagens so os mais variados, que abrangem desde uma
reviso das publicaes anglo-americanas sobre RPG e sua aplicao na educao at como
construir um bom personagem de jogo, manifestos artsticos e anlises da cena cultural do
LARP, entre outros (FATLAND, 2005, p.12).
Em um desses artigos, Mason (2004) faz um mapeamento dos primeiros 25
anos de discusses tericas anglo-americanas sobre RPG e faz algumas consideraes
importantes:
[...] casos de participao acadmica genuna so bastante infreqentes, e em geral recebidos com incompreenso no melhor dos casos, e escrnio no pior. [...] Um dos aspectos mais frustrantes dos jogos de RPG para quem est jogando por um tempo era a impermanncia de desenvolvimentos tericos. Como esse artigo demonstra, a maior parte dos textos sobre representao de papis apareceu em publicaes efmeras com tiragens muito baixas. Como resultado as idias eram disseminadas de maneira fraca. [...] Em geral, as principais caractersticas do jogo de RPG de lngua inglesa considerado nos 25 anos que se seguiram a publicao de Dungeons & Dragons tem a dicotomia (realismo vs. jogabilidade, diverso vs. seriedade) e taxonomia (os Caminhos Triplos/Qudruplos etc.) interessante notar como essas caractersticas correspondem a elementos estruturais do prprio jogo de D&D. Nem isso, nem a averso persistente de muitos role-players falantes de lngua inglesa teoria, sucedeu completamente em reprimir avanos na compreenso do fenmeno, mas no entanto a aceitao pelo grande pblico que muitos tericos anseia no parece estar mais prxima. Pode mesmo ser que apesar das origens da interpretao de papis na esfera cultural da lngua inglesa, apenas fora desse ambiente que ele pode ser examinado de maneira apropriada. (MASON, 2004, p. 4)
Ainda sob esta perspectiva, pode ser acrescentado um comentrio de
Dormans (2006, p.1):
23 A teoria completa e suas discusses podem ser encontradas em http://www.indie-rpgs.com/.
45
[...] Eu sinto que esses jogos so normalmente mal retratados na literatura acadmica. A imagem existente em geral moldada pela rolagem de dados frentica e o tipo de jogo atacar criaturas e acumular coisas favorecido pelos jogadores adolescentes de Dungeons & Dragons, ou se d importncia demais ao potencial dramtico desses jogos e arte narrativa que envolvida ao se jogar. Em minha experincia a maioria da representao de papis deve ser colocada em algum lugar entre esses dois plos extremos.
Os trabalhos posteriores, como a coletnea de artigos Gaming as Culture
(WILLIAMS; HENDRICKS; WINKLER, 2006) e alguns artigos na Internet, comeam a
apontar e a desenvolver um novo referencial terico: a ludologia.
A ludologia constitui um novo campo de estudos acadmicos que tem
ganhado destaque com o aumento da importncia dos jogos de computador em nossa
sociedade. No entanto, este campo no se restringe somente aos jogos de computador como
aponta Frasca (2003, p. 1), mas a todo tipo de jogo. Porm foram os jogos de computador que,
pela sua grande importncia financeira nos dias de hoje, que abriram as portas do mundo da
academia para o reconhecimento do estudo de jogos como pesquisa cientfica sria. A
ludologia oferece uma srie de conceitos e teorias que poderiam enriquecer o campo brasileiro
de estudos de jogos em geral a partir da operacionalizao destes conceitos para a realidade
brasileira.
Nessa perspectiva, Williams, Hendricks e Winkler (2006, p.2) definem
jogos de fantasia, nos quais incluem o RPG, como uma categoria fluida e instvel, difcil de
se mapear, pois se constituem de mltiplos gneros de jogos e de subculturas de jogos que se
sobrepe em alguns aspectos mas diferem em outros. Para esses autores, jogos de fantasia se
baseiam em vises de mundo compartilhadas, estilos de vida, gostos e afinidades, assim como
identidades coletivamente imaginadas. Ou seja, jogadores de jogos de fantasia sentem que
tm algo em comum entre si. Entre os jogos de fantasias estariam os RPGs, os jogos de
estratgia colecionveis (como Magic: The Gathering e D&D Miniatures) e os jogos de
computador ou videogame online. Esses gneros se sobrepem e so caracterizados por um
continuo, de uma jogabilidade dramatica no estruturada para uma jogabilidade combativa
estruturada (WILLIAMS; HENDRICKS; WINKLER, 2006, p.3).
Em seu artigo introdutrio ao livro Gaming as Culture, estes autores
(WILLIAMS; HENDRICKS; WINKLER, 2006, p.10) tambm apontam que o uso
pedaggico dos jogos de fantasia nos EUA ocorre desde a dcada de 70 e que vrios manuais
para uso destes jogos foram produzidos para o uso de professores do equivalente ao nossos
nveis de ensino fundamental e mdio.
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Na mesma linha da coletnea acima, h o j citado artigo de Dormans
(2006) que analisa o RPG de mesa e suas regras. Dormans ilustra como as regras dos vrios
tipos de RPG alteram consideravelmente a experincia de jogo. Seu artigo pode ser
considerado como um texto bsico para uma aproximao pela ludologia aos RPGs de mesa,
o que juntamente com o livro de Mackay (2001) formam uma boa base terica.
Assim, alm destas definies mais acadmicas, h tambm definies
utilizadas no campo do game design por profissionais de criao de jogos, de trabalhos dos
quais se destaca o On Game Design, de Rollings e Adams (2003). Neste livro, os autores
trazem importantes definies para desenvolvedores de jogos de computador, que tambm
podem servir de base para estudos de jogos, como as definies de game design, concepo
de jogo, cenrio, narrativa, desenvolvimento da personagem, experincia do jogador,
jogabilidade, balanceamento do jogo e gneros de jogos.
Dentre os gneros apresentados, h o RPG, definido como um tipo de jogo.
No caso, um jogo eletrnico, uma vez que o trabalho trata de jogos de computador e vdeo,
mas que os autores admitem haver uma relao estreita com seu primo de mesa, com
caractersticas distintas dos outros jogos, como personagens do jogador configurveis que
melhoram com o tempo e fortes linhas narrativas (ROLLINGS; ADAMS, 20
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