UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULOtede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/596/1/Ezilenepg1... ·...

70
1 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO EZILENE NOGUEIRA RIBEIRO EURICO ALFREDO NELSON (1862-1939) E A INSERÇÃO DOS BATISTAS EM BELÉM DO PARÁ SÃO BERNARDO DO CAMPO 2011

Transcript of UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULOtede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/596/1/Ezilenepg1... ·...

1

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

EZILENE NOGUEIRA RIBEIRO

EURICO ALFREDO NELSON (1862-1939) E A INSERÇÃO

DOS BATISTAS EM BELÉM DO PARÁ

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2011

2

EZILENE NOGUEIRA RIBEIRO

EURICO ALFREDO NELSON (1862-1939) E A INSERÇÃO

DOS BATISTAS EM BELÉM DO PARÁ

Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação

em Ciências da Religião da Universidade Metodista de

São Paulo, Faculdade de Humanidades e Direito, para

obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2011

3

EZILENE NOGUEIRA RIBEIRO

EURICO ALFREDO NELSON (1862-1939) E A INSERÇÃO

DOS BATISTAS EM BELÉM DO PARÁ

Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências

da Religião à Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade de

Humanidades e Direito para obtenção do grau de Mestre. Orientador:

Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura

Data de defesa: 04 de abril de 2011

Resultado:__APROVADA___

BANCA EXAMINADORA:

Lauri Emilio Wirth Prof.Dr. _________________________

Universidade Metodista de São Paulo

Leonildo Silveira Campos Prof.Dr. _________________________

Universidade Metodista de São Paulo

Éber Ferreira Silveira Lima Prof.Dr. _________________________

Universidade Nove de Julho

4

A dissertação de Mestrado sob o título “EURICO ALFREDO NELSON (1862-1939) E A

INSERÇÃO DOS BATISTAS EM BELÉM DO PARÁ” elaborada por Ezilene Nogueira

Ribeiro foi apresentada e aprovada em 04 de abril de 2011, perante banca examinadora

composta por: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth ( Presidente/Universidade Metodista de São

Paulo), Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos (Titular/Universidade Metodista de São Paulo) e

Prof.Dr. Éber Ferreira Silveira Lima (Titular/Universidade Nove de Julho).

Prof.Dr. Lauri Emilio Wirth

Orientador/ Presidente da Banca Examinadora

Prof. Dr. Jung Mo Sung

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Teologia e História

5

Ribeiro, Ezilene Nogueira

Eurico Alfredo Nelson (1862-1939) e a inserção dos batistas em

Belém do Pará / Ezilene Nogueira Ribeiro. – São Bernardo do Campo, SP:

Universidade Metodista de São Paulo, 2011.

[8], 97 f.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade Metodista de

São Paulo - Faculdade de Direitos e Humanidades, 2011.

Resumo em português e inglês.

1. Batistas – Pará. 2. Eurico Alfredo Nelson. 3. Igreja – Implantação. I. Título.

CDD 286.8115

6

Dedico este trabalho aos meus pais Cari e Maroca.

E aos meus filhos Paulo e Lucas.

7

AGRADECIMENTOS

À CAPES, pela bolsa de Mestrado.

Ao meu orientador. Profissional muito competente e dedicado.

Aos meus pais Carivaldo e Maria da Luz.

Aos meus filhos Paulo e Lucas.

Ao IEPG e a boa acolhida na casa de estudante.

Devo igualmente grande gratidão aos professores da banca de qualificação na demonstração

da existência de outros caminhos.

Ao Seminário Batista Equatorial, pela liberação das minhas atividades docentes no ano de

2009.

Ao delegado Luiz Alcântara, pela compreensão e liberação das minhas licenças funcionais.

Aos professores do curso, grandes mestres e aos colegas, grandes companheiros.

8

RIBEIRO, E.N. Lauri Emilio Wirth (orient.) Eurico Alfredo Nelson (1862-1939) e a

inserção dos batistas em Belém do Pará, 2011. 105 p. Dissertação (Mestrado em Ciências

da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011.

RESUMO

Esta dissertação propõe-se apresentar alguns aspectos que favoreceram a chegada do

cristianismo batista em Belém do Pará, nos idos do século XIX e XX. Além disso, se fará uma

descrição da urbe, apontando alguns fatores que possibilitaram a imigração de Eurico Nelson.

Trata-se de um sueco batista que veio “viver pela fé” numa cidade visivelmente adensada pelo

processo de exploração da borracha e que permitia em seu cenário a movimentação de várias

pessoas de diferentes nacionalidades, além do próprio homem procedente da Amazônia, que

guarda forte herança indígena. Far-se-á um recorte dos seis primeiros anos da atuação de

Eurico Nelson na cidade, analisando suas atividades religiosas nesse contexto cultural tão

diferente do seu, como ponto de partida para entender as tessituras do cotidiano batista

emergente no Pará. Ou seja, há uma suspeita de que os batistas de Belém do Pará, na história

da implantação desta igreja, possuem características pouco contempladas por sua

historiografia tradicional, que provavelmente decorrem da dinâmica de inserção neste

contexto urbano específico.

Palavras chaves: Eurico Nelson, batistas, Pará.

9

RIBEIRO, E.N. Lauri Emilio Wirth (orient.) Eurico Alfredo Nelson (1862-1939) e a

inserção dos batistas em Belém do Pará, 2011. 105 p. Dissertação (Mestrado em Ciências

da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo. São Bernardo do Campo, 2011.

ABSTRACT

This paper intends to present some aspects that favored the arrival of Christianity Baptist in

Belem, in the late nineteenth and twentieth centuries. In addition, a description will be the

town, pointing out some factors that led to the immigration of Eurico Nelson. It is a Swedish

Baptist who came to "live by faith" in a dense city clearly the process of exploitation of

rubber in your scenario that allowed the movement of people from many different

nationalities, besides the man himself coming from Amazon, which bears a strong Indian

heritage. Far will be a cut of the first six years of activity in the city of Nelson Eurico,

analyzing their religious activities in this cultural context so different from his, as a starting

point for understanding the fabric of everyday Baptist emerging Pará That is, there a

suspicion that the Baptists of Belém do Pará, in the history of implementation of this church,

some features are covered by their traditional historiography, which probably arise from the

dynamics of inclusion in this specific urban context.

Keywords: Eurico Nelson, Baptists, Pará.

10

SUMÁRIO

1 Introdução .......................................................................................................................................... 11

Capítulo I: Imigração e Modernização em Belém ................................................................................. 15

1.1 Notas Historiográficas ................................................................................................................ 16

1.2 Combatê-la é, pois, uma necessidade urgente: a febre amarela ................................................. 21

1.3 A chegada de Eurico Nelson em Belém do Pará ......................................................................... 28

Capítulo II: Missionário ou colportor? .................................................................................................. 34

2.1 A construção biográfica de Eurico Nelson ................................................................................. 45

2.2 Um guardião do passado? .......................................................................................................... 50

Capítulo III: Protestantes Batistas e a Era das Missões ......................................................................... 56

3.1 Protestantismo Batista no Brasil. ............................................................................................... 63

3.2 Protestantismo Batista no Pará ................................................................................................... 67

3.3 A “saga” de Eurico Nelson em Belém do Pará: retratos de outra história ....................................72

Capítulo IV: Contra quem Eurico Nelson estava afinal lutando? ......................................................... 81

4.1 Os metodistas? ............................................................................................................................ 82

4.2 Os batistas? ...................................................................................................................................87

Considerações Finais ............................................................................................................................. 91

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 96

Fontes Primárias .............................................................................................................................. 100

Jornais: ............................................................................................................................................ 101

Fontes Secundárias ......................................................................................................................... 102

ANEXOS............................................................................................................................................. 103

11

1 Introdução

Há parcos registros no meio acadêmico dos primeiros anos de trabalho missionário de

Eurico Nelson em Belém do Pará. Sobre sua permanência na região, esta pesquisa vale-se do

que se encontra disponível nas biografias produzidas em torno de suas atividades,

principalmente do acervo do próprio grupo batista (BRATCHER, 1953; PEREIRA, 1954;

CRABTREE, 1962; LANDERS, 1982). Uma referência bibliográfica encontrada é do

historiador Martin Dreher (1992) que analisou e discutiu a temática do protestantismo na

Amazônia dentro de uma discussão mais ampla de estudos de história da igreja perguntando

principalmente pelo sentido que a presença protestante teve na região e sobre os Batistas,

conferiu a Eurico e Ida Nelson o pioneirismo das atividades religiosas do grupo.

Deseja-se neste trabalho, descrever e analisar alguns aspectos que foram favoráveis a

experiência religiosa batista no Pará, estabelecida tanto em relação à participação de Eurico

Nelson no período da implantação de 1891 a 1897, quanto em relação ao contexto social que

envolvia outros protagonistas, que recepcionaram a evangelização dos Nelson.

Desta forma, destacam-se no primeiro capítulo, dois assuntos que foram citados por

Eurico Nelson em um relatório publicado no Jornal Batista de 1923: a imigração e as

epidemias, pois se compreendeu que os processos imigratórios marcaram intensamente o dia a

dia da cidade, tornando o espaço urbano apropriado para o aparecimento de outras expressões

religiosas, como a de Nelson. Com relação à segunda questão (as epidemias) compreendeu-se

que os processos epidêmicos representavam um verdadeiro contrasenso diante da retórica

elitista de atrair imigrantes para o Pará, mas os dois temas dentro de seus recortes permitem,

por outro lado, uma visualização contextual mais completa, que se considera importante para

os objetivos deste trabalho, que também levou em consideração a recorrente menção nas

cartas pessoais de Eurico Nelson (fontes primárias desta pesquisa), das questões relacionadas

ao contexto urbano.

As cartas de Eurico Nelson utilizadas nesta pesquisa compõem o acervo Erik Alfred

Nelson da Southern Baptist Historical Library and Archives, em Nasville. Esta instituição

pertencente à Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, com sede em Nasville, que

disponibilizou para consulta pública várias cartas manuscritas e datilografadas, remetidas por

Eurico Nelson a amigos, familiares e representantes das organizações batistas. Para os

12

objetivos deste trabalho, deteve-se principalmente nas cartas que foram disponibilizadas a

partir do ano de 18981 e dirigidas em sua maioria ao secretário executivo da Junta de Missões

Estrangeiras com sede em Richmond (a Foreign Mission Board) – o Pr. Robert J. Willingham.

O que se sabe a respeito do missionário batista Eurico Nelson (além das cartas)

encontra-se publicado pela denominação Batista desde 19452. São biografias a respeito de sua

vida missionária na Amazônia, da sua participação na fundação de igrejas batistas no Brasil e

de sua experiência como colportor. Não há no texto biográfico, porém, informações mais

precisas sobre a experiência social de Eurico Nelson com os sujeitos históricos paraenses, o

que representa verdadeiro “ponto de partida” para o estudo proposto neste trabalho, embora

sobre as biografias considera-se que sejam resultados de uma posição religiosa que é muito

importante identificar ao longo de uma análise mais crítica sobre as histórias apresentadas.

Toma-se como exemplo, a história da pouca referência que os biógrafos fazem dos primeiros

adeptos paraenses em um cenário tão marcado pelas intensas transformações da cidade como

tão bem foi demonstrado pela historiografia regional.

Entre as biografias de Eurico Nelson, destaca-se neste trabalho a escrita de Pereira

(1954) e Landers (1982), embora em alguns momentos desta dissertação tenha se citado as de

Crabtree (1962) e Almeida ([197_?). Em geral, estes relatos pouco divergem a respeito dos

episódios mais gerais da vida do biografado e sobre as culturas locais, quando muito se

reportam, é de uma forma claramente preconceituosa, ao afirmar que o homem procedente da

Amazônia era “ignorante e obscurecido pelo catolicismo” (PEREIRA, 1954, p.64)3 mas tratava-

se de uma “gente desconfiada mas boa de coração, donde iriam sair os futuros membros de

suas igrejas” (PEREIRA, 1954, p.52).

1 Quando Eurico Nelson já estava efetivamente vinculado à Junta de Richmond.

2 O pastor batista José dos Reis Pereira escreveu uma biografia de Nelson editada pela Casa Publicadora

Batista, em 1945.

3 O Pastor José dos Reis Pereira compara o homem procedente da Amazônia como “certas crianças caprichosas,

que recusam comida: se entre uma colherada e outra for intercalada uma brincadeira qualquer são capazes de

comer um prato cheio de papa ou mingau. O povo ignorante, obscurecido pelo catolicismo, procede de fato

como crianças caprichosas às quais é preciso oferecer o alimento que dá vida e saúde mediante cuidados e

artifícios especiais”. (Cf. PEREIRA, 1954, p.58). O próprio Pereira Reis registra ainda que o início das

atividades de Nelson foi desanimadora, pois “há anos que estavam trabalhando ali, pensavam êles, e não havia

conversões”(ibid).

13

Sem dúvida, o estudo das massas anônimas continua apresentando dificuldades para

pesquisadores que têm interesse na temática, principalmente quando se deparam com o

problema da falta de fontes escritas sobre a vida do indivíduo. Contudo, o acesso às cartas de

Eurico Nelson possibilitou a visualização de outros sujeitos históricos que como afirma

Trindade (1999) estavam “escondidos nas brumas” de uma historiografia que não lhes havia

dado o devido lugar, trazendo novas informações sobre modos de pensar, estilo de vida, etc., e

abrindo enfim, novas possibilidades de pesquisa. Além do mais, consideram-se neste trabalho

as questões culturais do homem amazônico já bem discutidas pela Antropologia Regional nos

estudos em andamento a respeito das suas práticas religiosas.

Um importante trabalho realizado sobre esta temática vem sendo priorizado pelo

antropólogo Heraldo Maués que analisa a religião na Amazônia a partir do homem procedente

da região e que destacou das relações entre o homem e sua cultura, dois tipos de experiências

religiosas no Pará: o catolicismo popular, compreendido “como um conjunto de crenças e

práticas socialmente reconhecidas como católicas, de que partilham os não especialistas do

sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou as classes dominantes” (MAUÉS, 1985, p.

18)4 e a pajelança cabocla, entendida como uma “forma de culto mediúnico muito difundido

na Amazônia” (ibid) que é objeto de estudo de vários pesquisadores (GALVÃO, 1955, 1983;

MAUÉS, 1985, 1990, 2005 e FIGUEIREDO, 1996).

Inicia-se então o primeiro capítulo desta dissertação com uma breve descrição do

contexto da cidade onde se desenvolveu o cristianismo batista paraense propriamente dito,

porém o objetivo será focalizar principalmente, o cotidiano dos sujeitos históricos que Eurico

Nelson evangelizou através da colportagem5 em Belém do Pará da Bélle Epoque.

Recorreremos aos espaços revisitados nos trabalhos historiográficos de Trindade (1999),

Sarges (2000), 6 Fontes7 (2002), Campos (2004) e Lacerda 8(2006).

4 Neste ponto, o antropólogo recortou como objeto de estudo as práticas religiosas das populações rurais da

Amazônia.

5 A colportagem foi o primeiro método adotado por Eurico Nelson para evangelizar a população local. Vendia

bíblias e novos testamentos em casa, nas ruas e nos bondes públicos.

6 Nazaré Sarges faz estudos sobre a reurbanização de Belém no final do século XIX e início do XX e o triunfo

modernista expresso na Belle Epoque do Pará, no período áureo da borracha amazônica.

7 Edilza Fontes discute a presença de imigrantes portugueses em Belém, no período de 1884 a 1914. Analisou os

projetos imigrantistas dos governos paraenses, as disputas no mercado de trabalho e a propaganda visando a

vinda de imigrantes.

14

No segundo capítulo discuti-se a construção de uma dada memória de Eurico Nelson

nas biografias de Pereira (1954) e Landers (1982), tomando como referência os pressupostos

teóricos de Burke (1994), Levi (1996), Bourdieu (1996) e Campos (2006). Toma-se como

questão central a produção de obras biográficas no seio das instituições religiosas, e no caso

de Eurico Nelson, a construção e fixação de um modelo ideal de missionário que deveria ser

seguido pelo grupo.

O terceiro capítulo analisa e compara dois tipos de protestantismos distintos: o

protestantismo batista brasileiro com fortes heranças americanas e o protestantismo batista

que foi implantado no Pará que se considera eqüidistante do modelo de implantação do

epicentro Sul e Sudeste. As cartas de Eurico e Ida Nelson e dos demais sujeitos históricos que

foram encontrados pelo caminho deixam entrever que as experiências religiosas do casal de

pioneiros são bem atípicas do modelo organizacional dos batistas (por várias razões

apresentadas neste trabalho) e, conforme elas iam aparecendo nas narrativas do missionário

Nelson ia se “checando” outras fontes como o jornal O Apologista Christão Brazileiro, do

metodista Justus Nelson para melhor compreensão dos fatos mencionados e melhor

visualização do que foi a inserção do protestantismo batista em Belém do Pará a partir de

Eurico Nelson.

8 Lacerda faz estudos sobre a chegada nordestina no Pará, principalmente oriundos do Ceará, no período de

1889 a 1916. Estuda as experiências sociais dos cearenses nesse contexto em transformação, examinando os

muitos significados atribuídos a ela pelos migrantes.

15

Capítulo I: Imigração e Modernização em Belém

16

Quando ainda residia na América, em um dia de Outubro de 1890, veio-me ao

pensamento a idéia de trabalhar no Valle do Amazonas. Havia completado um mez

como pregador do Evangelho, no Estado de Kansas, e o meu pensamento de

trabalhar no Amazonas, era minha preocupação continua. Em janeiro de 1891,

finalmente, resolvi seguir para Belém do Pará, onde cheguei no dia 19 de novembro

do mesmo anno. Emquanto aprendia a língua portugueza, occupava-me em pregar a

bordo dos navios de vela, surtos do porto de Belém, na maior parte norueguezes,

suecos e inglezes, e a ajudar, nos hospitaes, o tratamento dos doentes, especialmente

estrangeiros, atacados de febre amarella, que então grassava intensamente. Em

janeiro de 1893, casei-me, no consulado norte-americano com d. Ida que também

veio do Kansas para trabalhar nesta. Em Fev. de 1896, foi organizada a Primeira

Igreja Baptista de Belém, e em Agosto do anno seguinte, fiz a primeira visita a

Manáos. 9

1.1 Notas Historiográficas

A exploração da borracha na Amazônia contribuiu para uma série de mudanças em

Belém do Pará bem antes de Eurico Nelson aportar no vapor Esperança10, em 19 de

novembro de 1891. A ocupação da cidade por grandes levas de imigrantes estrangeiros de

diversas origens e condições sociais, além de nordestinos, atraídos pela ideia de riqueza fácil,

trouxe a sensação de “euforia de riqueza” (SARGES, 2000, p.20) para os moradores de uma

cidade que na virada do século “estava em ritmo de certo crescimento em virtude da economia

da borracha” (LACERDA, 2002, p.397)

Embora esse crescimento contínuo fosse de fato reflexo do ciclo econômico, já que

o período entre 1870 a 1920 é “considerado pela historiografia regional como a fase áurea da

exploração do látex” (FONTES, 2002, p.82), as maiores fortunas da região pertenciam aos

grandes proprietários dos barracões da borracha que enriqueciam também com a prática dos

aviamentos11 e eram possuidores de grandes palacetes no centro da cidade, cada vez mais

adensado com a chegada de visitantes na província. O espaço urbano em razão do processo de

9 O Jornal Batista. Belém, 04 jan.1923, p.10. Doravante OJB. Este texto está respeitando a grafia original, com

todas as lacunas de sentido, além dos erros, ortográficos e sintáticos.

10 Há uma divergência em relação a data da chegada de Eurico Nelson e em relação ao nome do vapor. Cf. O

Apologista Christão Brazileiro, doravante ACB de 21/11/1891, n.42.

11 Esta temática foi estudada por Lacerda (2002), ao analisar a rota que os nordestinos cearenses faziam até os

seringais quando várias regiões interioranas do Pará recebiam grandes levas de pessoas saídas do Ceará. Ainda

naquele Estado eram agenciados por empresas que contratavam mão de obra barata, em troca de transporte e

mercadorias.

17

crescimento ia se transformando continuamente com o “calçamento das ruas com

paralelepípedos de granitos importados da Europa, construção de prédios públicos, casarões

em azulejos, monumentos, praças, etc.” (SARGES, 2000, p.16).

Além desse aspecto, Fontes (2002) ao discutir os processos imigratórios ocorridos

em Belém no final do século XIX, afirma que o Pará também foi marcado pelo “movimento

histórico da crise gerada pelo fim da escravidão brasileira” (p.257) e com o auge do ciclo da

borracha até a mão de obra procedente da Amazônia foi convocada para as áreas extrativas

dos seringais, enquanto que “a maior parte da mão de obra que aportava em Belém” (ibid) se

dirigia aos seringais que sempre recebiam as maiores demandas de trabalhadores.

Os principais representantes dos setores agrícolas e extrativistas percebiam na

aproximação da abolição da escravidão brasileira que seus problemas aumentariam ainda mais

e debatiam soluções viáveis para a crise de mão de obra do Pará, sem, porém, encontrar

consenso a respeito da mais adequada. Debates geralmente “acalorados”(FONTES, 2002, p.7)

que só tinham um ponto em comum: a defesa de que “seria pela imigração estrangeira que o

trabalho inteligente e a riqueza chegariam ao Pará”12.

Dentro desse contexto de discussão, a resposta viável foi à implantação dos “projetos

imigrantistas” (FONTES, 2002, p. 5) que propunham “a substituição do trabalho escravo pelo

trabalho do imigrante europeu, através da atração para a Região Norte de parte da corrente

imigratória que se dirigia para outros estados” (ibid). Ressaltou a autora que os setores

econômicos paraenses defendiam o aproveitamento da mão de obra européia sim, porém sem

elaborar políticas de fixação dos recém-chegados na região, limitando-se apenas a atraí-los

com propagandas sedutoras a respeito da possibilidade de enriquecer no Pará13.

Além disso, diversos discursos procuravam defender a imigração européia no Pará,

mas um em particular chamou a atenção de Fontes: a política de “branqueamento”

12 Esta afirmação carregada de juízo de valor foi analisada pela historiadora paraense em sua tese de doutorado.

Analisou a discussão entre os setores econômicos, principalmente em relação a opção feita pelas classes

proprietárias paraenses de atrair a imigração portuguesa para Belém na virada do século XIX para o XX (idem,

p.20).

13 Conforme Fontes (2002) estas propagandas iam desde a apresentação do Estado como um patrocinador da

modernização até o ideário de progresso na região, ideia também analisada por Sarges (2000) ao afirmar que o

“conceito de modernidade está ligado ao de progresso através do desenvolvimento da vida urbana, da construção

de ferrovias, da intensificação das transações comerciais e da internacionalização de mercados”. (SARGES,

2000, p. 92).

18

(BEZERRA NETO, 1998, p.244), que procurava intensificar os processos de miscigenação

iniciados no período colonial e era usada como uma das justificativas para os casamentos

inter-raciais ou inter-étnicos com o fim de embranquecer uma população predominantemente

indígena. Na época, o principal defensor desse discurso foi o jornalista paraense José

Veríssimo14 quando afirmava que o elemento branco era o fator “mais importante” na

constituição do povo paraense, por “ter-lhe dado a língua, a religião, a cultura e civilização”

(VERÍSSIMO, 1900 apud FONTES, 2002 p.49), visão claramente etnográfica quando

defendia “que houvesse a hegemonia dos elementos raciais superiores durante o processo de

mestiçagem, substituindo-se os caracteres e morais daqueles considerados inferiores” (p.246).

Soluções para o problema da mão de obra escassa, principalmente no setor agrário,

atração de correntes migratórias, constituição de um mercado de trabalho “numeroso,

disciplinado e dependente”(FONTES, 2006, p.8) foram políticas implantadas no Pará para

atender às classes proprietárias e para o sucesso desses projetos. Fontes, inclusive, destacou

uma série de propagandas15 dirigidas aos países europeus com a intenção de colocar o estado

em maior visibilidade, embora nem todos os grupos sociais da província desejassem a vinda

de qualquer europeu. Nos jornais da época, a historiadora encontrou noticiada a opção de

preferência de parte daqueles que defendiam, por exemplo, a vinda do imigrante português

como “o único que se aclimataria e se fixaria” (p.12) na região.

Para a consolidação de um mercado de trabalho no Pará a partir do imigrante

europeu, dois argumentos foram colocados na pauta das reuniões das grandes classes

proprietárias que defendiam os projetos imigrantistas: a defesa de que no Estado havia um

pólo de desenvolvimento que correspondia ao processo econômico advindo da exploração da

goma elástica e o grande desejo de comprovar que já havia sido alcançado o grau do

14 Sobre a temática do pensamento social e etnografia em José Veríssimo, Bezerra Neto (1998) faz uma análise

dos principais aspectos das teses de José Veríssimo acerca das sociedades amazônicas quando afirma que o

intelectual paraense foi “fortemente influenciado pelo naturalismo, evolucionismo e positivismo” e chegando a

conclusão que o conteúdo de suas obra é nitidamente etnográfico “a partir das vinculações com os paradigmas

postulados pela famosa Geração de 70”. Cf. Bezerra Neto (1998, p.239-261).

15 O Barão de Sant‟Anna Nery foi encarregado através de um contrato com o governo da Província, de fazer

propaganda na Europa em favor da imigração “e tornar conhecidas as condições da Província por meio de

conferências, publicações e de um guia para os imigrantes. Estabeleceu também que deveria haver uma

exposição permanente de produtos paraenses na sede da agência central em Paris (FONTES, 2002, p.23).

19

“processo civilizatório” e que além do mais a região não era mais “um inferno verde, mas

como um paraíso a espera de ser descoberto” (FONTES, 2002, p.43).

Tanto a questão da imigração como a do ideário que valorizava o trabalho assalariado

no Brasil no início da Modernidade são questões já bem discutidas pela historiografia

brasileira,16 pois a Modernidade resultou em profundas transformações na sociedade com os

seus lentos processos de inserção na nova economia capitalista. Dentre tais transformações

deseja-se destacar duas grandes conseqüências para o Brasil e para o Estado do Pará: o

crescimento populacional e a urbanização. A primeira, porque foi responsável pelo

adensamento das cidades, quando as pessoas tiveram que se adaptar a uma nova realidade e

por consequência a segunda, porque se promovia uma transformação da urbe quase sempre

em prol de um nível de reprodução do capital que circulava no processo de acumulação de

riquezas das grandes classes proprietárias.

Com relação à cidade de Belém do Pará, Sarges (2000) afiança que o processo da

urbanização teve um impulso significativo, porém específico. O desenvolvimento da cidade

não se deu em torno de um impacto industrial expressivo, como nas demais capitais

brasileiras, e sim, em torno da exploração da borracha que atingiu a Amazônia no período de

1870 a 1910. Como a cidade tornou-se o principal “porto de escoamento” (p.89) da borracha,

sofreu como resultado, o impacto do crescimento populacional visível ainda mais com a

chegada de estrangeiros e nordestinos. A preocupação das elites da borracha com a ordenação

do espaço, muito contribuiu para a rápida alteração demográfica da capital paraense que, no

entanto esbarrou em mais dois problemas encontrados: a questão das moradias e das

epidemias.

Sobre a chegada de visitantes, Lacerda nos recorda que

Viver no Pará da virada do século XIX e primeiras décadas do século XX e aí

adaptar-se, provavelmente não era tarefa das mais fáceis para o imigrante recém-

chegado da Europa ou para aqueles que saiam dos sertões cearenses. As dificuldades

eram muitas e iam desde uma nova língua que deveria ser aprendida até uma

ocupação produtiva que com urgência deveria ser arranjada pelo recém-chegado.

(LACERDA, 2002, p.397).

16 Cf. Sidney Chalhoub (1986), Alain Corbin(1987) Marshall Berman (1988), Carl Schorske (1988) e Richard

Sennet (1988)

.

20

Lacerda (2006) demonstra que a adaptação do recém-chegado não era uma tarefa

fácil e que era comum a preocupação com as instalações depois do desembarque no porto,

mas em geral, o migrante cearense que viajava por conta própria “se dirigia à casa de algum

parente, ou para um dos muitos hotéis ou casas de pensão, espalhados pela cidade”. (p.176)

Esta autora ressaltou, porém, que a falta de infra-estrutura na cidade era um problema não

resolvido da administração pública, pois no momento da chegada dos visitantes não havia

uma recepção organizada, contribuindo para que vivessem em “aglomerações inconvenientes”

(ibid, p. 177).

O problema dos altos valores cobrados nos aluguéis foi um dos assuntos mais

recorrentes nas cartas pessoais de Eurico Nelson, embora se destaque que os cearenses

chegados à região vinham com uma finalidade específica, pois os setores que os agenciavam,

logo na ocasião da chegada, cobravam deles “um enquadramento o mais breve possível nas

relações de produção” (LACERDA, 2002, p.177), enquanto que a alocação prévia de

estrangeiros dependeria principalmente de duas opções: estar com subvenção do governo ou

atender alguma demanda de trabalho pré-estabelecido. Nenhuma dessas opções foi o caso de

Eurico Nelson.

Já com relação aos imigrantes estrangeiros, a historiografia também confirma que o

fluxo de pessoas nos portos de Belém era continuo e acentuado no período áureo da borracha,

pois entre os anos de 1890 a 1901, “a propaganda do Estado do Pará estava em plena ação na

Europa” (FONTES, 2002, p.75) e que o número de habitantes estrangeiros no consulado

indicavam que várias pessoas estavam imigrando para Belém, computando 7.316 estrangeiros

no Pará, o que representava 1,5% sobre a população total. Em Belém existiam 6.529

recenseados, embora Fontes (2002) tenha ressaltado que estes números poderiam ser bem

maiores já que seus dados de pesquisa delimitaram-se a população portuguesa. Entre os anos

de 1908 a 1911 entraram nos portos de Belém 19.500 estrangeiros que basicamente

desenvolviam serviços urbanos na capital e a maior parte deles era de origem portuguesa.

Confirmando o que Lacerda (2006) compreendeu a respeito da chegada dos

imigrantes nordestinos, Fontes também afirmou que:

As redes familiares ou de vizinhança foram responsáveis pela introdução e alocação

de imigrantes no Pará. Muitos vinham aos cuidados de um tio, um irmão, do pai, ou

recomendados a antigos vizinhos ou amigos. Estas redes de solidariedade podem ser

observadas na análise de autos policiais. (FONTES, 2002, p.91)

21

Os que vinham subvencionados pelo estado, como era o caso dos portugueses,

encontravam com maior facilidade moradias para alugar em Belém e muitas vezes já

contavam com um familiar no aguardo da chegada, enquanto que aqueles outros, vindos

espontaneamente, como era o caso de Eurico Nelson, enfrentavam as duras dificuldades de

encontrar lugar em Belém naquela ocasião, pois tinham que dispor de altos valores para o

pagamento de um aluguel exorbitante, em geral, nas áreas mais centrais da cidade. Estes eram

os espaços de moradia das elites, logo eram áreas privilegiadas e com os valores acima do

orçamento da maioria populacional, esta última em geral, morava nas áreas periféricas mais

baratas, porém contempladas por todos os tipos de problemas decorrentes de falta de

estrutura. Fontes afirma que os imigrantes que “chegavam à região vieram diretamente para o

Pará, sem passar pelo Rio de Janeiro ou São Paulo”(FONTES, 2002, p.106), situação

facilitada pela estreita ligação entre o Brasil e os Estados Unidos através das companhias de

navegação que traziam aos portos brasileiros, diversos imigrantes procedentes da Europa e

dos Estados Unidos. Como a atração de obra se deu diretamente no exterior, este

provavelmente foi o caso de um estrangeiro recém-chegado à cidade em 1891, que se quer

destacar neste trabalho, o batista Eurico Alfredo Nelson.

1.2 Combatê-la é, pois, uma necessidade urgente: a febre amarela

Eurico Nelson foi um dos tantos imigrantes europeus em Belém do Pará na virada do

século XIX para o XX, e como se percebe na narrativa que abre este capítulo, entendeu de

imediato os problemas incididos em estar na cidade no período áureo da borracha. Sobre sua

permanência em Belém destacou na mesma narrativa o impacto social causado pela febre

amarela17, principalmente entre os estrangeiros que contraiam a doença durante o trajeto até a

17 De acordo com Figueiredo (2000), as epidemias de febre amarela urbana relacionam-se a fatores de ordem

social e climática e em geral, os surtos iniciais ocorrem quando o vírus é introduzido através de indivíduos

infectados em comunidade humana suscetível, com moradias infestadas pelo mosquito vetor e sob condições de

temperatura e umidade elevadas, estimulando sua multiplicação. Este autor também indica que há um segundo

tipo de transmissão detectado em 1930, sem a presença do mosquito transmissor Aedes aegypti, quando os

indivíduos acometidos eram trabalhadores das matas, admitindo-se uma forma de amarela silvestre, causada pelo

22

cidade e que permaneciam em “quarentena” 18 nas embarcações fiscalizadas pela Comissão de

Saúde da província.

Beltrão afirma que o tema das epidemias é uma “trama extraordinariamente rica,

sobretudo pela possibilidade de estudar um momento de crise quando as ações sociais ganham

maior visibilidade e apontam mudanças”(BELTRÃO, 2004, p.36), o que parece bem

adequado aos objetivos desta pesquisa que propõe estudar o contexto que gesta a igreja batista

do Pará, pois as ações de Eurico Nelson diante de tais contingências revelam que não ficou

alheio aos problemas que iam surgindo durante sua permanência em Belém e para tanto,

considera-se que sua esposa Ida Nelson, contraiu febre amarela em duas ocasiões diferentes:

uma logo depois do casamento (PEREIRA, 1954) e outra depois do nascimento do primeiro

filho do casal, fato que foi registrado pelo também sueco Justus Nelson, redator do jornal O

Apologista Crhistão Brazileiro da Igreja Metodista, quando citou que a esposa do Pastor, D.

Ida W.Nelson, cahiu doente de febre amarela em 17 do mês findo, porém na data de escrever–

se esta noticia (27), já se acha felizmente em franca convalescência. 19.

São os estudos antropológicos sobre epidemias no Pará que de fato colocam em

maior visibilidade a experiência social dos vários moradores de Belém que passaram muito

tempo não percebidos pela historiografia oficial e que muito além do quadro de sofrimento e

calamidades, os processos ocasionados pelas epidemias colocavam na vanguarda àquela

imagem idealizada das elites que era utilizada para atrair visitantes à província e que além de

tudo, divulgavam o grave problema de saúde pública que rondava a província como resultado

constante das formas diferentes de administrar a cidade, ou seja, as doenças acabavam

derrubando os argumentos defendidos pelos sanitaristas, como por exemplo, o de Américo

Campos que defendia a imigração estrangeira a partir do uso de uma série de medidas

contato do homem com um ciclo de transmissão que envolvesse macacos e mosquitos haemagogus e que o ciclo

silvestre ocorre quando o homem adquire febre amarela quando penetra neste meio ambiente, atingindo

principalmente lenhadores, garimpeiros, seringueiros e outras pessoas ligadas a vida nas matas e que no Brasil as

epidemias de febre amarela costumam se originar na Amazônia.

18 Com o episódio da epidemia de cólera morbus no Pará no ano de 1855, foram determinadas algumas

disposições pelo presidente da província para conter a entrada de afetados, entre elas dispunha-se que os navios

suspeitos ou que viessem de portos suspeitos ou com casos confirmados, fossem obrigados a quarentena em

frente à ilha de Tatuoca. Disposição relacionada provavelmente ao fato ocorrido no Rio de Janeiro no ano de

1849, quando marinheiros doentes do navio dinamarquês Navarre iniciaram a transmissão da doença no Brasil.

Cf. Vianna (1906) e Figueiredo (2000).

19 ACB, de 01 jan. 1895, p.03. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de sentido,

além dos erros, ortográficos e sintáticos.

23

sanitaristas e com a constituição de uma “polícia higiênica”20 coercitiva no cumprimento do

código de posturas da cidade.

No Pará, este olhar desfavorável à imigração foi acolhido principalmente pelos

médicos sanitaristas contrários a vinda de imigrantes para Belém (VIANNA, 1906), como

bem demonstra Arthur Vianna ao citar que

Houve uma causa que originou essa deplorável propagação da febre amarela, e

alimentou-se durante mais de um lustro – a emigração estrangeira, quer promovida

pelo governo, quer espontânea. [...] Infelizmente a emigração em massa devia ser

um desastre: não estávamos preparados para fazê-la com resultados profícuos.

(VIANNA, 1975 [1906], p.93).

Um dos sanitaristas contrário à imigração estrangeira foi sem dúvida, o farmacêutico

Arthur Vianna21 (1906) ao afirmar em seu estudo sobre as epidemias no Pará, que a epidemia

de febre amarela no final do século XIX, propagou-se rapidamente na província e de fato

resultou num grande número de doentes, embora tenha destacado que entre a população

paraense não houve nenhum caso de morte registrado, fato que compreendeu da seguinte

forma

A febre não ataca os filhos da cidade, nem os estrangeiros e filhos de outros estados

já longamente estabelecidos aqui; a recente estadia é uma condição primacial,

excepcionalmente violada. Um fato digno de ser assinalado é a completa imunidade

do paraense, filho da cidade ou nela residindo há muito. [...] O nosso povo

desconhece por completo o papel altamente importante que os mosquitos

desempenham na transmissão das moléstias, quando os combates com defumações e

uso de mosquiteiros é com o fim único de evitar as ferroadas incômodas. [..]

Combatê-la é, pois, uma necessidade urgente. (VIANNA, 1975[1906], p.97-99).

Para este autor, fazer uso de mosquiteiros e defumações nas casas mais pobres foram

os fatores responsáveis pela imunização da maioria populacional que desconhecia que o

20 Este termo, segundo Sarges (2000), faz referência à criação da Policia Municipal através da Lei n. 158 de

17/12/1897, que desempenhava o papel de “zelador da ordem pública, exigindo do cidadão que agisse de acordo

com os padrões higiênicos definidos pelas autoridades sanitárias” (p.98) e que lhe atribuía “poder de interferir na

higienização dos estabelecimentos públicos, habitações coletivas, hotéis, pensões, hospitais, barbearias,

mercados, asilos, fábricas, até o controle de alimentos a serem vendidos à população” (p.99).

21 Conforme Sarges (2002), Arthur Octávio Nobre Vianna (1873-1911) nasceu em Belém e estudou no Lyceu

Paraense, diplomou-se em Farmácia pela antiga Escola de Farmácia do Pará, recebendo o título de

“Farmacêutico laureado pela Escola do Pará”. Era o irmão mais velho do médico Gaspar Vianna. Em 1911,

quando terminava o curso de medicina, faleceu no Rio de Janeiro, com apenas 38 anos de idade. (p.97).

24

carapanã Stegomyia fasciata,22 era o transmissor do causador da doença. Vianna ainda

informou que entre os anos de 1891 a 1894 o quadro de mortos havia diminuído bastante,

embora tenha ultrapassado os limites dos anos de 1855, 1871, 1883 e 1887 que foram

considerados os mais agudos e quanto às medidas sanitárias adotadas para combater a febre

amarela, citou ainda que os médicos sanitaristas promoveram uma “campanha de extermínio

ao mosquito que seria imprescindível para redução dos afetados” (VIANNA, 1975, p.101) e

que era “raro, raríssimo mesmo” ver um enfermo de febre amarela tratado em domicílio “com

a observância das prescrições científicas, sob o ponto de vista profilático” (p.100).

A respeito desse tratamento em domicílio, o sanitarista assegurou que no período de

intensa imigração estrangeira em Belém, os quartos de hotéis eram usados para hospedar os

doentes de febre amarela, que quando tratados em casa promovia a infecção de um membro

após outro da família “o que se pressupunha a imposição de medidas necessárias, como a

desinfecção regular e apropriada dos prédios para combater o mosquito” (ibid), e por esta

razão se justificava a notificação compulsória à Comissão de Higiene Pública, conforme o

art.43 do Código de Postura Municipal que determinava que “nenhum morador poderia ter

em casa pessoa infectada de doença epidêmica sob pena de pagar uma pesada

multa”(SARGES, 2000, p.102), motivo pelo qual se têm dúvidas com respeito a fundação de

um asilo para atender pessoas portadoras de febre amarela pelo sueco Eurico Nelson.

Sobre este asilo, tanto o pastor José Pereira dos Reis como Asa Routh Crabtree

comentam que a experiência de Eurico Nelson em Belém foi uma “aventura de

fé”(CRABTREE, 1962, p.198), pois alguns

dêstes forasteiros achavam-se acometidos de febre amarela e outras moléstias, e

sentiam-se desamparados, na miséria. Depois de trazer-lhes a mensagem

confortadora do evangelho, o coração do pregador, transbordante de compaixão para

com os pobres marinheiros, resolveu logo fundar para êles, um asilo na cidade. O

asilo foi sustentado por ofertas voluntárias. (ibid)

Os hospitais que recepcionavam os doentes foram escolhidos pela Comissão de

Higiene Pública para o isolamento dos doentes por epidemias. Na biografia de Pereira (1954)

há um único episódio narrado sobre a experiência de Eurico Nelson nos hospitais da cidade,

que trata-se da visita que fez com a esposa a uma jovem noruegueza que “estava se

22 Na época do contágio a que se refere o autor, era o nome científico em latim do mosquito transmissor da

febre amarela e, hoje, é conhecido pelo nome de Aedes aegypti.

25

preparando para ser enfermeira” (p.49) e morreu em Belém em decorrencia de febre amarela

no Hospital São Francisco da Penitência.

Ao tratar dos locais que atendiam pessoas portadoras de febre amarela, Fontes (2002)

destacou que em 1871 ocorreu uma quadra de febre amarela em Belém que investia

principalmente contra estrangeiros estabelecidos na cidade e como forma de conter os

avanços, a política pública formou uma “Comissão de Socorros” em todos os distritos da

capital, criando enfermarias especiais na Santa Casa de Misericórdia para os doentes pobres.

Além dessa medida criou-se uma Comissão Portuguesa de Socorros aos Indigentes que

angariava recursos especificamente para o tratamento dos indigentes e os hospitais da Real

Sociedade Beneficente Portuguesa e o da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da

Penitência para receber os imigrantes que chegavam à cidade através dos portos.

Todos esses hospitais, ou eram dirigidos pelas ordens religiosas ou eram dirigidas

por irmandades específicas. A Santa Casa, por exemplo, era a instituição que mais atendia à

comunidade carente, mesmo não contando com pessoal qualificado e nem com número

suficiente de profissionais para atender a demanda. Contava com poucas enfermarias e muitas

vezes as pessoas ficavam nos corredores ou nos cantos aguardando atendimento.23

Segundo Beltrão (2004), os processos epidêmicos no Pará e suas deletérias

conseqüências foi assunto considerado costumeiro na Província na época, pois além da

exposição das pessoas, a região não contava com um expressivo grau de saneamento básico,

de educação sanitária e condições adequadas de higiene. Beltrão assegura também que todas

as vezes que se comunicava uma quadra epidêmica à Comissão de Saúde Pública, esta se

encarregava de executar medidas para combater à doença, que em grande parte eram

carregadas de ações morais e disciplinadoras, que visavam organizar e disciplinar o

comportamento das pessoas na cidade, “expurgando do meio urbano” (TRINDADE, 1999,

p.24) àqueles que destoavam do ideal sanitarista presente nas medidas de controle.

Fontes (2006) afirmou que na brochura o Pará em 1900, o médico e inspetor

sanitário Américo Campos argumentava que de fato o Pará era um paraíso, porém os males

23 Cf. VIANNA (1992 [1902).

26

que chegavam à região eram exportados de fora, não sendo resultado nem do solo da

Amazônia e nem tampouco de seu clima. Como patrono da imigração, Américo Campos

defendia como causa dessas moléstias a ação do homem que não tomava todos os cuidados

com a higiene e que as autoridades competentes estavam obrigadas a “punir os infratores” por

menor que fosse o delito, obrigando a todos a cumprir as disposições dos códigos de postura

ou dos regulamentos sanitários, pois só desta forma se extinguiria as moléstias.

Fontes (2006) atribuiu a atividade profissional de Américo Campos (infectologista) à

percepção do valor que as medidas higiênicas e saneadoras tinham sobre as doenças, pois

defendia a tese que o homem deveria educar-se para remover os focos que poderiam originar

epidemias e que a febre amarela concentrada em Belém atacava apenas os recém-chegados,

principalmente os que na cidade moravam em casas anti-higiênicas, sem espaço, sem luz e

sem limpeza, elementos que a autora identificou como parte de um discurso que defendia o

princípio de “práticas políticas, definidores de políticas públicas [...] em nome de um discurso

civilizado” (FONTES, 2002, p.49).

Além do mais, o cuidado com a imagem da cidade era tão grande que Fontes (2006)

destacou ainda a criação de uma série de órgãos responsáveis em fiscalizar as demandas24.

Aspectos que também foram destacados no trabalho de Sarges (2002) ao afirmar que a Belle

Époque imprimia a redefinição do espaço urbano, a redistribuição dos locais destinados aos

serviços sanitários e o emprego de mecanismos de controle dos hábitos da população, o que

tornava visível a distinção entre as áreas dos ricos e as áreas periféricas destinadas á

população mais pobre.

Quanto à atividade empregada por Eurico Nelson de atender doentes acometidos por

febre amarela, Landers (1982) também assegurou que Eurico Nelson foi autorizado por um

capitão a “pregar a bordo dos navios em quarentena nas manhãs dos domingos” (p.26) e que

foi dessa forma que ele começou a se dedicar a cuidar de doentes de febre amarela que

estavam nos navios, confirmando que os doentes eram levados para os três hospitais da

cidade: Santa Casa, um hospital público administrado por freiras, outro hospital administrado

por enfermeiros da Ordem Terceira de São Francisco, e o hospital Beneficência Português,

24 Entre estes órgãos Fontes (2002) citou os seguintes: a Inspetoria Geral do Serviço Sanitário do Pará (que

atuava pela higiene e saúde pública), o Instituto Bacteriológico, o Instituto Clínicas e Bromatológicas, o

Laboratório Farmacêutico, o Hospital de Isolamento e o Desinfectório Central, os lazaretos e postos de

quarentena, a Polícia Higiênica e Sanitária dos Animais.

27

também administrado por enfermeiros. Ainda segundo Landers, as freiras da Santa Casa

permitiam a visita às quintas-feiras e domingos e “quando os marinheiros recebiam alta do

hospital eram levados para a casa de Nelson a seu convite” (p.27). Para o autor, foi dessa

forma que Eurico Nelson conseguiu acesso às lojas da companhia de navegação, conseguindo

inclusive viagens e contribuições para suas despesas pessoais e que alguns capitães lhe deram

dinheiro para as missões enquanto Nelson cuidava dos marinheiros no porto (ibid). Uma nota

do jornal O Apologista Cristão Brazileiro afirma que Eurico Nelson tinha intenções de

construir um asilo para cuidar dos doentes de febre amarela, apoiado por amigos pessoaes e

philantropicos na pátria, e também pelos estrangeiros, do seu idioma n’esta capital, elle

pretende abrir um modesto azylo para os marinheiros, no bairro do Commercio. 25

Considera-se de antemão que se tornou comum na historiografia protestante

brasileira o relato de que um missionário fundador, no final do século XIX tenha adotado

como atividade religiosa inicial à pregação evangelística nos navios estrangeiros,

principalmente aos domingos e entre os marinheiros doentes. Para uma pessoa como Eurico

Nelson que chegou “a nenhum” 26, provavelmente a dificuldade de estabelecer uma espécie de

hospital em casa, sob intensa fiscalização municipal era muito pouco provável e acrescenta-se

a esta discussão a conotação que essa palavra “asilo” carregava na época, que não era a das

mais agradáveis. Além do mais, a dificuldade financeira de Eurico Nelson registrada nos

escritos de Reis Pereira também descreve uma de suas moradias em Belém que se reduzia a

“um quarto sem janela, e uma cozinha (PEREIRA, 1954, p.56) ocupado por Eurico Nelson, a

esposa Ida Nelson e Ivo Amazonas, o primeiro filho do casal e provavelmente esta situação

nada adequada, contribuiu para que Pereira superdimensionasse a situação, atribuindo as

adversidades do contexto a um “árduo começo de um trabalho glorioso” (ibid, p.43) do casal

que seguia euforicamente a ideia fixa de evangelizar o vale amazônico.

25 ACB, de 21 Nov. 1891, p.01. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de sentido,

além dos erros, ortográficos e sintáticos.

26 Gíria da época que queria dizer “sem nenhum tostão”.

28

1.3 A chegada de Eurico Nelson em Belém do Pará

Richard Graham (1973) ao tratar da Inglaterra e o início da modernização no Brasil,

destacou que teriam sido os britânicos que direta e indiretamente, ajudaram a iniciar a

transformação do Brasil, de uma economia agrária para uma industrial. 27A marca de

identificação do sistema econômico moderno no Pará, no final do século XIX, foi notória com

a melhoria tecnológica dos navios a vapor e o barateamento dos transportes marítimos28 que

traziam continuamente os imigrantes, principalmente dos Estados Unidos. A construção de

motores a vapor de alta pressão, além de aumentar a velocidade dos navios reduzia a

quantidade de carvão usada tradicionalmente e aumentava o espaço livre para o transporte de

carga.

Desconhece-se, até o presente momento, que as propagandas de incentivo à vinda de

imigrantes ao país tiveram influência na escolha de Eurico Nelson para sediar os trabalhos

religiosos iniciais, embora Sipiersky (2002) tenha destacado que Belém nesse período era um

local conhecido no mercado internacional da borracha e nas casas de exportação que

mantinham os interessados neste produto em constante comunicação.

O biógrafo mais famoso de Eurico Nelson no meio batista, José dos Reis Pereira dá

conta que Erik Alfred Nelson nasceu na Suécia e foi batizado na Igreja Luterana. Seu primeiro

contato com os batistas foi na Suécia e resultou no seu rebatismo29 por um colportor30. Ainda

segundo Pereira (1954), os pais de Eurico Nelson romperam com o luteranismo e organizaram

27 O Brasil colonial tinha sido dominado por uma economia açucareira e escravocrata totalmente dependente de

Portugal e recebia produtos manufaturados dessa metrópole e mesmo com a contínua corrente de inovações

tecnológicas, básicas numa sociedade moderna em 1850, a vida brasileira não poderia ser caracterizava com esse

status, pois na verdade estava mais para uma sociedade tradicional. (GRAHAM, 1973, p.14).

28 Que foram os fatores apontados por Graham (1973) como aspectos-chave desse desenvolvimento. Este autor

afirma que veleiros e navios a vapor transportavam rapidamente maiores quantidades de produtos manufaturados

para o mundo subdesenvolvido, trazendo de volta matéria prima e alimentação e que em 1851 um serviço regular

de navios a vapor inaugurou a linha Brasil-Inglaterra, como se fosse um sinal de estreitamento de relações entre

os dois países.

29 Como os batistas não aceitam outra forma de batismo que não seja a do grupo, obrigam o neófito a ser

rebatizado.

30 Àquele que vende Bíblias ou Novos Testamentos. A origem do termo é apresentada por Michel de Certeau

em sua obra A cultura no Plural. Em nota ele informa que a palavra francesa colporter significa o que transporta

consigo a mercadoria à venda e ainda designa a literatura veiculada por meio dos livreiros ambulantes

(colporteus), principalmente nos séculos XVII e XVIII. Cf. CERTEAU, 1995, 55

29

uma escola dominical para doutrinar os novos adeptos e como se recusaram a cumprir as

obrigações religiosas da igreja oficial, imigraram para os Estados Unidos em 1869.

Os biógrafos Pereira (1954) e Landers (1982) afirmaram que Eurico Nelson adulto

tentou em vão ingressar num curso de formação teológica para a qualificação do ministério

pastoral batista. Frustrado por não ter obtido êxito neste objetivo, decidiu imigrar sem esta

formação religiosa para o Brasil em 1891, e escolheu a cidade de Belém do Pará para viver a

partir do mês de novembro daquele ano. Seus biógrafos registram que no dia da chegada,

deparou-se primeiramente com uma grande quantidade de pessoas que afluía à cidade. Era o

dia da maior festa religiosa do Pará: o círio de Nazaré, que todos os anos reúne na cidade de

Belém um grande número de fiéis a essa devoção e são provenientes, principalmente, das

áreas interioranas do estado.

É exatamente no período do apogeu e da decadência do ciclo da borracha que

começa e termina a história de Eurico Nelson em Belém. Ele manteve relação de amizade

com outros imigrantes que já estavam na cidade, como o pastor metodista Justus Nelson, o

cônsul americano da cidade e o “lord” irlandês Ivo Robinson (PEREIRA, 1954, p.48). Justus

Nelson, também sueco, era o proprietário do Jornal “O Apologista Christão Brazileiro”, um

jornal semanal que publicava artigos predominantemente religiosos e afirmava ser um órgão

da Igreja Metodista Episcopal. Justus Nelson publicou a chegada de Eurico Nelson da

seguinte forma:

No dia 20 do corrente chegou a esta capital, vindo de New York no vapor

“Segurança” o Sr. E.A.Nelson, que veio ajudar na obra do evangelho no Pará. O Sr.

E.A.Nelson é membro da Igreja Baptista e natural da cidade de Chanute, Estado de

Kansas, Estados Unidos da América. Apoiado por amigos pessoaes e philantropicos

na pátria, e também pelos estrangeiros, do seu idioma n‟esta capital, elle pretende

abrir um moderno azylo para os marinheiros, no bairro do Commercio.31

Provavelmente, Eurico Nelson também tenha entrado em contato com outros

estrangeiros que transitavam na província, assim como migrantes nordestinos que foram

atraídos pelas propagandas da política e da economia brasileira, mas como já se sabe, Eurico

Nelson não se enquadrou no perfil de imigrante estrangeiro exigido pelos projetos

“imigrantistas” e segundo a historiografia batista não recebeu nenhum tipo ajuda financeira

31 ACB, de 21 nov. 1891, p.01. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de sentido,

além dos erros, ortográficos e sintáticos.

30

dos batistas, conforme o próprio biógrafo demonstra ao afirmar repetidamente que Nelson

vivia “completamente desprovido de recursos” (PEREIRA, 1954, p.46).

As cartas pessoais de Eurico Nelson utilizadas no presente trabalho demonstram que

as dificuldades frequentemente citadas por ele foram inúmeras e em geral relacionadas

diretamente ao contexto, porém a historiografia protestante dá conta que embora houvesse

inúmeras adversidades nessa primeira inserção de protestantes, a maior parte dos

“propagandistas protestantes” esperavam a “conversão do evangelho das populações que,

brutalmente consideravam não cristãs” (LÉONARD, 2002, p.84), a partir da pregação de suas

próprias doutrinas e de seus métodos confessionais anglo-saxões. Entende-se por conversão, a

atitude de buscar prosélitos como atividade central das atividades pietistas dos quais são

herdeiros das plataformas americanas (MACIEL, 1988) e este aspecto é considerado

fundamental para os batistas, pois Marcelo Santos (2003) afirmou que o trabalho missionário

deste grupo “deve estar ligado a uma atividade missionária e com objetivos explícitos de

conversão” (p.19) e como se percebe, Eurico Nelson não seguiu neste momento de sua

história em Belém as prescrições de praxe do grupo que declarava pertencer. Por qual motivo?

Porque suas atividades religiosas em Belém entre os anos de 1891 a 1896 não resultaram de

um planejamento missionário vinculado as boards(juntas missionárias protestantes

americanas)? Sabe-se que o primeiro casal batista enviado pela Junta de Missões Estrangeiras,

com sede em Richimond, no sul dos Estados Unidos – Os Bagbys - foram destacados pela

Missão Batista Americana para “estabelecer bases evangelísticas no Brasil, como ocorreu na

Bahia. Esta teria sido a primeira província a “apresentar a organização de um trabalho Batista

voltado para a propaganda e o recrutamento de fiéis no meio da população local” (SANTOS,

2003, p.19-20).

A respeito da introdução do protestantismo no Brasil e dos trabalhos dos

missionários, Velasques Filho (2002) assevera que antes da chegada desse agente de papel

específico, havia os colportores que os precediam, registrando a respeito desta questão que

Desde cedo, no Brasil, os protestantes se preocupavam com a produção e difusão da

literatura religiosa. Já vimos que, mesmo antes da chegada dos missionários das

igrejas, as Sociedades Bíblicas já estavam operando, ainda que de forma muito

desordenada no Brasil. Seus colportores precederam os missionários protestantes no

interior brasileira, levando a Bíblia para ser vendida. Em muitos desses casos, os

esforços dos colportores resultaram em congregações e igrejas locais, mais tarde

filiadas a uma denominação (VELASQUES FILHO, 2002, p. 106).

Além do mais, Eurico Nelson que era um colportor não enviado por Sociedades

Bíblicas, optou em ficar na cidade e arcou com o alto custo de vida que a mesma apresentava,

31

principalmente quando optou em ficar de aluguel nos bairros considerados centrais, o que

aumentava a estatística do número de estrangeiros que concorriam para encontrar uma

moradia mais adequada nessas áreas que eram consideradas caras, já que os estrangeiros

favorecidos pelo governo imperial recebiam “algum auxilio para o serviço de imigração”

(FONTES, 2002, p.19), auxilio este que se reduzia a recepção e agasalho dos imigrantes que

chegavam à capital do império, por cinco dias, e “na concessão de algum crédito para as

despesas necessárias com transporte dos mesmos até o estabelecimento a que se destinavam”

(ibid). O registro de Antonio Batista de Almeida32 informa que a primeira moradia de Eurico

Nelson com Ida Nelson foi à Rua dos Cavaleiros n. 423, no bairro da Cidade Velha,

permanência esta que não foi possível por muito tempo, pois, com a sua falta de recursos foi

obrigado a procurar outro local para morar com a esposa. Além disso, é preciso considerar

ainda que como a cidade estava passando por remodelação da urbe, alguns bairros foram

contempladas com os “melhoramentos” (SARGES,2000, p.96) da Intendência, principalmente

as áreas centrais que foram calçadas e ajardinadas, enquanto que, para as demais áreas

periféricas restaram os espaços alagados, escuros e aonde o risco de contágio por doenças

epidêmicas era maior. Estas últimas custavam bem menos do que as casas das áreas centrais e

eram destinadas as pessoas mais pobres.

O jornal OApologista Chistão Brazileiro publicou uma nota intitulada Sailor´s Home

que informa uma das mudanças de casa que Eurico Nelson fez em Belém. Segundo o jornal,

nesta casa Eurico Nelson estabeleceu “um retiro para marinheiros, gabinete de leitura, e

culto. Já mudou para uma casa mais commoda, à Rua dos Mártyires n. 3733, aonde era

antigamente a casa de cultos da Igreja Methodista”34.

É exatamente a partir deste aspecto relacionado à conjuntura sócio-histórica do final

do século XIX para o início do século XX, que marca a chegada de Eurico Nelson do Pará

que fez surgir o interesse de estudar mais atentamente as narrativas do missionário batista nas

cartas que escreveu para Robert Willingham, secretário executivo da Junta de Richimond,

32 Antonio Batista de Almeida escreveu um livro intitulado “80 anos construindo a gloria de Deus”. Este material, porém

não consta data de publicação e nem editoração. Presume-se que seja uma publicação da década de 70 do século XX.

33 Esta nota foi corrigida por Justus Nelson no ACB de 16/01/1892, pois o número da casa era 47 e não 37. A

rua dos Mártires é hoje a Trav. 28 de setembro no bairro do Reduto, uma área que na época sofria o impacto dos

alagamentos.

34 ACB, de 02 fev. 1892, p.03. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de sentido,

além dos erros, ortográficos e sintáticos.

32

verificando a possibilidade de historiografar suas atividades religiosas e tentando também

dialogar com o contexto que se desenvolveu suas ações.

Ao iniciar pelo contexto, destacam-se neste trabalho as considerações tecidas pela

historiadora paraense Nazaré Sarges (2000) ao afirmar que o novo modelo de vida moderna

implantado na Europa chegou ao Pará através das elites do ciclo da borracha. Estas estavam

interessadas em construir na Amazônia uma civilização que reproduzisse esses modelos.

Sarges analisou especificamente as transformações processadas na urbe a partir dos discursos

elitistas, verificando que os resultados dessas mudanças para a cidade criou um ambiente

extremamente contraditório que já havia sido observado nas demais capitais brasileiras

(CHALHOUB, 1996). Uma parte da cidade recebia os capitais da borracha que eram investidos

na construção de boulevards, praças, implantação de bonds e alargamento de avenidas.

Enquanto que para a outra parte adotava-se política pública de saneamento que pretendia

conter “os maus hábitos de uma população indisciplinada e fétida”(SARGES, 2002, p.97).

A historiografia paraense demonstra categoricamente que havia dois discursos em

voga a respeito do novo mundo urbano que se imprimia na cidade: um que defendia as

pretensões cosmopolitas dos poderes públicos, desejosas de imprimir na cidade características

urbanas mais modernas e outro que apontava claramente um contexto de fronteira, onde os

moradores eram pressionados a sair da convivência dos espaços centrais, afastando-se para as

áreas periféricas35, onde as “ações de desenvolvimento urbano passavam ao largo” (ibid).

Como explicar então, que apesar de todas essas mudanças na cidade e sensação de

“enriquecimento”, alguns segmentos sociais, que constantemente causavam tensões na urbe,

viviam à margem da assistência adequada do poder público que era direcionada a segmentos

privilegiados? Dois aspectos precisam ser considerados para responder esta questão: o

primeiro diz respeito à experiência social dos sujeitos que constituíam o espaço mais

marginalizado. Para Lacerda (2006), estes espaços estavam muito próximos a classificação de

rural, ou seja, uma conotação distante daquela que a intervenção urbana com base no modelo

moderno, tinha efetivamente feito em determinados espaços da cidade para transmitir a ideia

35 Campos (2004) apresenta questões interligadas ao contexto da Belle Epoque, desde as dimensões da

expansão urbana que a cidade tomava até os questionamentos sobre as experiências sociais de variados sujeitos

que cotidianamente estabeleciam “relações sociais que no “interior do espaço bellepoqueano (...) provocavam

tensões na urbe” ( p.59).

33

de “lugar civilizado”(LACERDA, 2006, p.209). Este espaço marginalizado era estigmatizado

como “fétido, feio, sujo” (ibid) e para os quais restava principalmente da imprensa elitista a

denominação de local “incivilizado e insalubre”, termos que foram estendidos também para

os moradores que ali habitavam.

Quanto ao segundo aspecto, considera-se que os ouvintes de Eurico Nelson em

Belém, no limiar dos séculos XIX e XX, eram provenientes das camadas mais pobres da

cidade que iam sendo expulsas com o processo da urbanização, mas que insistiam em transitar

principalmente nas áreas centrais da cidade, por onde Eurico Nelson também insistia em

vender suas Bíblias, portanto, eram pessoas diretamente afetadas pelos problemas cotidianos

relacionados à transformação da urbe e a inserção batista em Belém ocorre exatamente neste

ambiente, principalmente no centro comercial, que era o espaço melhor atendido pelas

políticas locais e que convergiam agentes históricos de diversas experiências sociais. E porque

exatamente lá?

Neste trabalho, considera-se o que Campos (2004) descreveu ao estudar o bairro

central denominado de Campina e relatar que se tratava de uma área que possuía boa infra-

estrutura e sediava os principais prédios, como o Teatro da Paz, por exemplo. Recebiam os

benefícios determinados pela Lei 243 de 21 de setembro de 1899, que calçava as ruas, embora

fosse também um espaço de trânsito para aqueles considerados pelas elites como

“transgressores” (p.62), sujeitos sociais que aumentavam o adensamento da cidade e que

também foram responsáveis pelo crescimento urbano que se deu nas décadas seguintes.

Habitar os bairros centrais da cidade de Belém também foi à opção de Eurico Nelson

ao chegar à cidade. Segundo os seus biógrafos, assim que desembarcou do navio na Antiga

Boulevard da República, dirigiu-se para uma casa de hospedagem naquelas imediações e

depois para uma residência no bairro da Cidade Velha. Este bairro não era considerado um

bairro periférico e muito provavelmente seu segmento social estava sendo beneficiado com o

resultado do ciclo da borracha. Sobre o bairro da Cidade Velha onde permaneceu durante o

tempo de recém-casado e o bairro da Trindade/Campina onde evangelizou nos seis primeiros

anos de permanência em Belém, um olhar mais aproximado nos permitirá enxergar uma

faceta que permanece, segundo Trindade (1999) nas “brumas” da historiografia protestante

Batista, porém foi o local preferido escolhido por Eurico Nelson para vender suas Bíblias.

34

Capítulo II: Missionário ou colportor?

35

Eu prometi que escreveria algo sobre as dificuldades ligadas aos trabalhos nesse campo. Mas

por que deveria? O Leão da Tribo de Judá têm conquistado o maior inimigo, e “Somos mais

que vencedores através dEle”. Portanto nós escrevemos […] algumas coisas das quais Deus

tem feito por nós, em dois mêses nós vendemos 550 Bíblias e 800 Novos Testamentos.

Vendemos Bíblias para os grupos mais arriscados e as vendas estão aumentando. Nós

estamos nos preparando para a viagem ao rio para vender Bíblias e para começar um novo

trabalho. Para que um dos nossos diáconos possa assumir o trabalho de vender Bíblias. Ele

disse um dia desses que ele queria ir em direção e […] comida para que ele pudesse ouvir

muito pelo Senhor, também que ele frequentemente acordava à noite procurando a luz do dia

porque ele estava ansioso pela uma oportunidade de […] ao […] sobre as almas delas. Ele

agora irá tomar conta do […] em nossa ausência, e assim Deus têm ouvido a sua oração e fará

dele um homem útil. Isto não faria mal pra alguns dos nossos diáconos nos Estados Unidos,

não é? Nós tivemos dois batismos recentemente um homem apresenta um caso interessante.

Ele era um pequeno comerciante no norte da Amazônia […] e foi induzido a comprar a Bíblia

através de uma pessoa que falou bem da Bíblia.36

Com a leitura desta carta de Eurico Nelson confirma-se que ele tinha por atividade

principal a colportagem, que continuou exercendo mesmo mantendo vínculo com as juntas

batistas americanas depois de 1897. A colportagem foi um método antigo utilizado por

protestantes como Daniel Kidder, Robert Nesbit e Richard Holden, e por esta razão, a

população não estranhou que Eurico Nelson vendesse Bíblias37 e Novos Testamentos na via

pública, nos bonds e boulevards do centro da cidade. Mas o escocês James Helderson vendia

Bíblias e Novos Testamentos em uma loja no centro de Belém para fins exclusivamente

comerciais. Além disso, este foi o método de divulgação do protestantismo, iniciado no Brasil

com Daniel Kidder (KIDDER, 1972). Foi o tipo de relato deste último sobre o Brasil, que

tornou possível a segunda estratégia americana de inserção na América Latina que propôs a

imigração de estadudinenses como “evangelizadores”.

Pereira (1954) informa que as Bíblias vendidas por Eurico Nelson eram fornecidas

pela Sociedade Bíblica Americana. Informação confirmada por Azevedo (2004) ao afirmar

que as Bíblias eram fornecidas especialmente pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira,

constituída em 1804 e a Sociedade Bíblica Norte Americana, constituída em 1816 e que no

inicio do século XIX estas sociedades bíblicas distribuíram um número maior de Bíblias em

inglês, português e espanhol. Foi a partir desse contato pelo método da colportagem que

Eurico Nelson

36 Nelson Collection Historical. Doravante NHC, carta datada de 02 Nov 1898. Este texto está respeitando a

grafia original, com todas as lacunas de sentido, além dos erros, ortográficos e sintáticos.

37 Segundo Azevedo (2004) a primeira difusão se fez através de estrangeiros e agentes especializados. No

Brasil, a ação das sociedades bíblicas começou em 1804 e um dos pioneiros da colportagem foi Daniel Kidder,

agente da Sociedade Bíblica Norte Americana. Até 1890, a Sociedade Bíblica norte-americana distribuiu

aproximadamente dois milhões de exemplares de Bíblias, Novos testamentos, através de colportores e

voluntários na América Latina.

36

foi-se adestrando cada vez mais no uso da língua, e foi-se relacionando mais

intimamente com o povo, foi-se aprofundando no conhecimento daquela gente

desconfiada, mas boa de coração, donde iriam sair os futuros membros de suas

igrejas. O lugar predileto utilizado por Nelson para vender as bíblias era sempre em

frente ao hotel América à sombra das mangueiras frondosas. Adquiriu um carrinho

e levava consigo seu primogênito, Ivo Amazonas (PEREIRA, 1954, p 54).

Até 1897, era da venda das Bíblias que ele sustentava a família enquanto aguardava o

vínculo com alguma junta missionária americana, pois as sociedades bíblicas demonstravam

interesse na propaganda protestante na América Latina. As boards ou juntas missionárias

estrangeiras “enviavam e assalariavam vários missionários” (LÉONARD, 2002, p.09) com o

objetivo de promover no Brasil a propaganda do protestantismo, pois se falava muito de um

entusiasmo que havia reacendido o vigor das igrejas protestantes norte-americanas em relação

às missões (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2002) e muitos protestantes norte-

americanos influenciados por esse entusiasmo acreditavam que “tinham uma missão no

mundo”, o de salvar as pessoas e espalhar sua visão de progresso econômico, defendendo seu

estilo de democracia (AZEVEDO, 2004). Os relatos dos colportores sobre o Brasil

incentivavam a ampliação da colportagem em países da América Latina, muito embora

fossem chamados de mascates de livros que vendiam Bíblias por valores bem menores que o

preço do mercado e eram vistos como “agentes estrangeiros”(GRAHAM, 1973,p.293).

Desde já, destaca-se que naquela ocasião Eurico Nelson não tinha nenhum

compromisso missionário com a Junta de Missões Estrangeiras e se declarava batista de

Chanutte, nos Estados Unidos, conforme encontra-se numa publicação do Apologista Cristão

Brasileiro de 1891, e como não tinha responsabilidade nessa fase de apresentar quaisquer

resultados referentes ao sucesso ou fracasso de suas práticas religiosas, percebe-se que não se

tem registro até o presente momento de relatórios a respeito do número de pessoas

evangelizadas por ele e muito menos de adeptos convertidos ou batizados, antes de 1897, o

que demonstra que entre o ano de sua chegada (1891) até a fundação da primeira igreja batista

em Belém (1897) houve certa autonomia da parte dele em desenvolver atividades

conversionistas.

No Brasil, os batistas desenvolveram um tipo de comportamento específico inspirado

no pietismo que enviou a maior parte dos missionários americanos, tanto para o Brasil como

para outras partes do mundo (MACIEL, 1988). Pietismo este que “penetra as organizações

eclesiásticas existentes e impõe categorias e modos de interpretação da Bíblia, da vida em

37

geral e do comportamento pessoal de forma tão marcante, que passa a se constituir no forte

elo que as liga e identifica” (ibid, p.15).

Para os pietistas, segundo ainda Maciel, a ênfase na união mística com Deus passa a

prevalecer sobre a aceitação intelectual da doutrina verdadeira, ou seja, na ênfase da ortodoxia

protestante os elementos vão para aceitação intelectual e especulativa, assim “o pietismo não

só recupera a religião mística, do coração, como tende a enfraquecer gradativamente a

reflexão teológica em favor da meditação piedosa” (p.16). O pietismo enfatiza que em grupos

piedosos de estudos bíblicos, a mística da união com Deus acontece através da práxis

pietatis[...] enquanto “a ortodoxia está mais preocupada com a organização eclesiástica e a

reflexão teológica da igreja” (ibid).

A conversão é fundamental na mentalidade pietista, por isso Eurico Nelson iniciou

logo suas atividades evangelísticas atuando nos bairros centrais de Belém. Pereira(1954)

informa que “o ponto predileto de Nelson para venda de Bíblias era em frente ao Hotel

América, à sombra das mangueiras frondosas” (p.55), área localizada até hoje no centro da

cidade, circundada pelos bairros da Campina, Trindade e um pouco mais distante, o da Cidade

Velha, onde Eurico Nelson morava. Percebe-se que a semana de atividade do missionário

sueco era intensa com reunião em casa à noite, venda de Bíblias pela manhã nas ruas centrais,

venda em casa de Bíblias e literatura religiosas pela esposa, já no ano de 1893, pregação a

bordo dos navios estrangeiros aos domingos e visita aos doentes de febre amarela aos

hospitais católicos.

Além do mais, embora não estivesse oficialmente vinculado a nenhuma das juntas

citadas por Azevedo (2004), Eurico Nelson adotou como método de divulgação do

protestantismo batista àquele mesmo utilizado por outros protestantes que o precederam. Ou

seja, do missionário Robert Kalley, que utilizou àquele método “nitidamente conversionista”

que Cardoso (2002) descreveu como “práticas pastorais da Igreja Evangélica fluminense, o

mesmo que serviu de matriz aos das demais igrejas protestantes instaladas no país” (p.51),

Nelson passou a usar o culto doméstico, do qual Pereira afirma:

Todavia, o seu português ainda excessivamente atrapalhado, não atraia muita gente.

Podia vencer com o poder de sua voz a barulhada intolerante dos garotos e moços,

mas com a sua linguagem não animava muita gente a entrar. Tratou então de

arranjar um violino que arranhava tão bem como arranhava a língua.. nunca tinha

tocado violino na vida...Ida Nelson, por sua vez dedilhava um violão. Era quase

uma orquestra... Mas ao som de melodias estranhas tocadas por aquele estranho

“duo” o povo se ia reunindo, entre espantado e curioso. Quando via a casa cheia,

38

Nelson abria a Bíblia e principiava a ler solenemente um capítulo, o silêncio

profundo reinante lhe dava idéia de uma atenção dos ouvintes, quando levantava os

olhos já não havia viva alma na sala fora sua esposa e o primogênito. (PEREIRA,

1954, p. 60).

Percebe-se que José dos Reis Pereira procurou dar um tom anedótico a citação

anterior quanto ao trabalho de Eurico Nelson, mas obviamente se constata que apesar de todos

os esforços empreendidos na campanha do missionário para fazer a inserção do

protestantismo batista em Belém, encontrou muito mais dificuldades junto ao povo paraense

com a aceitação de seu modo de pensar religioso, do que com os seus problemas financeiros

tão amplamente destacados pelo pastor biógrafo. Da mesma forma que Robert Kalley,

compreende-se que Eurico Nelson utilizava esse método de forma livre, sem pré-requisitos,

de fato insistindo na experiência de fé e testemunho. Para Cardoso (2002) na igreja

congregacional “a ênfase do culto era evangelística, todos os membros da igreja participavam

do mesmo, com o sentido de trabalho espiritual” (p. 51). Também diante disso, só resta

concordar com Cardoso (2002) quando afirma que esse tipo de culto usado tanto Robert

Kalley da Igreja Congregacional como Eurico Nelson, de fato foram alternativas encontradas

pelos dois missionários para burlar a resistência dos seus ouvintes, adotando um método que

“era uma espécie de culto informal” mesmo, pois alternava pregação pública e expressões

musicais, com a clara intenção de chamar atenção do público.

Desta forma, recorre-se a leitura de Hahn (1985) para compreender que em relação

aos cultos protestantes que chegaram ao Brasil e, principalmente do trabalho dos leigos -

como era o caso de Eurico Nelson - não se seguiu as rotas litúrgicas dos cultos e atividades

tradicionais. A explicação que se encontra para esse fato é que embora Nelson tivesse chegado

a Belém no período em que a política republicana estava em vigor e apregoava a liberdade

religiosa, ainda permaneciam os resquícios das atividades permitidas em data anterior à

liberdade dos cultos protestantes, ou seja, a prática de reunião para cultos em família e de

caráter doméstico era o método mais corriqueiro utilizado por protestantes com a possiblidade

de maior êxito e em razão de não haver outras opções para estabelecer a prática de “um culto

mais elaborado” (MENDONÇA, 1985 p.31). Por outro lado, é possível considerar ainda que

nesses primeiros anos de permanência, Eurico Nelson encontrou dificuldade de dominar a

língua portuguesa.

39

Uma segunda atividade religiosa de Eurico Nelson era a pregação que fazia aos

domingos nas embarcações estrangeiras que permaneciam em “quarentena” na Baia do

Guajará. Pereira (1954) e Landers (1982) referem-se às embarcações norueguezas e

dinamarquezas, cuja tripulação encontrava-se aguardando liberação da Comissão de Saúde

Pública da província face ao surto de febre amarela na região.

Desta forma, Pereira (1954) assegura que Eurico Nelson optou por quatro tipos de

atividades religiosas nos anos iniciais de sua permanência em Belém: a primeira foi a

colportagem em área urbana, principalmente nos bairros centrais de Belém, a segunda foi o

culto doméstico à noite, a terceira foi à pregação nos barcos norugueses e dinamarquezes em

quarentena aos domingos e uma quarta que foi a permanência em hospitais junto aos doentes

estrangeiros internados. Mas ainda assim, não há registros de conversões que sejam frutos

desses esforços nos anos iniciais, categoricamente garantidos por seus biógrafos batistas.

Tal como os demais protestantes leigos ou não leigos que estiveram no Brasil da

segunda metade do século XIX até o fim da Primeira República, o entusiasmo de Eurico

Nelson em propagandear as ideias protestantes era visivelmente percebido no desempenho e

interesse demonstrado, aspecto que a historiografia protestante contemplou através dos

estudos de Emile Léonard (2002) e David Vieira (1980) que pormenorizaram as formas

encontradas pelos pioneiros para facilitar as inserções.

Pereira (1954) assegura que em 1896, Nelson enviou uma carta ao pastor batista

Salomão Ginsburg convidando-o a organizar uma igreja batista no Pará, já que na época havia

uma família batista de Maceió e que além do mais, um grupo de pessoas que havia

“abandonado” o pastor metodista Justus H. Nelson também o apoiava.

Sobre o período que antecede o vinculo de Eurico Nelson com a Junta de Richimond,

o batista Salomão Ginsburg citou em sua autobiografia “Um judeu Errante no Brasil” que

Eurico Nelson

trabalhava heroicamente no Vale do Amazonas, tentando pregar e manter a família

pela colportagem. Diversas vezes ele insistiu comigo para visitá-lo e auxiliá-lo a

organizar a Primeira Igreja Batista naquela região, visto não ser ele um obreiro

consagrado[...](GINSBURG, 1970, p.115-116).

Percebe-se certa ênfase na citação a respeito da questão da ordenação pastoral de

Eurico Nelson, uma vez que os batistas utilizam esse critério para o reconhecimento da

40

ortodoxia institucional, como se verá mais adiante. Este autor também citou os primeiros

momentos de permanência confirmando o culto domestico em uma residência de precárias

instalações que corresponde às descrições das casas dos moradores mais pobres de Belém.

A atividade missionária e o ministério pastoral são duas atividades que conferem aos

batistas determinados papéis ortodoxos na instituição e por esta razão e baseando-se nas

correntes teológicas que os influenciam, infere-se que os primeiros anos de Eurico Nelson

como leigo na Amazônia não conferiram no âmbito da instituição o devido reconhecimento de

seu trabalho religioso e por este motivo não há uma única citação que delimite esse período,

ou seja, das citações até agora encontradas nas biografias batistas sobre Nelson, não se atribui

para aquelas atividades iniciais, notas dignas de menção do trabalho que desenvolveu em

quatro frentes, pois somente depois da consagração de Eurico Nelson ao pastorado batista, em

02 de março de 1897, é que os missionários Salomão Ginsburg e Entizminger

“recomendaram”38 o nome de Nelson para compor o quadro da Junta de Richimond. Tal como

se vê em Pereira ao afirmar:

Nessa ocasião, Salomão se comprometeu a conseguir da Missão um auxílio de

cinquenta mil réis mensais para o trabalho no Pará...Até êsse tempo o casal se tinha

sustentado vendendo Bíblias, cuidando dos doentes e pregando a bordo. Além disso,

Ida Nelson ganhava algumas coisa costurando. (PEREIRA, 1954, p.69)

Quanto à fundação da Primeira Igreja Batista em Belém, Pereira (1954) cita que os

adeptos eram em numero de cinco pessoas. Destes cincos, uma era metodista, um foi

presbiteriano e três eram de uma mesma família.

Além do custo de vida em Belém ser muito alto e dos problemas de infra-estrutura

que atingiam determinados grupos sociais, temática já delimitada no primeiro capítulo deste

trabalho, visualiza-se que a fé batista trazida por Nelson entre os anos de 1891 a 1897

desenvolveu-se em ambiente descrito de forma pouco adequada por seus biógrafos, e por esta

razão, deixou lacunas abertas a respeito de uma possível interferência que o contexto tenha

proporcionado a germinação da fé batista. Ou seja, porque os biógrafos de Nelson se

esqueceram de citar as pessoas que foram atraídas pelas atividades religiosas de Nelson?

Porque não fazem uma sequer referência aos vizinhos de Eurico Nelson nos bairros que

morou durante sua estada em Belém e daqueles que participaram dos cultos domésticos

durante as noites? Por que não há referencias às histórias dos moradores de Belém que foram

38 Prática de indicar o nome de um ortodoxo (obreiro) nas camadas mais altas da organização.

41

abordados por Nelson no dia a dia, quando circulou nas áreas centrais da cidade para vender

Bíblias e Novos Testamentos?

Em razão desses espaços em branco, propõe-se nesta pesquisa recompor certas

experiências de sujeitos e/ou grupos sociais que assim como Eurico Nelson também

circulavam nos bairros centrais de Belém e por motivos semelhantes viviam na cidade

desenvolvendo suas atividades cotidianas, em torno do ciclo econômico da borracha. A

historiografia os contemplou com alguns estudos na linha temática de História Social através

principalmente de estudos de caso. Um dos trabalhos pioneiros nesse campo é do historiador

José Ronaldo Trindade (1999) que analisa os segmentos sociais que habitavam na época o

bairro da Campina, um dos bairros escolhidos por Eurico Nelson para a prática da

colportagem. Muitos dos segmentos estudados por Trindade foram estigmatizados e

permaneceram muito tempo segundo ele “ocultos nas brumas, apenas perdedores, números ou

estatísticas de uma certa historiografia” (TRINDADE, 1999, p.11). Este autor propõe trazer a

lume os agentes sociais que “viviam em cortiços, amontoavam-se em tabernas e botequins,

agrupavam-se nas esquinas, longe dos cafés ou dos hotéis em que a prostituição de luxo

acontecia” (p.09), ou seja, sua intenção era visualizar aqueles que foram alvos da exclusão

social, procurando demonstrar como conviviam diante das novas restrições impostas pela

nova ordem capitalista, perspectiva que o autor assegurou não ter sido contemplada, por

exemplo, nos trabalhos de Sarges(2000), ao estudar a modernidade e urbanização em Belém,

no período da Belle Époque.

O trabalho de Trindade é importante na construção desta pesquisa, pois apresenta

além dos sujeitos ébrios, meretrizes e cafetinas que destacou no seu trabalho como sujeitos

simples que “teciam suas tramas no plano do cotidiano” (p.11) outras pessoas, que também

pobres e excluídas, ficaram muito tempo “escondidas” da historiografia e especificamente

sobre o antigo bairro da Campina,39 observou qual era a vivência dos indivíduos que ali

forjavam suas atividades de lazer e trabalho a partir do critério das ruas, concluindo que eram

pessoas que viviam em cortiços ou em outros tipos de habitações coletivas conhecidas como

casa de cômodos, ou ainda “hospedados em estalagens ou em hotéis que utilizavam como

locais voltados para a prostituição, jogo ou outra atividade” (p.14).

39 Rotulado como o bairro das ruas de marginalidade e prostituição em Belém, até hoje.

42

Mas sobre a população que transitava na cidade, visualização imprescindível na

feitura deste trabalho, o autor identificou a presença de imigrantes estrangeiros de diversas

nacionalidades: turcos, árabes, judeus marroquinos, italianos, espanhóis, norte-americanos,

húngaros, franceses, “todos convivendo na cidade e desenvolvendo atividades variadas”

(p.48), além de migrantes nordestinos, negros, índios e mestiços, afirmando que essa

miscelânea étnica compunha um cenário que “maquiava” dos visitantes recém-chegados as

cenas reais que se queriam apresentar pelas elites e era para Trindade, “a pluralidade cultural

do lugar”(ibid).

Para Trindade, o resultado disso era uma grande diversidade étnica que confluía para

os espaços da rua do bairro da Campina, o bairro “mais agitado do final dos oitocentos”

(p.48), concentração justificada pela insuficiência de indústrias em Belém e para a formação

de bairros operários nas áreas periféricas, principal alternativa do trabalhador do setor

terciário e motivo suficiente para que “qualquer pessoa interessada em manter alguma

atividade de subsistência procurasse fixar moradia nessas redondezas”(ibid).

Em uma das cartas de Eurico Nelson a Robert Willingham, secretário executivo da

Junta de Richimond, em 1898, ele cita que em períodos curtos os preços dos alugueis em

Belém triplicavam de valor, variando de $25 a $50, e barracas da mais pobre descrição custa

$10

[..] só a falta de moradias, então o preço do aluguel de uma casa tem triplicado em

um período muito breve […]. O governo do Estado do Pará está abrindo colônias

nas ilhas do Rio da Amazônia; uma da qual, O Marajó, é ditto que é maior do que a

Inglaterra. É a esperança e oração dessa missão de espalhar a Bíblia nessas colônias,

e se possível visitar eles e depois trabalhar entre eles; também visitar, como foi feito

em anos passados, os barcos à chegar, e quando eles navegarem, estaremos

distribuindo a Palavra à eles. 40

Trindade (1999) afirma ainda que o bairro da Campina era de fato o bairro mais

populoso da época e também abrigava o centro comercial da cidade, muito agitado na época.

Foi sem dúvida, um dos mais procurados pelos recém-chegados que pretendiam pleitear

algum tipo de ocupação “seja no comércio ou nos serviços públicos ou através de

expedientes”(p.45), embora sua intenção na pesquisa fosse o de compreender como todas

40 NCH, carta datada de junho de 1898. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de

sentido, além dos erros, ortográficos e sintáticos

43

essas pessoas experimentavam a diversidade de referências culturais, hábitos, práticas e

línguas. Este autor, por exemplo, citou que os cearenses promoviam desordens sim, mas

também se encontravam nas fileiras policiais mantendo a ordem pública, da mesma forma que

negros, mulatos, caboclos, indígenas e mestiços da região que também trouxeram “sua

contribuição no sentido de tornar ainda mais plural o universo cultural de Belém naqueles

anos”(p.52). Destacou que pessoas negras e mulatas sofriam sanções por algumas de suas

expressões culturais, como o batuque e a capoeira que constantemente desagradavam algumas

pessoas na cidade que se incomodavam até com o seu ajuntamento na via pública.

Restou claro para o autor que uma das características mais marcantes das ruas do

bairro da Campina era a diferença social latente que dividia seus moradores. Alguns

habitavam suntuosos sobrados de até três pavimentos, o que já denotava uma diferença

marcante em relação aos outros moradores que viviam em cortiços, homens pobres que

moravam na mesma rua ou na rua seguinte, próximas a ruas em que podia haver vários

sobrados ou nenhum, como a Rua General Gurjão e Riachuello que eram consideradas ruas de

meretrício, o que para o autor ficou claro como “uma territorialização da pobreza, separadas

entre as zonas de prazeres ilícitos e a vida das boas famílias”(p.61).

Nas trilhas de Trindade, Campos(2004) ao analisar a expansão urbana que a cidade

tomava, faz questionamentos sobre as experiências sociais de seus variados sujeitos,

principalmente dos que promoviam desordens públicas e eram conhecidos por

“transgressores”, procurando discutir “as tensões sociais que se estabeleceram na Primeira

República” (p.60). Também estudou aqueles que entre uma e outra garrafa de bebida alcoólica

demonstravam os desencantos e as frustrações com os rumos políticos. Para o autor, a cidade

foi portadora de uma dimensão complexa, pois através de suas fontes de pesquisa (processos

de divórcios) surgiram outros sujeitos históricos, trabalhadores domésticos, talhadores,

empregados do curro, marítimos, guardadores de livros entre outros. Ponderou que em Belém

do seu recorte de análise, “existiam várias cidades no interior da cidade, que se

redimensionava e se entreteciam diariamente conforme as necessidades e os interesses dos

seus sujeitos sociais” (p.63) e que de maneira alguma a cidade poderia ser vislumbrada como

um todo homogêneo, pois os espaços em oposição eram marcadamente heterogêneos e bem

visualizados. Além do mais, este autor considerou que os moradores desses bairros centrais

conseguiam flexibilizar, elasticizar e “romper os laços e as fronteiras construídas pelas regras

sociais que a todo custo procuravam estabelecer quais seriam os caminhos que uma sociedade

que deveria ser ordeira, deveria trilhar” (p.67), por isso embora fossem rotulados

44

negativamente no seio da sociedade como transgressores e eram constantemente comparados

“simetricamente” com os seus locais de vivência, concluindo o autor que embora fossem

bombardeados, ainda assim, insistiam em marcar os territórios, quebrar tabus e romper com

os papéis que foram criados para eles com pretensões exclusivas, “driblando de variadas

formas as normas, utilizando pequenas astúcias e arranjos” (p.69).

Eurico e Ida Nelson usavam, por exemplo, a própria moradia como loja, local de

culto e “lar” e provavelmente atenderam muitas pessoas neste espaço, mantendo desta forma

contato com as que circulavam na área e que se tornaram seus clientes, tanto compradores de

Bíblias e Novos Testamentos como encomendas de costura, conforme Reis (1954) registra no

livro O Apóstolo da Amazônia e como a própria Ida Nelson se refere em seu Some Facts

about my Life.41

Conclui-se que, se Eurico Nelson era missionário até 1898 quando é vinculado a

Richimond, pelo menos para os contemporâneos batistas de sua época, não era. O termo mais

apropriado para Eurico Nelson nessa fase é de fato, o termo colportor, pois suas atividades de

colportagem produziram maior sucesso com a confirmação da venda das Bíblias e Novos

Testamentos. Conforme se desprende da leitura de suas cartas, o trabalho de cultos nos lares e

nas pregações foram considerados de menor sucesso, por dois motivos: a população local não

demonstrou muito interesse pela pregação trazida pelo sueco, nem tampouco pelo método. A

dificuldade com a língua, provavelmente atrapalhou os objetivos de Eurico Nelson nesses seis

primeiros anos, pois relendo a biografia de Reis, se percebe que o método de atração das

pessoas mais simples foi à utilização de instrumentos musicais usados pelo casal no momento

do culto e quanto às pregações “corpo a corpo”, Pereira destaca certa resistência aos paraenses

na conversão da fé batista, aspecto este que será desenvolvido com maior profundidade no

terceiro capítulo deste trabalho.

41 NCH, “Some Facts about my Life”, pp.1-2.

45

2.1 A construção biográfica de Eurico Nelson

Os estudos históricos atuais têm procurado “desmistificar” os heróis biografados

pelas instituições com o objetivo de colocar em evidência os meios como foram projetados

(BURKE, 1994). Por esta razão pretende-se ao longo deste subcapítulo rever a produção

biográfica a respeito de Eurico Nelson, levando-se em consideração os usos da biografia em

Pierre Bourdieu(1996) e Giovanni Levi (1996), a problemática da construção biográfica

analisada por Burke (1994) e a tarefa de construção de certa cultura organizacional em

Campos(1999).

Desde já se entende que a memória pode ser elogiada ou difamada, durante ou após a

vida do personagem, mas isso também depende dos documentos deixados e da vontade de

outras pessoas e/ou de segmentos sociais que explicam esse ator principal como um

representante do que desejam. Por esta razão, pretende-se analisar dois tipos de biografias

distintas que se localizou durante esta pesquisa. Trata-se de dois textos produzidos em

circunstâncias e com finalidades bem diferentes. O livro O Apóstolo da Amazônia, escrito

pelo pastor batista José dos Reis Pereira, em 1954, faz parte de uma tradição historiográfica

protestante que muito se aproxima do modelo discutido por Bourdieu (1996), ao afirmar que o

gênero biográfico tem como característica básica a idéia de que a historia de vida de um

individuo ocorreria em sentido linear fechada e organizada em razão do seu destino. Já o

segundo escrito biográfico produzido pelo missionário batista John Landers em 1982 tem

pretensão de ser um trabalho de cunho cientifico, embora demonstre na construção biográfica

certa aproximação com a explicação apresentado por Pierre Bourdieu.

Em A ilusão biográfica, Bourdieu (1996) assevera rigorosamente que “a história de

vida é uma dessas noções do senso comum que entraram como contrabando no universo

cientifico”(p.183). Sua critica aguda considera que o senso comum toma a história de vida

como um “caminho, uma estrada, uma carreira, com suas encruzilhadas, seus ardis, até

mesmo suas emboscadas” (ibid). Uma espécie de romance que ordena todas as ações humanas

de maneira cronológica, como se fosse um enredo a ser desfechado, com começo e fim. Sobre

o relato de vida propriamente dito ele compreende que

O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do investigado que se entrega

a um investigador, propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em

46

sua estrita sucessão cronológica (quem já coligiu histórias de vida sabe que os

investigados perdem constantemente o fio da estrita sucessão do calendário), tendem

ou pretendem organizar-se em seqüências ordenadas segundo relações inteligíveis.

(BOURDIEU, 1996, p.184)

Este autor conclui que produzir uma história de vida ou tratar a vida como uma

história com seqüência de acontecimentos com significado e direção, é conformar-se com

uma “ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária

não deixou e não deixa de reforçar” (p.185).

Para Levi (1996) a primeira questão levantada ao tratar da construção biográfica de

um indivíduo é sem dúvida a constatação de que uma biografia é um documento “sempre

extremamente fragmentado” (p.167) e que esta característica particular das biografias já

esteve na pauta das discussões de historiadores que apontaram o problema para mais de uma

direção: “as biografias são ambíguas, não são suficientes para comprovar hipóteses

cientificas, embora sejam reconhecidamente fecundas” (ibid).

Quanto ao aspecto história e narrativa, Levi assegura que as biografias constituem-se

num “canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da

literatura se transmitem à historiografia” (p.168) e que a literatura comporta uma infinidade

de modelos e esquemas biográficos que obrigam o historiador a se ver diante de outros

problemas que precisariam de uma explicação mais consistente, tal como perguntar “o que

fazer com as dúvidas e incertezas, o caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos

momentos contraditórios de sua constituição? (p.169)

Levi afirma que essas não são as únicas questões levantadas para o uso das biografias

e nem tampouco as principais, pois a interpretação que o historiador tem dos fatos narrativos

podem criar distorções “gritantes” como a de imaginar que os atores históricos obedecem a

um modelo de racionalidade anacrônico e limitado.

Quanto ao aspecto fragmentário das biografias, Levi considera que esta característica

se traduz pela “constante variação dos tempos, pelo recurso e incessantes retornos e pelo

caráter contraditório, paradoxal, dos pensamentos e da linguagem dos protagonistas” (p.170),

embora seja um meio eficaz de “construir uma narrativa que dê conta dos elementos

contraditórios que constituem representações que dele se possa ter conforme os pontos de

vista e as épocas” (p.171).

47

Levi também considera indispensável reconstruir o contexto, a “superfície social” em

que age o indivíduo, consideração que se levou em conta neste trabalho e foi o elemento

central que se destacou no primeiro capítulo desta dissertação. Os limites e lacunas impostos

pelo pastor batista José dos Reis Pereira em o Apóstolo da Amazônia, ao selecionar apenas os

sucessos de vida do biografado, sem articulá-los com maiores pormenores do contexto

imediato, bem como vinculá-los com o curso de vida das outras pessoas que construíram com

Eurico Nelson laços e experiências sociais, acabou fragmentando o todo narrativo, deixando

questões “abertas” sobre o ambiente que germinou a fé batista em Belém do Pará.

Um importante trabalho desenvolvido no campo historiográfico sobre a construção

de imagens e discursos foi o do inglês Peter Burke (1994). Ele analisou a construção da

imagem pública do rei francês Luiz XIV, propondo algumas questões a respeito do modo

como se processou a construção de imagens e representações em torno desse rei. Neste

trabalho, o historiador concluiu que só foi possível “fabricar” a imagem do rei, porque este

contou com o “auxilio que recebeu neste trabalho de construção” (p.22). Os celebradores de

Luiz XIV eram poetas, juristas e filósofos, embora tenha ressaltado que de fato eram os

historiadores o objeto de sua atenção especial. Na França, foram contratados oitenta

historiadores para registrar a história de vida do rei Luiz XIV “numa ênfase essencialmente

celebrativa” (p.35), trabalho este que ganhou da instituição real todo patrocínio

governamental necessário.

Burke (1994) também destacou que nesse tipo de trabalho não se revelavam as

fraquezas reais, apenas “força, moderação, bondade” qualificativos estes que representavam

“uma discrepância entre a retórica oficial do triunfo e a realidade dos revezes franceses”

(p.94), embora o culto ao Rei Sol tenha sido central nos panfletos distribuídos por autores de

panegíricos, uma espécie de discurso em louvor de determinados indivíduos em várias

ocasiões, que o autor sentenciou como “pura louvação” (p.48) dos funcionários do

“Departamento da Glória” do rei.

Quanto à análise da construção de imagens e discursos, no campo das Ciências da

religião, recorre-se aos estudos na área de Sociologia da Religião, em que Campos (1999)

analisa “a função do louvor ao passado e aos lideres na criação e manutenção de uma cultura

organizacional”. Este autor assegura que “o processo de construção dessa realidade (louvor ao

passado) passa pelos freqüentes embates entre os agentes, “isso porque neles clérigos e leigos

participam não somente dos resultados de uma realidade construída anteriormente, que os

48

antecede historicamente, como também são os co-autores de uma realidade continuamente

reconstruída” (ibid).

Para Campos, o argumento principal é que as organizações “se auto-constroem” e “se

auto-reproduzem”, o que explica o surgimento de propostas intervencionistas por parte de

“condutores” ou “consultores” da cultura organizacional. O seu objeto de estudo é uma

organização chamada “igreja”, local onde identificou “fenômenos” semelhantes aos

constatados em outros tipos de organizações sociais. Para o desempenho desses papéis “seus

membros são treinados, motivados, atraídos, designados, cooptados ou „vocacionados‟ por

meio de mecanismos sociais que canalizam a contribuição individual na direção da

concretização das metas da organização” (p.86) A produção simbólica, segundo este autor, é

sedimentada na forma de discursos e comportamentos, ligados aos mecanismos produtores de

discursos (mitos, ritos e liturgias).

Ao falar especificamente dos “celebradores”, Campos compreende que, os mesmos

se “alojam” nas organizações religiosas nas áreas ligadas principalmente às relações públicas.

O trabalho dos “celebradores” faz parte da construção e reprodução da cultura da organização

principalmente quando estas são originadas de “um líder carismático ou do trabalho de um

empreendedor personalista” (p.87). Os “celebradores” desempenham um importante papel na

criação e consolidação do espaço social em que atuam, particularmente nos momentos de

crescimento ou de crise organizacional. (ibid)

Esta atividade, para Campos, é extremamente importante no campo religioso,

particularmente na fase de institucionalização e de rotinização do carisma (ibid), pois cria um

senso de identidade e de maior coesão entre os agentes ao desenvolver um trabalho

pedagógico, embora seu afazer nem sempre “seja valorizado”. Finaliza afirmando que no

processo de auto-preservação, os mecanismos de poder se atrelam a uma importância

encarregada de produzir, manter, e fazer circular os bens necessários à sobrevivência

organizacional. Daí a importância dos “celebradores”, pois eles procuram estabelecer um elo

entre o que “foi” e o que “será” e para atingir tal meta, trabalham com a memória coletiva,

usando para isso aqueles valores intangíveis da organização, inclusive os mitos

organizacionais, e desta forma o autor assevera que:

A construção de um passado comum serve, nesse contexto, como cimento capaz de

soldar as partes fragmentadas pelas contradições ou teia em que as disparidades e

interesses divergentes de inúmeros membros de uma organização são interligadas.

Assim, as estratégias pessoais, às vezes, extremamente individualistas, se ligam às

metas coletivas, à filosofia e ao clima considerados ideais e legítimos na

49

organização. Sem a ação dos “celebradores”, o futuro fica comprometido, as metas

particulares podem se sobrepor às diretrizes do campo e os fins organizacionais

desejados são considerados pelos agentes metas inatingíveis ou, quando não,

indesejáveis.(CAMPOS, 1999, p.88).

A partir desta referência teórica, passou-se a analisar detidamente as biografias de

Pereira e Landers, até porque o estudo de Campos tem por base um estudo de caso do

presbiterianismo brasileiro e sua ideia principal muito se aproxima do que Maduro teorizou ao

afirmar:

a especialização do trabalho religioso consiste na constituição progressiva de um

corpo de funcionários especificamente encarregados de satisfazer um tipo particular

de interesse (o interesse religioso)[...], mediante a elaboração [...]de um certo tipo de

práticas e discursos(MADURO,1983, p.120)

Assim sendo, na nota explicativa do preâmbulo da obra O Apóstolo da Amazônia,

identifica-se uma afirmação no mínimo contraditória, quando o autor afirma que seu trabalho

“não é uma obra literária” e que não buscou sugestões na técnica das modernas biografias

romanceadas, porém mais adiante e ainda na mesma nota afirma que sua motivação tinha sido

o sentimento de quanto seria “inspiradora a vida admirável do „Apóstolo da Amazônia‟

contada aos nossos moços e o quanto ela poderia concorrer para o despertamento de vocações

missionárias”(PEREIRA, 1954, p.10).

Os qualificativos “inspiradora” e “admirável” marcam o estilo literário romântico ao

acentuar um modelo desejado para o grupo que o autor integra. Para compor esta imagem, o

autor deu visibilidade às representações sociais do “homem batista” ideal, no qual estilo de

vida, fé, persistência são elementos definidores de um modelo a ser seguido pelos demais.

Além disso, percebe-se no decorrer da construção biográfica de Pereira que o biógrafo

procurou projetar algumas qualidades fundamentais ao homem religioso, àquelas mesmas

citadas por Levi (1996) ao afirmar que a relação entre autor e personagem pode chegar a um

“meio-termo” biográfico que “renuncia certas verdades individuais na busca de um tom mais

didático [...] acrescentando às vezes paixões e emoções ao conteúdo42 tradicional das

biografias exemplares, a saber, dos feitos e atitudes do protagonista” (p.172). Além do mais,

na reconstrução da história de vida de um biografado, o papel do biógrafo merece ser mais

bem analisado, pois é quem seleciona e pode esconder ou evidenciar determinadas atitudes do

42 O grifo é nosso.

50

biografado, colocando desta forma sua subjetividade no produto escrito que quase sempre

deforma.

2.2 Um guardião do passado?

Quem informa sobre José dos Reis Pereira é Marcelo Santos (2003) ao analisar o

marco inicial dos batistas, afirmando que o Pr. Reis Pereira nasceu no ano de 1916, em São

Paulo e faleceu em 1991. Estudou Teologia no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil,

local onde também foi professor de História do Cristianismo, por 37 anos. Foi ordenado

pastor aos 21 anos de idade e assumiu a presidência da Junta de Missões Estrangeiras, durante

20 anos, e a Ordem dos Ministros Batistas no Brasil. Escreveu vários livros na área de história

e Teologia e assumiu a direção do jornal Batista por 24 anos. Barbosa e Amaral (2007)

informam que nas décadas iniciais do século XX, um problema organizacional rondou os

batistas - A Questão Radical – que foi responsável por um decrescimento e divisão entre os

batistas do Norte do Brasil, em Pernambuco e que nas décadas seguintes os batistas se

empenharam para colocar a denominação numa visibilidade mais favorável.

As homenagens a José dos Reis Pereira por ocasião de sua morte, revelam através de

um artigo de Nilson Dimárzio que se tratava de “um homem da denominação na verdadeira

acepção do termo[..]ninguém como ele teve uma visão global de causa evangelística e, muito

especialmente, Batista”43

. Para Santos (2003), o pastor batista José dos Reis Pereira está entre

“os pensadores mais expressivos da denominação batista, tendo como grande preocupação

manter aceso o espírito missionário e sendo a sua contribuição [...] a valorização da atividade

missionária entre o povo batista” (p.55).

Embora não tenha conhecido pessoalmente o sueco Eurico Nelson, pois somente

ouve falar dele a primeira vez através do missionário americano L. Bratcher, em O Apóstolo

da Amazônia, José dos Reis Pereira se empenha em dar uma visibilidade heróica aos feitos de

Eurico Nelson, pois enquadra o sueco batista em um modelo a ser seguido por todos os

batistas brasileiros na década de 60 do século XX. As representações em torno de Eurico

Nelson exaltavam-lhe as principais virtudes, representando o exemplo de persistência,

trabalho, abnegação, integridade e despojado de qualquer tipo de ambição, pois deixou o

43 OJB, 17 out. 1991, p.01.

51

“norte nevoso” para evangelizar as “almas perdidas” na “fornalha equatorial”, um exemplo de

fé, dedicação à obra, o modelo ideal de biografia missionária batista.

Recuperando a trajetória missionária de Eurico Nelson, principalmente na fundação

das igrejas batistas do “vale amazônico”, José dos Reis Pereira procurou reforçar de fato a

figura de herói em Eurico Nelson, construindo a ideia de que somente um grupo que se

identificasse com os ideais de Eurico Nelson seria capaz de persistir no trabalho missionário

batista ou seria capaz de personificá-lo. Esta perspectiva está claramente demonstrada na ideia

central do livro quando afirma que pretendia registrar “o quanto seria inspiradora a vida do

missionário batista aos moços batistas” (PEREIRA, 1954, p.10) das décadas de 1945 a 1954,

o que demonstra de pronto que para ser um modelo inspirador qualquer outro modelo que não

se enquadrasse na visão idealizada como melhor, deveria ser de fato retirada ou minimizada

ou mesmo minorada, de tal forma que nada fosse mencionado e por esta razão infere-se que o

silêncio de José dos Reis Pereira sobre os problemas que Eurico Nelson enfrentou em relação

ao contexto fugia completamente ao discurso que se pretendia imprimir a partir da imagem

dele e por isso não há uma sequer referência a respeito das populações locais que

recepcionaram a fé batista em Belém do Pará, nem tampouco as querelas que Nelson travou

com o metodista Justus Nelson em Belém, publicadas no jornal O Apologista Christão

Brazileiro ou as cisões ocorridas na primeira igreja batista nos anos de 1901 e 190544

que

serão analisadas no último capítulo deste trabalho.

Porém, logo se percebe na obra, as tessituras de uma história de heroísmo que

pretendia criar aspectos homogêneos ligados por diversas situações, presente e passado, numa

leitura pouco rígida, extremamente idealista, romântica e carregada de juízos de valores

favoráveis apenas ao biografado, deixando, porém de lado questões não respondidas em torno

do contexto e dos outros agentes sociais que compartilharam experiências de vida e religião

com o Eurico Nelson.

No conteúdo da obra, Reis Pereira menciona algumas vezes qualificativos em torno

das ações de Nelson, como por exemplo, “faina” (PEREIRA, 1954, p.63) entre outros que

fornecem ao herói biografado os elementos de uma construção carismática que enriquecem e

44 Nesta data organiza-se a igreja Cristã Evangélica em Belém com 16 membros que foram batistas, membros

da primeira igreja, sob a liderança de Almeida Sobrinho, pupilo de Nelson. Cf. Almeida ([197?, p.26)

52

revestem de certa cota de prestígio pessoal o próprio biógrafo. Nelson só era um herói,

porque era batista, tal como se percebe nessa citação que finaliza o capítulo III:

O fato de vir Nelson para o Brasil e aqui efetuar tão extraordinário trabalho,

dispondo de tão pequeno trabalho, levará, talvez, alguém a supor que não precisa

estudar muito para se dedicar à pregação. Que tal não aconteça. Deus às vezes

chama homens como Nelson. Mas esses homens são exceções. A inteligência de

Nelson era singularmente viva e êle aprendia com admirável facilidade as coisas,

sua inteligência de eleição 45

supria falhas provenientes da ausência de estudos em

escola. (PEREIRA, 1954, p.44)

Já a biografia de John Landers(1982), pretende ser um trabalho de cunho cientifico,

mas em especial no encerramento da sua tese de doutorado, o autor arrola uma série de

explicações sobre o significado de Eurico Nelson. A pesquisa deteve-se em analisar essa parte

da obra, retirando as seguintes conclusões a respeito do texto do missionário batista

americano:

1.O autor afirma no texto que cada comunidade cristã interpreta a fé e enfatiza certos

valores e ideais e que em algumas comunidades, os indivíduos são selecionados

porque “encarnam” esses ideais na vida moderna, e, portanto, servem como modelos

de vida cristã. (p.185)

2.Embora os batistas não canonizem santos, sentem a necessidade de possuir

modeles espirituais para guiar suas vidas, pois o grupo enfatiza o compartilhar da fé

com outras pessoas. Eurico Nelson representou um modelo cristão ativista que

enfatizou a fundação de igrejas e o testemunho direto e que as características de

“evangelizador” e “missionário”(ibid) o distinguiram como modelo cristão.

3.Afirma que na ocasião da morte de Eurico Nelson, “eventos combinados”

transformaram Eurico Nelson em um herói da fé, pois a primeira igreja batista de

Manaus forneceu-lhe um enterro de "dignatário"(ibid).

4.Mesmo aposentado ele voltou para o Brasil e continuou seus trabalhos, razão pelo

qual o autor afirma que Eurico Nelson “mexeu com o imaginário dos batistas

brasileiros”(p.187), pois foi percebido como um homem cheio de um sentido de

missão até o fim.

45 O grifo é nosso.

53

A construção de Eurico Nelson como herói batista que foi o fundador das primeiras

igrejas batistas na Amazônia, um apóstolo, “um herói autêntico, um verdadeiro missionário

que pode ser colocado na gloriosa galeria dos Paton, dos Carey, dos Judson” (PEREIRA,

1954, p.59), tanto no livro O Apóstolo da Amazônia de José dos Reis Pereira, como na tese de

doutorado de John Landers é uma interpretação que muito se aproxima ao modelo de

“guardião do passado” analisado por Campos(1999), pois este autor enfatiza que a tarefa de

construir a realidade social e a cultura organizacional das instituições religiosas cabe aos seus

“celebradores” que nessa tarefa

cooperam também para a manutenção dos esquemas do poder, na medida em que

eliminam tendências para os desvios provocados por profecias concorrentes. Eles

divulgam os valores organizacionais considerados básicos e numa estratégia de

conservação defendem a ortodoxia do campo. Os modelos apresentados em suas

produções literárias são inspirados nos valores básicos da cultura organizacional,

quase sempre inspecionados pelo poder eclesiástico, oferecendo a todos os leitores

rotas e visões de mundo a interiorizar sem questionamento, como se fossem coisas

naturais, atingindo-se dessa forma o efeito de eternizar o que é histórico e priorizar o

temporário. (CAMPOS, 1999, p.88)

Diante desse embasamento teórico a respeito da construção biográfica compreende-

se que um protagonista que para seus contemporâneos não mereceu consideração digna de

muitas notas, dependendo do discurso e de qual instituição está envolvido, pode se tornar

posteriormente uma referência “superdimensionada” (ALENCAR, 2006) na compreensão de

certos eventos.

Por outro lado, para compreensão da construção biográfica de O Apóstolo da

Amazônia basta se comparar dois momentos distintos de Eurico Nelson: o primeiro que marca

a sua chegada em Belém do Pará, quando era um personagem “marginal” da história dos

batistas, sueco, desconhecido, sem habilitação ao ministério e esta posição dentro do contexto

institucional não deixou de ser percebida por Eurico Nelson, razão pela qual se compreende a

nota magoada em um artigo que escreveu para o jornal Batista do ano de 1923, quando

afirmou que “não era fácil escrever sobre aquele assunto (referindo-se ao trabalho inicial em

Belém do Pará) e nem tampouco agradável”46

. Fez uma dura critica ao artigo do Pastor

batista Salomão Ginsburg, durante os festejos do centenário da denominação batista no Brasil,

o criticando abertamente por não ter mencionado a “missão do norte” em seus artigos e “não

46 OJB, de 04 Jan. 1923, p.10.

54

disse uma palavra sequer sobre Belém do Pará, quando se assim não fôra, estava na

obrigação de falar, pois cooperou commigo na organização da 1ª igreja de Belém, tendo elle

mesmo feito os primeiros baptismos no rio Amazonas”47

É oportuno repetir que, no seu desejo insopitável de pregar o evangelho no Brasil,

Eurico Nelson não contava com nenhum auxilio humano. Não tinha ainda sido

consagrado ao ministério e por isso também não esperava a remuneração de

nenhuma igreja. Mas decidira partir e nada neste mundo seria capaz de demovê-lo.

Um dos traços distintivos do seu caráter, desde a infância, segundo o testemunho de

seu irmão Carlos, era a firmeza de seus propósitos e a pertinência com que os levava

a termo. Era um “homem de uma só peça”, desses que só dizem “sim, sim – não,

não”. (PEREIRA, 1954, p. 43).

Percebe-se que para seus contemporâneos Eurico Nelson era apenas um “homem de

Deus”, esforçado, um colportor que fugiu do padrão do grupo. Seu heroísmo foi ter deixado

“o melhor dos mundos” (ALENCAR, 2009, p.72) e vir para o “Inferno Verde” (PEREIRA,

1954, p.20), fundando as primeiras igrejas batistas na Amazônia, porém enquanto não está

institucionalizado como de praxe, ninguém o reverencia ou reconhece o trabalho

desenvolvido nos seis primeiros anos de permanência no Pará antes de ser vinculado a

denominação Batista. A história que se reconhece é a história a partir de 1897, quando funda a

primeira igreja em Belém e quando é vinculado a Junta Americana de Richimond.

Dos confins da terra vêm os aventureiros e cientistas para conhecer as plagas

amazonenses. Mas o homem que mais viajou nos seus rios, lagos, lagoas e igarapés,

e sentiu mais estranhamente as vibrações de sua exuberância, foi o Apóstolo da

Amazônia, Eurico Nelson. Nos quarenta e cinco anos de vida ativa, viajou talvez

200.000 Kms na grande bacia do Orellana pois em alguns anos atingiu a vigésima

parte desta distância. Nasceu na Suécia. O seu pai abandonara a igreja oficial do

Estado para seguir as convicções de consciência e unir-se ao pequeno grupo de

batistas, então desprezados e perseguidos. Para gozar a liberdade de consciência e

praticar a fé batista, a família emigrou para o Estado de Kansas, ao oeste dos

Estados Unidos, quando Eurico tinha a idade de 07 anos. O rapaz converteu-se aos

14 anos e uniu-se à igreja fundada pelo pai e outros pioneiros da fé naquela nova

terra. Cinco anos depois, entregou-se ao serviço de vaqueiro nas planícies de

Oklahoma, Colorado e Texas. Se nesse período de seis anos, afastou-se das

influências da igreja e do lar cristão, desenvolveu no desempenho de suas pesadas

responsabilidades ao relento, um corpo forte e resistente e uma voz poderosa para

ser usada mais tarde no serviço de Cristo, na evangelização do

Amazonas.(CRABTREE, 1962, p.197).

47 Ibid.

55

Depois de morto, o cinqüentenário dos batistas foi o momento ideal para projetar a

imagem de Eurico Nelson no imaginário batista. Uma representação heróica em torno do

batista Eurico Nelson como foi projetada no livro O Apóstolo da Amazônia está claramente

inserida naquela tarefa de construção de imagem já amplamente discutida pelo campo

historiográfico e a respeito de “heróis” missionários no meio protestante, destaca-se o

conceito de “construção ideológica” discutido por Alencar (2006) ao afirmar que a

historiografia missionária é uma espécie de épico quando contada por algum representante da

instituição que está envolvido, principalmente quando se prioriza a glória, o sofrimento

(martírio) com privações, doenças e até “morte sacrificial”. O pastor José dos Reis Pereira

tornou-se um “guardião do passado” ao eternizar a memória de Eurico Nelson como um

modelo de missionário batista ideal, embora no Livro de Ouro da Convenção Batista

Brasileiro, publicado recentemente pelos batistas, um registro de cinco linhas em um único

parágrafo, marcam a sua extensa passagem de 47 anos de trabalho missionário no Brasil:

No extremo norte do país, decorrente do trabalho de Eurico Nelson, foi fundada a

Primeira Igreja de Belém do Pará, em 1897; e, em 1900, a primeira Igreja Batista de

Manaus. O evangelho e os batistas cresciam e se espalhavam no território brasileiro.

O total de membresia brasileira já alcançava 1.500. (BARBOSA; AMARAL, 2007,

p.34)

Eurico Nelson continuava seguindo, mesmo morto, o estigma que seus

contemporâneos batistas lhe reservaram em vida.

56

Capítulo III: Protestantes Batistas e a Era das Missões

57

Ao tratar do projeto missionário protestante no Brasil, comparando presbiterianos e

batistas, Cavalcanti (2001) considera que as missões protestantes modernas além de

“transplantarem” para o Brasil novos modelos religiosos facilitados pelos processos

imigratórios da segunda metade do século XIX, criaram dois modelos de missões: o da igreja

oficial e o do “mercado aberto” (p.61). Este último, segundo o autor, seria um modelo

diferente da igreja oficial48 e foi o modelo adotado pelas missões norte-americanas ao

competirem com outras várias igrejas protestantes pela “adesão voluntária dos fiéis” (p.62).

Neste modelo de mercado aberto não há qualquer intervenção estatal e “cada igreja ou

denominação tem que desenvolver uma catequese eficaz para convencer parte da população

local da superioridade de sua doutrina e prática religiosa” (CAVALCANTI, 2001, p.63). Este

autor ressaltou ainda que, no Brasil, as missões protestantes americanas enfrentaram

dificuldades em implantar esse modelo, pois o sistema religioso da América Latina foi

baseado numa cultura ibérica oposta ao sistema norte-americano: profundamente católica,

oligárquica e patrimonial. Estas características resultaram no primeiro choque de visão entre

os dois sistemas e na “dissonância entre a ideologia protestante e a realidade local para

determinar o grau de aceitação das missões” (ibid., p.64).

Foi no “transplante” desses novos modelos religiosos das missões protestantes que se

percebeu que as igrejas norte-americanas “comungavam uma fé jingoística”(CAVALCANTI,

2001, p.64) que, além de aceitar incondicionalmente as promessas iluministas, ainda via os

Estados Unidos como a maior expressão de nação moderna, portanto muito mais aberta à

igualdade política e à iniciativa privada. Além disso, estas duas características do

protestantismo missionário correspondiam à expectativa das elites brasileiras que tinham a

intenção de modernizar o país, mesmo correndo o risco de ver um confronto entre as ideias

religiosas dos protestantes norte-americanos e as ideias religiosas do povo brasileiro, ainda

profundamente católicas, o que de fato veio mesmo a ocorrer, no momento que as atividades

religiosas protestantes passaram a representar uma “força cultural invasora”, ou seja, uma

contra-cultura que desestabilizou os “modelos locais” estabelecidos.

Um importante argumento apresentado por Cavalcanti (2001) advertiu, contudo, que

as missões protestantes não tinham sucesso assegurado e que, na maioria das vezes, o seu

crescimento era mínimo e resultante de um grande esforço de seus missionários. O autor

48 Segundo este autor, onde a religião é exportada como parte da ordem social gerida pelo Estado.

58

levou este aspecto em consideração ao concluir que esse crescimento dependia da capacidade

dessas igrejas de atrair segmentos populacionais através da conversão do “nativo”, embora a

conversão demandasse deste último uma “renúncia muito grande” (p.65) de comportamentos

e valores antigos, o que implicava geralmente no abandono de sua própria cultura e na adoção

de um novo padrão de vida vindo de fora.

A questão da conversão foi discutida também por Mendonça (2002) ao analisar a

chamada “teologia conversionista” do protestantismo missionário, um processo de mudança

cultural, em que converter implicava no “rompimento abrupto do indivíduo com o seu meio

cultural, através da adoção de novos padrões de conduta opostos àqueles em que havia sido

criado” (MENDONÇA, 2002, p.32). Este autor cita como exemplo, o fato de os missionários

introduzirem o vocábulo “crente” para identificar as pessoas que iam aderindo a esses grupos,

ou seja, o crente era aquele que abandonava as suas antigas crenças e práticas religiosas e

passava a crer no Jesus dos protestantes, não simplesmente como uma convicção qualquer,

mas com o compromisso de mudança de vida a partir de outros valores apresentados pelos

missionários. Da mesma forma que Cavalcanti (2001), Mendonça (2002) demonstra que os

valores trazidos pelo protestantismo de missão também trouxe resultados negativos para os

próprios missionários, pois como não tinham garantia do sucesso de sua empreitada,

constantemente tinham que provar “que eram bons cidadãos” (CAVALCANTI, 2001, p.80) e

geralmente “eram taxados de mercenários, vendidos a uma ideologia política estrangeira”

(ibid.).

Este estilo de vida estrangeiro atraiu, a princípio, muitos adeptos da mensagem

protestante. Mas Cavalcanti (2001) assegura que o crescimento do número de convertidos

dependia de dois fatores: o do momento histórico da chegada do missionário e do contexto

que a missão foi inserida (p.65) e que os batistas como os demais protestantes, também

estavam dispostos a competir no mercado religioso “emergente” do Brasil, pois seu modelo

eclesiológico congregacional49 estabelecia uma organização descentralizada “no seu modo de

ser igreja” (p.66) onde cada congregação local tinha amplos poderes para definir a fé e prática

religiosa, e, por essa razão, cada congregação podia ordenar seus próprios leigos e tomar todas

as decisões pertinentes a vida religiosa da igreja. Este modelo de igreja tomava por base o

49 Mendonça (2002) afirma que a eclesiologia batista é a mesma da Igreja Congregacional, ou seja, as igrejas

locais são autônomas, mesmo que se organizem em convenções regionais que traçam planos e orientações, mas

que não podem obrigar em nada as igrejas locais.

59

“sistema federativo” (ibid) norte-americano, baseado no processo de democracia local e

voluntarista.

Os batistas em relação aos demais ramos protestantes ingressaram no Brasil

tardiamente, precisamente no final do regime imperial brasileiro, quando a entrada de

estrangeiros foi facilitada pelos processos imigratórios. Já no contexto brasileiro os

missionários batistas aproveitaram o momento mais frágil da Igreja Católica para expandir

suas igrejas, criticando abertamente a vida religiosa brasileira como aquela pautada numa

igreja sincrética e tradicional. Esta crítica veio a favorecer o crescimento batista no início do

século XX, pois granjeou um grande número de adeptos, utilizando como estratégia uma forte

“agressividade evangélica e anti-católica”, a “evangelização direta, mais do que a educação”,

uma “eclesiologia mais simples e clara”, uma “ética mais rigorosa” e o “ritual do batismo”

(MENDONÇA, 2002, p.43)

Cavalcanti também compreende que nesse momento os primeiros missionários

batistas “enfrentam uma resistência muito grande às suas ideias por parte dos clérigos

católicos e da população local” (p.78), pois defendiam que o enfraquecimento da igreja e do

Império, conhecidos na historiografia brasileira como a “Questão Religiosa” e a “Questão

Monárquica,” foram fatores muito bem utilizados pelos missionários para “cristianizar” um

país que não consideravam cristianizado e que a visão que tinham sobre o Brasil indicava que

o cristianismo da Igreja Católica era de uma “religião supersticiosa, sincrética e medieval”

(p.79). Segundo os batistas, uma igreja com estas características não tinha condições de ajudar

o Brasil a se tornar moderno, condição que eles diziam ter. Criticavam as procissões, as festas

e as práticas católicas afirmando que contribuíam “para o atraso do país”, uma retórica que

era reforçada com as críticas dos liberais e dos republicanos.

Além do mais, Cavalcanti assegura ainda que os missionários batistas afirmavam que

somente o protestantismo teria condições de promover os ideais da democracia, do

individualismo, da igualdade de direitos civis e da liberdade intelectual e religiosa no país,

pois as ideias do universo católico para eles, representavam atraso, uma crítica que o autor

avalia como “sintomática de um choque cultural” (p.79), pois os valores defendidos pelos

batistas (responsabilidade individual, autonomia de governo local, forma democrática, decisão

coletiva) implicavam num conflito gestado principalmente pela adversidade.

Cavalcanti (2001) assegura que o resultado dessa campanha tenaz dos batistas contra

a Igreja Católica foi a conquista de “espaços livres” onde implantaram suas igrejas no meio

60

urbano (reduto também das igrejas católicas). Ademais, esta estratégia foi favorecida porque

certas camadas sociais estavam “insatisfeitas com a presença pastoral da igreja Católica

Romana”(p.71). Segundo este autor, as pessoas dessas camadas estavam descontentes com os

rumos da nação e desejosas de adotar o “estilo de vida” que o imigrante norte-americano

trazia para a região, o que lhe conferia um sentido de “moderno” ou “mais desenvolvido”

(ibid), embora em troca os imigrantes pleiteassem proteção do Estado para o seu exercício

religioso.

Percebe-se que os três fatores apontados como favoráveis à inserção protestante no

Brasil (Modernização, processos imigratórios e rompimento da igreja com o Estado) de fato,

obtiveram respostas favoráveis dos brasileiros, pois estes passaram a aceitar as novas opções

religiosas apresentadas, embora o modelo de igreja trazido pelas missões fosse muito

diferente daquele que os brasileiros conheciam até então. Do modelo batista implantado no

Brasil, Cavalcanti (2001) asseverou que “não era propriamente uma igreja, e sim uma

federação de congregação autônomas, que simplesmente partilham da mesma tradição

teológica, pois os batistas afirmam que não são uma igreja e sim uma denominação”(p.77).

Outro autor que discute o modelo de igreja batista que foi implantado no Brasil na

época da “Era das Missões” é Aguirella (1988). Este autor afirma que o funcionamento dessa

igreja, assim como das demais igrejas protestantes procedentes dos Estados Unidos, é

inspirado na ideologia liberal que encontrou “reforço” (p.24) nas ênfases pietistas. Deste

Pietismo, destacou ainda os seguintes aspectos assimilados pela tradição batista50: o

individualismo, a liberdade, a democracia, o êxito no trabalho e a confiança no progresso

conforme a ideologia liberal.

Para Aguirella, o protestantismo norte-americano do final do século XIX

caracterizava-se pelo forte “denominacionalismo” que tinha por princípios a associação

voluntária, o proselitismo e a pretensão de ser unitiva e instrumental e que os missionários

norte-americanos no plano ideológico, acreditavam na doutrina do “Destino Manifesto”.51

Assegura ainda Aguirella (1988) que a igreja batista estava inserida também neste processo

ideológico e viu a possibilidade de realizar o reino de Deus na terra e inscrever-se no projeto

50 Mendonça (2002) afirma que a teologia das igrejas batistas brasileiras é a teologia arminianowesleyana,

“individualista e conversionista” (p.43).

51 Segundo Aguirella (1988) o Destino Manifesto foi “quando Deus escolheu os Estados Unidos para através da

história, libertar os povos que estavam nas trevas” (p.25).

61

liberal de expansão econômica, religiosa e política do século XIX, embora, como diz

Mendonça (2002) “no esquema das famílias de Igrejas da Reforma” (p.42), os batistas

aparecem como um ramo paralelo, já que não se compreendem como “protestantes”52 e que

tal dificuldade reside no fato dos mesmos não se aceitarem como “frutos” da Reforma, pois

segundo eles, suas raízes históricas estão no Novo Testamento, embora da mesma forma que

os outros protestantes assumam os pressupostos teológicos da Reforma.

A corrente teológica radical dos batistas norte-americanos que defendia a continuidade

história dos adeptos batistas desde Jesus Cristo foi conhecida como “movimento

landmakista”. Este movimento foi iniciado nos Estados Unidos em 1850, por Tiago Graves,

do Tennessee e J.M.Pendleton, do Kentucky, batistas que tentavam preservar aquilo que

consideravam como “os velhos marcos do cristianismo neo-testamentário” (p.140). Segundo,

Tobert (1954), o movimento landmarkista foi um aspecto marcante da “Convenção Trienal”

batista de 1845, quando houve uma mudança de nome dessa convenção para União

Missionária Batista Americana, além da fundação da Junta de Missões Estrangeiras.

Segundo Aguirella (1988) foi dessa forma que, no século XX, os batistas

landmarkistas passaram a se diferenciar dos demais grupos protestantes afirmando suas

“regras distintivas”, que no Encontro de Cotton Grove, no Tennessee, se tornou o

posicionamento oficial do grupo, ao defender cinco questões básicas: - os batistas não

reconhecem sociedades religiosas não organizadas de acordo com as regras da igreja de

Jerusalém; - as igrejas batistas devem ser chamadas de igrejas evangélicas; - as igrejas batistas

não reconhecem ministros “inescriturísticos e irregulares” (p.31) e – os batistas não se

dirigem como irmãos “aqueles que têm professado um cristianismo que não tem as doutrinas

de Cristo e não andam de acordo com os seus mandamentos” (ibid).

Desta forma, a corrente Landmarkista teve ampla aceitação entre os batistas norte-

americanos entre os séculos XIX e XX , como bem assegura Aguirella quando afirma que:

As idéias de Graves cada dia espalhavam-se mais e mais, e assim o “movimento

ladmarkista se cristalizou no Texas e Arkansas, na última década do século XIX e

nos primeiros anos do século XX”, este movimento tomou alguns nomes para sua

identificação, mas o seu último nome foi de “American Baptist Association”, e na

52 Azevedo (2004) diz que essa afirmação “tautológica” tem tanta dificuldade de passar pelo crivo desse grupo

denominacional, quanto uma corda perpassar o fundo de uma agulha, mas assevera que “os batistas são

protestantes” (p.23).

62

sua confissão doutrinária é reafirmada a confissão de fé de New

Hampshire.(AGUIRELLA, 1988, p. 32)

Mendonça (2002) compreende que os batistas brasileiros são mais intransigentes em

seus princípios e identidade por causa de sua origem americana - a Convenção Batista do Sul

dos Estados Unidos - que era “muito conservadora” (p.42) e que os primeiros missionários

americanos no Brasil eram “landmarkistas”, como Zacharias Taylor, por exemplo, que

escreveu no Brasil o livro A Origem e História dos Batistas, introduzido por J.R.Graves.

O protestantismo de missões batistas que chega ao Brasil transplantou essa “bagagem

teológica” (AGUIRELLA, 1988, p. 33) como também os seus conflitos e um meio utilizado

para divulgação das ideias landmarkistas entre os batistas brasileiros será a imprensa do

grupo, conforme se verá mais adiante.

Em relação à política administrativa batista americana, compreende-se que os batistas

nos Estados Unidos através da Convenção Batista do Sul criaram uma estrutura

denominacionalista com uma diretoria executiva. Desta forma, a Convenção Batista do Sul

dos Estados Unidos nomeou como primeiro presidente Henry Allen Tupper e como primeiro

secretário, James Barnett Taylor. Em 1871, Henry Allen Tupper sucedeu James Taylor e em

1893, Henry Tupper foi substituído por Robert Josiah Willingham. É este último secretário

executivo que se deseja destacar neste capítulo, pois foi com ele que Eurico Nelson

correspondeu constantemente depois de vinculado à Junta Batista de Richimond. Sobre este

secretário executivo, há até o momento uma edição biográfica sob o título Life of Robert

Willingham (1917) escrita pela filha Elizabeth Willingham53 que descreve o trabalho

missionário do pai na Junta de Missões Estrangeiras no periodo de 1893 a 1914.

A ascensão de Robert Willingham à frente da Junta de Richimond se deu num

momento muito delicado para os batistas do sul dos Estados Unidos, pois missionários

descontentes com a politica implantada por essa junta, iniciaram na China um movimento de

protesto que resultou num grande número de adesões nos Estados Unidos, querela esta que se

propagava intensamente através da imprensa batista americana. E além do mais, no momento

dessa crise “interna”, a junta missionária estava passando por sérios problemas financeiros

53 Willingham (2009) relata que seu pai, Robert Josiah Wiligham foi um pastor batista do Tennessee e se

graduou na Universidade da Geórgia, além de ter cursado Teologia no Seminário Teológico Batista de Lousville,

no Kentuchy.

63

decorrentes de volumosas dívidas contraidas nas gestões anteriores a Robert Wilingham,

tendo este último arcado com o pagamento desses valores que ocasionou uma diminuição de

contratações de novos missionários. Por outro lado, o Pastor batista Robert Willingham era

segundo Elizabeth Willingham, um apologista do trabalho missionário leigo, pois nos anais da

convenção batista americana se registra uma administração caracterizada pelo “despertar dos

leigos”, aspecto que pode ter contribuido para o vinculo institucional de Eurico Nelson entre

os batistas americanos em 1897.

Foi esta Junta de Missões, com sede em Richimond, que enviou ao Brasil o

missionário T. J. Bowen, no período de 1859 a 1861. Em 1880, o casal Bagby e em 1882, o

casal Zacharias Taylor. A primeira Associação Batista no Brasil sob a direção desta junta foi

organizada pelas igrejas do sul do Brasil, no Rio de Janeiro em 1894. Em 1900, a Convenção

Batista do Sul dos Estados Unidos, segundo Tobert (1954) fundou vinte e sete igrejas, possuia

quarenta e cinco missões, dezenove missionários, dezenove auxiliares e mais de mil e

novecentos membros.

3.1 Protestantismo Batista no Brasil.

Segundo Aguirella (1988), aquele movimento landmarkista iniciado nos Estados

Unidos e também conhecido como Movimento da Igreja Alta marcou profundamente a vida

dos batistas brasileiros, principalmente no que toca aos seguintes aspectos: ética puritana-

pietista, com ênfase no individualismo, recusa dos “prazeres do mundo”, num modelo de

vida ascética e ênfase na experiência religiosa conversionista. Foi também desse movimento

que surgiu a ideia de que os cristãos apostólicos eram batistas e, portanto, quem não fosse

batista não podia ser considerado “cristão”. Da mesma forma que nos Estados Unidos, os

seguidores deste movimento no Brasil “recusavam-se a considerar os pregadores

„pedobatistas‟ (batizavam crianças) ministros do evangelho (TORBET, 1954, p.140). Seus

adeptos não aceitavam a “imersão” administrada por outros ministros não batistas e não

cediam os púlpitos a outros ministros protestantes, não admitindo ainda que tomassem parte

da Ceia do Senhor membros de igrejas batistas diferentes “porque diziam que a ordenança era

apenas para os membros da igreja local” (ibid).

64

No Pará essas ideias religiosas ficaram bem evidentes para o metodista Justus Nelson,

o que se constata no jornal O Apologista Crhistão Brazileiro, num artigo de sua autoria em

clara oposição às ideias landmarkistas do missionário Eurico Nelson, quando afirma:

No ano de 1892 os missionários baptistas no Brasil effecturaram a sua primeira

Convenção. O seu órgão “A Verdade” da Bahia, publicou uma série de resoluções

votadas pela mesma convenção. A última resolução da série foi a seguinte:

“Que não devemos conhecer a presença de outras denominações em qualquer

localidade para onde o Espírito Santo pela sua providência nos possa guiar no

trabalho evangélico”.

No jornalismo da igreja baptista, essa igreja se chama “A Igreja de Christo” e para

as mais igrejas evangélicas empregam o termo “as outras igrejas” o que vale dizer

que as outras igrejas não são “de Christo”.

No seu culto, notavelmente na eucharistia ou ceia do Senhor, não convidam para

com elles commungarem os membros de outras igrejas; nem tampouco commungam

nas igrejas de outras denominações.

Por exemplo, o pastor da igreja Baptista do Pará, assistindo n‟um culto da igreja

Methodista Episcopal no Pará, quando depois do sermão foi feito o convite para

todos os christãos de todo e qualquer nome participarem da solemnidade da ceia do

Senhor, retirou-se da sala com a família, como é de costume entre os Baptistas

quando se acham nas igrejas alheias. 54

Chama atenção a presença de um pastor batista numa igreja metodista em Belém, uma

vez que o posicionamento oficial do grupo não aceitava qualquer tipo de aproximação com as

demais igrejas protestantes. Visivelmente chateado com a atitude do missionário batista,

Justus Nelson não poupará os batistas ao fazer uma critica ácida ao landmarkismo “ambíguo”

de Eurico Nelson. Esta crítica culminará numa série de “ataques” entre metodistas e batistas

no Pará a partir do ano de 1897, tendo os jornais O Apologista Christão Brazileiro e A

Verdade ou Boas Novas como veículos poderosos na querela entre os dois grupos.

Para Aguirella (1988), quatro teorias marcam profundamente os seguidores

landmarkistas no Brasil: a primeira é a sucessão da igreja apostólica. Neste aspecto uma

congregação cresce e é formada por autoridade das outras. A segunda é a sucessão apostólica,

que só é válida se a continuidade “consiste numa sucessão de ministros ordenados de uma

maneira válida desde os apóstolos” (ibid). A terceira é a sucessão batismal, que só é válida se

for o modelo de batismo por “imersão”, um batismo desempenhado por um ministro

54

ACB, de 01 nov. 1897, p.01. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de sentido,

além dos erros, ortográficos e sintáticos

65

validamente batizado e autorizado e finalmente a quarta que é a sucessão espiritual, que

“consiste numa sucessão genuína de seguidores de Jesus, uma sucessão da experiência cristã”

comprovada com traços de doutrinas e princípios batistas55.

Justus Nelson repreendia abertamente estas quatro teorias dos batistas ao longo de

todo o ano de 1897, reservando sempre as primeiras páginas do jornal O Apologista para tecer

as mais duras apreciações contra a ortodoxia batista:

Justificam esse modo de proceder, sustentando que a única forma válida do baptismo

é a submersão. Quem não se baptisou submergindo-se não foi baptisado e, portanto,

não é christão; e por conseguinte não têm os taes direitos de se chamar christãos

nem de commungar com christãos.

Na sua propaganda não hesitam em entrar nos rebanhos de outras igrejas,

procurando convencer aos membros de estas igrejas que o seu baptismo não é válido

perante Deus, e que portanto a sua religião é defeituosa, inválida e não acceitável a

Deus, pelo motivo de lhes faltar a única cousa – de se baptisar pela submersão.

Tem lá seus argumentos que dizem tirá-los da Escriptura, e conseguem persuadir

almas poucos instruídas a acceitar a ceremonia como cumprimento do seu dever

perante Deus, e como resultado lógico, a sua entrada na igreja Baptista, como a

única verdadeira.56

Segundo Aguirella (1988) o protestantismo batista é um tipo de protestantismo

denominacional, voluntário, instrumental e, por natureza, missionário e expansivo e possui

uma eclesiologia centrada em torno de si mesma e por isso a relutância em comungar com

cristãos de outras denominações (exclusivismo). Desta forma, por causa da “distinção” ou

exclusivismo pode se entender as linhas landmarkistas observadas em vários discursos

registrados no grupo, como se percebe em Crabtree ao declarar que “O povo desta fé e ordem

é mais antigo do que o seu nome histórico, porque é da mesma fé e ordem dos cristãos do

Novo Testamento. As igrejas apostólicas eram verdadeiramente batistas” (CRABTREE, 1962,

p.29)

Ou ainda Carlos Vieira:

Chegando alguém a uma igreja batista e declarando que havendo sido batizado por

imersão (desculpando o pleonasmo) noutra denominação considerada evangélica,

pensa que pode ser admitido como membro da igreja visitada com a dispensação do

55 Foram os seguidores deste movimento landmarkista que começaram a reafirmar as “regras distintivas dos

batistas” (AGUIRELLA, 1988, p.31).

56 ACB, de 01 nov. 1897, p.01. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas de sentido,

além dos erros, ortográficos e sintáticos.

66

batismo. Não. Tal batismo, embora correto na forma e sagrado, nem sempre é

válido. 57

A “agressividade evangélica e anticatólica” (MENDONÇA, 2002, p.43) dos batistas

no início do século XX, granjeou para o grupo um crescimento considerável no Brasil em

relação aos demais protestantes. Essa conquista de mais adeptos foi muito mais em razão da

evangelização direta do que o investimento na área de educação. Nesse trabalho inicial, os

batistas simplesmente batizavam candidatos adultos, introduzindo-os nas suas igrejas, porém

no caso paraense, durante a disputa entre metodistas e batistas, o pastor metodista Justus

Nelson acusa através da imprensa religiosa o pastor batista Eurico Nelson de persuadir

membros de igrejas protestantes de outra denominação (como a dele) a serem rebatizados e

tornarem-se batistas:

Na Amazônia, até esta data, segundo nos consta, todos os membros da Igreja

Baptista que não vieram já baptistas de outras partes do Brazil, são ovelhas

roubadas, que se lavaram para fazer desaparecer o signal do proprietário.

Esse “furto de gado” ou troca de igreja pouco importa se não aos que se deixar levar

pelos argumentos e doutrinas pharisaicas que tamanha importância a uma mera

formalidade material que de maneira alguma pode influir para santificação da

alma.58

Provavelmente o pastor metodista Justus Nelson estivesse se referindo a Sra. Dulcina

Luiza de Alencar59 que antes de ser batizada novamente em janeiro de 1897, por ocasião da

fundação da primeira igreja em Belém, havia sido membro da Igreja Metodista Episcopal do

Pará, cujo pastor era na época o polêmico Justus Nelson. Esta senhora também participava da

Liga Epworth na função de tesoureira, até o ano de 1897. Pereira (1954) assegura que na

ocasião da fundação da igreja, um grupo havia abandonado Justus Nelson “depois de ter

estudado a questão do batismo” (p.65), ou ainda um dos batizados naquela data, o Sr. Manoel

Evangelista da Silva, que “era maranhense e convertera-se no meio dos presbiterianos, mas

lendo sua Bíblia convenceu-se de que os batistas estavam certos em sua posição acerca do

batismo” (PEREIRA, 1954, p.66).

57 O Jornal Batista, 29 abr. 1984, p.6.

58 ACB, de 01 nov. 1897, p.01. Grifo nosso. Este texto está respeitando a grafia original, com todas as lacunas

de sentido, além dos erros, ortográficos e sintáticos.

59 Pereira (1954) assegura que a referida senhora era prima do renomado literato brasileiro José de Alencar.

67

De acordo com Cavalcanti (2001), após a proclamação da República, a igreja batista

brasileira experimentará um aumento considerável de adeptos, primeiro com a formação de

associações batistas por região60 e depois com a formação da primeira convenção batista

nacional, em 1907. Este crescimento, segundo Mendonça (2002) não foi obra do destino. Na

verdade os batistas se empenharam em expandir suas fileiras, pois já em 1900 “contavam com

21 missionários, 35 igrejas e 1.932 fiéis”(CAVALCANTI, 2001, p.80), embora Cavalcanti

(2001) tenha afirmado que os batistas não sofreram cisões ou criaram outras igrejas

protestantes no período da “Era das Missões”, justificando esse fato a forte política de coesão

que a organização mantém de forma orgânica em várias regiões do país. É neste aspecto que

esta pesquisa propõe-se a discordar com o referido autor, como mais adiante se verá, pois em

Belém do Pará a igreja batista da implantação protestante sofreu depois da fundação, duas

cisões em menos de dez anos, culminando com uma terceira em 1911, que fundou a Missão

Evangélica da Fé, de ramo pentecostal.

3.2 Protestantismo Batista no Pará

Ao analisar a presença protestante na Amazônia, Dreher (1992) afirma que a primeira

tentativa dessa inserção na sociedade paraense foi no século XIX com o metodista Daniel

Kidder, porém, a permanência dele foi muito curta, embora tenha deixado relatos a respeito da

região que serviram de referências para os demais que ingressaram posteriormente. Em suas

“reminiscências,” Kidder descreve, inclusive, suas primeiras atividades religiosas

protestantes:

O dia seguinte ao de nossa chegada era domingo, e, por gentileza do Capitão

Hayden, providenciou-se para que dirigíssemos o culto a bordo da

“Maranhense”. Achavam-se presentes vários marinheiros norte-americanos e

diversas pessoas vindas de terra. Êstes, juntamente com o pessoal de bordo,

perfaziam uma assistência de cêrca de 30 pessoas, às quais anunciámos as

novas do reino de Deus. Considerando tratar-se de um navio que havia

apenas acabado de deixar em terra seus passageiros e que na mesma noite se

faria novamente ao mar, com outros tantos a bordo, a ocasião se apresentava

muito favorável para o serviço religioso, e sentimo-nos verdadeiramente

gratos pela oportunidade – talvez a primeira que jamais se deparou a um

60 Cavalcanti (2001) registra que em 1894 seis igrejas batistas formaram a primeira associação do Brasil, no

Rio de Janeiro. A segunda, com nove congregações no Nordeste, em 1900, a terceira, em São Paulo, em 1904 e a

quarta, em 1906, no Estado do Amazonas (p.80).

68

ministro protestante, - de pregar o nome de Cristo e a ressurreição sôbre a

vasta superfície líquida do Amazonas. No Pará, tivermos ocasião de dirigir

diversos cultos semelhantes, em domingos sucessivos, sendo uma vez a

bordo de um navio norte-americano surto no porto e as demais na residência

de um amigo. (KIDDER, 1972, p.167)

Além de Daniel Kidder, outra inserção ocorre com Robert Nesbit, um capitão naval

que transportava Bíblias e Novos Testamentos nas áreas ribeirinhas do rio amazonas e as

distribuía para as populações locais. Segundo Vieira (1980), foi em torno das atividades de

Robert Nesbit, que surgiu no Pará, o primeiro conflito entre a Igreja Católica e os

protestantes, pois o bispo da prelazia na época, Dom José Afonso Torres, escreveu uma carta

pastoral censurando as atividades de Nesbit.

Quanto à inserção propriamente protestante, Dreher (1992) considerou a de Richard

Holden61 da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, embora essas experiências de colportagem

de protestantes episcopais e metodistas no Pará durante o século XIX ainda não pudessem ser

caracterizadas como uma atividade especificamente “denominacional” (DREHER, 1992,

p.328). Sobre os batistas, este autor também atribui as primeiras atividades de evangelização

ao casal Eurico e Ida Nelson, no ano de 1891.

De outro ângulo, deseja-se destacar neste trabalho, que na época da inserção

protestante no Pará, a grande massa populacional da região era formada principalmente pelo

caboclo62

, que representa para a Antropologia Regional, o ator social típico dessa região.

Eduardo Galvão afirma que

o caboclo amazônico é católico. Recentemente, outras concepções religiosas se têm

difundido pelo vale, tais como o espiritismo, o protestantismo e, em poucos centros,

o judaísmo. Nos centros urbanos, onde foi maior a importação de escravos negros,

transparecem influências africanas como a “casa de minas”.(GALVÃO, 1983, p.04).

Embora pareça eclética, a religião do caboclo paraense se manifesta

predominantemente no culto aos santos. Tome-se como exemplo, uma das festas religiosas

61 O mesmo reverendo que acompanhou Robert Kalley nos trabalhos da Igreja Congregacional do Rio de

Janeiro.

62 Para Murrieta (2008) o caboclo não é uma entidade regional, mas uma categoria analítica, embora o termo

tenha surgido com certo preconceito, resistiu ao tempo e representa hoje o ribeirinho. Não é um povo

biologicamente definido, mas que tem um estilo de vida comum de subsistência.

69

mais visitadas no Brasil – O círio de Nazaré. A cidade de Belém é um dos principais centros

de devoção mariana no Brasil e Nossa Senhora de Nazaré é considerada pelo mundo católico

como a padroeira da cidade (MAUÉS, 2005, p.260). Por isso, em toda cidade é muito forte a

devoção a essa santa, “considerada muito poderosa e milagrosa” (ibid) e por esta razão

Galvão (1983) afirma que a religiosidade do caboclo paraense se manifesta sobretudo “no

culto prestado aos santos” (p.04) ou propriamente as suas imagens locais, pois se atribui

caráter divino “com poderes de ação imediata”. Tal como na cidade grande (Belém), cada

município interiorano ou localidade possui um santo padroeiro, como devoção principal e

uma grande festa é preparada todos os anos em sua homenagem. O culto desses santos, é

segundo Galvão, “uma manifestação coletiva”, característica esta muito importante para se

analisar o contexto onde germinou a fé batista em Belém do Pará, pois a prática religiosa do

homem procedente da Amazônia não se faz em caráter individual e mesmo os moradores mais

isolados dificilmente recorrem a preces individuais.

Até mesmo na capital, o devoto convida outros moradores que cultuam a mesma

devoção a rezar ladainhas ou novenas na casa de parentes, práticas estas que são feitas em

troca de algum benefício do santo de devoção. Para Galvão, as festas maiores, como a do

Círio de Nazaré, “podem ser consideradas promessas coletivas, pois se acredita que se o povo

não cumprir com a sua obrigação para com o santo, realizando a festa na época e com o ritual

apropriado, o santo retirará sua proteção” (p.04). Estas comemorações são organizadas

geralmente pelas irmandades religiosas “entidades constituídas por leigos que, nos centros

mais afastados, são inteiramente independentes da autoridade eclesiástica e se orientam

apenas por normas tradicionais” (GALVÃO, 1983, p.04).

Desde o período colonial, se desenvolveu no Pará uma peculiar vida religiosa que sem

a participação do sacerdote para operar as relações com o sagrado, ficou controlada por outros

“funcionários do sagrado” (BOURDIEU, 2003, p.43). Estes heterodoxos ou leigos tiveram

grande aceitação entre as tradicionais e diversas comunidades católicas do interior paraense,

espalhadas em diversos espaços controlados por corporações, irmandades, pajés e benzedores.

Ressalta ainda que o trânsito do interior para cidade era muito grande no período do apogeu

da borracha, mantendo as pessoas em contato contínuo, dadas as relações de parentesco e

amizade com os que residiam na cidade.

Para Schiweickardt (2003), que estudou a prática de rezadores e benzedeiras em

Manaus, os leigos foram assumindo a função de mediadores do sagrado e se constituíram nos

chamados “benzedores” que além de rezar, curavam as moléstias e, muito mais do que isto,

representam uma espécie de autoridade que exercia livre influência sobre o grupo dos

70

adeptos. Estas práticas, embora consideradas “supersticiosas” no final do século XIX, ainda

eram visualizadas na cidade, principalmente nos autos de policia ou na imprensa do

passado.63

Destaca-se ainda que no século XVIII, muitos métodos repressivos foram criados para

obrigar o indígena a participar dos ritos católicos sacramentais, fazendo uso de castigos

corporais como palmatória e açoites, mas todos em vão, uma vez que o catolicismo das

devoções foi aquele que ganhou sentido muito tempo depois entre as populações caboclas,

como a verdadeira aproximação do caboclo com o transcendente (HOORNAERT, 1992). É o

que se percebe, por exemplo, durante as festas comemorativas do Círio de Nazaré que até hoje

é considerado o “natal” dos paraenses, pois reúne famílias de todas as partes do Brasil e da

região uma vez no ano.

Sobre o círio, Hoornaert ainda afirma :

A poderosa força silenciosa dos romeiros, devotos e pagadores de promessas que

passa cada ano no segundo domingo de outubro pelas ruas da cidade se compara

com o próprio rio Amazonas. Diante dela, todo e qualquer esforço pastoral a partir

do horizonte oficial parece uma folha deitada sobre o rio Amazonas. O Círio,

definitivamente, é do povo e é da Amazônia, exprime a Amazônia e o poder

afirmativo de seu povo. (HOORNAERT, 1992, p.404).

Hoornaert (1992) afirmou ainda que pouca atenção foi dedicada às questões culturais

do homem amazônico, pois nem a romanização da igreja católica, que procurou fazer uma

reforma no Pará segundo o modelo trindentino, nem tampouco o protestantismo de missões

que lá ingressou teve uma percepção sensível da alteridade amazônica. Isto resultou num

significativo distanciamento entre a cultura cristã de matriz ocidental-européia e a matriz

indígena e/ou afrodescendente da grande massa populacional.

Além disso, os dois modelos religiosos promoveram de fato o que Cavalcanti (2001) já

havia afirmado sobre o contexto brasileiro, pois a evangelização protestante, ao trazer

modelos novos que impunham controle sobre o sagrado, “promoveu uma verdadeira guerra

entre a religião oficial e a religião popular, que constituía o modo de se relacionar com o

transcendental por parte da grande maioria do povo” (HOORNAERT, 1992, p.400).

63 Segundo FIGUEIREDO (1996), estas práticas embora fossem tratadas como “essencialmente” amazônicas,

no final do século XIX, entretanto, escapava da tipologia tradicional, pois o autor constatou que em Belém, havia

muitas pessoas de outras regiões do Brasil que se “aventuravam em práticas culturais” (p.07) diferentes das suas

e citou como exemplo, um pajé cearense e um mestre português “puçangueiro”.