Vidal - Um Diálogo Entre a Política Cultural e Educação Não Formal

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO JUSSARA VIDAL Um diálogo entre a política cultural e a educação não-formal: contribuições para o processo de constituição da cidadania das pessoas com deficiência São Paulo 2009

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Vidal - Um Diálogo Entre a Política Cultural e Educação Não Formal

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE EDUCAO

    JUSSARA VIDAL

    Um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal: contribuies para o processo de constituio da cidadania das pessoas com deficincia

    So Paulo 2009

  • JUSSARA VIDAL

    Um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal: contribuies para o processo de constituio da cidadania das pessoas com deficincia

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    rea de Concentrao: Estado, Sociedade e Educao Orientadora: Prof. Dr. Rosngela Gavioli Prieto

    So Paulo 2009

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na Publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    371.309 Vidal, Jussara V648d Um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal: contribuies

    para o processo de constituio da cidadania das pessoas com deficincia / Jussara Vidal; orientao Rosngela Gavioli Prieto. So Paulo: s.n., 2009.

    275 f. : anexos ; apndices

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de Concentrao: Estado, Sociedade e Educao) - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.

    1. Educao no-formal 2. Cidadania 3. Cultura 4. Deficientes 5. Direitos humanos 6. Polticas pblicas I. Prieto, Rosngela Gavioli,

    orient.

  • FOLHA DE APROVAO

    Jussara Vidal Um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal: contribuies para o processo de constituio da cidadania das pessoas com deficincia

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre. rea de Concentrao: Estado, Sociedade e Educao

    Aprovada em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr Rosngela Gavioli Prieto Instituio: Faculdade de Educao da USP Assinatura: _______________________________________________________

    Prof. Dr Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares Instituio: Faculdade de Educao da USP Assinatura: _______________________________________________________

    Prof. Dr. Maria da Glria Marcondes Gohn Instituio: Faculdade de Educao da UNICAMP Assinatura: _______________________________________________________

  • Ao meu companheiro Mauricio e s minhas filhas, Marilia e Julia, com carinho e gratido pela compreenso e incansvel apoio durante a elaborao deste trabalho.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos amigos, Tadeu e Cssia, pela confiana e a oportunidade de desenvolver o Projeto Passeando por Sampa Inclui. Aos colegas da SPTrans/ATENDE, Waldir e Jos Carlos, pela disposio e colaborao com a Subprefeitura Capela do Socorro.

    Aos amigos Valria e Reinaldo pelo incentivo para comear esta pesquisa.

    Aos familiares e amigos, Ira, Lila, Iara, Claudia, Adelino, Loide, Nai, Amanda, Miria, Maria, Valria, Waldir, Hanni, Roberta, Bianca, Sandra, Carmen, Marinha, Braslia, Thais, Gina e Regina, pelo apoio e carinho.

    Aos participantes do Projeto Passeando por Sampa Inclui, pela colaborao com esta pesquisa.

    minha orientadora, Prof Dr Rosngela Gavioli Prieto, por no me deixar desistir e pelo apoio.

    Ao grupo de orientandos da Prof Rosngela Gavioli Prieto, pelas inmeras contribuies.

    s professoras Dras Maria da Glria Gohn e Maria Victria Benevides, pelos muitos dilogos possveis.

    Equipe da Subprefeitura Capela do Socorro, por disponibilizar o material para a pesquisa.

  • Ningum tem liberdade para ser livre: pelo contrrio luta por ela precisamente porque no a tem. No tambm a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. No a idia que se faa mito. condio indispensvel ao movimento de busca em que esto inscritos os homens como seres inconclusos.

    Paulo Freire

  • RESUMO

    VIDAL, J. Um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal: Contribuies para o processo de constituio da cidadania das pessoas com deficincia. 2009. 275 f. Dissertao de Mestrado Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    Esta pesquisa qualitativa busca estabelecer um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal, destacando a importncia de tal relao para a constituio da cidadania das pessoas com deficincia. A pouca visibilidade dessas pessoas provoca sua excluso das polticas pblicas. Nessa lgica cria-se um ciclo, pois face inexistncia de servios no h incluso e, conseqentemente, a falta de visibilidade contribui para que a discriminao continue (BIELER, 2005). Assim, evoca-se a responsabilidade do Estado na formulao de polticas pblicas no caso deste estudo mais especificamente as polticas culturais que possibilitem a ruptura do ciclo da invisibilidade, proporcionando a essas pessoas maior acesso cidade, aos bens culturais e vida comunitria. Esse segmento normalmente ignorado na formulao das polticas culturais que parecem mais voltadas para a produo de eventos e atividades artsticas. Neste estudo concebe-se a cultura num sentido amplo, encontrada em todas as dimenses da sociedade, presente ao longo da histria e no cotidiano das pessoas, num conjunto de smbolos e significados com os quais os homens criam a prpria vida social, atribuindo significados s suas experincias (BRANDO, 1995). A educao no-formal parece pertinente por seu carter de intencionalidade e de flexibilidade dos contedos, lugares e metodologias e, sobretudo, por seu objetivo principal que a prtica da cidadania (GOHN, 2005, 2006a). O confinamento dessas pessoas em suas casas, geralmente na periferia da cidade, incompatvel com a lgica dos direitos humanos e da democracia, que no pode prescindir da participao, da luta por novos direitos e pela garantia daqueles j institudos. (CHAUI, 2006; BENEVIDES, 2004). A igualdade de direitos das pessoas com deficincia deve ser vista como uma questo de justia e deve visar a paridade de participao na sociedade em todas as reas (BENEVIDES, 2004; FRASER, 2007). Nesse sentido, ao serem privadas de seus direitos culturais, essas pessoas tambm tm limitadas suas condies para participao na esfera cotidiana. Sem tais vivncias, ficam prejudicados o enfrentamento ao preconceito, o exerccio da participao e, sobretudo, a construo de uma identidade grupal que possa evoluir para a luta coletiva (HONNETH, 2003). O procedimento metodolgico utilizado, com o objetivo elucidar os pressupostos tericos, foi a coleta de depoimentos orais (LANG, 1996) de alguns dos participantes do Projeto Passeando por Sampa Inclui, desenvolvido por esta pesquisadora na Subprefeitura da Capela do Socorro. Assim, pde-se apreender o quanto a participao em atividades culturais e as situaes interativas entre os participantes do Projeto foram fundamentais para que tivessem acesso aos bens culturais antes desconhecidos, possibilitando aprendizagens e prazer com as novas experincias. A ruptura do confinamento e as possibilidades de emancipao foram percebidas em diversos graus, contribuindo para que os mesmos possam enfrentar o preconceito e encontrar no grupo um apoio necessrio para melhor conhecer e lidar com a prpria deficincia. Tais experincias fomentaram um necessrio encorajamento para a vida comunitria e a valorizao das experincias grupais, emergindo formas de protagonismo to diversas quanto as trajetrias dos sujeitos.

    Palavras-chave: Educao no-formal, cidadania, cultura, deficincia, direitos humanos, polticas pblicas.

  • ABSTRACT

    VIDAL, J. A dialogue between cultural policies and non-formal education: Contributions to the process of citizenship building for disabled people. 2009. 275 f. Masters dissertation Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    This qualitative study aims to establish a dialogue between cultural policies and non-formal education, as well as highlight the importance of this dialogue for the constitution of disabled people as citizens. The low visibility of these people excludes them from public policies and hence a cycle is created in which the lack of services restricts inclusion and then the lack of visibility contributes to the persistence of discrimination (BIELER, 2005). For this reason the State is called upon to create public policies in the case of this study, specifically cultural policies that may break the invisibility cycle, providing these people with a better access to the city, to cultural assets and to community life. The formulation of cultural policies, which seem to favor the promotion of artistic events and activities, does not take disabled people into account. In this study, culture is conceived in a very broad sense, as an element present in every dimension of society, throughout history and in our daily lives. Culture hence is composed of several symbols and meanings based on which people create their own social lives and make sense of their experiences (BRANDO, 1995). The pertinence of non-formal education in this connection is due to its intentionality and its flexibility regarding content, places, methodologies and, above all, owing to its main objective, which is the practice of citizenship (GOHN 2005, 2006a). The confinement of disabled people in their homes, generally in the periphery of the cities, is not compatible with the logic of human rights and democracy, which necessarily entails participation, the fight for new rights and the effort to maintain those already instituted (CHAU, 2006; BENEVIDES, 2004). The issue of equal rights for disabled people must be considered as a matter of justice, and parity of participation should be pursued all areas of society. (BENEVIDES, 2004; FRASER, 2007). Being deprived of their cultural rights, disabled people are also limited in their participation in day-to-day life. Without such experiences, the fight against prejudice, the exercise of participation and, above all, the building of a group identity that may evolve into a collective fight (HONNETH) are impaired. The methodology procedure applied to clarify the theoretical foundations was the collection of oral testimonies of some participants in the Projeto Passeando por Sampa Inclui, developed by me at the Subprefeitura da Capela do Socorro, in Sao Paulo, Brazil. By these testimonies it was possible to realize that the engagement in cultural activities and the interaction among the participants in the project have a fundamental role in giving access to cultural assets previously unknown, providing pleasant activities created by new experiences. The elimination of the confinement and the possibility of emancipation were perceived in several degrees, helping these people face prejudice and find in the group the necessary support to deal with their own disability in a better way. These experiences created a necessary encouragement for community life and a valorization of the groups experiences, which caused the emergence of forms of protagonism so diverse as the personal courses of the subjects in life.

    Keywords: Non-formal education; citizenship, culture, disability, human rights, public policies.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CASD Coordenadoria de Assistncia Social e Desenvolvimento CEM Centro de Estudos da Metrpole CEU Centro Educacional Unificado CEPEDOC Centro de Estudos, Pesquisa e Documentao CF Constituio Federal IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional OMS Organizao Mundial de Sade ONU Organizao das Naes Unidas OPAS Organizao Pan-Americana da Sade PMSP Prefeitura do Municpio de So Paulo SAS Secretaria Municipal de Assistncia Social SEADE Sistema Estadual de Anlise de Dados SEPED Secretaria Especial da Pessoa com Deficincia e Mobilidade Reduzida SMADS Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvimento Social SMC Secretaria Municipal de Cultura SPCS Subprefeitura da Capela do Socorro SPTRANS So Paulo Transportes S.A. UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura USP Universidade de So Paulo

  • SUMRIO

    INTRODUO 12

    1 A EDUCAO NO-FORMAL E A CONSTITUIO DA CIDADANIA 35

    2 DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS DA CIDADANIA PARA AS PESSOAS COM DEFICINCIA 49 2.1 REFLETINDO SOBRE AS LGICAS DO CONFLITO E DA PASSIVIDADE 57

    3 BUSCANDO UM CONCEITO DE CULTURA 87

    3.1 A CIDADANIA CULTURAL 91

    3.2 A POLTICA CULTURAL COMO POLTICA PBLICA 93 3.3 OS DIREITOS CULTURAIS: ALGUMAS REFERNCIAS NO PLANO FORMAL 99 3.4 AO CULTURAL E EDUCAO NO-FORMAL: UM DILOGO POSSVEL 101 3.5 A CULTURA COMO UM VALOR PARA A CIDADANIA 104

    4 O PROJETO PASSEANDO POR SAMPA INCLUI 115

    5 A METODOLOGIA DA PESQUISA 128 5.1 CRITRIOS PARA SELECIONAR OS ENTREVISTADOS 132 5.2 A APLICAO DAS ENTREVISTAS 133 5.3 A TRANSCRIO DAS ENTREVISTAS 134 5.4 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DOS DADOS 135

    6 RESULTADOS E DISCUSSO 137 6.1 A VIVNCIA DA INVISIBILIDADE DOS SUJEITOS COM DEFICINCIA 137 6.1.1 Perda de auto-estima 137 6.1.2 O sujeito e o Outro: a incomunicabilidade 138 6.1.3 O isolamento e a excluso 139 6.1.4 Barreiras que tolhem a participao 140 6.2 A POTNCIA DA AO 141 6.2.1 Auto-valorizao e revitalizao dos sujeitos 142

  • 6.2.2 Um espao que se abre para avivar as relaes sociais 144 6.2.2.1 Intensificao dos contatos mistos 145 6.2.2.2 O contato com aqueles que vivem dilemas semelhantes: alinhamento intragrupal 146 6.2.3 A emergncia de valores 148

    6.2.4 Empoderamento 153

    6.2.5 Acesso aos bens culturais/ acesso cidade 160

    6.2.6 Iniciativas dos sujeitos que ocorreram de modo independente do Projeto 161

    6.2.7 As dimenses da emoo do prazer 162

    6.2.8 Aprendizagens/ saberes gerados 163

    6.2.9 O receio pelo trmino do Projeto 165

    6.3 SUGESTES 165

    7 A POTNCIA DA AO COLETIVA: UMA ABERTURA PARA A CONQUISTA DA CIDADANIA 168

    REFERNCIAS 182

    APNDICES 194 A Roteiro para caracterizao do colaborador 195

    B Roteiro para o depoimento oral 196 C - Uma breve caracterizao da regio da Capela do Socorro 197 D - Depoimento de Jaime 198 E - Depoimento de Elisa 211 F - Depoimento de Lus 216 G - Depoimento de Gustavo 230 H Depoimento de Luiza 242 I - Depoimento de Pedro 245

    ANEXOS 254 A Carta de intenes do grupo enviada Subprefeitura Capela do Socorro (Maro/07) 255 B A primeira programao (2004) 257 C Reportagem sobre o lanamento do Projeto (Jornal Notcias da Regio (2004) 259 D Reportagem sobre o lanamento do Projeto (Jornal Gazeta de Interlagos 2004) 260

  • E Notcia sobre a expanso do Projeto Sampa Inclui para o municpio de So Paulo (2005) 261 F Matria da Revista Sentidos (2005) 262 G Matria da Revista Cultura Dia-a-Dia (2004) 264 H Site da SPCS: Subprefeitura realiza seminrio de Qualidade de Vida e Incluso Social (2007) 266 I Convite para palestrantes: Seminrio Qualidade de Vida e Incluso Social (2007) 267 J Relao de temas sugeridos para palestrantes: Seminrio Qualidade de Vida e Incluso Social (2007) 268 K Slide: O sonho de partilhar. Apresentado no Seminrio Qualidade de Vida e Incluso Social (2007) 269 L - Site da SPCS: Capela realiza Seminrio Qualidade de Vida e incluso social (2007) 270 M Slide: Uma viso dos Projetos. Apresentado no Seminrio Qualidade de Vida e Incluso Social (2007) 272 N Slide: Um desafio especial. Apresentado no Seminrio Qualidade de Vida e Incluso Social (2007) 273 O Reportagem: Capela do Socorro comemora os Projetos Passeando por Sampa e Passeando por Sampa Inclui (2004) 274 P Pgina referente ao prmio da Revista Sentidos para a SPCS (2007) 275

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    INTRODUO

    Meu interesse pela temtica relacionada s pessoas com deficincia1 advm da minha experincia como pedagoga, na Prefeitura do Municpio de So Paulo (PMSP), onde atuo h 30 anos. Ao longo desse perodo assumi vrias funes nas Secretarias de Cultura (SMC) e de Assistncia Social2 (SAS) e na Subprefeitura da Capela do Socorro (SPCS), atuando, em diversas atividades, direta e indiretamente com programas voltados para os segmentos mais vulnerveis3 da populao, tais como: oficinas comunitrias com grupos de mulheres e ex-detentos, ncleos scio-educativos para crianas e jovens, abrigos para crianas em situao de risco e atendimento a desabrigados em situaes de emergncia.

    De fevereiro de 2001 a novembro de 2003 fui responsvel pela coordenao da Casa de Cultura de Interlagos e pude observar a fragilidade da poltica cultural desenvolvida na periferia da cidade justamente onde esto postos os maiores desafios no sentido de possibilitar o acesso da populao aos servios pblicos. Via de regra, o trabalho proposto pelas instncias centrais marcado pela descontinuidade, ausncia de planejamento e pelo desenvolvimento de atividades pontuais como shows, festas e eventos.

    Do final de 2003 at dezembro de 2004, assumi a Coordenadoria de Assistncia Social e Desenvolvimento (CASD), da Subprefeitura da Capela do Socorro4, rgo responsvel pela

    1 Convm esclarecer que, por volta da metade da dcada de 1990, entrou em uso a expresso pessoa com

    deficincia, em substituio ao termo pessoas portadoras de deficincia, - amplamente utilizado desde 1986 -, em virtude de crticas ao termo portadora, pois a deficincia no como um objeto, que pode ser portado ou no pela pessoa. Cf.: SASSAKI, R. Terminologia sobre deficincia na era da incluso. Disponvel em: Acesso em 28 e novembro de 2008. 2 Cabe esclarecer que a SAS recebeu nova nomenclatura: Secretaria Municipal de Assistncia e

    Desenvolvimento Social (SMADS), no ano de 2005, com a mudana da gesto poltica na Prefeitura do Municpio de So Paulo. 3 A Poltica Nacional de Assistncia Social define como situaes de vulnerabilidade e risco, famlias e

    indivduos com perda ou fragilidade de vnculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos tnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficincias; excluso pela pobreza e, ou, no acesso s demais polticas pblicas; uso de substncias psicoativas; diferentes formas de violncia advinda do ncleo familiar, grupos e indivduos; insero precria ou no insero no mercado de trabalho formal e informal; estratgias e alternativas diferenciadas de sobrevivncia que podem representar risco pessoal e social (BRASIL, 2004, p. 27). 4 Esta coordenadoria, denominada inicialmente como Coordenadoria de Ao Social e Desenvolvimento foi

    implantada com a criao das 31Subprefeituras no municpio de So Paulo. Lei de criao das subprefeituras, n. 13. 399, de 1 de agosto de 2002, na gesto da prefeita Marta Suplicy. De acordo com o art. 12, II, a Coordenadoria tinha como responsabilidade as aes nas reas de assistncia social, habitao, segurana alimentar, esporte, lazer e cultura e atividades afins. Disponvel em: Acesso em 12 de janeiro de 2008. A Lei 13.716, de 7 de janeiro de 2004, Cap. IV, art. 25, alterou a denominao desse rgo para Coordenadoria de Assistncia Social e Desenvolvimento, como tambm, acrescentou em suas atribuies a rea de habitao. Disponvel em: < http://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=08012004L%20137160000> Acesso em 12 de janeiro de 2008.

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    implementao de diversas polticas pblicas na regio. Tais experincias, marcadas pela diversidade de trabalhos, foram fecundas, embora

    muitas delas tenham sido aes pontuais e assistencialistas, caracterizadas por intervenes imediatistas, de curto prazo e desarticuladas de outras polticas pblicas. A experincia em reas perifricas, e extremamente pobres da cidade, colocou-me em contato com os segmentos mais vulnerveis da sociedade, sendo que muitos transitavam margem dos prprios programas, que no os alcanavam, no demandando nada alm de aes emergenciais quando alguma situao extrema os interceptava. Normalmente, as pessoas pertencentes a esses segmentos no conseguem ter expresso, nem mesmo nos canais de participao institudos pelos governos locais5, constatao esta que levou-me a muitos questionamentos sobre a adequao dos programas e servios. A falta de um planejamento, devidamente monitorado e avaliado, com objetivos bem definidos, pode resultar, muitas vezes, em aes configuradas, essencialmente, por prticas voluntaristas e desarticuladas dos agentes pblicos.

    O contato freqente, como agente pblica mais especificamente como educadora que atua com polticas pblicas de corte social , com histrias de vidas marcadas por privaes e por diversos tipos de violaes dos direitos, torna instigante a reflexo sobre o reconhecimento do carter universal dos direitos humanos, fundamentada na premissa de que a condio de pessoa o requisito nico para a titularidade desses direitos. Assim,

    O paradoxo da perda dos direitos humanos que essa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral sem uma profisso, sem uma cidadania, sem uma opinio, sem uma ao pela qual se identifique e se especifique e diferente em geral, representando nada alm de sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expresso e da ao sobre um mundo comum, perde todo significado (ARENDT, 1976, p. 245).

    O fato de deparar cotidianamente com demandas cuja resoluo no depende diretamente da ao individual de cada um, pode gerar uma situao de imobilismo frente a um cenrio onde tudo pode parecer pequeno e improdutivo demais ou, contraditoriamente, grande demais para que cada pequena interveno possa ter algum efeito. Apesar de lidar constantemente com sentimentos de impotncia diante de tantas dificuldades apresentadas, torna-se necessrio refletir em que medida as aes individuais podem reforar as desigualdades ou contribuir para resgatar os direitos violados.

    Pode-se dizer que a constituio de uma identidade de educador, nessa rea de

    5 A partir de minha experincia no acompanhamento de algumas reunies do Oramento Participativo e no

    desenvolvimento de reunies sistemticas com as organizaes sociais da regio da Capela do Socorro, pude observar a ausncia de grupos organizados que expressem as demandas das pessoas com deficincia junto ao

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    atuao, conflitante e, se inicialmente pode-se pensar numa maior liberdade de ao uma vez que a prtica no est sujeita a quaisquer exigncias no cumprimento de currculos e prazos, essa suposta liberdade parece no ter ponto de partida ou de chegada. A prevalncia de encaminhamentos burocrticos e a inexistncia de mecanismos para socializao de prticas, discusses conceituais ou metodolgicas distancia a reflexo, e qualquer atitude crtica, sobre as aes.

    Devo reconhecer que minha experincia no curso de formao de educadores, no perodo de 1993 a 1995, sob a coordenao e docncia de Madalena Freire Weffort, foi fundamental para aguar essas inquietaes especialmente acerca da responsabilidade e compromisso do educador com o processo de reflexo, apropriao e transformao de sua prtica.

    Entretanto, o tema desta pesquisa surgiu de um modo mais especfico, a partir do ano de 2004, quando desenvolvi, por meio da parceria entre a Coordenadoria de Assistncia Social e Desenvolvimento (CASD) da Subprefeitura da Capela do Socorro (SPCS) e a SPTrans6/ATENDE7, o projeto denominado Passeando por Sampa Inclui, cujo principal objetivo era possibilitar o acesso de pessoas com deficincia de qualquer natureza8, e seus respectivos acompanhantes, aos equipamentos culturais, esportivos e de lazer da cidade. As atividades oferecidas na programao, todas gratuitas, eram sempre acompanhadas por agentes pblicos e inclua visitas aos locais com acessibilidade e, no caso das exposies, quando disponvel, contava-se com monitoria especial e/ou participao em oficinas.

    O cenrio era o de buscar sadas no mbito da poltica pblica, num contexto de descentralizao advindo com a criao das Subprefeituras. Convm lembrar que, de acordo com Saule Jr. (2001, p. 18), o reconhecimento do Poder Local como um sujeito de direito internacional ao lado dos Estados Nacionais e dos cidados foi um dos principais resultados da Conferncia das Naes Unidas sobre Assentamentos Humanos Habitat II, realizada em 1996, em Istambul. Nessa Conferncia, os Estados Nacionais, inclusive o Brasileiro, assumiram o compromisso de fortalecimento do Poder Local como meio estratgico para a

    poder pblico. 6 SPTrans/ATENDE: Empresa de economia mista que presta servios Secretaria Municipal de Transportes.

    Fonte: < http://www6.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/transportes/organizacao/0001> Acesso em 07 de janeiro de 2009. 7 ATENDE: Servio de Atendimento Especial uma modalidade de transporte porta a porta, gratuito, destinado

    ao atendimento das pessoas com deficincia fsica, com alto grau de severidade e dependncia, impossibilitadas de utilizar outros meios de transporte pblico. Fonte: . Acesso em 07 de janeiro de 2009. 8 Para o cadastro no ATENDE s podem participar pessoas que tenham problemas de locomoo. J nessa

    parceria pessoas com qualquer deficincia, fsica, intelectual ou sensorial podem participar, sem o cadastro prvio no Servio.

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    implementao dos direitos humanos. Para esse autor: O poder local no processo de globalizao tem sido cada vez mais reconhecido e ressaltado pela comunidade internacional como componente estratgico para o desenvolvimento de aes que resultem em um efetivo respeito aos direitos da pessoa humana (SAULE JR., 2001, p. 18).

    O Projeto Passeando por Sampa Inclui, doravante denominado Projeto Sampa Inclui, foi inspirado na poltica da cidadania cultural implementada, por Marilena Chau9, na Secretaria de Cultura da Prefeitura do Municpio de So Paulo, e concebe a cultura como direito dos cidados e como trabalho de criao (CHAU, 2006, p. 70-71). Assim, na perspectiva da cidadania cultural, o direito cultura compreendido como:

    - o direito de produzir cultura, seja pela apropriao dos meios culturais existentes, seja pela inveno de novos significados culturais; - o direito de participar das decises quanto ao fazer cultural; - o direito de usufruir dos bens da cultura, criando locais e condies de acesso aos bens culturais para a populao; - o direito de estar informado sobre os servios culturais e sobre a possibilidade de deles participar ou usufruir; - o direito formao cultural e artstica pblica e gratuita nas escolas e Oficinas de Cultura do municpio; - o direito experimentao e inveno do novo nas artes e nas humanidades; - o direito a espaos para reflexo, debate e crtica; - o direito informao e comunicao (CHAU, 2006, p. 70-71).

    Embora o Projeto Sampa Inclui esteja, aparentemente, relacionado de modo mais imediato ao direito de fruio e de acesso aos bens culturais, pode-se observar que h uma relao intrnseca com os demais direitos, uma vez que a participao numa determinada esfera pode levar fruio de outros direitos. Dessa forma, entende-se que as vrias dimenses do direito cultura no so estanques, posto que uma determinada experincia pode despertar nos sujeitos demandas passveis de serem ampliadas para outras esferas. Assim, possvel inferir que o direito informao, reflexo, aos espaos para debate e crtica, a necessidade de experimentao, de maior participao, tambm poderiam se constituir como objetivos a serem alcanados por meio do Projeto.

    Cabe destacar que a preocupao com a necessidade de romper o isolamento social e possibilitar o acesso das pessoas com deficincia aos bens culturais foi impulsionadora para a criao do Projeto. evidente que o ideal seria o desenvolvimento de aes que pudessem responder a uma amplitude maior de necessidades, mas essas foram as aes possveis num determinado contexto e sob determinadas condies existentes. importante esclarecer que muitos dos pressupostos que embasam esta pesquisa foram se tornando mais claros a partir de leituras e estudos realizados, como tambm por meio dos contedos abordados nas disciplinas

    9 Secretria da Cultura, no perodo de 1989 a 1992, durante a gesto da prefeita Luiza Erundina.

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    da ps-graduao e das discusses ocorridas com a orientadora. Assim, compreende-se que as vivncias a partir das situaes interativas, entre os

    participantes, com os agentes mediadores das diversas instituies culturais, pelo contato com as obras e com a diversidade de produes e linguagens e pelo acesso cidade, representam, enfim, experincias que ocorrem numa dinmica viva, carregada de valores e significados. Acredita-se que a cultura como poltica pblica campo frtil para possibilitar experincias educativas, aguando a sensibilidade e criando condio para desencadear, de modo significativo, maior reflexo sobre a realidade que cerca os sujeitos.

    Para Freire (1984, p. 86), conhecer sempre um processo, supe uma situao dialgica... Na situao gnosiolgica, o objeto do conhecimento no o termo do conhecimento dos sujeitos cognoscentes, mas a sua mediao. Nesse sentido, a cultura aqui compreendida, no como uma realidade dada ou como um conjunto de prticas consagradas, mas, conforme menciona Brando (1995, p.86):

    Encontrada tanto nos longos ciclos da histria dos povos quanto no cotidiano das pessoas, a cultura est a em todas as dimenses da sociedade, como um conjunto complexo e diferenciado de teias de smbolos e de significados com as quais homens e mulheres criam entre si e para si mesmos sua prpria vida social (grifos do autor).

    A partir dessas perspectivas, e considerando que o Projeto Sampa Inclui foi desenvolvido de modo sistemtico, em ambientes e situaes interativas, entende-se que, de acordo com os contedos abordados neste estudo, o mesmo pode ser caracterizado como uma experincia de educao no-formal, uma vez que, de acordo com Gohn (2006a, p. 29), h uma intencionalidade na ao, no ato de participar, de aprender e de transmitir ou trocar saberes. Entretanto, a existncia do projeto h mais de quatro anos, como uma experincia local de poltica pblica, suscita as seguintes indagaes: ainda que no seja desprezada a importncia de tais objetivos na vida das pessoas, a participao sistemtica nas programaes ter possibilitado aos sujeitos mais do que oportunidades de lazer? Haver algo mais do que a participao em meros passeios como comumente o Projeto era referido na Subprefeitura? Essas questes instigam a refletir sobre as possveis contribuies dos projetos na rea da poltica pblica cultural e que, consideradas luz dos pressupostos da educao no-formal, podem contribuir para a constituio da cidadania de pessoas com deficincia.

    Desse modo, a preocupao central consiste na necessidade de estabelecer um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal, tendo como contraponto sua importncia para os segmentos mais vulnerveis da sociedade, especialmente as pessoas com deficincia, considerando que, tal como destaca Gohn (2005, 2006a), o objetivo principal da educao

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    no-formal a prtica da cidadania. sabido o quanto esse conceito est relacionado participao da sociedade civil por meio dos mecanismos institudos, no entanto Chau (2006) ensina que a democracia se apia na idia de direito, no apenas como Estado de Direito, mas com a criao de direitos novos o que pressupe, de modo incessante, o surgimento e a participao de novos sujeitos polticos. Na democracia, o conflito no precisa ser ocultado, ao contrrio, o mesmo vivifica esse regime poltico.

    Se a sociedade democrtica s pode ser viabilizada pela participao dos indivduos e dos grupos organizados, os processos de mudana e transformao na sociedade no ocorrem apenas, mas a partir da participao no plano micro, local (GOHN, 2006b).

    A participao aqui compreendida como vetora para o exerccio da cidadania e para a construo de uma sociedade mais democrtica. Pode-se inferir o quanto os objetivos da educao no-formal so fundamentais para impulsionar esse exerccio, visto que a mesma:

    Capacita os indivduos a se tornarem cidados do mundo, no mundo. Sua finalidade abrir janelas de conhecimento sobre o mundo que circunda os indivduos e suas relaes sociais. Seus objetivos no so dados a priori, eles se constroem no processo interativo, gerando um processo educativo. Um modo de educar surge como resultado do processo voltado para os interesses e as necessidades que dele participa. A construo de relaes sociais baseadas em princpios de igualdade e justia social, quando presentes num dado grupo social, fortalece o exerccio da cidadania. A transmisso de informao e formao poltica e sociocultural uma meta na educao no-formal. Ela prepara os cidados, educa o ser humano para a civilidade, em oposio barbrie, ao egosmo, individualismo etc. (GOHN, 2006a, p. 30).

    Acredita-se que tais objetivos podem dar uma idia da amplitude da educao no-formal ainda que Gohn (2006a) reconhea a necessidade de uma definio mais clara de suas funes e objetivos e do seu entrelaamento com a prtica da cidadania e o campo da cultura.

    Entretanto, a participao para a construo de uma sociedade realmente democrtica um desafio que envolve a todos. Ao se refletir, portanto, nas pessoas com deficincia v-se o quanto essa participao organizada se torna mais distante e desafiadora, especialmente no caso daquelas que, por apresentarem maior dependncia dos servios pblicos, vivem em condies mais segregadas, com maior limitao no exerccio de suas liberdades e de participao na sociedade em decorrncia da dificuldade de acesso, do preconceito e inadaptao do meio social, agravados por uma prtica assistencialista e paternalista com a qual suas questes tm sido historicamente tratadas. certo que h outros segmentos excludos socialmente como os negros, os homossexuais e as mulheres, entre outros, e que igualmente se defrontam com situaes de preconceito e discriminao, mas as restries so multiplicadas quando apresentam alguma deficincia.

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    De acordo com estimativa da Organizao Mundial de Sade10 (OMS), cerca de 10% da populao mundial possui alguma deficincia. Na Amrica Latina e no Caribe existem pelo menos 79 milhes de pessoas com deficincia, sendo que cerca de 82% dessas pessoas so pobres. Para Bieler, Werneck e Gil (2004, p.1):

    La condicin de discapacidad no se define tanto por las limitaciones fsicas, intelectuales, o como las posibilidades de actuar, sino por el hecho de que a esas personas les es dificultoso o imposible el acceso a la educacin, al mercado de trabajo y a los servicios pblicos. La exclusin lleva a la pobreza, y, en un crculo vicioso, la pobreza puede llevar a un incremento de la condicin, al aumentar la vulnerabilidad de las personas a la desnutricin, a enfermedades y a condicionas peligrosas de vida y de trabajo.

    Bieler (2005), ao abordar o tema da deficincia, ressalta sua pouca visibilidade nas polticas para o desenvolvimento e reduo da pobreza e, como conseqncia, esse segmento fica excludo dos programas e projetos nessas reas. Cria-se um ciclo de invisibilidade da deficincia, numa lgica perversa, uma vez que a invisibilidade desse segmento faz com que o mesmo no represente problema para a comunidade que, por sua vez, no o considera como prioridade. Face inexistncia de servios no h incluso e, conseqentemente, a falta de visibilidade contribui para que a discriminao continue.

    Essas dificuldades so claramente impeditivas para que essas pessoas possam se organizar e exercer presses para que o Estado formule polticas adequadas s suas necessidades. Trata-se de um segmento sem visibilidade, que normalmente no considerado quando se formulam as polticas culturais. Esse contingente pode ser ampliado, visto que, em muitos casos, a dedicao e o dispndio de cuidados a seus dependentes impem tambm, a muitos familiares, certo grau de confinamento.

    Frente a esse quadro, como pensar a participao para alm de uma prtica discursiva? Uma posio crtica requer, certamente, que se lute contra a naturalizao de tais fenmenos que ferem a dignidade e a liberdade de seres humanos. Ao concordar com a idia de que os direitos humanos so realmente para todos, deve-se referendar o pressuposto essencial desse tema, tal como aborda Candido (2004), no sentido de que aquilo que considerado indispensvel para si, tambm o para o outro.

    Isso leva a que se reflita sobre o nvel de desigualdade que se expressa na vida cotidiana dessas pessoas. Para Berger e Luckmann (1983), embora o homem tenha conscincia de que o mundo se constitui em mltiplas realidades, a realidade cotidiana que se apresenta como predominante, dotada de sentido como um mundo coerente e aceita como a

    10 In: BIELER, R. Desenvolvimento Inclusivo: uma abordagem universal da deficincia. Equipe de

    deficincia e desenvolvimento inclusivo, regio da Amrica Latina e Caribe, Banco Mundial, 2005. [online]

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    realidade factvel. Essa realidade se impe porque no carece de verificao, se constituindo para o sujeito como o seu mundo por excelncia e, portanto, qualquer tipo de contestao a ela exigir um esforo deliberado e muito difcil. Assim, de acordo com esses autores:

    O mundo da vida cotidiana no somente tomado como uma realidade certa pelos membros ordinrios da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas um mundo que se origina no pensamento e na ao dos homens comuns, sendo afirmado como real para eles (BERGER; LUCKMANN, 1983, p. 36).

    Percebe-se que o grau de segregao dessas pessoas rouba-lhes uma importante dimenso social da vida cotidiana, na medida em que as impede de se apropriar, de modo mais amplo, das experincias e do conhecimento intrinsecamente relacionado s situaes sociais. Penetra-se, assim, no campo do sofrimento tico-poltico que pode ser qualificado pela maneira como o sujeito tratado e como trata o outro na intersubjetividade, cuja dinmica e contedo so determinados pela organizao social (SAWAIA, 1999). Nesse sentido, essa autora enfatiza que:

    O sofrimento tico-poltico retrata a vivncia cotidiana das questes sociais dominantes em cada poca histrica, especialmente a dor que surge da situao social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apndice intil da sociedade. Ele revela a tonalidade tica da vivncia cotidiana da desigualdade social, da negao imposta socialmente s possibilidades da maioria apropriar-se da produo material, cultural e social de sua poca, de se movimentar no espao pblico e de expressar desejo e afeto (SAWAIA, 1999, p. 104-105).

    Esse enfoque parece fundamental para a busca de outros referenciais que apontem para a valorizao da diversidade de sofrimentos e necessidades vividas por aqueles segmentos considerados excludos da sociedade e que, na realidade, sustentam a ordem vigente a fim de que seja evitado um modelo uniformizante nas anlises tericas e nas polticas pblicas (SAWAIA, 1999).

    Por essa razo, acredita-se que a preocupao com uma maior amplitude das polticas pblicas, para os segmentos mais vulnerveis da populao, extremamente necessria para se construir outras possibilidades para o problema da desigualdade, cujo debate pblico no Brasil ainda marcadamente pobre e reducionista, sendo o nmero de atores que tem acesso a esse debate igualmente restrito (BURITY, 2006). Percebe-se, portanto, a premncia na apropriao de saberes que contribuam para a anlise do carter complexo e heterogneo das prticas e estruturas sociais.

    Nesse sentido, a pobreza contempornea percebida como um fenmeno de muitas dimenses e que no resulta apenas da ausncia de renda, mas abarca outros fatores como a

    Disponvel em: Acesso em: 04/04/2007.

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    precariedade de acesso aos servios pblicos e, especialmente, inexistncia de poder. Esse conceito de pobreza vincula-se s desigualdades existentes e tambm deve ser pensado na perspectiva da democracia (SAWAIA, 1999).

    Percebe-se que uma mudana no ocorrer sem que os reais sujeitos implicados ampliem seu grau de participao na sociedade. Entende-se que a garantia dos direitos no plano legal representa uma conquista, porm, esta no suficiente para assegurar que os

    mesmos sejam cumpridos. O Brasil signatrio de vrias convenes e tratados de direitos humanos

    internacionais11 e a Constituio Federal de 1988 (CF/88) apresenta captulos e dispositivos constitucionais dedicados s pessoas com deficincia. No entanto, poucas mudanas ocorreram de fato no sentido de que as mesmas tenham seus direitos fundamentais assegurados. Piovesan (1998) aponta importantes avanos no plano normativo para as pessoas com deficincia, salientando que a CF/88 est em absoluta consonncia com os parmetros protetivos mnimos estabelecidos no campo internacional. No entanto, essa autora destaca que a violao de direitos subsiste, sendo a concretizao de dispositivos constitucionais uma meta ainda a ser alcanada.

    A concretizao dos princpios constitucionais depende da formulao de polticas pblicas que efetivamente desenvolvam programas que considerem os princpios da universalidade dos direitos para alm do plano formal. Isto implica no reconhecimento de que as condies de acesso aos bens e servios no so as mesmas para todas as pessoas, o que demanda recursos e adoo de estratgias inovadoras para alcanar os segmentos vulnerveis e desorganizados da populao.

    Todavia, o direito igualdade pressupe o direito diferena, uma vez que a igualdade no significa homogeneidade. O direito diferena evocado, ento, como uma proteo quando as caractersticas identitrias so ignoradas e quando so motivos para a excluso, discriminao e perseguio. Nesse sentido, uma diferena pode ser enriquecedora enquanto que uma desigualdade pode ser um crime (BENEVIDES, 2004).

    O direito diferena pressupe a adoo de medidas no sentido de assegurar as condies necessrias para que o acesso seja possvel. Nesse sentido, concorda-se com Fraser (2007) quando defende que o reconhecimento das particularidades de certos indivduos ou grupos deve ser tratado como uma questo de justia, sendo que as demandas nesse campo devem ter como padro avaliativo a paridade participativa12. No caso dos direitos culturais

    11 Alguns desses tratados sero apresentados no Captulo 3.

    12 O termo paridade representa a condio de ser um par e estar em igualdade com os outros (FRASER, 2007).

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    das pessoas com deficincia, no basta que os mesmos sejam proclamados ou que simplesmente rampas sejam construdas nos equipamentos. preciso considerar, por exemplo, as barreiras existentes para a prtica de uma vida comunitria, a falta de transporte adequado, de recursos miditicos nas instituies culturais que facilitem a comunicao e o acesso s informaes que se constituem fatores impeditivos para que o acesso seja efetivado.

    Na mesma direo, Cury (2005) expressa a preocupao com as causas diferencialistas que, quando no pautadas no direito igualdade, podem representar srios problemas. O autor argumenta que s quando articulada igualdade, a defesa das diferenas no-arbitrrias ganha seu real valor e pode se situar no mago de uma teoria democrtica da sociedade (CURY, 2005, p. 248). Para esse autor, a conquista progressiva de novos direitos e maior igualdade revelam o carter contraditrio desses mesmos direitos, uma vez que entram em choque com o carter possessivo da propriedade e com a ocupao do Estado por setores conservadores. No entanto, destaca que:

    A negao de toda e qualquer categoria geral, universal, especialmente a que faz do reconhecimento da igualdade bsica de todos os seres humanos, fundamento da dignidade de toda e qualquer pessoa humana, acaba por abrir portas e janelas para a entrada de todas as formas de discriminao e correlatas que o sculo XX deu trgicas provas (CURY, 2005, p. 247).

    Ao abordar os direitos culturais e os direitos das pessoas com deficincia, no se pode deixar de considerar que os mesmos esto inseridos no mbito mais amplo dos direitos humanos que, de acordo com Benevides (2004, p. 2-3):

    So aqueles comuns a todos, sem distino alguma de etnia, nacionalidade, sexo, classe social, nvel de instruo, religio, opinio poltica, orientao sexual, ou de qualquer tipo de julgamento moral. So aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrnseca de todo ser humano. Os direitos humanos so naturais e universais; no se referem a um membro de uma nao ou de um Estado mas pessoa humana na sua universalidade. So naturais porque vinculados natureza humana e tambm porque existem antes e acima de qualquer lei, e no precisam estar legalmente explicitados para serem evocados.

    Vieira (2002) reflete sobre a dificuldade para se compreender o que efetivamente significa ter um direito, por representar algo mais abstrato do que ter um objeto, por exemplo. Ele esclarece que, ao ter um direito, o indivduo passa a ser tambm beneficirio de deveres das outras pessoas ou do Estado. Entretanto, como tem-se direitos a coisas distintas como liberdade, educao e propriedade (CF/88) para cada um existiro formas correlatas de deveres que, por sua vez, devero ser respeitados por diferentes pessoas ou instituies. Torna-se necessrio compreender, portanto, que todo o direito sempre implicar em deveres para outrem.

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    Na concepo contempornea dos direitos humanos, os mesmos so fundados nos princpios da universalidade, uma vez que a crena de que a condio de pessoa o nico requisito para a titularidade de direitos, e pela indivisibilidade porque compe uma unidade interdependente. O prisma da indivisibilidade fundamental porque h de ser definitivamente afastada a equivocada noo de que uma classe de direitos (a dos direitos civis e polticos) merece inteiro reconhecimento e respeito e outra (a dos direitos sociais, econmicos e culturais), ao contrrio, no (PIOVESAN, 2005, p. 220).

    Para Benevides (2004), os direitos humanos so histricos e, portanto, podem ser permanentemente ampliados e aperfeioados como decorrncia das conquistas ao longo da histria e, do mesmo modo, a cidadania e a democracia so processos em constante transformao. Para essa autora h uma associao essencial entre direitos humanos e democracia, essa entendida como o regime poltico da soberania popular e do respeito integral aos direitos humanos, o que inclui reconhecimento, proteo e promoo (BENEVIDES, 2004, p. 2). O desenvolvimento e a ampliao da democracia e da conquista de direitos no pode prescindir da participao como indivduo ou grupo organizado nas diversas reas de atuao da sociedade.

    Se h avanos na garantia de direitos ao nvel legal, o que constitui ferramenta importante na luta pela concretizao dos mesmos, somente a letra da lei no suficiente para assegurar o cumprimento de tais garantias. Entretanto, tal como provoca Bobbio (1986, p. 20), as normas constitucionais que atribuem estes direitos no so exatamente regras do jogo: so regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo. Dessa forma, os direitos so pressupostos para o funcionamento dos mecanismos que caracterizam o regime democrtico, mas para que os sujeitos sejam colocados diante de alternativas reais de poder imprescindvel que os mesmos tenham direitos de liberdade, livre associao, reunies, expresso de opinies e etc.

    Ao abordar a situao em que vive uma minoria com privilgios em nosso pas, em detrimento da maior parte da populao, depara-se com o que Covre (1986) denomina como um quadro de semicidadania ou no-cidadania. Para essa autora: a luta pela democracia passa pelo treino democrtico em todos os nveis, e comea pelo bsico pelas prprias pessoas, na construo da personalidade democrtica, que por sua vez no se faz sozinha, mas no interior e como parte ativa do todo social (COVRE, 1986, p. 187, grifo da autora).

    Dessa forma, a participao comunitria assume importncia, uma vez que, de acordo com Bordenave (2007, p. 58), a mesma consiste:

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    Num microcosmos poltico-social suficientemente complexo e dinmico de forma a representar a prpria sociedade ou nao. Quer dizer que a participao das pessoas em nvel de sua comunidade a melhor preparao para a sua participao como cidados em nvel da sociedade global.

    A anlise de Simmel (1983) torna-se aqui pertinente, uma vez que o mesmo considera que a sociologia tem se limitado a estudar aqueles fenmenos sociais nos quais as foras recprocas dos seus portadores imediatos j se constituram em unidade, ideais pelo menos. Assim, grandes rgos e sistemas como o Estado, associaes sindicais, formas de famlia e organizaes militares entre outros, parecem constituir a sociedade preenchendo o crculo de sua cincia. Entretanto, mesmo considerando evidente que quanto maior a direo da ao mais facilmente ocorrer a transformao da vida imediata, este autor ressalta:

    Ao lado dos fenmenos visveis que se impem por sua extenso e por sua importncia externa, existe um nmero imenso de formas de relao e de interao entre os homens que, nesses casos particulares, parecem de mnima monta, mas que se oferecem em quantidade incalculvel e so as que produzem a sociedade, tal como a conhecemos, intercalando-se entre as formaes mais amplas, oficiais, por assim diz-lo (SIMMEL, 1983, p. 71) .

    Convm lembrar que as severas desigualdades existentes em nosso pas contribuem para a inibio da emergncia dos cidados ativos, afinal a desigualdade, ou a percepo de desigualdades, conspira contra a participao (BORDENAVE, 2007, p. 51).

    Percebe-se a importncia de refletir o papel da educao para o desenvolvimento de uma sociabilidade baseada em direitos, no respeito s diferenas, na solidariedade e na luta pela igualdade. Entretanto, no se pode considerar que essa seja uma tarefa exclusiva da ao escolar, visto que a educao se estende ao longo da vida do ser humano, a partir das relaes que estabelece nas diferentes esferas. Diversos autores como Gadotti (2005), Gohn (2005; 2006a), Trilla (1985), Libneo (2005) e Afonso (1992) abordam a importncia da educao escolar, porm consideram que essa se constitui uma das formas de educao, reconhecendo a educao no-formal como uma modalidade de educao intencional no-convencional e que pode ocorrer em espaos e ambientes diversificados. Da a importncia de que o direito educao no seja reduzido apenas escola mas, como enfatiza Gadotti (2005, p.10): direito ter acesso a oportunidades iguais para todos e todas em condies formais e no formais. Autores como Gohn (2005) e Gadotti (2005), fazem referncia amplitude do conceito de educao no-formal e ao fato de o mesmo ser associado ao conceito de cultura. Para Gadotti (2005), a vivncia na cidade por si s se constitui como um espao cultural permanente de aprendizagem. Esse autor destaca a importncia de se conhecer os equipamentos culturais da cidade:

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    Qualquer programa que tenta interconectar os espaos e equipamentos fundamental, pois desconhecemos a nossa prpria cidade ou subutilizamos as suas potencialidades. Precisamos empoderar educacionalmente todos os seus equipamentos culturais. A cidade o espao da cultura e da educao. Existem muitas energias sociais transformadoras que ainda esto adormecidas por falta de um olhar educativo sobre a cidade. Esse o objeto da pedagogia da cidade (GADOTTI, 2005, p. 7).

    Dessa forma considera-se, neste estudo, o direito cultura no mbito das polticas pblicas, permeado pela idia de cidadania cultural, em que a cultura:

    No se reduz ao suprfluo, ao entretenimento, aos padres do mercado, oficialidade doutrinria (que ideologia), mas se realiza como direito de todos os cidados, direito a partir do qual a diviso social das classes ou a luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque, no exerccio do direito cultura, os cidados, como sujeitos sociais e polticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experincias, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural (CHAU, 2006, p. 138).

    A compreenso usual no seio da instituio pblica, da educao como atribuio exclusiva do ensino formal, oculta a percepo e a responsabilidade de que outras polticas pblicas devem exercer um papel educativo fundamental na vida e na educao geral das pessoas.

    A poltica cultural apresenta-se, nesse contexto, fortemente entranhada relao cultura-educao e sua contribuio para a formao da cidadania, o que parece ser ignorado na formulao das polticas pblicas. Do mesmo modo, a limitao na formulao de polticas pblicas para as pessoas com deficincia uma vez que parecem mais voltadas a oferecer-lhes, principalmente e ainda de forma limitada, o acesso educao formal e aos servios mdicos e assistenciais , corrobora para ignor-los como cidados, como sujeitos em sua totalidade. Desse modo, concorda-se com Pinheiro (2003) ao questionar a adoo, pelas polticas pblicas nas sociedades de massa, de uma perspectiva generalista que implica no no-atendimento, ou no atendimento precrio, de todos aqueles que divergem do padro e da normalidade constitudas. O autor defende que o direito das pessoas com deficincia deve ser ampliado para diversas reas, devendo ser objeto de ateno de polticas pblicas intersetoriais.

    Considera-se portanto, no presente trabalho, como uma necessidade imperativa, o desenvolvimento de novas estratgias, por meio de polticas pblicas, que ampliem a participao das pessoas com deficincia e que tenham a formao da cidadania como preocupao central.

    Dessa forma, a concepo elaborada por Fraser (2007) apropriada para este estudo, uma vez que a autora considera que as demandas por reconhecimento devem ser

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    fundamentadas como uma questo de status social que visa superar a subordinao e tornar possvel a paridade de participao na vida social, para que os sujeitos sejam capazes de interagir com os outros como iguais. Tal modelo parece fundamental porque o no-reconhecimento resulta do modo como as instituies estruturam as interaes, de acordo com as normas culturais que criam obstculos igualdade de participao. Percebe-se que a interao regulada por um padro institucionalizado de valorao cultural que constitui algumas categorias de atores sociais como normativos e outros com deficientes ou interiores (FRASER, 2007, p. 108).

    Contudo, a emergncia de que os indivduos devam atuar com paridade no cenrio social implica no reconhecimento da humanidade de todos. Dessa forma, considera-se que a paridade participativa, como norma universalista proposta por Fraser (2007) absolutamente condizente com o tema dos direitos humanos, uma vez que procura incluir todos os parceiros na interao e atribui igual valor moral aos seres humanos.

    Ao evocar a importncia da poltica cultural e seu compromisso com a cidadania cultural das pessoas com deficincia compreende-se, no apenas a necessidade de pens-la como um direito de todos, mas, a responsabilidade do Estado em oferecer garantias aos direitos j institudos, prevendo estratgias que contemplem tambm os segmentos mais vulnerveis, em todas as reas do desenvolvimento humano. preciso considerar que muitas demandas no so expressas ou reivindicadas por esses segmentos porque no so valorizadas e, muitas, nem mesmo puderam ser experimentadas, vivenciadas.

    Numa sociedade de consumo, em que tudo se constitui mercadoria para atender as necessidades impostas pelo mercado, pela propaganda e pela moda, as situaes interativas e reflexes possibilitadas a partir do contato com os bens da cultura podem proporcionar vivncias que vo muito alm do prazer da fruio, ainda que tal experincia j seja, em si, gratificante. Nesse sentido, como expresses do pensamento, podem instigar outras perspectivas na compreenso da realidade, como tambm levar descoberta da capacidade do sujeito como criador de smbolos, rompendo com o aprisionamento desse crculo cotidiano. Assim, de acordo com Gohn (2006b, p. 546):

    Na atualidade, os mecanismos de dominao existentes na sociedade globalizada utilizam processos que levam alienao dos indivduos pela via do desejo e da prtica do consumo, de bens e mercadorias e de produtos culturais, tambm transformados em consumo (a moda, um estilo de ser e de fazer, dito como diferente). A vida do cidado comum se transfigura em um cotidiano sofrido de obrigaes, deveres, luta pela sobrevivncia para suprir carncias de vrias ordens, excluso e sofrimento para grandes contingentes. Poucos tm a possibilidade de ter contato como territrios civilizatrios, onde haja a circulao de idias, a livre manifestao de opinies, o acesso a informaes, debates, etc. Esses territrios geram possibilidades libertadoras, o reconhecimento dos indivduos como seres

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    humanos. So lcus de desenvolvimento da cidadania ativa.

    O processo de conhecer, em nvel reflexivo, permite ao homem compreender a prpria realidade, torn-la objeto de seu conhecimento, levantar hipteses e procurar solues visando transform-la (FREIRE, 2005). Desse modo, ao refletir sobre o movimento de mudana da realidade empreendido pelos homens, conta-se com a perspectiva terica apresentada por Honneth (2003) que afirma que a luta por reconhecimento no marcada por objetivos de autoconservao ou aumento de poder, mas que a mesma se d nos conflitos que se originam nos sentimentos morais de injustia, reafirmando o nexo entre desrespeito moral e luta social. Esse conceito de luta social est necessariamente condicionado ao carter coletivo dos seus objetivos, na medida em que a mesma compreendida como um processo prtico no qual experincias individuais de desrespeito so interpretadas como experincias cruciais tpicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ao, na exigncia coletiva por relaes ampliadas de reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 257). Entretanto, considera-se que tais pressupostos parecem reforar que a luta por reconhecimento torna-se um rduo desafio para aqueles que no so valorizados na sociedade e que tm limitadas suas relaes sociais e que, portanto, tm fragilizadas as possibilidades de construir relaes solidrias num grupo. No se pode ficar impassvel frente ao isolamento social dessas pessoas e, conseqentemente, ao efeito do malogro de no ter suas expectativas atendidas ou sequer reconhecidas como injustia, na medida em que facilmente se cristalizam como fracasso pessoal ou sentimento de impotncia.

    A segregao social, portanto, mantm o status dessas experincias num nvel individual, impedindo a instaurao do nexo entre desrespeito pessoal e sentimento coletivo, indutor da luta social. O isolamento social, portanto, no permite nenhuma forma de plausibilidade para que tais sentimentos sejam interpretados numa matriz social, na medida em que inviabiliza a construo de uma semntica coletiva derivada da ressignificao de tais experincias num grupo.

    Desse modo, adquirem relevncia as experincias de convivncia e participao que favoream a comunicao e a expresso de idias, o aguamento da sensibilidade e da capacidade reflexiva, em que entram em jogo as diferentes formas de interpretar e sentir a realidade, tornando possvel uma maior percepo acerca dos valores, comportamentos e contradies, como tambm ampliar a conscincia de si e do outro. Afinal, a expanso da cidadania social no pode ocorrer sem a mobilizao popular e sem a ao efetiva do poder pblico, no sentido de uma mudana cultural que contribua para mudar as mentalidades

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    marcadas pela discriminao e pelo preconceito, e que negam a diferena e o direito de todos (BENEVIDES, 2001).

    A crena na mudana s possvel se se acreditar que a sociedade no algo acabado, esttico, mas, ao contrrio, aquilo que est acontecendo, um constante devir (SIMMEL, 1983). Assim, a sociedade emerge quando indivduos isolados se agregam em formas de relaes mtuas que se estabelecem por determinados motivos e interesses, denominadas por este autor, como sociao e assim definidas:

    A forma (realizada de incontveis maneiras diferentes) pela qual os indivduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses. Esses interesses, quer sejam sensuais ou ideais, temporrios ou duradouros, conscientes ou inconscientes, causais o teleolgicos, formam a base das sociedades humanas (SIMMEL, 1983, p. 166).

    So essas inmeras relaes momentneas ou duradouras, conscientes ou inconscientes que ocorrem entre as pessoas e as vinculam incessantemente umas s outras, e

    que se constituem como tomos e produzem a variedade e a unidade da vida em sociedade (SIMMEL, 1983). Desse modo, e de acordo com esse autor, a sociedade no um todo esttico:

    A cada novo aumento de formaes sintticas, a cada formao de partidos, a cada unio para uma obra comum ou num comum sentimento ou modo de pensar, a cada distribuio mais precisa da submisso e da dominao, a cada refeio em comum, a cada adorno que algum use para os demais, o mesmo grupo vai-se tornando cada vez mais sociedade do que antes. No h uma sociedade absoluta, no sentido de que deveria existir como condio prvia para que surjam esses diversos fenmenos de unio; pois no h interao absoluta mas somente diversas modalidades dela, cuja emergncia determina a existncia da sociedade, da qual no so causa nem efeito, mas ela prpria de maneira imediata (SIMMEL, 1983, p. 64-65).

    Tais pressupostos so essenciais para fundamentar a importncia das relaes e aes recprocas que se estabelecem entre as pessoas e que, por menores que paream, constituem a vida em sociedade. Assim, a educao no-formal constitui-se bem precioso em virtude da possibilidade de adequar-se a diversos contextos e grupos, representando uma esperana na medida em que as mudanas no ocorrem fora dos espaos sociais e polticos j existentes, mas no interior das estruturas vigentes, da realidade problemtica (BURITY, 2006; MARTINS, 2003). Destarte, concorda-se com Burity (2006) ao afirmar que a cultura e a identidade tambm representam campos frteis para se pensar a mudana.

    Essas perspectivas fornecem elementos importantes para a realizao desta pesquisa, cujo objetivo estabelecer um dilogo entre a poltica cultural e a educao no-formal, destacando a importncia de tal relao para a constituio da cidadania das pessoas com deficincia. Considerando a preocupao em enriquecer e melhor elucidar as reflexes aqui apresentadas, buscar-se- captar a voz dos participantes do Projeto Sampa Inclui, por avaliar

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    que o referido projeto, embora no sistematizado, constitui-se uma experincia de poltica pblica de educao no-formal, preocupado fundamentalmente com a criao de situaes interativas e com o acesso aos equipamentos de cultura e lazer no municpio de So Paulo.

    A importncia de pesquisas no campo da educao no-formal apontada como um dos desafios dessa rea de conhecimento, considerada ainda em construo. H necessidade de estudos sobre metodologias de trabalho, bem como a criao de indicadores para anlise de trabalhos em campos no sistematizados (GOHN, 2005; 2006a). Para Gohn (2006, p.32) so desafios prioritrios nesse campo:

    Formao especfica a educadores a partir da definio de seu papel e as atividades a realizar;

    Definio mais clara de funes e objetivos da educao no-formal; Sistematizao das metodologias utilizadas no trabalho cotidiano; Construo de metodologias que possibilitem o acompanhamento do trabalho

    que vem sendo realizado; Construo de instrumentos metodolgicos de avaliao e anlise do trabalho

    realizado; Construo de metodologias que possibilitem o acompanhamento do trabalho

    de egressos que participaram de programas de educao no formal; Criao de metodologias e indicadores para estudo e anlise de trabalhos da

    Educao no formal em campos no sistematizados. Aprendizado gerado por atos de vontade do receptor tais como a aprendizagem via Internet, para aprender msica, tocar um instrumento etc.;

    Mapeamento das formas de educao no formal na auto-aprendizagem dos cidados (principalmente jovens).

    Pode-se constatar que o objetivo deste estudo est em consonncia, especialmente, com a construo de metodologias para o acompanhamento dos sujeitos participantes e egressos de programas de educao no-formal, em campos no sistematizados. Da mesma forma, a preocupao em ouvir os sujeitos participantes do Projeto desafia a se construir formas de sistematizar as aprendizagens e abordagens decorrentes desses processos. Algumas questes aqui registradas podem encontrar pertinncia com outros desafios citados para o campo da educao no-formal, inclusive no que se refere identidade do educador que, pelos limites deste estudo, no ser abordada.

    So poucas as experincias, assim como no se tem tradio em avaliaes de resultados de implementao de polticas pblicas, sendo uma rea ainda incipiente do ponto de vista conceitual e metodolgico (BELLONI; MAGALHES; SOUZA, 2003, p. 9). Para Figueiredo & Figueiredo (1986), h razes instrumentais e morais para a promoo de avaliao das polticas pblicas: A motivao instrumental tem como objetivo a gerao contnua de informaes para monitorar a execuo do programa e, do ponto de vista moral, a motivao caminha em duas direes. De um lado, refere-se moralidade administrativa, resultando, por exemplo, em auditorias contbeis. De outro, busca a moralidade poltica ou

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    social, ou seja, se os propsitos das polticas ou dos programas so condizentes com os princpios de justia poltica e social, sobre os quais existe um consenso mnimo. Pode-se inferir, portanto, que h uma dimenso tica na avaliao.

    A realizao deste estudo justifica-se na medida em que a maior parte dos textos que abordam as pessoas com deficincia refere-se s reas da educao escolar e da acessibilidade fsica e da sade e, embora representem contribuies importantes, no so suficientes para atender as suas necessidades, nem as dos demais cidados. Cabe esclarecer que no foram localizadas pesquisas que investigam especificamente a educao no-formal relacionada constituio da cidadania das pessoas com deficincia no mbito das polticas pblicas culturais.

    Ao relacionar o tema da poltica cultural s pessoas com deficincia, encontrou-se apenas a tese de doutoramento de Tojal (2007), que concebe o museu e o patrimnio cultural como instrumentos de polticas pblicas culturais de incluso de pblicos especiais. Esse estudo apresenta concluses sobre a possibilidade de desenvolvimento de polticas pblicas de acessibilidade e incluso de pblicos especiais em museus, viabilizada a partir de uma ao planejada e articulada, amparada num conceito de rede na atuao das instituies museolgicas.

    A maior parte dos estudos relacionados a esse segmento focada na educao escolar, nos aspectos relacionados ao mundo do trabalho, na acessibilidade fsica e na sade. Outros temas mais recorrentes so centrados na engenharia de reabilitao e na utilizao de tecnologias. De modo geral, algumas poucas pesquisas relacionadas cidadania e educao no-formal abordam temas como a educao ambiental, sade e esporte. Ao relacionar esses temas s pessoas com deficincia, encontrou-se apenas a tese de doutoramento de Neves (2005) que, a partir dos documentos legais que abordam uma educao de qualidade para todos, contribui com anlises acerca da situao de formao do cidado, com abrangncia no conhecimento de seus direitos e do exerccio da auto-advocacia para pessoas com deficincia mental13 e paralisia cerebral.

    A escassez de referenciais tericos, que tenham como preocupao a poltica cultural na tica de um processo educativo emancipatrio e de construo da cidadania, com foco nos segmentos mais vulnerveis da populao em especial as pessoas com deficincia , localizam a medida dos desafios desta pesquisa. Da mesma forma, este estudo representa um enfrentamento necessrio acerca da idia, usualmente defendida, que as polticas pblicas

    13 A autora utiliza o termo deficincia mental.

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    devem ser fruto das demandas e reivindicaes populares, apresentadas de modo organizado e que expressam o movimento fundamental e necessrio do jogo democrtico.

    Sem dvida, este representa um cenrio ideal, entretanto e especialmente, ao se pensar naqueles segmentos que no participam em condies de igualdade na sociedade, partiu-se do pressuposto fundamental acerca da iniciativa e responsabilidade do Estado no desenvolvimento de polticas que fomentem a participao dos mesmos e que assegurem o atendimento s suas necessidades fundamentais e que neste estudo se reportam, de modo mais especfico, aos direitos culturais. Cabe, aqui, a ressalva de que tal tarefa no quer dizer que projetos de educao no-formal devam ser desenvolvidos unicamente pelo Estado, sem a implicao de iniciativas e parcerias com outros setores da sociedade. Ao contrrio, cabe ao Estado buscar a participao de outros atores no desenvolvimento dessas polticas, como tambm fomentar iniciativas e fortalecer, quando necessrio, aquelas j existentes.

    possvel afirmar, inclusive, que espera-se que os depoimentos vivifiquem os pressupostos tericos, pois advm dos participantes de um projeto que no se constituiu a partir de reivindicaes dos seus usurios mas nem por isso tem seu valor diminudo. Nesse sentido, esse rduo desafio foi intensificado, posto o foco nos direitos culturais os quais, acredita-se, no so valorizados e tampouco compreendidos em sua plenitude pelos agentes e dirigentes pblicos em vrios nveis sendo, geralmente, reconhecidos no senso comum como algo suprfluo. Nesse sentido, no se pode esperar que as iniciativas do Estado dependam apenas da manifestao de qualquer reivindicao, quando o campo fundamental parece ser o dos direitos.

    Por isso, a defesa acerca da mudana de paradigmas sobre a compreenso de tais direitos e do entendimento da cultura que, compreendida como o prprio modo de vida, abriga um espao potencial para se pensar num grau maior de participao dos segmentos mais vulnerveis da populao. Provavelmente falte, ainda, o combustvel necessrio para que uma poltica cultural seja matria de reivindicao e luta para todos, mas tal fato no se concretizar enquanto ela for implementada e vivida como uma rea pouco til e acessria, ou como matria de interesse de artistas e produtores ou da indstria cultural.

    A abordagem de temas nessa rea imprescindvel para a busca de outros referenciais de anlise da excluso, capazes de desorganizar os consensos que mutilam a vida nas pesquisas, especialmente os que consideram que o excludo constitui uma categoria homognea e inerte, ocupada apenas com sobrevivncia fsica e presa s necessidades (SAWAIA, 1999, p. 109).

    Dessa forma, entende-se que esta pesquisa pode contribuir com as discusses

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    acadmicas na rea da educao no-formal, como tambm no mbito da cidadania, direitos humanos e polticas pblicas para pessoas com deficincia. Acredita-se que os resultados podero apresentar elementos importantes ao apontar a necessidade, e relevncia, de que o poder pblico avalie as experincias em curso, respondendo, sobretudo, ao dever de transparncia e necessidade de aprimoramento e produo de conhecimentos das experincias realizadas com recursos pblicos, no interior da mquina do Estado. Cabe lembrar que, ainda que no tenha sido avaliado, a mera existncia e permanncia do Projeto comprova que h alternativas viveis, possveis de execuo contando com a otimizao dos recursos j existentes e buscando maior participao desse segmento na sociedade. De outro lado, preciso que o poder pblico amplie o grau de apropriao e de responsabilidade acerca das aes desenvolvidas no interior da mquina pblica, sendo fundamental que as mesmas sejam avaliadas e aprimoradas.

    Nesse sentido, conclui-se que o compromisso do poder pblico no pode ficar restrito prestao de servios, devendo tambm preocupar-se com a qualidade dos mesmos, com a transparncia nas aes e com a participao dos interessados. Por isso fundamental lembrar que a avaliao, de acordo com Arretche (2001), um importante instrumento democrtico no sentido de permitir o controle sobre as aes desenvolvidas pelo governo. Acredita-se que pesquisas voltadas para o campo da educao no-formal podem contribuir para que o Estado empreenda maiores esforos e recursos para que programas sejam desenvolvidos nesta rea.

    Sabe-se que o contexto onde se insere o programa ou a ao das organizaes influi em seus processos e resultados (CARVALHO, 2001, p. 63) e que, portanto, os aspectos institucionais no esto dissociados do modo como o Projeto apreendido pelos sujeitos. Contudo, esta pesquisa no pretende fazer a avaliao do Projeto Sampa Inclui, embora fornea elementos fundamentais para realiz-la, posto que busca estabelecer possveis relaes entre os pressupostos tericos aqui apresentados e o modo como os participantes apreenderam a experincia decorrente da participao no referido projeto.

    Reitera-se que, embora no se tenha como objetivo a avaliao especfica do Projeto, assume importncia o fato de considerar a perspectiva dos participantes, especialmente pelas limitaes de participao das pessoas com deficincia na sociedade. Espera-se que a expresso de suas vozes seja considerada como um indicador sobre o grau de relevncia do Projeto em suas vidas e, numa tica mais ampla, para as pessoas com deficincia, uma vez que um relato no to somente a perspectiva do indivduo, mas apresenta um contedo marcado pelo coletivo (LANG,1996).

    Considerando as limitaes no desenvolvimento de polticas pblicas para pessoas

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    com deficincia, e os desafios para a construo de uma sociedade mais igualitria, torna-se premente a investigao de experincias que contribuam para a reflexo sobre os inmeros percursos existentes com o objetivo de romper com a invisibilidade e ampliar a participao dos segmentos mais vulnerveis da populao na sociedade, ainda que a princpio paream pequenos. Nesse sentido, o Projeto Sampa Inclui no um fim em si mesmo, mas deve ser compreendido como um possvel meio de impulsionar tais prticas. Assim como as hipteses iniciais no implicam, necessariamente, na defesa de que o Projeto Sampa Inclui esteja configurado e desenvolvido de modo mais adequado.

    Para a fundamentao desta pesquisa, sero apresentados no primeiro captulo os pressupostos da educao no-formal, tendo como contraponto as definies de educao formal e informal, abordadas por diversos autores, com a perspectiva de situar seus campos especficos e interpenetraes. Nessas anlises procura-se detalhar as diversas abordagens da educao no-formal, considerando seu panorama histrico, seus campos, metodologias e ambientes, procurando dialogar com os objetivos da pesquisa.

    No segundo captulo ser abordado o conceito de cidadania e sua interrelao com a questo dos direitos humanos, com uma breve contextualizao de sua evoluo histrica. Tais conceitos sero analisados em estreita relao com os desafios da participao e da organizao coletiva numa sociedade democrtica, especialmente para os segmentos mais vulnerveis e desorganizados da populao, e ainda, o papel do Estado no desenvolvimento das polticas pblicas.

    No terceiro captulo ser analisado o conceito de cultura, buscando relacion-lo com o conceito de poltica cultural. Considera-se oportuna uma abordagem geral da poltica de cidadania cultural e dos direitos culturais estabelecidos no plano formal. O foco ser o de estabelecer as imbricaes entre cultura no mbito das polticas pblicas, a educao e o processo de participao para a constituio da cidadania, acentuando aspectos que a tornam fundamental para a garantia de direitos das pessoas com deficincia. Para tanto, a reflexo ser desdobrada num dilogo entre a ao cultural e a educao no-formal, como tambm dar centralidade cultura como um valor fundamental e que, no mbito das polticas pblicas, ainda apresenta importantes desafios para a conquista da cidadania.

    O quarto captulo ter como foco as informaes mais detalhadas referentes ao contexto de implantao e desenvolvimento do Projeto Sampa Inclui. Ao final, ser doada uma cpia do contedo deste captulo Subprefeitura da Capela do Socorro e SPTrans/ATENDE.

    No quinto captulo ser apresentada a metodologia da pesquisa, ocasio em que sero

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    explicitados os procedimentos para a coleta, organizao e anlise dos dados. Os desafios na busca da metodologia mais adequada para esta pesquisa tambm so apontados, especialmente por ser fundamental dar voz aos participantes do Projeto, de modo que os mesmos pudessem expressar, com o maior grau de liberdade possvel, sua experincia no Projeto.

    Dessa forma, foram realizados vrios estudos e, nesse percurso, foi fundamental o contato com a literatura sobre a histria oral, uma vez que a mesma contribui para possibilitar uma significativa interpretao da experincia da vida comum, deslocando o centro da ateno dos governos e administradores para as pessoas e o modo como estas vem seu lugar e seu papel no mundo. Pode-se dizer que a histria oral amplia o campo de possibilidades em vrias reas, porm pautada numa tendncia bsica na direo de uma histria mais pessoal, social e democrtica, empregando evidncias de modo a agregar o objetivo e o subjetivo e transitando por entre as esferas pblica e privada (THOMPSON, 1992).

    Assim, a histria oral pareceu essencial em virtude da preocupao em instrumentalizar aqueles grupos sem voz ou expresso, num mbito mais amplo das participaes coletivas, o que revela o carter poltico da abordagem (MEIHY, 2005, p. 120). Nesse sentido, adotou-se como procedimento a coleta de depoimentos orais (LANG, 1996) por meio de entrevistas com os participantes do Projeto. Nesse tipo de depoimento, o pesquisador busca o testemunho do entrevistado sobre determinada experincia, com referncias mais diretas sobre os acontecimentos que se constituem como objeto de estudo. No sexto captulo sero apresentados os resultados e as anlises deste estudo e, no stimo captulo sero tecidas as consideraes finais desta pesquisa.

    Para concluir esta introduo, faz-se necessrio esclarecer que, para esta pesquisadora, este estudo demandou certo encorajamento, representando um movimento de crtica, mas tambm de certo alvio. Se a oportunidade de desenvolver um novo projeto, voltado para as pessoas com deficincia, no mbito de uma das 31 Subprefeituras do municpio de So Paulo, foi extremamente satisfatria, por outro lado foi angustiante constatar a manuteno de suas precrias condies de implantao, como tambm, o isolamento dessa experincia de quaisquer mecanismos de acompanhamento e avaliao institucional. Contudo, transformar uma experincia, especialmente quando se est to envolvida, em objeto de conhecimento, no uma tarefa fcil.

    Nesse sentido, fundamental que o poder pblico perceba a premncia de ampliar as possibilidades de acesso s polticas pblicas para a garantia dos direitos das pessoas com deficincia. Se no senso comum pode-se considerar melhor oferecer um servio ainda que

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    de forma precria do que no oferecer nada, a quem j parece merecer pouca ateno do poder pblico, essa lgica no pode valer do ponto de vista institucional, pois invalida qualquer compromisso com a cidadania. Por isso, esta pesquisa representa uma libertao, no sentido de cumprir um ciclo, avaliar o feito, contribuir para valid-lo ou no e para critic-lo buscando seu aprimoramento. Dessa forma, como servidora pblica, pego carona nesta pesquisa, pois na ao de pesquisadora, posso apreender mais sobre minha prpria prtica, visto que sou uma, entre muitos educadores que atuam no servio pblico. Sou tambm face da instituio e, portanto, tenho o dever tico, no apenas de prestar servios mas, de atuar em consonncia e compromisso com a democracia e a conquista dos direitos humanos.

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    1 A EDUCAO NO-FORMAL E A CONSTITUIO DA CIDADANIA

    No Brasil, a esperana uma virtude revolucionria. Maria Victria Benevides

    Este captulo aborda a concepo de educao no-formal, na perspectiva de vrios autores, com o objetivo de compreender seus pressupostos, especialmente os aspectos relacionados a um maior estmulo participao e ao desenvolvimento da cidadania.

    O Brasil marcado por extrema desigualdade econmica e social e convive com um sistema escolar dual destinado formao das elites e dos cidados comuns. Se a democratizao do acesso ao ensino bsico representou uma conquista, atualmente a luta pela qualidade do ensino delineia novos contornos na discusso sobre o direito educao (OLIVEIRA; ARAUJO, 2005). So muitos os desafios numa sociedade marcada por tantos contrastes: de um lado as transformaes geradas pela globalizao, pelo acelerado progresso tecnolgico na era da informao e, de outro, a busca de alternativas para minimizar os efeitos das desigualdades para um grande contingente da populao.

    Diante da amplitude dos desafios da sociedade contempornea, parece inegvel a importncia do papel da educao na formao do cidado, porm, esta no constitui funo exclusiva da educao escolar, uma vez que, de acordo com Brando (2006, p. 19), a educao , como outras, uma frao do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenes de sua cultura, em sua sociedade. O autor reitera que a escola, portanto, no o nico modelo e nem o nico lugar onde a educao acontece e, dessa forma, no se constitui exclusividade do professor a sua prtica.

    Assim, a educao como um fenmeno multifacetado ocorre em vrias campos distintos entre si. De acordo com Libneo (2005), essa distino dada pelo carter de intencionalidade da ao educativa (educao formal e no-formal) e no-intencionalidade (educao informal):

    Surge, pois, no desenvolvimento histrico da sociedade, a educao intencional como conseqncia da complexificao da vida social e cultural, da modernizao das instituies, do progresso tcnico cientfico, da necessidade de cada vez maior nmero de pessoas participarem das decises que envolvem a coletividade. A sociedade moderna tem uma necessidade inelutvel de processos educacionais intencionais, implicando objetivos sociopolticos explcitos, contedos, mtodos, lugares e condies especficas de educao, precisamente para possibilitar aos indivduos a participao consciente, ativa, crtica na vida social global (2005, p. 87, grifo nosso).

    De acordo com Trilla (1985), a partir do final dos anos sessenta, as expresses

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    educao informal e no-formal, mesmo que indistintamente no incio, passaram a ser utilizadas na terminologia pedaggica a fim de designar determinados processos e situaes educativas. Diante de um contexto educativo to amplo e heterogneo, situado fora do ambiente escolar, tornava-se cada vez mais necessrio adotar conceitos para especificar os tipos de educao que ocorrem em instituies, meios e mbitos to diversos. O autor refere que Coombs foi o primeiro a distinguir os trs modos de educao formal, no-formal e informal em artigo publicado em 197314, cujas denominaes foram posteriormente assumidas por outros autores e instituies de prestgio no mbito pedaggico internacional.

    Para Trilla (1985), o modo mais corrente para caracterizar a educao no-formal era no sentido de estabelecer comparaes com a educao formal, no havendo grande preocupao terica e conceitual com o tratamento desta temtica. As caractersticas que basicamente a distinguiam da educao formal reduziam-se ao carter no-escolar, como tambm, sua localizao fora do sistema escolar graduado e hierarquizado. Esse autor considera tais conceitos incompatveis para definir univocamente a educao no-formal, uma vez que estaria excludo um conjunto de instituies como, por exemplo, as universidades de ensino a distncia, que apresentam sistemas educativos graduados e, de outro lado, as escolas que, embora no faam parte desse sistema, apresentam um carter escolar, como escolas de idiomas e de especialidades artsticas.

    Ao referir-se origem do conceito de educao no-formal, Trilla (1985) menciona que a anlise da bibliografia referente a esse tema revela que a maioria dos estudos e investigaes foram desenvolvidos no campo do planejamento educativo, com a ateno voltada, principalmente, para os pases em desenvolvimento. Para o autor, esse fato pode justificar por que o conceito de educao no-formal incorporou aspectos relacionados diretamente ao desenvolvimento socioeconmico, voltados prioritariamente para o mbito das necessidades mais bsicas como, por exemplo: higiene, controle da natalidade, alimentao e economia domstica, em detrimento de temas como o cio e o cultivo autotlico da cultura.

    Para Gohn (2005), at os anos de 1980 a educao no-formal era vista como um campo sem grande expresso no Brasil, constituindo-se como uma extenso da educao formal, porm desenvolvida em espaos fora da escola. Somente a partir dos anos de 1990 a educao no-formal passa a ter destaque em decorrncia das mudanas na sociedade, na economia e no mundo do trabalho, quando so mais valorizados os processos de

    14 COOMBS, P. H. Faut-il developper lducation priscolaire?. In: UNESCO, Perspectives, vol. III, nm.

    3, 1973, p. 315-338.

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    aprendizagens grupais e os valores culturais como elementos articuladores das aes dos indivduos. Para essa autora, a nfase na educao no-formal, a partir desse perodo, tambm decorre da contribuio de vrios estudos realizados e da influncia das agncias e organismos internacionais, como a Organizao das Naes Unidas (ONU) e a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) uma vez que na Conferncia realizada em 1990, na Tailndia, foi elaborada a Declar