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VIESES E REVESES DA CRTICA LITERRIA MACHADIANA
POR
DARLAN DE OLIVEIRA LULA
Monografia apresentada aoCentro de Pesquisa do Centro deEnsino Superior de Juiz de Fora -CES/JF, sob orientao da
professora Maria ElizabethSacchetto e co-orientao doprofessor Marcos Rogrio CordeiroFernandes.
Juiz de Fora - MGNOVEMBRO/2002
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SUMRIO
1 Introduo ........................................................................................................... 4
2 Lukcs e Bakhtin: o indivduo problemtico e o carter polifnico ................. 11
3 O realismo e a crtica literria machadiana ....................................................... 21
4 Memrias Pstumas de Brs Cubas: anlise de uma realidade dinmica .......... 34
5 Concluso ............................................................................................................ 48
6 Bibliografia ......................................................................................................... 51
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Creio poder afirmar que a
pacincia a metade dasagacidade: ao menos na crtica.
Machado de Assis
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1. INTRODUO
Se voltarmos nossos olhos para os ltimos 40 anos do sculo XIX, veremos uma
figura preponderante no cenrio cultural brasileiro: Machado de Assis (1839-1908).
Escritor renomado em sua poca, revelou uma produo de grande reconhecimento e
valor, suscitando estudos cujos interesses variados mostram a complexidade de uma
obra que se transformou em um legado de polmicas acalentadas pela crtica literria
durante anos at os dias atuais.
Machado escreveu em um perodo em que a forma literria comeava a seestruturar, em um momento conturbado na cena literria brasileira, com a projeo de
vrias tendncias estilsticas como a do Romantismo e a do Realismo/Naturalismo.
Concomitante a isso, est no s a ascenso do pblico leitor, que comea a tomar gosto
pela leitura, mas tambm a apario de pessoas preocupadas em fazer uma anlise
crtica mais especializada em torno da obra dos autores mais importantes da poca. O
aparecimento do ensaio (que, no contexto brasileiro, surgiu com os romnticos)
constituiu um ndice expressivo da maior especializao, da sofisticao intelectual e
artesanal da literatura. Os ensastas, contemporneos a Machado, enveredaram-se pelos
caminhos da crtica em torno da obra desse escritor.
Aps quase cem anos da morte de Machado de Assis, estud-lo e analis-lo
constitui ainda um desafio que deve ser levado a duras penas. Aceitando-o e planejando
iniciar uma pesquisa sria em torno de sua obra, buscaremos discorrer sobre a crtica
literria machadiana que tem como denominador comum uma abordagem ainda
polmica em nossos dias: sua posio na histria dos estilos ficcionais.
Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, no Morro do Livramento, filho de
uma famlia pobre, perdeu os pais ainda muito jovem. A partir da, passou a perseguir
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seus ideais literrios: primeiro, ao entrar para a Imprensa Nacional como tipgrafo
aprendiz; depois, escrevendo para os jornais da poca, principalmente poesias e
crnicas. Disso para a notoriedade foi um passo, pautado pela persistncia e disciplina
nas letras. Aos 40 anos j consagrado um grande escritor e, a partir dessa idade,
comeam a surgir as suas obras-primas, os chamados romances da segunda fase.
Tambm a partir dessa poca que surgem os mal-entendidos sobre sua obra
considerada enigmtica e que escondia um mundo estranho e original sob a neutralidade
aparente dos seus enredos convencionais. Essas histrias, aparentemente neutras,criaram algumas distores, dentre as quais, a projeo, nos romances machadianos, da
denominao realista, principalmente a partir de Memrias Pstumas de Brs
Cubas (1881), que inaugura o Realismo no Brasil ao lado de O Mulato, de Alusio
Azevedo.
Essa denominao realista possui um sentido trivial, principalmente se
abordada e entendida pelos manuais de histria da literatura que se subordinam a uma
anlise de princpios formais e estticos, compreendendo o realismo somente como um
estilo de poca. Como exemplificao, citamos Massaud Moiss, o autor que coloca
Machado de Assis na mesma linhagem literria de Alusio Azevedo e Raul Pompia,
no vendo, assim, uma diferenciao ntida de valores literrios entre eles. Desse feito,
ele acaba nos dizendo que os escritores inseridos neste estilo de poca do excessivo
valor Cincia, a primeira inferncia a tirar do quadro cultural em que se desenrola a
ecloso do Realismo.1Dado discutvel, pois o que vemos um Machado utilizando das
teorias cientficas em voga na poca para satiriz-las e desqualific-las, tendo em foco a
desconstruo dessas definies rgidas.
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Alfredo Bosi, em sua Histria concisa da literatura brasileira, tambm insere
Machado no vis do Realismo, dizendo que, de um modo geral, o romancista dessa
escola, estreitado o horizonte das personagens e da sua interao nos limites de uma
factualidade que a cincia reduz s suas categorias, acaba recorrendo com alta
freqncia ao tipoe situao tpica(...), presta-se docilmente a compor o romance que
se deseja imune a tentaes da fantasia.2
Afrnio Coutinho, por sua vez, tambm evidencia Machado como integrante do
Realismo e, apesar de dizer que impossvel uma definio completa do Realismo, que antes um temperamento, uma tendncia, um estado de esprito, acaba por defini-lo
como o que encara a vida objetivamente. No h intromisso do autor, que deixa as
personagens e os circunstantes atuarem uns sobre os outros, na busca da soluo. O
autor no confunde seus sentimentos e pontos de vista com as emoes e motivos das
personagens.3
Se definirmos, porm, o realismo como uma categoria esttica, estaremos
pensando em duas formas abordativas complementares. Uma delas a noo de
realismo formal4. A expresso no se refere a nenhuma escola ou estilo de poca
especficos, mas apenas a um conjunto de procedimentos que se encontram to
comumente no romance e to raramente em outros gneros literrios que podem ser
considerados tpicos dessa forma. Ian Watt nos diz que o realismo formal a
expresso narrativa que est implcita no gnero romance de modo geral: a premissa de
que o romance constitui um relato completo e autntico da experincia humana e,
1M. Moiss (1996), p.15.
2A. Bosi (s.d.), p.189.3A. Coutinho (1986), p.10.
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portanto, tem a obrigao de fornecer ao leitor detalhes da histria como a
individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das pocas e locais de suas
aes e etc., todavia uma categoria normativa de arte que no se fixa em um perodo
histrico em particular. o que ele nos mostra quando diz que certamente o realismo
procura retratar todo tipo de experincia humana e no s as que se prestam a
determinada perspectiva literria: seu realismo no est na espcie de vida apresentada,
e sim na maneira como a apresenta.5
A outra forma de abordagem a que podemos chamar realismo heterodoxo, ouseja, uma vertente que tenta estruturar uma compreenso da sociedade, submetido como
uma categoria esttica e literria universais. Quer dizer, realista na medida em que
reporta a problemas relativos realidade imediata e heterodoxo porque no depende
apenas dos recursos de construo apontados acima, mas recorre a diversas mediaes
estilsticas como a ironia, o dialogismo, a alegoria etc.
Encontra-se a o trao marcante de nosso estudo, pois seria fcil dizer, mas de
uma forma enganosa, que Machado seguiu os cnones do romance realista (tido como
estilo de poca) e tambm do romance naturalista e que, em sua primeira fase, teria
praticado uma forma discreta do romance romntico. Dizendo isso, continuar-se-ia
deixando uma brecha para questionamentos como: ento, o que ele estava fazendo e em
qual tradio literria se inscreve, ou melhor dizendo, ser que pertence ou no a alguma
tradio? No seria o caso de v-lo como formador (ou, pelo menos, continuador) de
uma tradio literria singular, no dominante no Brasil de seu tempo? So essas as
perguntas que devem ecoar para chegarmos a respostas consistentes e a interpretaes
4Essa terminologia utilizada por Ian Watt (1990). Para isso, ver O realismo e a forma romance, p.11-
33.5I. Watt (1990), p.13
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justas. Nossa pretenso reside nessa possibilidade, pois devemos saber que a obra
machadiana possui uma consistncia poltica peculiar, justamente pela conseqncia de
seu vetor realista, um realismo de anlise e de busca de relaes e no um realismo
estilstico moda de ento. Assim, evitaremos o erro de ver em Machado um homem
apoltico em vista da sua obra.
Para no cairmos nessa armadilha e desenvolvermos nosso estudo com a
pretenso desejada, teremos de nos valer de dois tericos que foram fontes de estudo da
crtica brasileira para a melhor compreenso do gnero romance: Georg Lukcs eMikhail Bakhtin. Eles possuem idias dissonantes a respeito do romance enquanto
gnero e do realismo enquanto procedimento narrativo: no primeiro prevalece o enfoque
de uma filosofia da Histria que privilegia a ordenao de esquemas de raciocnio que
buscam definir tpicos do relato ficcional em funo da vida em sociedade; no segundo
a problemtica do romance se classifica no mbito do discurso e da construo
lingstica romanesca, ambos tomados na forma de embates de relaes vivas. No
obstante as diferenas, percebe-se que existe certa complementaridade entre eles: no
fato de terem o romance como a representao mais perfeita da vida social, constituindo
assim um trao de realismo. Tomaremos como base o enfoque desses tericos e, no
captulo segundo, promoveremos uma anlise mais detalhada a fim de
consubstanciarmos o presente estudo.
No captulo terceiro, recorreremos aos crticos literrios que tiveram os dois
tericos como fonte de estudo e que entenderam melhor a obra machadiana. Dentre eles,
encontram-se, de um lado, seguindo a tradio mais sociolgica, Astrojildo Pereira,
Raymundo Faoro, John Gledson, Roberto Schwarz e Alfredo Bosi. Astrojildo Pereira e
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Raymundo Faoro analisam Machado tendo como princpio a sua conduta de escritor do
Segundo Reinado que estava em meio a uma poca de transio; para John Gledson,
Machado compe um realismo enganoso que, por sua vez, composto de um
substrato alegrico; Roberto Schwarz indica que a obra machadiana profundamente
pautada, no plano da forma, pelas iniqidades centrais da sociedade brasileira e que sua
fora vem da, ou melhor, procura mostrar o trabalho metdico e inteligente por meio do
qual Machado tratava de buscar, de tornar presente e ativa, a contradio social no
interior de sua prosa; por ltimo, Alfredo Bosi que analisa a fora expressiva danarrativa machadiana, tendo como enfoque uma interpretao da cena social vivida pelo
escritor.
Do outro lado, seguindo uma espcie de teoria narrativa, encontram-se os nomes
de Dirce Cortes Riedel, Jos Guilherme Merquior, Enylton de S Rego e Sonia Brayner.
Dirce Cortes Riedel apresenta algumas analogias entre a obra do escritor brasileiro e as
anlises de Bakhtin, baseando-se, sobretudo, nos conceitos de pardia e metfora;
Jos Guilherme Merquior sugere que Memrias Pstumas de Brs Cubas so um
representante moderno do gnero cmico-fantstico, tambm conhecido como literatura
menipia6; Enylton de S Rego tambm analisa e aprofunda as relaes do romance
machadiano com a stira menipia e a tradio lucinica7e Sonia Brayner identifica o
dialogismo como tendncia transformadora e original nos romances machadianos,
consubstanciando relaes importantes que trazem os textos de Machado realidade,
valendo-se de uma anlise fundada no nvel da sua enunciao literria.
6J. G. Merquior, ver Gnero e estilo das Memrias Pstumas de Brs Cubas(1990).7
Para mais detalhes a respeito das tradies literrias que levam os nomes do srio Menipo de Gadara e osrio helenizado Luciano de Samosata, ver REGO, E. S. (1989).
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Dessa forma, nosso estudo se sustentar no arcabouo literrio da obra
machadiana e, principalmente, entre as correntes de crtica que se dedicaram ao estudo
das narrativas desse autor. A abordagem estar posicionada nos analistas que, tendo
como base para o problema do realismo uma boa teoria do romance, argumentam (e
questionam) sob a posio de Machado de Assis na histria dos estilos ficcionais. Para a
soluo dessa problemtica, recorreremos a um estudo bibliogrfico com o
direcionamento a uma anlise literria, mas, principalmente, a um esquema de
comparao de vises analticas convergentes e/ou divergentes, com mtodos deinterpretao literria coerentes ao estudo proposto.
Para melhor definirmos o nosso campo de atuao, centraremos em nosso estudo
um dos mais caractersticos romances da segunda fase da obra de Machado de Assis:
Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881), que ser analisado no captulo quarto,
onde veremos alguns trechos dessa obra, para a comprovao do realismo analtico e
dinmico do escritor oitocentista, visando utilizar as duas proposies tericas
mencionadas acima.
Ao final do ensaio, j no captulo quinto, validaremos o nosso trabalho
desfazendo, por meio da orientao das abordagens dos crticos literrios, certos
paradigmas em torno da obra machadiana que influenciam o ensino de literatura
brasileira.
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2. LUKCS E BAKHTIN: O INDIVDUO PROBLEMTICO E O CARTER
POLIFNICO
Este captulo dedicado compreenso de algumas linhas de fora das idias de
Georg Lukcs e de Mikhail Bakhtin, tericos que foram fontes de estudo do romance
moderno e, de um modo ou de outro, influenciaram os crticos que se dedicaram aoestudo da fico machadiana. Para o presente estudo, relevante considerar a
abordagem do primeiro, que procura estabelecer uma proximidade existente entre as
manifestaes que compem as narrativas romanescas e a realidade concreta e a do
segundo, que reporta aos processos de linguagem que buscam captar os recursos
poticos da narrativa como forma de representao plena de constrangimentos sociais.
Aps as consideraes, tentar-se- estabelecer alguns pontos de convergncia entre eles.
Partindo de Lukcs, podemos dizer que se mostra bastante preocupado em fazer
uma distino entre o realismo e o naturalismo literrios. Em seu estudo Narrar ou
descrever?, ele nos mostra por que no quer que os escritores se sujeitem descrio
comum no estilo naturalista e no realismo francs: A descrio rebaixa os homens ao
nvel das coisas inanimadas. Perde-se nela o fundamento da composio pica: o
escritor que segue o mtodo descritivo compe base do movimento das coisas.8
8 G. Lukcs (1968), p.74. Embora seja um livro capital para se entender a trajetria romanesca e suaperspectiva terica, juntando-se densidade das formulaes esmaltadas, A teoria do romance, deLukcs, no neste ensaio citada por se tratar de um estudo mais denso. Dessa forma, recorremos a outros
estudos lukacsianos por se prefigurarem mais palatveis e que, por ora, preenchem a lacuna em nossoestudo.
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Lukcs caracteriza as deficincias do movimento naturalista e valoriza o
realismo como movimento artstico, tendo-o como um modo literrio em que se
traavam as vidas de personagens individuais como parte de uma narrao que os
situava dentro da dinmica histrica completa de sua sociedade9. Essa denominao
pressupe duas questes bsicas que devemos definir. A primeira se refere dinmica
histrica completa da sociedade, ou seja, como se d esse movimento histrico dentro
da obra de uma maneira completa e bem arranjada formalmente, j que uma sociedade
se move por contradies que ela prpria produz. A segunda nos remete aospersonagens: como eles podem traar o perfil completo de sua sociedade, se o que fica
esboado na narrao apenas uma parte de sua complexidade?
Para se ter uma melhor definio sobre a primeira questo sugerida, devemos
levar em conta mais do que as contradies que uma sociedade nos evoca, pois o
movimento que se d no romance o da representao de uma figurao da unidade
exterior e da realidade interna do texto, ou seja, no romance h uma realidade de
superfcie textual, tambm havendo elementos e tendncias da realidade concreta mais
elaborados que funcionam organizando as estruturas no interior do texto. Uma e outra se
relativizam e se entrecruzam em um processo dinmico e vivo, mostrando o vnculo
entre romance e sociedade10, por isso, se diz que a realidade objetiva s se tornar
dinamizada e melhor produzida dentro do romance quando houver essa unidade e, ao
mesmo tempo, quando soubermos decodificar a realidade profunda atravs da realidade
de superfcie, isto , da superfcie do texto, transportando-a para um campo de
compreenso mais trabalhado e completo da sociedade.
9
E. Lunn (1986), p.94.10G. Lukcs (1970), p.50.
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Dentro desses parmetros, como deve ser o personagem da narrao? Chegamos,
ento, segunda questo sugerida: ele ser o personagem tpico. No queremos v-lo
segundo a definio trivial do dicionrio Aurlio que o tem como personagem que
representa um tipo padro de comportamento, ou at mesmo segundo a conceituao
do Dicionrio de termos literrios, de Massaud Moiss, que, definidas em poucas
palavras, a sua personalidade no reserva surpresa e a sua peculiaridade alcana o auge
sem causar deformao11.
Queremos sugerir o personagem tpico como aquele que, em seu carter e emseu destino, manifestam-se os traos objetivos, historicamente tpicos de sua classe e
manifestam-se, ao mesmo tempo, como foras objetivas e como o seu prprio destino
individual.12Este no um ato simples e definitivo, mas sim um processo, em que o
personagem artstico s ser significativo quando o autor conseguir revelar as mltiplas
conexes que relacionam os traos individuais desse personagem aos problemas gerais
da poca; quando o personagem entra em confronto e em contraste com outros
personagens que, por sua vez, encarnem outras fases do mesmo contraste que determina
seu destino. To somente neste variado e complicado processo, rico de contradies
extremas, torna-se possvel elevar uma figura a um nvel verdadeiramente tpico de
classe. Pode-se dizer, ento, que esse personagem, atravs de seu destino individual,
revela uma verdade do processo social, ou seja, o conjunto dos atos e aes humanas,
mesmo os sentimentos mais subjetivos, pode exprimir o homem em sua concretude.
Esta a conceituao de um personagem caracteristicamente tpico, levando-nos a crer
que h uma unidade profundamente orgnica que liga a normalidade exceo na qual a
11
M. Moiss (1978), p.398.12G. Lukcs (1999), p.98.
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excepcionalidade do personagem e a situao opositiva que o envolve exprimem, no
conjunto da obra, os mais profundos contrastes de um determinado complexo de
problemas sociais.
Com tais determinaes, chegamos concluso de que a representao dos tipos
inseparvel da composio. Isso quer dizer que existe uma dependncia entre as
exigncias compositivas e o reflexo da realidade objetiva. Da o dito de que os tipos
podem traar o perfil completo de sua sociedade.
Nesse sentido, Dom Quixote, de Cervantes, um dos mais tpicos da literaturauniversal se somarmos a exata compreenso de que para ser tpico no precisa,
necessariamente, se limitar observao da realidade cotidiana, mas, pelo contrrio,
necessita captar os elementos essenciais, bem como de inventar, sobre o seu
fundamento, personagens e situaes que sejam absolutamente impossveis na vida
cotidiana (desde que eles se operem e se situem luz do jogo das contradies). Assim,
surge uma das variantes do realismo: o realismo fantstico, que se caracteriza pela
combinao de duas foras composicionais. A primeira segue a objetividade da narrao
e a segunda delineia contornos subjetivos, traando perfis fantsticos que se fundem
com o realismo geral da composio em uma totalidade orgnica. Os escritores que
seguem essa tradio apresentam os princpios ideolgicos e sociais da poca
representada de modo realista: realista o modo de representao, o desenho preciso
dos pormenores necessrios na sua ligao orgnica com as grandes foras sociais, cuja
luta se manifesta nesses pormenores. Mas a histria narrada conscientemente
fantstica, no realista.13Na realidade, no h uma preocupao com a verossimilhana
exterior das situaes particulares, mas uma profunda capacidade desses escritores de
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apreender e representar, de maneira justa e no evidente, os traos verdadeiramente
decisivos de sua poca14. Neste ponto, Bakhtin assemelha-se a Lukcs.
Tanto por Lukcs quanto por Bakhtin, perceberemos a nfase dada a Cervantes e
ao seu Dom Quixote, no entanto importante frisar que h, entre eles, algumas
diferenas metodolgicas de anlise com relao a este ponto: o primeiro trabalha com o
personagem de Dom Quixote; o segundo, com a estrutura do romance, com as suas
mediaes.
Torna-se importante a referncia a Dom Quixoteporque, primeiramente, o livroinaugura e desenvolve uma linhagem do romance afastado dos moldes franceses e
ingleses que serviram de fonte para os romances romntico e realista praticados no
Brasil e, segundo, porque esta linhagem vai desembocar nos romances MPBC e
Quincas Borba, de Machado de Assis15.
Procuremos agora nos aproximar dos processos de linguagem de Mikhail
Bakhtin e, em linhas gerais, explicitar alguns dos conceitos bsicos e imanentes em seus
estudos literrios. Bakhtin expe de forma convincente a situao histrica do romance
e, em particular, as questes estilsticas inerentes ao gnero. Ele nos diz que,
inicialmente, a conscincia lingstica dos criadores do romance era totalmente
descentralizada e relativizada, pois nem mesmo se podia falar em estilo, mas apenas em
13G. Lukcs (1999), p.101.14 O realismo fantstico encontrou terreno propcio a novas experincias estticas nas mos de outrosescritores como Laurence Sterne e Machado de Assis, fundando, assim, uma tradio literria, que vemsendo esboada desde alguns sculos. Para isso, ver Enylton de S Rego (1989), Ecos de Luciano e daTradio Lucinica na obra de Machado, pp.85-130.15 Temos alguns estudos que pem Machado na mesma tradio literria de Cervantes. Destacamos oestudo do ensasta e escritor mexicano Carlos Fuentes que coloca Machado de Assis como herdeiro deCervantes, influenciador direto de sua obra: Caderno Mais!. Folha de So Paulo. 1 de outubro de2000. E um estudo recente de Mara de la Concepcin Piero Valverde (2000), que traa um paraleloentre Cervantes e Machado de Assis. Encontramos ainda nesta tradio, seguindo como influenciadordireto de Machado, Laurence Sterne e seu romance Tristam Shandy, com seu humorismo recorrente.
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forma de exposio. Assim sendo, a linguagem era instvel, encontrava-se ainda em
formao, tendo como resultado a ruptura completa entre ela e o material representado.
Essa conscincia lingstica descentrada quebrada quando surge o Dom
Quixote, que d uma genial representao literria dos encontros do discurso
enobrecido pelo romance de cavalaria com o discurso vulgar, operando-se, assim, uma
substituio do estilo pela exposio, onde h uma relao criativa e substancial do
discurso com o seu objeto, com o prprio falante e com o discurso de outrem.16
A orientao internamente polmica do discurso enobrecido em face do plurilingismomanifesta-se no Dom Quixote nos dilogos romanescos com Sancho e com outrosrepresentantes da realidade grosseira e plurilnge da vida, e na dinmica do enredo doromance. A dialogizao potencial interna, colocada num discurso enobrecido, est aquiatualizada e exteriorizada (nos dilogos e na dinmica do enredo), mas como todadialogizao lingstica autntica ela no se esgota totalmente neles nem se conclui demaneira dramtica.17
Desse modo, Cervantes18 transforma o procedimento de abstrao do plano
literrio elevado e atinge o plurilingismo do mundo real: a linguagem enobrecida se
torna apenas um dos participantes dos dilogos das linguagens.
a partir dessa poca que se acentua, de forma efusiva, a destruio da
soldagem absoluta entre o sentido ideolgico e a linguagem. Isto relevante para a
percepo da desenvoltura alegrica do texto de Machado.
Bakhtin nos diz que preciso aprender a perceber a forma interna de sua
prpria lngua como se fosse a de outrem, mas, mesmo assim, o autor romanesco faz
com que o seu pensamento se infiltre na representao da linguagem de outrem sem
Para um estudo adequado e aproximativo entre os dois ver Marta de Senna (1998), Fielding, Sterne eMachado: uma linhagem e Sterne e Machado: o pacto com o leitor, pp.23-43.16M. Bakhtin (1998), pp. 173-74.17M. Bakhtin, op. cit, p.179.18 Segundo Bakhtin, no s Cervantes, mas tambm Rabelais, Fischart e outros transformamparodicamente este procedimento de abstrao, desenvolvendo em suas comparaes uma srie de
associaes intencionalmente grosseiras, que rebaixam o que comparado ao que h de mais ordinrio,
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violar a sua vontade e originalidade prprias. Isso quer dizer que o discurso do heri
funde-se orgnica e internamente com o discurso do autor. Desse modo, a representao
torna-se uma interao evidente e viva de mundos, de pontos de vista, de acentos
diferentes, possibilitando uma reacentuao dessa representao, de relaes e posies
diferentes nessa discusso e, por conseguinte, de interpretaes diferentes da prpria
representao: ela torna-se polissmica como um smbolo. Assim so criadas as figuras
imortais do romance, que vivem em pocas diferentes existncias diferentes.19
So esses ditames que estabelecem o carter diferencial do romance em relaoaos outros gneros literrios, fazendo-o ser o reflexo completo e multilateral da poca,
ou seja, nele devem ser representadas todas as vozes scio-ideolgicas do perodo, todas
as linguagens, qualquer que seja a sua importncia. Na base dessa exigncia, encontra-se
uma percepo correta da essncia do plurilingismo romanesco: toda linguagem s se
revela em sua originalidade quando correlacionada a todas as outras lnguas integradas
numa mesma unidade contraditria do devir social.20Em outras palavras, dizemos que,
somente no conjunto do plurilingismo de um dado momento, as linguagens isoladas,
seu papel e seu verdadeiro sentido histrico se revelam totalmente.
Bakhtin (em consonncia com o nosso objetivo de captar os recursos poticos da
narrativa a partir dos pressupostos de suas formulaes da linguagem), tendo como fonte
de estudo a obra de Dostoivski, diz ser o escritor russo o criador de um gnero
romanesco essencialmente novo: o criador do romance polifnico. Para ele,
srdido, prosaico, destruindo com isso o plano literrio elevado, atingido por meio da abstraopolmica. M. Bakhtin, op. cit, p.18019 M. Bakhtin, op. cit, p.200. As principais intenes do autor so orquestradas, segmentadas sobdiferentes ngulos entre as linguagens do plurilingismo da poca, afirmando uma fatura vital para o
romance cuja linguagem se transforma num sistema de linguagens literariamente organizado.20M. Bakhtin, op. cit, p.201.
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a multiplicidade de vozes e conscincias independentes e imiscveis e a autntica
polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos
romances de Dostoivski. (...) O discurso do heri no se esgota, em hiptese alguma,nas caractersticas habituais e funes do enredo e da pragmtica, assim como no seconstitui na expresso da posio propriamente ideolgica do autor. A conscincia do
heri dada como a outra, a conscincia do outro mas ao mesmo tempo no seobjetifica, no se fecha, no se torna mero objeto da conscincia do autor.21
Tudo que j foi dito nos d uma viso geral do que se constituiu nos
pressupostos bakhtinianos como uma abordagem literria essencialmente ligada aos
caracteres da linguagem. Isso nos leva interpretao da funo sistmica dos
romances, os quais contm linguagens ou vozes independentes e imiscveis com uma
autntica polifonia, ou seja, vozes que se misturam no discurso. Elas mantm entre si
uma relao de absoluta igualdade como participantes do grande dilogo e que no se
objetificam, mas, pelo contrrio, mantm o seu carter de sujeito enquanto vozes e
conscincias autnomas.
Diante dessa mistura de vozes no discurso, devemos ficar atentos e termos em
mente que no podemos correlacionar a conscincia do heri romanesco do autor do
romance, pois elas no se ligam ideologicamente. Assim sendo, a realidade ficcional
pode ser apresentada pelo ponto de vista estritamente do narrador, sem vnculos diretos
com o prprio escritor, assim como pode haver outras vozes que falam pelo narrador,
mesmo no sendo as do autor. Essas formulaes bakhtinianas possibilitaram o melhor
entendimento do realismo machadiano, pois passamos a considerar todas as linguagens
da poca, contidas em seus livros e sugeridas sem hierarquias, tornando o realismo
dinmico e vivo dentro de sua realidade ficcional aparentemente univocal. Isso ser
melhor explicitado em captulos posteriores.
21M. Bakhtin (1997), pp.4-5.
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Aps consideraes sumrias sobre Lukcs e Bakhtin, procuremos estabelecer
alguma proximidade entre os pressupostos de um e de outro. Ressaltaremos, no entanto,
que esta uma abordagem com a qual se deve ter muita cautela, pois, como j foi dito, o
primeiro trabalha com os caracteres representativos do romance a partir da compreenso
profunda da realidade objetiva, enquanto o segundo v o romance como a representao
de todas as vozes scio-ideolgicas da poca, de todas as linguagens, que se desdobram
em vozes plenivalentes cuja organicidade encontra-se na reacentuao dessa
representao e nas interpretaes diferentes da prpria representao. Mostra-seinegvel tambm a divergncia da fatura terica de uma anlise do romance entre os
dois crticos: Lukcs, partindo do conflito do heri, transforma-o em procedimento
composicional da representao; Bakhtin vale-se da representao do conflito do
homem com o mundo, interiorizando tal conflito na conscincia do heri e tendo uma
viso da histria como histria da conscincia22.
Por outro lado, ambos defendem uma anlise a partir da estrutura interna do
romance: s pode haver um desdobramento conceitual da narrativa romanesca a partir
da anlise entre contedo e forma, que manifestam a unidade dialtica contraditria da
sociedade representada. Enfim, podemos constatar que Lukcs no diverge
completamente das teorias bahtinianas quando sugere que o contedo do ideal srio da
literatura o da riqueza, da diversidade e da polifonia, tanto no conjunto da obra de cada
artista em particular como no conjunto das artes23. Por sua vez, Bakhtin tambm no
diverge totalmente das teorias lukacsianas quando diz que o romance polifnico
22 Irene Machado (1995) diz que, para Bakthin, o romance um texto caracterstico de um estgio nahistria da conscincia no porque indica a descoberta do Eu, mas porque manifesta a descoberta do outro
pelo Eu. p.286.23G. Lukcs (1968), p.274.
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consegue encontrar a multiplicidade de planos e a contrariedade e capaz de perceb-
los no no esprito, mas em um universo social objetivo nos quais os planos no so
etapas mas estncias e as relaes contraditrias entre eles no so um caminho
ascendente ou descendente do indivduo mas um estado da sociedade.24No estamos
querendo dizer que apolifoniasugerida por Lukcs aborde toda a complexidade terica
de Bakhtin com relao ao mesmo termo, nem afirmando que Bakhtin no negue o
indivduo problemticode Lukcs, mas sim tentando explicitar que as teorias de ambos
enquadram-se na perspectiva de uma sociologia do romance e situam-se no quadro geralde um certo materialismo. Dessa forma, as formulaes dos dois tericos devem ser
vistas com igual interesse, pois ajudam a compreender melhor as linhas de fora
interpretativa dos romances de Machado de Assis.
Esses conceitos lukacsiano e bakhtiniano se fazem necessrios nesse ensaio
porque tomamos como base o enfoque desses tericos para podermos selecionar alguns
crticos literrios que os tomaram como fonte. Isso se justifica na medida em que
analisaremos os fundamentos tericos da crtica machadiana, tarefa mais profunda da
reflexo e do pensamento.
24M. Bakhtin (1997), p.27.
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3. O REALISMO E A CRTICA LITERRIA MACHADIANA
Durante o romantismo, a anlise literria ganhou importncia e se difundiu
melhor no meio cultural brasileiro, embora no possusse o carter cientfico de hoje.Escrevia-se sobre os escritores praticando uma anlise diletante sem o tom e a
preocupao de crtica como conhecemos hoje. Essa forma de abordagem comeou a
mudar e as anlises crticas comearam a adquirir um carter cientfico aprimorado. Isso
tambm se deu com os ensastas que tinham a obra machadiana como objeto de estudo e
que comearam numa vertente predominantemente biogrfica (o que no os impede de
serem importantes na histria da interpretao machadiana).
Um dos estudos primorosos que marcou a anlise da obra machadiana atravs de
sua biografia foi o trabalho de pesquisa empreendido por Lcia Miguel Pereira,
direcionando algumas interpretaes justas de crticos machadianos que recorreram ao
seu estudo, embora haja nele alguns comentrios imprecisos que fazem notar o que h
de negativo nesse tipo de anlise. Em um rasgo de interpretao biogrfica, a autora
chega a dizer que, para compreender Machado de Assis, preciso no esquecer
precisamente daquilo que procurou ocultar: da origem obscura, da mulatice, da feira,
da doena - do seu drama enfim.25
25L. M. Pereira (1988), p.26.
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Alguns anos mais tarde, mais precisamente a partir da dcada de 50, algumas
teorias sobre o romance comeam a ser conhecidas no Brasil, dentre elas as de Mikhail
Bakhtin e Georg Lukcs. Os crticos brasileiros, de um modo geral, embeberam-se
dessas fontes e, em particular, os crticos machadianos descobriram nelas uma aliana
para se poder compreender linhas interpretativas que antes se encontravam ocultas pela
perspiccia de Machado de Assis em sua escrita.
Nossa anlise focalizar alguns dos principais crticos que desenvolveram uma
linha interpretativa como desdobramento das teorias do romance. Teremos comoobjetivo captar, em cada um, uma interpretao voltada para a maneira de se caracterizar
o realismo empreendido por Machado de Assis em seus romances da segunda fase.
Olhando por outro campo interpretativo, encontramos estudos que acentuam o realismo
na obra machadiana, configurando-o como um documento histrico eventual da poca,
isto , estudos que tm como pressuposto a obra literria tida como evidncia histrica
objetivamente determinada. o que acontece com o ensaio de Jefferson Cano no qual
declara que, ao escrever MPBC,
Machado poderia ter de fato construdo uma alegoria que no simplesmenteapresentava uma histria do Brasil (Brs), ou de uma representao do Brasil apartir de um olhar particular das classes proprietrias, mas ainda dialogava comtoda uma produo historiogrfica j estabelecida, e com a qual Machado deviaestar familiarizado. E, nesse sentido, encetava um debate com os historiadores
contemporneos a respeito do carter que deveria assumir uma histrianacional.26
No levaremos em conta esse tipo de estudo, j que ele no demarca as fronteiras
entre a criao ficcional e a interpretao social, dialogando diretamente com correntes
historiogrficas e chegando constatao de que Machado era um observador arguto da
formao social brasileira.
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Dessa forma, voltemos aos crticos sugeridos, Astrojildo Pereira, Raymundo
Faoro, John Gledson, Roberto Schwarz e Alfredo Bosi, de um lado, e Dirce Cortes
Riedel, Jos Guilherme Merquior, Enylton de S Rego e Sonia Brayner de outro - que
chegaro, tambm, constatao de que Machado soube observar e representar a
formao social do seu pas, que, entretanto, foram mais cuidadosos ao percorrerem
caminhos menos tortuosos para formarem essa opinio. Enquanto os primeiros buscam
a ordenao de esquemas de raciocnio que procuram definir tpicos do relato ficcional
em funo da vida em sociedade, os segundos seguem as mediaes interpretativasdirecionadas para as questes da linguagem e do dialogismo bakhtinianos. Essas duas
vertentes interpretativas, respeitadas as diferenas, somam-se em uma linha de fora que
procura alar Machado posio de destaque que merece na histria da literatura
universal.
Comecemos com o estudo de Astrojildo Pereira, que diz que h uma
consonncia ntima e profunda entre o labor literrio de Machado de Assis e o sentido
da evoluo poltica e social do Brasil.27 Na interpretao de Astrojildo, Machado
estava em meio a uma poca de transio, da sociedade patriarcal para a sociedade
burguesa, da monarquia para a repblica, poca caracterizada pela ascenso histrica
de uma nova classe dirigente.
Raymundo Faoro remodela a seu modo esse fio e qualifica de maneira mais
pertinente de que transio se trata, possibilitando, assim, uma compreenso bem mais
ampla e matizada de Machado como escritor do Segundo Reinado. Ele constri em seu
livro A pirmide e o trapzioa idia de que a obra de Machado de Assis est inscrita
26J. Cano (1998), p.38
27A. Pereira (1991), p.14.
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na poca da mudana da sociedade de estamentos para a sociedade de classes; entretanto
a classe em ascenso coexiste com o estamento. A fora do seu livro est no andamento
em paralelo de uma histria do Segundo Reinado e incios da Repblica com a fico
machadiana, de sorte que um serve ao outro, a histria dando raiz fico, a fico
ilustrando a histria. Da uma certa perda de autonomia da obra literria, que s se deixa
ler sob o cenrio da histria que a acompanha muito de perto. Embora parea haver uma
ruptura na fora interpretativa do estudo de Raymundo Faoro, chega-se concluso de
que se ele pode escrever sua sociologia histrica do Segundo Reinado pontuando-a coma obra de Machado de Assis, isso sinal de que Machado foi capaz, em registro prprio,
de retrat-la, vale dizer, apresentar a realidade.
Sigamos adiante com Gledson, que tem como principal objetivo
mostrar como o romance [de Machado] ilude. No desejo me concentrar no nvelgeral nem no nvel mnimo, mas no nvel intermedirio da estrutura do romancecomo enredo e como argumento. Antes, todavia, devem ser estabelecidos doispontos importantes a respeito da situao da narrativa de Bento [Santiago,narrador e personagem do romance Dom Casmurro]. Primeiro, ele ,evidentemente, um enganador que est tentando persuadir de uma dada versodos fatos de sua histria.28
Sua concepo a de que Machado compe um realismo enganoso que, por
sua vez, composto de um substrato alegrico. Ele se empenha em analisar o texto
machadiano por meio de um jogo de interpretao histrica, em nvel alegrico, sabendo
que a sua fico se opera em dois nveis: o comum e o oculto. Justamente por haver essa
operao que a experimentao da forma machadiana melhor compreendida como
resultado de seus objetivos realistas; um veculo para eles, e no algo com um
propsito e mpeto prprios.29
28
J. Gledson (1991), pp.20-21.29J. Gledson (1986), p.15.
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Gledson chega a dizer que os objetivos de Machado so sempre realistas, pois
retratam a verdadeira natureza de toda uma sociedade30. Argumenta que o processo de
questionar os textos machadianos, de um modo geral, e Dom Casmurro, de um modo
particular, no puramente destrutivo. Muito pelo contrrio, pois, medida que
questionamos, comeamos a compreender Bento e a sociedade e a cultura que o
formaram, ou seja, passamos a vislumbrar um relato mais preciso e confivel de uma
realidade da qual os mitos e os hbitos mentais compem uma parte essencial.31
Com Roberto Schwarz, podemos perceber uma interpretao mais voltada paraas questes de anlise sociolgica aprofundadas, onde a sociedade possui um vnculo
mais direto com a obra machadiana.
O crtico literrio nos diz que Machado de Assis tira de cena o narrador
constrangido de seus primeiros romances (cujo decoro obedecia s precaues da
posio subalterna) para entrar na desenvoltura caracterstica da segunda fase, ou seja, o
ponto de vista troca de lugar, deixa a posio de baixo e respeitosa pela de cima e
senhorial, instruindo o processo contra esta ltima32. Machado utiliza esse recurso para
se apropriar, em MPBC, da figura de Brs Cubas, personagem cuja feio retrata a
sociedade abastada e patriarcal da poca. Brs exposto por suas mazelas, no somente
questionado por suas aes e posies, mas utilizando-o ele prprio para analisar as suas
atitudes discricionrias. Tendo conscincia dessa atitude esttica diante de sua obra
como um arranjo original, Machado percebe nas questes impalpveis e remotas uma
base estratgica para o estudo e o exerccio da arbitrariedade de seus personagens, tanto
30J. Gledson, op. cit, p.110.31
J. Gledson, ibidem, p.46.32R. Schwarz (2000, B), p.227.
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assim que a comdia dos interesses implicados na atividade de classificar, esquematizar
e abstrair ser um dos aspectos originais de sua obra.
Desse feito, alguns de seus personagens (como o prprio Brs Cubas) demarcam
alegoricamente a situao ideolgica do seu pas, que vivia carregado por uma profunda
contradio: havia a defesa progressiva do trfico negreiro que suscitava problemas
ideolgicos difceis de resolver, encarnando a parte de afetao e afronta que
acompanha a vida das idias nas sociedades escravistas modernas. As idias que se
importavam estavam deslocadas, fora do lugar, pois o progresso e a cultura conviviamcom a escravido. Diante disso, a escravido, comumente uma infrao, torna-se norma
e o progresso e a cultura, normalmente caracterizados como norma, transformam-se em
infrao, exatamente como na prosa machadiana.
A questo saber como Machado elaborou esse processo de absoro das idias
ideolgicas fora do lugar (tendo em conta que essas idias adquiriram, no cenrio
brasileiro, uma feio prpria e moldadas s nossas condies de vida, mas nem por isso
menos contraditrias) no contexto nacional brasileiro em sua obra. Ele consegue fazer
isso em toda a extenso de seus textos da segunda fase, mas principalmente em MPBC,
em que a volubilidade de Brs Cubas um mecanismo narrativo em que est implicada
a problemtica nacional. A volubilidade funciona a todo vapor, pois , sobretudo,
princpio formal, mas no est sozinha enquanto regra de composio, embora ocupe
totalmente o primeiro plano. A seu lado, quase invisvel, est o discernimento social-
histrico do romancista.
Dessa forma, o modelo literrio, ideolgica e socialmente prestigioso, entra
como ingrediente negativo na composio de um prottipo da classe dominante
brasileira. A viravolta no processo de composio do romance considervel e depende
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da capacidade realista de ver nas representaes um momento funcional do processo
histrico. Tambm dependendo da capacidade de perceber que o padro de escrita [de
Machado de Assis] no nasceu pronto. Ele se formou a partir das dificuldades histricas
e literrias do pas, e atravs da reflexo crtica a respeito.33E, nesse sentido, ele foi
uma figura mpar no cenrio cultural brasileiro porque, quela poca, era difcil definir o
nosso quadro social pouco claro e os nossos romancistas eram obrigados a fazer
ideologia, historiografia e fico ao mesmo tempo.34 A maioria deles no conseguiu
vislumbrar essa tarefa complicada de percepo tanto social quanto esttico-literria.Machado arcou com as conseqncias, que foram bastante positivas, afastando-se, no
plano da filiao ideolgica e literria, da tradio forte do Realismo e Naturalismo,
montando um dispositivo literrio mais chegado nossa realidade e se esforando, ao
contrrio de uma equao materialista de anlise, para captar as situaes e
constrangimentos sociais de sua poca.
Alfredo Bosi tambm filia Machado ao rol dos escritores singulares de nossa
literatura, dizendo-nos que a sua originalidade est em ver por dentro o que o
Naturalismo veria de fora.
Os seus tipos so e no so parecidos com os dos seus contemporneos, Ea deQueirs e Alusio Azevedo, brilhantes traadores de caricaturas. Vejo nessadiferena as potencialidades dos discursos ficcionais que, mesmo se colocadossob o signo do realismo histrico, no se deixam enrijecer em categorias. O
cnico e o hipcrita, figuras recorrentes nas estruturas sociais assimtricas,acabam merecendo, quando avaliados por dentro, ao menos a complacncia deum olhar ambivalente.35
Afinal, so feitos do barro comum humanidade (e do qual todos somos feitos),
vacilando um pouco antes de se renderem ao puro interesse e depois racionalizam,
33R. Schwarz (1999), p.221.34R. Schwarz (2000, A), pp.156-157
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emprestando argila mole da conscincia alguma forma socialmente aceitvel. E
justamente essa a maneira de encarar e de refletir (sobre) seus personagens,
transmitindo-os de uma maneira perfeitamente dinmica e justificada, que faz de
Machado um escritor com um olhar que no decalca passivamente, mas escolhe,
recorta e julga as figuras da cena social mediante critrios que so culturais e morais,
saturados portanto de memria e pensamento,36pois o olho crtico do escritor penetra o
seu objeto e o transcende, tecendo uma narrativa como processo expressivo.
Direcionemos nossos olhos agora para os exponentes da crtica voltada para ospressupostos da linguagem, a comear por Dirce Cortes Riedel. Ela soube perceber no
escritor os processos de composio que desviaram o rumo da conscincia artstica
nacional, realando em nossa literatura uma idia do que era a complexidade da fico
moderna. Para chegar a essa percepo, Dirce utiliza os conceitos de metfora e pardia.
As metforas encadeiam-se intra e intertextualmente ao longo da obra machadiana e, em
especial, em Quincas Borba, desde a realizao da metfora de um personagem por
outro at a transposio metafrica de uma realidade que se encontra parodiada e, por
isso, passvel de ser incompreendida porque as referncias se ocultam por detrs dos
jogos metafrico e pardico.
Ainda segundo Dirce Cortes Riedel, ao lado desses recursos estilsticos,
encontramos uma verso machadiana da carnavalizao teorizada por Bakhtin, na qual
personagens como Brs Cubas, Quincas Borba e Rubio possuem sensibilidade
carnavalesca. Ela diz que o carnaval elaborou representaes que eram, sob ngulos
diferentes, pardias umas das outras. Era como que um sistema completo de espelhos
35
A. Bosi (1999), p.18.36A. Bosi, op. cit, p.48.
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deformantes, que alongavam, diminuam, deformando em diversas direes e em graus
diversos,37 construindo, dessa forma, uma mistura de discursos. Essa a feio da
carnavalizao. Assim sendo, juntamente com as metforas e as pardias que camuflam
a realidade objetiva da obra machadiana, encontramos ainda, pelo discurso altamente
labirntico de Machado, a carnavalizao de seus caracteres, que leva a realidade
cotidiana at as fronteiras do fantstico.
Jos Guilherme Merquior persegue caminhos parecidos aos de Riedel, dizendo
at mesmo que a situao narrativa de MPBC eivada de natureza fantstica, a comearpelo fato de ser o romance de um defunto, memrias radicalmentepstumas. Segundo
o crtico, o fantstico tem como principal caracterstica transformar a objetividade dos
romances em matria subjetiva, combinando os traos autnticos da realidade em
extravagante ornamentao da forma, assim como acontece em MPBC, em que Brs
Cubas utiliza como efeito narrativo a subjetividade fantstica e os contornos tortuosos e
conturbados de uma realidade autntica. Jos Guilherme Merquior descreve uma
fisionomia na obra marcada no s pelas caractersticas fantsticas, mas tambm pela
acentuao humorstica, que confere narrativa machadiana um ar de manifestao
sarcstica. Por essas manifestaes que lhe so peculiares, o crtico vai traando um
paralelo entre as representaes das histrias machadianas e a realidade objetiva, pondo
a nu um mundo socialmente dinmico, onde os acontecimentos so tomados como
verossmeis, assim como os caracteres passam a adquirir uma identidade
caracteristicamente real. Com uma interpretao bem conduzida, chega a dizer que a
crtica moral [nas MPBC] se exprime, de maneira entranhadamente artstica, pela
imaginao ficcional e pela reflexo concretamente motivada e no pelo conceito
37D. C. Riedel (1974), p.5.
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abstrato ou pela mxima isolada.38Devido a isso, devemos ter muito cuidado, pois a
frase machadiana de fato sempre faceira: exige que ns a olhemos antes de ver o que
ela mostra.39
Enylton de S Rego conduz a sua crtica em torno da obra de Machado de Assis
traando uma linha de continuidade nos seus romances, afirmando que o romancista
desenvolve uma interao discursiva com obras capitais na literatura universal,
resultando em um plgio literrio40, levando-se em conta que isto no constitui um
defeito, mas, ao contrrio, trata-se de uma particularidade estilstica preciosa em certatradio literria41. Isso avulta a tradio da stira menipia que, assim como nos
romances capitais de Machado de Assis, caracteriza-se por um estilo fragmentrio,
descontnuo e discursivo. Ele a segue e precisamente isso que o diferencia dos demais,
porque, ao utilizar recursos da stira menipia, Machado quebrava o molde da prosa de
fico tanto romntica quanto naturalista, produzindo um novo tipo de romance em que
se afirmem um heri e uma forma narrativa apropriados s idias do sculo e aos seus
meios de comunicao.42
Como tudo que escapa ao comum, o nosso escritor acabou por ser enveredado
em uma rede de falsas interpretaes, pois, alm de desrespeitar os ditames da
verossimilhana, acrescentou uma dose de ceticismo em seus escritos, relativizando
verdades ditas absolutas pela sociedade, discutindo-as e colocando-as em um patamar
mais analtico. E o seu ceticismo frente histria contrasta com as opinies em vigor no
38J. G. Merquior (1979), p.168.39J. G. Merquior, op cit, p.174.40E. S. Rego (1989), p.26.41 Essa tese, Enylton de S Rego, op. cit, ir comprovar no captulo 5 do seu livro O calundu e apanacia, Pardia: tradio e inovao na obra de Machado de Assis, dizendo que Machado nasMPBCfaz uma re-escritura cmica do pico, em Quincas Borbafaz uma re-escritura trgica do cmico
e em Dom Casmurroele faz uma re-escritura da tragdia.
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sculo XIX, porque este perodo, principalmente o vivido por Machado, voltou-se para
os rigores do cientificismo reducionista, nos quais tudo era tomado sob forma
normatizadora e enciclopdica. Isso faz com que Machado seja entendido de forma
errnea. H os que pensam que ele no se preocupou com o seu pas e com a sua poca
porque no segue e at questiona as idias de seu tempo. Tal julgamento pode ser
contestado: Machado, ao questionar, percebia os defeitos e acentuava as discrepncias
da sociedade da sua poca e do seu pas para trazer tona a reflexo, privilegiando
como modo de produo artstica a ironia e a imaginao (propositalmente mascarandoa realidade) e rejeitando todo e qualquer sistema filosfico totalizador. O seu realismo
sugerido como uma estrutura narrativa de valor, sobretudo, simblico, na qual a
imaginao e a forma de apresentao tm tanto ou mais valor do que a veracidade dos
fatos narrados.43
J Sonia Brayner viabiliza como principal pressuposto de sua anlise os recursos
do dialogismo textual utilizados por Machado de Assis. Ela nos diz que o termo
dialogismo usado por Bakhtin traz histria literria um princpio j observado, mas
no to profundamente estudado, ou seja, o princpio de subverso, uma produtividade
textual contestatria.44E precisamente disso que o texto machadiano se nutre, de uma
atividade de profunda contestao consigo mesmo e com outros textos que se
entrecruzam nele. A elaborao dessa fico passa a se tornar matria viva, inscrita na
temporalidade do autor e do leitor, deixando de ser algo de objetivo, acabado e
completo. A partir desse prisma, as leituras machadianas tornam-se fontes inesgotveis
de referncias e transformaes, dando ao leitor um espao aberto para a discusso
42E. S. Rego, op. cit, p.149.43
E. S. Rego, op. cit, p.152.44S. Brayner (1979), p.54.
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interpretativa e valorativa. Os enunciados passam a ser mais do que simples
informaes, dando ao texto um carter extremamente aberto e discursivo, pois a
literatura, para Machado, forma de pensar, de questionar e de escutar.45
a partir dessa maneira de se inscrever na cena literria que ele se difere dos
outros, pois para esses o fundamental in-formar uma experincia humana, enquanto
para Machado o importante conservar nesta experincia toda a espontaneidade, no
esprito e na escritura, com que surgiram.46Dessa forma, a diferena torna-se ntida,
porque, ao invs de ele descrever uma realidade humana, ele a analisa em todas as suastriangulaes, sempre respeitando a relatividade dos fatos e, por isso mesmo,
permutando vrias correntes de pensamento. O discurso ganha em riqueza analtica, pois
caracteriza uma dupla orientao que viabiliza o fenmeno dialgico: em direo ao
objeto mesmo do discurso e em direo a um outro enunciado, ao discurso de um
outro.47
Toda essa densidade na escrita machadiana fez com que se buscasse uma
maneira mais adequada de assumir uma postura crtica diante da realidade social de sua
obra e nada melhor para isso do que percorrer o mesmo caminho trilhado por ele: ser
guiado pela linguagem de sua fico e pela interpretao dos labirintos da sua
interioridade discursiva. Isso nos trar uma fico engajada com os problemas da
atualidade.
Enfim, abordamos, resumidamente, as principais idias analticas desses crticos
e conseguimos captar algumas inferncias modeladoras atravs da tecitura interpretativa
45S. Brayner, op. cit, p.96.46
S. Brayner, op. cit, p.82.47S. Brayner, op. cit, p.54.
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dessas duas linhas crticas voltadas para a anlise da obra machadiana que diz respeito
sua feio realista.
Primeiramente, devemos estar conscientes da diferenciao entre essas anlises,
pois as primeiras, de fundo sociolgico, procuram, em uma relao direta com a
Histria, mediaes formais e estticas que possam trazer a obra machadiana para uma
interpretao adequada da realidade nacional brasileira, enquanto as segundas,
preocupadas com questes relativas narrativa, buscam interpretaes voltadas para o
tratamento das categorias composicionais do romance a partir de princpios classificadoscomo metalingsticos, possibilitando a orientao pelo processo de comunicao
dialgica da linguagem dos textos machadianos.
Em segundo lugar, no podemos deixar de perceber que, apesar de serem duas
linhas de raciocnio diferentes, elas se entrecruzam constantemente, formando uma base
coesa de anlise interpretativa e no devem ser vistas em separado, pois, juntas,
produzem uma forma original de encarar a obra machadiana e nos fazem entender que o
seu realismo deve ser compreendido de uma forma dinmica e multifacetada, repleto de
um exerccio estilstico e formal constantes.
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4. MEMRIAS PSTUMAS DE BRS CUBAS: ANLISE DE UMA
REALIDADE DINMICA
Ao propor uma anlise em torno da obra de Machado de Assis, devemos levar
em conta todo um aparato analtico que j se encontra a nossa disposio a respeitodesse escritor e que vem crescendo a cada gerao de crticos literrios. O que
pretendemos demonstrar a partir de sua obra a feio caracteristicamente realista de
seus escritos, um realismo peculiar a partir do qual uma construo formal elaborada
volta-se para uma anlise da sociedade brasileira.
Temos a noo, a partir desse estudo, que Machado no se limitou s linhas
dominantes, moda literria vigente em sua poca. O que fez o escritor se diferenciar
dos outros de seu tempo? Estudos indicam a influncia dos romancistas britnicos do
sculo XVIII sobre o brasileiro, mas o nome que mais nos chamou a ateno foi o de
Laurence Sterne48, pela conduta caracterstica de sua narrativa em A vida e as opinies
do cavalheiro Tristram Shandy que influenciou na soluo formal de Memrias
Pstumas de Brs Cubas, livro que ser analisado neste captulo49.
No texto introdutrio Ao leitor, j avistamos uma referncia explcita a Sterne:
48 Ver a nota 14. Outro estudo que podemos citar o de Maria Elizabeth Chaves de Mello (2001),Machado de Assis, leitor de Lawrence Sterne, pp.305-313. Ainda temos um estudo que traa asdiferenas de composio entre o Tristram Shandy de Sterne e MPBC de Machado de Assis: NceaHelena Nogueira (2001), O romance monolgico de Laurence Sterne e o romance polifnico deMachado de Assis.49Os trechos de Memrias Pstumas de Brs Cubasaqui transcritos foram retirados da Obra completa
(1997) de Machado de Assis, volume 1.
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Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brs Cubas, se adotei aforma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, no sei se lhe metialgumas rabugens de pessimismo.
A influncia de Sterne na obra do autor das MPBCno baseada somente nessa
afirmao, mas, principalmente, na semelhana de certos recursos narrativos presentes
nos dois livros, pois ambos saltam de um assunto para o outro, do particular para o
geral, do abstrato para o concreto e vice-versa, do real para o imaginrio e deste para o
onrico etc. Tudo isso depende da desenvoltura com que o narrador trata os assuntos.
Nas duas narrativas, a forma livre adotada, tendo como fundamento os desvios
constantes. A natureza digressiva do que est sendo narrado a matria mesma de
Tristram Shandy:
Pois nesta longa digresso a que fui acidentalmente levado, como em todas asminhas digresses (com exceo de uma s), h um toque de mestre naproficincia digressiva. (...)
Graas a esse dispositivo, a maquinaria de minha obra de uma espcie nica,dois movimentos contrrios so nelas introduzidos e reconciliados, movimentos
que antes se julgava estarem em discrepncia mtua. Numa s palavra, minhaobra digressiva, mas progressiva tambm, - isso ao mesmo tempo. (...)As digresses so incontestavelmente a luz do sol; so a vida, a alma da leitura;
- retirai-as deste livro, por exemplo, - e ser melhor se tirardes o livro juntamentecom ela. (Tristram Shandy, pp.105-106)
As digresses, que so uma conseqncia da forma livre, a alma da leitura
deste livro. Existem at captulos em que o autor nos diz como se operam esses
movimentos digressivos atravs de uma linha razoavelmente reta, mas que, na
verdade, possui curvas assinaladas, curvas denteadas, curvas em forma de balo, enfim,
cabriolas digressivas que confirmam o seu passeio ao ar livre diante do mtodo
narrativo50:
50Ver pgina 461 do Tristram Shandy. Esses grficos explicam o desenvolvimento tortuoso da narrativa.
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Ao fazer isso, Sterne deliberadamente expunha sob os olhos do pblico leitor os
bastidores da sua oficina, adensando ainda mais esse fato com a utilizao de artifcios
tipogrficos a que ele recorre com o propsito de desmistificar a iluso ficcional pela
nfase na prpria materialidade do livro, como o caso de intensificar a morte de Yorick
atravs de uma folha toda em preto51, ou construindo captulos com as pginas em
branco52. Tudo isso vem pontuado por uma conversa permanente com o leitor e pelo
respeito por suas consideraes:
O respeito mais verdadeiro que podeis mostrar pelo entendimento do leitor serdividir amigavelmente a tarefa com ele, deixando-o imaginar, por sua vez, tantoquanto imaginais vs mesmo. (Tristram Shandy, p.136)
Os leitores so trazidos para dentro do prprio texto e nele ouvem a si prprios:
- Como pde a senhora mostrar-se to desatenta ao ler o ltimo captulo? Neleeu vos disse que minha me no era uma papista. - Papista! O senhorabsolutamente no me disse isso. Senhora, peo-vos licena para repetir outravez que vos disse tal coisa to claramente quanto as palavras, por infernciadireta, o poderiam dizer. - Ento, senhor, devo ter pulado a pgina. - No,senhora - no perdestes uma s palavra. - Ento devo ter pegado no sono, senhor.- Meu orgulho, senhora, no vos permite semelhante refgio. - Ento declaro quenada sei do assunto. - Essa, senhora, exatamente a falta de que vos acuso; e, guisa de punio por ela, insisto em que volteis imediatamente atrs, isto , tologo chegueis ao prximo ponto final, leiais o captulo todo novamente.(Tristram Shandy, p.94)
51
Ver Tristram Shandy, p.73.52Ver Tristram Shandy, pp.598-599
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s vezes, isso no se d de modo to visvel. Para se ter uma idia melhor sobre
esse assunto, devemos entender alguns pormenores a respeito do leitor. Existem vrios
tipos de leitores, mas o que nos interessa por agora o conceito de leitor implcito,
porque ele no tem existncia real (como o caso do exemplo da senhora - leitora -
citado aqui). Esse tipo de leitor materializa o conjunto das preorientaes que um texto
ficcional oferece, como condies de recepo, a seus leitores possveis. A concepo
do leitor implcito designa uma construo textual que antecipa a presena do receptor,
descrevendo um processo de transferncia pelo qual as estruturas do texto se traduzemnas experincias do leitor atravs dos atos de imaginao,53 por isso, o recurso
narrativo de se utilizar o leitor implcito torna-se importante, porque ele dar pistas ao
leitor real e tentar conduzi-lo para uma compreenso e interpretao adequadas da
obra.
A figura desse leitor a confirmao de mais uma das muitas vozes contidas no
romance. Isso cria uma polifonia, que sugerida pela tcnica narrativa do autor de se
intercalar estilos54.
Esse leitor, nas MPBC, fica totalmente merc do narrador que utiliza uma
tcnica de sacudir o ponto principal diante do seu nariz, mantendo-o tambm to
entretido e perplexo com outras coisas que provavelmente no enxergar o ponto
sugerido e sugestivo:
A minha idia, depois de tantas cabriolas, constitura-se idia fixa. Deus telivre, leitor, de uma idia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. (...)
Era fixa a minha idia, fixa como... No me ocorre nada que seja assaz fixonesse mundo: talvez a Lua, talvez as pirmides do Egito, talvez a finadadieta germnica. Veja o leitor a comparao que melhor lhe quadrar, veja-a eno esteja da a torcer-me o nariz, s porque ainda no chegamos partenarrativa destas memrias. (MPBC, cap. IV, os grifos so meus)
53W. Iser (1996), p.79.
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Atente-se para o fato de o narrador desviar o foco narrativo e, ainda por cima,
oferece dicas falsas ao leitor, uma vez que a lua no fixa, pois se move; as pirmides
do Egito no so fixas pois desgastam-se com o tempo e nem mesmo a dieta germnica
fixa, sendo finada. Utilizando-se constantemente das digresses, assim como em
Tristram Shandy, o narrador, aps pedir ao leitor para escolher a melhor comparao,
que, como vimos, uma pista falsa, ainda o leva para outro caminho que o distancia
daquele da idia fixa tida por ele: o caminho da composio da narrativa.
Vejamos outro exemplo da utilizao de torneios digressivos maneira deSterne:
...este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e esquerda,andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam ecaem... (MPBC, cap.LXXI)
Percebemos que h a uma teoria esboada do mtodo utilizado pelo narrador
para narrar as suas memrias, equiparando-se quele captulo do Tristram Shandyemque se operam movimentos digressivos atravs de uma linha razoavelmente reta.
Temos, ento, um narrador que subverte o tempo, antecipa acontecimentos, comprime
lapsos enormes em uma pgina, narra minutos em captulos inteiros, cita outros autores
(s vezes sem fidelidade total), d titulos metanarrativos a captulos, cria suspense,
engana o leitor ao afirmar o contrrio do que realiza e confessa dizendo que isto de
mtodo, sendo, como , uma cousa indispensvel, todavia melhor t-lo sem gravata
nem suspensrios, mas um pouco fresca e solta.55
Essas so demonstraes no apenas de recursos para desviar a ateno do leitor
do assunto principal, mas tambm se constituem um artifcio literrio, uma tcnica
54
Isso esboado nas pginas 78-80 do Tristram Shandy.55MPBC, cap.IX.
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narrativa, diferente das que se usavam quela poca. Machado acabava fugindo das
normas estticas vigentes, at mesmo criticando e satirizando o modo de construo
textual do seu tempo:
Vim... Mas no; no alonguemos este captulo. s vezes, esqueo-me a escrever,e a pena vai comendo papel, com grave prejuzo meu, que sou autor. Captuloscompridos quadram melhor a leitores pesades; e ns no somos um pblico in-
folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado evinhetas... principalmente vinhetas... No, no alonguemos o captulo (MPBC,cap.XXII).
Isso fica ainda mais marcado por intermdio de um conto seu, Miss Dollar56,
no qual constri uma tipologia do leitor (leitor implcito) segundo o gosto esttico da
poca, dirigindo-se a ele dizendo que, se rapaz e dado ao gnio melanclico, deve
deliciar-se com a leitura dos sonetos de Cames ou os Cantos de Gonalves Dias.
Notemos o gosto literrio de tal leitor, que fica caracterizado como aquele dado leitura
dos romnticos.
Se no suscetvel a estes devaneios e melancolias, o leitor imaginar uma Miss
Dollar totalmente diferente da outra, sendo amiga da boa mesa e do bom copo,
preferindo um quarto de carneiro a uma pgina de Longfellow, cousa naturalssima
quando o estmago reclama, e nunca chegar a compreender a poesia do pr-do-sol.
Este leitor j prefere uma Miss Dollar mais afeita aos temperamentos biolgicos e
fisiolgicos, caracterizando-se como o que prefere os naturalistas.Mas, se j tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem
recurso, o leitor j no ter esses mesmos sentimentos, pois, para ele, a Miss Dollar seria
uma inglesa de cinqenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que,
aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um
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romance verdadeiro, casando com o leitor aludido. Essa situao sugere uma temtica
de casamento por interesse, tpica do enredo realista.
Machado, ao final, diz que essas no so leituras exatas para o seu conto, pois a
Miss Dollardo romance no a menina romntica, nem a mulher robusta, nem a velha
literata, mas uma cadelinha galga. Assim, ele faz meno ao Romantismo, ao
Naturalismo e ao Realismo, descartando leitor por leitor e demonstrando o desgaste de
cada uma dessas escolas. Esse exemplo j sugere que o escritor se coloca fora das
estticas dominantes da poca, longe dos padres das escolas mencionadas,promulgando um estilo que percorre todos os outros e os supera.
Nas MPBC, a idia sugerida em Miss Dollar mostrada de uma maneira mais
latente. A figura do narrador vai demonstrando esse aspecto: ele critica os recursos
textuais utilizados e que estavam em voga, mostrando tambm o que pode ser feito para
isso mudar. Atravs da violao de uma norma do gnero (o de sempre ocultar aos olhos
do pblico o modo de construo da narrativa), o narrador o expe, demonstrando, dessa
forma, como o romance produzido (neste trecho, podemos observar, assim como em
Tristram Shandy, a tcnica narrativa utilizada pelo autor, ao se intercalar estilos,
confirmando o carter polifnico do romance):
Meu crebro foi um tablado em que se deram peas de todo gnero, o dramasacro, o austero, o piegas, a comdia lou, a desgrenhada farsa, os autos, as
bufonerias, umpandemonium, alma sensvel, uma barafunda de cousas e pessoas,em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna at a arruda do teu quintal,desde o magnfico leito de Clepatra at o recanto da praia em que o mendigotirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vria casta e feio.(MPBC, cap.XXXIV)
56As citaes em Miss Dollar foram retiradas da Obra completa(1997) de Machado de Assis, volume
2, p. 27-44.
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assim que chama a ateno do leitor para o fato de ele estar lendo um livro, um
artefato literrio, alertando-o para o fato de se confundir realidade e fico, uma vez que
a obra se recusa a parecer verossmil, destruindo no esprito do leitor a iluso de a vida
romanesca por ele vivida durante o tempo da leitura ter um estatuto de realidade
idntico ao da vida cotidiana. Exemplo maior so os captulos que, como em Tristram
Shandy, enfatizam a materialidade do livro: o captulo O velho dilogo de Ado e
Eva, que d a idia de o prprio leitor poder preencher as lacunas vazias ao seu gosto e
ao seu feitio; ou, at mesmo, o captulo De como no fui ministro dEstado, quemostra o vazio de discurso por meio de uma pgina sem nenhum escrito, pois no sendo
nomeado ministro no se diz nada. Esses e mais alguns exemplos espalhados pelo livro
destacam os artifcios tipogrficos usados para adensar a ficcionalidade do romance.
Outro aspecto, reafirmando a nossa proposta de que Machado se coloca fora das
estticas dominantes da poca, a prpria idia de o narrador j dizer no primeiro
captulo que no propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, isto , s
depois de morto que lhe surgiu a idia de ser um escritor. Esse recurso de se matar o
narrador, deixando entrever a falta de verossimilhana da narrativa, uma das mais
marcantes originalidades de Machado de Assis. A poca pedia uma reflexo sobre a
funo da fico diante do vazio social nas obras literrias e ele possua a conscincia de
que a retrica ento predominante fugia reflexo. Percebeu que, para refletir sobre a
fico (e como conseqncia sobre as decorrncias sociais daquele tempo), era preciso
matar o escritor adequado ao horizonte de expectativas do pblico da poca57.
Matando Brs Cubas, ele o coloca fora das estticas circulantes para inseri-lo em um
57M. E. Chaves de Mello (2001), p.310.
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mundo onde se privilegia a ordenao de raciocnios imaginativos, reflexivos e
dinmicos.
Cabe-nos, aqui, uma ressalva: se a obra machadiana impede o leitor de confundir
realidade e fico, como o realismo se mostra na obra de Machado? Em primeiro lugar,
ele possui um realismo peculiar e, em segundo lugar, devemos entender que a realidade
em Machado , antes de tudo, uma realidade que se mascara, sendo necessrio
desdobr-la em sua obra.
Olhando por outro lado, a questo de Brs Cubas ser um defunto autor nodesmancha a verossimilhana realista, embora a desrespeite. Para termos a veracidade
dessa confirmao, faremos o seguinte: a partir da viso do memorialista Brs Cubas,
traaremos o perfil de duas figuras de MPBC, D. Plcida, uma agregada velha, que no
tem onde cair morta, encontrando em Brs o protetor e Cotrim, o cunhado negocista, ex-
traficante de escravos.
Comecemos com D. Plcida, uma mulher pobre que costura, faz doces por
ofcio, ensina crianas do bairro, tudo indiferentemente e sem descanso, para comer e
no cair, com o vocbulo cair dando a idia de pedir esmolas, cair em degradaes.
Segundo Brs Cubas, custou muito a ela aceitar a casa em que ele e Virglia iriam se
encontrar furtivamente, pois, sendo devota sincera do casamento e da moralidade
familiar, demorou para se conformar a prestar servios de alcoviteira. Quando Brs lhe
fez um peclio de cinco contos, dizendo ainda que ela nunca mais deixou de rezar por
ele, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto, acabou-
lhe o nojo. O narrador afirma que, depois desse acontecimento, D. Plcida confidenciou-
lhe a sua histria de vida, falando de seus pretendentes que nunca eram aceitos e que lhe
renderam recriminaes de sua me:
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- Queres ser melhor do que eu? No sei donde te vm essas fidcias de pessoarica. Minha camarada, a vida no se arranja toa; no se come vento. Ora esta!Moos to bons como o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo,no ? (MPBC, cap.LXXIV).
J comeamos a perceber como Brs Cubas v a figura de D. Plcida, a figura
social que ela representa: uma pessoa que, aps ser comprada por algum dinheiro, faz de
tudo para agradar quem a beneficiou, at mesmo passar por cima de questes morais e
religiosas. E as recriminaes da me? No seriam os ecos do pensamento do prprio
Brs Cubas, avisando-lhe para ficar onde realmente o seu lugar, ou seja, casando com
uma pessoa de seu prprio meio social, um coitado que trabalha em uma venda e
deixando de fidcias de pessoa rica? Vamos acompanhar agora o prprio dito de Brs
Cubas, com ele mesmo, logo depois que D. Plcida lhe confidencia a sua histria:
Assim, pois, o sacristo da S, um dia, ajudando missa, viu entrar a dama, quedevia ser sua colaboradora na vida de D. Plcida. Viu-a outros dias, durantesemanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graa, pisou-lhe o p, ao acender osaltares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessaconjuno de luxrias vadias brotou D. Plcida. de crer que D. Plcida nofalasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias:- Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristo e a sacrist naturalmente lheresponderiam. - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos nacostura, comer mal, ou no comer, andar de um lado para outro, na faina,adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, tristeagora, logo desesperada, amanh resignada, mas sempre com as mos no tacho eos olhos na costura, at acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que techamamos, num momento de simpatia (MPBC, cap.LXXIV).
Podemos perceber a indiferena de Brs diante da situao da pobre senhora,
transmitida por essas linhas que se operam de modo complexo, dando-nos a idia de que
as inaceitveis realidades da pobreza correspondem a um propsito: reproduzir a ordem
social que a desgraa de D. Plcida. Isso resulta em uma espcie de choro seco, a que
se acrescenta o gozo que tanta inferioridade proporciona superioridade do narrador.
Razes de ser que seguem as convenincias da camada dominante brasileira, cujo teor
indefensvel este arranjo literrio universaliza ao extremo, pois as relaes sociais so
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figuradas no nvel do interesse e quem sempre tem o privilgio a classe abastada 58.
Assim, o homem rico admite sem dificuldade a dimenso funcional da misria, cuja
finalidade na terra, se existe, de lhe proporcionar vantagens: o vcio muitas vezes o
estrume da virtude.59
Notemos que o mtodo dessa abordagem de inigualvel valor e vai longe: a
forma de pobreza em questo emerge do mbito acanhado e intelectualmente segregado
e trazida ao rol da atualidade plena, transformando o procedimento em uma verdadeira
traio de classe por parte de Brs Cubas, pois ele mesmo nos conta os seus achaques.Dessa forma, h a um realismo intensificado, que no possui uma noo mais cotidiana
ou doutrinria da verossimilhana, mas que consubstancia uma mediao recproca das
posies sociais, dando humilde figura de D. Plcida a extraordinria plenitude de
referncias60.
Partamos agora para a figura do Cotrim, o cunhado negocista. Das qualificaes
dadas a ele, esto a de comerciante estabelecido, contrabandista de escravos, pai de
famlia extremoso, membro de vrias irmandades (associaes religiosas e
auxiliadoras). Em um captulo intitulado O verdadeiro Cotrim, Brs o define da
seguinte forma:
Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acus-lo debrbaro. O nico fato alegado neste particular era o de mandar com freqncia
escravos ao calabouo, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, alm de queele s mandava os perversos e fujes, ocorre que, tendo longamentecontrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco maisduro que esse gnero de negcio requeria, e no se pode honestamente atribuir ndole original de um homem o que puro efeito de relaes sociais . Aprova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aosfilhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; provairrefutvel, acho eu, e no nica. Era tesoureiro de uma confraria, e irmo de
58 Roberto Schwarz (2000, B) aprofunda essa idia no captulo A sorte dos pobres, dizendo estar apobreza descrita em seu ciclo regular, por assim dizer funcional, e no falta mtodo a seu absurdo,p.109.59
MPBC, cap. LXXVI.60R. Schwarz (2000, B), p.111.
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vrias irmandades, e at irmo remido de uma destas, o que no se coadunamuito com a reputao de avareza; verdade que o benefcio no cara no cho:a irmandade (de que ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a leo ( MPBC,cap.CXXIII, os grifos so meus).
O que podemos notar a elaborao da narrativa a partir de suas contradies e,
em vez de aprofund-las, Brs procura normaliz-las. Da a sucesso de elogios (ou
punhaladas, segundo a perspectiva), que transforma em modelo de virtudes um
compndio dos males do tempo. Em escala de pura retrica, o procedimento afirma a
experincia efetiva da classe dominante brasileira, com Brs trabalhando com elogios
que incriminam e justificaes condenveis que se encobrem. A perfdia do retrato
explora os vexames prprios ao caso brasileiro. H uma consistncia em sublinhar a
estrita normalidade e adequao social da figura, permitindo reconhecer virtudes onde
parecia haver fraquezas. Assim, por que no seria econmico um negociante? Como no
seria duro um contrabandista de africanos? Escravos perversos e fujes no merecem
castigo? No pode ser que faltem sentimentos pios a um pai que sofre tanto quando lhe
morre a filha, sendo ainda mais impossvel que o membro de vrias confrarias
beneficentes seja avaro. O bom senso destes raciocnios acata certa realidade, seguindo
o princpio de que as classes dominantes so exemplares por natureza. Vista sob outro
ngulo, a defesa anterior s condena: o escravismo configura uma infrao acintosa aos
Direitos do Homem, o castigo fsico uma indignidade, o contrabando um ato ilcito, ao
passo que as formas de religiosidade s existem como propaganda dessa pessoa diante
da sociedade. Nota-se que o foco no est especificamente em Cotrim, mas no esforo
do cunhado Brs para descaracterizar o conjunto e desculp-lo, merecendo destaque este
uso perverso da idia de condicionamento sociolgico: no se pode honestamente
atribuir ndole original de um homem o que puro efeito de relaes sociais,
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empregada em favor do escravista, e no contra o instituto da escravido. Logo se v
que o mecanismo satrico da passagem est nas desculpas que inculpam, nas atenuantes
que agravam, ou, mais genericamente, na funo acusatria da defesa, que, na verdade,
uma denncia do acusado e tambm do defensor. Essa denncia acaba-se confirmando,
mas no d resultados, pois a dinmica do episdio liga-se ao ridculo dos comparsas
(Brs e Cotrim) tanto quanto fora e realidade das suas posies, que no deixam
espao til exigncia moral, fazendo com que a mesma mescla de traos que lhes
definem o atraso os tornam membros respeitveis da classe dominante nacional.Digamos, portanto, que Brs concede e at detalha as brutalidades do cunhado,
mas o faz no af de explic-las como parte da ordem, que esta mesma e ponto final.
Dessa forma, o romance no tenta fixar a contradio e, muito menos, a
transformao, mas implica uma relao, fazendo com que surja um Brs Cubas
inconstante e abocanhador de vantagens da iniqidade social cujo limite no se
patenteia.
Machado, embora tenha recorrido a uma linguagem que sugere uma feio anti-
realista, soube enfocar os aspectos sociais em sua obra como ningum em sua poca,
dando uma fundamentao realista a seus escritos.
A julgar pelos caminhos que percorremos durante este captulo, percebemos que
a tcnica narrativa empregada na obra de Machado de Assis no era muito conhecida no
Brasil, pois lia-se muito o realismo francs que influenciou os nossos romantismo e
realismo61. Como conseqncia, tnhamos um grande nmero de escritores que no
61Para isso, ver Roberto Schwarz (2000, A) e seu ensaio A importao do romance e suas contradiesem Alencar. Referindo-se a Alencar, ele nos diz: Chega o romancista, que parte ele prprio dessemovimento faceiro da sociedade, e no s lhe copia as novas feies, copiadas Europa, como as copia
segundo a maneira europia. Ora, esta segunda cpia disfara, mas no por completo, a natureza daprimeira, o que para a literatura uma infelicidade, e lhe acentua a veia ornamental, pp.46-47.
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apresentavam as caractersticas do realismo machadiano que se aliava a discursos
estilsticos anti-realistas (assim como em seu influenciador Laurence Sterne). Esse
procedimento narrativo, em primeiro plano, e a conseqente mediao do modo de vida
de Brs Cubas do um resultado surpreendente, assegurando ao romance a coeso e a
verossimilhana, caracterizadas em muita observao de realidade e verdadeiros perfis
sintticos do estilo cultural do pas. Por outras palavras, fica clara a inteno de
sintetizar um tipo representativo da classe dominante brasileira atravs das relaes que
lhe so peculiares, dando vida ao protagonista diante do recurso de se trazer cena umelenco de personagens que em certo plano resumisse a sociedade nacional.
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5. CONCLUSOComo j afirmamos anteriormente, nosso principal objetivo neste trabalho foi
discorrer a respeito da crtica literria machadiana que tem como denominador comum
uma abordagem ainda polmica em nossos dias: a posio de Machado de Assis na
histria dos estilos ficcionais. Tentamos mostrar como ele possui um realismo peculiar,
de anlise e de busca de relaes e no um realismo estilstico moda da sua poca.
Como suporte terico sobre o gnero romance, valemo-nos de Georg Lukcs e Mikhail
Bakhtin, procurando na teoria de cada um aspectos divergentes e aspectos
complementares. Diante desses tericos, solicitamos alguns crticos literrios
machadianos para captarmos, em cada um, uma interpretao voltada para a maneira de
se caracterizar o realismo empreendido por Machado de Assis em seus romances da
segunda fase e os separamos em duas correntes tericas - a sociolgica e a da narrativa -
que, apesar de diferentes, no devem ser vistas em separado, pois formam juntas uma
base coesa de anlise interpretativa e desfazem certos paradigmas em torno da obra
machadiana, fazendo-nos entender que o seu realismo tem de ser compreendido de uma
forma dinmica e no redutora.
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Para caracterizarmos essa dinamicidade em sua produo literria,
empreendemos uma anlise em MPBC, tentando no fixar a contradio social no
interior da sua obra e muito menos a sua transformao, mas implicando uma relao,
fazendo surgir um Brs Cubas inconstante e, a todo momento, tentando levar vantagens
por se achar socialmente prestigioso e superior.
Dessa forma, pelas caractersticas aqui enfocadas na obra de Machado de Assis,
no seria o caso de v-lo como formador (ou, pelo menos, continuador) de uma tradio
literria singular, no dominante no Brasil de seu tempo? Achamos que a resposta positiva, porque Machado recorreu a uma tcnica narrativa no muito conhecida no
Brasil, sugerindo uma feio anti-realista em sua obra, no entanto ele enfocou os
aspectos sociais e deu uma fundamentao realista a seus escritos. Esse mtodo, o
Machado crtico indicou: O que se deve exigir do escritor antes de tudo, certo
sentimento ntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu pas, ainda quando trate
de assuntos remotos no tempo e no espao.62E ele ainda nos pede que voltemos os
olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim no sacrificaremos a verdade
esttica.63
Se sabemos da negao do prprio Machado escola do Realismo, porque a
insistncia em classific-lo assim? Isso se d porque o ensino de literatura est voltado
para uma orientao histrica da obra dos escritores e no para uma orientao pautada
em princpios mediados pelo estilo potico e individual de cada escritor.
Esses estudos de histria da literatura mostram-se insuficientes na medida em
que passam a recorrer aos romancistas seguindo padres gerais da esttica de uma
62
M. de Assis, Notcia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade (1997, v. III), p.804.63M. de Assis, Ea de Queirs: o primo Baslio (1997, v. III), p.913.
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determinada escola literria. No caso de Machado de Assis, que se embebeu das escolas
de seu tempo, como o Romantismo e o Realismo, mas