A PRIMAVERA ÁRABE EM FACE DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS DO OCIDENTE
Ana Patrícia Melo Arruda1
RESUMO: O presente artigo abordará a origem histórica, social e política e os
desdobramentos da insurreição do mundo árabe, em 2010, em face dos princípios norteadores
constitucionais democráticos do ocidente. Será feita uma análise, de forma sistemática, dos
países do Oriente Médio que tiraram do poder os seus ditadores, países esses os quais se
envolveram na luta por direitos que, há décadas, lhes eram negados. Haverá um paralelo entre
o cenário sociocultural do oriente e o do ocidente. No corrente trabalho, discutir-se-á sobre o
binômio “política e religião” e seus aspectos norteadores da revolução que mudou a vida de
milhares de pessoas em diversos países, deixando de lado, até mesmo, dogmas e diferenças de
caráter transcendental. Serão levantadas questões acerca do Direito Internacional Público,
Estado Democrático de Direito em suas vertentes balizadoras de um desejo que se mostrou ser
universal e não somente ocidental. Discorrerá sobre as características de regimes autoritários
que vêm enraizados em diversos países, oprimindo o seu povo, negando-lhes direitos
políticos, tomadas de decisões e sancionando àqueles que tentam transgredir as regras
impostas por famílias que detêm o poder de forma hereditária. Levantará questões acerca da
coragem da juventude oprimida e seus ideais libertários, juntamente com suas ações, de forma
coletiva, para ter direitos sociais, políticos, tendo a internet e as redes sociais como
instrumentos de participação e de enfrentamento aos regimes totalitários. Mostrará, também,
que o povo do Oriente Médio não deve ser visto como passivo ou conformado quanto à busca
de seus direitos, e sim como pessoas que desejam ter àquilo que o ocidente tenta valorizar – a
democracia - contudo, o que ainda fazia-lhes não romper com as barreiras do autoritarismo
tinha um nome: medo.
PALAVRAS-CHAVE: Primavera-Árabe; Oriente Médio; Revolução; Direito Internacional
Público; Princípios Fundamentais.
1 Aluna da Graduação do 5º período do curso de Direito – Faculdade Sete de Setembro E-mail: [email protected]
ABSTRACT: This article will discuss the historical, social and political origins and
consequences of the uprising in the Arab world in 2010 in the face of democratic
constitutional guiding principles of the West. An analysis in a systematic way will be made
from these Middle Eastern countries who took their dictators from the power. These countries
which are involved in the fight for rights that during decades to them were denied. There will
be a parallel between sociocultural scenario of the east and the west. In the current work will
be discussed the binomial "politics and religion" and its guiding aspects of the revolution that
changed the lives of thousands of people in many countries, leaving aside even dogmas and
differences in a transcendental character. Questions will be raised about the Public
International Law, Rule of Law as landmark in their areas of a desire that proved to be
universal and not just Western. Will talk about the characteristics of authoritarian regimes that
have been ingrained in many countries, oppressing his people, denying them political rights,
decision making and sanctioning those who try to break the rules imposed by families who
hold power in a hereditary manner.Will raise questions about the courage of the oppressed
youth and their libertarian ideals, along with their actions, collectively, to have political and
social rights, with the internet and social media as instruments of participation and coping
with totalitarian regimes. It will show, too, that the people of the Middle East should not be
seen as passive or resigned as the pursuit of their rights, but as people who want what the
West tries to value - democracy - yet what still made them not break through the barriers of
authoritarianism had a name: fear.
KEYWORDS: Arab Spring; The Middle East; Revolution; Public International Law;
Fundamental principles.
INTRODUÇÃO
Na década de 60, na Tchecoslováquia, houve um grande movimento liderado por
alguns intelectuais reformistas do Partido Comunista Tcheco. O objetivo era a promoção de
mudanças profundas na estrutura política, econômica e social naquele País. O nome dado a
esse movimento libertário foi o de Primavera de Praga.
Primavera nos remete a uma das estações do ano. Antes dela, temos o inverno, época
de frio, escuridão, quietude, dias claros mais curtos, dias tenebrosos mais alongados. E, logo
após a essa estação melancólica, a natureza nos brinda com a primavera, onde rompe com a
escuridão e traz vida, luz às coisas e às pessoas. Plantas recomeçam a nascer, árvores a crescer
e as pessoas se avivam e não mais pretendem ficar em seu estado de dormência. Tudo, enfim,
se renova: fauna, flora e o desejo de novas ações.
E é, com essas ideias, que surge um fenômeno, em 2010, chamado de Primavera
Árabe. Esse movimento iniciado na Tunísia foi chamado de “Revolução de Jasmim” devido a
essa flor ser nacional naquele lugar e por exalar um perfume muito forte por onde ela passa. E
o desejo e o clamor por democracia, direitos políticos e mais respeito à dignidade humana é
que precisavam ser espalhados não só pela Tunísia, como também por diversos países
ondepairava a opressão.
É de suma importância, antes da análise sistemática dessa revolução, saber diferençar
o que é ser árabe e o que é ser muçulmano. Ademais, esse fenômeno que abalou as estruturas
de países do Oriente Médio não teve como mola propulsora o fator religioso.
Árabe é todo aquele que nasce em um Estado Árabe, que conhece a língua árabe e
possui conhecimentos básicos de suas tradições. Esse povo habita, principalmente, o Oriente
Médio e a África Setentrional, conhecida também por outros nomes, quais sejam: Norte da
África, África Branca em oposição à África Negra. Interessante comentar sobre essa última
informação, porque, muitas vezes, quando se pensa em alguém que nasce na África, imagina-
se logo alguém de pele escura, de origem africana de onde vieram os escravos. Quando se viu
nos noticiários imagens sobre a Primavera Árabe, de pronto não se imaginava estar-se falando
do continente africano, justamente por ser a chamada “África Branca”.
Muçulmanos são quaisquer indivíduos que aderem ao Islamismo, que é uma religião
monoteísta centrada na vida e nos ensinamentos de Maomé que, segundo eles, recebeu
revelações de Deus. Os muçulmanos dão ênfase às orações, ao jejum no mês do Ramadã (9º
mês no seu calendário), à peregrinação à Meca e ao estudo do Alcorão. Xiitas e Sunitas são as
principais correntes da religião muçulmana. Ambas divergem sobre as formas de seguir os
ensinamentos de Maomé, por isso se vê pessoas morrendo e matando por conta dessas
diferenças religiosas.
Logo, fica claro perceber, que a Primavera foi Árabee não, Primavera Muçulmana.
Não que entre os revolucionários não houvesse seguidores de Maomé. Por isso que se diz que
o fenômeno ocorrido no Oriente Médio não teve caráter religioso em sua gênese. O que teve,
na verdade, foi o ajuntamento de forças de pessoas que professavam diversas religiões,
inclusive nenhuma delas.
É preciso situar-se no espaço e perceber que nem todos os países do Oriente Médio
são árabes, ou seja, falam a língua e conhecem as tradições árabes. Alguns exemplos para
clarificar a ideia que está sendo dita: o Afeganistão não e árabe, mas é muçulmano. A maioria
de sua população fala pasto ou pachto, que é um dos idiomas oficiais. O Irã é muçulmano,
mas não é árabe, sua população é persa. A Turquia é muçulmana, mas também não é árabe,
sua população é turca. Israel tem população árabe (Palestinos) e população de judeus (que
detêm o governo).
O Oriente Médio está situado na Ásia. É uma sub-região da África Eurásia (massa que
forma em conjunto a Europa e a Ásia). Tanto que alguns países fazem parte dos dois
continentes, como a Rússia e a Turquia. Há, também a Eurafrásia (massa formada pela
Europa, África e Ásia).
Os países que formam o Oriente Médio ou Médio Oriente são os seguintes: Arábia
Saudita, Bahrein, Chipre, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Israel, Irã, Iraque, Jordânia,
Kuwait, Líbano, Palestina, Omã, Qatar, Síria e Turquia.
Feita essa digressão do espaço geográfico, mostra-se imperioso dizer que a Primavera
Árabe teve força o suficiente para tirar do poder alguns ditadores, como Ben Ali na Tunísia,
Hosni Mubarak no Egito e Muammar Kadhafi na Líbia. O levante se espalhou – que nem o
cheiro do Jasmim – por vários países do norte da África: Arábia Saudita, Sudão Ocidental,
Marrocos, Saara Ocidental, Mauritânia. Por países do Golfo Pérsico: Bahrein, Iêmen e Omã.
Também houve levantes no Iraque, na Jordânia e um dos mais sangrentos confrontos ainda
em andamento em forma de guerra civil: a Síria.
A harmonia dos países, seja no âmbito interno, seja no âmbito internacional está
relacionada à maneira de como os seus governantes lidam com pressões, apoios diplomáticos,
aderência a Pactos entre os Estados e seus Acordos de caráter global ou não, já que podem ser
feitos apenas entre dois Estado e de como eles governam o seu povo. Ocorre que, para que
haja essa harmonia no âmbito das relações exteriores, muitas vezes é preciso com que aquela
exista no âmbito interno de seu próprio país. E, para que sejam reguladas situações do dia-a-
dia, é preciso que tenha a presença do Direito, em suas três acepções, segundo Miguel Reale,
quais sejam: Direito como justo, ou seja, um sistema de valores subordinado ao valor de
justiça, criando condições indispensáveis para os indivíduos terem como concretizar suas
aspirações das mais diversas ordens (moral, espiritual social, etc.), Direito como fato social e
à positivação dos fatos juridicamente relevantes, e, por fim, Direito enquanto ciência, que
estudará o fato social e seus desdobramentos. Como se vê, o “Direito não é tudo, mas é a
condição de tudo; não é a vida, mas é a garantia precípua da vida do homem em sociedade” .
(Miguel Reale). E é essa ausência do Direito que faz inexistir o Estado Democrático de
Direito, fazendo perdurar regimes totalitários em detrimento da maioria.
REFERENCIAL TEÓRICO
"Chega de ação. Queremos promessas".Anônimo
Assim protestava o grafite, ainda em tinta fresca, inscrito no muro de uma cidade, no coração do mundo ocidental. A espirituosa inversão da lógica natural dá conta de uma das marcas dessa geração: a velocidade da transformação, a profusão de ideias, a multiplicação das novidades. Vivemos a perplexidade e a angústia da aceleração da vida. Os tempos não andam propícios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rápido. Para jingles, e não para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegue entregar os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos. De fato, a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era.(BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do DireitoConstitucional no Brasil).
1. TUNÍSIA COMO MARCO INICIAL DOS LEVANTES
A origem da Primavera Árabe deu-se na Tunísia, especificamente em uma cidade
chamada Sidi Bouzid, uma cidade mercante há cerca de 240 km da Capital. Foi lá que um
jovem desempregado chamado Mohamed Bouazizi de 26 anos teve seu carrinho de verduras
confiscado por não ter dinheiro para dar de propina a policiais corruptos. Ato que era comum
– a propina era quase que institucionalizada – e, por diversas vezes, o jovem já havia
entregado todo o seu dinheiro aos policiais. Em um momento de angústia, o jovem partiu
parafrente da prefeitura e pedia explicações, mas não era ouvido. Desesperado, comprou um
pouco de gasolina e, na frente da prefeitura, ateou fogo no próprio corpo. Morreu duas
semanas depois e não pode ver o que seu ato de imolação faria espalhar por vários países a
coragem de lutar por direitos tolhidos ao longo de décadas. Como havia uma ditadura, não se
podia reclamar ou fazer valer algum direito por este simplesmente não existir. À frente do seu
tempo, já dizia Aristóteles:
O homem é, por natureza, um animalsocial e deseja participar do mundo político.(ARISTÓTELES, 1988,p.15)
Após a tragédia, muitas pessoas foram até a Sede da Prefeitura pedir explicações de o
porquê ninguém ter socorrido o jovem Mohamed. Acostumados a terem medo, dessa vez foi
preciso enxergar que algo estava prestes a acontecer. No dia seguinte, centenas de pessoas
estavam à frente da Prefeitura gritando palavras de ordem como a que dizia: “Sacrificaremos
nossa vida por você, Mohamed”.
O povo precisava acordar do “frio do inverno”. Eles não tinham dinheiro, direitos
políticos, garantias fundamentais, mas tinham algo que poderiam mostrar ao mundo ocidental
– imagens feitas por uma câmera de celular postadas na internet – Ben Ali, no poder há mais
de 2 décadas, na ânsia de modernizar a economia do País, implantou internet banda larga e,
cerca de ¼ da população tinha acesso à rede, 90% dos Tunisianos tinham um celular. A
Tunísia tinha dois milhões de usuários do Facebook2, 1/5 de sua população. O ditador proibia
o acesso a sites políticos ou que fossem relacionados a eles, contudo não censurou redes
sociais que, para ele, só se usava para discussão sobre futebol, namoro e outros divertimentos,
ledo engano, a partir desse momento, o mundo ficou sabendo que o povo árabe lutava pela
sua libertação e queriam que o ocidente soubesse o que se passava no seu País.
Segundo Maquiavel:
[...] O príncipe precisa ter pulso forte nas suas deliberações, ele assusta, mas domina, detém o poder e se torna o artífice de violência bruta, fria e total, transpondo o ideal imperativo ético. (MAQUIAVEL, 2003, p.32)
Não é fácil tirar do poder quem há décadas o detém. O povo teve que lutar.Muitos já
perderam a vida travando uma batalha contra um poder alicerçado na força e na corrupção. É
bem verdade que, de início, na Primavera Árabe,a ideia era alcançar inclusão social, políticas
voltadas ao bem-estar da população, mas o povo viu que podia mais. E eles perceberam que
juntos poderiam ter, quem sabe, uma nova forma de governo e verem-se livres da opressão.
Liberdade seria o objetivo o qual lutariam por muitos dias. A internet e as redes sociais foram
determinantes para fazer alastrar o grito de libertação.
A corrupção, a má distribuição de rendas,tudo isso atrelado à pobreza e a alta taxa de
desemprego que assolavam a maioria das pessoas foram determinantes para que o povo
2Facebook é um site de rede social
pudesse fazer surgir a esperança de ver nascer uma nova política e isso dependia da força de
todos, independente de dogmas, crenças ou qualquer outro tipo de transcendentalidade.
Em seu Contrato Social, já dizia Rousseau:
A liberdade política está estreitamente ligada às condições de existência do ser humano. A desigualdade dos cidadãos tem origem na desigualdade das riquezas. (ROUSSEAU, 1995)
Após meses de conflitos e muito derramamento de sangue, em junho de 2011, a justiça
da Tunísia condenou Ben Ali a 35 anos de prisão pela morte de 219 pessoas, um mês depois,
ele foi condenado por mais 15 anos por corrupção. Foi julgado à revelia em ambos os casos,
já que fugira para a Arábia Saudita e é procurado até hoje pela INTERPOL3.
Segundo a crônica de Mário Soares:
[...]Foi uma revolução espontânea, popular, desencadeada não por militares, nem fanáticos islâmicos mas sim por uma juventude cultivada, de estudantes e jovens licenciados, sem trabalho nem horizonte de futuro, salvo a emigração. Veio para a rua protestar e acabou com a ditadura corrupta de 23 anos, de Ben Ali e sua mulher, Leila e da sua ávida família[...]Não quer isto dizer que se repita o fenômeno tunisino nos países seus vizinhos. Mas a semente foi lançada e, mais tarde ou mais cedo, poderá dar frutos.(Fonte: https://asplantas.wordpress.com/2011/01/29/a-revolucao-do-jasmim/)
2. EGITO, O LEVANTE ROMPEU FRONTEIRAS
O cenário internacional estava marcado pelas notícias vindas do oriente. O espírito de luta
e de vitória vindo da Tunísia contagiou o Egito, o qual vinha sendo governado por três
décadas por Hosni Mubarak, que fazia parte do único Partido existente. As pessoas
precisavam se unir para tornarem-se mais fortes com o fito de combater 30 anos de opressão.
Segundo Montesquieu:
Tão logo os homens se veem em sociedade, perdem o sentimento de fraqueza, cessa a igualdade que havia entre eles e começa o estado de guerra.(MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis. Ed. Martin Claret, 2010, p. 25)
3Organização Internacional de Polícia Criminal, mundialmente conhecida pela sua sigla Interpol (em inglês: International Criminal Police Organization), é uma organização internacional que ajuda na cooperação de polícias de diferentes países.
Mais uma vez, a corrupção do governo permanece como um dos motivos de
descontentamento do povo Egípcio. Na década de 1970, foi descoberto nos Países Árabes, o
poder do petróleo e com isso sua consequente estatização, o que ajudou como forma de
barganha para com as empresas estrangeiras as quais necessitavam do “ouro negro”. Não
usaram a riqueza do País em prol do próprio povo. Ao contrário, quanto mais dinheiro e
poder, mais os corruptos esqueciam-se da população, em sua maior parte, carente de políticas
públicas básicas como saúde, educação, moradia, rede de esgoto.
Relatam as professoras Leila Bijos e Patrícia Almeida Silva:4
Os jovens egípcios, nos últimos anos, mostravam-se apáticos, indiferentes no que concernia às eleições, pois acreditavam que mesmo o seu ativismo ou participação não contabilizava mudanças para seu país.(Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n.59, p.64, jan/abr. 2013)
As professoras dizem ainda que os jovens egípcios da atualidade são mais instruídos
se houver uma comparação com os estudos de seus pais, não obstante terem mais educação do
que os jovens do passado,têm, em igual grau, maior frustração em relação às opressões pelo
regime em que vivem.
[...] As desigualdades sociais e pobreza, por muitos anos, calaram a juventude, porém, em janeiro de 2011, o mundo observou o que uma juventude educada, explorada e sofrida pode fazer.(Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n.59, p.64, jan/abr. 2013)
Como toda revolução, sempre há um lugar no qual as pessoas se reúnem para
compartilharem desejos libertários em comum. Às vezes, o local é fora das vistas do
Príncipe5, outras ficam próximas para que ele o perceba, até mesmo como modo de
enfrentamento, como quem diz: ainda dá tempo de sermos ouvidos e atendidos em nossos
reclamos. Um local que foi o símbolo da libertação egípcia chamava-se Praça Tahrir. Como
dito no início do presente artigo, esse levante era alheio a qualquer tipo de dogma, crenças de
qualquer natureza. Todos queriam ser livres, opinar, ter dignidade e participar de um país que
fosse melhor para as gerações futuras. Jovens eram maioria nesses encontros. Como tudo que
jovem faz, o faz com intensidade. Assim, a Praça Tahrir virou um acampamento a céu aberto.
Diversos grupos se encontravam nesse local: a Irmandade Muçulmana (Organização Radical
4Leila Bijos é professora adjunta do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília e Patrícia Almeida da Silva é bacharel em Relações Internacionais do Centro Universitário do Distrito Federal.5Termo utilizado por Nicolau Maquiavel para se referir ao governante, aquele que detém o poder.
Islâmica), desempregados, idosos, mulheres, ativistas em geral. Até mesmo a classe de jovens
ricos não se furtou a clamar por direitos e liberdade para todos.
Ratificam as professoras Leila Bijos e Patrícia Almeida Silva:
[...] A internet foi uma das chaves do sucesso dos protestos, o acesso às tecnologias com alcances globais proporcionou que a população egípcia se levantasse contra seu governante.(Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n.59, p.65, jan/abr. 2013)
Assim como ocorrera na Tunísia, enquanto as forças policiais prendiam qualquer
pessoa que estivesse com um celular, na mesma proporção ou mais, surgiam jovens filmando
cada confronto e enviando às redes sociais. O que se via era, em todo lugar, alguém com um
aparelho registrando aquilo que o restante do Oriente Médio e o mundo ocidental precisavam
saber. Pessoas filmavam de dentro dos carros, de cima de telhados, faziam furos estratégicos
em roupas de modo que o celular pudesse pegar cada momento.
E já que as forças policiais e os mercenários contratados por Hosni Mubarak
quebravam os aparelhos e prendiam as pessoas que estavam na posse deles, os jovens tiveram
a ideia de usar um programa o qual enviava, em tempo real, os vídeos para a rede mundial de
computadores.
Até que um desses vídeos caiu em mãos de um blogueiro, que os difundiu pela
internet, causando temor e espanto no resto do mundo, que assistia atônito a violência em
larga escala, pessoas mortas, jovens sendo presos sem o devido processo legal, enfim, o
mundo era apresentado à Primavera Árabe.
Na página do Facebook fora criada uma comunidade chamada “Dia de Fúria” que
atualizava as informações a todo instante. A comunidade internacional se sentiu pressionada
com tudo aquilo e já tentava uma solução para os conflitos, muito embora a complexidade que
é a de tratar assuntos acerca da soberania de um país.
Em determinado momento dos confrontos entre militares e os civis, aqueles se
recusaram a atacar estes. Pelo contrário, juntaram-se aos manifestantes, de modo que o
levante ganhou força e, em janeiro de 2011, menos de 20 dias do início da revolta, cai o
segundo Ditador da Primavera Árabe. Mubarak tentou uma manobra política a fim de
transferir o poder a um de seus filhos, mas não obteve êxito. Restou ao ditador transferir o
poder para uma junta militar, de modo a fazer uma transição pacífica para a democracia. dois
meses após se refugiar em um balneário, Mubarak foi preso e acusado de corrupção.
Muçulmanos, cristãos, pessoas de outras religiões e jornalistas estrangeiros presenciaram no
dia 14 de fevereiro o dia em que ficaria para a história do Egito.
Isso não significa que todos os problemas acabariam, começava, assim, um período de
maturação. Há dois anos, foi eleito o primeiro presidente civil islâmico Mohamed Morsi – da
Irmandade Muçulmana - mas, um ano após ser eleito, foi derrubado pelo militares, que hoje
governam o país.
3. LÍBIA, 42 ANOS, KADHAFI NO PODER
Desde 1969, Muamar Kadhafi estava no poder. Foram precisos exatos oito meses para sua
derrubada. Na Líbia, rebeldes tomaram conta de várias cidades até chegar à cidade natal do
ditador. Ele foi pego de surpreso e não esperava que a comunidade internacional apoiasse os
rebeldes dando-lhes armas, munição e suprimentos de que necessitavam.
Enquanto isso, Kadhafi reorganizava seu exército e bombardeava cidades as quais os
rebeldes haviam tomado. A ideia central era MuamarKadhafi retomar a cidade de Benghasi,
que funcionava como uma espécie de quartel general dos insurgentes.
E, foi nessa cidade, que os rebeldes tiveram o apoio internacional. Nesse meio tempo,
Kadhafi já se escondera em algum lugar do País, mas a OTAN bombardeava possíveis
esconderijos do ditador, que apareceu em um vídeo, dias depois, em um pronunciamento,
onde dizia estar bem e que permaneceria no poder e resistiria aos ataques dos rebeldes e da
OTAN.
O Tribunal Penal Internacional – TPI – condena Kadhafi de crimes contra a humanidade,
por ter quebrado regras de Jus Cogens,6mas ele só poderia ser preso se deixasse o território
líbio e fosse para um dos países que reconhecem o TPI.
Isso não ocorreu e, dias depois, os rebeldes o encontram e todo o mundo vê, pela imprensa
internacional, o fim trágico daquele que há muito viveu oprimindo o povo. Kadhafi restara
morto. Não chegou a ter um devido processo legal, não teve chance de defesa, não pagou em
vida pelos 42 anos de danos causados a seu povo. Não houve uma investigação efetiva a fim
de puni-lo dentro de normas fundamentais de direito humanos.
6(Lei coercitiva ou imperativa, em latim) serve para designar, no campo do Direito Internacional, uma norma peremptória geral que tenha o poder de obrigar os diversos estados e organizações internacionais, devido à importância que sua matéria contém, sendo esta impossível de se anular.
Segundo George Marmelstein:7
O dever de investigar com ética impõe que os agentes estatais, na busca de elucidação de crimes, não desrespeitem a dignidade humana, nem atropelem os mais básicos dos direitos do indivíduo. (Curso de Direitos Fundamentais. 4ª Ed. 2013 p. 166)
A Líbia se viu sem seu maior ditador. Liberdade, enfim? Ou um longo e dolorido
processo para se chegar à democracia? O ideal libertário e suas nuances, após a queda de
MuamarKadhafi, estavam apenas por começar. Um processo que pode levar décadas para de
fato dizer que valeu a pena tantas vidas ceifadas.
Observa Ionilton Pereira do Vale8apud Immanuel Kant:
Do conceito de liberdade emerge para Kant, duas noções distintas: a liberdade interna e a liberdade externa. A liberdade externa pode ser identificada como livre arbítrio, que constitui a base do direito. A liberdade interna se define como autolegislação, como a faculdade de agir pela razão, numa sociedade de seres livres.(As dimensões dos Direitos Humanos Fundamentais. Ed. 2006, p. 148)
Tendo em vista todos esses conflitos, não só nos Países onde houve a derrocada dos
seusrespectivos ditadores, bem como naqueles onde a Primavera Árabe refletiu, em maior ou
menor grau, percebe-se a importância que tem o Direito Internacional Público no cenário
globalizado.
É preciso que se respeite as normas de Jus Cogens, que têm a finalidade de proteger a
humanidade contra atos arbitrários de governantes opressores. Um dessesdocumentos que fala,
expressamente, das normas imperativas é a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de
1969, em seus artigos 53 e 64:
É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, sejaincompatível com uma norma imperativa de direito internacionalgeral. Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativade direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pelacomunidade internacional dos Estados no seu todo
7George Marmelstein é Mestre pela Universidade Federal do Ceará, Doutorando pela Universidade de Coimbra. Professor da cadeira Direito Constitucional II na Faculdade Sete de Setembro. Titular da 9ª Vara Federal em Fortaleza/Ce.8Ionilton Pereira do Vale é Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará, Pós-Graduado em Direito Processual Penal pela Universidade de Fortaleza. Promotor de justiça de Fortaleza. Titular da 5ª Vara de Execuções Fiscais e Crimes Contra a Ordem Tributária. Professor da cadeira Direito Penal III na Faculdade Sete de Setembro em Fortaleza/Ce.
como norma cujaderrogação não é permitida e que sópode ser modificada por umanova norma de direito internacional geral com a mesma natureza. (Art.53)
Ainda, em seu artigo 64, fala sobre a superveniência de normas imperativas de jus
cogens:
Se sobrevier uma nova norma imperativa de direito internacional,geral, qualquer tratado existente que seja incompatível com essa norma torna-se nulo e cessa a sua vigência. (Art.64)
Outrosssim, ainda na década de 40, já se destacava a importância dos Direitos do
Homem, na Declaração Universal dos Direitos Humanos que assim dispõe:
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. (Artigo 2°)
RESULTADOS
Não obstante à luta travada em prol de um povo livre, com mais oportunidades e inserção
no cenário político e sociocultural, percebe-se a necessidade de instrumentos que viabilizem
os anseios da sociedade.
Nos três países citados no presente artigo ainda há muito desemprego, falta de
oportunidade, inexistência de princípios democráticos e suas respectivas garantias. A luta do
poder pelo poder ainda subsiste, só que com outra roupagem.
A história mostra que ainda é preciso muita maturidade política e consciência de todos
para uma mudança efetiva de paradigmas. O primeiro passo já foi dado. Os jovens com o
auxílio das redes sociais foram determinantes na busca daquilo que o ocidente já experimenta:
a democracia.
Não basta apenas ter ido às ruas, deve fazer valer o sangue derramado de milhares de
pessoas, o corpo imolado daquele jovem de 26 anos na Tunísia – Mohamed Bouazizi – que
injetou nos jovens a coragem para vencer o medo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como escopo analisar, de forma seminal, as revoluções do mundo
árabe e seus desdobramentos. Tratou sobre os relevantes motivos que levaram um povo a uma
luta armada contra os exércitos de seus respectivos ditadores. Diferençou termos que, muitas
vezes, confundem o leitor sobre religião e denominação de nacionalidade. Mostrou a
diferença entre ser muçulmano e ser árabe, termos que nem sempre são excludentes entre si.
Analisou a importância da rede mundial de computadores em prol dos jovens e da
população em geral desses países como ferramenta crucial para difundir os ideais libertários e
mostrar ao mundo ocidental o que se passara no mundo árabe. A consciência da juventude e
sua união foram elementos determinantes para que os levantes tivessem força para
arregimentar mais pessoas em busca de democracia.
Tratou, também, da questão da diferença de crenças religiosas, que foram deixadas de
lado em prol de um objetivo imediato e necessário: a luta por direitos igualitários.
Deixou claro que, depois da queda de três grandes ditadores, não significava a melhora
imediata dos anseios da população. Que muito precisa ser feito nos países árabes para que se
chegue a uma democracia a qual se vivencia no mundo ocidental.
Para tanto, a comunidade internacional precisa estar disposta a fazer parte dessa mudança
sem, no entanto, desrespeitar a cultura milenar de cada país onde as revoltas ocorreram e a sua
soberania. Mas deve ser lembrado que os direitos humanos estão acima de qualquer interesse
que venha a conflitar com a cultura e com a soberania. Só não pode isso ser usado como arma
de manobra para que se invadirpaíses tendo como objetivo a tomada de riquezas naturais dos
mesmos.
Independentemente de cultura, religião, política ou quaisquer outros elementos
formadores de uma sociedade, o homem, em seu conceito lato sensu, precisa ter respeitados
os seus direitos e os seus anseios por liberdade, tendo a oportunidade de deixar para as
gerações futuras, direitos que foram conquistados à custa de muito sangue derramado.
Por fim, observou-se que o medo não pode servir de subterfúgio para um estado
delatência. E que é possível, sim, mudar àquilo que nunca se tentou antes ou que se tentado
restara frustrado, por mais difícil que possa parecê-lo. E que não basta apenas contentar-se
com a derrocada de grandes ditadores, mas sim de se manter em vigília e não deixar que o
poder fique, por muito tempo, nas mãos das mesmas pessoas, pois a perenização do poder traz
consequências deletérias à sociedade e torna o governante cada vez mais forte e propenso a
utilizar-se de instrumentos de opressão do povo.
REFERÊNCIAS
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. 2001, p.74, Disponível em:
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TRATADOS, Convenção de Viena Sobre o Direito dos. Resolução da Assembleia da República n.º 67/2003, assinada em 23 de Maio de 1969
__________Humanos, Declaração Universal dos Direitos. Organização das Nações Unidas, 10 de dezembro de 1948.
ANEXO